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Motricidade ISSN: 1646-107X [email protected] Desafio Singular - Unipessoal, Lda Portugal Coelho, Luís O método Mézières ou a revolução na ginástica ortopédica: o manifesto anti-desportivo ou a nova metodologia de treino Motricidade, vol. 4, núm. 2, 2008, pp. 22-40 Desafio Singular - Unipessoal, Lda Vila Real, Portugal Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=273020552004 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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Motricidade

ISSN: 1646-107X

[email protected]

Desafio Singular - Unipessoal, Lda

Portugal

Coelho, Luís

O método Mézières ou a revolução na ginástica ortopédica: o manifesto anti-desportivo ou a nova

metodologia de treino

Motricidade, vol. 4, núm. 2, 2008, pp. 22-40

Desafio Singular - Unipessoal, Lda

Vila Real, Portugal

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=273020552004

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Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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revisão

AUTORLuís Coelho1

1 Fisioterapeuta mézièrista, professor de Pilates e investigador na área das raquialgias

O MMÉTODO MMÉZIÈRES OU AA RREVOLUÇÃO NNA GGINÁSTICAORTOPÉDICA: OO MMANIFESTO ANTI-DESPORTIVO OOU AA NNOVAMETODOLOGIA DDE TTREINO4(2): 221-39

PPAALLAAVVRRAASS--CCHHAAVVEEtreinamento; testosterona; cortisol.

KKEEYYWWOORRDDSStraining; testosterone; cortisol.

data de submissãoAAbbrriill 22000077

data de aceitaçãoJJuunnhhoo 22000077

O MMÉTODO MMÉZIÈRES OOU AA RREVOLUÇÃO NNA GGINÁSTICA OORTOPÉDICA: O MMANIFESTO AANTI-DESPORTIVO OOU AA NNOVA MMETODOLOGIA DDE TTREINO

INTRODUÇÃO

Em termos ditos ‘músculo-esque-léticos’, pode considerar-se que o conhecimento dos métodos defisioterapia que consubstanciamteorética e pragmaticamente a “in-tervenção postural” constitui umabase de sapiência fundamentalpara a boa prestação do profissio-nal de “educação física” e o profis-sional de saúde especializado.Dentro das abordagens de nature-za fisioterapêutica, diversos méto-dos de tratamento podem ser utili-zados, sendo que os mesmos podemser divididos em duas grandes ca-tegorias: tratamentos analíticos(centrados fundamentalmente nossintomas do doente e realizadossobretudo a nível local) e trata-mentos holísticos (centrados nacausa dos sintomas do doente erealizados a nível global).Os tratamentos holísticos apare-cem substanciados na forma demétodos mais ou menos globaisque tendem a ver a pessoa comoum todo inextricável. No contextodo presente artigo, são considera-dos tratamentos ditos holísticostodos aqueles que centram a suaacção num ponto de análise daestrutura corporal do sujeito, vistacomo um todo. Falamos, nomeada-mente, na postura corporal e, por-tanto, nos métodos de intervençãopostural (e mais precisamente deReeducação postural).Neste contexto, surgem as dificul-dades de definição operacional doconceito de Postura e de Reedu-cação Postural que tentaremosultrapassar num primeiro momentodo texto. Compreenderemos muitoprecisamente que o conceito deReeducação Postural adoptado no

documento deriva de todos osmétodos que se iniciaram com arevolução introduzida por FrançoiseMézières (1909-1991), portanto,métodos de origem e ambientefrancófono (que iremos caracterizarpormenorizadamente à frente noartigo), cuja história remonta àsegunda metade do século XX.Estes métodos serão designadospor mézièristas, sendo que têm emcomum o facto de se basearem to-dos naquela que podemos denominarde teoria das Cadeias musculares.Uma explanação dos conceitos ini-ciará o percurso teorético a que secinge o artigo. De seguida, iremosanalisar resumidamente aquilo queentendemos por métodos clássicosde intervenção postural, sendo quesó depois de desenvolvermos estespré-requisitos teóricos é que iremospercorrer todo um percurso his-tórico relativo ao método Mézièrese outros de natureza “mézièrista”.No fim do nosso texto, iremos exporo conjunto das conclusões devidas,relacionadas com o percurso teó-rico coadjuvado, sendo de sublinharo agrupado de “implicações” que o campo teorético e pragmáticodos métodos de intervenção “mé-zièrista” possui sobre a prática des-portiva em geral.

