O menino que acariciava os cabelos - Kochka -A5 menino... · 2013-04-04 · Maougo abriu a porta....

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da minha cama. Era Matthieu. Para o conquistar, era preciso questionarmos as regras, os preconceitos, a linguagem, e atirarmo-nos na sua direcção, sem medo de atravessar o espaço. Quando for grande, quero ser educadora de crianças autistas. Matthieu é a minha “Guerra das Estrelas”! Um dia depois, dei um salto à casa de Marie antes de ir para a escola. Queria saber como tinha sido a noite de Matthieu, para poder escrever no diário. Toquei à campainha. Maougo abriu a porta. Ao ouvir a minha voz, Matthieu rebolou como um cão louco. O tapete persa transformou-se em torrente, e ele, mergulhando as mãos no meu cabelo, gritou o meu nome! Kochka L’enfant qui caressait les cheveux Paris, Ed. Grasset-Jeunesse, 2002 (Tradução e adaptação) O MENINO QUE ACARICIAVA OS CABELOS

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da minha cama. Era Matthieu. Para o conquistar, era preciso

questionarmos as regras, os preconceitos, a linguagem, e atirarmo-nos

na sua direcção, sem medo de atravessar o espaço. Quando for grande,

quero ser educadora de crianças autistas. Matthieu é a minha “Guerra

das Estrelas”!

Um dia depois, dei um salto à casa de Marie antes de ir para a

escola. Queria saber como tinha sido a noite de Matthieu, para poder

escrever no diário. Toquei à campainha. Maougo abriu a porta. Ao ouvir

a minha voz, Matthieu rebolou como um cão louco. O tapete persa

transformou-se em torrente, e ele, mergulhando as mãos no meu

cabelo, gritou o meu nome!

Kochka L’enfant qui caressait les cheveux

Paris, Ed. Grasset-Jeunesse, 2002 (Tradução e adaptação)

O MENINO QUE ACARICIAVA OS CABELOS

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Parecia um diabrete sob a lua cheia alagada pela chuva, nesta mini-

clareira rodeada de cedros, de sabugueiros e de silvas. O rosto pálido

olhava na direcção do astro e as mãos continuavam o seu caminho

independente e frenético. O tama chamava sem parar quando, de

repente, a luz enfraqueceu. Erguemos a cabeça. No cimo do muro, à luz

da lua redonda, recortava-se o corpo de um cão. Era François. Imóvel

como um cão de pedra, olhava para nós.

*

O regresso a casa fez-se com grande calma. O grupo estava

completo. François era o nosso elo de ligação. Já não era o cão louco a

quem a liberdade tinha dado volta à cabeça. Corria de forma tranquila e

responsável. O seu desaparecimento tinha-lhe permitido aprender o

caminho. Não o caminho de um cão selvagem que procura o lobo, mas o

caminho de um cão pastor que junta os animais perdidos. Quanto a

Maougo, retomou o seu lugar na retaguarda, cantando, com uma voz

grave, palavras incompreensíveis. Como se nos quisesse empurrar.

Retomámos a rue du Repos em sentido contrário. No nº 7 da rue

Merlin, a histeria era colectiva: Fatoumata, Mamassa, Soulimane,

Balthazar, toda a árvore genealógica estava plantada no passeio. Em

frente ao nº 11, ao ver o seu amorzinho tão molhado, tão bonito, tão

diferente, a senhora Demarotte quase tinha uma crise cardíaca…

Quanto aos meus pais, tive de inventar uma história.

Marie esperava no 5º andar. À noite, despedimo-nos de François.

Mme. Demarotte, sem desconfiar de nada, abriu a cesta: «Salta, meu

coelhinho!» disse-lhe. Mas François ignorou-a e caminhou com

dignidade. Qual leão na savana, afastou-se tranquilamente em direcção

a um qualquer pôr-do-sol.

*

Na noite seguinte, levantei-me e fui colocar uma estrela debaixo

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apelo. Três vezes o mesmo grito na noite. Depois de uma pausa,

prestámos mais atenção ao eco… De repente, lá estava ele, o latido que

emergia... No início, era distante; depois, tornou-se mais próximo. Tão

próximo que quase recuámos. Era François! François estava ali, atrás do

muro do cemitério! Uma bolinha em forma de cão a correr ao longo do

muro, levantando as folhas.

*

Lançámo-nos contra o muro, gritando. Maougo não se mexia, mas

o seu olhar movia-se. Dir-se-ia que descansava. Quanto a Matthieu,

recuou alguns passos e, com o tama às costas, começou a escalar a

grade do Jardin Naturel. O Jardin Naturel é um parque público onde

fauna e flora coabitam, espontâneas, em harmonia. Nós tínhamo-lo

visitado, com a escola, no início do ano. Matthieu subia como um

macaco. Era surpreendente. Nunca tinha visto ninguém assim: tão

desajeitado algumas vezes e tão ágil outras tantas. Escarranchado sobre

a grade, saltou nos ares e, amortecendo a queda de forma perfeita,

aterrou no jardim, desaparecendo por entre a vegetação.

Maougo encostou-se à grade, oferecendo-nos o seu corpo como

uma espécie de escadote. Apesar de ser boa em ginástica, espalhei-me

logo no chão. Théo não foi capaz de fazer melhor. Maougo fez-nos sinal

para continuarmos. Ficaria à nossa espera na rua. Por uma qualquer

razão misteriosa, ela queria ficar longe de nós. Segurei, então, a mão de

Théo e metemo-nos debaixo dos ramos que roçavam os nossos cabelos.

*

Não víamos absolutamente nada. Contudo, demo-nos conta, pelo

som, onde estava Matthieu. Guiámo-nos pelo toque do tama. Apertei

mais a mão de Théo. O som do tama parecia mais próximo. De repente,

atrás da vegetação, lá estava Matthieu, de pé, com o tambor sobre um

banco, em frente a um dos raros troços da vedação sem arame farpado.

Para Matthieu, o meu anjo

Capítulo 1

Chamo-me Lucie e vivo em Paris, no 11º Bairro. Quando for grande,

quero ser educadora de crianças autistas. Conheço uma pessoalmente: é

o meu vizinho Matthieu. Quando o conheci, tinha ele quatro anos, as

coisas não correram muito bem. Contudo, desde então, passei a visitá-lo

com alguma frequência e, sempre que o faço, digo para mim mesma que

se trata verdadeiramente de ALGUÉM... porque não se parece com

ninguém.

A história começou quando mudámos para o 4º andar esquerdo

do nº 11 da rue Merlin. Estávamos, então, em Setembro. Eu tinha doze

anos e não conhecia ninguém. Por isso, tomei secretamente a decisão

de conhecer todos os meus vizinhos. Cheguei mesmo a elaborar um

plano de acção. Assim que o ano lectivo começasse, iria “tomar de

assalto”, um a um, todos os andares, e prender com pionés, no meu

quarto, as bandeiras das diferentes nacionalidades que encontrasse.

Atendendo à quantidade de nomes estrangeiros nas caixas do correio,

as minhas expectativas eram ilimitadas. Contudo, a presença de

Matthieu na minha vida alterou todos os meus planos.

Eu tinha acabado de entrar para o 7º ano e este era o primeiro

sábado, depois do início das aulas. Como os vizinhos de cima estavam a

fazer uma algazarra, o meu pai vestiu o roupão à pressa e subiu para ver

o que se passava. Curiosa, dispus-me a segui-lo. Mas fiquei onde estava

quando o vi, muito agitado, a ignorar o elevador e a correr pelas escadas

acima.

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Marie abriu-lhe a porta. Marie, cuja voz doce eu já tinha fixado, é a

mãe de Matthieu. Pus-me à escuta, na esperança de ouvir alguma coisa

empolgante para depois contar na escola, mas … nada! Nem uma

palavra mais alta do que outra! Aliás, nem se ouvia uma única palavra!

Pouco tempo depois, o meu pai desceu como se nada tivesse

acontecido, trocou algumas palavras em voz baixa com a minha mãe, e

foi fazer outra coisa. Como continuava a ouvir-se um ruído seco, jurei a

mim mesma tirar tudo a limpo. Então, na manhã seguinte, quando fui

buscar o pão, subi.

Na porta do apartamento do 5º andar estava afixado um desenho

engraçado, representando uma criança com as mãos grandes como asas

e com grandes orelhas. Toquei à campainha, sem saber muito bem o

que iria dizer. Uma senhora que nunca tinha visto abriu a porta. Pela

idade, podia ser a mãe de Marie. Contudo, não era nada parecida com

ela. Cumprimentei-a, olhando-a nos olhos. (A minha mãe diz, muitas

vezes, que sou uma rapariga decidida). A senhora sorriu-me e afastou-se

para me deixar entrar. Esta recepção agradável mas silenciosa

desconcertou-me, já que sou tagarela por natureza. A porta de entrada

dava para um corredor onde se estendia um longo tapete persa. Ia

apresentar-me quando Matthieu apareceu.

«Era belo, era loiro, cheirava a areia quente…» foram as palavras

que me vieram logo à cabeça, quando o vi ao fundo do corredor. Na

verdade, era moreno, pequenino, pálido, e de cabelo encaracolado,

nada parecido com o herói de uma canção que a minha mãe passava a

vida a cantar. Porém, era tão bonito que podia inspirar uma canção.

Matthieu levantou-se, estouvado como um cão, saltou-me para cima

(pouco faltou para eu cair) e, pondo-se em bicos de pés, começou a

mexer nos meus cabelos. Gritava como um pequeno selvagem,

enquanto passeava os dedos pelo meu cabelo com muita destreza. De

vez em quando, dava um grito e desatava a rir. Depois, cada vez mais

terceira entrada, com um pórtico de pedra onde se alinhavam,

ordenadamente, pombos tranquilos e aconchegados.

Sem prestar atenção às aves adormecidas, Matthieu deteve-se,

tocando cada vez mais alto. Tinha o corpo tenso e as mãos

desgovernadas. Na rue Bagnolet, as suas mãos calaram-se. Depois de

alguns momentos silenciosos, com excepção do ruído da chuva que

tudo esmagava, o apelo renovou-se, mais forte. Eram gritos de mãos a

rasgar a escuridão e o silêncio.

Maougo nada dizia. Théo e eu também não. Estávamos suspensas

dos gestos de Matthieu. Ocorreu-me a passagem de Jack London:

Obedecendo ao apelo que só ele próprio ouvia, seguia em frente, diante de

si, durante horas, sob as cúpulas da floresta… Que irresponsável tinha

sido! Fora por culpa minha que François tinha desaparecido. Eu e as

minhas ideias de liberdade... Um cãozinho tão pequeno. Não era Buck!

Nem sequer um cão de guarda! Era um cão de pêlo curto, nascido para

ser mimado! Um daqueles que, quando vêm os primeiros frios, usam

pequenos agasalhos escoceses.

