O medo do estrangeiro

100
o medo do estrangeiro OUTUBRO DE 2015 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR EXEMPLAR DE ASSINANTE VENDA PROIBIDA n. 236 Experiências internacionais inspiram criação de cargos de cientista-chefe Projeto promove reaproximação de famílias separadas pela hanseníase Simbiose entre protozoário e bactéria reproduz evolução de célula nucleada Pioneiro da tradução do russo e ex-pracinha, Boris Schnaiderman publica relato sobre a guerra Empresas produzem insetos para polinização na agricultura e combate a pragas n.236 PESQUISA FAPESP OUTUBRO DE 2015 Distância do padrão branco e europeu e mercado de trabalho limitado são algumas das razões da hostilidade aos atuais imigrantes no Brasil

description

Pesquisa FAPESP - Ed. 236

Transcript of O medo do estrangeiro

Page 1: O medo do estrangeiro

o medo do estrangeiro

outubro de 2015 www.revistapesquisa.fapesp.br ex

em

pl

ar

de

ass

ina

nt

e

ve

nd

a p

ro

ibid

a

n.236

Experiências internacionais inspiram criação de cargos de cientista-chefe

Projeto promove reaproximação de famílias separadas pela hanseníase

Simbiose entre protozoário e bactéria reproduz evolução de célula nucleada

Pioneiro da tradução do russo e ex-pracinha, Boris Schnaiderman publica relato sobre a guerra

Empresas produzem insetos para polinização na agricultura e combate a pragas

n.2

36

pe

squ

isa

Fa

pe

sp

o

ut

ub

ro

de

20

15

Distância do padrão branco e europeu e mercado de trabalho limitado são algumas das razões da

hostilidade aos atuais imigrantes no Brasil

Page 2: O medo do estrangeiro

re vistape squisa .fape sp.br

Foram 30 mil novos fãs em 8 meses

um crescimento de 50%

jan. 2015 abr. 2015 jun. 2015 set. 2015

60mil

70mil

80mil

90mil

Os vídeos postados alcançam números expressivos

Carolina Maria de Jesus

• Distribuídoparamaisde1.760.000pessoas

• 14milcompartilhamentos• 2,4milcurtidas• 304comentários• Exibidoemexposição

no Museu afro brasil

Química verde

• Distribuídoparamaisde1.113.000pessoas

• 10milcompartilhamentos• 3,1milcurtidas• 420comentários

Suspenso pelo som

• Distribuídoparamaisde285milpessoas

• 4,5milcompartilhamentos• 2,2milcurtidas• 223comentários• Concorrenteno

8th imagine science film festival de Nova York

flatiCon/CCBY3.0

Faça parte do grupo que acompanha as postagens da revista no Facebook

/Pesquisafapesp

Page 3: O medo do estrangeiro

PESQUISA FAPESP 236 | 3

Caos no ensinoNa saída da aula de mecânica clássica, uma conversa com o professor,

Fabio Alliguieri, atiçou a curiosidade de Aluizio Salvador sobre

propriedades caóticas. Um estudo teórico do pêndulo duplo, estrutura

semelhante a um braço articulado, serviu como guia para construir

seu próprio aparato, com uma luz na ponta que permite registrar o

movimento numa fotografia em longa exposição e demonstrar que ínfimas

alterações nas condições iniciais geram grandes diferenças no movimento.

O próximo passo é fazer análises matemáticas que comprovem que o

balanço não segue um padrão repetitivo. Para o estudante, a experiência

destaca a importância de recursos didáticos que motivem a investigação.

FotolAb

Foto enviada por Aluizio Salvador, estudante de licenciatura em física no Instituto Federal do Paraná, campus Paranaguá

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para [email protected], com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Page 4: O medo do estrangeiro

CAPA16 Distância do padrão histórico de imigrante branco e europeu e mercado de trabalho limitado são algumas das razões da hostilidade aos fluxos migratórios atuais

ENTREVISTA24 Boris SchnaidermanProfessor de literatura, pioneiro da tradução de livros russos e ex-pracinha, lança livro sobre participação na Segunda Guerra

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

30 Gestão públicaExperiências internacionais inspiram governo de São Paulo a criar cargo de cientista-chefe em secretarias estaduais

36 BibliometriaRelatório propõe limites para o uso de indicadores na avaliação científica no Reino Unido

40 Ensino de ciênciasJovens brasileiros recorrem à bagagem cultural e religiosa para explicar a evolução dos seres vivos, aponta tese

CIÊNCIA

44 OrnitologiaEstudos flagram o processo de surgimento de 11 espécies em grupo de aves da América do Sul

50 ParasitologiaSimbiose entre protozoário e bactéria ajuda a entender a origem de organelas celulares

fOTOS dA CAPA eduardo cesar

outubro 236

66

44

84

74 Pesquisa empresarialSpectra projeta e constrói simulador de voo e laboratórios de testes para a indústria automobilística

HUMANIDADES

78 SociedadePesquisadores de várias áreas usam levantamentos históricos e testes de DNA para reaproximar famílias separadas pela hanseníase

84 CinemaFilmes do diretor Jia Zhang-ke ganham o mundo com visão crítica sobre o país

88 ComunicaçãoFartura de notícias on-line refaz os espaços e os papéis do jornalismo científico

SEçÕES

3 Fotolab5 cartas6 on-line7 carta da editora8 dados e projetos9 Boas práticas10 estratégias12 Tecnociência91 Memória93 arte95 resenha96 carreiras

54 Biologia molecularPlantas medicinais podem reduzir lesões locais causadas pela picada da jararaca

56 GeologiaPesquisas determinam a influência de grande falha na crosta do Brasil na formação das bacias sedimentares do Paraná e do Parnaíba

58 físicaExperimento mostra que informação quântica transmitida por fótons resiste aos efeitos da turbulência do ar

60 AstrofísicaDescoberta de sistema com duas estrelas de alta massa em processo de fusão indica um caminho evolutivo diferente para esses astros

TECNOLOGIA

62 BiotecnologiaAnimais recebem genes humanos e produzem proteínas no leite para tratamento de doenças

66 AgriculturaEmpresas desenvolvem métodos de criação de insetos para polinização e combate a pragas

70 EnergiaReaproveitar água em hidrelétrica eleva o abastecimento e o fornecimento de eletricidade para São Paulo e Baixada Santista

Page 5: O medo do estrangeiro

PESQUISA FAPESP 236 | 5

gem mais acessível fazendo com que as portas do conhecimento atualizado es-tejam abertas à população. Muitas vezes essa população nem sabe quem é quem e o que fazem os nossos pesquisadores nos diferentes campos da ciência.Marte Ferreira da Silva

Atibaia, SP

VídeosSenti saudades de Ribeirão Preto ao ver o vídeo “Um enxame ordenado”. Sou muito grato ao Departamento de Gené-tica da USP de Ribeirão pela formação que recebi em produção de rainhas e inseminação instrumental. Gastei muitas horas nesse mesmo laboratório onde foi realizada a entrevista.Raimundo Maciel

Via Facebook

Interdisciplinaridade e popularização da ciência e tecnologia: precisamos utilizar todas as formas de mídia para comparti-lharmos conhecimento. Parabéns a todos os envolvidos no vídeo “Força que vem da união”.Silvestre Labiak Jr.

Via Facebook

Achei superinteressante o vídeo “Da garoa à tempestade” sobre as chuvas em São Pau-lo, pois tratam da influência da urbaniza-ção na maximização das chuvas intensas.Andrey Binda

Via Facebook

CorreçãoA capacidade de produção de etanol da GranBio é de 82 milhões de litros por ano com palha de cana e não de 82 bilhões, como consta na página 73 da reportagem “A vez da biotecnologia na biomassa” (edição 235). Até agosto, a produção atingiu 3 milhões de litros de etanol e não 3 bilhões.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail [email protected] ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

CARtAS [email protected]

Crise da águaA reportagem “Água reciclada” (edição 235) é muito boa. Sou uma engenheira de meio ambiente estrangeira que mora no Brasil. Estou feliz que os engenheiros brasileiros estejam pensando em solu-ções avançadas e sustentáveis. Shazeeda Ameerally

Via Facebook

Jornalismo científicoSobre a reportagem “Paz relativa” (edi-ção 235), não dá para o jornalista passar a informação ao público tal qual o cientista falou. Ele traduz a mesma informação de forma que o público entenda, senão a informação não foi passada.Augusto de Souza

Via Facebook

O grande problema do jornalismo cien-tífico é a interpretação e entendimento por parte dos jornalistas quando se trata de assunto científico ou médico. Seja na imprensa escrita ou falada.Edmundo Santana dos Santos

Via Facebook

Pesquisa no IrãO Irã tem uma importante rede de uni-versidades, algumas estão entre as mais antigas do mundo, com pesquisadores formados nos principais centros (nota da seção Estratégias, “Otimismo na pesqui-sa do Irã”, edição 234). Nos congressos internacionais como o International As-sociation for Media and Communication Research, mesmo durante as sanções era ativa a participação de pesquisadores iranianos da área de comunicação.Elias Machado

Via Facebook

Magda SoaresGostei da frase de Magda Becker Soares (“O poder da linguagem”, edição 233) sobre a preocupação em disseminar o conteúdo ci entífico dos artigos de pes-quisa para a comunidade não científica, de forma a colocar à disposição de toda a sociedade as descobertas em uma lingua-

CONtAtOS

Site No endereço

eletrônico www.

revistapesquisa.fapesp.br

você encontra todos os textos de

Pesquisa FAPESP, na íntegra, em

português, inglês e espanhol.

Também estão disponíveis

edições internacionais da revista em

inglês, francês e espanhol

Opiniões ou sugestões

Envie cartas para a

redação pelo e-mail

[email protected] ou para a rua

Joaquim Antunes, 727 – 10º andar,

CEP 05415-012, São Paulo, SP

Assinaturas, renovação

e mudança de endereço

Envie um e-mail para

[email protected]

ou ligue para (11) 3087-4237,

de segunda a sexta, das 9h às 19h

Para anunciar Contate

Júlio César Ferreira

na Mídia Office, pelo

e-mail [email protected],

ou ligue para (11) 99222-4497

Classificados Ligue para

(11) 3087-4212 ou escreva para

[email protected]

Edições anteriores

Preço atual de capa

acrescido do custo de

postagem. Peça pelo e-mail

[email protected]

Licenciamento

de conteúdo

Para adquirir os direitos

de reprodução de textos e imagens

de Pesquisa FAPESP ligue para

(11) 3087-4212 ou envie e-mail para

[email protected]

Page 6: O medo do estrangeiro

6 | outubro DE 2015

youtube.com/user/PesquisaFaPesP

on-linEw w w . r e v i s t a P e s q u i s a . F a P e s P. b r

xum crânio encontrado em um sítio arqueológico de minas Gerais com mandíbula, seis vértebras cervicais e as duas mãos cobrindo o rosto – uma virada para cima, outra para baixo – é o mais antigo registro de decapitação nas américas. marcas nos ossos indicam que não só a cabeça foi cortada horas após a morte, como as mãos foram decepadas. o achado, feito por pesquisadores de diversas instituições e descrito na PLoS One, está ajudando a entender melhor a liturgia funerária de grupos que habitaram o país há cerca de 9 mil anos.

xmorcegos brasileiros de espécies e hábitos alimentares distintos, e não somente aqueles que comem insetos, podem estar servindo como reservatório do hantavírus, causador de doenças cardiopulmonares. em estudo publicado na revista The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, um grupo internacional de pesquisadores analisou morcegos de várias espécies que se alimentam de frutas, carne e sangue. os animais foram capturados entre fevereiro de 2012 e abril de 2014 em são Paulo e no norte de minas Gerais. Nove dos 53 morcegos analisados tinham anticorpos específicos contra a nucleoproteína recombinante do vírus.

Exclusivo no site

Vídeos do mês

Como a estrutura social e o comportamento de abelhas estão codificados no DNA

Pesquisadores estudam biofilme formado pela Xylella fastidiosa

confira alguns modelos de pequenas aeronaves brasileiras clicados pelo fotógrafo Léo Ramos

Assista ao vídeo:

Assista ao vídeo:

Pesquisadores falam das aplicações da nanofotônica e de árvore rara do Cerrado

Rádio

Galeria de imagens

A mais vista do mês no Facebook

HUMANIDADES

Paz relativa

44.013 visualizações

564 curtidas

213 compartilhamentos

entre 19 e 25 de setembro no perfil de Pesquisa FAPESP

ilu

StR

ãO

NeG

rei

ro

s

Page 7: O medo do estrangeiro

PESQUISA FAPESP 236 | 7

cArtA dA EdItorAJosé GoldemberGPresidente

eduardo moacyr KrieGervice-Presidente

conSElho SUPErIor

eduardo moacyr KrieGer, fernando ferreira costa, João Grandino rodas, José GoldemberG, maria José soares mendes Giannini, marilza Vieira cunha rudGe, José de souza martins, Pedro luiz barreiros Passos, suely Vilela samPaio

conSElho técnIco-AdmInIStrAtIvo

carlos henrique de brito cruzdiretor científico

Joaquim J. de camarGo enGlerdiretor AdministrAtivo

conSElho EdItorIAlcarlos henrique de brito cruz (Presidente), caio túlio costa, eugênio bucci, fernando reinach, José eduardo Krieger, luiz davidovich, marcelo Knobel, maria hermínia tavares de almeida, marisa lajolo, maurício tuffani, mônica teixeira

comItê cIEntíFIcoluiz henrique lopes dos santos (Presidente), anamaria aranha camargo, carlos eduardo negrão, fabio Kon, francisco antônio bezerra coutinho, Joaquim J. de camargo engler, José Goldemberg, José roberto de frança arruda, José roberto Postali Parra, lucio angnes, marie-anne Van sluys, mário José abdalla saad, Paula montero, roberto marcondes cesar Júnior, sérgio robles reis queiroz, Wagner caradori do amaral, Walter colli

coordEnAdor cIEntíFIcoluiz henrique lopes dos santos

dIrEtorA dE rEdAção alexandra ozorio de almeida

EdItor-chEFE neldson marcolin

EdItorES fabrício marques (Política), márcio ferrari (Humanidades), marcos de oliveira (Tecnologia), ricardo zorzetto (Ciência); carlos fioravanti e marcos Pivetta (Editores espe ciais); bruno de Pierro (Editor-assistente)

rEvISão daniel bonomo, margô negro

ArtE mayumi okuyama (Editora), ana Paula campos (Editora de infografia), maria cecilia felli e alvaro felippe Jr. (Assistentes)

FotógrAFoS eduardo cesar, léo ramos

mídIAS ElEtrônIcAS fabrício marques (Coordenador) IntErnEt Pesquisa FAPESP onlinemaria Guimarães (Editora)rodrigo de oliveira andrade (Repórter) renata oliveira do Prado (Mídias sociais)

rádIo Pesquisa Brasilbiancamaria binazzi (Produtora)

colAborAdorES alexandre affonso, andré Julião, daniel bueno, claudia tozetto, francisco bicudo, evanildo da silveira, fabio otubo, igor zolnerkevic, Jayne oliveira, marcella beraldo de oliveira, mauro de barros, nelson Provazi, salvador nogueira, sandro castelli, Valter rodrigues, yuri Vasconcelos

é ProIbIdA A rEProdUção totAl oU PArcIAl dE tExtoS E FotoS SEm PrévIA AUtorIzAção

PArA FAlAr com A rEdAção (11) [email protected]

PArA AnUncIAr midia office - Júlio césar ferreira (11) 99222-4497 [email protected] Classificados: (11) 3087-4212 [email protected]

PArA ASSInAr (11) 3087-4237 [email protected]

tIrAgEm 42.600 exemplaresImPrESSão Plural indústria GráficadIStrIbUIção dinaP

gEStão AdmInIStrAtIvA instituto uniemP

PESQUISA FAPESP rua Joaquim antunes, no 727, 10o andar, ceP 05415-012, Pinheiros, são Paulo-sP

FAPESP rua Pio Xi, no 1.500, ceP 05468-901, alto da lapa, são Paulo-sP

secretaria de desenVolVimento econômico,

ciência e tecnoloGia govErno do EStAdo dE São PAUlo

issn 1519-8774

fundação de amParo à Pesquisa do estado de são Paulo

A crise humanitária que ganhou visibilidade com a chegada em massa de imigrantes, muitas ve-

zes refugiados, à Europa, oriundos prin-cipalmente do Oriente Médio e do norte da África, recolocou em pauta o fenô-meno migratório em grande escala. Seu impacto reverberou em outros países, inclusive no Brasil, que viu dobrar a en-trada de refugiados nos últimos quatro anos. Os sírios, por exemplo, hoje repre-sentam 24,5% dos 8.530 refugiados no país. Apesar do número pequeno (perto do contingente que chega à Europa), es-ses imigrantes frequentemente causam estranhamento e são alvo de ações dis-criminatórias no Brasil.

O tema é objeto de pesquisas como as do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Ne-po-Unicamp) e do Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (CEM-USP), apresentadas na reportagem de capa (página 16). Desde os anos 2000, as grandes áreas metropolitanas deixa-ram de ser o destino quase exclusivo dos imigrantes: em busca de trabalho, esses contingentes agora seguem os investi-mentos em agropecuária ou industriais em cidades do interior. Pesquisadores também sugerem que a onda imigratória dos últimos 10 anos estaria em desacor-do com pressupostos históricos tácitos, segundo os quais os estrangeiros “ideais” para o Brasil seriam brancos, europeus e católicos. Essa visão discriminatória e restritiva chegou a embasar ações do Estado brasileiro – a chamada políti-ca de branqueamento do Estado Novo (ver Pesquisa FAPESP nº 201). Na onda atual predominam latino-americanos (bolivianos, haitianos e colombianos), além de africanos como senegaleses e congoleses; por estarem distantes des-se padrão, haveria mais estranhamen-to. Esse fator, associado a outros como a competição pelos postos de trabalho

e a ausência de políticas públicas vol-tadas para a inserção dos imigrantes na sociedade brasileira, contribuiria para as reações de hostilidade. O estado de São Paulo, cujo desenvolvimento (inclusive o científico-tecnológico) tanto se bene-ficiou da imigração, está em boa posição para uma resposta mais construtiva.

Outra história de estranhamento e vio-lência diz respeito às vítimas da política discriminatória contra pessoas com han-seníase no Brasil, vigente até 1986 (página 78). A prática de internação compulsória em hospitais-colônia era precedida pela queima da casa do paciente com todos os seus pertences. Estima-se que 40 mil pessoas tenham sido separadas de suas famílias por conta dessas estratégias de isolamento, com 25 mil crianças colo-cadas em orfanatos especiais. Em 1924, quando ainda não havia um tratamento eficaz, foi implementada a prática de in-ternação compulsória, que ganhou força na década de 1940: em 1943, 41 hospitais--colônia espalhados pelo país abrigavam 17 mil pessoas. Na mesma década, o Brasil passou a medicar os pacientes com sul-fona, o que exigia apenas visitas perió-dicas a hospitais. Mesmo assim, e tendo subscrito um acordo internacional pelo fim das internações compulsórias em 1952, a prática seguiu no Brasil por mais de 30 anos, partindo famílias e margina-lizando parentes próximos. Um projeto desenvolvido desde 2011 por uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), associada à organiza-ção não governamental Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), utilizando pesqui-sas históricas e testes de DNA, procura reunir familiares de hansenianos que não se conheciam ou estavam separados.

Em ambos os casos, a superação do desconhecimento mostra que o estra-nhamento e a violência a ele associada são nocivos para a sociedade.

estranhamento e hostilidadeAlexandra ozorio de Almeida | diretora de redação

Page 8: O medo do estrangeiro

8 | outubro DE 2015

DaDos E projEtos

temáticosescritos sobre os novos mundos: uma história da construção de valores morais em língua portuguesaPesquisador responsável: Jean Marcel Carvalho Françainstituição: FCHS de Franca/UnespProcesso: 2013/14786-6Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

As bacias do Pantanal, chaco e Paraná (PcPB): evolução e estrutura sísmica da crosta e manto superiorPesquisador responsável: Marcelo Sousa de AssumpçãoInstituição: IAG/USPProcesso: 2013/24215-6Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019 o que determina o crescimento da massa estelar de galáxias elípticas? intrínseco ou ambiente: a saga continua...Pesquisador responsável: Reinaldo Ramos de Carvalhoinstituição: Inpe/MCTIProcesso: 2014/11156-4Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2018

contribuição da via AmPK para a fibrose renal e patogênese da nefro e retinopatia diabéticasPesquisador responsável: José Butori Lopes de Fariainstituição: FCM/UnicampProcesso: 2014/22687-0Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020

Desenvolvimento e implantação de métodos de avaliação visual: aplicações clínicas e em modelos animaisPesquisadora responsável: Dora Selma Fix Venturainstituição: IP/USPProcesso: 2014/26818-2Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020

epidemiologia e genômica de adenocarcinomas gástricos no BrasilPesquisador responsável: Emmanuel Dias Netoinstituição: A.C. Camargo Cancer Center/FAPProcesso: 2014/26897-0Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2020

metabolismo e distribuição de xenobióticos naturais e sintéticos: da compreensão dos processos reacionais à geração de imagens teciduais (Biota)Pesquisador responsável: Norberto Peporine Lopesinstituição: FCF Ribeirão Preto/USPProcesso: 2014/50265-3Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2019

melatonina e a regulação do metabolismo energético: estudos básicos, clínicos e epidemiológicosPesquisador responsável: José Cipolla Netoinstituição: ICB/USPProcesso: 2014/50457-0Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2020

teorias da causalidade e ação humana na filosofia grega antigaPesquisador responsável: Marco Antonio de Ávila Zinganoinstituição: FFLCH/USPProcesso: 2015/05317-8Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020

álgebra não comutativa e aplicaçõesPesquisador responsável: Francisco Cesar Polcino Miliesinstituição: IME/USPProcesso: 2015/09162-9Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2020

temáticos e JoVem PesquisADor recentesProjetos contratados em agosto e setembro de 2015

Aspectos epidemiológicos do Toxoplasma gondii em animais domésticos e silvestres da fauna amazônicaPesquisadora responsável: Solange Maria Gennariinstituição: FMVZ/USPProcesso: 2015/11530-6Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

expressão de proteínas de comunicação e de junções celulares no sistema digestivo de fetos bovinos, bezerros recém-nascidos e bovinos adultosPesquisador responsável: Francisco Javier Hernandez Blazquezinstituição: FMVZ/USPProcesso: 2015/50095-3Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2020

Public accountability to residents in contractual urban redevelopment (Parcour). (FAPesP-esrc-nWo)Pesquisadora responsável: Maria Lucia Refinetti Rodrigues Martinsinstituição: FAU/USPProcesso: 2015/50131-0Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2018

JoVens PesquisADoresecologia genômica de insetos: adaptações ao clima e evolução de

interações ecológicasPesquisador responsável: Rodrigo Cogniinstituição: IB/USPProcesso: 2013/25991-0Vigência: 01/01/2016 a 31/12/2019

ocitocina e viés racial: impacto da administração intranasal de ocitocina na empatia à dor física e nas percepções de ameaça em contextos raciaisPesquisadora responsável: Ana Alexandra Caldas Osorioinstituição: CCBS/UPMProcesso: 2014/06777-0Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2018

reprogramação do metabolismo de purina em Bacillus subtilis através de tecnologia de srnAPesquisadora responsável: Danielle Biscaro Pedrolliinstituição: FCF de Araraquara/UnespProcesso: 2014/17564-7Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

estudo da correlação entre atividade de agentes antineoplásicos de primeira linha e resposta terapêutica, tempo de progressão e sobrevida global em pacientes com câncer epitelial de ovário avançadoPesquisador responsável: Paulo D’Amora

instituição: EPM/UnifespProcesso: 2014/19171-2Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

impacto da regulação traducional na diferenciação neuronalPesquisador responsável: Mario Henrique Bengtsoninstituição: IB/UnicampProcesso: 2014/21704-9Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

exossomos e microvesículas contendo mirnAs modulam mudanças epigenéticas durante o cultivo in vitro de gametas e embriões em bovinosPesquisador responsável: Juliano Coelho da Silveirainstituição: FZEA/USPProcesso: 2014/22887-0Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

Bases moleculares da toxicidade de oligômeros proteicos associados a amiloidoses do sistema nervosoPesquisador responsável: Adriano Silva Sebollelainstituição: FMRP/USPProcesso: 2014/25681-3Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2019

engenharia genética de leveduras para a descoberta de novos medicamentosPesquisadora responsável: Elizabeth Bilslandinstituição: IB/UnicampProcesso: 2015/03553-6Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2019

células-tronco, brotação e a evolução da colonialidade em ascidias (FAPesP-Anr Devodiversity)Pesquisador responsável: Federico David Brown Almeidainstituição: IB/USPProcesso: 2015/50164-5 Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2019

ensino e trabalhoQualidade da educação e produtividade do trabalho em países escolhidos (classificados por região)

Índice de Qualidade Educacional: média dos exames internacionais com base na escala do Pisa (média dos países da OCDE: 500) Produtividade do Trabalho 2000-2010: PIB por trabalhador, média para 2000-2010. Poder de paridade de compra (PPP$) 2005 China*: IQE da China se refere apenas a Xangai Fontes: IQE – Hanushek, E.; Woessmann, M. Schooling, Cognitive skills and the Latin American puzzle. J. Development Econ. 99(2), 497-512, 2012. Produtividade do trabalho – Heston, A.; Summers, R.; Aten, B. Penn World Table version 7.1. Center for International Com parisons of Production, Income and Prices, U. Penn, July 2012. Elaboração: Pedrosa, R.H.L. Edu cação, cres -ci mento econômico e produtividade do trabalho. Rede Formação para o Trabalho, vol. 6. Produtividade e Desenvol vi mento, ABDI/Ipea, 2014.

Pro

dut

ivid

ade

anu

al d

o tr

abal

had

or

20

00

-20

10 ($

PP

P p

or

trab

alh

ado

r p

or

ano)

Índice de Qualidade Educacional – IQE

90.000

80.000

70.000

60.000

50.000

40.000

30.000

20.000

10.000

0250 300 350 400 450 500 550

África Subsaariana

América Latina

América do Norte (menos México)

Ásia

Europa

Europa Oriental

Oceania

Oriente Médio e África do Norte

Oriente Médio (Opep)

Page 9: O medo do estrangeiro

PESQUISA FAPESP 236 | 9

Universidades promovem integridade

Boas práticas

Duas universidades federais sediadas no estado de São Paulo, a do ABC (UFABC) e de São Carlos (UFSCar), criaram órgãos internos dedicados a promover boas práticas científicas e a apurar casos de má conduta. Com isso, tornaram-se as primeiras universidades públicas paulistas a montar estruturas para coordenar ações de educação e prevenção e examinar alegações de desvios. O Código de boas práticas científicas da FAPESP, lançado em 2011, estipulou que as instituições de pesquisa com projetos apoiados pela Fundação mantenham instâncias encarregadas de promover atividades educativas sobre integridade da pesquisa, de aconselhar alunos e docentes e de investigar e, se for o caso, punir casos de má conduta. No Brasil, universidades como a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Federal de Goiás (UFG) também criaram órgãos desse tipo.

Fundada há 10 anos, a UFABC tem 590 professores, 12,4 mil alunos de graduação e 1.137 de pós-graduação. “Ainda não tivemos nenhum episódio de má conduta, mas precisamos estar preparados para o caso de isso acontecer”, diz Igor Leite Freire, professor do Centro de Matemática, Computação e Cognição da universidade e pró-reitor adjunto de Pesquisa, designado para comandar o escritório. “Nosso quadro de docentes é jovem e as questões relacionadas à integridade científica são complexas, ou seja, não se limitam a problemas que qualquer pessoa consegue identificar, como plágio ou fraudes. As dúvidas poderão ser resolvidas no escritório”, afirma.

O órgão da UFABC foi criado em agosto e, nos primeiros três meses de atividade, vai preparar um regimento interno.

O foco principal do escritório são ações preventivas e educativas, com a orientação de alunos e pesquisadores, sem esquecer de possíveis investigações sobre alegações de má conduta. Uma preocupação é garantir que as apurações sejam sigilosas, para evitar prejuízos à reputação de pesquisadores durante a investigação. “É preciso ter normas claras e precisas para evitar que uma eventual punição seja contestada na Justiça”, diz Freire.

A preocupação com a integridade científica na UFABC não é nova. Após participar do 3º Brispe (Brazilian Meeting on Research Integrity, Science and Publication Ethics), evento realizado na sede da FAPESP, em 2014, que reuniu especialistas e apresentou experiências do Brasil e do exterior (ver Pesquisa FAPESP nº 223), o então pró-reitor de Pesquisa da UFABC, Harki Tanaka, promoveu um workshop de integridade em pesquisa na UFABC que teve entre os palestrantes o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. A ideia de criar um escritório começou a ser amadurecida após esse evento e foi levada adiante pela atual pró-reitora de Pesquisa, Marcela Sorelli Carneiro Ramos, e pelo reitor da UFABC, Klaus Capelle. “O evento ajudou a universidade

a tomar a decisão de criar o escritório”, diz Freire. O anúncio foi feito dias antes da realização do segundo workshop de integridade em pesquisa, em agosto.

No caso da UFSCar, sua Comissão de Integridade Ética na Pesquisa (Ciep) foi criada no fim de 2014, por uma iniciativa da Pró-reitoria de Pesquisa. O objetivo é fortalecer ações em andamento e colocar em prática uma das diretrizes do Plano de Desenvolvimento Institucional da UFSCar, que é “garantir a prática de atividades acadêmicas norteadas por preceitos éticos”. O regimento da comissão está sendo avaliado pela procuradoria da universidade e deverá ser homologado pelo Conselho de Pesquisa. Composta por membros de áreas diversas, a comissão cuida de ações educacionais e consultivas sobre integridade científica. Entre os planos, há a intenção de criar um curso sobre integridade científica para a pós-graduação. “Iremos definir com o Conselho de Pós-graduação se será uma disciplina obrigatória”, diz Ana Abreu, professora do Centro de Educação e Ciências Humanas e presidente da Ciep.

O órgão poderá contribuir para a apuração de eventuais casos de má conduta científica. A comissão está concluindo o documento Diretrizes da UFSCar sobre ética na pesquisa, que será colocado em consulta pública em outubro. A UFSCar, hoje com quatro campi, tem 1.186 professores, 14.299 alunos de graduação e 3.915 alunos de pós-graduação.Fo

toS

léo

ra

mo

s

Campus da UFaBC, em santo andré: educação contra má conduta

laboratório da UFsCar: disciplina sobre integridade científica

Page 10: O medo do estrangeiro

10 | outbro DE 2015

Estratégias

Segurança alimentar

O presidente do CNPq, Hernan Chaimovich (esq.), entrega um dos prêmios Jovem Cientista 2015

Bárbara Rita Cardoso, pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de Melbourne, na Austrália, recebeu da presidente Dilma Rousseff o Prêmio Jovem Cientista, concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na categoria Mestre e Doutor. No ano passado, Bárbara defendeu sua tese de doutorado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP). O trabalho indica que o consumo diário de castanha-do- -brasil, nome oficial da castanha-do-pará, pode ajudar a reduzir o risco de eclosão da doença de Alzheimer em idosos que estão no começo do processo de perda da cognição. “A introdução da castanha

na dieta dos idosos pode ser uma estratégia simples para diminuir as chances de o Alzheimer avançar”, disse Bárbara. O tema escolhido para a 28ª edição do Prêmio Jovem Cientista foi segurança alimentar e nutricional. Na categoria Ensino Médio, a campeã foi Joana Meneguzzo Pasquali, do Colégio Mutirão de São Marcos, em São Marcos, Rio Grande do Sul, com uma pesquisa sobre um kit detector de substâncias tóxicas no leite. Na categoria Ensino Superior, o contemplado foi o estudante Deloan Edberto Mattos Perini, da Universidade Federal da Fronteira do Sul (UFFS), Rio Grande do Sul, com um trabalho sobre o potencial da agricultura urbana no abastecimento de alimentos em cidades de pequeno porte.

Inventário do Cerrado

Um levantamento exaustivo sobre a vegetação do Cerrado, segundo maior bioma brasileiro, receberá R$ 60 milhões em recursos do Programa de Investimento Florestal (FIP, na sigla em inglês), vinculado ao Climate Investment Funds (CIF) do Banco Mundial. O objetivo é levantar informações sobre a vegetação nativa, como a estrutura e a dimensão das plantas, e também aplicar um questionário nas populações locais para saber como elas utilizam materiais biológicos, como madeira e sementes, para a subsistência, a fabricação de produtos e a prestação de serviços. A ação, que terá apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) no gerenciamento dos recursos, faz parte de um projeto mais amplo, o Inventário Florestal Nacional. A iniciativa é

executada pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), e busca criar uma grande plataforma com informações de recursos florestais em todo o país. “O levantamento já está sendo realizado em outros biomas, como a Amazônia. Esperamos obter dados sobre a extensão das florestas no Brasil, onde estão e como estão distribuídas”, explica Joberto Veloso de Freitas, diretor de Pesquisa e Informações Florestais do SFB. “Com isso, será possível ter um panorama das espécies vegetais e eventualmente descobrir novas, além de identificar aquelas que estão em risco de extinção.” A área de abrangência do inventário, levando em conta todos os biomas brasileiros, será de 20 mil quilômetros quadrados.

Árvore do Cerrado:

levantamento sobre

importância biológica e social

1

2

Page 11: O medo do estrangeiro

PESQUISA FAPESP 236 | 11

Foto

S 1

CN

PQ

2 N

EV

INH

O /

WIk

IME

DIA

CO

MM

ON

S 3

BR

ET

T E

lOFF

4 IS

RO

Ajuda coletiva

O paleontólogo lee Berger, da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, buscou uma saída criativa para enfrentar um desafio. Em outubro de 2013 ele recorreu à internet para pedir ajuda a colegas em uma das escavações mais difíceis de sua carreira, na caverna Rising Star, na África do Sul. “Caros colegas, preciso da ajuda de vocês”, publicou em uma rede social. “O problema é o seguinte: precisamos de pessoas magras e de preferência pequenas. Não podem ser claustrofóbicas, devem estar em forma e ter alguma experiência com escavações”, dizia a mensagem. Berger havia acabado de descobrir uma pequena câmara subterrânea repleta de remanescentes fósseis. O local, no entanto, era muito profundo e de difícil acesso. Após o pedido de socorro, seis pesquisadores – com as características que ele pedia – ofereceram ajuda. Precisaram atravessar passagens medindo apenas

cerca de 20 centímetros de largura, mas deu certo. Os mais de 1.500 pedaços de ossos e dentes coletados revelaram ser de um hominídeo até então desconhecido. O feito foi descrito na revista eLife e anunciado no dia 10 de setembro. O primata foi batizado de Homo naledi. No idioma sotho, uma das 11 línguas oficiais da África do Sul, naledi significa estrela. Homo, como se sabe, é o gênero ao qual pertencem os humanos modernos.

Cinquenta anos da Unicamp

A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) iniciou uma série de eventos para comemorar seus 50 anos de fundação, que se completam em 5 de outubro de 2016. Nos próximos 12 meses serão realizadas atividades acadêmicas, culturais e artísticas, como apresentações da Orquestra Sinfônica da Unicamp e conferências sobre filosofia, arte e educação ministradas por docentes da universidade destinadas a professores do ensino fundamental e médio das redes públicas de ensino de Campinas, limeira e Piracicaba. Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Ítala D’Ottaviano, presidente da comissão responsável pela organização dos eventos, disse que algumas atividades serão feitas em parceria com

observatório indiano

O primeiro observatório da Índia dedica­do a estudos astrofísicos, o Astrosat, foi lançado com sucesso no dia 28 de se­tembro da base espacial de Sriharikota, no golfo de Bengala. O satélite, que pesa pouco mais de 1,5 tonelada, está equi­pado com dois telescópios capazes de analisar diferentes formas de radiação eletromagnética: luz visível, raios ultra­vio le ta e raios X de alta e baixa energia. O objetivo é esquadrinhar regiões do

Universo onde ocorre o nascimento de estrelas, com destaque para o estudo de buracos negros e estrelas de nêutrons, um dos mais densos objetos do Cosmo. De acordo com a Organização de Pes­quisa Espacial da Índia (Isro, na sigla em inglês), órgão responsável pela constru­ção e lançamento do Astrosat, as infor­mações coletadas pelo satélite em uma órbita a 650 quilômetros da superfície terrestre serão enviadas ao Centro In­diano de Dados Espaciais, em Bangalore. Os dados depois serão redistribuídos para

outros quatro centros de pesquisa no país. “O Astrosat representa um novo capítulo para a astronomia da Índia”, disse à revista Nature Swarna Kanti Ghosh, diretor do Centro Nacional de Astrofísica de Rádio, que colaborou no projeto.

universidades de outros países que também foram fundadas em 1966. “Fomos procurados pelas universidades de Brunel e Bath, ambas do Reino Unido. Vamos promover eventos em conjunto, tanto aqui quanto na Inglaterra”, disse. O objetivo é aprofundar a cooperação entre as instituições e discutir estratégias para as próximas cinco décadas. A programação inclui o lançamento de uma coleção de livros sobre a história da Unicamp. Um deles aborda a trajetória do Departamento de Enfermagem, agora transformado em faculdade. Outro conta a história da química no Brasil, destacando as contribuições da Unicamp nessa área.