Explanando oos cconceitos bbásicos

Diversos investigadores têm dadoluz a múltiplos métodos de “inter-venção postural” sem que umadefinição conceptual de “postura”tenha sido aprioristicamente rele-vada; daí que muitas das confusõesmetodológicas e pragmáticas dosvários métodos de “correcção pos-tural” nunca tenham sido adequada-mente resolvidas. Por exemplo,

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Diferentes métodos de “intervençãopostural” agem sobre uma ou maispartes dos referidos níveis de con-trolo postural. Daí que um proces-so de “reeducação postural” nuncapossa limitar-se só à dimensãoneurológica ou só à dimensãomuscular per si. Por outro lado, osdiferentes níveis de controlo pos-tural, pelo facto de estarem inti-mamente relacionados, influenciam--se mutuamente, sendo de esperarque a intervenção num nível acar-rete mudanças na totalidade dosníveis de controlo.

Por exemplo, o paradigma de Bricot2

refere-se sobretudo ao nível neuro-lógico, sendo que a sua intervenção(postural) acarreta modificações anível proprioceptivo, regendo-se estapela administração de palmilhas de reprogramação postural, pelamodulação do receptor ocular e/oupela intervenção ao nível do recep-tor dento-oclusal. Apesar de umtanto ultrapassado, o modelo deBricot constitui ainda plataformaobrigatória do estudo da posturolo-gia (esta entendida num sentido lato).

Neste artigo, iremos reger-nossempre pelo seguinte conjunto dedimensões posturais: neurológica(já referida), funcional e estrutural.

A relação entre as dimensões fun-cional e estrutural da “postura”pode ser considerada como comple-xa, sendo que, para o paradigmadas “cadeias musculares” não háalgo referente a verdadeira estru-tura, pois esta é, virtualmente,modificável pelos diversos métodosde reeducação postural.Neste artigo, iremos tratar de dife-rentes maneiras os conceitos de“ginástica correctiva postural” e de“reeducação postural”. A históriada primeira é bastante mais longado que a história da segunda. Aprimeira rege-se sobretudo peladimensão funcional da “postura”,

tanto no método Pilates quanto noStretching fala-se de “postura”, masem ambos os métodos realizam-seconjuntos de metodologias físicasdissemelhantes, sendo que uma secentra mais na força do centro docorpo e a outra se centra mais naflexibilidade. Iremos tentar ordenartodos estes diversos campos se-mânticos e idiomáticos.

Comecemos pela caracterizaçãodo termo “postura”. Este possuium significado original de “posição,atitude ou hábitos posturais”1. Por“postura” podemos entender, emtermos práticos, “a posição optimi-zada, mantida com característicaautomática e expontânea, de umorganismo em perfeita harmoniacom a força gravitacional e predis-posto a passar do estado de re-pouso ao estado de movimento”;funcionalmente, pode ser conside-rada como “o conjunto de relaçõesexistentes entre o organismo comoum todo, as várias partes do corpoe o ambiente que o cerca”; substan-cialmente, porém, vai de acordocom “um complexo sistema de mui-tos moldes, no qual intervém, alémdo carácter biomecânico, um con-junto de variáveis”.

Enquanto “posição corpórea”, “pos-tura” pode referir-se tanto à posi-ção relativa a um tempo deter-minado, tendo como exemplo oconjunto das curvaturas vertebraisfuncionais, como à posição relativaa uma estrutura determinada, ad-mitindo agora como exemplo oconjunto estruturado (ou, comoveremos mais tarde, virtualmenteestruturado) das curvaturas verte-brais (ditas anatómicas).