Deixámos de ouvir o ruído dos carros. Só se ouvia o tama. Atrás

do muro, as árvores recebiam a água do céu numa sinfonia perfumada.

Eu pensava em Balthazar e nos sons que teriam sido ouvidos nos

primórdios do planeta, antes do aparecimento da vida. Pensava no

canto das baleias, visto que o mar é o espelho do céu. Mas François não

tinha o instinto dos animais selvagens. Nunca encontraria o seu

caminho. Ele não se tinha perdido. Tinha sido eu que o perdera!

Subitamente, pensei ouvir um som. Um latido isolado. Estaria a

sonhar? Olhei para Théo e vi que também ela o tinha ouvido. Quanto a

Maougo, parou, estática. A ilusão individual é frequente, mas não a

alucinação colectiva. Matthieu pôs-se a bater com intensidade e o meu

coração foi embalado pelo ritmo das suas mãos. Sempre o mesmo

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Marie ainda não tinha chegado, e Maougo andava em volta das panelas.

Fizemos-lhe um resumo confuso da situação e, apesar da trapalhada, ela

compreendeu. Parecia que já conhecia a história antes mesmo de lha

termos contado! Por isso, estava à espera da nossa visita… A prova é

que apagou logo o lume. Tomados os cuidados necessários, tirou o

avental e pôs-se à nossa disposição.

Fomos para o corredor. Matthieu já lá estava com o tambor nas

mãos e calçou-se. Num abrir e fechar de olhos, deu a volta à chave e

desatou a fugir. Maougo estendeu os braços — não para o deter, mas

para não o perder. Matthieu começou a correr e fomos no seu encalço.

*

Era um fim de tarde chuvoso de Janeiro. Os passeios estavam

desertos. Matthieu atravessou sem hesitar a rue Folie-Régnault, a rue

Roquette e foi até ao Père-Lachaise. Corria com largas passadas, como

que guiado pelo instinto.

Às 18h e 10m, a porta do cemitério fechava. Matthieu seguiu pela

rue du Repos, do lado direito do cemitério, segurando o tambor debaixo

do braço como se fosse um megafone. A rue du Repos era estreita e

silenciosa. Só se ouviam os nossos passos. Um cantoneiro varria a água

da chuva. Parecíamos sombras. De repente, Matthieu começou a tocar o

tama. Apesar da altura da vedação que delimitava o cemitério, os sons

subiam e ultrapassavam a parede. Matthieu gritava com toda a força,

pisando o pavimento. Tinha a força de uma locomotiva. Eu fechava o

grupo.

No nº 16 da rue du Repos, a segunda entrada estava fechada. Dela

pendia um corvo imobilizado. Parecia de ferro, mas deu um grito que me

sobressaltou. Passámos pela nossa rua. Na rue de Bagnolet, o piso

irregular dava lugar ao asfalto. A rua subia cada vez mais. Matthieu não

parou na rue Ligner e acelerou o passo na rue de la Réunion. Havia uma

agitado, repetia constantemente:

— Estás despenteada. Estás despenteada.

Foi então que a senhora interveio. Sem deixar de sorrir, e sempre

em silêncio, puxou-o para si e ofereceu-lhe a sua cabeça, que Matthieu

aceitou. Ou seja, as mãos dele deixaram os meus cabelos para se

perderem nos dela. Matthieu desatou o elástico que os prendia e

esguedelhou-os todos. Eram cabelos loiros, crespos, nos quais os dedos

de Matthieu mergulhavam e vinham à superfície. Por fim, o menino riu-

-se e fugiu.

Após a tempestade, veio a bonança. A senhora apanhou o elástico

e alisou os cabelos, tentando compô-los. Tudo pareceu voltar ao seu

lugar. Só eu permanecia ali, perdida. Quando a senhora me abordou

para saber o que pretendia com a visita, fiquei muda, o que nunca me

acontece. Finalmente, balbuciei duas ou três palavras para dizer que

voltaria. E saí, disparada. Quando saí, a senhora fechou a porta

calmamente, como se nada de especial se tivesse passado. Só quando o

espelho do elevador me revelou a minha linda figura, é que comecei a

acalmar-me.

*

No passeio, os meus pés correram para a padaria, embora a minha

cabeça tivesse ficado naquele 5º andar. Comprei o pão e, quando

regressei, Marie estava a chegar. Parecia apressada. Ao ver-me, segurou

a porta. Corri e saudei:

— Bom dia, minha senhora!

Fi-lo com vivacidade e na esperança de que o diálogo continuasse.

Ela estendeu-me a mão:

— Bom dia, chamo-me Marie! E aposto que tu — acrescentou —

és a minha nova vizinha de baixo.

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Com um sorriso sereno, assenti, inclinando a cabeça. Tratava-me

de igual para igual, apesar da diferença de idades e parecia muito

delicada. Depois acrescentei:

— Chamo-me Lucie. Não se preocupe com o barulho de ontem à

noite porque acabei por adormecer.

Assim que me apercebi do alcance das minhas palavras, arrependi-

-me. Como tinha falado demasiado depressa, ela iria pensar que se

tratava de uma crítica velada, quando eu pretendia fazer precisamente o

contrário. Ainda bem que Marie é perfeita. Quando o elevador chegou

ao meu piso, disse:

— Tive muito gosto em conhecer-te, Lucie. Às vezes é difícil

conter o Matthieu. O Matthieu é meu filho. É autista, mas tem vindo a

melhorar.

Num único momento de diálogo, senti afabilidade, amor e

esperança. Mas não compreendi tudo, visto que desconhecia o

significado da palavra-chave da frase.

A minha mãe achou que eu tinha demorado imenso tempo a

comprar pão.

Capítulo 2

Era domingo, o único dia da semana em que tomávamos o

pequeno-almoço em família. De repente, perguntei:

— O que significa “autista”?

Aos doze anos, achava que “autista” tinha algo a ver com “otite”.

Após um momento de surpresa, o meu pai exclamou:

— Vejo que continuas a escutar atrás das portas!

É incrível como os pais ficam angustiados quando queremos saber

Senti o sangue parar e pensei em todos os animais que são

abandonados nas auto-estradas. Os corações murcham antes de florir,

porque o amor demora tempo a desabrochar. Foi então que se passou

uma coisa incrível: François levantou a pata e, olhando o meu pai nos

olhos, fez chichi no tapete! Era a primeira vez que tal acontecia e não foi

por acidente. Foi de propósito. Enquanto o meu pai reagia, segurei no

cão. Tinha de o tirar daquela dificuldade, sem dúvida a maior que ele

tinha vivido até então. Disse, pois:

— Ele não quer ficar sozinho. Vou pô-lo em casa da Théo.

Deixando o meu pai furioso, levei François. E nada mais

acrescentei.

*

No nº 7 da rue Merlin, François transpôs com altivez a porta

aberta. Para o avô, era a melhor coisa que podia acontecer. Saí com

Théo e contei-lhe o feito vitorioso. Infelizmente, o cãozito não sossegou

e quando, à noite, o fui buscar, encontrei um Balthazar muito abatido.

François tinha desaparecido. O avô parecia vinte anos mais velho.

— Já corri as praças, os talhos, os jardins, mas ninguém o viu.

Nenhuma de nós queria acreditar. Sobretudo eu. Os Demarotte

regressavam nessa noite: o que iríamos dizer-lhes? E aos meus pais!

Logo num dia que tinha começado bem mal. Já imaginava o meu pai a

dizer:

— Lucie, nem sabes onde esta raiva me pode levar!

Foi então que pensámos em Maougo e desatámos a correr. Como

era uma fada, teria certamente a solução!

*

No 5º andar, Matthieu alinhava as personagens do Walt Disney,

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Capítulo 10

Na última noite de férias, os De Marotte de Montigny telefonaram

a dizer que viriam no dia seguinte. A minha reacção foi:

— Que aborrecimento!

No entanto, tudo correu bem. François só ficaria sozinho por mais

um dia. A minha mãe chamou:

— Lucie, eles querem ouvir o cãozito.

Dei uma gargalhada:

— Um cão ao telefone, era só o que faltava!

Sentindo a raiva a invadir-me, gritei:

— Não pode ir, está ocupado a ouvir os sons da floresta!

A minha mãe deitou-me um olhar fulminante, mas não cedi. Pobre

animal. Há limites para o ridículo…

No dia seguinte, quase à hora de sairmos – os meus pais para o

escritório e eu para a escola – François instalou-se diante da porta para

impedir a nossa saída. Atendendo à sua estatura, era fácil afastá-lo.

Contudo, a sua determinação parecia pesar mais de uma tonelada, o que

me inspirava um certo respeito. Do mesmo modo que é preciso ouvir as

lágrimas, também devemos escutar as revoltas.

Compreendia que François estivesse zangado comigo, porque

achava que estava a abandoná-lo. Tínhamos passado quinze dias lado a

lado, partilhando a mesma exaltação perante a imensidão do mundo, e

bastava um toque de campainha para o deixar. Sentia-me mal. Baixei os

olhos em sinal de desolação…Mas, o que podia eu fazer? Ia fazer-lhe

uma festa quando o meu pai, olhando para o relógio, empurrou o cão

para o lado. Não era altura para mimos.

coisas. Têm medo que cresçamos demasiado depressa. Estou sempre a

expor-me ao confronto parental, porque faço muitas perguntas.

A minha mãe disse:

— Não se devem deixar perguntas sem resposta, senão a dúvida

permanece.

O meu pai objectou:

— Mas o que pode ela entender sobre isso?

A minha mãe retorquiu:

— Não importa. Simplifica, mas dá-lhe, por favor, uma resposta!

O meu pai virou-se, por fim, para mim:

— Um autista é uma pessoa diferente.

E inclinou a cabeça sobre a chávena de café.

Então, fiz de conta que era burrinha.

— Diferente como? Queres dizer que tem grandes orelhas?

O meu pai irritou-se, pegou no Petit Larousse, folheou-o com um

indicador impaciente, e leu num tom neutro:

— Autista: Atingido de autismo.

Como fez uma pausa, pensei que, já farto, fosse ficar por ali. No

entanto, continuou:

— Autismo (do grego, auto, próprio): isolamento patológico num

mundo interior com perda de contacto com a realidade e impossibilidade

de comunicar com os outros.

Leu-me a definição duas vezes para me mostrar a sua grande

paciência. Depois explicou com grande benevolência:

— Patológico quer dizer anormal: isolamento anormal num

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mundo interior com perda de contacto.

Satisfeito com a demonstração, passou-me o dicionário e voltou

para a cozinha, tranquilamente.

Interroguei-me sobre esta definição obscura e, pensando no

dever de educação dos pais, decidi ir ter com Marie. Afinal de contas, foi

ela que pronunciara a palavra problemática e teria, decerto, muito gosto

em explicar-ma. Resolvi, então, ir a casa dos meus vizinhos.

