O MARINHEIROntese AI, N… · FERNANDO PESSOA O MARINHEIRO drama estático em um quadro Um quarto...

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ANTOLOGIA FERNANDO PESSOA O MARINHEIRO drama estático em um quadro Um quarto que é sem duvida num castello antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro fergue-se, sobre uma eça, um caixão com uma donzella, de branco. Quatro tochas aos cantos. A' direita, quási em frente a quem imagina o quarto, ha uma única janella, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes lon- gínquos, um pequeno espaço de mar. Do lado da janella velam trez donzellas. A primeira está sentada em frente á janella, de costas contra a tocha de rima da direita. As outras duas estão sentadas nina de cada lado da janella. E' noite e ha como que um resto vago de luar. Primeira veladora. — Ainda não deu hora nenhuma. Segunda. — Não se podia ouvir. Não ha relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia. Terceira. — Não : o horizonte é negro. Primeira. — Não desejaes, minha irmã, que nos entretenhamos contando ò que fomos ? E' bello e é sempre falso. . . Segunda. — Não, não fallemos d'isso. De resto, fomos nós alguma cousa? Primeira. — Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é bello fallar do passado... As horas teem cabido e nós temos guardado silencio. Por mim, tenho estado a olhar para a chamma d'aquella vela. As vezes treme, outras torna-se mais amarella, outras vezes empallidece. Eu não sei porque é que isso se dá. Mas sabemos nós, minhas irmãs, por- que se dá qualquer cousa?... (uma pausa) A mesma. — Fallar do passado —isso deve ser bello, porque ó inútil e faz tanta pena... Segunda. — Fallemos, se quizerdes, de vim passado que não tivéssemos tido. Terceira. — Não. Talvez o tivéssemos tido... Primeira. — Não dizeis senão palavras. E tão triste fallar! E um modo tão falso de nos esquecermos !. . . Se passeássemos ?... Terceira. — Onde ? Primeira. — Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar sonhos.

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ANTOLOGIA

F E R N A N D O P E S S O A

O M A R I N H E I R O d r a m a e s t á t i c o e m u m q u a d r o

Um quarto que é sem duvida num castello antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro fergue-se, sobre uma eça, um caixão com uma donzella, de branco. Quatro tochas aos cantos. A' direita, quási em frente a quem imagina o quarto, ha uma única janella, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes lon­gínquos, um pequeno espaço de mar.

Do lado da janella velam trez donzellas. A primeira está sentada em frente á janella, de costas contra a tocha de r i m a da direita. As outras duas estão sentadas n ina de cada lado da janella.

E ' noite e ha como que um resto vago de luar.

Primeira ve ladora. — A i n d a não deu ho ra n e n h u m a . Segunda . — N ã o se pod ia ouvir . Não ha relógio aqui per to . D e n t r o em pouco deve

ser dia. T e r c e i r a . — Não : o hor izon te é neg ro . Primeira . — N ã o desejaes , m inha i rmã, que nos en t re t enhamos c o n t a n d o ò que fomos ?

E ' bello e é sempre fa l so . . . Segunda . — N ã o , não fallemos d ' i sso . De r e s to , fomos nós a lguma c o u s a ? Primeira . — Ta lvez . E u não sei. Mas , a inda ass im, sempre é bello fallar do p a s s a d o . . .

As horas t eem cab ido e nós t emos g u a r d a d o silencio. P o r mim, t e n h o es tado a olhar para a c h a m m a d 'aquel la vela . As vezes t r eme , ou t r a s to rna-se mais amare l la , ou t ra s vezes empall idece. E u não sei p o r q u e é que isso se dá. Mas sabemos nós , m i n h a s i rmãs , por­que se dá qua lque r c o u s a ? . . .

(uma pausa)

A mesma. — Fa l l a r do pas sado — i s s o deve ser bello, p o r q u e ó inúti l e faz t a n t a p e n a . . . Segunda . — Fa l l emos , se qu izerdes , de vim pas sado que não t ivéssemos t ido . T e r c e i r a . — N ã o . Ta lvez o t ivéssemos t i d o . . . Primeira . — Não dizeis senão pa lav ras . E t ão t r i s t e fa l la r ! E u m modo t ão falso de

nos esquecermos !. . . Se passeássemos ? . . . T e r c e i r a . — Onde ? Primeira . — Aqui , de um lado pa ra o ou t ro . As vezes isso vai busca r sonhos .