Efectivamente, quando falamos de“postura” podemos estar a referir--nos a um “fenómeno” consubstan-ciado por diferentes perspectivas//dimensões e níveis. Tribastone1

refere-se a planos, comparando os

mecanismos de controlo posturalcom os mecanismos de controlo domovimento (a postura pode ser,inclusive, definida como um conjun-to incomensurável de múltiplos emicroscópicos movimentos - defi-nindo-se esta como uma perspec-tiva ‘dinâmica’ da postura). Temos,portanto, o plano anatómico, relati-vo à organização racional da activi-dade perceptivo-motora, alcançadaa partir de movimentos, e com anormalização do conjunto das ca-deias cinéticas, actuando na ree-quilibração das tensões miofasciaise das cadeias articulares; o planoneuromotor, relativo às sensaçõesproprioceptivas e às variáveis afe-rentes de controlo postural; e oplano psicomotor, relativo à orga-nização do esquema corporal, al-cançada a partir da percepçãoconsciente e do conhecimento dopróprio corpo, das suas modali-dades de funcionamento e da suaorganização espacio-temporal.

No respeitante aos mecanismos de regulação da postura, estamosa entrar num terreno essencial-mente “neurológico” que é compostopor um conjunto de quatro níveis1:1) centros superiores, que com-preendem o cérebro, o cerebelo e otronco cerebral; a esses chegam asinformações provenientes princi-palmente dos fusos neuromuscu-lares, dos mecano-receptores arti-culares, dos órgãos tendinosos deGolgi, e também da retina, da pele edo vestíbulo; 2) interneurónios,motoneurónios alfa e gama, conti-dos na espinal medula; 3) músculo etodos os factores que influenciam aresposta contráctil (referimo-nosprincipalmente a músculos postu-rais, ou seja, músculos de controloessencialmente inconsciente); e 4)

fusos neuromusculares, órgãostendinosos de Golgi, vestíbulo ereceptores sensoriais.

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enquanto que a segunda “mexe”supostamente com as estruturas.A primeira, em conjunto com adimensão neurológica de “postura”,passa por diferentes métodos de“ginástica”, desde o método clássicosueco de Per Henrik Ling (1766--1839), centrado em princípios tra-dicionais de movimento e alonga-mento céleres, até ao modernométodo Pilates, centrado nos con-temporâneos estudos referentes à estabilidade lombo-pélvica3, pas-sando pela cinesiterapia vertebral,pela “ginástica respiratória”1, pordiferentes abordagens físicas detratamento da escoliose (consultarTribastone1), a psicomotricidade4 eo relaxamento5. A segunda rege--se pela aquela que designamos de “teoria das cadeias musculares”,a qual é desenvolvida iniciaticamen-te pelo paradigma mézièrista.Importa aqui referir que para mui-tos profissionais de saúde o métodoPilates constitui um verdadeirométodo de “reeducação postural”.Não o consideramos neste artigo,pois, não obstante o conjunto inex-primível dos resultados na dorlombar obtidos com o treino deestabilidade dinâmica do tronco(para mais pormenores, consultarRichardson et al3), o método Pilatesnão ultrapassa as dimensões neuro-lógica e funcional mais efémerasde “postura”. Somente os métodosque designamos como “reeducaçãopostural”, centrados na “metodolo-gia das cadeias musculares” influen-ciam certos aspectos mais “perma-nentes” da postura, aqueles rela-tivos à “estrutura” ou morfologia.Tentemos, agora, definir o conceitode postura “normal”.Para Bricot2, a postura normalsignifica a ausência de forças con-trárias e a presença de relaçõesharmoniosas entre as diferentescomponentes esqueléticas. O resul-tado será a inexistência de dor.

Já que pretendemos referenciar oparadigma Mézières, vamos referiro que é a postura perfeita para o método com o mesmo nome. AMadame Mézières costumava refe-rir-se às formas das obras de arterenascentista enquanto “formas dedimensões perfeitas”. O trabalhoem Mézières constitui um esforçode retorno à “morfologia perfeita”,conhecida como a bela forma. Asproporções da bela forma corres-pondem ao número de ouro (emrelação a √5 +/- 1/2) para o qualtodos deveríamos tender.