*

O que aconteceu à hora do chá, quando os De Marotte de

Montigny chegaram com François. Os De Marotte de Montigny, a quem

chamo Demarotte para não cair em exageros, vinham tomar chá todos

os domingos. Nunca compreendi o que os meus pais viam neles. A

senhora, que de inteligente tinha pouco, falava pelos cotovelos. Quanto

ao marido, entrava mudo e saía calado. Felizmente, apesar de parecer

um rato, François animava as coisas. François era o seu animal canino de

estimação. Ou melhor, o cão dela. Um verdadeiro bibelô: muito

pequenino, encolhidito, ensinado a ser discreto e a não mexer em nada.

Quando o vi pela primeira vez, tive pena dele. Não tinha uma vida

de cão! Tentei, em vão, mostrar isso aos donos e pensei mesmo

apresentar queixa na SPA por tratamento contra a natureza do animal.

Mas, depois de ter pensado melhor, optei por uma atitude de

resistência: secretamente, ajudaria o bichinho a emancipar-se.

Tinha apenas uma hora por semana para mudar os maus hábitos.

O meu objectivo era fazer com que, pelo menos durante uma hora, ele

fosse, de facto, um cão. Era essencial que se tornasse mais natural, que

se sentisse vivo! Resumindo, era preciso insuflar-lhe energias para toda a

semana. No início, agi calmamente para não o assustar. É duro darmo-

-nos conta de que temos de mudar. Aliás, nos primeiros tempos, andava

desconfiado. Eu levava-o à praça onde os cães se juntavam, mas

— Estes sons — sussurrou Balthazar — devem ter sido ouvidos,

nos primórdios da existência do nosso planeta, antes da aparição do

homem.

Depois surgiram os ruídos da evolução humana. Ouviu-se o fogo, a

roda, a idade do ferro, o telégrafo e sei lá mais o quê… Seguiram-se

saudações em línguas diferentes e músicas de todos os lugares. Por fim,

ouvimos o canto das baleias na imensidão azul do fundo dos mares.

Quando terminou a cassete, subimos as persianas.

— Todos estes sons — explicou Balthazar — foram gravados num

disco de ouro que viajou até às estrelas num engenho espacial, que ia ao

encontro de eventuais civilizações. O objectivo dos sábios era que os

homens apresentassem a Terra no que ela tem de mais maravilhoso. É

uma mensagem de amor enviada ao infinito…

Seguiu-se um silêncio cósmico e depois Bathazar prosseguiu:

— Talvez nunca ninguém encontre esta mensagem. Talvez não

seja nunca decifrada. Talvez não compreendam a linguagem, mas

entenderão as nossas emoções através das nossas músicas. Nunca se

sabe… É importante tentar!

No final do dia, eu ainda falava com os meus botões… Depois da

minha descoberta dos mundos interiores, abria-se agora diante de mim

um mundo exterior sem limites, um mundo do qual, num impulso de

comunicação intenso, o amor partira num foguetão. A minha batalha

para reencontrar Matthieu era idêntica e, por isso, escolhemos a via da

música.

Quando os meus pais regressaram à noite, o meu quarto estava

submerso nos oceanos. Desconheço o que pensaram. O canto das

baleias atravessava as águas profundas e, apesar do pedido da minha

mãe, recusei o jantar. Deitei-me e adormeci. François velava sob um

pinheiro.

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amor e lutar por crescer. Foi, contudo, colocada, sem mais explicação,

para que cada um reflectisse por si mesmo. Por fim, inseriu-se confiança

e coragem.

Quando acabámos, a mudança era total! Recuámos para ver:

parecia-nos perfeito! Théo sugeriu que disséssemos ao avô para vir ver:

— Balthazar dá bons conselhos porque é um velho louco e sábio

ao mesmo tempo.

Fomos procurá-lo e ele seguiu-nos com «a maior honra, meninas, e

o maior prazer». As frases de Balthazar levam o seu tempo e vêm

sempre a propósito. Passou pela porta, passeou o olhar pelo quarto e

sentou-se para não cair. Quando recuperou a voz, bateu no colchão com

as mãos, num compasso crescente. Era como o canto do galo que

acorda o sol. Se Matthieu o pudesse ver!

Depois, disse, por palavras:

— Fantástico! Meu Deus, tenho duas netas artistas! Mas oiçam…

falta qualquer coisa… Não ouvem?... O som da terra, o som das árvores,

o ruído dos bichinhos, a respiração do mar… A MÚSICA! Falta a música

do mundo.

Depois levantou-se com determinação e disse:

— Venham a minha casa. Tenho exactamente aquilo de que

precisam!

Saímos. No nº 7 da rue Merlin, passámos pela porta que de nada

servia porque estava sempre aberta. Balthazar desapareceu,

regressando com uma cassete, onde se podia ler «THE SOUND OF

EARTH». Sem nada dizer, fechou as persianas e deixou tudo às escuras.

No início, não se ouvia nada. Depois, escutaram-se uns estalidos, ruídos

de asas e gritos de animais.

François ficava a um canto, com ar aflito, a esfregar as patas. Depois,

com o tempo, começou a abanar a cauda e, quando chegava a nossa

casa, tinha um brilhozinho nos olhos que me deixava orgulhosa.

Na primeira visita ao novo apartamento, os Demarotte chegaram

com o cachorrito e eu propus-me logo levá-lo a passear. A senhora

concordou, com a condição de não demorarmos muito. Ficaram a ver-

-nos partir: eu, calma e firme como uma rapariga responsável; ele,

caminhando na ponta das patas, como fazem os cães de apartamento.

Logo que a porta se fechou, François saltou para os meus braços!

Que tratante! Não tinha ficado nada confuso com a mudança de lugar.

Subimos as escadas. No 5º andar, o desenho na porta intrigava-me cada

vez mais. Toquei à campainha.

*

Foi a própria Marie quem abriu a porta.

— Desculpe — comecei — vim por causa daquilo que a senhora

disse… Sabe, sobre o seu filho autista… Consultei o Larousse, mas a

definição é bastante complicada para a minha idade. Pode explicar-me

melhor?

Marie levou algum tempo a responder — a reflexão exigia

silêncio. No apartamento, o sossego era absoluto. Finalmente, falou:

— O Matthieu deve estar a chegar. Saiu com a Maougo. Sabes, o

autismo é uma coisa complicada.

De repente, pensei que estava a esquivar-se, mas prosseguiu:

— Gostaria muito de te falar sobre o assunto, mas não à porta.

Uma noite destas, se quiseres, anda cá jantar.

— Posso vir? — perguntei, incrédula.

Marie propôs-me a sexta-feira seguinte. Como propostas destas

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não podem ficar sem resposta, exclamei:

— Cá estarei!

Fiquei nas nuvens. Ia conhecer o apartamento para além do

corredor onde se estendia o tapete persa….aquele tapete que parecia

um rio, cujo curso me apetecia tanto seguir.

A pensar nessa noite, perguntei:

— Aquela senhora de cabelos loiros que eu vi hoje de manhã é sua

mãe?

— Não, mas quase — respondeu Marie.

E prosseguiu:

— A Maougo é russa e não sabe falar francês. Só a conheço há

dois anos, mas mudou a minha vida.

Depois explicou-me a sua situação, numa voz cheia de cansaço. A

licença de maternidade tinha chegado ao fim. Era sozinha a educar o

filho e tinha de voltar ao emprego de bibliotecária. Nenhum infantário

tinha aceite a criança associal, hiperactiva e barulhenta. Pusera, então,

um anúncio, no jornal, e Maougo respondera.

— No início, só vinha de manhã. Mas a sua presença aliviava-me

de tal forma que lhe pedi para vir viver connosco. Tornou-se o nosso

anjo da guarda e é como se fosse da família — concluiu Marie.

Entretanto, o elevador parou e Matthieu saiu a correr. Maougo

seguia-o tranquilamente. Quando reparou em mim e no François,

Matthieu parou bruscamente. Depois, aos gritos, começou numa

espécie de dança, com a seguinte coreografia: agarrou a cabeça com as

mãos; levantou os braços; atirou-se ao chão, e girou sobre si próprio.

Parecia uma dança de índios acompanhada por uivos de lobo. Fiquei

petrificada. Sentia, embora de forma confusa, que éramos a causa de

relevo e o máximo do tamanho de letra. Acabámos com uma palavra

por página. Descemos com uma enorme resma de folhas e a impressão

de ter os braços carregados de verdades. Encontrámos François em

êxtase diante das imagens. De facto, a parede já não fechava o quarto,

antes o abria para o mundo!

*

Uma faixa alinhava-se no tecto: Só vemos bem com o coração, o

essencial é invisível para os olhos. Na porta, estava afixado um diálogo:

Raposa:

— Só conhecemos as coisas que cativamos… Se queres um amigo,

cativa-me!

Principezinho:

— O que é preciso fazer?

E a raposa enalteceu a paciência.

Perto do sítio onde dorme François, colocámos uma passagem

retirada do livro de Jack London, O apelo da floresta , estudado na escola

no ano anterior: “Obedecendo ao apelo que só ele ouvia, mantinha-se

direito, durante horas, debaixo das copas frescas da floresta…” Para o

ilustrar, pintámos um cão magnífico na planície cheia de neve, com uma

legenda: A matilha dos lobos apareceu na clareira. Buck, imóvel como um

cão de pedra, aguardava a sua vinda.

Era bem verdade que François não sabia ler, mas o episódio ser-

-lhe-ia contado várias vezes, e ele acabaria por acreditar.

Como retoque final, espalharam-se, à esquerda e à direita,

palavras soltas, como comunicação, olhar, sorriso, liberdade, canto do

galo, azul, cabeleira, esperança e batalha. Discutimos muito sobre esta

palavra. Não queríamos dizer guerra. Pretendíamos dizer bater-se por

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de que seria preciso começar a escrever um “caderno de encargos” para

os meus progenitores. Enquanto esperava por Théo, tirei de debaixo da

cama algumas revistas femininas. A mãe dela tirava-as dos contentores,

para as ler com as amigas, porque traziam receitas de cozinha e de

beleza. Théo juntou-se a mim e começámos a recortar.

A tarefa consistia em fazer duas pilhas: à direita, as paisagens

selvagens; à esquerda, o resto. Quando terminámos, deitámos fora todo

o resto e conservámos as paisagens que recortámos: pores-do-sol,

neves eternas, desertos extensos, mares, voos de gansos selvagens,

bancos de areia, cores outonais, céus azuis, abóbadas estreladas, luas….

A alcatifa desapareceu. Cantando a plenos pulmões, cortávamos,

juntávamos e refazíamos a parede, de maneira a que, da esquerda para

a direita, passássemos de neves eternas para altos planaltos, florestas,

torrentes e, por fim, para cascatas que desaguavam em mares gelados.