3

Berger e os ossos: colaboradores magros e pequenos

Astrosat em preparação

para o lançamento:

buracos negros

4

Page 12: O medo do estrangeiro

12 | outubro DE 2015

tEcnociência

Um cronômetro para erupções

por Donald B. Dingwell na Universidade Ludwig-Maximilian em Munique, Alemanha, Cristina submeteu dois tipos de magma do supervulcão de Campi Flegrei, em Nápoles, Itália, a temperaturas próximas às do interior dos vulcões e mediu o tempo necessário para que reagissem quimicamente e se misturassem. Na natureza, a descompressão dessa mistura libera gases que fazem o magma expandir e ser ejetado do vulcão. Com base nessas informações, os pesquisadores criaram um modelo matemático que permitiu estimar o tempo entre o início da mistura do magma e o seu derramamento. Testes com o material de três explosões de Campi Flegrei, o vulcão mais perigoso da Europa, indicaram que esse intervalo é inferior a uma hora. “Esse tipo de informação é importante para a defesa civil, uma vez que, preenchida a câmara magmática, o vulcão entra em erupção quase imediatamente”, diz Cristina. Ela calcula que a mesma estimativa de tempo valha para vulcões de composição semelhante.

1

Uma equipe internacional da qual participa a vulcanóloga brasileira Cristina De Campos reproduziu em laboratório o que acontece na câmara magmática dos vulcões, o local em que as rochas derretidas que formam os diferentes tipos de magma se misturam antes das erupções. O experimento permitiu estimar com mais precisão o tempo entre o preenchimento da câmara magmática e o início da mistura dos magmas e a expulsão por meio de uma erupção ou explosão. Nos casos analisados, esse intervalo foi inferior a uma hora, e não de dias, como se imaginava (Scientific Reports, setembro). Nos laboratórios coordenados

Supervulcão visto do espaço:

golfo de Nápoles e a sequência

de crateras de Campi Flegrei

Sinais de água em Marte

Era uma notícia há muito esperada. Dados coletados pela sonda espacial Mars Reconnaissance Orbiter (MRO) confirmaram que água líquida corre de tempos em tempos na superfície de Marte, anunciou a Nasa, agência espacial norte-americana, no dia 28 de setembro. As faixas escuras e alongadas que aparecem nas encostas de montanhas e cânions durante o verão marciano, quando as temperaturas ficam acima de zero grau Celsius, seriam marcas deixadas pelo fluxo de água salgada. Um dos instrumentos da MRO identificou nessas faixas escuras de quatro regiões próximas ao equador do planeta vermelho uma assinatura química característica de alguns sais hidratados (perclorato de magnésio, clorato de magnésio e perclorato de sódio) que só se formam na

presença de água líquida (Nature Geoscience, 28 de setembro). Essas faixas se tornam mais escuras e parecem descer as encostas nas estações mais quentes. Nos períodos mais frios, elas desaparecem. Desde que essas faixas – as chamadas linhas recorrentes de encosta – foram identificadas pela primeira vez em 2010, suspeitava-se que estivessem associadas à presença de água líquida, que já foi abundante no planeta num passado distante. Mas faltavam evidências mais sólidas. Para o ex-astronauta John Grunsfeld, administrador-associado do Diretório de Missões Científicas da Nasa, agora as evidências científicas são convincentes. Os sinais da presença de água líquida reacendem a expectativa de que esse planeta vizinho, hoje frio e desértico, possa abrigar alguma forma de vida.

Cratera Hale, em Marte: fluxo de água criaria as linhas escuras nas encostas das montanhas

2

Campi Flegrei Vesúvio

Golfo de Nápoles

Nápoles

Page 13: O medo do estrangeiro

PESQUISA FAPESP 236 | 13

O glutão da Via Láctea: o buraco negro Sagitário A* emite raios X ao se alimentar de material do objeto G2

Foto

S 1

ESA

E W

IkIM

ED

IA C

OM

MO

NS

2 N

ASA

/ JP

L /

UN

IVER

SID

AD

E D

O A

RIz

ON

A 3

MU

OT

RI L

AB

/ U

CSD

4 N

ASA

/ C

XC

/ M

.WEI

S

4o despertar de um gigante

O buraco negro no centro da Via Láctea anda mais ativo nos últimos tempos. De meados de 2014 para cá, astrônomos da Europa e dos Estados Unidos registraram um aumento na frequência das emissões de raios X emanados das proximidades de Sagitário A*, o buraco negro da galáxia. Desde que essa região do espaço começou a ser monitorada regularmente há cerca de 15 anos, o Sagitário A* tem se mostra-

do um gigante relativamente silencioso. Em geral, detecta-se em seus arredores um clarão no comprimento de onda dos raios X uma vez a cada 10 dias. Flashes dessa luz bastante energética, invisível aos olhos humanos, são emitidos toda vez que o gás aquecido do disco de acreção cai em direção ao buraco negro. Há pou-co mais de um ano, porém, a frequência desses clarões aumentou 10 vezes: eles

Minicérebro gerado a partir de célula da pele: ferramenta para estudar a atividade de neurônios

Redes ópticas mais velozes

Pesquisadores do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), em Campinas, planejam iniciar em dezembro os testes de um novo processador para redes de fibra óptica. Contendo 16,8 milhões de transistores, cada um com cerca de 16 nanômetros de comprimento de porta, o novo chip deve integrar os módulos transceptores ópticos, equipamentos que convertem sinais elétricos em luminosos e vice-versa, da nova geração de redes de fibra óptica. O objetivo é aumentar a capacidade de transmissão para 400 gigabits por segundo (Gbps), velocidade quatro vezes superior à das redes atuais. Projetado e desenvolvido pelo CPqD em parceria com a empresa norte-americana ClariPhy

Communications, o novo chip é um dos primeiros no mundo para comunicações ópticas produzido na escala de 16 nanômetros, 37 vezes mais reduzida do que os produzidos nas fábricas de chips mais avançadas do Brasil. No início de junho, o CPqD enviou uma versão mais simples (chip de teste) do processador para ser produzida em Taiwan. A primeira versão deve ficar pronta em dezembro, quando será submetida a uma prova de conceito. “Esperamos ter uma avaliação completa do protótipo no início do ano que vem”, diz Juliano Oliveira, gerente de tecnologias ópticas do CPqD. A versão final do chip deve ficar pronta até o início de 2017. O projeto recebeu R$ 59 milhões do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações.

Sobrecarga cerebral

Os neurônios, as células que armazenam e transmitem informações no cérebro, apresentam mais conexões e trocam mais informações entre si em uma doença genética rara que afeta quase exclusivamente os bebês do sexo masculino: a síndrome da duplicação do MECP2. Além de essas células se comunicarem mais, a troca de informações entre elas ocorre de um modo anormalmente sincronizado, verificou a equipe do biólogo brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego. Causada pela duplicação do gene MECP2, essa síndrome provoca um retardo severo no neurodesenvolvimento. Os meninos com uma cópia extra do gene apresentam dificuldade de fala e de controle dos movimentos, além de traços de autismo. Muotri e seus colaboradores usaram uma estratégia inovadora para investigar como as células cerebrais dessas crianças funcionam.

Eles retiraram células da pele de três garotos com a síndrome e, em laboratório, as fizeram regredir a um estágio mais versátil, no qual podem originar células de diferentes tecidos. Depois, estimularam-nas a se transformarem em neurônios. Cultivadas em uma matriz tridimensional, as células originaram estruturas com diferentes camadas celulares, semelhantes a cérebros microscópicos. Os neurônios desses minicérebros tinham mais ramificações e se comunicavam mais do que os obtidos a partir de células da pele de pessoas sem a síndrome. Testes com 43 compostos mostraram que um deles reverteu as alterações estruturais e funcionais das células (Molecular Psychiatry, setembro).

passaram a ocorrer uma vez por dia, sinal de incremento da voracidade de Sagitário A* (MNRAS, no prelo). Os astrônomos ainda não sabem se essa flutuação é par-te de um ciclo natural ou decorrente da passagem de um objeto em sua vizinhan-ça. Os flashes aumentaram seis meses depois que um objeto chamado G2, pos-sivelmente uma estrela envolta em gás, se aproximou do buraco negro.

3

Sagitário A*

G2

Emissão de raios X

Page 14: O medo do estrangeiro

O Programa Mais Médicos é muito mais que médicos. Você que sonha em ser médico,esse é o caminho cheio de oportunidades.

Uma Pátria Educadora se faz com mais acesso à educação.

Ministério daEducação

• Mais 11.400 vagas para medicina até 2017.• 5.200 vagas já autorizadas e um novo currículo de medicina.• Expansão de vagas de residência médica em andamento. E, a partir de 2019, cada médico formado terá garantida a sua vaga de residência.

Acesse maismedicos.gov.br e informe-se sobre os novos cursos de medicina, vagas de graduação e residência médica.

O Brasil do Mais Médicos é o Brasil que cuida, educa e avança.

Page 15: O medo do estrangeiro

O Programa Mais Médicos é muito mais que médicos. Você que sonha em ser médico,esse é o caminho cheio de oportunidades.

Uma Pátria Educadora se faz com mais acesso à educação.

Ministério daEducação

• Mais 11.400 vagas para medicina até 2017.• 5.200 vagas já autorizadas e um novo currículo de medicina.• Expansão de vagas de residência médica em andamento. E, a partir de 2019, cada médico formado terá garantida a sua vaga de residência.

Acesse maismedicos.gov.br e informe-se sobre os novos cursos de medicina, vagas de graduação e residência médica.

O Brasil do Mais Médicos é o Brasil que cuida, educa e avança.

Page 16: O medo do estrangeiro

16 | outubro DE 2015

Distância do padrão histórico

de imigrante branco e europeu e

mercado de trabalho limitado são

algumas das razões da hostilidade

aos fluxos migratórios atuais

capa

oltem para Cuba!” A socióloga Roberta Peres assustou-se com o grito vindo de um pas-sageiro de um carro cinza que passava em frente à Missão Paz, instituição religiosa que atende migrantes, imigrantes e refugiados recém-chegados à cidade de São Paulo. O haitiano que ela entrevistava – um estudan-te de engenharia que interrompeu o curso porque sua universidade fora destruída pelo terremoto de 2010 no Haiti – não entendeu a situação, já que conversavam em inglês. Era

o início de 2014, auge da chegada de haitianos à capital paulis-ta. A hostilidade cresceu nos meses seguintes. No sábado 1º de agosto de 2015, seis haitianos foram baleados com espingarda de chumbinho na rua do Glicério e na escadaria da paróquia Nossa Senhora da Paz, que abriga a Missão Paz.

“Em várias cidades brasileiras os haitianos ainda são oprimidos pelos moradores locais”, observa Rosana Baeninger, também so-cióloga e colega de Roberta no Núcleo de Estudos de População

TexTo carlos Fioravanti FoTos Eduardo cesar

As raízes da resistência

V“

Page 17: O medo do estrangeiro

pESQUISa FapESp 236 | 17

Vendedores de ervas e temperos típicos da Bolívia na feira da rua Coimbra, em são Paulo

Page 18: O medo do estrangeiro

18 | outubro DE 2015

(Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As duas participaram de uma pesquisa recém-concluída sobre a situação e os planos de 250 haitianos que vivem em Manaus, Porto Velho, capital de São Paulo e três cidades do interior pau-lista (Campinas, Jundiaí e Santa Fé do Sul), Curi-tiba, Camboriú, Porto Alegre e Encantado, no Rio Grande do Sul. Os entrevistados eram, na maioria, homens com idade entre 24 e 29 anos, que pre-tendiam trazer os familiares, mas não pensavam em permanecer no Brasil. “Para os haitianos”, diz Roberta, “o Brasil está deixando de ser um país de destino para ser uma etapa de trânsito, ainda que demorada, para os Estados Unidos, para onde a maioria disse que gostaria de ir”.

O levantamento reiterou duas conclusões prévias da equipe do Nepo. A primeira é a desconcentração territorial: cidades do interior paulista como Piracicaba e

Limeira, além de Campinas, Jundiaí e Santa Fé do Sul, por causa de investimentos internacionais em agropecuária ou indústria, estão recebendo mais imigrantes e vivendo situações antes comuns ape-nas em capitais como São Paulo, que até o início dos anos 2000 constituíam o destino quase exclu-sivo dos estrangeiros. “O excedente populacional acompanha alocações do capital internacional, embora a cidade de São Paulo continue como re-ferencial no imaginário imigratório”, diz Rosana.

A segunda conclusão é que a onda imigratória dos últimos 10 anos – formada por bolivianos, peruanos e outros povos latinos, aos quais se somaram haitianos, senegaleses e congoleses, a partir de 2010 – contraria pressupostos históri-cos tácitos. “Desde o final do século XIX criou--se a ideia de que o imigrante, para ser aceito, teria de ser branco e europeu, e os imigrantes atuais são indígenas que falam espanhol, como os bolivianos, ou negros que falam francês ou criou-lo, como os haitianos”, diz Rosana, que trabalha nesse campo há 30 anos. Segundo ela, o distan-ciamento do padrão histórico branco europeu, a ausência de uma necessidade explícita da mão de obra estrangeira e a escassez de políticas pú-blicas locais, estaduais e federais que promovam a interação social dos imigrantes do século XXI geram o que ela chama de “distanciamento em relação ao outro” e as reações de hostilidade.

Os japoneses que chegaram no início do século XX, observa Rosana, embora tolerados pela ne-cessidade de mão de obra para as plantações de café, então a base da economia nacional, foram hostilizados e discriminados, como mostrou o filme Gaijin – Os caminhos da liberdade (1980). Os orientais eram vistos como uma raça inferior, tanto quanto negros e índios, que prejudicaria o bran-queamento da população desejado pelo governo brasileiro e promovido por imigrantes europeus.

De caráter eugenista, o projeto de branquea-mento da população brasileira tinha sido estabe-lecido por Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1930-1945). De acordo com estudo do historiador Fábio Koifman, da Universidade Federal Rural Fluminense, publicado no livro Imigrante ideal: o Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945) (Civilização Brasileira, 2012), o projeto estabelecia quais eram os imigrantes desejáveis – branco, católico e apolítico, de pre-ferência portugueses de baixa escolaridade, sem “ideias dissolventes” como as que tinham grupos intelectualizados da Alemanha, França e Áustria, entre outros países. Os indesejáveis eram negros, japoneses, idosos e deficientes. Em 1930, duran-te a campanha à Presidência, Vargas alertou que a imigração teria de ser pensada também sob o critério étnico, não apenas econômico. Depois de

Imigrantes africanos trabalhando como camelôs e, à direita, frequentadores do comércio de rua mantido por bolivianos na região do Brás, em são Paulo

Page 19: O medo do estrangeiro

pESQUISa FapESp 236 | 19

eleito, ele aprovou várias leis que estabeleciam cotas de imigração restringindo a entrada, prin-cipalmente, de orientais. “Segmentos letrados da sociedade brasileira e muitos homens do governo, incluindo Vargas, acreditavam que o problema do desenvolvimento brasileiro estava relaciona-do à má formação étnica do povo. Achavam que trazendo ‘bons’ imigrantes, ou seja, brancos que se integrassem à população não branca, o Brasil em 50 anos se transformaria em uma sociedade mais desenvolvida”, disse Koifman em entrevista à Pesquisa FAPESP em 2012 (ver edição nº 201).

pREcONcEITOSTanto no Brasil quanto na Europa, os meios de comunicação tratam a chegada dos imigrantes “como uma ameaça, como se o país tivesse sen-do invadido por uma horda de desocupados, ba-

derneiros que vêm para cá para pressionar o tão combalido sistema de proteção social e o merca-do de trabalho”, escreveu Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira, pesquisador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em um artigo publicado em janeiro deste ano na Revista Inter-disciplinar da Mobilidade Humana. Segundo ele, a dimensão desse fenômeno, apesar da intensa visibilidade, “é bem inferior ao da entrada através de aeroportos, portos e outras áreas de fronteiras de imigrantes irregulares brancos”.

Quem chega muitas vezes se decepciona. Se-gundo padre Paolo Parise, um dos diretores da Missão Paz, os coiotes, como são chamados os agentes que cobram dos interessados para aju-dá-los a atravessar as fronteiras de outro país, prometem aos haitianos emprego fácil e ganhos de US$ 1.500 por mês. “Os haitianos dizem que

Os coiotes dizem aos haitianos que vão encontrar emprego fácil logo depois de chegarem ao Brasil

Page 20: O medo do estrangeiro

20 | outubro DE 2015

Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. Como uma de suas primeiras ações, logo após ser criada, em 2013, a coordenação promoveu a simplificação da abertura de contas bancárias pelos imigrantes como forma de reduzir os assaltos a esses grupos de pessoas, que antes guardavam com eles o dinheiro que acumulavam, e facilitar a contratação por empresas. Uma boa parte do tempo das equipes do CPMig é dedicada aos haitianos, que em 2014 chegavam em grande número, às vezes um ônibus por dia. O fluxo hoje está menor, mas ainda chegam dois a três ônibus por semana vindos do Acre, a primeira parada no Brasil. A maioria permanece, ao menos no início, na capital. Agora a entrada de sírios é que está aumentando: em agosto as equipes da prefeitura atenderam 25.

Para os que chegam sem ter para onde ir, a coor-denação oferece abrigos e apoio para a emissão de documentos e a procura de emprego, além de promover a articulação com as equipes de outros órgãos públicos para assegurar o acesso a serviços de saúde e educação e assistência social. “Muitas vezes esses direitos são negados, por desconhe-cimento de quem os atende”, diz Camila. Nesse momento uma das prioridades é a formação do Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População Imigrante, criado em agosto, que deverá ter 13 representantes do poder público e 13 da so-ciedade civil, com a tarefa de redigir uma proposta de política pública para a população imigrante que hoje vive na cidade de São Paulo.

não imaginavam que o Brasil fosse tão racista”, diz ele. Mantida pela Congregação Scalabriniana e por doações, desde 1978 a Missão Paz oferece abrigo, alimentação, atendimento médico e psi-cossocial e serviços de documentação para imi-grantes, refugiados e migrantes. Por ali passaram 11 mil dos 60 mil haitianos que entraram no Brasil desde 2010. No início de setembro, padre Paolo cumprimentava os recém-chegados sírios com a mão no peito, sem estender a mão nem tocá--los, como fazia com os latinos que encontrava enquanto caminhava, indicando os cuidados in-dispensáveis para lidar com os representantes dos diferentes países e culturas.

N este ano, a equipe da Missão conse-guiu empregos para 1.180 imigrantes. Até setembro do ano passado, foram 1.700, o que faz padre Paolo prever

que o ano possa terminar com um terço a menos de contratações. O levantamento da Unicamp tam-bém indicou que a fase boa parece ter passado. Depois de uma época de emprego temporário relativamente fácil na construção civil antes da Copa do Mundo de 2014, muitos agora preferem ir para Santa Catarina e Rio Grande do Sul, onde, acreditam, encontrarão empregos melhores.

“Os órgãos públicos estão se posicionando a favor da imigração e se responsabilizando por criar políticas públicas”, observa Camila Baral-di, coordenadora-adjunta da Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig) da Secretaria

sírios recém-chegados acolhidos pela oásis solidário, organização mantida pela comunidade síria estabelecida em são Paulo

Page 21: O medo do estrangeiro

pESQUISa FapESp 236 | 21

Colômbia

Bolívia

Angola

Libéria

serra Leoa

República Democrática

do Congo

Líbano

Palestina

Iraque

1.524

391

784258

263

229

137

oRIgem Dos ReFugIADos no BRAsIL

2000 – outubro/2014

HAITIAnos no BRAsIL

2000 – 2014

1.218

síria

1.067

145

1-5051-500501-1.0001.001-2.5002.501-5.000

Um Brasil cosmopolitaRefugiados e imigrantes chegam em fluxo contínuo nos últimos anos e se espalham pelo país

O suporte legal de apoio a quem imigra ain-da é precário. O Estatuto do Refugiado, de 1997, assegura alguns direitos, como o registro de es-trangeiro no Brasil, mas ações mais amplas são dificultadas pelo caráter restritivo do Estatuto do Estrangeiro, em vigor desde a década de 1980. Em julho o Senado aprovou um projeto de lei que cria uma nova Lei de Migração, que revoga o es-tatuto e reduz as exigências para a concessão de vistos e autorização de residência. O projeto hoje tramita na Câmara dos Deputados.

Nos últimos quatro anos, o número de refu-giados no país dobrou, atingindo 8.530 até se-tembro de 2015, segundo o Comitê Nacional de Refugiados, do Ministério da Justiça. Os sírios, que chegam em número crescente, representam 24,5% do total de refugiados de 81 nacionalidades que vivem no Brasil, seguidos pelos colombianos, angolanos e congoleses e libaneses. Há também 12.666 pedidos de refugiados em análise.

No Brasil não há multidões de refugiados como as que há meses chegam aos países centrais da Europa, vindas principalmente da Síria, destruída pela guerra. Em 2015, a Alemanha recebeu cerca de 200 mil imigrantes, que podem compensar a redução da população gerada pela queda da taxa

4.357 4.477

128

4.689

260

5.256

712

7.289

2.032

150

2010 2011 2012 2013 2014

ToTAL De ReFugIADos

no BRAsIL

noVos ReFugIADos

ReConHeCIDos no BRAsIL

INFO

GR

ÁFI

cO

An

A P

Au

LA

CA

mP

os

fonte ACnuR e sInCRe-PoLÍCIA FeDeRAL

Page 22: O medo do estrangeiro

22 | outubro DE 2015

de natalidade, mas em geral os imigrantes são in-desejados – e não apenas na Europa. De acordo com estudo do instituto francês Ipsos, metade dos moradores entrevistados em 24 nações, incluindo o Brasil, disse que havia imigrantes demais em seus países; 46% acreditavam que os estrangei-ros dificultavam o acesso dos moradores nativos a empregos e apenas 21% dos 17.533 entrevistados consideraram positivo o impacto dos imigrantes em seus países. No Brasil, 36% dos que foram ou-vidos disseram que os imigrantes intensificam a disputa por empregos, índice bem abaixo dos 85% da Turquia, 68% da Rússia e 56% dos moradores da Argentina com a mesma opinião.

As reações contrárias exibidas até agora nas cidades brasileiras também estão longe dos con-

flitos ocorridos na Europa, “mas expressam a dificuldade da sociedade receptora em acolher estes grupos de imigrantes”, ressalta Rosana. Em 2012 e 2013, pichações em portas de lojas de Piracicaba hostilizaram os coreanos, numerosos na cidade desde quando a montadora sul-corea-na Hyundai começou a construir sua fábrica, em 2010. No início de agosto deste ano, o muro do cemitério de Nova Odessa, cidade próxima a Campinas, foi pichado com a frase “Back to Hai-ti” (“Voltem ao Haiti”). Até julho, a Igreja Batista de Nova Odessa tinha ajudado cerca de 80 hai-tianos a encontrarem empregos e a aprenderem português. Em 2014, 13 haitianos denunciaram espancamentos sofridos nas empresas em que trabalhavam em Curitiba. Na capital estima-se em 2.500 o número de haitianos, a maioria tra-balhando em construtoras.

A pesar das dificuldades, os imigrantes conquistam seus territórios. Já se veem lanchonetes, docerias, lojas de roupas e lan houses com funcio-

nários ou proprietários haitianos na região do Glicério, próxima à Missão Paz, em São Paulo. A rua Coimbra, no bairro do Brás, é o coração da comunidade boliviana na capital, estimada em 300 mil imigrantes, dos quais apenas 90 mil regularizados. As feiras de sábado e domingo da rua Coimbra reúnem cerca de 6 mil bolivianos e visitantes que podem comprar batatas que parecem cenouras, pedras brancas ou pretas ou rajadas com pontos vermelhos, além de muitos tipos de milho e de pimenta e outros temperos, em meio a restaurantes que servem salchipara, silpancho, sajta, caldo de cordan e outros pratos típicos. Como provável efeito da clandestinidade em que viveram ou vivem, os vendedores são atenciosos, mas ariscos, falam com entusiasmo dos numerosos tipos de milho, quando muito contam sobre a cidade de origem, em geral La Paz ou Cochabamba, e depois silenciam. A feira foi regularizada pela prefeitura em novembro de 2014, o que permitiu melhorias em sua organi-zação e segurança, depois de funcionar 11 anos na ilegalidade.

A menos de 3 quilômetros dali funciona uma maternidade municipal cujas equipes, desde 2005, se especializaram em atender mulheres bolivianas que em geral não falam português. Em um artigo publicado em 2006 na revista Estudos Avançados, o antropólogo Sidney Silva, da Uni-versidade Federal do Amazonas, escreveu que a imigração boliviana se tornou mais visível em São Paulo a partir da década de 1980, mas começou nos anos 1950 com estudantes que chegavam por meio de um programa de intercâmbio cultural Brasil-Bolívia. “Após o término dos estudos, mui-tos deles acabavam optando pela sua permanên-

Boliviana em trajes de festa assistindo a festival de poesia na feira dominical da praça Kantuta, no bairro do Canindé

Page 23: O medo do estrangeiro

pESQUISa FapESp 236 | 23

Projetos1. observatório das migrações em são Paulo: migrações inter-nas e internacionais contemporâneas no estado de são Paulo (no 2014/04850-1); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora respon-sável Rosana Aparecida Baeninger (nepo/unicamp); Investimento R$ 555.279,96. 2. A governança das migrações internacionais e os seus impac-tos na experiência social dos migrantes: um estudo comparativo dos contextos nacionais e locais de são Paulo, no Brasil, e Buenos Aires, na Argentina (nº 2014/11649-0); Modalidade Bolsa de Pós--doutorado; Pesquisador responsável eduardo Cesar Leão mar-ques (usP); Bolsista Patrícia Tavares de Freitas; Investimento R$ 169.557,84.

Artigos científicosBAenIngeR, R. Rotatividade migratória: um novo olhar para as mi-grações internas no Brasil. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. v. 20, n. 39, p. 77-100. 2012.FReITAs, P. T. de. Família e inserção laboral de jovens migrantes na indústria de confecção. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. v. 22, p. 231-46. 2014.Keep a welcome. Nature, v. 525, p. 157. 10 set. 2015.oLIVeIRA, A.T. R. de. os invasores: As ameaças que representam as migrações subsaariana na espanha haitiana no Brasil. Revista Interdis-ciplinar da Mobilidade Humana. v. 23, n. 44, p. 135-55. jan./jun. 2015. sILVA, s. A. Bolivianos em são Paulo: entre o sonho e a realidade. Estudos avançados. v. 20, n. 57, p. 157-70. 2006.

cia, em razão das múltiplas ofertas de emprego encontradas naquele momento no mercado de trabalho paulistano”, observou Silva. Depois, o fluxo de imigrantes latino-americanos – bolivia-nos, peruanos e paraguaios, uruguaios e chilenos – continuou em crescimento. Eles trabalham principalmente em confecções e no comércio.

Para entender as raízes da imigração, a soció-loga Patrícia Freitas, atualmente pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, entrevistou 17 bolivianos em São Paulo e outros 33, durante oito meses, em 2012 e 2013, em cidades e em municí-pios rurais da Bolívia, como parte de seu douto-rado, orientado por Rosana Baeninger. “Em geral os bolivianos que imigraram estão sendo expul-sos do campo desde as décadas de 1980 e 1990 e viveram em situações de extrema precariedade nas cidades da Bolívia”, Patrícia concluiu, após refazer as trajetórias pessoais dos entrevistados. 

“As condições de trabalho lá são piores do que aqui, onde podem ganhar mais. Há casos de ex-ploração, sim, mas muitos se dão bem”, diz. Se-gundo ela, os contratadores atraem os interessa-

dos em emigrar por meio de anúncios e pagam a viagem para São Paulo ou Buenos Aires, outro destino comum, para trabalhar em oficinas de costura, criando uma dívida nem sempre paga, porque os imigrantes, depois de chegarem, en-contram empregos melhores. Os 50 entrevistados haviam passado por 180 oficinas de costura nas cidades bolivianas e em São Paulo.

“Esta é uma oportunidade de nos reconhecer-mos como parte da América Latina”, diz Camila Baraldi, da CPMig. Em seu doutorado, concluído em 2014 na USP, ela argumentou que a cidada-nia sul-americana está em construção e “poderia vir a ser uma cidadania fundada no paradigma da mobilidade”. Padre Paolo sugere: “Temos de aprender e ensinar as razões históricas dos fluxos migratórios”. “O mundo hoje”, diz ele, “é feito pela emigração e pelo refúgio, que deixaram de ser circunstanciais e hoje são estruturais”. A mi-gração internacional é uma condição básica pela qual as sociedades e estados se formam, se ex-pandem e se reproduzem, reitera Thomas Nail, professor da Universidade de Denver, Estados Unidos, em um livro recém-lançado (The figure of the migrant, Stanford University Press). “As condições sociais da migração”, ele observa, “são sempre uma mistura dos tipos de expulsão terri-torial, política, jurídica e econômica. Os quatro operam ao mesmo tempo, em graus diferentes”. O mundo acadêmico tem um papel a cumprir nesse campo, oferecendo oportunidades para es-tudantes e pesquisadores prosseguirem em suas carreiras, alertou um editorial da Nature de 10 de setembro. De outro modo, argumentou a revista, pode-se perder uma geração inteira de talentos do Oriente Médio e de outras regiões do mundo. n

Imigrantes árabes ganham as ruas de são Paulo

Page 24: O medo do estrangeiro

24 | outubro DE 2015

entrevista

o professor e tradutor Boris Schnaiderman, de 98 anos, pode ser encontrado em seu apartamento na capital paulista, não raro, datilografando em uma máquina de escrever Olivetti. Não, ele não traduz mais os grandes

autores russos, nem prepara aulas de língua e literatura russas. Nos últimos tempos, Schnaiderman tem se dedicado com maior ênfase a dois temas que o acompanham há 70 anos. O primeiro é quase uma obsessão: a revisão contínua de livros traduzidos por ele à procura das melhores soluções semânticas e literá-rias. O segundo tem um caráter mais íntimo pela experiência visceral – trata-se de sua participação como pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Grande Guerra. As lembranças do conflito o levaram a publicar Caderno italiano (Perspectiva), um livro com suas memórias daquele período, que ainda lhe provocam repulsa, indignação e frustração.

Schnaiderman é conhecido como um dos primeiros traduto-res a verter contos, romances e poemas diretamente do russo para o português, a partir dos anos 1940. Judeu ucraniano de formação russa, nasceu no ano da revolução comunista de 1917, que deu origem à União Soviética. A família imigrou para o Bra-sil em 1924, insatisfeita com as condições e perspectivas de vida no Leste Europeu, e se estabeleceu no Rio de Janeiro. O jovem Boris tinha verdadeiro interesse por literatura, mas demorou até conseguir se dedicar apenas às traduções, ensaios e aulas. Antes, formou-se e trabalhou em agronomia. Apenas nas horas vagas fa-zia traduções, que raramente o agradavam. “Meus primeiros tex-tos têm muitos defeitos e hoje não aceito mais aquelas versões”, diz ele, famoso pelo rigor com que encara o próprio trabalho e por

Boris Schnaiderman

idade 98 anos

especialidade Língua e literatura russas

formação Bacharelado em Agronomia (Escola Nacional de Agronomia), doutorado em Literatura (FFLCH-USP)

instituição FFLCH-USP

produção científica Oito livros como autor (ensaios, ficção e autobiografia) e dezenas de outros como tradutor

memórias de um ex-combatente Professor de literatura, um dos pioneiros da tradução

de livros russos e ex-pracinha, lança livro

sobre participação na Segunda Grande Guerra

neldson marcolin | rEtrAtO Léo ramos

Page 25: O medo do estrangeiro

pesQuisa fapesp 236 | 25

Page 26: O medo do estrangeiro

26 | outubro DE 2015

transpor para português textos de Tolstói, Dostoiévski, Púchkin, Tchékov, Górki e Maiakóvski, entre outros.

Sua produção ficou mais constante depois de ser contratado em 1960 pela Universidade de São Paulo (USP), onde foi um dos criadores do primeiro curso livre de russo. Em 1964, Schnaiderman lançou seu primeiro livro como autor, Guerra em surdina (hoje publicado pe-la Cosac Naify), memória misturada a ficção num mergulho reflexivo sobre o período que passou na Itália, onde era o responsável por fazer os cálculos de on-de os projéteis deveriam cair para atin-gir o alvo. Passados 70 anos do final do conflito mundial, Schnaiderman volta ao tema para reafirmar seu ponto de vista como partícipe daquele período.

Schnaiderman é casado desde 1986 com a professora e pesquisadora em Comuni-cação e Semiótica da Pontifí-cia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Jerusa Pires Ferreira. Tem dois filhos do primeiro casamento, a psi-canalista e cineasta Miriam e Carlos, atual secretário de Saúde de Guarulhos, cidade da Região Metropolitana de São Paulo. Na entrevista abai-xo, ele falou sobre as memó-rias da Segunda Guerra, sua trajetória profissional e os de-safios da tradução.

Em Caderno italiano, o se-nhor escreveu que se sente frustrado com a imagem que ficou da campanha brasilei-ra na Segunda Guerra, considerada ora excessivamente edificante, ora despro-vida de qualquer importância. Por que essa impressão?Conto no livro que me defrontei no Brasil com uma ignorância completa em rela-ção ao que fomos fazer na Itália. Nossa participação na guerra era algo estranho. Vínhamos do Brasil, onde havia uma dita-dura de tendência fascista, para lutar na Europa e defender a democracia alheia. A maioria dos soldados não tinha nenhu-ma vontade de lutar e não entendia por que estava ali. No entanto, eles lutaram e se saíram relativamente bem. Para mim foi uma situação muito esquisita, um pa-radoxo da história. Num momento, ou-víamos as arengas pró-Eixo do governo

Vargas, no momento seguinte tínhamos de aceitar tranquilamente ir lutar a favor dos Aliados. Eu era antimilitarista, mas acompanhava o noticiário e estava trans-tornado com o que estava acontecendo na Europa, embora ainda não se tivesse a dimensão do que era o Holocausto. Por isso achei que tinha de ir para a guerra.

Há também a demonstração, no livro, de certa tristeza pelo não reconheci-mento da atuação dos soldados brasi-leiros, como se vocês tivessem viajado a passeio. Mesmo mal preparados, os brasileiros cumpriram seu papel da melhor maneira possível. Lutaram de verdade, com ímpe-to e muitas vezes com real competência, adquirida no próprio campo de luta. Eu

estava lá e vi isso. Essa é uma das perple-xidades que me acompanham até hoje: esses lutadores eficientes não percebiam ter um ideal para lutar.

Por que voltou ao tema 70 anos depois da guerra e qual a razão de se sentir im-potente diante das histórias sobre ela?Ainda tenho essa necessidade de mostrar o que realmente aconteceu, segundo o que vi. Quero lembrar que os brasileiros foram para a guerra e lutaram, mesmo que a maioria não estivesse motivada. Também fico inconformado ao ver que prevalece uma versão menos deprimente do que a minha sobre os acontecimentos que ocorrem durante as guerras, quan-do todos os conceitos de civilização e

progresso desaparecem. Isso é bem dis-cutido em Guerra e paz, quando Tolstói conclui que o homem cria seus mitos bé-licos e, depois de cada guerra, acomoda os fatos de acordo com eles.

O senhor também reclama um pouco dos jornalistas brasileiros que escre-veram sobre o tema.Nem todos. O Rubem Braga e o Joel Sil-veira trouxeram contribuições muito importantes sobre o período. Ocorre que eles não apontaram a contradição básica: o fato de os brasileiros estarem lutando pela democracia como enviados de um governo de cunho fascista. E lutando sem nenhuma convicção. Nenhum de-les fala sobre isso. O Rubem Braga chega próximo disso, no máximo. Há outros

autores, completamente des-conhecidos, que lutaram na guerra e escreveram depoi-mentos pessoais mais fortes, viscerais. Mas hoje em dia há poucos de nós vivos para falar sobre isso.