A “bela forma” de Mézières carac-teriza-se por: vendo de face, asclavículas, os ombros, os mamilos,os espaços braquiotorácicos devemser simétricos e estar ao mesmonível; os contornos laterais do tóraxdevem ser rectilíneos e divergirdesde as cristas ilíacas até à pregada axila; de costas, a nuca deve serlonga e cheia, os ombros, as ancase as omoplatas devem ser simé-tricas e não devem apresentarqualquer relevo, o feixe inferior do trapézio deve aparecer (numapessoa não obesa) até à décimasegunda vértebra dorsal; em posi-ção de flexão do tronco à frente,com a cabeça pendente, a colunadorsal deve apresentar-se na linhadas cabeças do astrágalo e nãorecuar para trás dos calcanhares(recurvatum), e a coluna deve servisível naquele que muitos denomi-nam de “sinal da roda da bicicleta”;de perfil, a ponta do mamilo deveser o ponto mais avançado, abaixodo qual o contorno anterior do tó-rax e do abdómen deve ser recti-líneo até ao púbis, o contorno dascostas deve ser visível, o braçosepara o 1/3 posterior do tóraxdos 2/3 anteriores.

Todas as alterações relativas àpostura dita “correcta” correspon-dem a paramorfismos, se as alte-

rações são temporárias e rever-síveis, e a dismorfismos, se as alte-rações se consideram fundamen-talmente irreversíveis1 (claro queesta classificação não preenche osquesitos conceptuais do métodoMézières, já que para o mesmo alinha teórica que separa as tais“dismorfias” dos referidos “para-morfismos” é assaz espúria).

Para Bricot2, mais de 90% dosindivíduos apresentam um desequi-líbrio postural. Para o autor, os de-sequilíbrios posturais comportamplanos: o plano de alinhamento es-capular e das nádegas, com aumen-to das curvaturas; o plano esca-pular posterior; o plano escapularanterior com dorso plano; e osplanos alinhados com diminuiçãodas curvaturas.

É de reter também a classificaçãopostural de Kendall, dentro das quaissão paradigmáticas as kyphosis--lordosis posture, sway back posturee flat back posture.

A avaliação postural pode ser mera-mente observacional, mas podetambém fazer uso de instrumentose metodologias complexas1. A maisutilizada pelos clínicos é indubita-velmente sustida pela observaçãonaturalística em real time. É apartir dessa observação, e nãoesquecendo nunca a “imagem”,algo quimérica, fornecida pela belaforma, que o terapeuta mézièristairá conduzir a sua acção, semprecom vista à aquisição da morfologia“perfeita”.

Sem desprimor das definições apre-sentadas, diria que tanto as classi-ficações existentes de ‘postura’como as enunciações definidorasda sua “normalidade” vs. “anormali-dade” caem no erro de considerara “postura” como um arquétipo con-creto, objectivo e bem definido. Ameu ver, a “postura” está para ocorpo como a “personalidade” está

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para a mente. Assim como é difícildefinir a normalidade/anormalidadedo funcionamento personalístico,segundo um ponto de vista psico-logista, também é difícil definir oscritérios de normalidade da “pos-tura corporal”. A “postura” é, talcomo a personalidade, essencial-mente uma idiossincrasia, um “cor-pus” definidor de um conjuntointrincado de factores psiconeuro-lógicos, psico-emocionais, músculo--esqueléticos e neuromusculares,variáveis, muitas vezes radicalmen-te, de sujeito para sujeito. Portanto,a tentativa de classificar a postura“normal” vs. “anormal” é, apesarde útil no ponto de vista nosológico,dispensável segundo o ponto devista dinâmico e “morfoanalítico”.

O mmétodo MMézières ee aa rrevoluçãona gginástica oortopédica

A compreensão dos princípios dométodo Mézières implica o entendi-mento da postura sobretudo comoo resultado funcional do equilíbrio“estático” entre as cadeias muscu-lares. Mas o que são as cadeiasmusculares? E de que maneira asmesmas contribuem para desenhara forma do corpo, para moldar asua estrutura? Vamos tentar res-ponder a estas questões no con-texto da explicação da história dométodo Mézières.