Depois, gradualmente, os mares aqueciam e tornavam-se

turquesa. Finalmente, chegávamos a uma praia de areia fina que se

transformava ela própria em deserto e, depois, num oásis… e aquilo

nunca mais terminava, porque o olhar perdia-se numas reticências…

como a linha do horizonte, onde nunca se chega. E, depois das imagens,

o texto! Agradar-me-ia muito pintar máximas nas paredes. Só que a ideia

não iria agradar de todo ao meu pai...

Pensámos então no computador de Marie, aquele que dá ordem à

imagem para se levantar. Bastava clicar e tudo parecia real. Théo e eu

estávamos de acordo: se as nossas frases saíssem daquele computador

seriam ainda mais verdadeiras, mais belas e mais pertinentes. Fomos

pedir-lhe. Marie não pôs nenhuma objecção: ligou o aparelho e, quando

a caixa começou a ronronar, afastou-se e fechou a porta.

Tínhamos levado connosco dois livros e escrevemos, à vez.

Escolhemos o tipo de letra Avant-garde. Seleccionámos o estilo de

tudo aquilo. Devia ser algo de terrível, porque Matthieu invocava o céu e

a terra e, apesar de ter só 90 centímetros, enchia todo o espaço

circundante.

Maougo, que vinha atrás, e inspirava tanta segurança como um

corta-fogo em caso de incêndio, fez um sinal a Marie que, logo a seguir,

me disse:

— Adeus, Lucie, até sexta!

E, sem mais explicações, fechou a porta. Fiquei sem perceber

nadinha. Olhei para François, de quem me tinha esquecido

completamente neste turbilhão, e fiquei pasmada. Este ratinho medroso

que se encostava às minhas pernas ao mais pequeno ruído, ali estava,

muito firme nas suas patas, numa atitude de total simpatia. Simpatia (do

grego sumpatheia. De sun, com e pathein, sentir): inclinação instintiva que

atrai duas pessoas, uma para a outra. Participação na alegria e na dor,

sentimento de benevolência.

De facto, François parecia simpatizar com Matthieu, como se se

conhecessem desde sempre. Haveria entre eles algum código que eu

ignorava? Na verdade, o tempo mostrar-me-ia que o instinto deste

rapazinho era tão forte que criava uma grande empatia com os animais.

*

De volta ao meu andar, o bule estava vazio e os Demarotte

esperavam François. Ao ver-nos chegar, a senhora exclamou, contente:

— Meu Deus, parece mesmo que vocês nem saíram!

Mesmo assim, tirou toalhetes perfumados do saco e pôs-se a

limpar as extremidades do cão, que podiam ter estado em contacto, por

pouco que fosse, com o mundo exterior. Ao vê-la assim tão ridícula, ri

para mim própria e pensei que o trabalho sobre a mente é bem menos

visível do que o da eliminação da sujidade, porque não deixa vestígios

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alguns! Mas um dia (era preciso ter paciência), François seria, enfim, ele

próprio! Terminada a descontaminação, os nossos amigos foram para

casa. E eu exclamei:

— Até breve!

François ladrou e eu fiquei muito contente: começava finalmente

a ter voz!

À noite, deitei-me, fazendo o ponto de situação dos objectivos da

semana: 1. encontrar um modo de anunciar aos meus pais o convite de

sexta-feira. 2. documentar-me sobre o autismo.

E assim adormeci.

Capítulo 3

Nos dias seguintes, interroguei a minha directora de turma sobre

o tema do autismo, que recusou pronunciar-se com o pretexto de não

dominar o assunto. Também perguntei a Théodore, a minha primeira

nova amiga. Conhecemo-nos no primeiro dia e percebemos logo que

nos entenderíamos.

— Não sei nada sobre autismo — respondeu Théodore.

Depois de ouvir o relato dos cabelos em rebuliço, passou as mãos

pelo seu próprio cabelo e pôs-se a rodopiar.

— É bom e faz-nos sentir tontas — concluiu, com simplicidade.

Tentei fazer o mesmo. Era bom e a cabeça parecia girar. Não

valia, decerto, a pena fazer daquilo um quebra-cabeças. De repente, no

recreio, começámos a rodopiar…Todos olharam para nós e fomos

aplaudidas.

Na quinta-feira, ainda não tinha dito nada aos meus pais sobre a

noite do dia seguinte. A ocasião não se tinha proporcionado, mas

de Matthieu, pôs-se a fazer fitas, a pedinchar e, às vezes, a rapinar.

Aprendeu também a esquivar-se, a fugir, a correr até perder o fôlego.

Descobriu as pequenas proibições e aprendeu a calcular os riscos

inerentes, pois é bem verdade que o risco e o prazer andam

frequentemente de mãos dadas.

Com o tempo, tornou-se amigo de todos os homens do talho e

desafiava os outros cães da zona. Passeava por todo o lado, corria como

um tolinho para defender os seus bifes e, apropriando-se de todos os

cantos terrosos do 11º Bairro, enterrava neles os seus tesouros. Nunca

um cão tinha passeado tão orgulhoso nos seus domínios, como se fosse

um rei no seu reino.

*

Por essa mesma altura, fui assaltada pelo desejo de mudar a

decoração do meu quarto…Queria mudar o mundo... Pedi, então, o

pouco material necessário. O meu pai barafustou. Apesar de o ter

tranquilizado com um “Não vou furar nada, só quero fita-cola e

tesouras”, dei origem a um conflito familiar.

O meu pai é campeão a desbobinar leis:

— Estás maluca! O locatário é responsável pelos seus estragos,

artigo 321 do Código Civil. E, artigo 1384, eu sou responsável por ti e

pelos teus actos até atingires a maioridade. Por isso, põe-me de lado

essa ideia de transformares o teu quarto. Falaremos disso daqui a dez

anos.

Mas a minha mãe atreveu-se a dizer, numa voz tímida:

— O quarto dela é o seu espaço. Temos todos necessidade de um

pequeno espaço só nosso…

A cena terminou comigo, no meu quarto, armada de uma tesoura

e de um rolo de fita-cola, e com o sentimento um pouco desconcertante

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Prevendo a dimensão dos estragos, acudi:

— Desculpe, minha senhora, desculpe!

O empregado interveio:

— Bem, já chega! Deixa a senhora em paz!

Gritei:

— Ele é autista, gosta dos cabelos compridos, é a sua forma de

estabelecer contacto.

O empregado resmungou algumas banalidades sobre a má

educação das crianças. Eu senti que Théo ia enervar-se. Felizmente, a

senhora interveio em defesa de Matthieu. É possível que em todas as

mulheres haja um bocadinho de mãe:

— Deixem-no. É meigo e não está a incomodar-me.

Mesmo assim, tentava ajeitar os cabelos.

Então, Théo entrou em cena e, em breves palavras, relatou o

episódio em que Maougo tinha vindo em socorro dele, com os seus

longos cabelos. A senhora ficou sensibilizada com as angústias do

rapazinho. Via-se mesmo que se sentia vaidosa por ter uns cabelos

compridos que davam serenidade. Por momentos, deve ter-se julgado

uma fada… Estendeu os cabelos a Matthieu e sentou-o nos seus

joelhos.

— Ora aqui vamos nós outra vez! — anunciou docemente.

Capítulo 9

Dia após dia, os nossos progressos foram sendo cada vez maiores.

A minha conquista do prédio estava em ponto morto, mas a minha

conquista do mundo avançava. Quanto a François, seguindo o exemplo

tornava-se agora urgente contar-lhes. Felizmente que, à noite, quando

estava com a minha mãe, encontrámos Marie:

— Boa noite, minha senhora — disse ela. — É, com certeza, a mãe

de Lucie…

Cumprimentaram-se e Marie interpelou-me:

— Mantém-se o combinado para amanhã, Lucie?

Perante o meu ar embaraçado e o meu balbuciar, voltou-se para a

minha mãe:

— Sabe, fiz um pedido à Lucie. Gostava de saber se ela aceita

passar algum tempo connosco, à sexta à noite, uma vez que não tem

aulas ao sábado. O meu filho Matthieu tem quatro anos e é autista. Só

que, ao contrário da maioria dos autistas, fala…

Marie tentou tranquilizar a minha mãe.

— Dizem que conservou a inteligência — acrescentou. — Para

além disso, não se automutila, como fazem muitos autistas. Creio

mesmo que é feliz. O verdadeiro problema é que tem tendência para ser

feliz sozinho. É preciso socializá-lo. Por isso pensei que a Lucie poderia

ajudar-nos… Se, é claro, ela estiver de acordo e a senhora não vir

inconveniente nisso. Às vezes, as crianças compreendem-se melhor

entre elas, e a Lucie está entre duas idades…

Dado que a situação foi apresentada como um serviço a prestar, a

minha mãe não disse que não. Quanto a mim, afirmei num tom seguro:

— Gostaria muito. Pensei muito no assunto e irei com todo o

gosto.

Assim, comecei a frequentar com regularidade o 5º andar do nº 11

da rue Merlin e, no que diz respeito a adultos, Marie tornou-se,

incontestavelmente, a minha melhor amiga.

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Capítulo 4

O dia seguinte decorreu lentamente. Só falava com Théo da noite

que estava para vir. O tempo parecia nunca mais passar. Finalmente, a

hora chegou. A princípio, pensei levar o cabelo solto, mas, no último

momento, mudei de opinião e prendi-o. Matthieu ia pô-lo todo em

desordem e assim seria mais divertido. A minha mãe ficou intrigada com

o tempo que demorei a arranjar-me. À hora combinada, peguei no

pacote de personagens do Walt Disney que arranjara para ele e subi.

No 5º andar, cheirava a cozinha de avó com grandes panelas de

cobre. Com o coração a bater, toquei à campainha. A porta abriu-se e

apareceu Marie. Era dali que vinha aquele cheiro bom. De repente, fiquei

com muita fome. Marie foi à frente para me indicar o caminho. Tirei os

sapatos – regra da casa – e depois olhei para o tapete. Na sala, a mesa

estava posta. O tapete persa da entrada desaguava noutros, sob os

quais o chão desaparecia. Médios ou grandes, pareciam jardins

plantados.

Marie, seguindo o meu olhar, comentou:

— Estes tapetes foram tecidos à mão. Tudo o que sai das mãos

passou pelo coração. As mulheres e os homens que os fabricaram

puseram neles a sua alma.

Pelo modo como falava, compreendi a razão de nos descalçarmos.

Fazíamo-lo por uma questão de respeito.