Em 1964 foi lançado Guerra em surdina sobre o mesmo tema, em meio ao início da ditadura militar. O senhor sofreu algum tipo de inti-midação?Aquele livro era algo entre considerações pessoais e ficção. É um relato da guer-ra escrito no plano interior e expressava o que vai por den-tro de um indivíduo naqueles momentos. Por isso o nome Guerra em surdina. Já Cader-

no italiano trata de minhas memórias do período e é uma narração autobiográfica. Em 1964 não aconteceu nenhuma reação extremada, embora o livro fugisse dos relatos oficiais da FEB. Sofri depois, por causa de algumas atitudes de protesto durante a ditadura militar.

Chegou a ser preso?Fui detido quatro vezes. Como outros, eu protestava por causa da situação po-lítica e participava de manifestações fora e dentro da universidade. Embora fosse naturalizado, sentia-me totalmente bra-sileiro, esquecia que não tinha nascido aqui. Em uma das vezes fui detido dentro da sala de aula. Mas nunca fiquei real-mente preso nem sofri a violência que

saímos do Brasil, onde havia uma ditadura, para lutar na europa e defender a democracia alheia

Page 27: O medo do estrangeiro

pesQuisa fapesp 236 | 27

outros professores sofreram. Era “convo-cado” para dar explicações por algumas horas e depois liberado. Também não cheguei a ser cassado pelos atos insti-tucionais editados pelo regime militar.

Vamos falar um pouco mais sobre o iní-cio de sua trajetória. Sua família saiu de Odessa quando o senhor tinha 8 anos. Por que seus pais escolheram o Brasil?Não sou de Odessa, fui para lá com 1 ano de idade. Nasci em Úman, uma cidade de tamanho médio da Ucrânia. Tivemos de sair porque logo depois da revolução russa ocorreram pogroms, massacres de judeus em algumas cidades no leste da Europa. Minha primeira infância foi em Odessa e tive formação totalmente rus-sa. Quando quisemos emigrar não havia muitas possibilidades de escolha. Ia-se para onde se conseguia visto. Um primo tinha saído alguns meses antes por ter ficado muito revoltado, ao ser excluído da universidade por não vir de família proletária. Saiu clandestinamente por Viena, andou por várias embaixadas, con-sultando onde poderia se acomodar, e foi aceito pela do Brasil. Veio para São Paulo e começou trabalhando como pedreiro na construção civil. Depois se formou em engenharia e teve alguns cargos im-portantes. Chamava-se Pedro Pasternak. Ele nos escrevia contando maravilhas do Brasil. Acabamos vindo para cá e fica-mos morando no Rio de Janeiro. Como meu pai era comerciante, durante algum tempo morou também em Porto Alegre.

Por que optou por cursar agronomia?Quando tinha uns 13 anos, por alguma razão eu disse que queria ser agrônomo. Um pouco depois, entre os 14 e 15 anos, passei por uma grande crise de identi-dade e me senti mais brasileiro do que antes. Ao mesmo tempo, comecei a me ocupar da literatura, que era o que me agradava mais. Para todos os efeitos, no entanto, a família já havia me destinado à agronomia e fiz o curso.

Atuou na área?Sim, por vários anos trabalhei como en-genheiro agrônomo. Cursei a Escola Na-cional de Agronomia do Rio e me formei em 1940, aos 23 anos. Em seguida me naturalizei, prestei o serviço militar e fui para a guerra. Na volta, morei alguns anos em São Paulo e trabalhei em Bar-bacena, cidade de Minas Gerais.

E o que o levou a desistir definitiva-mente da profissão?Agronomia era o ganha-pão, embora eu tivesse certo gosto nesse trabalho. Antes da guerra, eu já tinha conseguido um emprego na Baixada Fluminense, no Ins-tituto de Ecologia Agrícola, que depois passou a se chamar Instituto de Ecologia e Experimentação Agrícolas. Quando a guerra acabou continuei lá por pouco tempo. Eu queria me ocupar de algu-ma coisa mais literária, que envolvesse textos, e acabei trabalhando na Agência Tass, a Agência Telegráfica da União So-viética. Secretariei o correspondente da

Tass, Iúri Kalúguin, por pouco mais de um ano, logo depois de 1945.

Então o senhor, de certo modo, trabalhou com jornalismo. Gostava dessa área?Trabalhei com gosto, embora não fosse o ideal. Fazia resumos e traduções de notí-cias que saíam em jornais brasileiros. Eu auxiliava o jornalista russo, que escrevia. Aos poucos, as coisas foram ficando muito difíceis para quem vinha da União Soviéti-ca e trabalhava em instituições soviéticas. Meu pai, que era comerciante e naquele tempo fazia a distribuição de filmes russos no Brasil, disse que estava precisando de minha ajuda. E deixei a Tass.

Depois disso o senhor foi para Barba-cena e nos anos 1950 se fixou em São Paulo. O que o trouxe aqui?Fiquei em Minas de 1948 a 1953 diri-gindo o Núcleo de Agricultura da Es-cola Agrotécnica de Barbacena. Minha primeira mulher, Regina, era química e depois se tornou psicanalista. A mãe dela morava em São Paulo e teve cân-cer. Viemos para cá ajudá-la e me vi sem emprego. Certo dia, li um anúncio no jornal pedindo gente que soubesse lín-guas. Arrisquei e me apresentei. Acabei contratado para trabalhar na redação de uma enciclopédia, a Mérito, da editora norte-americana Jackson. Fui um dos redatores e devo ter escrito alguns mi-lhares de verbetes. Eles tinham um es-critório instalado aqui em São Paulo em uma situação muito estranha.

Brasileiros em Camaiore, Itália, ocupada pela FEB. Abaixo, Schnaiderman dois dias depois do fim da guerra

foto

s A

CEr

vO

PE

SSO

AL

/ C

ad

ern

o It

alI

an

o

Page 28: O medo do estrangeiro

28 | outubro DE 2015

Estranha por quê?Por muito tempo a enciclopédia não saía do comecinho da letra A, parecia que na-da funcionava. Era evidente que a matriz norte-americana não iria permitir isso por muito mais tempo. Havia um supervisor para a América Latina que era colombia-no e aparecia só de vez em quando. Até que um dia fizeram uma limpeza geral, demitiram quase todos e fui um dos que ficaram, junto com outros dois ou três redatores. Trabalhei sete anos lá. Não fi-quei até o final por ter sido escolhido para iniciar as aulas de russo na USP, em 1960. E mais tarde me tornei o responsável pelo curso de língua e literatura russas da USP.

O senhor era agrônomo, sem formação em letras. Como foi contratado?Minhas traduções diretamente do russo para o português já eram bem conheci-das e foi o que bastou para servir como atestado de competência. Mas tive de me tornar autodidata em letras.

Seu editor na Perspectiva, Jacó Guins-burg, outro autodidata, já disse que o autodidatismo pode ter um alto preço. O senhor concorda com isso?Plenamente. O autodidata tem a vanta-gem de aprender livremente, mas sofre muito mais para achar os melhores cami-nhos sozinho, o que acaba levando muito mais tempo do que na educação formal. Na USP acabei achando esses caminhos. Eu já havia tido experiência anterior co-mo professor na Escola Agrotécnica de Barbacena, embora a USP fosse comple-tamente diferente. Dei-me bem no am-biente paulistano universitário. Depois de alguns anos fiz um doutorado.

Quem foi seu orientador?Antonio Candido. Ele me aceitou, mas disse que não iria me orientar de fato. Àquela altura, ele dizia que eu conseguiria me defender sozinho e que apenas assi-naria a tese. Deu-me toda a liberdade e confiança. Quando terminei, levei para ele, que leu e a aceitou muito bem. De-fendi a tese em 1971. O título era A poética de Maiakóvski através de sua prosa, que redundou em livro da editora Perspectiva.

Foi antes, então, no começo dos anos 1960, que o senhor conheceu os poetas concretistas Haroldo e Augusto de Cam-pos e iniciou sua colaboração com eles, inclusive traduzindo Maiakóvski?Exato. Foi muito bom o contato, a troca e o trabalho com eles. Com o Augusto me dou bem até hoje [Haroldo de Campos morreu em 2003]. Na época eu não gos-tava de poesia concreta, mas, como tra-dutores, eles eram magistrais. O Augusto ainda é. Fui professor particular de russo do Haroldo, enquanto o Augusto se ma-triculou no curso da USP e foi até o final do segundo ano. Na prática, fui professor dos dois. O Haroldo tinha imensa facili-dade e aptidão para línguas. Ambos eram capazes de fazer traduções livres e, ao mesmo tempo, fiéis, o que nunca é fácil.

Em Tradução, ato desmedido, o senhor escreveu: “O arrojo, a ousadia, os voos da imaginação, são tão necessários na tradução como a fidelidade ao original, ou melhor, a verdadeira fidelidade só se obtém com esta dose de liberdade no trato com os textos”. No entanto, quando come-çou sua atividade como tradutor, assina-va como Boris Solomonov, e hoje critica

o trabalho daquela época. Dizia que os textos eram um pouco engravatados...Esse livro que você cita é de 2011 e eu já havia aprendido o ofício. Comecei a tra-duzir no começo dos anos 1940. Os tex-tos eram muito formais, especialmente por causa da revisão. Na editora Vecchi, do Rio, onde comecei a publicar, o revi-sor queria tudo numa linguagem muito clássica. Se o romancista usava uma lin-guagem coloquial, como a de Dostoiévs-ki, o revisor substituía por um português castiço e antiquado. O tradutor nem via esse processo acontecer e não tinha po-der para contestar isso, na época.

Por que o senhor usava pseudônimo quando começou a traduzir?Comecei a traduzir nas horas vagas de um emprego que eu tinha no Ministério da Agricultura. Na época, eu lia muito em russo, ainda lutava com um proble-ma de bilinguismo e não conseguia me expressar de uma forma satisfatória em português. Fiz várias traduções de um modo um tanto inseguro e, por isso, as-sinava Boris Salomonov, abreviatura de Salomônovitch, meu patronímico russo [sobrenome derivado do nome do pai ou de um antecessor paterno, obrigatório na Rússia; no caso, Salomônovitch sig-nifica “filho de Salomon”, ou Salomão, pai de Boris]. Não era bem um pseudô-nimo, porque era um nome que eu não usava normalmente, mas era meu nome do meio. Não existiam nem dicionários russo-português no Brasil e eu tinha de ir à Biblioteca Nacional para olhar pala-vras e termos que não conhecia nos di-cionários russo-francês e russo-inglês. Eu ainda não tinha formação e experiência suficiente na tradução e não conhecia pessoas que pudessem me criticar e ad-vertir. Mais tarde, aprendi que nenhuma tradução pode ser considerada concluída, se não houver o cotejo com o original por meio da leitura do traduzido em voz alta. Mesmo assim, na década de 1940, a edi-tora Vecchi encampou meu trabalho. Já me disseram que foi importante publicar os grandes autores russos naquela época em edições populares, como fazia a Vec-chi. Mas eu não concordo. As traduções tinham muitos problemas.

Qual foi seu primeiro livro traduzido publicado?Comecei logo com Os irmãos Karamá-zov, de Dostoiévski, publicado em 1944,

Jipe da Central de tiro brasileira carregado de soldados atravessa o rio Panaro, na Itália

AC

Erv

O P

ESS

OA

L /

CA

dEr

NO

ItA

LIA

NO

Page 29: O medo do estrangeiro

pesQuisa fapesp 236 | 29

que até foi bem recebido pela crítica. Mas foi também uma temeridade. Se eu conhecesse o livro antes, não teria feito. É uma tradução cheia de defeitos e hoje não a aceito mais.

Quando começou a usar o nome Boris Schnaiderman?Apenas em 1959. Publiquei Contos, uma coletânea de Tchékhov em que fiz a sele-ção, tradução, prefácio e notas para a Civi-lização Brasileira, do Rio. Acreditava que já estava suficientemente maduro, mas fiquei horrorizado quando vi impresso, porque achei uma série de lacunas e imprecisões. Mesmo assim, Otto Maria Carpeaux fez grandes elogios no então Suplemento Li-terário do Estadão. Prometi a mim mes-mo fazer uma nova tradução melhorada, o que só consegui em 1985, quando saiu com outro título, A dama do cachorrinho e outros contos, para a editora Max Limonad. Continuei insa-tisfeito com alguns dos contos e em 1999 consegui publicar o mesmo livro na Editora 34, com soluções melhores. Nos anos 1960 minha atividade co-mo tradutor foi grande. Depois de Contos, adotei uma nova técnica: o texto em português já traduzido por mim era lido em voz alta por outra pessoa enquanto eu acompanhava em russo. Levei vários anos para descobrir como essa prática elementar é importante.

Isso resolveu os problemas das traduções?Em grande parte, sim. Com essa técnica consegui elimi-nar muitos equívocos semân-ticos, mas ainda me choca a linguagem solene demais que usei naquele período. Para alguns escritores podia dar certo. Para Tolstói, com sua rebeldia antili-terária, e Dostoiévski, com sua escrita “relaxada”, não funcionava, era ruim.

Essa eterna insatisfação com suas pró-prias traduções e o hábito de refazê-las constantemente deve ser angustiante. É por isso que o senhor classifica a tradu-ção como um “ato desmedido”?Não tenho dúvidas quanto a isso. Des-medido porque é uma violência pegar uma obra de Tolstói ou Dostoiévski e traduzir. Não sou Tolstói nem Dos-

toiévski e, no entanto, tento transpor para o português o que eles disseram em russo dentro do contexto da cultu-ra russa. Tenho traduzido grandes au-tores, como Púchkin, Tchékov, Górki, Maiakóvski. O “ato desmedido” vale para todos eles. Traduzi Khadji-Murát, de Tolstói, pela primeira vez em 1949 e de lá para cá já fiz outras quatro tra-duções diferentes do mesmo livro, para melhorá-lo e diminuir o que chamo de violência. A última delas saiu em 2010 pela Cosac Naify. Isso aconteceu com muitos outros livros também.

Quem mais gostou de traduzir?O que me causava mais entusiasmo era Tchékhov. Ele morreu cedo, aos 44 anos, e deixou uma obra vasta. Con-sagrou-se com histórias curtas, embora tivesse escrito de tudo.

Como eram as traduções do russo para o português antes de o senhor começar a fazê-las?A maioria derivava das traduções fran-cesas. Até onde sei, as primeiras direto do russo para o português ocorreram no começo de 1930. Entre os amigos dos meus pais havia gente vinda de Riga, na Letônia, de formação russa. Eram pessoas que saíram da União Soviética durante ou logo depois da revolução e foram para os países vizinhos, até con-seguir emigrar outra vez. Um deles, Iú-ri Zeltzóv, veio para o Brasil no final de 1920 e criou aqui a Biblioteca de Au-tores Russos. Ele tinha um modo pró-

prio de trabalhar. Como conhecia mal a língua, traduzia em voz alta os textos em russo. Dois escritores em início de carreira, Brito Broca e Orígenes Lessa, ouviam a tradução e escreviam em bom português. Até a mulher de Orígenes, Elsie Lessa, traduziu com Zeltzóv pelo menos um livro. A tradução levava só o nome dele, que assinava como George Selzoff, embora a produção fosse con-junta. Ele traduzia, imprimia e vendia. Durou pouco tempo e não saberia dizer se antes alguém mais fez traduções di-retamente do russo.

O senhor é contemporâneo de Tatiana Belinky (1919-2013), russa naturaliza-da brasileira que, além de ter sido im-portante para a literatura infantil no Brasil, também foi uma das pioneiras da tradução de livros direto do russo.

Gostava das traduções dela?Muito. Tenho o maior respei-to pelo trabalho de Tatiana. A tradução de Almas mortas, de Gógol, é absolutamente admirável. Ela traduziu bas-tante do russo e também de outras línguas.

Como o senhor vê a litera-tura russa no Brasil hoje?Desde o começo do século XX houve um grande in-teresse pela Rússia e pelos temas russos no Brasil. Na década de 1950, por razões ideológicas, houve um declí-nio desse interesse. Depois, nas últimas décadas do sécu-lo XX, voltou a crescer. Hoje vejo uma procura significa-tiva por essa literatura, com

lançamentos dos mais diversos autores e boas traduções.

E o contrário? Acha que os autores bra-sileiros seriam apreciados pelos russos?A literatura brasileira é pouco divulgada na Rússia. Se houvesse um bom traba-lho de tradução e divulgação, acho que teria público. Quando Jorge Amado foi traduzido por lá, há muito tempo, fazia sucesso e tinha um público grande.

Aos 98 anos, ainda traduz?Hoje não faço novas traduções. Apenas melhoro traduções antigas. Enquanto tiver cabeça, continuarei. n

nenhuma versão pode ser considerada concluída se não houver o cotejo com a tradução em voz alta

Page 30: O medo do estrangeiro

30 z outubro DE 2015

Experiências internacionais inspiram

governo de São Paulo a criar cargo de

cientista-chefe em secretarias estaduais

Bruno de Pierro

léo

ra

mo

S

Com ajuda da ciência

Política c&t GEStão Pública yReino Unido

além do imunologista mark

Walport, cientista-chefe

ligado ao premiê David

cameron, há conselheiros em

todos os ministérios e em

certos departamentos do

governo britânico. Juntos, eles

formam uma rede de

aconselhamento

estados UnidosFoi um dos primeiros países

a criar o cargo de cientista-

-chefe, em 1957, função

hoje desempenhada por John

Holdren. Nas últimas

décadas, vários

departamentos do governo

passaram a contar com

especialistas que atuam

como consultores

isRaelo governo conta com

cientistas-chefes em cada um

dos 13 ministérios.

Eles têm a função de auxiliar

os ministros em temas

referentes a cada pasta.

o modelo foi inspirado no

sistema britânico

nova Zelândiacriou a função de

cientista-chefe em 2009.

o especialista trabalha

auxiliando o governo, mas

mantém suas atividades

acadêmicas. Esse modelo

garante que o cientista tenha

contato com o cotidiano

da administração pública,

sem abrir mão de suas

atividades de pesquisa

comissão eURoPeia Está implementando um novo

modelo de aconselhamento,

baseado em um comitê

composto por sete cientistas

de alto nível, não mais

concentrado na figura de um

cientista-chefe

Uma medida inédita no país anunciada pelo gover-no do estado de São Paulo pretende aproximar ciência e gestão pública. Até o início de 2016, cada secretaria estadual deverá contar com um cien-tista-chefe, cuja função principal será apontar as

melhores soluções baseadas no conhecimento científico para enfrentar desafios da respectiva pasta. O anúncio foi feito por Márcio França, vice-governador e secretário estadual de De-senvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, na abertura do Fórum Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), realizado em 27 e 28 de agos-to, na capital paulista. A iniciativa é inspirada no modelo de aconselhamento científico praticado em diferentes níveis de governo em países como Estados Unidos, Reino Unido e Israel.

A iniciativa começou a amadurecer em uma reunião do Conselho Superior da FAPESP, no dia 18 de março, da qual o vice-governador participou como convidado. Na ocasião, França mencionou a dificuldade de identificar pesquisado-res com ideias para auxiliar a gestão pública. A sugestão de

Page 31: O medo do estrangeiro

PesQUisa FaPesP 236 z 31

aUstRáliao governo australiano

tem um cientista-chefe

que assessora o

primeiro-ministro.

a academia australiana

de ciência atua de maneira

mais pontual na preparação

de pareceres científicos

em resposta às demandas

parlamentares

canadáé comum que as

recomendações científicas

fornecidas por entidades

como o conselho Nacional

de Pesquisa sejam

aproveitadas por órgãos

governamentais e também

pela indústria, na execução

de programas de apoio à

inovação em empresas

cUBao país tem um escritório

de aconselhamento

científico dentro do

governo, formado

por 31 membros entre

especialistas e ministros.

o grupo é dividido em

áreas estratégicas, como

segurança, energia

e meio ambiente

áFRica do sUlo governo sul-africano

recebe aconselhamento

científico por meio de

instituições

governamentais, como

agências de fomento,

e entidades não

governamentais. alguns

ministérios dispõem de

consultores

alemanhaDestaca-se por

aproveitar as entidades

representativas da

comunidade científica,

como agências de

fomento e academias

nacionais, para obter

consultoria científica em

assuntos específicos

china Não tem um

cientista-chefe ligado

ao governo. os tomadores

de decisão contam com

a ajuda de instituições

nacionais, como a

academia chinesa de

Engenharias, e também

consultam especialistas

de acordo com a

necessidade

índiaDocumentos de reuniões

organizadas pelas

academias nacionais são

disponibilizados ao

governo e ao público em

geral. relatório sobre

experimentação animal,

por exemplo, foi útil para

o governo debater o

assunto

Page 32: O medo do estrangeiro

32 z outubro DE 2015

criar a função de cientista-chefe partiu de Car-los Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação. “O professor Brito citou a experiência de países europeus, entre eles o Reino Unido, que criaram o cargo de cientista-chefe em suas estruturas de governo para auxiliar ministros, primeiros-ministros ou presidentes a tomar de-cisões”, relata Fernando Costa, professor da Uni-versidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Conselho Superior da FAPESP, um dos presentes à reunião.

n o encontro, Brito Cruz explicou ao vice--governador que cerca de 55% dos recursos da FAPESP são investidos em pesquisas

voltadas para aplicações, e Eduardo Moacyr Krie-ger, vice-presidente da instituição, acrescentou que quase 30% dos investimentos da Fundação são direcionados para a área da saúde e podem beneficiar diretamente ações da Secretaria da Saú-de. “Outros campos, como agricultura, educação e segurança pública, também deveriam aprovei-tar mais a contribuição de pesquisadores”, afir-ma Krieger. Márcio França gostou da sugestão. “Pensei: por que não aprimorar o diálogo com a comunidade científica por meio de uma fundação como a FAPESP?”, recorda-se o vice-governador, que levou a ideia ao governador Geraldo Alckmin e recebeu sinal verde para implementá-la.

“Essa medida não significa que o governo de São Paulo não vem ouvindo a comunidade cien-tífica”, observa Marilza Vieira Cunha Rudge, vice-reitora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), também membro do Conselho Superior da FAPESP. Segundo ela, o objetivo é fazer com que os conhecimentos gerados em universidades e instituições de pesquisa do estado sejam absor-vidos rapidamente pela administração pública. Uma minuta do decreto está sendo redigida com assessoria da Fundação. Um dos objetivos é que os cientistas-chefes ampliem a aplicação de re-sultados de pesquisas, entre as quais as apoiadas pela FAPESP, sugerindo articulações com proje-tos em andamento e propondo novos projetos.

O governo analisa agora os detalhes da inicia-tiva. O primeiro passo será selecionar os cientis-tas-chefes que atuarão nas secretarias. Segundo França, o mais provável é que se convidem profes-sores vinculados às três universidades estaduais paulistas – a de São Paulo (USP), a Unicamp e a Unesp – que poderiam ou não se licenciar. Tam-bém se discute qual seria o prazo mais adequado para o seu mandato. Para França, uma coisa é certa: os cientistas-chefes terão muito trabalho. “Os problemas e os desafios surgem aos montes na administração pública. Todos os dias e nas mais diversas áreas”, observa o vice-governador.

A bússola que orienta os caminhos futuros é a dos exemplos internacionais. Em setembro de

2014, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ofereceu um prêmio de US$ 20 milhões para o grupo de pesquisa que conseguir desen-volver o melhor teste de diagnóstico capaz de reconhecer rapidamente infecções causadas por bactérias resistentes a antibióticos. Segundo in-formações do Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), essas infecções são respon-sáveis pela morte anual de 23 mil norte-ameri-canos. A ação foi motivada por uma avaliação encomendada pela Casa Branca ao Conselho de Ciência e Tecnologia (PCAST), formado por cerca de 20 especialistas, entre ganhadores de Prêmio Nobel e representantes do setor indus-trial. O grupo é comandado por John Holdren, professor da Universidade Harvard e conselheiro científico de Obama.

Os Estados Unidos têm tradição em aconselha-mento científico. Em 1933, o presidente Franklin Roosevelt criou um comitê consultivo formado por cientistas, engenheiros e profissionais da saúde para assessorá-lo. Em 1957, o país foi o primeiro a nomear um cientista-chefe para tra-balhar na Casa Branca. Logo departamentos e autarquias passaram a contar com a consultoria de especialistas. Em 1998, a então secretária de Estado, Madeleine Albright, encomendou um re-latório para as Academias Nacionais de Ciências dos Estados Unidos sobre o suporte que a ciên-cia poderia dar em assuntos relativos à política externa. A recomendação foi que ela escolhesse um assessor científico. “Minha tarefa é ajudar o governo a aproveitar os recursos da ciência e da tecnologia para embasar a política externa”, disse à Pesquisa FAPESP Vaughan Turekian, assessor científico de John Kerry, o atual secretário de Estado. Ex-diretor internacional da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), Fo

tos

1 u

Niv

ErSi

Da

DE

DE

No

tt

iNG

Ha

m 2

PE

tE

Sou

za

/ c

aSa

br

aN

ca

Page 33: O medo do estrangeiro

PesQUisa FaPesP 236 z 33

Turekian conta que foi submetido a um rigoroso processo de análise de suas credenciais científi-cas. “O assessor é nomeado por um período deter-minado. Isso é intencional. Convém lembrar que o cargo não é uma indicação política”, esclarece.

Outra referência é o Reino Unido, que criou o cargo em 1964. A função de cientista-chefe é de-sempenhada hoje pelo imunologista Mark Wal-port, ex-diretor do Wellcome Trust, fundação que

financia pesquisa biomédica. Desde 2013, Walport assessora o premiê David Cameron. Um dos pri-meiros temas tratados por Walport no governo foi o da experimentação animal. Em 2014, após estatísticas mostrarem que o número de animais utilizados em testes pré-clínicos aumentou nos últimos anos no Reino Unido, o governo anun-ciou medidas para reduzir ou substituir seu uso. Walport atuou como ponte entre o governo e a comunidade científica. Reconheceu a necessida-de de mudanças, mas salientou que a abolição de animais em estudos científicos ainda é inviável.

Walport também preside o Conselho de Ciência e Tecnologia (CST), ligado ao Departamento de Negócios, Inovação e Capacitação do Reino Uni-do. O órgão dispõe de uma divisão de especialistas que forma o Grupo de Aconselhamento Científico para Emergências (Sage). A equipe foi acionada

em 2010, quando cinzas de um vulcão na Islândia afetaram o espaço aéreo do Reino Unido, e em 2011, após o incidente nuclear de Fukushima, no Japão.

O Reino Unido conta com cientistas-chefes em departamentos e ministérios. “Há uma rede de conselheiros científicos dentro do governo. Isso aproximou ainda mais os diferentes ministérios. O professor Walport organiza uma reunião sema-nal com os conselheiros, que discutem juntos as

prioridades de cada área”, disse à Pesquisa FAPESP Robin Grimes, conselhei-ro-chefe para assuntos científicos do Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido. “Acredito que São Paulo conseguirá se articular melhor com a ciência ao adotar essa me-dida, além de obter acesso

a conceituadas redes de pesquisadores no Brasil e no mundo”, afirmou Grimes.

P ara James Wilsdon, especialista em política científica da Universidade de Sussex, Ingla-terra, esses exemplos ajudaram outros paí-

ses a criar modelos de aconselhamento científico adaptados a suas realidades. “Há uma grande va-riedade de temas que demandam o olhar da ciên-cia, como mudanças climáticas, pandemias, segu-rança alimentar e pobreza”, explica Wilsdon em um relatório apresentado na conferência da Rede Internacional para Aconselhamento Científico a Governos (INGSA), realizada em agosto de 2014 em Auckland, na Nova Zelândia. A entidade reúne tomadores de decisão e pesquisadores com o obje-tivo de compartilhar experiências e discutir a uti-lização de informações científicas em governos. O documento apresenta uma avaliação dos modelos de aconselhamento adotados em 20 países. Além dos exemplos clássicos, são apresentados casos de países que criaram recentemente o cargo, como a Nova Zelândia, cujo primeiro cientista-chefe, Peter Gluckman, foi nomeado em 2009.

O estudo mostra que alguns países optaram por formas de aconselhamento não atreladas à figu-ra de um cientista-chefe. No Japão, o Conselho de Ciência, Tecnologia e Inovação (CSTI) é um dos quatro conselhos que auxiliam o gabinete do primeiro-ministro. Ele é formado pelo primeiro--ministro, seis ministros de Estado e representan-tes da comunidade científica e do setor industrial. Já países como China, Alemanha, Holanda e África do Sul aproveitam a expertise das entidades repre-sentativas da comunidade científica. A Sociedade Alemã de Pesquisas Científicas (DFG), agência não governamental de apoio à pesquisa, é con-sultada pelo governo e ajuda a elaborar políticas públicas. “Fazemos declarações em comissões do

robin Grimes, do governo britânico, em visita ao campus da universidade de Nottingham na malásia, em 2013 (acima, de gravata); e John Holdren, cientista-chefe dos Estados unidos, que aconselha o presidente obama (abaixo)

“acredito que são Paulo conseguirá se articular melhor com a ciência”, diz Robin Grimes, do Reino Unido

2

1

Page 34: O medo do estrangeiro

34 z outubro DE 2015

Senado e temos interação direta com o governo”, diz Dietrich Halm, diretor-presidente da DFG pa-ra a América-Latina. Segundo Wilsdon, uma das vantagens desse modelo é que os pesquisadores gozam de independência em relação ao governo.

n a região da América-Latina e Caribe, o relatório do fórum de aconselhamento científico cita os exemplos de Cuba e El

Salvador. No modelo cubano, há um escritório de aconselhamento científico vinculado ao con-selho de Estado, formado por 31 membros. Em-bora o Brasil nunca tenha contado com a figura do cientista-chefe, a administração pública no país criou mecanismos de articulação com pes-quisadores. “Informalmente, o governo federal é aconselhado pela comunidade científica em vários temas”, disse Aldo Rebelo, então minis-tro da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). “No meu caso, mantive contato com a Academia Brasileira de Ciências (ABC), com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e com sociedades científicas.” Segundo o vice--presidente da FAPESP, Eduardo Moacyr Krie-ger, que também foi presidente da ABC, a atuação do cientista-chefe deve complementar o traba-lho que as academias de ciências desenvolvem. “As recomendações dadas pelas academias aos governos estão no plano macro. Já o cientista--chefe está no plano da implementação e do de-talhamento do que deve ser feito no cotidiano da administração pública”, diz ele.

No estado de São Paulo a assessoria científica ao governo já era praticada em situações específicas, mesmo sem a presença de cientistas-chefes. É o caso da interlocução entre especialistas ligados ao Programa Biota-FAPESP e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Desde o lançamento do pro-grama em 1999, 23 resoluções e decretos estaduais mencionam resultados do Biota como referência

para a tomada de decisões. Há um canal de diálogo com gestores das unidades de conservação onde são desenvolvidos projetos. “Os pesquisadores costumam ser membros de conselhos consultivos de parques estaduais e outras áreas protegidas”, observa Carlos Joly, professor da Unicamp e coor-denador do programa. Os especialistas vinculados ao Biota também trabalham em parceria com ins-tituições ligadas à secretaria, como o Instituto de Botânica, o Instituto Florestal e a Fundação Flo-restal. E o próprio gabinete da secretária do Meio Ambiente, Patricia Faga Iglecias Lemos, acompa-nha a produção científica do programa.

Outra experiência é a do Conselho Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, criado em 2014 para assessorar a Secretaria da Saúde na formulação e condução de políticas. O órgão é composto por representantes de universidades públicas instaladas em São Paulo, institutos, cen-tros de pesquisa, hospitais e entidades ligadas ao setor industrial. “Atualmente, o conselho discute

3

1 2

Page 35: O medo do estrangeiro

PesQUisa FaPesP 236 z 35

a proposta de criação de uma política estadual de ciência, tecnologia e inovação em saúde”, explica Sergio Swain Muller, presidente do conselho. “Já realizamos oficinas, ouvimos a contribuição das universidades e estamos preparando um documen-to com diagnósticos e ações para a consolidação desse plano.” Cabe também ao conselho auxiliar na definição de prioridades para o próximo edital do Programa de Pesquisa para o Sistema Único de Saúde (PPSUS), conduzido pela FAPESP em par-ceria com a Secretaria da Saúde, o Ministério da Saúde e o CNPq. “Uma das prioridades é apoiar pesquisas sobre novos mecanismos de gestão pú-blica da saúde”, diz Muller. Já no âmbito da Secre-taria Estadual de Agricultura e Abastecimento foi criada em 2002 a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta), que atua na coordena-ção de pesquisas de interesse da pasta. Sua estrutura compreende os institutos Agronômico (IAC), Biológico, de Economia Agrícola, de Pesca, de Tecnologia de Ali-mentos e o de Zootecnia, além de 15 polos regionais de pesquisa.

“Prospectamos estudos capa-zes de resolver problemas en-frentados por agricultores e os encaminhamos para a secreta-ria”, diz Orlando Melo de Castro, coordenador da Apta. Um dos desafios da secretaria cuja solu-ção vem sendo debatida entre os institutos abrigados pela agência é tornar a cana-de-açúcar mais resistente à seca. “O IAC foi pro-curado, porque já trabalha nesse assunto, inclusive em parceria com usinas localizadas em Goiás, onde há um período de seca prolongado. A ideia é aproveitar essas pesquisas em programas da secretaria”, explica Castro.

Para o sociólogo Simon Schwartzman, estu-dioso da comunidade científica brasileira e pes-quisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, o país não tem tradição no uso da ciên-cia por gestores públicos. “Claro, há exceções”, pondera. “O Ministério da Saúde conta com um centro de pesquisas próprio, o Instituto Oswaldo Cruz, assim como acontece com o Ministério da Agricultura, que tem a ajuda da Embrapa.” Car-los Joly recorda-se que a comunidade científica costumava impor barreiras na hora de se sentar à mesa com políticos. “Colaborei como assessor de meio ambiente na elaboração da Constitui-ção Federal de 1988. Na época, fui criticado por colegas, que pensavam que cientista não deveria se envolver com assuntos da política”, conta. Em 1995, Joly foi convidado pelo então secretário de Meio Ambiente do estado de São Paulo, Fábio

Feldmann, a trabalhar como seu assessor. “Na-quele momento isso já não foi visto como algo incomum. Aos poucos os pesquisadores se deram conta da importância de trabalhar em colaboração com gestores públicos”, afirma Joly.

o climatologista Carlos Nobre, presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), guarda

na memória histórias da relação tensa entre polí-ticos e cientistas. Em 1998, Nobre e sua equipe do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáti-cos (CPTEC) encaminharam ao governo federal e ao Congresso um parecer prevendo uma seca de grande intensidade no Nordeste nos meses seguintes, em decorrência do El Niño. “Ninguém nos ouviu”, lembra Nobre. “Acho que não acre-

ditavam, na época, que fosse possível fazer previsão de se-cas de qualidade com base em modelos matemáticos.”

O vice-governador Márcio França reconhece que há pon-tos de tensão quando políticos e cientistas se encontram. “A questão é que nem sempre o consenso científico é financei-ra e politicamente viável na-quele momento”, diz ele. Para Carlos Nobre, que já ocupou cargos de gestão de política científica no MCTI e integra o corpo de especialistas do fó-rum global de aconselhamen-to científico, ainda assim a si-tuação é melhor hoje. “Am-bos os lados perceberam que a solução de problemas como

secas e desastres naturais dependem de ações conjuntas”, afirma.