A história do método em questãoreleva de determinados aconteci-mentos e observações que são dobom conhecimento do terapeutamézièrista.

A própria Mézières (figura 1) contana sua obra “L’homéopathie fran-çaise”6 (traduzindo): “Quando numamagnífica manhã de primavera de1947, nós vimos entrar no nossoconsultório uma paciente apresen-tando uma soberba ‘cifose’, nós es-távamos bem longe de pressentir

que a nossa profissão e o destinode toda uma legião de doenças iam ser mudadas. Tratava-se de umsujeito longilíneo, muito alto emagro. Um colete de couro e ferronão havia conseguido parar, comoesperado, a progressão da doença”6.

Nesta época, a ginástica posturalclássica era realizada com basenas leis fisiológicas que aceiram opapel do fortalecimento muscular.E foi esse mesmo tipo de traba-lho que foi feito inicialmente com adoente. Mézières refere: “Nós ten-támos, naturalmente, os exercíciosde ‘endireitamento’ e o trabalhodos músculos dorsais com vista afortalecer os extensores do tronco,mas a rigidez era tal que nada erapossível realizar. Deitando, então, a nossa doente, no chão, em decú-bito dorsal, nós realizámos a flexãodos ombros e vimos, para nossoespanto, produzir-se uma enormelordose lombar. Para não acres-centar um mal à cifose já presente,nós realizámos a báscula posteriorda bacia e, para nosso novo espan-to, vimos a hiperlordose lombaresquivar-se e deslocar-se para anuca”6 (figura 2).

Depois de repetida várias vezes aexperiência, Mézières e os colegasacabaram por admitir uma ver-dade que viria a ser anunciadacomo uma nova lei: que “todo oencurtamento parcial da muscula-tura posterior leva a um encur-tamento de todo o conjunto destamusculatura”, o que corresponde à noção de cadeia muscular, onde“toda a modificação de comprimen-to no sentido do alongamento ou nosentido do encurtamento de parteda musculatura tem repercussãosobre todo o conjunto”.

Françoise Mézières acrescenta:“Tanto que como o alongamento damusculatura lombar se traduziapelo encurtamento da curvatura

cervical, a lei é que o alongamentode um qualquer músculo posteriorleva ao encurtamento do conjuntode toda a musculatura posterior”6.É o que costumamos chamar decompensação.

“Então, para esta paciente, nenhummúsculo posterior era demasiada-mente fraco ou longo, nem mesmoos da região cifosada; pelo contrá-rio, todos estavam curtos, rígidos efortes demais. O sujeito não era deforma alguma esmagado pela acçãoda gravidade (noção clássica), massim achatado pela sua própria for-ça, a dos seus músculos dorsais.Era preciso, ao invés de fortaleceresta musculatura, descontraí-la,alongando de uma ponta à outra da coluna vertebral, como se setratasse de uma lordose”6.

Actualmente sabemos que a “cadeiaposterior”, identificada pela primei-ra vez por meio das observações de Mézières, inclui um comporta-mento dinâmico, o qual integra umconjunto muito avultado de estrutu-ras musculares, como o diafragma e,até mesmo, a musculatura anterior.Esse comportamento dinâmico in-tegra um conjunto de inúmerascompensações, geradas por meca-nismos protectores, sendo queestes são devidos ao denominadoreflexo anti-álgico à priori. Veremos,igualmente, mais à frente que anoção de “cadeia muscular” (e tam-bém dos seus constituintes) dife-renciou-se um tanto com a prosse-cução teorética dos diversos méto-dos de linha “mézièrista”.