— Estação após estação — acrescentou Marie — imprimem-se

neles também as marcas dos que sobre eles caminham…. E as vidas

misturam-se…

Foi então que Matthieu atraiu o meu olhar. Estava sentado de

uma maneira singular, com duas almofadas na cadeira e muito junto da

segundos é muito tempo, quando no horizonte brame o dragão negro

do turbilhão uivante. Por fim, o empregado sorriu e indicou-nos a mesa:

— O que querem tomar? — perguntou, animado.

Théo sentou-se, triunfante:

— Um sumo de romã!

Eu acrescentei, mais discreta:

— Um refresco de menta.

— E o nosso homem? — perguntou o empregado, olhando para

Matthieu.

Aqui, antecipei-me:

— Para ele é um copo de água. Não é que esteja de castigo, mas a

mãe avisou-nos de que ele só bebe água. As bebidas coloridas são como

tinta para ele e são muito desagradáveis.

A cena terminou com François, de cauda agitada, a beber água de

uma tigela.

No dia seguinte, fizemos o mesmo programa: os meus pais

saíram, Théo chegou, corremos para ir buscar Matthieu, e Maougo veio

atrás.

Num outro café, uma senhora de cabelos compridos estava

sentada tranquilamente. Ao passar, sem que ninguém o previsse,

Matthieu avistou-a, parou bruscamente, abriu a porta, investiu sobre ela

e mergulhou as mãos nos seus cabelos! A senhora sobressaltou-se e

soltou um grito. Cerrei os dentes! Que vergonha! Entretanto, Matthieu

procedeu a um segundo assalto, desta vez ainda mais temível. Théo e eu

entreolhámo-nos, desatámos à gargalhada, o que excitou François que,

por sua vez, saltou sobre a senhora.

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situação, reagiu:

— Desculpe. O Matthieu é um pouco esquisito…

Eu precisei:

— Ele é autista, mas é um espanto…

Ela retomou:

— Está cansado, porque há já muito tempo que estamos a

passear. Ele só quer sentar-se…

Eu prossegui:

— Pedimos desculpa, porque não temos dinheiro…

E ela (sentíamo-nos mais fortes quando falávamos as duas):

— Não vamos ficar por muito tempo…

De novo eu:

— Se o levarmos lá para fora, ele não vai compreender, porque

não fez nada de mal.

De novo ela:

— E pode fazer uma birra.

Olhei de relance para a mesa. Matthieu continuava hirto e

François tinha-se deitado a seus pés. Prossegui:

— As suas birras são como turbilhões em que ele se perde. Nós

ainda não somos capazes de o repescar, mesmo tendo os cabelos

compridos.

Por fim, Théo rematou, com o seu sorriso resplandecente:

— Por favor...

Durante dois segundos, a expectativa atingiu o seu auge. Dois

mesa; tão junto que ficava completamente comprimido. Como se não

bastasse, agarrava-se literalmente à colher. As boas noites que lhe dirigi

ficaram no ar. Olhei para Marie.

— Para o Matthieu — disse-me — comer é uma actividade vital.

São 19h e 4m no relógio do rádio. O Matthieu reconhece os números. A

hora do jantar já passou…

Ao dizer isto, ria-se. Matthieu permanecia sério.

— Sempre se sentou assim — continuou Marie. — É inútil afastá-

-lo: acaba por voltar à mesma posição. Penso que lhe dá segurança

sentar-se como se estivesse embutido.

Entretanto, Maougo chegou com uma grande terrina. Sentámo-

-nos à mesa. Maougo e Marie ladeavam Matthieu e eu fiquei em frente.

Ele só olhava para a terrina. Sem uma palavra, Maougo levantou-se e

pegou nas nossas tigelas.

— Não ponhas beterraba para o Matthieu — pediu Marie. — E

muita água de sopa também não.

Mas Maougo sabia perfeitamente o que devia, ou não, fazer, para

evitar as fúrias do rapazinho. A sopa estava maravilhosa. Ninguém

falava. Depois de um longo silêncio, no qual se ouvia apenas o ruído das

colheres, exclamei:

— Que boa!

Maougo sorriu-me.

— Foi ela a cozinheira — explicou Marie, olhando Maougo com

amizade. — É uma receita do seu país.

Matthieu comeu a toda a velocidade, fungando de vez em

quando. Quando ficou satisfeito, saltou para o chão e instalou-se

debaixo da mesa. Nenhuma das duas mulheres parecia preocupada com

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este comportamento. Tudo levava a crer que era habitual comportar-se

como um animal. Preparei-me para o pior. Talvez fosse lamber-nos os

pés… Nesse momento, tive uma ideia genial em relação a François:

«Matthieu seria o professor ideal para fazer renascer o seu instinto!»

Durante o resto da refeição, Matthieu manteve-se agachado.

Acabei por esquecê-lo. Até ao momento em que saltou para a televisão,

gritando:

— Tu ligas, tu ligas, é agora!

E ligou o aparelho. Uns segundos depois, deu o boletim

meteorológico.

*

O programa começou. Matthieu ficou imóvel, com todos os

sentidos em alerta. Parecia captar informação de todos os lados. Se, um

dia, os Marcianos invadissem a Terra com o firme propósito de

compreenderem a nossa tecnologia, acho que actuariam como ele.

Tudo era surpreendente na maneira de agir daquele rapaz.

Estava completamente inclinado para a televisão, como se

estivesse ligado à distância, e como se as suas orelhas fossem antenas.

Pelo poder da sua concentração, Matthieu tinha anulado tudo o que se

passava à sua volta. Havia algo de estranho nas suas mãos. Colocara-as

sobre o tampo de uma mesa invisível, diante de si, com os dedos

separados e as pontas a vibrar imperceptivelmente. Não havia dúvida de

que um fluído transparente devia passar do ecrã até ele.

Olhei à minha volta para ver a reacção das duas mulheres. Marie,

sintonizada com o filho, tinha parado de comer. Achei que a

meteorologia não lhe interessava a ponto de transformar-se em estátua

e que se anulava, para ajudar Matthieu na sua concentração. Já o

comportamento de Maougo era completamente diferente. Antes da

Maougo já não escondia a sua presença. Mas, como vinha atrás

sem nunca intervir, não nos incomodava. Não tínhamos a sensação de

sermos vigiados; tínhamos apenas a impressão tranquilizante de que

nada de mal poderia acontecer-nos. Passeámos por pátios entreabertos,

recantos escondidos, becos sem saída e atalhos. Equilibrávamo-nos nas

beiras dos passeios, saltávamos poças, passávamos as mãos pelas ervas.

Até Théo, que passava a vida na rua, via tudo de outro modo.

De repente, Matthieu precipitou-se para dentro de um café e

Théo, desprevenida, deixou-o escapar. Marie tinha imposto uma regra:

andar sempre de mãos dadas, excepto em locais fechados, na condição

de estarmos todos presentes. Ao longe, Maougo não abandonou o seu

posto. Acontecesse o que acontecesse, tínhamos de entrar.

*

Só lá estava o empregado. Matthieu sentou-se logo, muito

comprimido. Na verdade, estava cansado de correr e sabia que as

cadeiras dos cafés foram feitas para nos sentarmos. Contudo, os

conceitos “cliente”, “dinheiro” e “encomendar alguma coisa”

escapavam-lhe totalmente. Senti que íamos ter problemas. A Théo

estava no mesmo estado que eu, completamente bloqueada. Ficámos

encolhidas, expectantes, desejando que as coisas pudessem correr bem.

No entanto, com Matthieu, a situação estava destinada ao fracasso. O

empregado aproximou-se e perguntou:

— Em que posso ser-te útil, meu pequeno?

Olhando no vazio, Matthieu apontou para o homem um dedo

ameaçador:

— Aos dezasseis anos — proclamou — picarás o dedo na ponta

de um fuso e morrerás.

Depois fez um riso tenebroso. Théo, tentando remediar a

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Com a vinda de François para nossa casa, inaugurou-se uma nova

era que, por sorte, coincidiu com as férias de Natal.

Petit Larousse. Era: nome feminino. Época em que se estabelece

uma nova ordem das coisas.

Como o meu pai e a minha mãe trabalhavam, e a minha avó

recusava-se a ter um cão lá por casa, era preciso que alguém tomasse

conta do François. Então, logo na primeira manhã de férias, após uma

série de advertências, confiaram-me a chave do apartamento para

poder ir passear o cão. O meu rosto permanecia impassível, mas cada

átomo do meu corpo saltava. Não tinha de inventar mais desculpas para

sair. A rua era toda nossa! Por fim, a liberdade!

Mal fiquei sozinha, telefonei a Théo:

— Encontro em minha casa, daqui a uma hora.

Uma hora mais tarde, ela chegou e, quais rainhas acompanhadas

do seu leão, subimos para ir buscar Matthieu.

Marie ficou hesitante:

— O Matthieu não gosta do imprevisto.

Mas François rugiu e Matthieu levantou-se. Sem meias medidas,

calçou os sapatos. Um sorriso de surpresa desenhou-se nos lábios de

Marie. Maougo também sorria, mas era um sorriso diferente…Como se

adivinhasse…

Partimos. O elevador desceu e a excitação subiu. François batia

impacientemente com as patas. Matthieu também batia com os pés.

Quando a porta da rua se abriu, Matthieu desatou a saltar! Matthieu, a

criança livre a quem nada estava proibido! Formámos logo uma fila em

passo de marcha. Atrás, fechando o cortejo, vinha uma silhueta um

pouco atarracada.

meteorologia, estávamos a saborear bolachas molhadas em licor de mel

e ela comia a sua bolacha sem se preocupar com o resto. Matthieu e

Marie pareciam estar sob uma influência da qual Maougo se encontrava

preservada. Era, sem dúvida, uma mulher intrigante.

No fim do boletim meteorológico, Matthieu saltou de novo,

gritando:

— Tu desligas!

E desligou a televisão. A sequência de acontecimentos terminou

tão bruscamente como tinha começado. Matthieu e Marie

ressuscitaram! Depois da mesa levantada, Marie fez-me sinal para a

seguir e ficámos um nadinha mais longe, num outro canto da sala, junto

de um tapete um pouco diferente dos outros.

— É um tapete russo — explicou Marie. — Os outros são persas.

Aquele kilim é turco, e é o único que não é artesanal.

Olhei para aquele onde tínhamos os pés. Era um tapete com

fundo beringela e três losangos laranja e fúcsia ao centro. Quanto mais

nos aproximávamos do centro, mais as cores explodiam. Eu tinha no

meu quarto uma boneca russa de madeira, uma matrioska. A boneca

maior esconde uma boneca média que, por sua vez, esconde uma

boneca mais pequena, até depararmos com uma boneca tão minúscula

que já não se pode abrir. Estava assim perdida nos meus pensamentos

quando Marie acrescentou:

— Este é o canto preferido da Maougo. Sei muito pouco sobre o

seu passado; talvez este canto lhe lembre a sua juventude.