Autora do livro The fifth branch: science advisers as policymakers e de artigos que abordam a relação entre ciência, democracia e política, a norte-ame-ricana Sheila Jasanoff, da Universidade Harvard, adverte que o aconselhamento científico a gover-nos exige muitos julgamentos. “Requer a tomada de decisões sobre, por exemplo, se é melhor cor-rer um risco ou se precaver. É preciso saber como pesar as diversas evidências”, explica. Segundo ela, o aconselhamento pode de fato auxiliar os gestores. “Mas os órgãos científicos consultivos precisam operar de forma aberta e transparente. Isso é exigido por lei nos Estados Unidos”, ex-plica. Em 2010, o governo britânico divulgou um documento no qual recomenda que os níveis de incerteza presentes em torno de questões cientí-ficas sejam explicitamente identificados nos pare-ceres enviados a gestores públicos, comunicados em linguagem simples e direta. nFo

tos

1 b

Eca

-ilr

i Hu

b /

ma

rv

iN W

aSo

NG

a 2

br

END

oN

o’H

aG

aN

/ ic

Su 3

aa

aS

mark Walport, cientista-chefe do reino unido, em visita a centro de pesquisa no Quênia, em julho (primeiro à esquerda na foto ao lado); Peter Gluckman, cientista-chefe do primeiro-ministro da Nova zelândia (na foto à direita); e vaughan turekian, assessor direto de John Kerry, secretário de Estado norte-americano (abaixo)

“ajudo o governo a aproveitar a vasta gama de recursos da ciência”, diz turekian, dos eUa

Page 36: O medo do estrangeiro

36 z outubro DE 2015

BiBliometria y

CuiDaDo Com a maré

Page 37: O medo do estrangeiro

relatório propõe

limites para o

uso de indicadores

na avaliação

científica

no reino Unido

o debate sobre a confiabilidade de métodos quantitativos para medir o impacto da produção científica e acadêmica ganhou

um novo capítulo com a divulgação, em julho, de um relatório encomendado pelo Higher Education Funding Council for England (Hefce), órgão responsável por financiar e avaliar o sistema universitário e de pesquisa da Inglaterra. Fruto de 15 meses de trabalho de uma equipe inter-disciplinar independente, o documento The metric tide (A maré das métricas) aborda a utilidade e o uso abusivo de indicadores no julgamento do mérito de universidades e grupos de pesquisa. Diante da constatação de que se dissemi-naram parâmetros como indicadores de impacto e rankings universitários, o gru-po sugere parcimônia ao empregá-los. “As métricas precisam ser escolhidas com cuidado e devem sempre suplemen-tar e apoiar o julgamento de especialis-tas, em vez de substituí-lo”, diz Richard Jones, pró-reitor de Pesquisa e Inovação da Universidade de Sheffield, membro do painel que produziu o documento.

O grupo apresentou o conceito de “métrica responsável”, baseado em cinco pontos. Um deles é a humildade, enten-dida como o reconhecimento de que a avaliação por pares, embora imperfeita e sujeita a equívocos, é capaz de enxergar de forma ampla a qualidade da produção científica, algo que indicadores isolados ainda não conseguem fazer. O segundo ponto é a robustez, condição que exclui o uso de dados descontextualizados ou não suficientemente representativos num processo de avaliação. Segundo o rela-tório, a ênfase em parâmetros “estreitos e mal desenhados” produz consequên-cias negativas. Um exemplo desaconse-lhado é a utilização do fator de impacto de uma revista científica para definir a qualidade de qualquer trabalho publi-cado nela ou o mérito de seus autores. Isso porque tais índices apenas espelham médias observadas em conjuntos de ar-tigos publicados em períodos anteriores. O documento também menciona o uso de citações de artigos como um critério universal de qualidade, sem contemplar as realidades distintas das disciplinas. fo

tos

léo

ra

mo

s

fabrício Marques

pEsQUIsA fApEsp 236 z 37

Page 38: O medo do estrangeiro

38 z outubro DE 2015

O terceiro ponto é a transparência, ga-rantindo que a coleta de dados e suas aná-lises sejam abertas e compreensíveis para os pesquisadores e a sociedade. A utiliza-ção massiva de rankings universitários é criticada pelo relatório, com o argumento de que falta em muitos deles transpa-rência sobre a escolha de indicadores. O quarto ponto é a diversidade, esforço para adotar um conjunto de indicadores capaz de abranger aspectos variados da contribuição dos pesquisadores. Por fim, o quinto elemento é a reflexividade, com-preendida como a preocupação de iden-tificar prontamente efeitos indesejados que o uso de indicadores possa gerar e a disposição para corrigi-los.

“A atração pelas métricas só tende a aumentar”, escreveu na revista Nature James Wilsdon, professor da Univer-sidade de Sussex e líder do painel que produziu o relatório. Segundo ele, há de-mandas crescentes para avaliar o inves-timento público em pesquisa e educação superior e, ao mesmo tempo, a quan-tidade de dados sobre o desempenho científico e a capacidade de analisá-los se multiplicaram. “As instituições pre-cisam administrar suas estratégias de pesquisa e, simultaneamente, competir por prestígio, estudantes e recursos.”

O assunto é especialmente sensível no Reino Unido porque, a cada cinco anos, suas universidades e grupos de pesquisa são submetidos a um grande processo de avaliação, que define a distribuição de verbas públicas pelo período seguinte. O último deles, o Research Excellence Framework (REF 2014), foi divulgado pelo Hefce em dezembro passado. Cen-to e cinquenta e quatro universidades submeteram 1.911 itens em 36 campos do conhecimento. Cada item apresentado

reuniu um conjunto de trabalhos cientí-ficos, estudos de caso, patentes, projetos de pesquisa em curso, informações sobre o desempenho de pesquisadores e indi-cadores bibliométricos, vinculado a um departamento ou a um grupo de pesquisa, e foi avaliado por painéis de especialistas. A qualidade da produção científica foi responsável por 65% da avaliação, o im-pacto da pesquisa fora da academia (uma novidade do REF 2014) valeu 20% e o ambiente de pesquisa, 15%. O julgamento concluiu que 30% das universidades do Reino Unido são líderes mundiais, 46% têm nível internacional de excelência, 20% têm reconhecimento internacional e 3% reconhecimento apenas nacional.

dIscrEpâncIAsA equipe responsável pelo relatório ava-liou os dados do REF 2014 e concluiu que nem sempre indicadores individuais e análise por pares produziam resulta-dos convergentes. Discrepâncias acen-tuadas foram observadas, por exemplo, no desempenho de pesquisadores em início de carreira. Da mesma forma, a cobertura dos indicadores mostrou-se desigual nos campos do conhecimento, com problemas específicos atingindo em especial o painel de Artes e Huma-nidades. O relatório recomendou que o

modelo atual do REF seja mantido, ba-seado na avaliação qualitativa feita por especialistas que podem, porém, consi-derar indicadores selecionados de forma criteriosa. E sugeriu que se aumentem os investimentos em “pesquisa sobre a pesquisa”, para aprofundar a compreen-são sobre o uso de indicadores. O grupo também instituiu um prêmio às avessas, o Bad Metric Prize, para denunciar os usos inapropriados de indicadores quan-titativos. Os primeiros premiados serão conhecidos no ano que vem.

Enquanto o relatório era produzido, a comunidade científica britânica cho-cou-se com uma tragédia relacionada à pressão exercida sobre os pesquisadores pelas métricas. Stefan Grimm, por 10 anos professor de toxicologia da Faculdade de Medicina do Imperial College, suicidou--se aos 51 anos de idade. Estava depri-mido com o anúncio de sua demissão e deixou um e-mail relatando as sucessivas ameaças que sofreu de seu superior pa-ra conseguir um determinado patamar de financiamento para seu laboratório, que ele não conseguiu atingir. O Impe-rial College anunciou a revisão de seus critérios de avaliação depois do episódio, mencionado na apresentação do relatório.

O documento encomendado pelo Hefce perfila-se com textos recentes que de-fendem ideias semelhantes. Um deles é o Manifesto de Leiden sobre métricas de pesquisa, lançado em setembro de 2014 na 19ª Conferência Internacional de In-dicadores em Ciência e Tecnologia, rea-lizada em Leiden, na Holanda. Seus 10 princípios coincidem em grande medida com as recomendações do grupo britâni-co. Falam, por exemplo, da necessidade de transparência na análise de dados e propõem considerar as diferenças entre

Falta

transparênCia

na sElEção

DE inDiCaDorEs

usaDos por

rankings DE

univErsiDaDEs,

Diz rElatório

Page 39: O medo do estrangeiro

áreas nas práticas de publicação e cita-ção. Outra referência é a Dora, sigla para San Francisco declaration on research as-sessment, lançada em dezembro de 2012 em um encontro da American Society for Cell Biology, que faz 18 recomenda-ções para pesquisadores, instituições, agências de fomento e editores cientí-ficos. A principal delas propõe eliminar o uso do fator de impacto de revistas como indicador da qualidade de um ar-tigo. Quase 600 instituições científicas e 12,5 mil pesquisadores já assinaram a declaração – o relatório do Hefce suge-re que instituições e agências tornem-se signatárias da declaração para orientar publicamente suas práticas no campo da avaliação.

A importância de o Reino Unido adotar esse tipo de postura não é desprezível. “Se a maioria dos países ainda está na infância da discussão sobre avaliação, o Reino Unido está alguns passos adiante, querendo sair da adolescência”, observa Sergio Salles-Filho, professor da Univer-sidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Grupo de Estudos so-bre Organização da Pesquisa e da Ino-vação (Geopi), que avaliou programas da FAPESP. Ele observa que a inclusão

de novos parâmetros para avaliar a pro-dução científica também é motivada pe-la necessidade de sofisticar a avaliação, mensurando aspectos diversos ligados a seu impacto na sociedade. “Em certas áreas, o mais importante não é publicar artigos, mas produzir manuais usados na indústria, promover mudanças nas polí-ticas públicas ou mudar as diretrizes da política econômica. Os processos de ava-liação estão se transformando e daqui a 20 anos serão muito diferentes.”

cIclo coMplEtoO Brasil tem avançado na ampliação de critérios de avaliação. “As agências de fomento não se satisfazem mais em sa-ber apenas qual é o impacto específico de um artigo científico e buscam fazer avaliações de ciclo completo, que acu-mulam informações sobre o trabalho de pesquisadores e os resultados de pro-gramas para medir sua contribuição no longo prazo”, diz, referindo-se ao es-forço da FAPESP e mais recentemente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) de sistematizar um processo de coleta de dados que siga reunindo infor-mações sobre os resultados de pesquisa ao longo do tempo.fo

tos

léo

ra

mo

s

pEsQUIsA fApEsp 236 z 39

Rogério Mugnaini, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Uni-versidade de São Paulo (USP), está estu-dando a diversidade de critérios de avalia-ção dos programas de pós-graduação feita pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), se baseando em todos os documentos pro-postos pelas áreas do conhecimento desde 1998. Já observou que as áreas recorrem cada vez mais a indicadores de impacto, mesmo que esses parâmetros não sejam valorizados pela cultura daquela disci-plina. “Algumas áreas, como a geografia, estão adotando o modelo de avaliação das ciências duras”, diz Mugnaini. “Como o volume de títulos a ser avaliado é muito extenso, há uma tendência de adoção de indicadores, desconhecendo suas limita-ções.” Para Salles-Filho, há mais aspectos que precisam ser contemplados na ava-liação dos programas de pós-graduação. “Formamos 15 mil doutores por ano no Brasil, mas não sabemos onde estão e o que estão fazendo com o conhecimento e a experiência adquiridos no doutorado, se estão orientando teses, trabalhando no se-tor público ou na iniciativa privada. Deve-ríamos ter uma visão dos impactos sociais da formação em pós-graduação”, diz. n

Page 40: O medo do estrangeiro

40 z outubro DE 2015

Com formação precária,

jovens brasileiros recorrem à

bagagem cultural e religiosa

para explicar a evolução

dos seres vivos, aponta tese

Ensino dE CiênCias y

Visões nubladas

um estudo que comparou o ní-vel de conhecimento científico de alunos no Brasil e na Itália traz um panorama revelador

sobre problemas no ensino da teoria da evolução e seu impacto na formação dos jovens brasileiros. O levantamento su-gere que a precária formação científica dos estudantes de ensino médio do país os leva a recorrer a sua bagagem cultu-ral e religiosa para explicar a evolução dos seres vivos e a origem da espécie humana, algo que não se observa entre os italianos, que recebem uma educação científica mais sólida. O estudo envolveu as equipes de Nélio Bizzo, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), e de Giuseppe Pelegrini, docente da Universidade de Pádua, na Itália, e baseou-se na aplicação de um questionário padronizado respon-dido por estudantes de 15 anos de idade dos dois países. No Brasil, 2.404 alunos de 78 colégios públicos e privados de todos os estados brasileiros participaram

do levantamento, sorteados aleatoria-mente a partir de um plano com rigor estatístico, compondo uma amostra de representação nacional e regional. Os resultados foram publicados na tese de doutorado de Graciela da Silva Olivei-ra, professora da Universidade Federal do Mato Grosso, que foi defendida em agosto no programa de pós-graduação da FE-USP sob orientação de Bizzo.

O estudo mostra que há uma diferen-ça clara na postura dos estudantes dos dois países frente a conceitos da teo-ria da evolução. Na Itália, um país de forte tradição católica, concepções de mundo científicas e religiosas coexis-tem no repertório dos estudantes e só eventualmente entram em conflito, com alguns exemplos de alunos que rejei-tam a abordagem científica sobre a ori-gem dos seres humanos e das espécies. Eles, porém, exibem familiaridade com conhecimentos científicos e, se os re-jeitam, isso não pode ser explicado por falta de entendimento. Já no Brasil, a

realidade é distinta. Falta à maioria dos jovens domínio sobre os conceitos. Por isso, muitos alunos responderam que “não sabem” quando foram indagados se eram falsas ou verdadeiras afirmações como a existência de parentesco entre o ser humano e os outros primatas. “Eles consideram válidas percepções de com-preensão mais simples, como a de que os seres vivos mudam ao longo do tempo e que a evolução biológica acontece na natureza, mas se confundem com temas relacionados à ancestralidade comum e à origem humana”, diz Graciela.

A principal explicação para o desem-penho distante dos dois países tem rela-ção com a educação científica. “Na Itá-lia, as primeiras noções sobre a teoria evolutiva são mostradas aos alunos nas séries iniciais do ensino fundamental e se sofisticam no conteúdo das aulas ao longo da trajetória escolar”, afirma Biz-zo. “Desde os 9 anos de idade as crianças italianas estudam a origem do Homo sa-piens, e isso tanto nas aulas de ciências

Page 41: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 41

Exposição permanente Do macaco ao homem, no Catavento Cultural, em são Paulo: conhecimento sobre evolução fora da escola

da Evolução (Edevo-Darwin), vinculado à Pró-reitoria de Pesquisa da USP, dentro do qual o levantamento binacional foi feito. O trabalho será complementado com estudos comparativos feitos com estudantes das ilhas Galápagos, no Pa-cífico, cuja observação inspirou Charles Darwin a formular a teoria da evolução. Os dados da equipe equatoriana farão parte de uma dissertação de mestrado, na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso), e estão sendo analisa-dos por Adrián Soria, sob orientação do professor Nicolás Cuvi. O processamen-to de dados, realizado na USP, revelou que a realidade dos jovens que vivem nas ilhas Galápagos, e que têm contato diário com a realidade que influenciou Darwin, está mais próxima daquela dos jovens brasileiros do que da dos italianos.

Para além dos atritos entre o criacio-nismo, crença que atribui a criação dos seres vivos e da humanidade a um agen-te sobrenatural, e a teoria de Darwin, que propõe ancestralidade comum entre

seres vivos e sua evolução por seleção natural, existe uma dificuldade de com-preensão de conceitos complexos que é agravada pela formação escolar defi-ciente. “É comum que os alunos criem concepções distorcidas. Muitos acham que as espécies evoluíram de forma rá-pida e que, de uma geração para outra, surgiram mudanças significativas”, co-menta Marcelo Motokane, professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, especialista no ensino de biologia. “Tam-bém têm dificuldade em compreender que as mudanças acontecem em nível populacional e não conseguem conce-ber escalas de tempo tão diferentes das que estão acostumados a lidar”, explica.

pErgUntA FrEQUEntEVisões equivocadas sobre a evolução fa-zem parte do cotidiano do estudante de biologia Moisés Bezerra da Silva, de 28 anos, que trabalha como monitor da expo-sição permanente Do macaco ao homem,

como nas de história.” No mês passado, o Ministério da Educação lançou uma proposta de Base Nacional Comum Cur-ricular (BNC) para o ensino básico do Brasil que será discutida nos próximos meses. “Essa proposta inclui no currí-culo do 6º ano do ensino fundamental a história evolutiva das espécies. É um avanço. Falta no currículo brasileiro a história da vida na Terra. Se, por exem-plo, a paleontologia estivesse presente no currículo de ciências, a dificuldade dos estudantes seria menor”, afirma Bizzo, que coordena o Núcleo de Pesquisa em Educação, Divulgação e Epistemologia lé

o r

am

os

Page 42: O medo do estrangeiro

42 z outubro DE 2015

exibida no museu de ciências Catavento Cultural, em São Paulo. Segundo Moisés, uma das perguntas mais frequentes fei-tas por estudantes que visitam o museu em caravanas e pelo público de todas as idades que aparece nos fins de semana é: se o homem vem do macaco, por que os macacos continuam a existir? “Quan-do mostramos as réplicas dos fósseis dos ancestrais do Homo sapiens, como elas fo-ram encontradas e a escala do tempo em que eles viveram, muitas pessoas ficam surpresas e fascinadas”, diz Moisés, que sempre inicia a visita guiada de 50 minu-tos com um alerta. “Eu explico que a ex-posição é baseada no conhecimento cien-tífico sobre a origem das espécies e que o objetivo não é contestar a crença religiosa de ninguém. E, em tom de brincadeira, sugiro que me convidem para almoçar de-pois da apresentação se quiserem discu-tir fé e religião. Mas é comum que alguns

argumentem que a evolução é uma farsa e que o homem é obra de Deus”, afirma o monitor, que conhece bem os embates entre a ciência e a religião.

Criado numa família bastante religio-sa, que sempre frequentou a igreja As-sembleia de Deus, Moisés cresceu ouvin-do as explicações bíblicas para a origem do homem e só foi tomar contato com a teoria da evolução quando ingressou em um curso noturno de biologia de uma faculdade privada de São Paulo, já que as escolas públicas de ensino fundamental e médio que frequentou se eximiram de tratar do assunto. “O curso abriu novas perspectivas para mim”, diz o estudante, que deve se formar no ano que vem. Para conduzir as visitas à exposição, Moisés teve um treinamento com outros moni-tores e fez um curso de curta duração com o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, idealizador da mostra.

Para o professor Marcelo Motokane, além de reforçar o currículo é preciso melhorar os cursos de licenciatura em ciências biológicas. “É comum que os professores não entendam de forma ade-quada os conceitos da teoria da evolução. E, mesmo quando conhecem, muitos têm dificuldade em evitar que os alunos criem interpretações distorcidas”, afir-ma. A pesquisa no ensino de ciências, segundo Motokane, tem apontado ca-minhos para enfrentar esses problemas, como o ensino por investigação, baseado no reconhecimento de um problema e a tentativa de solucioná-lo utilizando o conhecimento científico. “Mas ainda te-mos um ensino muito baseado na mera transmissão de conceitos.”

No cômputo geral, 17% dos estudantes brasileiros afirmaram que “gostariam de ser cientistas” e 29% se disseram inte-ressados em “trabalhar com a ciência”. Segundo Graciela, há indícios de que o interesse dos alunos é maior em escolas mais comprometidas com as aulas de ciências. Estudos qualitativos irão in-vestigar o tema em mais profundidade.

Um agravante captado pela pesquisa é que a busca de conhecimento sobre ciências fora dos espaços escolares é ra-ra no Brasil. “Há poucos programas de televisão sobre temas científicos e mes-mo o hábito de pesquisar esses temas na internet não é muito difundido”, afirma Graciela. Segundo a pesquisadora, não se observa nas respostas da maioria dos estudantes brasileiros uma perspectiva dogmática, em que a religião muda ra-dicalmente a percepção dos jovens. Mas eles buscam na cultura aquilo que a esco-la não fornece. “A religião não é a única fonte de resistência. Há fatores culturais e também sociais, como a escolaridade das famílias, que influenciam a visão de mundo dos estudantes”, diz ela.

alunos do ensino fundamental interagem com reprodução de pinturas rupestres (esq.) e reconstituição de sepultamento de homem que viveu há 28 mil anos na rússia (dir.), no museu de ciências Catavento Cultural

Page 43: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 43

A ideia de que a religião não exerce in-fluência de forma isolada é conhecida em outros estudos, mas o levantamento teve o mérito de mapeá-la dentro da realidade educacional brasileira. O nível socioeco-nômico e o acesso à informação dentro de casa parecem ter alguma relevância. Um exemplo: diante da afirmação de que “os fósseis são evidências de seres vivos que viveram no passado”, os estudantes que declararam ter mais livros em casa responderam “verdadeiro” com maior frequência. Entre os que possuem uma biblioteca em casa com mais de 250 li-vros, o percentual chegou a 93,9%. Entre os que têm entre 10 e 250 livros, o índice oscilou entre 82% e 84%. Já entre os que não possuem nenhum livro foi de 71,6%, chegando a 79% entre os que têm entre 1 e 10 livros.

FormAção do plAnEtADa mesma forma, a escolaridade dos pais parece contribuir de alguma forma para o desempenho dos alunos. No item “A formação do planeta Terra se deu há cer-ca de 4,5 bilhões de anos”, a distribuição das respostas para a opção “verdadeiro” variou de acordo com o nível de instru-ção da mãe. Se a mãe não tinha nenhuma

escolarização, o índice foi de 34,6%; se tinha o ensino fundamental, 42,7%; en-sino médio, 47,9%; ensino superior, 53%. Em relação à origem de plantas e animais a partir de espécies presentes no pas-sado, o índice de resposta “verdadeiro” foi de 54,6% para jovens cuja mãe não tinha escolarização e de 73,9% quando as mães tinham diploma universitário.

E há, também, a influência da religião, mas o tipo de credo faz bastante diferença.

Na afirmação “A espécie humana descen-de de outra espécie primata”, os jovens católicos assinalaram com maior frequên-cia a opção “verdadeiro” (47,6%). Signifi-ca que pouco menos da metade dos jovens que se declararam católicos rejeitam o criacionismo. Eles são seguidos pelos sem religião (47,4%) e os de outras religiões (35,5%). Quem mais rejeitou a afirmação foram os evangélicos pentecostais e os evangélicos tradicionais (31,5% e 25,4% de opção “verdadeiro”, respectivamente), que também apresentaram a maior fre-quência na opção “falso”, com 48,1%. “Os resultados indicam que, entre alguns jo-vens que não reconhecem a mudança dos seres vivos ao longo do tempo, percebe-se com maior intensidade a religião como um importante componente na sua visão de mundo”, diz Graciela. Para Nélio Bizzo, ensino de ciências de qualidade ajudaria a evitar que esse contingente se amplie. “É preciso ficar alerta. Há projetos de lei em tramitação no Congresso que propõem tratar do criacionismo como conteúdo válido nas aulas de ciências. Um dos ob-jetivos do nosso núcleo de pesquisa, que foi criado em 2012, era criar uma refe-rência científica para discutir propostas desse tipo”, diz. n Fabrício marques

“Há projetos de lei tramitando no Congresso que propõem tratar do criacionismo nas aulas de ciências”, alerta nélio Bizzo

Foto

S lé

o r

am

os

Page 44: O medo do estrangeiro

44 z outubro DE 2015

Estudos flagram o processo de surgimento

de 11 espécies em grupo de aves da América do Sul

ciência OrnitOlOgiA y

A origem dos caboclinhos

– conservam um DNA extremamente parecido, indistinguível para fins de identificação taxo-nômica. Segmentos do genoma de uma espécie se encontram misturados ao de outra espécie, formando um mosaico molecular.

Ainda assim, os machos de cada espécie apre-sentam diferenças nítidas em sua morfologia, em especial no padrão de cores e de emissão de sons. “A plumagem e o canto nas aves evo-luem de forma mais rápida do que a maioria das diferenças genéticas”, diz Luís Fábio Sil-veira, curador da seção de Ornitologia do Mu-seu de Zoologia da Universidade de São Paulo

O material genético e a aparência fí-sica de 11 espécies de caboclinhos, pequenas aves de áreas abertas da América do Sul que comem semen-tes e pertencem ao gênero Sporo-

phila, o mesmo de seu primo curió, contam uma história evolutiva singular, ainda em construção, difícil de ser flagrada. Estudos recentes feitos a partir do sequenciamento de diferentes tre-chos de seus genomas indicam que oito dessas espécies – justamente as que devem ter se ori-ginado há menos tempo e vivem próximas en-tre si, partilhando, às vezes, um mesmo hábitat

Marcos PivettafO

tOs

léO

rA

mO

S (s

. ru

fic

oli

s e

fêM

ea

cl

Au

diO

tim

m

s. m

inu

ta S

Au

lO g

Om

ES

s. h

yp

oc

hr

om

a S

ilv

iA l

inh

Ar

ES)

caboclinho-de--barriga-preta(S. melanogaster)

caboclinho-do-sertão(S. nigrorufa)

caboclinho-de- -papo-escuro(Sporophila ruficollis)

caboclinho-de--sobre-ferrugem(S. hypochroma)

caboclinho-de--barriga-vermelha(S. hypoxantha)

Page 45: O medo do estrangeiro

PesQUisa faPesP 236 z 45

(MZ-USP), autor de trabalhos recentes com os caboclinhos ao lado do biólogo evolutivo argen-tino Leonardo Campagna, que faz estágio de pós--doutorado no Laboratório de Ornitologia da Universidade Cornell, Estados Unidos. Apenas as três espécies mais antigas, o caboclinho-de-peito--castanho (S. castaneiventris), o caboclinho-lindo (S. minuta) e o caboclinho-comum (S. bouvreuil), acumularam diferenças significativas em seu DNA a ponto de os exames moleculares serem capazes de diferenciá-las entre si e das demais.

O caboclinho-de-peito-castanho e o cabocli-nho-lindo vivem em áreas distintas do norte da

América do Sul e suas populações quase não têm contato com os exemplares das oito espécies mais jovens. O caboclinho-comum, como seu nome popular indica, é a forma mais abundante e ocorre no Pará, em todo o Nordeste e Sudeste, e em trechos do Centro-Oeste (ver mapa na pág. 47 com a distribuição geográfica das espécies). Sua área de ocorrência tem pontos de interseção com a das demais espécies. “A parte do genoma que produz a diferença morfológica entre as espécies deve ser pequena”, afirma Campagna. Em junho do ano passado, um estudo publicado na revis-ta Nature mostrou que o DNA de duas espécies

caboclinho- -de-papo-branco(S. palustris)

caboclinho-de--peito-castanho(S. castaneiventris)

caboclinho-lindo(S. minuta)

caboclinho-branco(S. pileata)

caboclinho-comum(S. bouvreuil)

FÊmEA

Os machos de 11 espécies do gênero Sporophila apresentam padrão de cor diferente na plumagem. As fêmeas de todas as espécies compartilham a mesma aparência. O dnA de oito espécies é indistinguível

caboclinho-de--chapéu-cinzento(S. cinnamomea)

Page 46: O medo do estrangeiro

46 z outubro DE 2015

europeias de corvo, a gralha-preta (Corvus co-rone) e a gralha-cinzenta (Corvus cornix), era praticamente idêntico. A diferença equivalia a menos de 0,28% do genoma, apesar da distinção de cores característica de cada ave.

De acordo com os trabalhos da dupla Silveira e Campagna, o S. bouvreuil é o parente vivo mais próximo das oito espécies mais jovens de cabocli-nho, que habitam o sul do Brasil, Uruguai, Para-guai, norte da Argentina e leste da Bolívia. “Antes se acreditava que era o S. minuta”, comenta Cam-pagna. Essas espécies de origem mais recente, que devem ter surgido entre 1,2 milhão e 500 mil anos atrás, são o caboclinho-de-barriga-vermelha (S. hypoxantha), caboclinho-de-barriga-preta (S. melanogaster), caboclinho-de-papo-escuro (S. ruficollis), caboclinho-de-papo-branco (S. palustris), caboclinho-do-sertão (S. nigrorufa), caboclinho-de-chapéu-cinzento (S. cinnamomea), caboclinho-de-sobre-ferrugem (S. hypochroma) e caboclinho-branco (S. pileata). As cinco pri-meiras estão ameaçadas de extinção. O brasilei-ro e o argentino, que estudavam em separado os caboclinhos até 2013, quando resolveram traba-lhar em conjunto, publicaram dois artigos sobre esse grupo de aves. O primeiro saiu em 2013 no periódico The Auk e o segundo em agosto deste ano na Molecular Ecology. Todos os tipos de ca-boclinho têm aproximadamente 10 centímetros

de comprimento total e 7 gramas de peso, e são apreciados por seu bonito canto.

fêMeas igUaisDiferentemente dos machos, as fêmeas e as aves jovens das 11 espécies de caboclinhos são muito semelhantes na aparência externa, com pluma-gem de cores menos chamativas. Isso faz com que seja difícil atribuir a que espécie pertence um exemplar do sexo feminino ou um filhote levan-do-se em conta apenas esse parâmetro. Em geral, as fêmeas têm o dorso mais escuro, amarronzado, e a parte ventral é mais clara, em tons de oliva. Como a existência de híbridos entre as 11 espé-cies é praticamente desconhecida na natureza, os pesquisadores acreditam que as aves tenham algum mecanismo, talvez o canto e a distribuição geográfica, que lhes permita reconhecer o par-ceiro sexual de sua espécie e, assim, reproduzir--se com os companheiros corretos. Também há evidências de que a plumagem das fêmeas possa exibir tonalidades na faixa do comprimento de onda do ultravioleta, invisível ao olho humano, mas não ao das aves. Esse seria um mecanismo extra de reconhecimento entre as espécies.

Em gaiolas em sua casa em São Paulo, Silveira está criando as 11 espécies com o intuito de en-tender os mecanismos que guiam a reprodução dos diferentes tipos de caboclinho. Quando um

macho de caboclinho- -branco faz a corte da fêmea: ave reconhece parceiro da espécie

fOtO

s c

ESA

r m

Ed

Ol

Ag

O i

nfO

gr

áfi

cO

An

A p

Au

lA

cA

mp

OS

ilU

str

ãO

SA

nd

rO

cA

StEl

li

Page 47: O medo do estrangeiro

PesQUisa faPesP 236 z 47

casal de aves cruza e produz filhotes saudáveis, o ornitólogo assume que a fêmea encontrou o macho de sua espécie. Ele então separa a du-pla para posteriores estudos. Se os passarinhos recém-nascidos morrem depois de um tempo, provavelmente houve um cruzamento de duas espécies distintas, que perderam a capacidade de produzir híbridos sadios. “Não dá para descartar a existência de híbridos de caboclinhos, até por-que é difícil identificar a espécie dos exemplares juvenis, mas nunca encontrei um deles na natu-reza”, pondera Silveira. Outra particularidade que dificulta o reconhecimento das espécies é que os machos periodicamente perdem sua tí-pica plumagem colorida, antes de migrar para o norte do país para fugir do frio invernal do sul, e ficam parecidos com as fêmeas.

A dupla de pesquisadores acredita estar diante de um caso complexo de especiação em curso, processo evolutivo em que, a partir da popula-ção de uma hipotética espécie ancestral, sur-gem outras espécies. “Essa é uma história que

Hábitat dos caboclinhos As espécies mais antigas vivem no norte da América do Sul e as mais recentes se espalharam pelo centro-sul

fOnte cAmpAgnA E SilvEirA

S. castaneiventris

S. nigrorufa S. pileata S. melanogaster S. hypoxantha S. cinnamomea S. palustris S. ruficollis S. hypochroma

S. minutaS. bouvreuil

As relações filogenéticas entre as 11 espécies do gênero Sporophila. A espécie que primeiro divergiu das demais é a S. castaneiventris

está em construção há poucos milhões de anos”, afirma Campagna. Por ora, os estudos genéticos e as análises sobre a morfologia e a distribuição geográfica das espécies permitem traçar um ce-nário aproximado da provável história evoluti-va dos caboclinhos da América do Sul. O gênero Sporophila, que literalmente significa comedor de sementes, compreende atualmente 38 espé-cies. Após a subida do istmo do Panamá, even-to geológico que conectou as duas metades do continente uns poucos milhões de anos atrás (as previsões variam de 3 milhões a 12 milhões de anos), exemplares de Sporophila se dispersa-ram pelas Américas Central e do Norte. Silveira e Campagna trabalharam com um subconjunto de todo o gênero, os chamados caboclinhos do sul, as tais 11 espécies.

A maioria dessas espécies foi descrita nos séculos XVIII e XIX. Foram, portanto, alça-das a esse status há mais de um século, quando os taxonomistas usavam fundamentalmente a aparência externa, o canto, o hábitat e o comportamento das aves para diferenciá-las. “Seu esqueleto é idêntico. A partir da análise dos ossos também não é possível distinguir as espécies”, comenta Silveira. Em boa parte dos casos, o no-me popular da ave destaca seu principal traço fí-sico, a marca registrada que faz os taxonomistas reconhecê-la em meio a espécies semelhantes.

Page 48: O medo do estrangeiro

48 z outubro DE 2015

O caboclinho-de-papo-escuro tem, por exemplo, uma mancha negra abaixo do bico e o caboclinho-bran-co é a espécie com mais quantidade de plumagem alva.

Segundo os estudos recentes da dupla, que analisou o DNA mito-condrial (herdado apenas da mãe) e 3 mil marcadores moleculares pre-sentes no DNA desse grupo de aves, o representante mais antigo conhe-cido dessa linhagem é o caboclinho--de-peito-castanho, que ocorre no norte da América do Sul. Os cabo-clinhos foram se diversificando e construindo uma jornada evolutiva que os levaria a ocupar também a porção meridional do subcontinen-te. Uma outra população ancestral teria, ao longo do processo evolu-tivo, se modificado e gerado o caboclinho-lindo, cujo hábitat por excelência é a Amazônia. Do es-toque que originou essa espécie derivaria também o caboclinho-comum, que vive numa vasta porção do Nordeste e do Sudeste do Brasil e teria sido o responsável por gerar uma grande diversidade de formas à medida que foi ocupando novas áreas ao sul do subcontinente. “Ao menos oito espécies

surgiram mais ou menos ao mesmo tempo. Elas compartilharam um ancestral comum com o S. bouvreuil e, antes disso, dividiram outro ancestral comum entre elas”, diz Campagna.

Os modernos estudos de genética de popula-ções permitem, em alguns casos, calcular quando uma espécie teria surgido. Silveira e Campagna estimam que as espécies derivadas do cabocli-nho-comum tomaram forma entre 1,2 milhão e 500 mil anos atrás. Nesse momento, as estima-tivas sugerem que as populações de aves do gê-nero Sporophila teriam aumentado 10 vezes de tamanho. O gigantismo desse bando ancestral é citado como uma das possíveis explicações para ainda não ser possível ver distinções evidentes no DNA das formas mais recentes de cabocli-nho. “Espécies derivadas de populações mui-to grandes demoram mais tempo para fixarem suas diferenças no genoma”, afirma o biólogo argentino. Esse fenômeno se deve aos efeitos da deriva genética, que a cada geração faz com que alguns indivíduos herdem certas características simplesmente por acaso (não em razão da seleção natural, de alguma mutação ou da migração de populações). Os efeitos da deriva são mais lentos em grupos oriundos de populações numerosas.

A história dos caboclinhos remete à de outro grupo de aves, os tentilhões das ilhas Galápagos, no Equador. Essas aves se tornaram um exemplo clássico do processo de especiação e de adap-

tação evolutiva e foram ci-tadas no livro A origem das espécies, de Charles Darwin (1809-1882), que lançou as bases da teoria da seleção natural. O naturalista inglês percebeu que o formato do bico dos tentilhões varia-va nas diferentes ilhas do arquipélago do Pacífico. O avanço dos estudos evolu-tivos mostrou que esse tra-ço físico varia em função do tipo de alimentação disponí-vel no território em que os tentilhões habitam, da com-petição entre as espécies e do isolamento geográfico. Em boa parte das ilhas do arquipélago do Pacífico, há tentilhões com bicos de for-

mato diferente, adaptados à oferta local de comi-da. Os tentilhões de terra, por exemplo, tendem a ter bicos mais largos, mais hábeis para quebrar sementes. Os tentilhões canoros apresentam bi-cos finos e pontudos, bons para espetar insetos.