Retomei o fio dos meus pensamentos. Maougo era uma

matrioska. A princípio, via-se apenas o seu exterior porque não falava.

Depois, pouco a pouco, íamos vencendo etapas até nos aproximarmos

do seu coração. O tapete ajudou-me a aproximar dela, porque dava-me

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uma pista sobre as cores das suas recordações.

Até então, não tinha conseguido definir o que tornava esta casa

peculiar, mas nesse momento já sabia. Era uma casa cheia de espaço e

de cantos. Os tapetes desenhavam-na e, tal como no jogo da macaca,

ajudavam-nos a saltar para diferentes cantos do mundo. Era uma casa

com recantos e sem paredes.

Pouco tempo depois, Maougo juntou-se a nós. Trazia um tabuleiro

com chávenas e um bule. Atrás dela, Matthieu saltava em bicos de pés.

A loiça era a melhor, mas o ambiente era muito simples. Estávamos na

Rússia e íamos beber um chá de funcho. Matthieu andava à minha volta

como um morcego, sem me tocar e sem me ver, como se tivesse uma

espécie de radar. Em seguida, sem avisar, precipitou-se sobre as minhas

costas. Não ousei mexer-me, com medo de que se afastasse. Sabia, por

experiência própria, que a estas horas da noite as crianças procuram

mimos. Matthieu vinha procurar afecto de uma maneira tão intensa que

mais parecia um gato.

O chá tinha um sabor curioso. Marie bebeu dois ou três goles. O

momento esperado aproximava-se. Começou:

— Queres saber o que é o autismo.

Não era uma pergunta. Parecia-se mais com “Era uma vez” …

Mexendo-me o menos possível, procurei no meu bolso o papel com a

definição: Autismo (do grego, auto, próprio): isolamento patológico num

mundo interior com perda de contacto com a realidade e impossibilidade

de comunicar com os outros.

De facto, Matthieu continuava indiferente ao que se passava em

seu redor. Mergulhava as mãos nos meus cabelos como se tivesse um

exército de muitos dedos e, assim que Marie iniciou a explicação, senti o

rabo-de-cavalo a desfazer-se.

instalou-se debaixo da janela. Eu fiquei à porta, para compreender o que

se passava, interrogando-me sobre a possível causa destes

comportamentos tão estranhos.

Na verdade, tratava-se de um caso de falecimento. François era,

neste momento, um transtorno, e eles desejavam alojá-lo…em nossa

casa. Depois de uma explosão de alegria incontida e incompreendida,

gaguejei:

— Enfim, se é preciso deixar François com alguém, então que seja

em nossa casa.

E afastei-me da porta, mortinha por me eclipsar. Tão sereno como

um velho sábio, François nem sequer se tinha afastado da janela. Que

tratante! Fiz-lhe uma festa. Através de uma ondulação imperceptível do

pescoço, o cãozinho disse-me em pensamento: “Não te preocupes. Vim

para ficar.”

Logo que os Demarotte partiram, a casa regressou à sua calma

habitual e eu contive a minha alegria. A minha mãe, apanhada

desprevenida, não tinha podido dizer que não às manifestações efusivas

da amiga. E François parecia tolinho perante a perspectiva de uma nova

liberdade. No que me diz respeito, e dadas as reticências da minha mãe,

já renunciara há muito à ideia de ter um animal só meu, mesmo que

microscópico. Para mostrar que tinha a situação controlada, peguei no

cesto de vime, apoiando-o à cintura e disse:

— Mãe, posso pô-lo no meu quarto?

Como estava completamente fora de questão que o cão dormisse

na sala, no quarto dos meus pais, na cozinha, e ainda menos que

vagueasse pelo corredor, a minha mãe disse que sim e eu soltei um grito

de alegria, o que fez com que François desse um salto no cesto.

*

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A princípio, era um jogo. Os olhos do avô sorriam. Completamente

absortos, os de Matthieu escutavam. Depois, os olhares mudaram. O de

Matthieu encheu-se de Balthazar e no olhar de Balthazar só havia

Matthieu. Théo, as outras raparigas e eu deixámos de existir. Tudo

acontecia entre o avô e Matthieu. Já não havia um velho e uma criança.

Já não havia um grande e um pequeno. Só havia sons. O avô tinha

reencontrado a agilidade que as suas mãos tinham tido outrora, e

Matthieu parecia-se com o desenho afixado na sua porta de casa: um

homenzinho com grandes orelhas e mãos como asas.

À noite, levámo-lo para casa, com o tama debaixo do braço. Ao

ver Marie, reproduziu os sons: “Bom dia!”

Bom dia! – Expressão de saudação.

Saudação – Demonstração de civismo pelo gesto, ou pela palavra,

que se faz quando se encontra alguém.

Digam lá se isto não é comunicar!

Capítulo 8

O Outono partiu. O Inverno chegou. Numa noite de Dezembro,

tocaram à campainha. Fui abrir a porta. Eram os Demarotte. Pressenti

que era grave. Como não era domingo, e eles não costumavam mudar

os seus hábitos, tinha de haver um motivo de força maior. Além disso, a

Sra. Demarotte estava extremamente pálida. Por fim, chegou o cão. Não

vinha sentado, majestoso e ridículo, no seu cesto, mas caminhava pelas

suas próprias patas.

Alertada pela voz esganiçada, a minha mãe apareceu. Dando

gritos estridentes, a Sra. Demarotte caiu-lhe nos braços. O marido

permaneceu pregado no tapete da entrada, rígido como uma estaca. Só

François, o cão, entrou com ar indiferente e, chegado à sala de estar,

*

Marie continuou:

— O Dr. Bettelheim, um psicanalista, foi a primeira pessoa a

debruçar-se sobre os autistas. Chamava-lhes “fortalezas”, porque são

prisioneiros deles mesmo. Os autistas não pensam como nós e, a maior

parte das vezes, não falam; apenas emitem sons. Por isso é difícil

comunicar com eles. Não é fácil compreendê-los.

Eu retorqui:

— É como a Maougo. Ela também não fala.

— Não — respondeu Marie. — A Maougo não fala francês, mas

fala russo. Para além disso — acrescentou — usa outros meios. Exprime-

-se por gestos e também com o olhar. Os autistas são diferentes. Não

estão voltados para os outros, mas para si próprios. O mundo não existe

fora deles mas neles. De facto, vivem sós no interior de si próprios,

numa dimensão que nos é desconhecida.

Tinha dificuldade em perceber. Marie mostrou-me o móvel de

tartarugas incrustado de espelhos.

— O Matthieu — explicou — pode ficar durante horas a navegar

nos reflexos.

Enquanto Marie falava, Matthieu fazia caracóis no meu cabelo e

eu deixava que ele tomasse conta da minha cabeça, madeixa a madeixa.

Não queria sobretudo que parasse: não era eu que lhe dava a minha

ternura, era ele que me dava a sua. E eu tornava-me o seu gato…

— A terra — continuou Marie — gira à volta do sol e faz parte do

sistema solar. Os autistas são pequenos planetas independentes que

giram em torno de si próprios. Da mesma maneira que não podemos

subir para um carrossel em movimento, também é muito difícil chegar

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até eles.

— Mas o Matthieu fala — disse eu, sentindo necessidade de o

desculpar.

— É verdade — concordou Marie. — Escuta-o, porém, e verás que

ele fala para si próprio. Embala-se nas suas próprias palavras.

Reagi:

— Não acho!

E lembrei-lhe as palavras de Matthieu antes da meteorologia.

— Ele disse: “É agora, tu acendes!” Estava a chamar pela mãe.

— Não creio, Lucie — contrapôs Marie, sem hesitar. — Quando

me dirijo a ele, digo-lhe: “Matthieu, tu vens comigo.” Portanto, na lógica

dele, ele chama-se “tu”. “Tu ligas” significa “Matthieu liga”. Vi-o falar

com o ursinho, algumas vezes. É o único a quem dirige a palavra. Dizia-

-lhe: “Eu venho, amiguinho!” E fazia vir o animal até ele. “Eu” é o outro e

“tu” é Matthieu… Numa certa óptica, é lógico: quando lhe falo de mim,

digo-lhe “eu”, portanto “eu” são os outros. E quando os outros se

dirigem a ele, dizem-lhe “tu”. Logo, “tu” é ele. É uma lógica mental

diferente.

“Está certo”, disse para com os meus botões. “Ele fala para ele

próprio”. Depois disse em voz alta:

— Mas às vezes, ele olha para nós! Faz como a Maougo: fala com

os olhos!

Marie concordou e explicou:

— Antigamente, o olhar dele estava sempre vazio, ou então cheio

de coisas invisíveis para nós. Hoje, consegue ligá-lo a objectos e não se

refugia constantemente nos seus sonhos imaginários. Agarra-se à

televisão ou aos computadores, mas ainda não são coisas vivas. Não é

divertia-se! A Théo e eu entreolhámo-nos: aquela criança era mágica!

No dia seguinte, a minha amiga Théo e eu falámos montes de

vezes do sucedido:

— O Matthieu tem uma linguagem própria. É a música das mãos. É

desse modo que temos de falar com ele!

Assim dito, parecia simples, mas esta conclusão pressupunha um

longo caminho percorrido.

Théo continuava:

— Afinal, o Matthieu não é assim tão inacessível! Depois da escola

vamos levá-lo a minha casa. O meu avô toca tama, que é uma espécie de

tambor africano que se segura debaixo do braço. Na selva, serve de

telefone.

Mal saímos, fomos logo a casa de Matthieu, que nos seguiu sem

oposição. Em casa de Théo, o avô Balthazar meteu conversa.

— Bom dia, meu pequeno! — disse a Matthieu, assim que se

apercebeu da sua presença.

Matthieu parecia indiferente a tudo, mas, mal viu o tama,

estendeu os braços. O avô de Théo antecipou-se ao gesto, e começou a

tocar, dizendo:

— Isto quer dizer “Bom dia!”

Atraídas pelo barulho, Fatoumata e Mamassa aproximaram-se

sorrateiramente. Balthazar começou a produzir sons, uma vez, duas

vezes. Matthieu estendeu os braços em direcção ao tama, que Balthazar

passou para as suas mãos. Depois, reproduziu os sons. Reproduzia-os

sem interrupção, cada vez mais complexos, cada vez mais longos, cada

vez mais elaborados. Nem sempre conseguia à primeira. Contudo, logo

recomeçava e insistia, até atingir a perfeição.

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— Ok! O Matthieu é um feiticeiro.

Extraterrestre ou feiticeiro é quase a mesma coisa. A princípio,

fiquei irritada, porque ela não me tinha deixado concluir a minha

brilhante teoria. Mas, depois, reconsiderei: duas pessoas nunca são

demais para defender um novo ponto de vista. Mexi no bolso, à procura

do papel e, com ele na mão, relembrei-lhe a definição do dicionário:

“Autismo: isolamento patológico num mundo interior, havendo perda de

contacto com a realidade e impossibilidade de comunicar com os outros.”

Seguiu-se uma discussão renhida e arrebatada, até que, por fim,

acordámos que era preciso reformular a definição: “Autismo: isolamento

paranormal num mundo interior. O contacto que se estabelece com a

realidade é tão forte que o sujeito se torna a própria realidade.”

*

Nessa tarde, dirigimo-nos ao 5º andar. Era o aniversário de

Matthieu e Marie levou-nos a assistir a um espectáculo de dança

africana. Mas, como Matthieu não gosta do desconhecido, estava muito

agitado. Soaram três pancadas, o pano subiu e revelou uma criança com

um bastão na mão, com o qual bateu num cepo de madeira.

Como se tivesse sido chamado, Matthieu afastou-se docemente

de Maougo e desceu em direcção ao palco. Para espanto nosso,

instalou-se por baixo do estrado e começou a movimentar o corpo.

Batendo no vazio, sobrepôs os seus gestos aos da outra criança e a

música envolveu-o. Dir-se-ia mesmo que o libertou. Então, o espectáculo

desdobrou-se: no palco, estava uma criança negra, vestida de branco;

debaixo do palco, estava uma criança branca, vestida de verde.

A música subiu de volume e o palco encheu-se de sons de

tambores africanos. Um encanto! Matthieu comunicava através da

linguagem universal da música! No fim, houve aclamações. Os actores

apontaram para Matthieu. Marie chorava, Maougo sorria e Matthieu

comunicação. Talvez um dia, com muito amor…

— Mas, se ele sabe o nome das coisas, ainda que fale para si

próprio, é sinal de que o ouviu…

— Sim, Lucie! É por isso que há esperança!

— Além disso, repare como ele comunica com as mãos. Está a

fazer-me festas!

— Ele faz-te festas sempre com os mesmos gestos, como se o

disco estivesse riscado. Como se tivesse caído dentro dele — replicou

Marie.

Exclamei de novo:

— Mas eu gosto disto!

— Eu também. Só que, ao fazer-te festas, está a fazê-las a si

próprio, para ter menos medo. Um dia, será homem. Se apenas

reproduzir gestos até ao infinito, só girará em torno de si, e isso não o

ajudará a avançar!

Quando, finalmente, Marie se calou, senti uma grande vontade de

chorar.

Por volta das 10 horas, fui para casa. Sentia-me nas nuvens, com

todos aqueles tapetes dos quatro cantos do mundo e todos aqueles

mundos interiores. A minha mãe quis saber o que se tinha passado mas

não consegui contar quase nada. Estava no MEU mundo interior e não

tinha vontade alguma de comunicar. No meu quarto, debaixo da minha

cama, desenhei duas bandeiras. A russa representava o país de Maougo

e, no canto da bandeira francesa, escrevi o M do nome Marie.

Capítulo 5

O meu mutismo durou toda a noite, eu que só costumo calar-me

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quando durmo. Mal acordei, desbobinei, num ápice, o episódio da

meteorologia, a linguagem dos olhos de Maougo, a fortaleza, os olhos

vazios, a música das palavras, a tina das tartarugas, o sistema solar, os

olhos que viam nos espelhos…Os meus pais ficaram acabrunhados.

Penso que compreenderam tudo. Quando terminei, disse «Pronto» para

lhes dar a palavra. Contudo, desiludiram-me completamente. O meu pai,

num tom enervado, disse:

— Vê só o que lhe meteram na cabeça: olhos vazios que fitam

espelhos!

A minha mãe, que não ouviu o comentário do meu pai, quis saber:

— Diz-me…diz-me o que comeste…

Ora essa! Falei-lhes de um rapazinho que não é fácil de

compreender, um rapazinho que tem olhos que vêem outras coisas,

coisas essas tão diferentes que não há palavras para as descrever…

Contei-lhes ainda que ele tem tanto medo do vazio que se comprime

entre a mesa e a cadeira para se sentir seguro, e expliquei-lhes como,

para se sossegar, agarra os cabelos dos outros… E a única coisa que o

meu pai soube dizer foi “Olha o que lhe meteram na cabeça” e a minha

mãe só quis saber o que eu tinha comido!

Levantei-me, desgostosa. Mas logo voltei atrás, porque falo pelos

cotovelos.

— Comemos Bortsch, mamã. É russo e é uma delícia. Para além

disso, é um casamento perfeito de proteínas, vitaminas e fibras, com

uma colher de iogurte para repor a camada de cálcio. Foi uma refeição

completa!

A minha descrição deixou-a sem palavras.

Mais tarde, no meu quarto, peguei no dicionário. Comunicar:

transmitir, revelar, partilhar. Estar ligado por uma passagem. As palavras

primeiro jantar, quando ele tinha ligado a televisão e absorvera a

meteorologia. Pensava nas bolachinhas de manteiga e na canção da

rádio, quando captara a emoção do cantor. Revia a chuva das folhas e

dos berlindes de prata que tinham entrado pelos seus olhos dentro.

Compreendi também o desenho sobre a porta do seu apartamento: um

homenzinho com orelhas de elefante e mãos como asas. De facto,

Matthieu fizera o seu auto-retrato: um homenzinho que ouvia tudo e

que podia voar.

Por fim, tive uma intuição: Matthieu é ainda uma criança, um

extraterrestre júnior em fase de aprendizagem! Está apenas no início! De

momento, consegue transformar-se nas próprias coisas.

Um dia, Matthieu transformar-se-á nas próprias pessoas! Aí, sim!

Haverá uma fusão completa! Um dia, será bem mais forte do que nós!

Quase corri até ao 5º andar. Mais do que uma revelação, eu tinha

tido um verdadeiro encontro de terceiro grau! Mas a voz da razão

retinha-me. O evento era demasiado grave para ser anunciado de forma

tão precipitada. O mundo estava cheio de pessoas cépticas, e, sob pena

de passar por louca, eu não devia apregoar a notícia. Devia, antes, expô-

la com método.

Capítulo 7

No dia seguinte, vi, pela janela, a minha amiga Théo no passeio.

Era domingo e eu tinha um pretexto para sair: comprar o pão do

pequeno-almoço. Em minha casa, ninguém anda na rua sem um

objectivo bem definido! Gritei à Théo para esperar por mim e desci a

correr. Confidencialmente, testei nela a minha teoria “Encontros

Imediatos do 3º grau”.

Mesmo antes de terminar o meu relato, ela concluiu:

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— Dás-te conta — perguntou-me Théo, no dia seguinte, ao

entregar-me o diário — de como ele sente as coisas? Não se trata

apenas de simpatia. Ele vive literalmente a dor do outro.

— É verdade — confirmei — ele sente as coisas. Mas não sente as

pessoas. Mas não se trata de simpatia e muito menos de comunicação.

Théo, habitualmente tão calma, enervou-se:

— OK, ele não comunica! Mas repara, torna-se bolo, biberão,

entra nas coisas. No Père-Lachaise gritava: “Tu choves, tu choves”,

porque sentia que era ele que chovia. É esquisito, não?

Fiquei sem palavras, mas, ao longo do dia, a fé da minha amiga

invadiu-me como um vírus. Pus-me a meditar e a seguir a sua intuição. Às

vezes, a realidade ultrapassa a ficção! À noite, a minha febre atingiu o

máximo. Levantei-me, porque tinha de continuar a contar.

E o coração da noite encontrou-me, uma vez mais, mergulhada no

meu diário.

*

Há, no nº 11 da rue Merlin, uma fada que só se pode ver com o

coração porque não é muito bonita. Há também um homem pequenino

que não se parece com ninguém, visto que é único.

Quanto mais escrevia, mais a luz crescia em mim. De repente,

tudo me parecia óbvio. Matthieu era diferente de nós, era um ser

cósmico! Um extraterrestre com poderes tão grandes que podia

transformar-se no que olhava, no que tocava, no que sentia e no que

escutava.

Matthieu: um camaleão no seu coração, um coração de manteiga ou

de algodão doce.

Esta era a conclusão lógica de tudo. E eu recordava a cena do meu

de Marie repassavam na minha memória: Matthieu põe-se em contacto

com as coisas mas não com as pessoas… Talvez um dia… Talvez com

muito amor… De repente, jurei a mim própria que ia conseguir! Pouco

me importava agora a conquista do prédio. O que eu queria agora era

conquistar Matthieu!

*

O dia seguinte, domingo, era o dia de François. Combinámos, eu e

a Théo, levar Matthieu para passear connosco. Marie falou-lhe do

passeio, porque ele detestava os imprevistos, e impôs uma condição:

que lhe déssemos sempre a mão, excepto nos lugares fechados.

Finalmente, François chegou. Subimos ao 5º andar e, à hora

marcada, tocámos à campainha. Matthieu, já pronto, estava atrás da

porta. Saímos. Théo estava à nossa espera junto do Père-Lachaise. Como

é proibida a entrada de cães neste cemitério, sem largar Matthieu, fiz

um sinal a François, que logo saltou para dentro do meu saco.

Conseguimos entrar sem dificuldade. O que não sabíamos era que

Maougo nos seguia, para o caso de haver algum problema.

*

Era Outono e cheirava a terra molhada. Durante alguns metros,

percorremos a alameda central, e depois penetrámos nos lugares onde

os túmulos são muito antigos. Aí corríamos menos riscos de sermos

surpreendidos, porque os velhos mortos são menos visitados do que os

novos. O tapete de folhas estalava debaixo dos nossos pés e Matthieu

saltava de túmulo em túmulo. Quando pensámos que já não havia

nenhum perigo, entreabri a mala onde estava François. O cãozinho tinha

um ar assustado e parecia ter mais noção das proibições do que

Matthieu. Para o espicaçar, Théo atirou um pau. Como nenhum cão

resiste a isso, o animal lançou-se para fora do saco e Matthieu saltou,

por sua vez. Desataram numa perseguição desenfreada. Depois,

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agarraram ambos o pau, rebolaram no chão, revolveram as folhas.

Quem levaria a melhor? Um mini-ciclone tinha-se abatido sobre este

canto do jardim. Como eram parecidos!

Silenciosa como um índio vigilante, Maougo observava-nos. De

repente, Théo e eu entrámos na dança. Misturámo-nos. O riso de Théo

parecia um riacho. Eu sentia-me árvore: os meus braços eram ramos e as

minhas mãos eram folhas. Quanto mais voltas dava, mais tocava o céu.

Parecíamos pequenos sistemas solares indomáveis. Éramos reis do

mundo! Éramos autistas! De repente, Matthieu começou a gritar:

— Tu choves! Tu choves!

Traduzi na minha cabeça, conforme as explicações de Marie, por

“Eu chovo! Eu chovo!” e compreendi que era Outono. As folhas caíam.