O casal de biólogos evolucionistas britânico Peter e Rosemary Grant, professores eméritos da Universidade de Princeton, Estados Unidos,

Espécies de tentilhão

de galápagos com bico grosso (acima)

e com bico fino: darwin percebeu a

diferença no século XiX e um estudo

recente identificou gene associado a

esse traço físico

Plumagem e canto dos caboclinhos evoluíram mais rápido do que a maioria das diferenças genéticas

1

2

Page 49: O medo do estrangeiro

PesQUisa faPesP 236 z 49

disse em seu mais recente livro, 40 years of evolu-tion: Darwin’s finches on Daphne Major island (40 anos de evolução: tentilhões de Darwin na ilha Daphne Maior, em tradução livre), lançado em 2014, que os caboclinhos parecem ser uma espécie de versão em terra firme dos tentilhões de Dar-win. “Em muitos aspectos, os caboclinhos podem ser o equivalente continental dos tentilhões de Darwin”, escreveram os Grant, que, durante qua-tro décadas, passaram seis meses por ano em Ga-lápagos. O casal, aliás, foi coautor de um trabalho da Universidade de Uppsala, Suécia, publicado em fevereiro deste ano na Nature que divulgou o sequenciamento de todo o genoma das 14 es-pécies de tentilhão de Galápagos e uma da Ilha do Coco, também no Pacífico, mas pertencente à Costa Rica. Um dos resultados foi a identificação do gene ALX1 como um dos responsáveis pelo formato dos bicos das aves.

esPécie OU variaçãO MOrfOlógicaNem todos os taxonomistas concordam com a ideia de que os 11 tipos diferentes de caboclinho devem ser vistos como espécies distintas. Ainda que a morfologia, alguns hábitos e a distribuição geográfica apresentem particularidades, ao menos oito espécies são praticamente iguais do ponto de vista molecular. “Se não há alterações genéticas que expliquem as diferenças no fenótipo, não há por que considerar algumas formas de caboclinho como espécie”, afirma o biólogo Miguel Trefaut Rodrigues, taxonomista especializado em répteis do Instituto de Biociências (IB) da USP, amigo de Silveira. “Classificar seres vivos é sempre di-fícil. Mas a genética torna esse trabalho menos impreciso.” Para ele, as oito espécies mais novas de caboclinhos, cujo DNA é indistinguível entre si, deveriam ser consideradas como uma única espécie que apresenta diferentes morfologias, no caso um padrão de cores distinto na plumagem.

O biólogo evolutivo Fábio Raposo do Amaral, docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Diadema, prefere não en-trar no mérito da questão se as formas mais re-centes de caboclinhos devem ser consideradas como espécies diferentes ou como uma variação morfológica (de aparência externa) de uma única espécie. “No passado recente, fomos ingênuos e achamos que a genômica iria resolver automati-camente as questões taxonômicas mais comple-xas”, diz Amaral, que trabalha com aves. “Mas os caboclinhos estão numa situação intermediária, em que há um descompasso entre a variação mor-fológica e a genética. Mesmo com grandes con-juntos de dados em mãos, ainda temos muito o que aprender sobre como surgem as espécies.”

Silveira e Campagna esperam realizar novos es-tudos que talvez consigam encontrar assinaturas moleculares no genoma de cada espécie do gêne-ro, talvez os genes responsáveis por algum traço específico, como fizeram os pesquisadores com o gene ligado à formação do bico nos tentilhões de Darwin. “Nossa ideia é sequenciar trechos do genoma que podem estar ligados à produção da cor nas penas de cada espécie”, diz o curador de seção de ornitologia do MZ-USP. n

gralha-preta e gralha-cinzenta: as duas espécies europeias de corvo apresentam plumagem de cor distinta, mas seus genomas diferem em menos de 0,28%

Artigos científicoscAmpAgnA, l. et al. identifying the sister species to the rapid capu-

chino seedeater radiation (passeriformes: Sporophila). auk. v. 130,

n. 4, p.645-55. out. 2013.

cAmpAgnA, l. et al. distinguishing noise from signal in patterns of

genomic divergence in a highly polymorphic avian radiation. Molecular ecology. v. 24, n. 16, p. 4238-51. ago. 2015.fO

tOs

1 p.

r. g

rA

nt

2 p

ut

nE

y m

Ar

k /

Wik

imE

diA

cO

mm

On

S 3

jAn

S c

An

On

/ W

ikim

Ed

iA c

Om

mO

nS

4 A

nd

rE

AS

tr

Ept

E /

WW

W.p

hO

tO

-nA

tu

r.d

E

3 4

Page 50: O medo do estrangeiro

Associação simbiótica entre protozoário e bactéria

ajuda a entender a origem de organelas celulares

Os protozoários tripanossoma-tídeos são famosos por atacar seres humanos, além de plan-tas e animais de interesse eco-

nômico. Destacam-se os parasitas Trypa-nosoma cruzi, responsável pela doença de Chagas, T. brucei, da doença do sono na África, e os do gênero Leishmania, que causam as leishmanioses. Mas para a parasitologista Cristina Motta, do Ins-tituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Ja-neiro (UFRJ), esse não é o aspecto mais interessante desses seres unicelulares. Alguns tripanossomatídeos albergam em seu interior uma bactéria sem a qual são incapazes de viver na natureza. E vice--versa: a bactéria também não sobrevive sozinha. Essa relação de endossimbio-se pode ajudar a entender a origem dos eucariotos (organismos com material genético compartimentalizado no nú-cleo da célula), cujas organelas – como a mitocôndria e o cloroplasto – resultam de associações com bactérias.

O que se observa nesses organismos é um passo intermediário na evolução das organelas. “São dois seres diferentes que

PArAsitologiA y

Parceiros inseparáveis

se encontraram, viveram em harmonia e agora formam um só ser, já que um não existe sem o outro”, diz Cristina. Intrigante é o fato de cada protozoário conter apenas uma bactéria: elas se di-videm mais depressa que o tempo de geração do hospedeiro, de seis horas, e poderiam ser numerosas dentro da cé-lula. “Mas isso não ocorre, o que indica fortemente que o protozoário controla a proliferação do endossimbionte.” Esse controle rigoroso é importante porque, sem ele, a bactéria pode tornar-se um parasita e dominar, ou até matar, o hos-pedeiro. Cristina e seus colegas vêm es-tudando esse controle, como mostram os resultados com as espécies Strigomonas culicis e Angomonas deanei, publicados em junho deste ano na revista Frontiers in Microbiology como parte da tese de doutorado defendida este ano por Caro-lina Catta-Preta. Usando compostos que inibem o ciclo celular do hospedeiro, mas normalmente não afetam bactérias, os pesquisadores mostraram que a divisão do endossimbionte também é impedida. É mais um indício de que a bactéria per-deu o controle da maquinaria que causa

Maria Guimarães

a sua fissão, agora a cargo do hospedeiro. Com o bloqueio feito em pontos diver-sos do ciclo celular do protozoário, em alguns casos o endossimbionte começa o processo de replicação do seu material genético, sem conseguir fazer a divisão final, formando assim um longo filamen-to que contém várias cópias do material genético bacteriano.

Normalmente, quando as bactérias se dividem, primeiro duplicam todo o seu conteúdo, inclusive o DNA. Depois se formam o septo e um anel que, por constrição, promovem a formação de duas células-filhas. No caso do simbion-te estudado, essas estruturas típicas da divisão bacteriana não se formam. Com sua especialidade em microscopia, anos atrás Cristina já observara a ação coorde-nada da replicação de Angomonas deanei e da bactéria que vive dentro dele. O pri-meiro DNA a se replicar no organismo composto é o do endossimbionte, que se alonga apoiado no núcleo do proto-zoário até dividir-se em dois. Segundo Cristina, o núcleo funciona como refe-rência topológica e a bactéria precisa estar bem posicionada para se dividir

50 z OutubrO DE 2015

Page 51: O medo do estrangeiro

e garantir que cada novo protozoário carregue um simbionte. Em seguida se divide o cinetoplasto, região especiali-zada da mitocôndria que contém o DNA e está associada à estrutura locomotora do protozoário conhecida como flage-lo. Quando o núcleo enfim se divide, o protozoário está pronto para se separar em dois com uma bactéria em cada um, conforme descrito em artigo de 2010 na PLoS One. Falta agora esmiuçar os me-canismos moleculares envolvidos nes-sa divisão sincronizada de estruturas. Cristina conta com o avanço tecnológi-co e dos conhecimentos científicos, que proporcionam o desenvolvimento de projetos com genomas, transcriptomas e mesmo com redes metabólicas. “É uma visão mais integrada, que nos permitirá entender mais profundamente essa re-lação simbiótica”, diz Cristina.

ParceriasA amplitude do trabalho exige a reunião de especialidades diferentes. No Rio de Janeiro, Cristina conta com colegas da UFRJ e do Instituto Oswaldo Cruz. Mas ela também ampliou os horizontes geo-c

Ar

oli

nA

cA

ttA

-Pr

etA

/ u

frj

Microscopia eletrônica de varredura mostra a divisão de Angomonas deanei, um protozoário com bactéria simbiótica

PesQUisa FaPesP 236 z 51

Page 52: O medo do estrangeiro

52 z OutubrO DE 2015

Graças à bactéria, o protozoário consegue produzir praticamente todos os aminoácidos necessários

gráficos e mergulhou nos aspectos celu-lares e genéticos com a ajuda, em parte, de colaboradores de São Paulo, onde en-controu interlocutores interessados na questão evolutiva. Um deles é o parasi-tologista Erney Plessmann de Camargo, da Universidade de São Paulo (USP). Re-nomado por suas pesquisas com T. cruzi (ver entrevista em Pesquisa FAPESP nº 204), desde os anos 1980 ele se interessa pelo estudo da endossimbiose em tri-panossomatídeos e mais recentemente empreendeu o sequenciamento de cinco espécies que contêm bactéria simbiótica em parceria com o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis, na serra carioca. Em estudo publicado em 2013 na PLoS One, Cristina fez análises dos genomas de duas dessas espécies e mostrou perda de genes nas bactérias. “É um genoma reduzido, mas bastante funcional, capaz de completar vias biossintéticas essenciais do proto-zoário hospedeiro”, comenta, compa-rando a uma árvore bonsai.

Esses resultados ajudam a explicar algo que chamou a atenção de Cristina quando tinha 18 anos e começava um estágio no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho: a baixíssima exigência nu-tricional de um parasita de insetos quan-do comparada à de outros tripanossoma-tídeos. Já naquela época, o microscópio eletrônico ajudou a flagrar a bactéria simbiótica. Mais tarde, o genoma de pro-tozoários e respectivos endossimbiontes corroborou dados obtidos em estudos nutricionais e bioquímicos, indicando uma intensa troca metabólica entre os dois organismos.

Graças à bactéria, o protozoário con-segue produzir praticamente todos os aminoácidos necessários, enquanto os tripanossomatídeos sem simbionte pre-cisam ter o meio de cultura suplementa-do. O mesmo vale para o heme, composto à base de ferro, que faz parte de proteí-nas como a hemoglobina do sangue. “As bactérias sintetizam heme, que acaba sendo importante para o crescimento do protozoário”, conta o biólogo Sergio Schenkman, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coautor do artigo. “Os protozoários que causam doenças não fabricam heme, por isso precisam ser parasitas.” Para o pesquisador, essa lacuna cria neles um ponto fraco que po-de ser usado como arma contra a doença ou para entendê-la.

O objetivo é refinar cada vez mais a compreensão desse sistema integrado. Um enfoque na parceria com Schenk-man, parte do trabalho de Carolina Cat-ta-Preta, é usar o sistema de interferên-cia de RNA, o RNAi, para influir no ciclo celular de A. deanei. É uma ferramenta mais precisa para manipular pontos exa-tos do controle da divisão celular, uma vez que sejam identificadas as sequên-cias-alvo no organismo. Resultados ainda não publicados mostram que esse é um caminho promissor para corroborar e aprofundar o que já foi descrito com a ajuda de drogas que bloqueiam a divi-são das bactérias, entre outros aspectos.

Em colaboração com colegas france-ses, das universidades de Lyon e de Bor-deaux e do LNCC, Cristina também está detalhando a rede metabólica e o meta-bolismo energético desses organismos por meio de análises em computador das sequências genéticas identificadas.

OriGeMAinda há um longo caminho a trilhar para compreender esses organismos compostos, mas o olhar de Cristina vai muito além deles. “Usamos a endos-simbionte em tripanossomatídeos para entender como surgiram as organelas na célula eucariota e também a sua es-trutura e funcionamento otimizados”, conta. “Estabelecer como o protozoário controla a divisão da bactéria tem rela-ção direta com a origem da mitocôndria na célula eucariota.”

Os estudos evolutivos mostram que as bactérias simbióticas das diferentes espécies de tripanossomatídeos têm um único ancestral, conforme mostra o estu-do de 2013 na BMC Evolutionary Biology, cujo primeiro autor é o biólogo João Al-ves, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. O estudo indica ainda a transferência de genes de bactérias para o núcleo da célula hospedeira – tanto das endossimbiontes como de outras já per-didas. Algumas dessas transferências gê-nicas completam vias de síntese de ami-noácidos essenciais para o protozoário.

A origem única do endossimbionte em tripanossomatídeos é mais um pa-ralelo com o surgimento das organelas, como a mitocôndria, que deriva de um único encontro entre microrganismos. A teoria conhecida como endossimbióti-ca, que descreve esse acontecimento, se popularizou a partir dos anos 1970, com

A autossuficiência em relação aos nu-trientes pode ser essencial nas sete es-pécies caracterizadas pela endossim-biose. Elas infectam apenas insetos, de nutrição inconstante. “Protozoários que parasitam vertebrados encontram um ambiente nutricional, no sangue ou no interior das células, mais rico”, compa-ra Cristina. Sua associação com o grupo de Schenkman e o da bióloga Carolina Elias, do Instituto Butantan, tem cerca de uma década e busca elucidar aspectos do ciclo celular do protozoário e enten-der como a bactéria pode coevoluir com a célula hospedeira. “O ciclo celular só era conhecido em T. brucei, que não tem endossimbionte”, lembra o pesquisador da Unifesp. Em sua visão, só é possível compreender um organismo quando se detalha o seu processo de divisão celular para reprodução, a mitose, e quais molé-culas o regulam. No caso dos protozoá-rios e seus endossimbiontes, eles ainda não chegaram lá. “Não sabemos como o hospedeiro controla a formação do anel que provoca a divisão das bactérias.”

Page 53: O medo do estrangeiro

PesQUisa FaPesP 236 z 53

Artigos científicoscAttA-PretA, c. M. et al. endosymbiosis in trypano-somatid protozoa: the bacterium division is controlled during the host cell cycle. Frontiers in Microbiology. v. 6, artigo 520. 2 jun. 2015. AlVes, j. M. P. et al. endosymbiosis in trypanosoma-tids: the genomic cooperation between bacterium and host in the synthesis of essential amino acids is heavily influenced by multiple horizontal gene transfers. BMc evolutionary Biology. v. 13, p. 190. 9 set. 2013.MottA, M. c. M. et al. Predicting the proteins of Ango-monas deanei, Strigomonas culicis and their respective endosymbionts reveals new aspects of the trypa-nosomatidae family. PLos One. v. 8, n. 4, e60209. 2 jun. 2013.MottA, M. c. M. et al. the bacterium endosymbiont of Crithidia deanei undergoes coordinated division with the host cell nucleus. PLos One. v. 5, n. 8, e12415. 26 ago. 2010.

a publicação do livro Origem das células eucariotas, da evolucionista norte-ame-ricana Lynn Margulis, mas é bem mais antiga que isso. Em 1905, o biólogo russo Konstantin Mereschkowski propôs que estruturas de células vegetais teriam sur-gido de uma cianobactéria.

De lá para cá uma infinidade de estu-dos corrobora essa ideia, mas investigar e descobrir como esse processo pode ter acontecido é um privilégio de pou-cos. Os endossimbiontes dos tripanos-somatídeos estão no meio do caminho evolutivo entre bactérias de vida livre e organelas. Tendo perdido a maior parte do seu material genético e da sua parede celular, eles não têm existência autôno-ma na natureza. Na prática, a associação já funciona como um organismo único, embora seja possível “curar” o proto-zoário por meio de tratamento com an-tibióticos. Uma cura útil na pesquisa, mas pouco desejável do ponto de vista do organismo, já que o condena a uma vida em laboratório, com nutrientes for-necidos pelos pesquisadores.

“Vejo a endossimbiose em tripanosso-matídeos como um caso de amor eterno e isso sempre me incentivou a estudar essa história”, diz Cristina, comparando o casamento entre os dois microrganis-mos ao interesse que a move.

Mesmo dedicando a maior parte de seu tempo ao microscópio, ao laborató-rio e a análises em computador, Cristina

afirma que sua ferramenta principal de trabalho é o pensamento. Por isso, há mais de 10 anos ela também se dedica a cursar especializações em filosofia e até ministra disciplinas de filosofia pa-ra a pós-graduação em biofísica. Esse olhar multidisciplinar vai além da ciên-cia de bancada e lhe dá uma visão ampla. “O parasitismo também é uma forma de simbiose, porque o termo simbiose significa viver junto”, afirma, tornando mais abrangente o fascínio por seu objeto de estudo. “São dois lados da moeda em um único ser: o protozoário é ao mesmo tempo parasita do inseto e hospedeiro do endossimbionte.” n FO

tOs

1 c

Ar

oli

nA

cA

ttA

-Pr

etA

/ufr

j 2

Mo

dif

icA

dA

de

cA

ttA

-Pr

etA

et

Al.

, 20

15, F

ro

nti

erS

in m

iCr

obi

olo

gy

o simbionte (verde) lidera o processo de divisão junto ao núcleo (azul). o cinetoplasto (vermelho) se divide em seguida. estruturas aparecem em reconstrução tridimensional (ao lado) e ao microscópio eletrônico de transmissão (abaixo)

1

2

Page 54: O medo do estrangeiro

54 z outubro DE 2015

Plantas medicinais podem reduzir lesões locais

causadas pela picada da jararaca

Por volta de 30 mil pessoas são picadas por serpentes no Brasil a cada ano, segundo dados do Mi-nistério da Saúde. As principais

vilãs dessa lista, responsáveis por quase 80% dos casos, são as jararacas, cobras do gênero Bothrops, presentes em todas as regiões brasileiras. A recomendação médica é expressa: quem é picado deve receber o soro antiofídico com urgência. “O soro tem ação sistêmica. Consegue minimizar os distúrbios de coagulação, a insuficiência renal e evitar a morte, mas, no caso das jararacas, não combate lesões locais sérias, como feridas e ne-croses, que podem levar à amputação de pernas e braços”, afirma o biólogo Carlos Fernandes, do Laboratório de Bio-logia Molecular Estrutural (LBME) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu. Buscando alternativas, ele demonstrou que plantas usadas por co-munidades tradicionais e indígenas com fins medicinais são eficazes para tratar as lesões locais – os resultados mais re-centes foram publicados em julho na revista PLoS One. “Esperamos que uma pomada, por exemplo, possa num futuro próximo complementar o efeito do soro.”

biologia molecular y

Aliadas do soro antiofídico

Antes de demonstrar a ação dessas plantas, o grupo da Unesp precisou des-vendar um enigma sobre o veneno da jararaca. Nos anos 1980, estudos inter-nacionais indicaram que, no veneno da jararaca, as proteínas fosfolipases A2, comuns no veneno de muitas serpentes, apresentam modificações em sua estrutu-ra que potencializam seus efeitos locais.

Fernandes e colegas recorreram à cris-talografia, principal técnica usada para compreender a estrutura tridimensional de proteínas, e identificaram dois aminoá-cidos que ocupam posições diferentes nas fosfolipases alteradas. Eles mostraram ainda que os dois tipos de fosfolipases agem de maneira distinta sobre as célu-las musculares. Enquanto as tradicionais provocam o rompimento da célula, as modificadas inicialmente causam danos menores: elas perfuram a membrana ce-lular e geram um desequilíbrio no flu-xo de íons que leva a uma morte celular aparentemente mais lenta. Em conjunto, porém, as duas formas aceleram a for-mação e ampliam a extensão das feridas. “Inicialmente buscamos compreender a organização espacial dos aminoácidos e, em seguida, descrever os mecanismos de

Francisco Bicudo

ed

ua

rd

o c

esa

r

danos às membranas das células”, conta o pesquisador, que publicou as conclusões em 2013 e 2014 no periódico Biochimica et Biophysica Acta. “Eram informações necessárias para buscar um composto capaz de completar a soroterapia”, diz.

eFeito protetorNessa procura, o grupo da Unesp testou moléculas presentes em três espécies de plantas medicinais: o ácido aristolóqui-co (encontrado em uma planta da Mata Atlântica conhecida como jarrinha ou papo-de-peru), o ácido rosmarínico (da erva-baleeira, nativa da mesma mata) e o ácido cafeico (abundante nas folhas do boldo-baiano ou assa-peixe, de origem africana). Em laboratório, os pesquisa-dores analisaram o que ocorre com os músculos de camundongos em contato só com o veneno da jararaca e após a adição de cada um dos compostos. “Na primeira situação o músculo é danificado e perde a capacidade de contrair. Já na segunda, com qualquer dessas substân-cias, ele se mantém preservado”, explica Marcos Fontes, coordenador do LBME.

O próximo passo é buscar parcerias com instituições com reconhecida com-

Page 55: O medo do estrangeiro

peSQUiSA FApeSp 236 z 55

petência na realização de testes com medicamentos, como o Instituto Butan-tan e a Fundação Oswaldo Cruz, para iniciar ensaios pré-clínicos que possam levar à fabricação de um emplastro ou uma pomada de aplicação local. Cata-rina Teixeira, do Laboratório de Farma-cologia do Butantan, recentemente co-meçou a investigar o efeito antiofídico de algumas substâncias de origem ve-getal e considera a diversidade da flora brasileira um arsenal valioso para en-frentar esse problema de saúde pública. Em um estudo feito em seu laboratório, Mônica Kadri, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, confirmou que o extrato da casca de Tabebuia aurea, ipê comum no Pantanal, tem efeito an-ti-inflamatório e cicatrizante e pode mi-nimizar a ação do veneno da jararaca no local da picada.

“Tentar associar o tratamento com plantas à soroterapia é uma linha de pes-quisa antiga, mas precisamos de mais articulação entre pesquisadores de di-ferentes especialidades para torná-la realidade”, comenta Catarina. O desa-fio imediato dos grupos é verificar se o efeito observado in vitro se mantém in vivo. “O que desejamos”, diz Fontes, “é que um dia, ao ser picada, a pessoa possa de imediato usar uma pomada no local e buscar a aplicação do soro”. n

Projetos1. estudos estruturais e funcionais com proteínas de veneno de serpentes nativas, recombinantes e com-plexadas com inibidores vegetais (n° 2012/06502-5); Modalidade auxílio à Pesquisa – regular; Pesquisador responsável marcos roberto de mattos Fontes (unesp); Investimento r$ 743.409,00.2. estudos estruturais de fosfolipases a2 neurotóxicas (nº 2013/17864-8); Modalidade bolsa no país – Pós-doutora-do; Pesquisador responsável marcos roberto de mattos Fontes (unesp); Beneficiário carlos alexandre Henrique Fernandes (unesp); Investimento r$ 168.748,00.3. instituto Nacional de ciência e Tecnologia em Toxinas (nº 2008/57898-0); Modalidade Projeto Temático-iNcT; Pesquisador responsável osvaldo augusto brazil este-ves sant’anna; Investimento r$ 3.974.330,00 (FaPesP/cNPq/caPes).

artigos científicosFerNaNdes, c. a. H. et al. structural basis for the inhibi-tion of a phospholipase a2-like toxin by caffeic and aris-tolochic acids. PLoS One. v. 10, n. 7, e0133370. 20 jul. 2015.FerNaNdes, c. a. H. et al. a structure-based proposal for a comprehensive myotoxic mechanism of phospholipase a2-like proteins from viperid snake venoms. Biochimica et Biophysica Acta. v. 1844, n. 12, p. 2265-76. 30 set. 2014.FerNaNdes, c. a. H. et al. structural bases for a com-plete myotoxic mechanism: crystal structures of two non-catalytic phospholipases a2-like from bothrops brazili venom. Biochimica et Biophysica Acta. v. 1834, n. 12, p. 2772-81. dez. 2013.

Bothrops insularis ou jararaca-ilhoa, natural da ilha de

Queimada grande, no litoral paulista

Page 56: O medo do estrangeiro

56 z outubro DE 2015

Pesquisas determinam a influência de grande falha na crosta do Brasil

na formação das bacias sedimentares do Paraná e do Parnaíba

Imensa cicatriz na crosta terrestre que cruza o Brasil, o lineamento transbra-siliano teve influência na formação das bacias sedimentares do Paraná e do

Parnaíba. Embora a hipótese fosse discu-tida há 40 anos, desde que essa estrutura geológica foi descoberta, apenas agora um grupo de pesquisadores das univer-sidades de Brasília (UnB), Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Estadual de Campinas (Unicamp) conseguiu avançar no entendimento do papel desempenha-do pelo lineamento na formação dessas bacias. Os geólogos produziram um re-trato mais preciso do subsolo das áreas

GeoloGia y

A fratura-mãe

por onde passa o lineamento, que, em quase sua totalidade, se encontra enco-berto por sedimentos.

As medições feitas na crosta e no manto (camada geológica inferior à crosta) mos-tram que a quebra do lineamento formou os primeiros depocentros, pontos de acu-mulação de sedimentos que culminam na formação das bacias. “Muitos outros locais no mundo possuem bacias que ti-veram seus depocentros relacionados à reativação de falhas geológicas”, explica Julia Curto, pesquisadora da UnB e pri-meira autora de um artigo publicado em agosto na Tectonophysics. Nem sempre,

André Julião

porém, os lineamentos dão início a uma deposição de sedimentos. É preciso que as falhas sejam reativadas – se movimentem – de tempos em tempos, “criando espaços que acomodem esses sedimentos”, diz.

As novas análises também geraram um retrato mais preciso do relevo do embasa-mento das bacias do Paraná e do Parnaíba. O embasamento é a camada mais profunda e antiga, composta por rochas mais densas. É sobre elas que os sedimentos, decorren-tes do processo de erosão, se depositam, formando as bacias sedimentares.

Para conseguir o retrato do que está por baixo da bacia, os geofísicos cruzaram

Parque Nacional de

Sete Cidades, no Piauí:

lineamento transbrasiliano corta a região

1

Page 57: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 57

O lineamento divide o território na-cional em duas grandes regiões. De um lado, a Amazônia, uma porção do Cen-tro-Oeste e pequenos trechos do Ceará e Piauí; do outro, as regiões Sul, Sudeste e todo o resto do Nordeste. Ele começa na Argentina, passa pelo Paraguai e vai até o litoral do Ceará, totalizando 5 mil quilômetros (km) de extensão. Regis-tra profundidades de até 40 km e, em alguns trechos, pode ter 200 km de lar-gura. Como se formou quando a América do Sul e a África ainda faziam parte de um mesmo supercontinente, Gondwana, ele tem uma continuação no continente africano, o lineamento Kandi, que cruza o Saara por cerca de 4 mil km.

Essa falha na crosta originou-se no pe-ríodo geológico chamado Ciclo Brasilia-no, entre 750 milhões e 540 milhões de anos atrás, quando o cráton do São Fran-cisco se chocou com o cráton amazônico. Crátons são pedaços antigos relativamen-te estáveis das placas tectônicas. A colisão desses dois blocos gerou movimentação de rochas, misturou as mais recentes com as mais antigas e juntou rochas pobres e ricas em minerais magnéticos. Também foram geradas outras falhas geológicas. Algumas delas foram preenchidas por sedimentos que se depositaram e come-çaram a formar as bacias.

Depois de consolidado, o lineamento voltou a se movimentar. A primeira vez foi no Cambriano, cerca de 540 milhões de anos atrás, e depois no Mesozóico, entre 252 milhões e 65 milhões de anos atrás. Essas movimentações abalaram ainda mais a estrutura do lineamento, misturando mais as rochas e sedimentos à sua volta. Hoje não há choques entre as bordas dos crátons. Eventualmente, em intervalos de milhões de anos, podem ocorrer pequenos movimentos nas bor-das, mas o bloco como um todo é estável.

Os dados obtidos no projeto do linea-mento transbrasiliano continuarão sendo analisados. Uma das ideias é fazer ma-peamentos mais detalhados de algumas áreas. Eles podem desvendar com mais precisão a origem das bacias sedimentares que o lineamento cruza. “O natural agora é ir aumentando o zoom”, conclui Julia. n

artigo científicoCURTo, J. B. et al. Crustal framework of the northwest Paraná Basin, Brazil: insights from joint modeling of magnetic and gravity data. Tectonophysics. v. 655, p. 58-72. 1º ago. 2015.

o lineamento transbrasiliano foi importante para a formação das bacias do Parnaíba e do Paraná (mapa). Na imagem de satélite, a falha geológica Serra Negra, perto da cidade de Bom Jardim de Goiás, em Goiás: um dos poucos lugares em que o lineamento não se encontra totalmente encoberto

dados magnéticos e de gravimetria. Eles são obtidos por equipamentos embar-cados em aviões que sobrevoam a área de estudo e detectam pequenas mudan-ças nos campos gravitacional e magné-tico da Terra. Esses dois campos variam conforme a densidade das rochas e suas propriedades magnéticas. Os aparelhos medem os contrastes entre rochas mais e menos densas e com maior ou menor intensidade de magnetização, formando mapas detalhados do subsolo.

Foi a primeira vez que os dois méto-dos foram usados simultaneamente para estudar o lineamento. “O que havia era uma estimativa apenas de gravimetria, que pode levar a grandes imprecisões”, diz Reinhardt Fuck, pesquisador da UnB. Parte dos levantamentos usados pelos pesquisadores foi feita nos anos 1970 no projeto Radam Brasil, que mapeou pe-la primeira vez o subsolo brasileiro. Foi compilando os dados desses voos que o geólogo Carlos Schobbenhaus, na época no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), descobriu o lineamen-to. Os dados mais recentes foram obtidos de sobrevoos realizados pela Agência Na-cional de Petróleo, Gás Natural e Biocom-

bustíveis (ANP). “Depois de muito tem-po em que praticamente só se explorou petróleo no mar, o Brasil começa a olhar para o continente”, diz Hilário Bezer-ra, professor da UFRN e um dos autores do estudo. As pesquisas do grupo fazem parte de um projeto financiado pela Pe-trobras que se encerra em 2015.

UMA FALHA BRASILEIRA“O trabalho traz resultados muito inte-ressantes, pois, até então, alguns autores chegavam a contestar se o lineamento realmente passava por baixo da bacia do Paraná”, afirma Marcelo Assumpção, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), que não participou do projeto. Na ba-cia do Parnaíba, ele diz, a influência do transbrasiliano é mais evidente, já que o lineamento reaparece do outro lado, no Ceará. “Agora conseguimos ver exa-tamente por onde passa o lineamento debaixo da bacia e ainda descobrimos vá-rias regiões subterrâneas que não conhe-cíamos”, diz David Castro, pesquisador da UFRN que publicou no ano passado um estudo sobre o tema.Fo

ToS

1 iC

MB

io /

MM

a 2

Go

oG

le M

aP

S /

ea

RT

h /

JUli

a C

UR

To

MA

pA S

aN

dR

o C

aST

elli

Bacia do Parnaíba

Bacia do Paraná

lineamentotransbrasiliano

2

Page 58: O medo do estrangeiro

Experimento mostra que informação quântica transmitida

por fótons resiste aos efeitos da turbulência do ar

O interesse de Osvaldo Farías pela influência da turbulência do ar na propagação da luz levou-o a visitar, há alguns anos, uma

exposição em Nova York com o quadro A noite estrelada, de Vincent van Gogh (1853-1890). O físico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, queria ver de perto a famosa tela, alvo de estudos feitos por colegas físicos que analisaram suas formas geométricas e concluíram que os vórtices pincelados pelo pintor holandês possuem uma ordem matemática semelhante à das correntezas turbulentas de ar, da água e dos fluidos em geral. Esse paralelismo entre arte e ciência pode ser evocado para explicar um trabalho recente do pesquisador.

Da mesma forma que é possível reco-nhecer a luz distorcida das estrelas no firmamento retratado por Van Gogh, Fa-rías e uma equipe internacional de físicos demonstraram que, se forem codificadas quanticamente da maneira certa, as infor-mações transportadas por um feixe de luz através da atmosfera turbulenta da Terra podem ser recuperadas. O resultado do estudo, publicado em fevereiro deste ano na revista Scientific Reports, abre caminho para o desenvolvimento de tecnologias de transmissão de mensagens confidenciais,

FÍSICA y

Segredos da luz

teoricamente à prova de espionagem, por meio de fontes de laser montadas em ter-ra ou embarcadas em navios, aeronaves e satélites. “Nosso experimento foi uma prova de princípio”, explica Farías. “Gera-mos e transmitimos os estados de luz ne-cessários para implementar um protocolo de criptografia quântica.” Hoje existem sistemas comerciais de criptografia quân-tica, mas eles usam a rede de fibra óptica, e não a atmosfera, para transmitir dados.

A criptografia quântica é considerada mais segura do que a tradicional. É qua-se impossível ler ou copiar uma chave criptográfica transmitida por meio das propriedades quânticas das partículas que constituem a luz, os fótons. Diferen-temente da criptografia clássica, a quân-tica permite ao receptor da chave, que depois será usada para decodificar uma mensagem secreta, descobrir qualquer tentativa de interceptação. Apesar da inviolabilidade teórica, a estratégia não se mostrou totalmente à prova de espio-nagem. Nos últimos anos, pesquisadores conseguiram violar sistemas comerciais que usam criptografia quântica.

A informação a ser transmitida nessas mensagens pode ser escrita em um código binário semelhante ao dos computadores usando uma propriedade quântica dos

Igor Zolnerkevic

Ima

gem

de

fun

do

Fr

Ag

mEn

to

dA

ob

rA

A N

oit

e es

trel

Ad

A d

E V

InC

Ent

VA

n g

og

h I

nfo

gr

áfI

co

An

A p

Au

lA

CA

mp

oS

Ilu

Str

ão

FA

bIo

ot

ub

o

Page 59: O medo do estrangeiro

fótons chamada de polarização. Essa pro-priedade pode ser visualizada como uma flecha apontando para um certo sentido – por exemplo, para cima ou para baixo. Assim, um fóton com flecha para cima po-deria representar um bit de informação do tipo 0, enquanto um fóton de flecha para baixo, um bit do tipo 1. As leis da mecâni-ca quântica permitem ainda que um fóton apresente uma superposição de estados. No contexto da criptografia, esse fenô-meno, que diferencia o mundo clássico do quântico, tornaria impossível para um espião determinar qual estado foi enviado.

Há entretanto um problema em usar a polarização dos fótons dessa maneira. Tanto o emissor como o receptor da men-sagem precisam concordar exatamente com as definições de “para cima” e “para baixo”. “Imagine um cenário de guerra em que alguém em terra precisa enviar uma mensagem secreta para um navio no mar”, sugere o físico Stephen Walborn, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colaborador de Farías. “O balan-ço para esquerda e para direita do navio vai criar erros na recepção da mensagem.”

Para evitar esse problema, Walborn e o físico Leandro Aolita, também da UFRJ, propuseram em 2007 uma nova maneira de codificar a informação quântica. Eles perceberam que poderiam preparar dois estados diferentes de fótons para repre-sentar os bits 0 e 1, cuja aparência não muda quando o receptor da mensagem gira ou balança em relação ao emissor. Um 0 seria codificado por um fóton cuja fase espacial percorre uma trajetória em espiral, girando em sentido horário, enquanto sua polarização gira, na mes-ma proporção, em sentido anti-horário. O 1 seria codificado por um fóton com giro da fase e da polarização em senti-dos contrários ao 0. “Esses estados não sofrem mudanças quando há rotações”, explica Walborn.

A ideia permaneceu como uma possi-bilidade teórica até 2011, quando Aolita e Walborn conheceram o físico Fabio Sciarrino, da Sapienza Universidade de Roma, Itália. O grupo de Sciarrino vem realizando experimentos com fótons de diferentes tipos de fases giratórias. Es-ses fótons são preparados dessa maneira quando um feixe de laser atravessa um filtro especial chamado de q-plate, de-senvolvido pelo físico Lorenzo Marrucci, da Universidade de Nápoles Federico II, também na Itália. Os pesquisadores de-

cidiram colaborar em um experimento que usaria filtros q-plate tanto para ge-rar os fótons propostos por Walborn e Aolita quanto para detectá-los.

Farías colaborou com o experimen-to desenvolvendo um modo de simular em laboratório o efeito que a turbulên-cia do ar teria sobre o feixe de fótons transmitindo a informação quântica. “A turbulência causada por flutuações da temperatura e da densidade do ar age co-mo uma lente que distorce o feixe de luz de maneira aleatória, como as miragens sobre o asfalto quente”, explica Farías. “Construí uma máquina que mistura, por meio de ventiladores, o ar aquecido por resistências elétricas com o ar frio do la-boratório. Quanto maior a diferença de temperatura entre o ar quente e o frio, maior o grau de turbulência. Assim, a máquina simula o efeito da propagação da luz por alguns quilômetros de ar.”

Com o experimento, os pesquisadores provaram que o esquema de Walborn e Aolita funciona. Verificaram que, embo-ra a turbulência distorça o feixe laser, o filtro q-plate receptor consegue captar fótons que preservaram sua informação quântica. “Mostramos que a informação detectada é confiável”, diz Farías.

“A possibilidade de transmitir infor-mação quântica codificada em estados que não dependam do alinhamento re-lativo entre o transmissor e o receptor é interessante para aplicações envolvendo estações móveis”, comenta Carlos Mon-ken, especialista em óptica quântica e turbulência da Universidade Federal de Minas Gerais. n

Artigo científicoFArÍAS, o. J. et al. resilience of hybrid optical angular mo-mentum qubits to turbulence. Scientific reports. fev. 2015.

peSQuISa fapeSp 236 z 59

menSagenS gIratórIaSInformação quântica sobrevive a viagem através de ar turbulento

Ventos turbulentos

preparação do sinal

detecção do sinal

Fonte de laser

Feixe de fótonsFeixe

torcido

Fóton

polarização

preparadas por um filtro especial, combinações de rotação da trajetória e da polarização dos fótons de um feixe de luz podem representar os bits 0 e 1 de um sinal. A turbulência do ar no caminho distorce a rotação de vários dos fótons. mesmo assim, alguns sobrevivem à viagem e preservam a informação detectada

BIt-0 Feixe gira em sentido horário e polarização, em sentido anti-horário

BIt-1 Feixe gira em sentido anti-horário e a polarização, em sentido horário

Page 60: O medo do estrangeiro

60 z outubro DE 2015

Descoberta de sistema com duas estrelas de

alta massa em processo de fusão indica um

caminho evolutivo diferente para esses astros

Rota alternativa

da Universidade de São Paulo (IAG-USP) e é o primeiro autor do artigo que repor-ta a descoberta, a ser publicado neste mês no periódico Astrophysical Jour-nal. “O VFTS 352 é o mais interessante e importante, pois é o de maior massa e mais quente.” As estrelas do sistema binário já estão compartilhando cerca de 30% do seu envelope. Com o passar do tempo, provavelmente se tornarão uma estrela só. Mas isso não vai acon-tecer tão cedo. “Embora o sistema deva evoluir muito rápido para o tempo das estrelas, não veremos nada radical nos próximos séculos”, afirma o astrofísico Augusto Damineli, também da USP e coautor do trabalho.

O sistema atrai interesse por permi-tir um estudo prático de um caminho evolutivo diferente para estrelas de alta massa. Até recentemente se imaginava que elas se formassem isoladamente, e não também em duplas como parece ser o caso do sistema VFTS 352. “A teo-ria de evolução estelar foi feita em cima de estrelas menos massivas e isoladas”, diz Cássio Leandro Barbosa, astrônomo especialista em estrelas de alta massa que não participou do estudo. “Nesse

Salvador Nogueira

caso, temos uma violação dupla dessas condições, de modo que elas devem ser diferentes do que prevê a teoria.” As pri-meiras medições indicam que as estre-las do sistema são mais quentes do que advoga o modelo tradicional. Sua tem-peratura ultrapassa os previstos 40 mil Kelvin (K). “Descobertas recentes como essa mostram que pelo menos 70% das estrelas do tipo O interagem em sistemas duplos”, diz Damineli. Um aspecto im-portante é que estrelas desse tipo são as principais fontes de oxigênio existentes no Universo.

As estrelas são classificadas de acordo com a temperatura. Esta, por sua vez, pode ser associada à massa, ao menos quando as estrelas estão na chamada se-quência principal e usam hidrogênio pa-ra alimentar as reações nucleares que as fazem brilhar. As do tipo O são as maio-res de todas, seguidas pelas dos tipos B, A, F, G, K e M. O Sol, de porte modesto, é do tipo G.

A descoberta do sistema binário foi feita por dois projetos paralelos, o VLT--Flames Tarantula Survey e o The Taran-tula Massive Binary Monitoring. Am-bos usaram o Very Large Telescope, do

A descoberta de um objeto as-trofísico dos mais raros e inco-muns no Cosmos, feita por um grupo internacional de pesqui-

sadores com participação de brasileiros, pode levar a um entendimento mais refi-nado de como evoluem as estrelas de alta massa, muito maiores e mais luminosas que o Sol. O objeto é conhecido pela sigla VFTS 352 e se localiza na nebulosa de Tarântula, também conhecida como 30 Doradus, que faz parte da Grande Nuvem de Magalhães, uma das galáxias-satélite da Via Láctea, a cerca de 160 mil anos-luz de distância da Terra. Ele é composto por duas estrelas azuis do tipo O, com uma massa combinada 58 vezes maior que a do Sol, que estão numa fase chamada de “overcontato”. A expressão significa que uma estrela está basicamente colada na outra, compartilhando seu envelope, sua região mais externa. Segundo os astrofí-sicos, essa situação indica que as estrelas devem estar se fundindo.

“Conhecemos apenas outros três sis-temas com essa configuração”, explica Leonardo Almeida, que faz estágio de pós-doutorado no Instituto de Astrono-mia, Geofísica e Ciências Atmosféricas

astrofísica y

Page 61: O medo do estrangeiro

Observatório Europeu do Sul (ESO), em suas observações. O achado foi consi-derado tão importante que motivou até observações feitas com o disputado Te-lescópio Espacial Hubble.

FábRica de elemeNtoSO Big Bang, evento que marca o início do Universo, produziu em quantidades sig-nificativas apenas dois elementos: hidro-gênio e hélio. Teria sido desses átomos primordiais que surgiram as primeiras estrelas, agregadas a partir de nuvens gasosas pela força gravitacional. Con-forme a massa começa a se contrair pela gravidade no centro da estrela, a pressão e a temperatura internas se tornam tão grandes que os núcleos de hidrogênio começam a se fundir, formando hélio. É essa a reação que produz a energia do astro. Contudo, quando o hidrogênio no centro da estrela se esgota, o processo recomeça com elementos cada vez mais pesados. Primeiro hélio, depois oxigênio e então ladeira acima na tabela periódi-ca, até chegar ao ferro.

Quanto mais massa tem uma estrela, maiores a pressão e a temperatura inter-nas, e maior a capacidade de produzir

elementos pesados. Ao fim de sua vida, quando a fusão nuclear já não é mais possível, as estrelas de tipo O desapa-recem em violentas explosões conheci-das como supernovas. São esses eventos que produzem todos os elementos acima do ferro. Graças a esse ciclo promovido pelas estrelas há mais de 13 bilhões de anos, surgiram os átomos que compõem a Terra e seus habitantes.

Os detalhes das proporções de pro-dução desses elementos, no entanto, ainda estão longe de serem resolvidos. "Os astrônomos costumam fazer a con-tabilidade da produção dos elementos químicos admitindo que as estrelas são isoladas", afirma Damineli. “Descobertas como a VFTS 352 exigem que se refa-çam as contas, levando em considera-ção a elevada duplicidade das estrelas de alta massa.”

Em seu estágio final, o sistema VFTS 352 pode produzir o que os astrônomos conhecem como uma explosão de raios gama de longa duração. “Esses objetos, quando explodem a 12 bilhões de anos-luz de nós, chegam a interromper as teleco-municações, se seu eixo de rotação está na nossa direção”, diz Damineli. “Se morrer

dessa forma, por estar a menos de 200 mil anos-luz de nós, mais que um espetáculo, esse sistema será um potencial problema para possíveis planetas habitados que fi-carem na direção do feixe de raios gama.”

Apontados para a Terra, os raios gama não chegariam a atravessar a atmosfe-ra, mas poderiam detonar a camada de ozônio e, assim, expor a vida aos nocivos raios ultravioleta solares. Isso mostra como certos eventos astrofísicos podem ser hostis à vida, mesmo a distâncias gi-gantescas. Contudo, Leonardo Almeida lembra que esse evento só acontecerá daqui a milhões de anos: “E a probabi-lidade de o feixe de raios gama estar na nossa direção é muito, muito pequena”. n

ProjetoDistâncias precisas de aglomerados jovens através de binárias eclipsantes massivas (nº 2012/09716-6); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável augusto Damineli (iaG-UsP); Beneficiá-rio Leonardo almeida; Investimento r$ 239.299,28 e Us$ 44.400,05.

artigo científicoaLMEiDa, L. a. et al. Discovery of the massive overcon-tact binary Vfts 352: Evidence for enhanced internal mixing. astrophysical Journal. No prelo.

Foto

Na

sa, E

sa, D

. LEN

No

N E

E. s

aB

Bi (

Esa

/st

sci)

, J. a

ND

Erso

N, s

. E. D

E M

iNk

, r. V

aN

DEr

Ma

rEL

, t. s

oh

N, E

N.

Wa

LBo

rN

(st

sci)

, N. B

ast

iaN

(E

xc

ELLE

Nc

E c

LUst

Er, M

UN

ich

), L

. BE

DiN

(iN

af)

, E. B

rE

ssEr

t (

Eso

), P

. cr

oW

th

Er

(UN

iVEr

siD

aD

E D

E sh

Effi

ELD

), a

. DE

ko

tEr

(U

NiV

Ersi

Da

DE

DE

aM

stEr

), c

. EV

aN

s (U

ka

tc

/st

fc),

a. h

Err

Ero

(i

ac

), N

. La

NG

Er (

aif

a),

i. P

La

tais

(Jh

U),

E h

. sa

Na

(U

NiV

Ersi

Da

DE

DE

aM

stEr

) iN

Fog

Fic

o a

Na

Pa

UL

a c

aM

Po

s

Localizadas na nebulosa de tarântula, que faz parte da Grande Nuvem de Magalhães, uma das galáxias-satélite da Via Láctea, as estrelas (ponto destacado na imagem ao lado) estão numa fase denominada “overcontato”. Uma está colada na outra, compartilhando sua região mais externa. a temperatura em certas partes do sistema ultrapassa os 40 mil kelvin (k), mais do que preveem os modelos atuais de formação estelar

o sistEMa Vfts 352

as duas estrelas têm massa combinada 58 vezes maior que a do sol e partilham 30% de sua constituição

3 2 3 4 3 6 3 8 4 0 4 2 4 4 4 6 4 8

temperatura efetiva (em mil k)

peSQUiSa FapeSp 236 z 61

Page 62: O medo do estrangeiro

62 z outubro DE 2015

tecnologia biotecnologia y

Cabras transgênicas

Marcos de oliveira

a cabra Gluca vive num abrigo especial na Uni-versidade de Fortaleza (Unifor), no Ceará. Trata-se do primeiro caprino transgênico da América Latina produzido pela técnica de

clonagem com células geneticamente modificadas. O nome vem de uma proteína que ela tem no leite, chamada de glucocerebrosidase, que atua no processamento de glicocerebrosídeos, um tipo de gordura celular. Quem não a produz tem comprometimento de órgãos como fígado, baço e no sistema nervoso central, além de dor nos ossos. Os sintomas fazem parte da caracterização clínica da doença de Gaucher (pronuncia-se Gochê), uma enfermidade genética rara. A Gluca é parte de um experimento iniciado na Unifor para que cabras transgê-nicas tenham no leite a glucocerebrosidase, que, depois de extraída e purificada, poderá ser transformada em um biofármaco para combater essa doença. Em outubro, o rebanho transgênico instalado no Núcleo de Biologia Experimental (Nubex) da universidade, formado por Gluca e uma cabra clonada da própria Gluca chama-da Beta, poderá aumentar. A primogênita está prenhe de dois ou três filhotes – não foi possível definir com precisão pelo ultrassom – com chance de 50% de cada filhote ser transgênico. Isso acontece porque o pai não é um animal transgênico.

Quando der à luz, será a primeira vez que Gluca, que nasceu em março de 2014, terá uma lactação normal. Quando ela tinha 6 meses de idade, os pesquisadores induziram a lactação por meio de hormônios para com-provar a presença da proteína no leite. “Quando Gluca estiver lactando, teremos muito mais leite disponível para verificação de sua composição, funcionalidade e testes de purificação”, diz Marcelo Bertolini, que coordenou o projeto na Unifor, onde ficou por seis anos. Desde julho deste ano ele é professor da Universidade Federal do Rio

animais recebem genes

humanos e produzem proteínas

no leite para tratamento

de doenças

gluca: a cabra transgênica da Unifor que tem no leite uma proteína humana para tratamento da doença de gaucher

Page 63: O medo do estrangeiro

peSQUiSa FapeSp 236 z 63

Foto

Un

ifo

r i

lUSt

ra

çõ

eS

free

pik

.co

m (

fra

sco

), t

ita

nU

i.co

m (

píl

Ul

as)

, zc

oo

l.c

om

.cn

(le

ite)

Grande do Sul (UFRGS). “Na lactação induzida, a pre-sença da glucocerebrosidase no leite da Gluca variou de 4 a 8 gramas por litro (g/l). Se tivermos a média de 5 g/l com quatro cabras, estará garantido o número de animais necessários para suprir todos os cerca de 700 pacientes que têm a doença de Gaucher no Brasil”, diz Bertolini. Com a Gluca e a Beta, e se os dois ou três cabritos forem fêmeas e tiverem a proteína no leite, estará completo o rebanho para a produção do biofármaco.

A disponibilidade do medicamento brasileiro, no entan-to, não ocorrerá imediatamente. Será preciso purificar a molécula de proteína do leite e produzir um fármaco in-jetável, em um processo que pode demorar cinco anos ou mais. A intenção do grupo de pesquisadores é esperar as primeiras análises com o leite natural da Gluca para buscar parcerias em empresas e institutos de pesquisa, requisito fundamental na realização dos testes clínicos e submissão do medicamento à Agência Nacional de Vigilância Sanitá-ria (Anvisa) para aprovação. A empresa Quatro G, parceira do grupo da Unifor, vai receber o leite da Gluca para puri-ficar a proteína. No início do projeto, a empresa, que está sediada no Parque Tecnológico da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em Porto Alegre, fez a produção das sequências genéticas para a inserção do gene da glucocerebrosidase no genoma da cabra.

O desenvolvimento da Gluca se deu pela técnica de clo-nagem com células geneticamente modificadas. O primeiro passo é introduzir uma sequência genética complexa con-tendo o gene humano da proteína glucocerebrosidase em células de uma cabra. Quando o gene se incorpora ao ge-noma do animal, as melhores células são escolhidas pelos pesquisadores para inserção nos ovócitos, que são as células reprodutoras femininas, cujo DNA materno fora removi-do. Depois, o embrião clonado e transgênico é transferido para uma cabra não transgênica para o estabelecimento

Page 64: O medo do estrangeiro

64 z outubro DE 2015

da gestação. “A eficiência desse método ainda é baixa, mas o resultado foi positivo considerando o altíssimo valor científico do caprino transgênico”, explica o médico veterinário Leonardo Tondello Martins, professor do Centro de Ciências da Saúde da Unifor. “No experimento que resultou no nascimento da Gluca foram transferi-dos 858 embriões, divididos entre 60 re-ceptoras. Das 11 prenhezes identificadas, nasceu um animal saudável e transgênico, a Gluca”, conta Leonardo. O projeto re-cebeu recursos de R$ 2,4 milhões da Fi-nanciadora de Estudos e Projetos (Finep) no Programa de Subvenção Econômica captado pela Quatro G, em parceria com os pesquisadores da Unifor. Os animais, da raça anglo-nubiano, foram cedidos pela Esperança Agropecuária, do Grupo Edson Queiroz, que também está ligado à fundação de mesmo nome que man-tém a Unifor.

origenS diStintaSA produção de um medicamento con-tra a doença de Gaucher no país poderá levar o governo brasileiro a economi-zar mais de R$ 140 milhões por ano – R$ 200 mil por paciente – com medica-mentos importados para os doentes que os recebem gratuitamente. “Estimamos, com dados que temos do mercado, que o uso de animais como biorreatores para

fármacos complexos pode ficar até 80% mais barato em relação a outras técnicas biotecnológicas”, diz Bertolini.

Os medicamentos utilizados contra a doença de Gaucher são o Cerezyme, produzido pela técnica de DNA recom-binante, caracterizada pela inserção de um gene de uma proteína em células de ovário de hamster chinês, desenvolvido pela empresa norte-americana Genzyme Corporation, atualmente uma subsidiária da francesa Sanofi. O outro é o Uplyso, da israelense Protalix, que utiliza células de cenoura transgênica na fabricação do fár-maco. Esses medicamentos não possuem a própria glucocerebrosidase, mas subs-tâncias que promovem o mesmo efeito.

A produção de medicamentos utili-zando animais como plataforma tem no mundo dois exemplos que chegaram ao mercado, segundo a Sociedade Interna-cional de Tecnologia Transgênica (ISTT, na sigla em inglês). O ATryn foi o primei-ro, aprovado em 2006 na Europa e em 2009 nos Estados Unidos. Ele foi desen-volvido pela Genzyme Transgenics Cor-poration (GTC) Biotherapeutics, hoje da norte-americana rEVO Biologics, que dis-ponibiliza a antitrombina alfa a partir do leite de cabras transgênicas. A substância é usada no tratamento de tromboem-bolismo em cirurgias de pacientes com deficiência congênita da antitrombina

1

2

3 4

produção biotecnológica de animais transgênicos na Unifor foi realizada pela primeira vez no brasil a clonagem com células geneticamente modificadas

É produzida em laboratório

uma sequência de Dna contendo

o gene da glucocerebrosidase

humana e um promotor

genético para que a proteína

só se expresse no leite

células da orelha

de uma cabra são

multiplicadas a

partir de uma

pequena biópsia

auricular

É realizado o procedimento de

transfecção celular com uma

descarga elétrica. abrem-se

poros nas membranas das células

caprinas que permitem a entrada

e integração da construção do

Dna no genoma

as melhores células

transgênicas são

escolhidas e inseridas

em ovócitos caprinos

que tiveram seu Dna

materno removido

Descarga elétrica

núcleo é retirado do ovócito

material genético

hereditária, doença que provoca coágu-los no interior dos vasos sanguíneos. O segundo é o Ruconest, aprovado em 2013, medicamento usado para o angioedema hereditário, mal que atinge pessoas que nascem com deficiência da enzima ini-bidora de esterase C1 (C1INH). A enfer-midade provoca inchaços dolorosos em partes moles do corpo, principalmente no abdômen, rosto e genitais. A solução en-contrada pela empresa que desenvolveu o medicamento, a holandesa Pharming, foi expressar e purificar a enzima no leite de coelhas transgênicas. Para o agrôno-mo Elibio Rech, pesquisador na Embra-pa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, as empresas farmacêuticas estão muito interessadas em fazer fárma-cos com animais. “Considero o produto desenvolvido [pelo grupo da Unifor] de extrema importância científica e tecno-lógica para o país”, diz Rech.

taMbéM no cearáNo Brasil, o experimento pioneiro na área de animais transgênicos também aconteceu em Fortaleza, na Universida-de Estadual do Ceará (Uece). No total, já nasceram sete cabras transgênicas desde 2008, em projeto coordenado por Vicen-te José Freitas, professor da Faculdade de Veterinária da Uece. Os animais têm o gene codificador do fator estimulan-

Page 65: O medo do estrangeiro

peSQUiSa FapeSp 236 z 65

te de colônia de granulócitos humanos (hG-CSF), importante para reforçar o sistema imunológico em pacientes que passaram por quimioterapia e estão vul-neráveis a infecções oportunistas, como aqueles com Aids. Atualmente existem medicamentos com o mesmo efeito pro-duzidos no exterior que oferecem proteí-nas análogas sintetizadas por bactérias recombinantes ou ovários de hamster chinês. As proteínas presentes nas ca-bras transgênicas da Uece e da Unifor são iguais às existentes no ser humano, portanto possivelmente mais fáceis de se adaptarem ao organismo.

Os experimentos na Uece foram rea-lizados em parceria com a equipe do professor Antonio Carlos Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e duas pesquisadoras russas: Irina Serova, do Instituto de Genética Molecular de Moscou, e Lyudmila An-dreeva, do Instituto de Citologia e Gené-tica de Novosibirsk. “Conseguimos 600 microgramas (mcg) da proteína por litro (l) de leite das cabras. A única referência que temos foi um projeto da Coreia do Sul, entre dois institutos de pesquisa e a empresa Hanmi, que em experimentos apresentou 50 mcg/l”, conta Vicente.

inFo

gr

áFi

co

an

a p

aU

la

ca

mp

os

ilU

Str

ão

ale

xa

nD

re

aff

on

so F

oto

Uec

e

5 7

Fonte Unifor

Uma nova descarga

elétrica é dada para

realizar a fusão entre os

ovócitos e as células

transgênicas, o que gera

embriões transgênicos

para saber se a proteína

glucocerebrosidase está

presente no filhote, é feita a

indução da lactação aos

6 meses de vida do animal

por meio de hormônios

cabra mãe não transgênica

Descarga elétrica

gluca

proteína

leite

“O nosso problema é encontrar um parceiro empresarial para que possa-mos purificar a proteína do leite e fazer os testes clínicos. Vão passando os anos e isso não acontece”, lamenta Vicente. “Minha esperança é uma parceria com o Instituto Vital Brasil, no Rio de Janei-ro, que no ano passado demonstrou in-teresse em ter nossos animais transgê-nicos para purificação [da proteína] e produção do fármaco.” De acordo com o pesquisador, como existem vários me-dicamentos produzidos por bactérias ou ovários de hamster, embora não sejam de proteínas 100% humanas, as indústrias farmacêuticas não querem mudar o siste-ma de produção. Ele lembra que o custo da fabricação em animais é menor que em cultivo celular e cita um artigo cien-tífico – “Expression systems and species used for transgenic animal bioreactors” – de pesquisadores de duas universidades chinesas e uma japonesa. Eles fazem um resumo mostrando, de maneira geral, que o custo de 50 quilos de proteína por ano seria de US$ 147 por grama (g) do pro-duto em cultivo celular e US$ 20/g em animal transgênico. Para Vicente José, apesar de todas as dificuldades de inves-tir em biorreatores de animais, os expe-rimentos realizados até agora mostram que ainda dá tempo de o Brasil vir a ser uma referência nessa área. n

aos 10 meses de idade, fêmea transgênica obtida na Uece, da raça canindé

6

8para se tornar um

medicamento é

preciso purificar a

proteína do leite e

transformá-la em

um produto injetável

grupos de 12 a 15 embriões

contendo o gene da

glucocerebrosidase

humana são implantados

em uma cabra não

transgênica

Page 66: O medo do estrangeiro

66 z outubro DE 2015

Mamangava (Xylocopa suspecta) em estufa de criação da empresa Florilegus, em Jundiaí (SP)

Page 67: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 67

Empresas desenvolvem métodos

de criação de insetos para

polinização e combate a pragas

Ninhos da abelha nativa mamangava devem estar dispo-níveis nos próximos meses para venda a produtores de maracujá. Quando presente na plantação, essa abelha aumenta o número de frutos nos maracujazeiros por

meio da polinização. Os insetos estão sendo produzidos ainda em escala-piloto pela empresa Florilegus, de São Paulo, que iniciou as atividades em 2013 com o objetivo de produzir e ven-der ninhos de mamangava da espécie do gênero Xylocopa. “Em vários países, as pessoas e os governos estão se mobilizando para aumentar a presença de polinizadores, essenciais na cadeia produtiva agrícola, que muitas vezes são afetados com o uso intensivo de inseticidas na lavoura”, explica a zootecnista Paola Marchi, fundadora da Florilegus. “O Brasil, por exemplo, é um dos maiores produtores de maracujá e a presença das abelhas de grande porte, como as mamangavas, é essencial porque as flores não polinizadas não geram frutos. Essas abelhas estão cada vez mais escassas nos cultivos e existe uma demanda crescente pelos serviços de polinização”, diz.

Os produtores poderão adquirir ninhos contendo os insetos recém-emergidos, que poderão ser liberados nos cultivos em flo-rescimento. “A quantidade adequada por área e o tempo indica-do de permanência nas plantações ainda estão sendo ajustados”, conta Paola. O que se sabe é que essa espécie frequentemente reutiliza seus ninhos antigos e, por isso, pode permanecer nas áreas cultivadas com maracujá por várias gerações. Mas para isso é necessário que haja condições adequadas para sua sobrevivência,

AgriculturA y

Evanildo da Silveira

léo

rA

Mo

S

Produção

AlAdA

Page 68: O medo do estrangeiro

68 z outubro DE 2015

(Euschistus heros), causador de estragos em culturas como soja, feijão e arroz. A vespinha Bracon hebetor, por sua vez, elimina as larvas de traças de produtos armazenados, como fumo e amendoim.

Todas as vespinhas são multiplicadas por meio de outras espécies de insetos, criadas na empresa especialmente para essa função. As duas do gênero Tricho-gramma e a B. hebetor, por exemplo, são multiplicadas em ovos e larvas da traça Anagasta kuehniella. Telenomus podisi é criada em ovos de seu hospedeiro natural, o percevejo-marrom. “A espécie Tricho-gramma galloi começou a ser criada em 2001, em pequena escala, mas hoje pro-duzimos cerca de 250 milhões delas por dia, o que é suficiente para tratar 7 mil hectares de cana-de-açúcar no controle de ovos da broca”, conta Sene Pinto.

MoScAS nA FrUtAA Moscamed, de Juazeiro (BA), uma or-ganização social sem fins lucrativos, tem uma estratégia diferente de controle bio-lógico de pragas. Sua biofábrica produz machos estéreis da mosca-da-fruta-do mediterrâneo (Ceratitis capitata) que são liberados nas plantações de frutas (manga, uva, goiaba, acerola, laranja), principalmente na região Nordeste, para competir com seus congêneres selvagens (ver Pesquisa FAPESP nº 133). O pre-sidente da Moscamed, Jair Fernandes Virgínio, explica que a criação é feita a partir da variedade Vienna 8, desen-volvida pela Agência Internacional de Energia Atômica, que, ao contrário das linhagens selvagens, tem pupas de ma-chos e fêmeas de cores diferentes. As-sim, é possível saber nessa fase o sexo do inseto que emergirá.

A empresa se aproveita disso para eli-minar as fêmeas ainda na fase de ovo com tratamento hidrotérmico. A água a 34°C mata todos os ovos com fêmeas, sobrando apenas os machos, que depois são esteri-lizados com radiação (raios X ou gama) e soltos na natureza. Antes é feito um mo-nitoramento para estimar o número de moscas existentes no local. “Liberamos

como a existência de outras plantas das quais elas possam coletar o pólen, fonte de proteína, porque as flores de maracujá fornecem a ela apenas o néctar, que é a fonte de energia.

Para desenvolver a tecnologia de cria-ção das mamangavas, a pesquisadora es-tuda aspectos reprodutivos desses insetos, como a capacidade das fêmeas em gerar descendentes. “Além disso, o armazena-mento e o período de incubação de in-divíduos imaturos estão sendo testados com diferentes temperaturas para prever e manipular o surgimento das mamanga-vas”, diz Paola. “Estamos desenvolvendo e aperfeiçoando técnicas para multiplicar os ninhos, como também seu transporte e instalação nos cultivos.”

Em outra empresa, a Promip, de Enge-nheiro Coelho, na Região Metropolitana de Campinas, está em desenvolvimento uma tecnologia para a criação de abelhas nativas para polinização. É uma espécie sem ferrão, conhecida como mandaguari (Scaptotrigona depilis), que vive em colô-nias e pode polinizar culturas como mo-rango, tomate e café, por exemplo. “Nós começamos o projeto em 2010”, conta o sócio-fundador Marcelo Poletti. “Ele foi dividido em três etapas: avaliação em la-boratório da produção em massa, estudo da compatibilidade dos insetos com os produtos químicos usados na agricultura e da eficácia no campo. Estamos na últi-ma fase e devemos começar a venda dos ninhos em 2016.”

O que a Promip já tem no mercado são três espécies de ácaros predadores (que

Vespa Bracon hebetor, criada na empresa Bug, ataca larva de traça (Ephestia sp.)

Foto

S 1

Bu

g 2

Pr

oM

iP

1

não são insetos, mas aracnídeos como as aranhas e os carrapatos) microscó-picos, usados no controle biológico de pragas. Duas das espécies, a Phytoseiu-lus macropilis e a Neoseiulus californicus, combatem outro tipo de ácaro, o rajado (Tetranychus urticae), que causa danos a hortaliças, frutas, flores e outras plan-tas cultivadas. A terceira, Stratiolaelaps scimitus, é usada no controle do fungus gnats (Bradysia matogrossensis). Mes-mo com esse nome, trata-se de um in-seto que se alimenta de fungos e ataca as raízes de várias culturas, principal-mente durante a formação das mudas. “Produzimos cerca de 100 milhões de indivíduos por mês dessas três espécies na nossa biofábrica”, informa Poletti. “Eles são vendidos aos produtores e re-vendedores.”

Também estabelecida no mercado está a Bug, empresa de Piracicaba, que cria quatro espécies de pequenas ves-pas parasitoides, além dos hospedeiros nos quais elas são multiplicadas. Tricho-gramma galloi e Trichogramma pretiosum são utilizadas no controle dos ovos da broca-da-cana (Diatraea saccharalis), uma pequena mariposa que, em sua fase larval, ataca canaviais (ver Pesquisa FA-PESP nº 195). “Se o nível de infestação da broca-da-cana chegar a 10% da lavoura, o prejuízo é de mais de R$ 1.000,00 por hectare”, diz Alexandre de Sene Pinto, sócio e diretor de Pesquisa e Desenvol-vimento (P&D) da empresa. A empre-sa cria, ainda, a Telenomus podisi, que parasita os ovos do percevejo-marrom

Page 69: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 69

Por isso, no início dos experimentos de soltura poderão ser observados alguns danos externos em frutos. Mesmo com ovos inférteis, elas continuam a fazer a postura. A proposta é que, com as libera-ções dos insetos estéreis, as populações da mosca sejam reduzidas.

Segundo o pesquisador Adalécio Kovaleski, da área de entomologia da Embrapa Uva e Vinho, as pupas serão produzidas na Estação Experimental de Fruticultura de Clima Temperado (EFCT) da unidade, em Vacaria (RS), e levadas semanalmente para o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, onde serão expostas à radia-ção para serem esterilizadas. “De volta ao Rio Grande do Sul, as moscas adultas estéreis serão liberadas em áreas experi-

de um a nove machos estéreis para cada selvagem”, explica Virgínio. “Eles vão competir pelas fêmeas. Depois que um macho estéril copula com uma delas, elas vão colocar seus ovos nas frutas que não geram descendentes. Com o tempo e a liberação contínua de machos estéreis, a população das moscas se reduz até um ní-vel em que não causa danos econômicos.”

Princípio semelhante será testado pela Embrapa Uva e Vinho, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-pecuária em Bento Gonçalves (RS), mas para outra espécie de mosca-da-fruta, a sul-americana (Anastrepha fraterculus), que danifica frutas cultivadas na região, principalmente maçã e pêssego. A dife-rença é que serão esterilizados machos e fêmeas, porque nesse inseto não é possí-vel determinar o gênero na fase de pupa.

Abelha sem ferrão, opção de criação de insetos para polinização, da empresa Promip, da cidade de Engenheiro coelho (SP)

mentais, com tamanhos que variam de 50 a 100 hectares”, diz. “Paralelamente, no mesmo projeto, vamos testar o controle biológico, usando a vespinha Diachasmi-morpha longicaudata, que se alimenta da larva da mosca-da-fruta-sul-americana. Essas vespinhas serão liberadas em áreas com presença de frutas nativas.”

As empresas produtoras de insetos estão surgindo porque o uso deles na lavoura reduz ou elimina a necessidade de aplicação de produtos químicos como inseticidas. “No sul do país, a traça do fu-mo é responsável pela perda de até 10% do produto armazenado, além de levar o pequeno agricultor a aplicar inseticidas em ambientes frequentados por ele e sua família, causando intoxicações”, diz Ko-valeski. Ainda no Rio Grande do Sul, ele informa que, apenas na cultura da maçã, a mosca-da-fruta-sul-americana causa perdas anuais de cerca de R$ 30 milhões, custo da aplicação dos inseticidas e dos danos na colheita, o que representa 2% da produção. Quanto aos polinizadores, os prejuízos são causados por sua ausên-cia. “A falta deles numa plantação pode causar uma queda da produtividade de até 40%”, diz Poletti, da Promip. n

Projetos1. criação de abelhas solitárias da espécie Xylocopa fron-talis (olivier) em ambiente protegido e em escala comer-cial para sua utilização na polinização de maracujá e ou-tras culturas de interesse econômico (nº 2013/50035-5); Modalidade Programa Pesquisa inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Paola Marchi cabral (Florilegus); Investimento r$ 91.246,97.2. criação massal e comercialização dos parasitoides de ovos Trissolcus basalis e Telenomus podisi para o controle de percevejos da soja (nº 2005/60732-9); Modalidade Programa Pesquisa inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Alexandre de Sene Pinto (Bug); Investimento r$ 419.460,00.3. criação massal e comercialização de Trichogram-ma Spp e Cotesia Flavipes para o controle de pragas agrícolas (nº 2004/13825-9); Modalidade Programa Pesquisa inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Alexandre de Sene Pinto (Bug); Investimento r$ 474.041,00.4. Produção massal de colônias de abelhas sem ferrão e uso comercial para a polinização agrícola (nº 2012/51112-0); Modalidade Programa Pesquisa inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável cristiano Menezes (Promip); Investimento r$ 627.224,03 e uS$ 3.913,46.

2

Page 70: O medo do estrangeiro

70 z outubro DE 2015

Reaproveitar água

em hidrelétrica eleva o

abastecimento e o fornecimento

de eletricidade para

São Paulo e Baixada Santista

usinas versáteis

do Norte do Brasil), uma das subsidiárias da Eletrobras, reuniu em Brasília 235 especialistas de Brasil, Portugal, França, Alemanha e Áustria e discutiu aspectos regulatórios e econômicos relacionados a esses empreendimentos.

As usinas hidrelétricas reversíveis têm, além do reservatório principal (superior), um segundo lago (inferior), localizado depois da casa de força onde é gerada a energia elétrica. De dia, durante o período de maior consumo energético, a hidre-létrica usa água do reservatório superior para gerar eletricidade, como qualquer outra usina, e a armazena no inferior, etapa inexistente em usi-nas não reversíveis. À noite, quando o consumo cai, ela bombeia parte da água que passou pelas turbinas de volta para o reservatório superior. Estabelece-se, assim, uma espécie de circuito fe-chado, com reaproveitamento contínuo da água.

Existem atualmente mais de 127 mil MW gera-dos em usinas reversíveis no mundo – o equiva-lente ao potencial de nove usinas do tamanho de Itaipu, que tem capacidade de geração de 14 mil

Localizada no sopé da serra do Mar, em Cubatão, a usina hidrelétrica Henry Bor-den é uma importante fonte geradora de energia elétrica. Por meio de tubulações

ela capta água da bacia do rio das Pedras, que está interligada à represa Billings, na Região Me-tropolitana de São Paulo, a 720 metros de altura, para mover o conjunto de turbinas projetado para gerar energia até 880 megawatts (MW) de potên-cia. O empreendimento, no entanto, opera desde a década de 1990 apenas parcialmente, porque a captação da água está limitada, principalmente, pela proibição de reversão contínua das águas dos rios Tietê e Pinheiros para a Billings. Para permitir um aproveitamento maior da usina, o engenheiro civil Sadalla Domingos, professor do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), propõe a transformação da Henry Borden em uma hidrelétrica reversível. Essa possibilidade tem sido debatida no país – no fim do ano passado a Eletronorte (Centrais Elétricas

Yuri Vasconcelos

Usina Henry Borden: água desce 720 metros para gerar energia em Cubatão em

ae

eneRgia y

Page 71: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 71

Page 72: O medo do estrangeiro

72 z outubro DE 2015

MW. “Estados Unidos, Japão, China, Itália e Fran-ça são os países líderes nesse tipo de empreendi-mento, criado por volta de 1890 na Europa”, relata o engenheiro Carmo Gonçalves, responsável pela área de tecnologia da Eletronorte e especialista em usinas hidrelétricas reversíveis. O Brasil tem apenas duas hidrelétricas do gênero, de pequeno porte, ambas no rio Pinheiros – a Usina Traição, com 22 MW, e a Usina Pedreira, com 108 MW.