Depois Matthieu disse, subindo para uma cruz:

— Amigo do dia, bom dia!

Estaquei. Parecia a voz do apresentador da televisão. Matthieu

estava muito direito, muito sério, muito adulto. Transformara-se no

apresentador da meteorologia. Completamente. Perfeitamente.

Matthieu tinha-se metamorfoseado em mapa geográfico. E apontava

para ele próprio. Incrível! No fim, cantou o genérico.

*

Estava na hora de voltar por causa de François. Só tínhamos

autorização para estar fora até às 17 horas, e eu queria ser pontual. Era

preciso evitar que os meus pais desconfiassem. Contudo, no momento

de regressar, foi impossível comunicar com Matthieu, que se tinha

fechado completamente no seu televisor. Théo e eu demos-lhe a mão e

tentámos caminhar. Mas Matthieu levantava os braços para o céu,

berrava músicas de mensagens publicitárias, atirava-se para o chão e

rebolava sobre si próprio. Era um televisor e não queria, de maneira

chorava. Apenas o fez duas vezes, que ficaram gravadas na memória de

Marie. A primeira vez aconteceu quando tinha Matthieu seis meses. Foi

antes de Maougo ter vindo morar com eles. Matthieu estava deitado

debaixo do móvel das tartarugas, com os olhos perdidos nos espelhos. A

rádio passava canções. De repente, Marie olhou para o filho e viu-o coberto

de lágrimas.

— Em silêncio, apertei-o contra mim — contou Marie. — Chorava

imenso, estava todo molhado. Não parecia ter fome nem dores. Aliás,

nunca tinha chorado: nem de fome nem de dor…

Foi então que uma amiga de Marie, que estava com eles, disse:

— É a canção, vê como ele a ouve…

Efectivamente, quando a canção terminou, Matthieu acalmou-se e

voltou às suas tartarugas.

— Eu pensava — acrescentou Marie — que um bebé só chorava

para comer ou para que lhe pegassem ao colo. Mas, daquela vez, Matthieu

chorou de pura emoção.

Nessa noite, pela primeira vez, Marie sentiu que o filho era especial.

Tinha-lhe saído a sorte grande.

Soulimane adormeceu. Théo continuou a escrever:

A segunda vez que chorou foi por causa do biberão de vidro que

tinha partido. Marie alinhou todos os outros biberões para lhe mostrar que

não era grave. Foi mesmo à farmácia comprar um biberão novo, igual ao

partido. Mas não havia nada a fazer. As lágrimas a correr mostravam que

as coisas novas não substituem as antigas. É esse o verdadeiro amor. E a

tristeza era tão grande que, depois das lágrimas, Matthieu fez greve de

fome. Não queria comer nada. Queria morrer por solidariedade para com o

biberão quebrado. Dois dias mais tarde, ficou doente de fraqueza. Acabou

no hospital.

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Capítulo 6

Alguns dias mais tarde, numa sexta-feira, ao atravessar a praça

com a minha amiga Théo, vi Matthieu a passear com um bolo. Estava a

chover. Ficámos admiradas, porque o tempo convidava a ficar em casa e

porque Matthieu levava o bolo como se fosse um tesouro. Embaladas

pelo canto molhado da chuva que caía, e abrigadas debaixo de um

caramanchão, ouvimos a história que Marie tinha para nos contar. Na

noite seguinte, Théo não iria conseguir dormir. Demasiados

pensamentos confundiam-se na sua cabeça. Deitadas num colchão de

penas ao seu lado, as suas duas pequeninas irmãs tinham adormecido.

Soulimane, o gato de oito anos, martirizava um elástico. Théo acabou

por se sentar e escrever no caderno que me tinha pedido emprestado.

Noite de sexta-feira – 15 de Outubro

Matthieu gosta tanto das bolachas de manteiga que nem as come.

Quando lhe damos uma, tacteia-a, cheira-a, e dá-lhe uma volta com o dedo.

Faz festas no rosto com ela e já não a larga mais. De repente, sente-se

desajeitado porque só tem uma mão disponível – a outra segura a bolacha

– e tudo se torna mais complicado. Se chove, protege o biscoito. Se

encontra alguma poça, levanta o braço. Isto pode durar toda a manhã, até

ao momento em que a bolacha se parte. Matthieu tenta recompor os

bocadinhos, mas não há nada a fazer. Chora desesperado e nada o consola,

nem mesmo uma nova bolacha. Por fim, acaba por comer os bocados, pelo

menos para fazê-los desaparecer. Depois, tudo melhora porque, apesar de

tudo, a bolacha é muito boa!

Théo levanta a cabeça e apercebe-se de que Mamassa tinha-se

destapado. Levanta-se em silêncio, volta a cobrir o corpo rechonchudo

da irmã, e retoma o fio à meada.

Quando era bebé, Matthieu gritava, agitava-se, berrava, mas nunca

alguma, voltar a ser ele próprio.

Angustiada, comecei a enervar-me. Até a própria Théo ficou

assustada. Só François é que mantinha a calma. Matthieu rebolava cada

vez mais. Suplicámos, negociámos, prometemos… Não sabíamos já a

que santo pedir… Foi então que Maougo apareceu. Ao vê-la, ficámos de

tal modo contentes que nem fizemos perguntas. Ali estava ela, sólida e

calma. Senti-me logo tranquila.

Sabia que, apenas com um gesto, iria mudar o rumo das coisas,

como fizera anteriormente no elevador. Recuámos para lhe dar espaço.

Matthieu continuava a rebolar. Maougo aproximou-se, com a cabeça

inclinada e, balançando-se suavemente, pôs-se a cantar a mesma ária

que Matthieu, em uníssono com ele. É maravilhoso ouvir cantarolar uma

voz que não fala. Tinha entrado no ritmo do carrossel e Matthieu

abrandava o movimento para que ela pudesse subir. Docemente, com o

corpo parado, Maougo pegou na mão da criança e meteu-a nos seus

cabelos. Em seguida, como se tivesse uma corda, puxou-o para fora do

turbilhão. Parecia um milagre! Olhei para Théo, que também estava

siderada. Então compreendi, de repente, como se fosse uma revelação,

a razão de as mulheres usarem cabelo comprido.

À noite, fiz o ponto da situação com Théo. Estávamos na hora da

avaliação. François tinha enfrentado, impávido e sereno, a situação.

Tinha-se aturdido com o vento, com os cheiros do Outono e com os

mergulhos nas folhas. Enfim, não tinha cedido ao pânico diante do

turbilhão. Estava, sem dúvida, muito melhor na sua pele de cão do que

nós na nossa. Quanto a Matthieu, tinha-nos seguido sem problema, o

que era um bom indício. Mas nós não tínhamos conseguido resgatá-lo

do seu mundo interior. Portanto, devíamos trabalhar mais o momento

da recuperação.

Pedi aos meus pais um caderno novo para escrever as nossas

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reflexões. O meu pai franziu o sobrolho, como se preferisse que eu não

pensasse! Mas, sem argumentos aceitáveis, acabou por concordar. Dar

um sentido à vida de François e salvar Matthieu do naufrágio eram as

nossas duas missões. Desde então, as sextas-feiras à noite e os

domingos tornaram-se dias de experiências. Na sexta-feira seguinte, os

meus pais iam sair, e ficou decidido que eu passaria a noite em casa de

Marie.

Eu já tinha dormido algumas vezes ao relento, mas até o

espectáculo singular do céu estrelado sobre as mais altas montanhas

não se comparava em nada com aquele que iria desenrolar-se em casa

de Matthieu. A noite já ia longa quando Marie apagou a grande bola

japonesa que parecia o sol e ligou um pequeno candeeiro, cuja luz, mais

doce, fazia lembrar a lua. Sentou-se à mesa, iluminada por esta luz

difusa, e escreveu o seu diário. Ao mesmo tempo, Maougo levantou-se

e, como um gigante imóvel, pôs-se à janela. A sua silhueta roliça

preparava uma noite tranquila. O tempo ficou suspenso.

Matthieu instalou-se no tapete do anjo, cujo nome se devia a um

anjo de terracota pendurado numa estante. Numa prateleira deste

móvel havia dois frascos em vidro colorido. O azul era para a noite, o

amarelo para a manhã. Matthieu pegou no frasco azul e sentou-se em

frente do anjo. Com a cabeça inclinada, mergulhou a mão no frasco e

tirou de lá muitos berlindes, que lançou no tapete. Os berlindes do dia

eram em vidro e os da noite eram de algodão coberto de papel

prateado. Na penumbra, as bolinhas captavam a luz e espalhavam-na.

Matthieu concentrava-se de tal forma neles que os seus olhos pareciam

feitos de prata.

Marie fechou o diário, levantou-se e apagou a luz da secretária. A

luz das pequeninas bolas de prata apagou-se também. Ficámos em

silêncio. Maougo saiu da porta-janela. Matthieu pôs o frasco azul ao lado

do amarelo e, saltitando, foi para a cama, onde se cobriu até ao queixo.

Marie ligou, então, a cassete das canções para adormecer. Sem ela,

Matthieu nunca dormiria. Por fim, Marie voltou para o quarto e Maougo

instalou-se no chão, no corredor, junto da porta de Matthieu. Pôs e

voltou a pôr a cassete até que o rapazinho adormeceu. À noite,

Matthieu só relaxava com canções.

Encontrei-me sozinha no salão e abri o meu caderno:

Sexta-feira à noite, 10 de Outubro. Era difícil contar por palavras a

magia de uma cena muda, que mais parecia uma poesia silenciosa.

Escrevi: «No 5º andar, sob o tecto da casa, Matthieu alimenta-se de estrelas

no momento de dormir …» Seguiu-se uma longa e fiel descrição.

Terminei com a frase «Os berlindes caem na noite, como estrelas de sono

nos seus olhos.»

Mas não bastava escrever para compreender. Intrigava-me a

presença de Maougo. No dia seguinte, discuti o assunto com Théo, que

disse:

— Mas o que tem ela que nós não temos para compreender o

Matthieu?

Depois de muito procurar, surgiu-nos uma única resposta: não

falava. Talvez seja preciso ficar privado das palavras para compreender

o silêncio, como os cegos que vêem com as mãos. Pensámos que estava

ligada ao Matthieu pelo coração e que, quando tinha estendido os seus

cabelos loiros e desalinhados a Matthieu, eles tinham-se tornado raízes

às quais Matthieu se agarrara, como se estivesse na borda de um

precipício. Os cabelos funcionavam como um fio secreto que ajudava a

sair do labirinto. Um labirinto habitado por monstros.

Ou Maougo era uma fada que se escondia atrás de cabelos

desgrenhados ou vivera, na sua vida anterior, experiências tão ricas que,

agora, era capaz de compreender tudo!