Durante o Seminário Técnico sobre Usi-nas Hidrelétricas Reversíveis no Setor Elé-trico Brasileiro, realizado em Brasília, em 2014, foi apresentado o único estudo abran-gente sobre o potencial dessa fonte de energia no país. “A Cesp [Companhia Energética de São Paulo] realizou um trabalho de pré-inventário no início dos anos 1980 mostrando que o poten-cial técnico desse tipo de empreendimento no estado de São Paulo era cerca de 200 mil MW”, destaca o engenheiro civil Paulo Sérgio Franco Barbosa, professor da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Embora não tenham sido realizados estudos de viabilidade econômica para implantação das usinas rever-síveis – o que pode reduzir essa estimativa –, o potencial é grande.”

O engenheiro explica que uma das principais vantagens das reversíveis é sua contribuição pa-

ra o sistema elétrico do país, que funciona de maneira interligada. “Essas usinas poderiam fornecer maior potência ao sistema no horário de pico, evitando oscilações de voltagem e fre-quência na rede, que ocasionam, muitas vezes, quedas no fornecimento”, explica Barbosa. Além disso, esse tipo de hidrelétrica pode dar suporte à expansão de fontes renováveis intermitentes de energia, compensando os períodos de ausência ou redução da geração elétrica por falta de luz solar (em dias nublados e durante o período no-turno) ou vento na produção das usinas solares e eólicas, cada vez mais utilizadas no país. “Por esses motivos, as hidrelétricas reversíveis são vantajosas, mesmo que seu balanço energético seja negativo ao consumir mais energia – para fazer funcionar a estação de bombeamento – do que gerando”, conta o professor da Unicamp. Ele informa que o balanço energético negativo apre-sentado pelas reversíveis está entre 15% e 25%. Segundo o pesquisador, o grande desafio para sua inserção no Sistema Interligado Nacional (SIN) é o estabelecimento de bases regulatórias e de sua viabilidade econômica.

VIAbILIdAdE E AdEQUAçõES“A transformação da usina Henry Borden em uma hidrelétrica reversível possibilitaria o uso pleno de sua capacidade e pouparia até 7,5 mil litros de água por segundo da Billings, melhoran-do o abastecimento na Região Metropolitana de São Paulo”, afirma Sadalla, autor da proposta. “É uma solução importante para o momento atual, de crise no abastecimento, e resolveria um antigo

conflito nesse sistema, entre geração de energia e fornecimento de água.” A proposta foi apre-sentada em junho e agosto na Poli-USP e no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e foi recebida pela Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae), órgão do gover-no estadual responsável pela operação e pe-

la manutenção da Henry Borden. “O projeto parece interessante, mas é preciso estudos que comprovem sua viabilidade econômica, técnica, institucional e ambiental”, afirma o engenheiro mecânico Fernando José Moliterno, gerente do Departamento de Planejamento e Engenharia da Emae. Para Sadalla, o custo e os benefícios de deixar reversível a Henry Borden vão depender de um detalhado plano ambiental, econômico e de engenharia.

Pela proposta do pesquisador da USP, seria preciso fazer duas adequações principais para transformar em uma hidrelétrica reversível o complexo Henry Borden, que é formado por duas usinas, uma externa e outra subterrânea, escavada na rocha. A primeira providência seria construir o reservatório inferior para armazenar a água usada para mover as turbinas – atualmen- Fo

to e

ma

e In

Fog

FIc

o a

na

Pa

Ul

a C

am

Po

S IL

USt

rA

çã

o f

aB

io o

tU

Bo

atualmente, um conjunto de tubulações internas e externas leva água do sistema Billings e da bacia do rio das Pedras para o complexo hidrelétrico Henry Borden. Pelo projeto, será construído um reservatório para armazenar a água retirada da Billings

FontE Sadalla domingoS/USP

circuito fechadoProposta para tornar reversível a Henry Borden, em operação na Baixada Santista desde 1929

São Bernardo do Campo

Serra do mar

CubatãoUSina HenRy BoRden

estação de bombeamento

SiStema BillingS e BaCia do Rio

daS PedRaS

720 m

Reservatório inferior

durante a noite, fora do horário de pico do consumo de energia, a Henry Borden pararia de operar e a água seria bombeada de volta para o alto da serra para ser reutilizada

Com a solução se pouparia até 7,5 mil litros por segundo

de água da Billings e da bacia do rio

das Pedras. ao mesmo tempo, a usina operaria a

plena carga

Page 73: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 73

te, essa água é direcionada para rios da região. A outra seria instalar uma estação de bombea-mento e uma adutora para mandar a água de volta para o sistema Billings, no alto da serra (ver infográfico na página 72). “Já temos tecnologia para isso”, garante Sadalla, acrescentando que o reservatório inferior seria construído entre os canais de fuga já existentes, usados para escoar a água da Billings.

O complexo da Henry Borden foi iniciado em 1926 e entre as décadas de 1930 e 1960 teve sua potência ampliada até atingir os 880 MW. Para obter uma vazão de água compatível com sua capacidade, o engenheiro Asa White Billings, que projetou a hidrelétrica, concebeu o sistema de reversão do fluxo do rio Pinheiros, que nasce na Billings, cruza a cidade de São Paulo e desá-gua no rio Tietê. O sistema de reversão permitiu o caminho contrário: as águas do Tietê podem ser desviadas para a represa. Essa obra, que le-vou mais água para a Billings, realizada nos anos

1940, proporcionou uma importante oferta de energia para a Baixada Santista, impulsionando o crescimento das indústrias de Cubatão e da cidade de São Paulo.

Nos anos 1990, no entanto, a crescente po-luição dos mananciais da Grande São Paulo le-vou o governo estadual a restringir o sistema de reversão, a fim de evitar a contaminação da Billings pelas águas dos rios Tietê e Pinheiros. Concebida originalmente para fornecer água pa-ra o funcionamento da Henry Borden, a Billings, com o tempo, passou a ser empregada também para o fornecimento de água para a capital e ci-dades vizinhas. Em 1992, um dispositivo legal, inserido na Constituição paulista, determinou que o bombeamento das águas do Pinheiros para a Billings só poderia ser feito em situações ex-cepcionais, entre elas, para controlar as cheias do rio. Com isso, a vazão de água destinada ao complexo Henry Borden foi drasticamente redu-zida, impactando a geração de energia. Quando o sistema de reversão operava plenamente, as usinas produziam em torno de 470 MW e, com a redução da vazão, ela passou a gerar apenas 108 MW médios. Com a proposta de tornar a Henry Borden reversível, a água captada seria enviada de volta – permitindo, assim, aumentar a vazão de retirada e, consequentemente, ampliar a geração de energia. “Parece ser uma ideia interessante, com vantagens tanto para as indústrias e morado-res da Baixada Santista quanto para a população da Região Metropolitana de São Paulo”, afirma Barbosa, da Unicamp. n

Rio das Pedras no alto da serra do mar com vista do início das tubulações que levam a água para Cubatão

A billings, com as águas dos rios tietê e pinheiros, serviu ao crescimento das indústrias de cubatão e da capital

Page 74: O medo do estrangeiro

74 z outubro DE 2015

Spectra projeta e constrói simulador

de voo e laboratórios de testes

para a indústria automobilística

Quem passa em frente ao pré-dio da Spectra Tecnologia, localizado em uma rua do Belenzinho, antigo bair-ro industrial da zona leste

de São Paulo, não desconfia da riqueza tecnológica que ele guarda. Um dos gal-pões da empresa, que ocupa uma área de 5.200 metros quadrados, foi adapta-do para acomodar um simulador de voo para helicópteros militares, construído em parceria com o Centro Tecnológico do Exército (CTEx). O equipamento criado pela Spectra para treinamento de pilo-tos reproduz de forma fiel a cabine dos helicópteros militares Esquilo AS350 e Fennec AS550 e a insere num ambiente virtual 3D. Todos os instrumentos, co-

Ensaio avançado

peSquiSa empreSarial y

Yuri Vasconcelos

affonso Ferro, Guilherme Gibertoni, Jonas Dourado, João Boaventura, aurelio Da Dalt e amanda Shiokawa

mandos, manetes, displays e até os bancos presentes nele estão dispostos da mesma forma que no cockpit dessas aeronaves usadas pelo Exército brasileiro.

“Somos a única empresa da América Latina que detém integralmente o co-nhecimento tecnológico para o projeto e a fabricação desse tipo de simulador”, afirma o engenheiro naval Aurélio Da Dalt, de 61 anos, um dos sócios-direto-res da Spectra. “Ele vai complementar o treinamento de pilotos do Exército com um produto de concepção 100% nacional que, até então, só estava disponível em outros países, como França e Estados Unidos.” O projeto para construção do simulador teve início em 2007, em um contrato com o CTEx e foi concluído

em dezembro de 2011. Um ano depois, o equipamento, batizado de Shefe (Simu-lador de Helicópteros Esquilo e Fennec), foi homologado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e, em seguida, rece-beu a certificação FTD4, de preparação inicial de pilotos. O modelo está atual-mente em processo para a homologação como Full flight nível B. Essa qualificação – que varia, em ordem crescente, de A a D – assegura que durante o voo simulado o piloto tenha a mesma sensação do voo real, incluindo os movimentos do heli-cóptero e suas respostas aos comandos. O equipamento será transferido no pró-ximo ano para o Centro de Instrução de Aviação do Exército (CIAvEx), em Tau-baté (SP), que está em reforma.

Page 75: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 75

Tecnológico de Aeronáutica]”, diz João, o sócio-diretor da Spectra responsável pelas inovações na área de defesa. O pro-jeto também teve apoio do Comando de Aviação do Exército (CAvEx) e do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) da Aeronáutica.

Outro aspecto envolvendo o simulador é que o valor previsto inicialmente pelo Exército para construí-lo mostrou-se insuficiente. Como era do interesse da Spectra a consolidação do projeto – o que lhe daria capacitação para concorrer com as maiores fabricantes de simuladores do mundo –, ela usou dinheiro do próprio caixa para finalizar o Shefe. “O projeto custou R$ 16,8 milhões, mas o contrato com o Exército só cobriu 44% desse va-

Não foram poucos os obstáculos para criar esse ambiente virtual. “A empresa desenvolvedora de simuladores normal-mente tem o suporte do fabricante do avião ou do helicóptero a ser simulado, que fornece o modelo matemático de voo, além de partes e componentes da aeronave”, explica o engenheiro mecâni-co João Carlos Boaventura, de 51 anos. A fabricante nacional das aeronaves, uma empresa do grupo francês Airbus Heli-copters, não quis repassar informações pelo fato de a matriz possuir estreito relacionamento com fabricantes euro-peus de simuladores. “Não contamos com esse apoio e tivemos que projetar tudo do zero. O modelo matemático foi feito em conjunto com o ITA [Instituto lé

o r

am

oS

EmprESA

SpEctrA

Centro de P&D São paulo, Sp

Nº de funcionários 19

Principais produtos equipamentos para

ensaios de durabilidade,

peças e sistemas

automotivos,

simuladores de

helicóptero e de tiro

Page 76: O medo do estrangeiro

76 z outubro DE 2015

lor. Investimos cerca de R$ 9,5 milhões de recursos próprios, mas hoje temos um produto com índice de nacionalização de 92%”, afirma o engenheiro Aurélio, que também é professor do Instituto Mauá de Tecnologia. Concluído há quatro anos, o Shefe passa por um processo de mo-dernização, com a implementação de no-vos softwares. Um dos profissionais que participam dessa tarefa é a engenheira eletricista Amanda Shiokawa Freitas, 27 anos. “Esse é um trabalho que envolve muita pesquisa para que os modelos ma-temáticos consigam simular os sistemas da aeronave e o equipamento opere em harmonia, sincronizado e sem atrasos”, diz Amanda, que iniciou sua carreira na Spectra como estagiária, em 2011.

SImULADOr DE tIrOOutro desenvolvimento da Spectra para a área militar é um simulador de tiro para armamentos leves, conhecido pela sigla Stal. O projeto nasceu por não existir um

equipamento de teste de carroceria de ônibus, acima, e produção de leDs

de alta potência

Aurélio Da Dalt, engenheiro civil e sócio-diretor universidade de São paulo: graduação

João Carlos Boaventura, engenheiro mecânico e sócio-diretor

universidade de São paulo: graduação

Affonso Eduardo Ferro, engenheiro eletricista e sócio-diretor

universidade de São paulo: graduação

Amanda Shiokawa Freitas, engenheira eletricista na área de softwares

universidade de São paulo: graduação

Jonas Rossi Dourado, engenheiro de computação na área de software e firmware

universidade de São paulo: graduação

Guilherme Simão Gibertoni, cientista da computação, estagiário em desenvolvimento de software

universidade de São paulo: graduação

equipamento que atendesse aos requi-sitos do Exército e fosse produzido por empresa nacional. “O simulador de tiro servirá aos centros de treinamento para uma experiência equivalente ao treino feito em campo. O atirador utiliza répli-cas de pistola e fuzil usados pelos mili-tares e interage com alvos e a simulação 3D projetada em uma parede”, explica o cientista da computação Guilherme Simão Gibertoni, de 23 anos.

O benefício desse simulador é reduzir os custos do Exército porque se deixa de gastar munição e deslocar a tropa para locais de tiro. Ao mesmo tempo, é um am-biente seguro para os primeiros testes de

FOrmAçãO DOS pESQUISADOrES DA EmprESA

1

tiro de jovens soldados. “A simulação 3D proporciona dinamismo com a posição e movimento dos alvos”, diz Guilherme.

Criada em 1989, a Spectra é uma em-presa de tecnologia com capital 100% nacional. Ela faturou R$ 12 milhões em 2014 e investe 15% desse valor na área de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Conta atualmente com nove engenhei-ros, dois tecnólogos, seis técnicos e dois projetistas ligados ao setor de engenha-ria, além de 25 funcionários nas áreas industrial e administrativa. A linha de produtos é diversificada e inclui, além do simulador para helicópteros, equipa-mentos servo-hidráulicos para ensaios de durabilidade de veículos, módulos de eletrônica embarcada para controle da carroceria de ônibus (o produto foi fornecido por quase uma década a uma empresa brasileira – mais de 10 mil veí-culos foram equipados – e, atualmente, é exportado para o Peru), aquecedores in-dustriais e sistemas de controle de guin-chos de ancoragem para balsas usadas na exploração de petróleo em alto-mar, sendo a Petrobras cliente desse produto.

“A diversificação faz parte de nossa estratégia comercial. Quando um setor não está bem, outro compensa. Procu-ramos ter o controle de todas as etapas de nossa produção. Dessa forma, temos

Page 77: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 77

Simulador de pilotagem de helicópteros do exército: interior da cabine e parte externa

um domínio maior sobre a tecnologia que desenvolvemos e sobre o preço dos nossos produtos”, afirma o engenheiro eletricista Affonso Ferro, 50, que compõe o trio que comanda os rumos da Spectra.

LABOrAtÓrIO DE ENSAIOSOs equipamentos servo-hidráulicos pa-ra ensaios de fadiga e durabilidade de componentes automotivos são o princi-pal produto da Spectra e responderam por 30% do faturamento em 2014. Do-tado de atuadores, bombas hidráulicas e um sistema de controle e aquisição de dados, o laboratório de ensaio é usado para testar diferentes peças e sistemas de carros, ônibus e caminhões, como suspensão, freios, amortecedores, caixas de direção e cintos de segurança. “Ele funciona como um simulador, reprodu-zindo de forma acelerada e muito precisa as condições do veículo em pista”, diz Affonso. “Nosso laboratório é empregado para realização de testes completos de desempenho e ensaios estáticos e dinâ-micos para análise de tensões mecâni-cas, vibrações e fadiga na estrutura do veículo.” Um dos desenvolvedores do la-boratório é o engenheiro de computação Jonas Dourado, de 25 anos. “Trabalho no projeto de um software e na criação de um equipamento para realizar tes-

país, comprou um laboratório por US$ 2 milhões”, informa Aurélio.

O laboratório de testes, um dos maio-res do gênero em operação no país, está na origem da criação da Spectra. Os três sócios se conheceram nos anos 1980, quando estavam na Mafersa, uma antiga fabricante de vagões e materiais ferroviá-rios. Eles trabalhavam num laboratório de testes de durabilidade – parecido com o que desenvolveriam anos mais tarde –, cujos equipamentos eram importados da norte-americana Material Test Systems (MTS). O controle do laboratório era feito por um computador da época, que tinha o tamanho de um pequeno armário.

Aurélio, João e Affonso tiveram a ideia de desenvolver o hardware e os softwares necessários para fazer o microcomputa-dor IBM PC-XT controlar o laboratório. Um dos diretores da MTS abraçou a ideia e decidiu comprar a inovação quando es-tava pronta. Segundo Affonso, a Spectra foi a primeira empresa do mundo a usar um computador tipo PC para controlar um simulador de estrada. Centenas de sistemas foram vendidas para montadoras e fabricantes de autopeças mundo afora. “Durante cinco anos, recebemos royalties pela venda do nosso sistema. Foi isso que nos permitiu, no início, estruturar finan-ceiramente a Spectra”, conta. n

Royalties recebidos pela venda de um sistema de simulação permitiram estruturar financeiramente a empresa

FOtO

S lé

o r

am

oS

tes de durabilidade de peças mecânicas, principalmente automotivas”, diz Jonas.

Além de vender o laboratório monta-do, a Spectra também presta serviço às áreas de engenharia e desenvolvimento de fabricantes de autopeças e da indús-tria automobilística. Volkswagen, Mer-cedes-Benz, Scania, Ford, Fiat, Magneti Marelli e Mahle são alguns dos clientes. No ano passado, uma unidade foi expor-tada para a Argentina. “A Universidade Nacional de La Plata, a segunda maior do

Page 78: O medo do estrangeiro

78 z outubro DE 2015

Pesquisadores de várias áreas usam levantamentos históricos e

testes de DNA para reaproximar famílias separadas pela hanseníase

ivaldo Mercúrio tinha 7 anos quando uma ambu-lância preta com a sigla DPL, de Departamento de Profilaxia da Lepra, parou em frente à sua casa, em um sítio em Itápolis, interior de São Paulo. Dois médicos desceram e pediram para

examinar toda a família. “Descobriram que minha mãe tinha hanseníase, a antiga lepra, e dias depois voltaram para levá--la”, ele relembra, aos 88 anos, enquanto caminha pelas ruas do antigo hospital-colônia Aimorés, hoje parte do Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru, um dos principais centros

Violência, medo e preconceito

humanidades SocieDADe y

de atendimento a pessoas com hanseníase no estado de São Paulo. “Depois os médicos pediram para que eu, meu pai e meus irmãos fôssemos para a rua e puseram fogo em nossa casa.” Em 1933, a internação compulsória e a queima da casa das pessoas com hanseníase eram as formas adotadas para evitar que outras pessoas se contaminassem com a doença, vista com forte repulsa desde os tempos medievais.

Dez anos depois, Nivaldo recebeu o mesmo diagnóstico da mãe e foi levado para Aimorés, onde vive desde então, ex-ceto por alguns meses em que tentou trabalhar em Itápolis.

TexTo Rodrigo de Oliveira andrade FoTos eduardo Cesar, de Bauru

N

Page 79: O medo do estrangeiro

pesQuisa Fapesp 236 z 79

Aos 88 anos, Nivaldo Mercúrio vive no antigo hospital-colônia de Bauru desde os 17, quando foi internado após o diagnóstico de hanseníase

Page 80: O medo do estrangeiro

80 z outubro DE 2015

1

Page 81: O medo do estrangeiro

pesQuisa Fapesp 236 z 81

A

Sua mãe foi levada para outro hospital e ele nunca mais a viu. Estima-se que cerca de 40 mil pessoas tenham sido separadas de suas famílias por cau-sa das estratégias de isolamento adotadas como forma de tratar a hanseníase. O desafio agora é tentar reaproximar as famílias separadas à força. Desde 2011, uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) trabalha com o Movimento de Reintegração das Pessoas Atin-gidas pela Hanseníase (Morhan), organização não governamental sediada no Rio de Janeiro, para fazer com que familiares de pessoas com hanseníase que há muito não se viam ou sequer se conheciam se encontrem.

hanseníase é uma doença transmissível por meio do contato com secreções nasais, tosses ou espir-ros de pessoas infectadas. Por muito tempo co-nhecia-se apenas seu agente causador, a bactéria Mycobacterium leprae, identificada pelo médico norueguês Gerhard Hansen em 1873, que atin-ge os nervos e gera manchas esbranquiçadas ou avermelhadas na pele. Antes incerto, o tratamen-to hoje é simples, gratuito e eficiente, à base de sulfona e outros dois medicamentos, rifampicina e clofazimina, sem a necessidade de internações compulsórias. No entanto, o Brasil é o segundo país em número de casos da doença no mundo, atrás apenas da Índia. Em 2014, o Ministério da Saúde registrou 31.064 novos casos.

peQuenas CidadesOs hospitais-colônia, que funcionaram dos anos 1930 a 1980, eram pequenas cidades, com igreja, delegacia, presídio e prefeitura. Seus ocupantes plantavam, cozinhavam e faziam pequenas tran-sações entre eles usando uma moeda própria, chamada lazareto, em referência aos primeiros hospitais-colônia surgidos na Ilha de San Laz-zaro, perto de Veneza, na Itália, em meados do século XIII. “Uma vez internados, os doentes só saíam dos leprosários com autorização dos médi-cos, o que raramente acontecia”, conta a médica Lavínia Schuler-Faccini, professora da UFRGS e uma das coordenadoras do Instituto Nacional de Genética Médica e Populacional (Inagemp), sediado em Porto Alegre.

“A maioria dos que nos procuram são filhos de pessoas com hanseníase querendo encontrar os irmãos, já que os pais muitas vezes estão mor-

tos”, diz Artur Custódio, presidente do Morhan, fundado em 1981 por ex-internos de hospitais--colônia, que hoje atende pessoas à procura de seus familiares. O trabalho integrado de médicos, historiadores, antropólogos e sociólogos permitiu às equipes de Porto Alegre e do Rio reaproximar 800 pessoas, por meio de visitas a antigos hospi-tais-colônia e consultas a arquivos para atestar o parentesco. “Quando as informações encontradas nos documentos não são suficientes, aplicamos o teste de DNA”, explica a bióloga Flávia Costa Biondi, da equipe da UFRGS. Pais e filhos que se reencontram, porém, raramente voltam a vi-ver juntos. “Em geral os filhos não conseguem reconhecê-los como pais ou mães. O isolamento os fez completos desconhecidos”, diz Lavínia. Algumas histórias são dramáticas, como a de um homem que queria saber do pai internado havia décadas em um leprosário do Acre. Meses depois a equipe do Morhan o localizou, mas ele tinha morrido fazia poucas semanas.

Estima-se que 25 mil crianças tenham se tor-nado órfãs de pais vivos internados em hospitais--colônia, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. As crianças que nasciam nos leprosá-rios ou não tinham com quem ficar eram levadas para os preventórios, como eram chamados os orfanatos para filhos de pessoas com hanseníase, às vezes em outras cidades. “Os médicos diziam às mulheres que seus filhos tinham morrido no parto, quando haviam sido dados para adoção”,

relata Lavínia. Em 1943, os 22 preventórios do país abrigavam cerca de 2.500 crianças, que de-pois eram entregues para parentes ou desconheci-dos dispostos a criá-las. Não era fácil encontrar quem as adotasse, por-

que se temia que as crianças estivessem conta-minadas e pudessem transmitir a doença.

Depois de examinar cerca de 10 mil fichas preenchidas por filhos de pessoas isoladas em leprosários do país, a equipe do Morhan verificou que muitas crianças adotadas eram forçadas a trabalhar, sofriam maus-tratos e eram discrimina-das por serem filhos de pessoas com hanseníase. Por meio desses documentos, os pesquisadores também identificaram rotas de saída de crianças para adoção. “Muitas crianças do norte de Minas Gerais foram enviadas para a Itália e, do sul do Pará, por meio do Suriname, para a Holanda”, diz Custódio. Em julho, a equipe do Morhan localizou na Holanda dois irmãos, filhos de brasileiros que tiveram hanseníase e ainda estão vivos.

O projeto coordenado pela equipe da UFRGS e do Morhan inspirou-se na busca de crianças e pais desaparecidos durante o governo militar da

igreja e coreto dos anos 1950 preservados pelo instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru. Acima, registro de uma tentativa de fuga de um dos internos

Page 82: O medo do estrangeiro

82 z outubro DE 2015

C

Argentina (1967 a 1983). Estima-se que, à época naquele país, 500 crianças tenham nascido de mães presas que depois desapareceram. Em ge-ral, elas eram integradas às famílias de militares e, às vezes, registradas como filhos biológicos dos pais adotivos. “Mas há também casos de bebês abandonados em instituições religiosas ou em es-quinas de Buenos Aires”, diz a antropóloga Clau-dia Lee Williams Fonseca, da equipe da UFRGS.

ustódio defende que os filhos — e não apenas os pais — sejam indenizados pelo Estado brasileiro, que continuou a isolar pessoas com hanseníase até 1986, mesmo tendo assinado, em 1952, um acordo internacional comprometendo-se a interromper as internações compulsórias depois da descoberta de tratamentos eficazes para a doença. Na década de 1940, a sulfona começou a ser usada no trata-mento da hanseníase no Brasil, que seguiu outros países, permitindo que as pessoas fossem tratadas apenas por meio de visitas periódicas a hospitais, não precisando mais serem isoladas. Em 2007, uma Medida Provisória aprovada pelo Congresso Nacional concedeu pensão vitalícia às vítimas da doença que continuaram a ser isoladas até 1986. isOLamenTOA internação compulsória foi adotada no Brasil como estratégia para o controle da hanseníase a partir de 1924 e ganhou força na década de 1940, durante o governo Getúlio Vargas, com o Plano Nacional de Combate à Lepra, que previa o iso-lamento compulsório de todos os casos confir-mados e o cuidado e a educação dos filhos sadios das pessoas doentes. “Como não havia nenhum medicamento eficaz”, diz Claudia Fonseca, da UFRGS, “o isolamento das pessoas com hansenía-

se era considerado essencial, tornando-se mais importante que o próprio tratamento existente”.

Na década de 1920, as pessoas com hanseníase vagavam pelas ruas das cidades ou postavam-se à margem das estradas à espera de esmolas de via-jantes, que os evitavam, porque se pensava que até o ar poderia estar contaminado. “Os doentes viveram em completo abandono por décadas no Brasil”, diz o médico Marcos Virmond, diretor do Instituto Lauro de Souza Lima, que atende cerca de 2 mil pessoas todos os meses. O instituto ainda preserva prédios, a igreja, o cassino, transformado em museu, as ruas de paralelepípedos e as praças repletas de árvores do antigo hospital-colônia Aimorés. Em São Paulo, o primeiro asilo desse tipo foi o Santo Ângelo, construído em Mogi das Cruzes, em 1928, onde, no arco da entrada prin-cipal, lia-se “Aqui renasce a esperança”.

Em 1943, os 41 hospitais-colônia espalhados pelo país abrigavam 17 mil pessoas, que, uma vez internadas, precisavam encontrar novas formas de sobrevivência para não se abater pelo isola-mento. “As pessoas, privadas de direitos básicos de cidadania, eram vigiadas, controladas e go-vernadas por leis específicas”, diz Claudia Fon-seca. A década de 1940 foi uma época de combate intensivo à doença, avalia Virmond. As pessoas suspeitas de estarem infectadas eram denuncia-das às autoridades sanitárias e perseguidas nas ruas e em suas casas. Em seguida, eram isoladas nos hospitais-colônia. Em Aimorés, os doentes detidos pela polícia sanitária eram transporta-dos em vagões especiais de trens até o hospital.

A rejeição às pessoas com hanseníase não vem de hoje. A doença é considerada uma das mais antigas da história da humanidade — ainda que por séculos muitas doenças dermatológicas fossem confundi-das com lepra. “Há registros de casos de pessoas

Pessoas com hanseníase recém-chegadas em vagões fechados ao hospital-colônia Aimorés na década de 1930

Page 83: O medo do estrangeiro

pesQuisa Fapesp 236 z 83

A

queimadas vivas em suas casas na Idade Média, na Europa”, diz a socióloga Glaucia Maricato, da UFRGS. A aparência das pessoas com a doença, que causa deformações, somada ao medo do contágio, motivava os europeus a manter os pacientes em asilos, os lazaretos, ou expulsá-los das cidades. A hanseníase, mais do que qualquer outra, era vista como uma doença impura. Veio daí a ideia de que a maldade era uma das características do portador. “Os homens daquele tempo estavam persuadidos de que no corpo reflete-se a podridão da alma”, escreveu o historiador francês Georges Duby no livro Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos. “O leproso era, só por sua aparência corporal, um pecador. Desagradara a Deus e seu pecado purgava através dos poros.”

visão medieval da doença perdurou até o século XX, segundo a historiadora Yara Nogueira Mon-teiro, do Instituto de Saúde de São Paulo. Em um artigo publicado na revista Saúde e Sociedade, ela analisou como o isolamento compulsório das pes-soas com hanseníase no estado contribuiu para que o estigma da doença atingisse pessoas sadias. De modo geral, ela observa, a internação de um dos pais acarretava a chamada explosão familiar. Quando a notícia de que alguém tinha hanseníase se espalhava, era comum que parentes próximos

perdessem o emprego e as crianças fossem ex-pulsas da escola. Esse efeito cascata, segundo ela, contribuiu para que os doentes fossem deixados ainda mais à margem da sociedade.

Foi o que aconteceu com Nivaldo Mercúrio. Em 1968, curado, ele deixou o hospital-colônia, voltou para Itápolis e arrumou um emprego. Semanas depois, porém, outros empregados exigiram do dono da empresa que ele fosse demitido porque vinha de um leprosário. Ele exibia os sinais de seu passado: suas mãos haviam atrofiado e falava com dificuldade, em consequência do tratamento com óleo de chaulmoogra, usado antes da sulfo-na. “Fui demitido e, meses depois, voltei para cá”, ele conta. O antigo hospital-colônia de Aimorés abriga hoje 74 pessoas que, como ele, um dia ti-veram hanseníase. n

Na década de 1920, quem tinha hanseníase vivia em acampamentos como este, à margem de uma estrada próxima a Bauru

Artigos científicosFoNSecA, c. L. W. et al. Project ReeNcoNTRo: ethical aspects of genetic identification in families separated by the compulsory isolation of leprosy patients in Brazil. Journal of Community Genetics. v. 6, n. 3, p. 215-22. jul. 2015.PeNcHASZADeH, V. B. & ScHULeR-FAcciNi, L. Genetics and human rights. Two histories: Restoring genetic identity after forced disap-pearance and identity suppression in Argentina and after compulsory isolation for leprosy in Brazil. Genetics and molecular Biology. v. 37, p. 299-304. mar. 2014.MoNTeiRo, Y. N. Violência e profilaxia: os preventórios paulistas para filhos de portadores de hanseníase. saúde e sociedade. v. 7, n. 1, p. 3-26. 1998.FO

TOs

Ac

eRV

o D

o D

ePA

RTA

MeN

To

De

PR

oFi

LA

xiA

DA

LeP

RA

Rep

RO

du

çõ

es

eD

UA

RD

o c

eSA

R

Page 84: O medo do estrangeiro

84 zoutubro DE 2015

Filmes do

diretor

Jia Zhang-ke

ganham o mundo

com visão

crítica sobre

o país

cinema y

Márcio Ferrari

Os olhos da China

div

ulg

ão

Page 85: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 85

cena do longa Em busca da vida mostra as ruínas provocadas pela construção da hidrelétrica de Três gargantas

Aos 45 anos, o chinês Jia Zhang-ke pode ser consi-derado um dos principais cineastas do mundo. Sua idade lhe permitiu teste-

munhar a transição histórica pela qual a China passou depois de 1976, com a morte de Mao Tse-tung, o fim da Revo-lução Cultural e a subida ao poder de Deng Xiaoping, que em poucos anos abriu o país à economia de mercado. Tanto pela importância estética quanto pela oportunidade de oferecer um olhar sobre uma realidade pouco conheci-da aos olhos do mundo, os 21 filmes de Jia – entre curtas e longas-metragens, documentários e ficção – são cada vez mais vistos no exterior.

No Brasil, o interesse se comprovou recentemente com a estreia do docu-mentário Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang, dirigido por Walter Salles, e com o trabalho da pesquisadora Cecília

Mello, professora no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Textos de Sal-les, de Cecília, do crítico francês Jean--Michel Frodon e do próprio cineasta chinês compõem o livro O mundo de Jia Zhang-ke, lançado pela editora Cosac Naify simultaneamente ao filme.

Cecília concluiu este ano o projeto de pesquisa “Intermidialidade, estética e política no cinema chinês de Jia Zhang--ke” no Departamento de História da Ar-te da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Guarulhos. Além de conduzir o projeto e criar condições para sua continuidade, a pesquisadora, que em 2014 ingressou na ECA-USP, mas manteve o vínculo com a Unifesp, deu aulas, orien-tou alunos e criou uma linha de pesquisa sobre o cinema chinês. O interesse pela obra de Jia deu prosseguimento a seus estudos sobre realismo cinematográfico.

Page 86: O medo do estrangeiro

86 z outubro DE 2015

uso de locações reais, atores não profis-sionais, trechos improvisados e luz natu-ral. “Da Revolução Comunista, em 1949, até o início dos anos 1980, o cinema da China esteve preso a obrigações de pro-paganda e muito distante da realidade”, informa Cecília. A constante foi quebra-da pela quinta geração, de diretores co-mo Zhang Yimou (Lanternas vermelhas) e Chen Kaige (Adeus, minha concubina), que ganharam notoriedade no exterior em meados da década de 1980. “Apesar de adotarem locações reais, esses filmes ainda transcorriam num tempo a-histó-rico e se passavam quase exclusivamente no campo.”

Para a abordagem realista adotada por Jia foi essencial a utilização, a partir de Prazeres desconhecidos (2002), da tec-

nologia digital, mui-to mais ágil do que o trabalho com pelícu-la. Isso permitiu, por exemplo, registrar em tempo real as trans-formações causadas pela construção da hidrelétrica no longa Em busca da vida. Pa-ralelamente ao regis-tro contemporâneo, Cecília procura re-velar a presença, nos filmes do cineasta, de um diálogo sutil com tradições artísticas chinesas. “É um modo de chamar a atenção para a dimensão mais profunda das mudan-ças. Não se trata ape-nas de prédios demo-lidos, mas de toda uma tradição histórica que acaba”, diz Cecília. “O que é admirável no ci-nema de Jia é que ele

não é nem a favor nem contra o novo ou o velho”, complementa Frodon. “Ele é capaz de mostrar e fazer o espectador sentir o que há de bom ou mau em cada aspecto. É verdade que isso é feito com uma sensação geral de perda, como quem pede mais cuidado com o antigo, que po-de estar sendo destruído cegamente.”

Um exemplo da presença do antigo no cinema de Jia, apontado por Cecília, é a interação com a pintura de rolo, a tra-dicional arte chinesa de representação

“Primeiramente, é um diretor com um olhar para as transformações de um país que atrai as atenções do mundo e emerge como potência, mas permanece muito misterioso e, em muitos aspectos, iso-lado”, diz Cecília. “Em segundo lugar, procurei entender sua busca por uma nova linguagem cinematográfica para abordar o que é novidade também no mundo real.”

TrAdIçõESOs filmes de Jia dão conta dessas trans-formações mostrando personagens em trânsito, muitas vezes desgarrados de seus lugares e convívios de origem, em embate com as alterações que afetam hábitos do dia a dia. Seu terceiro longa--metragem, Plataforma (1997), que se passa em Fenyang, a cidade natal do di-retor, acompanha uma trupe de artistas entre 1979, quando ainda encenavam homenagens a Mao, e o fim dos anos 1980, já quase no fim do processo de reformas de Deng. Em busca da vida (2006) mostra personagens deslocados pela construção da hidrelétrica de Três Gargantas, que submergiu várias cidades. Um toque de pecado (2013) reúne quatro histórias de violência tiradas do Weibo, o equivalente chinês do Twitter.

“Nós vemos cidades que estão sendo demolidas, memórias que estão sendo apagadas, uma população flutuante que viaja ao sabor das oportunidades eco-nômicas, e Jia quer investigar qual é o efeito dessa transformação no indiví-duo”, descreve Cecília. “Na história do cinema, em geral os momentos de pico

de criatividade vêm junto com as trans-formações histórico-sociais. No mundo todo, hoje, o diretor em que isso aparece de modo mais forte e relevante é Jia.”

O crítico Jean-Michel Frodon destaca também, nos filmes de Jia, o questiona-mento dos limites entre ficção e docu-mentário. O diretor e seus contempo-râneos – a chamada sexta geração do cinema chinês – trouxeram consigo uma virada realista no panorama histórico da filmografia do país. Isso é evidente no

FOTO

S d

ivu

lga

çã

o

Page 87: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 87

um espaço de encontro e sociabilidade, onde se caminha, trabalha-se e habita--se”, observa Lopes. “A globalização nes-se caso foge à ideia de americanização ou homogeneização forçada.”

Quanto mais a pesquisadora se de-bruça sobre os filmes e a história de Jia Zhang-ke, mais lhe parece que o cineasta abraçou a responsabilidade de represen-tar, em seus filmes, uma essência totali-zante da China, mesmo que o lugar que o cineasta ocupa no país seja ambíguo. Seus três primeiros filmes foram exi-bidos em festivais internacionais, mas proibidos internamente. O mundo re-cebeu cortes, Em busca da vida estreou nos cinemas sem atrair muito público e Um toque de pecado nem sequer pôde es-trear. No entanto, Jia é uma celebridade graças à pirataria. “Aos poucos, ele foi se tornando o cineasta mais importante da China também dentro do país”, consta-ta Cecília. Hoje seu rosto aparece em anúncios de uísque no metrô de Pequim.

O modo como Jia conquistou o pú-blico chinês gradativamente tem a ver, para o pesquisador Isaac Pipano, com

de paisagens que se desdobra horizon-talmente como se narrasse uma histó-ria. Ela é evocada pelos deslocamentos laterais da câmera e pela alternância de pontos de vista dos personagens. Outra característica da pintura de rolo que en-contra equivalente nos enquadramentos de Jia é a presença de espaços vazios, destinados ao preenchimento pela imagi-nação do observador (ou do espectador).

prOIBIçõESA pesquisadora também estudou os pon-tos de contato entre os filmes de Jia e a arquitetura de jardins, uma forma de arte tradicional na China que se relacio-na diretamente com o filme O mundo. O enredo se passa num parque temático em Pequim que reúne reproduções em escala menor de pontos turísticos de to-do o planeta. O filme, segundo Cecília, é uma viagem espacial conduzida de acor-do com os preceitos dos jardins chineses, feitos para serem vistos de cima, como mosaicos, ou, quando à altura do chão, em movimento, como uma narrativa.

Outro estudioso desse longa-metra-gem, o professor da Escola de Comuni-cação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) Denilson Lopes, vê nele aspectos de “transnacionalização”: os personagens principais não são os visitantes do parque, mas seus funcio-nários, alguns estrangeiros. “O parque é uma possibilidade de uma vida melhor,

Projetointermidialidade, estética e política no cinema chinês de Jia Zhang-ke (2011/20692-9 e 2012/08694-9); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores em centros emergentes; Pesquisadora responsável cecília antakly de mello (eFlcH-unifesp); Investimento R$ 43.655,49 e R$ 185.195,40.

Jia Zhang-ke em cena do documentário de Walter Salles e imagens de Plataforma e Um toque de pecado: tensões entre o novo e o velho, o individual e o coletivo

a recusa do cineasta em adotar um dis-curso militante. “Passando ao largo das convenções de um cinema político de denúncia e sem criticar diretamente as estruturas de poder, Jia comenta os mo-dos de vida e as experiências mais banais do cotidiano”, diz Pipano, doutorando em cinema na Universidade Federal Flu-minense, cuja dissertação de mestrado em comunicação, defendida em 2012 na UFRJ, tratou do trabalho do diretor como documentarista.

Cecília defende que Jia, embora vigia-do pelo governo chinês, não se furta à incumbência de ser o principal retratista contemporâneo do país. “Apesar de toda a diversidade de idiomas e culturas da China, sempre houve um esforço oficial de manter uma ideia do país não como uma nação, mas como uma civilização”, conta a pesquisadora. “Jia nunca disse isso claramente, mas vejo em seu cinema um certo desejo de falar para toda a Chi-na. Sua intenção, por exemplo, com Um toque de pecado, foi fazer um filme que já nascesse clássico, e que pudesse ser lembrado daqui a 100 anos em seu país.” n

Page 88: O medo do estrangeiro

88 z outubro DE 2015

Fartura de notícias on-line refaz os espaços

e os papéis do jornalismo científico

Momento de transição

Em fevereiro de 2012, o jornal espanhol Público parou de pu-blicar a edição impressa, man-tendo apenas a on-line. Uma das

126 pessoas dispensadas foi a editora de Ciência, Patrícia Fernández de Lis, que tratou de dar forma a uma alternativa em que já vinha pensando. Vendo que as notícias de ciência atraíam muitos leito-res, ela formou uma equipe, conseguiu patrocinadores e criou o site Materia, lançado em julho de 2012, com notícias em primeira mão sobre ciência e tecno-logia. Em um ano havia 1,5 milhão de usuários únicos e acordos de republi-cação de seu conteúdo em cerca de 200 jornais de países de língua espanhola. Em setembro de 2014 o jornal El País, o de maior circulação na Espanha, co-meçou a republicar com exclusividade o noticiário do Materia e Patrícia assumiu o cargo de redatora-chefe de Ciência e

Tecnologia do jornal, onde trabalhara antes de ir para o Público.

A trajetória do Materia exemplifica o impacto da internet sobre o noticiário não só de ciência, mas também de ou-tras áreas. Agora, pelos já não tão novos meios de comunicação on-line – sites, blogs e redes sociais –, as notícias são divulgadas de modo quase instantâneo, escritas tanto por jornalistas quanto por cientistas e outros interessados por ciên-cia. Hans Peters, professor de jornalis-mo científico da Universidade Livre de Berlim, em um artigo na revista Mètode Science Studies Journal, observou que o mundo on-line deixou para trás o modelo clássico de comunicação de massa, pelo qual uma informação é transmitida por um emissor – no caso, o pesquisador –, por meio dos jornalistas, para o públi-co, que deixou de ser completamente passivo. A internet permite que o leitor

COmuniCaçãO y

Carlos Fioravanti

Page 89: O medo do estrangeiro

pESQUISA FApESp 236 z 89

IlU

Str

ãO

nel

sOn

pr

Ov

az

i

esta é a terceira e última parte de uma série de reportagens sobre jornalismo científico, motivada pelos 20 anos de publicação do primeiro boletim Notícias FAPESP, que originou esta revista. a primeira reportagem, publicada na edição de agosto, relatou o trabalho pioneiro de Júlio abramczyk e José Hamilton ribeiro. a segunda, em setembro, abordou a relação entre cientistas e jornalistas. esta trata das transformações, impasses e perspectivas do noticiário sobre ciência e tecnologia.

dissemine, comente ou corrija notícias imediatamente após lê-las.

Espaços antes ocupados por jorna-listas se perderam dentro de uma cri-se global do jornalismo tradicional – dezenas de publicações no Brasil, na América Latina, nos Estados Unidos e nos países da Europa eliminaram suas versões impressas e, com elas, suas se-ções de ciência, em consequência da migração dos leitores para publicações on-line. Outros espaços, no entanto, emergiram. Revistas científicas como Science, Nature e Lancet hoje têm seus próprios blogs e dão mais espaço para reportagens em formato jornalístico, com várias fontes de informação e uma visão geral de um tema. Neste ano, a semanal Nature começou a distribuir um boletim diário com indicações de reportagens publicadas em outras re-vistas ou jornais.

Page 90: O medo do estrangeiro

90 z outubro DE 2015

“precisamos do jornalismo científico para pesar os valores da ciência”, diz ex-editora da BBc

Artigos científicosPETERS, H. P. The two cultures scientists and journalists, not an outdated relationship. mètode science studies journal. v. 4, p. 163-9. 2014.WATTS, S. Society needs more than wonder to respect science. nature. v. 208, p. 151. 10 abr. 2014.

científico (ver Pesquisa FAPESP nº 211). Na conferência deste ano, realizada em junho na Coreia do Sul, um dos debates tratou de qual deveria ser o papel dos jornalistas de ciência: promover a pes-quisa científica ou fiscalizar o trabalho dos cientistas? Como em um tribunal, cada grupo defendia um ponto de vista e os participantes da plateia mudavam de lado à medida que se convenciam da argumentação de um ou de outro. Não se chegou a um consenso, mas a con-clusão com maior número de adesões foi que “não se deve aceitar sem ques-tionamento o que é apresentado pelos cientistas”, disse Bernardo Esteves, re-pórter de Ciência da revista Piauí que participou do debate.

“Os pesquisadores em geral veem os jornalistas como seus porta-vozes, mas deveríamos dar mais espaço para uma discordância saudável e para uma apre-ciação mais crítica dos resultados de pes-quisa”, observa Esteves. É a mesma posi-ção da jornalista Susan Watts, editora de Ciência de um programa de televisão de um dos canais da BBC, do Reino Unido, demitida em novembro de 2013, quando seu cargo foi extinto. “Precisamos do jor-nalismo científico para pesar os valores e os vícios da ciência”, ela escreveu em abril de 2014 na Nature. Segundo ela, o noticiário deveria oferecer uma perspec-tiva crítica e uma visão bem-informada sobre o que a sociedade quer da ciência, sem se deixar levar apenas pelo deslum-bramento das descobertas.

Peters, da Universidade de Berlim, reconhece que, mesmo que os cientis-tas e os próprios leitores estejam pro-duzindo ou reproduzindo notícias, é improvável que o jornalismo morrerá, já que sua tarefa precípua de informar com distanciamento dificilmente pode-rá ser substituída pelas outras formas de comunicação pública. Segundo ele, a autoapresentação da ciência, por meio de blogs de cientistas e de instituições, não poderá substituir com a mesma cre-dibilidade o jornalismo como observador externo da ciência. n

Por sua vez, as instituições de pesqui sa estão valorizando a comunicação direta com o público, por meio de seus próprios sites e de redes sociais, dispensando a intermediação do jornalista de jornais, revistas e de sites noticiosos não insti-tucionais. Nos Estados Unidos, de mo-do mais intenso que no Brasil, univer-sidades, agências de fomento como a National Science Foundation e centros de pesquisa como a Nasa, a agência es-pacial, distribuem notícias, vídeos, ima-gens e material didático para o público acadêmico e o não acadêmico. Em abril e maio deste ano, cientistas ingleses de-bateram na Royal Society, a academia britânica de ciências, suas estratégias de divulgação de novidades científicas por meio de revistas que publicam artigos (e não reportagens) e apresentações diri-gidas tanto ao público em geral quanto para cientistas.

A expansão da mídia on-line sugere que agora qualquer pessoa pode escre-ver sobre ciência – no Brasil, o total de blogs de ciência varia de 105, de acordo com um levantamento da Universidade Federal de Minas Gerais, a 210, número obtido por meio de dados levantados no Google, em portais de blogs e cadastros de jornalistas – e promove uma amplia-ção dos papéis dos jornalistas. Ao dar forma ao Materia, Patrícia Lis teve de fazer o que não fazia antes: contar com seu prestígio profissional para conse-guir patrocinadores, negociar acordos de republicação do conteúdo on-line e gerenciar orçamentos de modo que o site se mantivesse e publicasse, como hoje, cinco reportagens diárias. Ao rever sua experiência, ela comentou à Pesquisa FAPESP que “formar uma equipe certa, com pessoas em quem se possa confiar, e produzir informação de alta qualidade” são fundamentais para obter credibili-dade e visibilidade.

promover ou fiscalizar?Em 2013, a 8ª Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência, organizada pela Federação Internacional de Jornalistas de Ciência (WFSJ, na sigla em inglês) na Finlândia, acentuou a necessidade de os jornalistas serem flexíveis, dominar as ferramentas de produção de conteúdo on-line e trabalhar mais intensamente com outros comunicadores de ciência para criar novos modelos de jornalismo

Page 91: O medo do estrangeiro

PESQUISA FAPESP 236 | 91

Bruno de Pierro

Vidros que pertenceram ao químico

alemão Heinrich Caro ajudam a

contar as origens da química na USP

mEmórIA

Em 1934, o químico alemão Heinrich Rheinboldt (1891-1955) chegou ao Brasil com a missão de ajudar a implantar o curso de

ciências químicas na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL, atual FFLCH) da então recém-fundada Universidade de São Paulo (USP). A estratégia traçada na instituição nascente era procurar bons profissionais europeus que aceitassem passar um período na capital paulista para iniciar o ensino e a pesquisa nas diferentes áreas da ciência. Ao deixar a terra natal, Rheinboldt trouxe na bagagem frascos de vidro contendo substâncias químicas que pertenceram ao avô, o químico Heinrich Caro (1834-1910), considerado um dos precursores da indústria química moderna. A preservação dos objetos do avô não ocorreu por simples saudosismo. Rheinboldt era um “profundo cultor da história”, escreveu em 1994 Paschoal Senise (1917-2011), ex-professor emérito da USP e aluno de Rheinboldt na primeira turma do curso de química, que começou em 1935 e gerou o atual Instituto de Química (IQ). “Os frascos contam parte

Antigo prédio do curso de química da USP na alameda Glete, em São Paulo, em 1938. Abaixo, frascos de Caro ainda contêm os corantes alizarina e azul de metileno

História em frascos

Foto

S 1

An

rio

dA

ffC

l-U

SP d

e 19

37-

193

8 2

Hen

riq

Ue

eiSi

to

mA 1

2

Page 92: O medo do estrangeiro

92 | outubro DE 2015

Em 1876, Caro realizou a síntese do azul de metileno. Posteriormente, a substância teve diversos usos na pesquisa médica, em estudos de microrganismos. Em 1882, por exemplo, o prêmio Nobel Robert Koch anunciou a descoberta do bacilo da tuberculose, utilizando o azul de metileno como um marcador. “A síntese dos corantes praticamente acabou com o processo extrativo de corantes de plantas e deu início à indústria química moderna”, diz Toma. Caro também foi o primeiro pesquisador a descrever o ácido peroxosulfúrico que, por isso, é conhecido como ácido de Caro. Na indústria, ele é aplicado na produção de desinfetantes e outros tipos de limpadores.

O historiador Shozo Motoyama, professor da USP, conta que, diferentemente do avô, Rheinboldt não se interessava pela pesquisa empresarial, embora reconhecesse a importância da pesquisa básica para o progresso da indústria a longo prazo. “Além disso, quando chegou à USP, Rheinboldt não introduziu temas da química de fronteira que estavam na moda na época, como fez o italiano Gleb Wataghin no Departamento de Física, ao tratar de assuntos de vanguarda, como raios cósmicos”, explica. No entanto, diz ele, o denominador comum entre eles era o perfil inovador. “No longo prazo, a atuação de Rheinboldt em campos como o da química orgânica sedimentou o caminho da química brasileira em várias ramificações, como a bioquímica, que se tornou um diferencial da USP”, diz Motoyama. n

da história da indústria química no mundo”, diz Henrique Eisi Toma, professor do IQ, que mantém as peças antigas em seu laboratório na USP. “Também serviram de referência histórica para que Rheinboldt promovesse uma mudança significativa na química brasileira, ao fazer pesquisa e utilizar novos métodos e técnicas comuns em laboratórios na Europa.”

Dentro dos vidrinhos há amostras de reagentes e compostos que marcaram a vida do avô. Caro iniciou a carreira na Universidade Friedrich Wilhelm, uma das mais antigas de Berlim, fundada em 1810, e que em 1949 mudou de nome para Universidade Humboldt. A entrada de Caro no universo da pesquisa empresarial se deu na década de 1850, quando teve contato com a técnica de impressão de calico (também chamado de chita), um tipo de tecido feito de algodão, tingido com corantes naturais. Entre 1859 e 1866, Caro

morou em Manchester, na Inglaterra, onde trabalhou na indústria têxtil. Lá, desenvolveu novas técnicas de tingimento de tecidos a partir de corantes artificiais.

Segundo Carsten Reinhardt e Anthony Travis, em livro publicado em 2000, a habilidade para resolver problemas de aplicação de novos corantes permitiu a Caro estabelecer contatos com químicos acadêmicos do Reino Unido e a promover interações entre pesquisadores ingleses e colegas da Alemanha. “Caro era uma mistura de artesão, industrial e cientista”, escreveram os autores. Na década de 1880, já de volta à Alemanha, Caro começa seu trabalho na Basf (Badische Anilin & Soda Fabrik), então uma pequena empresa com 166 trabalhadores. Caro foi o responsável por introduzir na empresa a alizarina, um corante vermelho usado para tingir tecidos cuja síntese artificial foi realizada por Caro no final da década de 1860.

Foto

S 1

wik

ime

diA

Co

mm

on

S 2

or

igem

do

iq-u

sp,

PASC

Ho

Al

Sen

iSe

Heinrich rheinboldt, na cabeceira da mesa, em almoço com professores alemães no restaurante Brasserie Paulista, em São Paulo, em 1939

1

Heinrich Caro (1834-1910): precursor da indústria química moderna

2

Page 93: O medo do estrangeiro

PESQUISA FAPESP 236 | 93

Budi Garcia, professor da Unicamp, repensa a música popular brasileira

O guitarrista e professor Budi Garcia com partituras de duas de suas composições

Outrora hostilizada a ponto de ter sido alvo de uma passeata de protesto em São Paulo em 1967, a guitarra elétrica hoje convive

pacificamente com instrumentos mais tradicio-nais da música popular brasileira. E não só nos palcos e estúdios de gravação. Também na acade-mia. Um dos responsáveis por essa mudança de status é o instrumentista e compositor Budi Gar-cia, professor dos cursos de música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde leciona estruturação musical e guitarra elétrica.

O goiano Budi – nascido Hermilson Garcia do Nascimento – integrou, em 1989, a primeira turma do curso de música popular da Unicamp. Até ali, completara dois anos da faculdade de jornalismo em Goiás, que havia começado com o objetivo de trabalhar na cobertura do cenário musical. Ingres-

Márcio Ferrari

ArtE

Um guitarrista na academia

Foto

Ric

aR

dO

cR

Uz

eiR

O

sar num curso superior de música erudita não era uma ideia que o atraísse. Quando finalmente foi criado um curso que correspondia a seus in-teresses, encontrou uma turma visivelmente ani-mada. “Provavelmente era sinal de uma demanda reprimida, prevista pelo maestro Benito Juarez quando convenceu o conselho superior a aprovar a criação de um espaço para a música popular na Unicamp”, diz Garcia. “No Brasil, a música popu-lar preserva um vínculo estreito com a realidade social, o que a destaca da música erudita.”

Se há resistência ao repertório popular nos meios acadêmicos, em relação à guitarra o estigma é duplo. “O Brasil é o único país que faz distinção vocabular entre violão e guitarra”, diz Garcia. A palavra “violão” teria nascido para diferenciar a guitarra da viola “caipira”. A oposição entre violão e guitarra não veio propriamente da eletrificação

Page 94: O medo do estrangeiro

94 | OutubrO DE 2015

Heraldo do Monte, pioneiro da guitarra elétrica no Brasil, inspirador e tema de pesquisa de Budi Garcia na Unicamp

do instrumento (que já existia desde a década de 1930), mas do surgimento do rock, identificado ideologicamente como música estrangeira inde-sejada. “Estava em jogo uma afirmação da identi-dade musical, o que foi até bom porque, nos anos 1960, a MPB pôde se mostrar para o mundo como algo diferente e único”, diz o músico.

A década já era a seguinte quando Garcia, ado-lescente e morador de Belo Horizonte, se interes-sou pela guitarra elétrica e pelo rock. Ele vinha tocando violão desde a infância, e a fase roquei-ra rapidamente enveredou pelo que na época se chamava de fusion, uma mistura de jazz e rock (com uma vertente que dialogava também com choro e bossa nova) que repercutiu fortemente entre músicos brasileiros como Heraldo do Mon-te, Hélio Delmiro e Toninho Horta.

“Assim, por via da guitarra, eu reencontrei a música brasileira”, diz o professor, que atualmen-te desenvolve na Unicamp a pesquisa “O projeto brasileiro do guitarrista Heraldo do Monte”, com apoio da FAPESP. Hoje com 80 anos, Heraldo sempre se dedicou à guitarra elétrica, passando praticamente ao largo do rock. “Sua atuação nos anos 1960 impulsionou a construção de um estilo com sotaque brasileiro e especialmente nordes-tino”, diz Garcia. Um dos objetivos acadêmicos do pesquisador era dar continuidade a trabalhos sobre a música popular brasileira feitos no cam-po das ciências humanas (sociologia, linguística e história sobretudo) em uma época em que a aca-demia só tinha espaço para a música de concerto.

Embora tenha se tornado professor da Uni-versidade Federal de Uberlândia (UFU) em 1994, Garcia resistiu em fazer pesquisa acadêmica. Não se sentia à vontade em partir para a teorização e

percebia um ambiente “muito refratário à mú-sica popular”. Estava habituado a tocar na noite de Goiânia e Belo Horizonte ao lado de músicos conhecidos (além dos já citados, o trombonista Raul de Souza e o pianista Wagner Tiso) e receava penetrar em um mundo que de início lhe pare-cia restrito. A pesquisa, se limitou sua presença em apresentações e gravações, não o afastou dos grandes nomes. Seu mestrado em 2001 foi sobre o pianista Custódio Mesquita, da era de ouro do rádio. No doutorado voltou-se para o maestro Cy-ro Pereira, nome importante da fase dos festivais dos anos 1960, que foi seu professor na Unicamp. Agora, estuda Heraldo do Monte.

As prioridades foram se invertendo para Budi Garcia e os afazeres acadêmicos hoje ocupam quase todo o seu tempo – embora, pela natureza da atividade musical, a prática e a teoria sempre andem lado a lado. O pesquisador acabou se tor-nando hábil na conciliação das duas atividades. A produção fora da universidade está um pouco dormente desde 2007, quando lançou o CD inde-pendente Azul marin. “Hoje tenho a perspectiva de fazer coisas mais pontuais”, diz.

Sua atenção está voltada para o lugar em que, na graduação, foi despertado para vários aspectos da música – entre eles os arranjos orquestrais ensinados por Cyro Pereira e as inspirações vin-das da música erudita, quando “invadia” aulas como as do compositor Almeida Prado. “Eu me encharquei daquele clima; foi muito transfor-mador”, diz Garcia. A meta agora é desdobrar a pesquisa sobre Heraldo do Monte em um proje-to maior para, trabalhando sobre a ideia de uma guitarra brasileira, explorar a criação de novas linguagens. n

ed

Ua

Rd

O K

na

pp

/ F

OlH

ap

Re

ss

Page 95: O medo do estrangeiro

PESQUISA FAPESP 236 | 95

Direito, predominando o discurso biologizante e naturalizador sobre os comportamentos trans-gressivos, entendidos como um atributo natural da mulher. Pouco peso se dava ao meio social em que ela vivia. Havia um discurso marcado pela patologização do comportamento feminino.

Na segunda parte do livro, a análise está cen-trada nos processos criminais, mais especifica-mente nas diferentes versões dos depoimentos, buscando destacar a argumentação mobilizada tanto nas visões dos representantes do Poder Ju-diciário quanto dos litigantes desde o inquérito até o processo no Judiciário.

Ao longo do livro vai se delineando um argu-mento de que apesar de essa mulher agir ativa-mente, ela própria se representa como passiva nos processos, corroborando para uma posição social e uma representação de gênero legitimada na so-ciedade patriarcal. A sua representação como frágil e passiva também serve como estratégia de defesa na Justiça. Seu ato criminoso, assim, é visto pelos representantes da Justiça como patologia, pois há um desvio daquilo que seria sua natureza feminina.

Os processos analisados mostram que havia uma tendência em não considerar os atos violen-tos femininos como crimes, sobretudo quando envolvem duas mulheres em situação de disputa amorosa. Esse argumento é fundamental para ex-plicar a absolvição tanto da mulher como autora do crime quanto do homem autor de violência nesse mesmo contexto. Mais importante do que punir os delitos, Rinaldi mostra que para o sistema de Justiça importa manter os vínculos conjugais, ou seja, o universo jurídico tende a não penalizar os crimes que eram cometidos no contexto de rela-ções amorosas. O que demonstra condescendên-cia com as mulheres autoras e legitima a violência doméstica, mostrando a importância e o peso que a instituição família ocupa na nossa sociedade, até mesmo nos dias atuais, que deve ser preservada acima de tudo! Este é um livro que, sem dúvida, servirá para promover o debate em várias áreas, tais como história, antropologia e direito, mais especificamente, no campo dos estudos de gênero.

A sexualização do crime no Brasil: Um estudo sobre criminalidade feminina no contexto de relações amorosas (1890-1940), pesquisa

de doutorado de Alessandra de Andrade Rinaldi, apresenta uma minuciosa análise de processos criminais de mulheres autoras de crimes contra seus companheiros ou suas “rivais” em disputas amorosas no período do primeiro Código Penal. Rinaldi mostra um processo de “sexualização dos crimes” na Justiça que está apoiado na naturaliza-ção dos comportamentos pautados em diferenças sexuais, ou seja, os crimes são julgados com base em padrões sociais do que são entendidos como comportamentos femininos e masculinos. Com base em um extenso material de pesquisa coleta-do, a autora faz dialogar dois campos do saber, o histórico e o antropológico, delimitando um pe-ríodo de análise entre 1890 e 1940 e realizando uma análise antropológica dos processos crimi-nais. O interesse foi perceber como os operadores do direito e os litigantes produzem e reproduzem representações sociais sobre relações de gênero, conjugalidade, relações amorosas e criminalidade.

Rinaldi se inspira no trabalho que foi um mar-co nesse campo de estudos, o de Maria Filomena Gregori com o livro Cenas e queixas: Um estudo sobre mulheres, relações violentas e prática femi-nista, de 1993, propondo uma análise que não tem a priori a mulher como vítima da violência no contexto de relações amorosas ou conjugais, mas sim como autora e produtora de violência. Rinaldi, assim como Gregori, mostra uma mulher que é o oposto da fragilidade e da passividade, uma mulher ativa, agindo conforme seus dese-jos. O trabalho não procurou entender por que as mulheres cometeram tais atos, investigou de que forma suas ações violentas foram percebidas e in-terpretadas pelos profissionais do campo jurídico.

O livro está dividido em duas partes. A primeira trata dos “crimes passionais”. A autora realiza um debate sobre o crime em geral no campo jurídico e médico-legal fazendo uma releitura brasileira da discussão sobre o próprio estatuto do crime, que no século XIX era entendido como resultado de um “psiquismo perturbado” e depois passa a ser visto como fruto de uma “natureza indivi-dual”, atributo da pessoa. Esse debate, no Brasil, incorporava as proposições da Escola Positiva do

Sexualização dos crimes femininos

A sexualização do crime no Brasil: Um estudo sobre criminalidade feminina no contexto de relações amorosas (1890-1940)Alessandra de Andrade RinaldiEditora Mauad X224 páginas | R$ 44,00

Marcella Beraldo de Oliveira

Marcella Beraldo de Oliveira é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de Antropologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

rESEnhA

Page 96: O medo do estrangeiro

96 | outubro DE 2015

ilu

str

ãO

da

nie

l b

uen

o f

OtO

lu

iz d

ema

tt

ê

Comprar e vender energia elétrica em um mercado formado atualmente por cerca de 1.800 empresas é a principal atividade de uma nova carreira que se firma cada vez mais no setor energético: operador do mercado livre de energia. É uma profissão multidisciplinar destinada principalmente a engenheiros, economistas e advogados. Na prática é uma oportunidade para o profissional egresso dessas áreas e que não deseja ficar na universidade ou dedicar-se a outras ocupações mais tradicionais. O salário inicial varia de R$ 7 mil a R$ 8 mil, além de bonificações semelhantes às dos operadores do mercado financeiro.

O mercado livre de energia é um ambiente de negociação, semelhante a uma bolsa, onde cada consumidor negocia o custo, os prazos de fornecimento, a forma de pagamento de cada um dos

tipos de energia em diferentes fontes: hidrelétrica, eólica, solar, biomassa ou térmica. Esses mercados possuem relações com as políticas públicas de energia, porque os preços variam segundo o tipo de geração, se grandes hidrelétricas, termelétricas, ou ainda usinas eólicas, solares, de biomassa ou pequenas hidrelétricas. Toda usina de energia está autorizada a vender um determinado número de megawatts por ano para esse mercado. As empresas podem optar entre vários tipos de contrato que são monitorados pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), uma instituição pública de direito privado e sem fins lucrativos, regulada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O mercado livre representa 25% de toda a geração de eletricidade distribuída no país coordenada pelo

Sistema Interligado Nacional (SIN), que redireciona a energia conforme a necessidade pelo território brasileiro.

“Para atuar como operador do mercado de energia, o profissional precisa ter conhecimentos específicos, como as normas da CCEE e da Aneel, além de saber negociar e formular preços futuros de energia, acompanhar a demanda e a oferta de eletricidade e ficar atento às previsões climáticas e ao nível dos reservatórios de hidrelétricas”, explica Reginaldo Medeiros, presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), que reúne 65 empresas que fazem ou intermedeiam a comercialização das empresas consumidoras e produtoras de eletricidade. A entidade se associou à Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia (FDTE), ligada à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), e promove todo ano uma prova para certificação de operadores de energia.

O próximo exame será em 24 de outubro, mas as inscrições já estão encerradas. Em 2016, as inscrições começam em junho. Atualmente são 53 profissionais certificados, embora o mercado opere com 300 funcionários. No Brasil existem mil empresas que comercializam energia, como a CPFL e a Light, além da Petrobras, Votorantim e usinas de etanol que poderiam empregar esse profissional. Os grandes consumidores, como Volkswagen e Ford, e empresas produtoras de aço e ferro, como a Companhia Brasileira de Alumínio, também podem contratar esse profissional.

Medeiros revela que o certificado é um dos pré-requisitos para a nova carreira profissional. “Queremos transformar o operador em uma carreira registrada no Ministério do Trabalho e com cursos regulares de graduação nas universidades.” n Marcos de Oliveira

novas oportunidades

Profissional da energiaoperador de mercado livre precisa de certificado e deve se transformar em nova profissão

carreiras

Page 97: O medo do estrangeiro

PesQuisa faPesP 236 | 97

perfil

Veterinário orgânicotese de diretor de empresa ganha prêmio Capes na área de ciências ambientais

A experiência das pessoas que trabalham em uma empresa produtora de carne de frango e ovos em um sistema de agricultura natural ou orgânica foi o tema da tese de doutorado vencedora na área de ciências ambientais do Prêmio

Capes 2015. O médico veterinário Luiz Carlos Demattê Filho, autor da tese, diretor industrial da Korin Agropecuária e coordenador do Centro de Pesquisa Mokiti Okada (CPMO), mostrou o desenvolvimento ambiental, social e econômico dos produtores e colaboradores da empresa. Eles orientam seus trabalhos sob princípios de sustentabilidade em que, dentre uma série de diferenciações, os animais não recebem antibióticos, promotores do crescimento e quimioterápicos como nas granjas tradicionais.

“Abordei a multifuncionalidade da agricultura no sentido de esse setor não ser apenas um negócio, mas também um meio social, que preserva a natureza e a cultura de uma área agrícola”, diz Demattê, que concluiu o estudo em 2014, quando fez 51 anos de idade. Ele foi orientado pelo professor Paulo Eduardo Moruzzi Marques no Programa Interunidades de Pós-graduação em Ecologia Aplicada da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). Ele explica que as granjas tradicionais de carne de frango e ovos não utilizam hormônios, e sim antibióticos e outros medicamentos na ração, para prevenir doenças e promover a engorda rápida dos animais.

Desde o tempo de faculdade, ele procurou sempre se envolver com métodos diferenciados de produção, incluindo a agricultura orgânica. Começou estudando medicina veterinária na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu. Formado em 1986, trabalhou como veterinário autônomo, em clínicas e haras, e foi professor na Universidade de Marília (Unimar), entre 1995 e 1997. “Ministrei aulas de fisiologia da reprodução e obstetrícia na Unimar. Foi um período interessante, minha experiência prática já era grande e fazia sucesso com os alunos porque eu os tirava da sala para trabalhar no campo”, lembra. Entre 1994 e 1999, quando ainda dava aulas, ele trabalhou na Fundação Mokiti Okada para realizar estudos na área de métodos orgânicos na produção pecuária.

Em 2000, Demattê transferiu-se para a Korin e viu a necessidade de avançar nos estudos. Aos 38 anos entrou no mestrado na área de zootecnia na Unesp. Depois fez especialização em gestão empresarial na Fundação Getulio Vargas (FGV), em Campinas, sempre com foco na produção alternativa de frangos e ovos. “Fui buscar conhecimento para melhorar a produtividade sem comprometer os ideais da empresa voltados para a produção natural, orgânica e de base agroecológica”, conta. O doutorado na USP teve uma parte realizada na Universidade de Aarhus, na Dinamarca. Para ele, ainda faltam disciplinas nas universidades sobre agricultura orgânica, que possam formar profissionais para essa área em que as vendas, usando como exemplo a Korin, sobem de 20% a 25% ao ano. n M. O.

trajetória de ex-alunos da unespFicar vinculado à universidade mesmo depois de deixar a graduação ou a pós-graduação pode fazer bem para a trajetória profissional de ex-alunos. É o que propõe a Universidade Estadual Paulista (Unesp) ao lançar o portal Sempre Unesp. “Para a universidade é bom ter um retorno e saber como os ex-alunos se desenvolveram profissionalmente depois da formação. Isso ajuda a própria universidade a avaliar a formação. Para os egressos, permanecer vinculado à instituição permite formar uma rede de profissionais, montar grupos de ex-alunos e ter informações sobre a evolução da profissão”, explica a professora Maria de Lourdes Spazziani, assessora da Pró-reitoria de Graduação da Unesp. Nos Estados Unidos, esse vínculo pós-universidade é comum, na Europa está se tornando mais valorizado e no Brasil ainda é incipiente. “Formar redes de profissionais que são ex-alunos pode facilitar o próprio trânsito na carreira.”

Maria de Lourdes informa que o ex-aluno, ao se inscrever no portal, continuará a ter descontos na editora da universidade e participará do banco de estágios e do banco de empregos quando esses sistemas estiverem disponíveis. “Vamos fazer reuniões com os diretores das unidades para que eles colaborem acionando órgãos de classe, por exemplo.” Em mais de um mês, 5 mil ex-alunos atualizaram seus contatos no site. “Até o fim do ano vamos fazer uma ação nos nossos sistemas de graduação e pós-graduação para contatar mais de 100 mil ex-alunos por meio de um convite. Nossa meta é atingir 10 mil egressos para o portal com a colaboração das associações de ex-alunos já existentes”, diz. O portal pode ser acessado pelo site www.unesp.br/sempreunesp/. n M. O.

Page 98: O medo do estrangeiro

98 | outubro DE 2015

_ Anuncie você também: tel. (11) 3087-4212 | www.revistapesquisa.fapesp.brclassificados

FAÇA DOUTORADO E MESTRADO NA ESPM

Inscrições abertaswww.espm.br/doutoradoemestrado

Nosso banco de imagens possui um vasto acervo de fotos composto de

temas variados ligados a ciência e tecnologia

fotografia

tEXto

Os textos produzidos todos os meses pela nossa

equipe podem ser adquiridos por editoras que desejem

utilizá-los em livros didáticos

infográfico

Também produzimos infográficos sobre

temas científicos que ilustram nossas

reportagens

o conteúdo de PEsquisa faPEsP

não termina aqui

Contato: (11) 3087-4212 ou envie e-mail para [email protected]

consultE-nos! www.revistapesquisa.fapesp.br

Page 99: O medo do estrangeiro

O que a ciência brasileira produz você encontra aqui

Assine com até 50% de desconto

revistapesquisa.fapesp.br | [email protected]

Page 100: O medo do estrangeiro

A 12ª Semana Nacional de Ciência e Tecnologia aborda o tema

Luz, Ciência e Vida com novidades que vão iluminar sua mente.

Quem é curioso participa.

#SintonizeCiência

facebook.com/sintonizemcti

twitter.com/mcti

Acesse semanact.mcti.gov.br

e confira os eventos no seu Estado.

SABIA QUE O SINAL DE LUZ TRANSMITE DADOS COM VELOCIDADE MIL VEZES MAIS RÁPIDA?Por meio da fibra ótica, os dados são transformados em luz, o que permite download a uma velocidade de 1.280 MB/s. A transmissão pelo cabo de cobre chega no máximo a 1,25 MB/s.

MCTI_SNCT_Revista_Pesquisa FAPESP_208x275mm.indd 1 22/09/15 16:19

100_4a CAPA_AnuncMCTI_236.indd 100 05/10/15 15:54