Entrámos, efectivamente, num con-junto de noções variadas que ini-cialmente Mézières não dominavacompletamente. A fisioterapeutaresumia, efectivamente, as suasobservações em duas partes: (1) amusculatura posterior comporta--se como um só músculo e (2) ela ésempre forte de mais, curta de

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de observação”), Mézières tira di-versas conclusões (mantemos, ago-ra, o original francês): (1) «Il n’estque des lordoses»: a cifose (e aescoliose) não é possível sem umaacentuação das lordoses e é vistacomo a sua consequência. A lor-dose constitui a origem de todas asdeformações do ráquis e dosmembros. Para além disso, elaocorre em todos os movimentos de extensão e nos movimentos degrande amplitude dos membros. (2) «La lordose est mobile et cou-lisse sur le corps tel un anneau sur une tringle à rideau.» (3) «Lesmembres sont solidaires du troncet le creux poplité constitue, en de-hors du rachis, une troisième con-cavité postérieure liée aux lordosesrachidiennes.» (4) «Tout est com-pensation lordotique» (5) «La lor-dose s’accompagne toujours de larotation interne des membres.» (6)

«La morphologie thoracique estconditionnée par certains mouve-ments de la tête et des membressupérieurs.» (7) «La lordose coexis-te toujours avec le blocage du dia-phragme en inspiration.»

As conclusões de Mézières levarama que a autora enunciasse oficial-mente um conjunto de seis leis nasua obra “Originalité de la MéthodeMézières” (1984) (7): PRIMEIRA LEI:«Les nombreux muscles postérieursse comportent comme un seul etmême muscle (Une chaîne muscu-laire se définira comme étant unensemble de muscles polyarticu-laires et de même direction, qui sesuccèdent en s’enjambant commeles tuiles d’u toit); SEGUNDA LEI: Lesmuscles des chaînes sont trop to-niques et trop courts (il n’y a doncrien qu’il faille renforcer); TERCEIRA

LEI: Toute action localisée, aussibien élongation que raccourcisse-ment, provoque instantanément leraccourcissement de l’ensemble

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mais, potente de mais. E, para osproponentes de Mézières, o princí-pio preliminar de que todas as de-formações têm origem num encur-tamento da musculatura posteriormanteve-se incólume até à data.

Deve, também, ser acrescentadoque a própria Françoise Mézièresterá cedo percebido que existia umasinergia importante entre a muscu-latura posterior e o diafragma e osmúsculos rotadores internos dosmembros (cadeia muscular ântero--interna).

Assim sendo, a desmontagem dosprincípios far-se-ia na forma de um“tripé de intervenção”, com vista àharmonização muscular na formada morfologia perfeita ou bela for-ma: deslordose, expiração e desro-tação (figura 3 e figura 4).

Da observação iniciática de Méziè-res6 do paciente cifótico, referidaatrás (conhecida como o “princípio

FFIIGGUURRAA1Françoise Mézières (1909-1991).

du système; QUARTA LEI: Toute oppo-sition à ce raccourcissement provo-que instantanément des latéroflé-xions et des rotations du rachis etdes membres (lógica das compen-sações); QUINTA LEI: La rotation des membres due à l’hypertoniedes chaînes s’effectue toujours endedans; SEXTA LEI: Toute élongation,détorsion, douleur, tout effort impli-que instantanément le blocage res-piratoire en inspiration.

O esquema 1, apresentado segui-damente, representa o “anel Mé-zières”, o qual resume os princípiosreferidos anteriormente.Do esquema apresentado, podemosdizer que, para Mézières, todas asdeformações ocorriam a partir deuma ou mais lordoses, sendo queesta(s) estaria(m) associada(s) àrotação dos membros (relacionadacom o encurtamento do psoas eoutros músculos sinergistas) e aobloqueio diafragmático (associadoao encurtamento do diafragma edos diversos músculos suspenso-res das vísceras, incluindo muscu-

FFIIGGUURRAA2Lógica das compensações musculares.

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latura sinergista com inserção su-perior na coluna cervical). O trata-mento segundo Mézières correspon-deria precisamente a toda a acçãode alongamento muscular global eprolongado com vista à deslordose,desrotação e desbloqueio diafrag-mático (os princípios fundamentaisde trabalho de Mézières, assimcomo os princípios da “revoluçãona ginástica ortopédica” viriam aser formulados iniciaticamente nasua obra “Révolution en GymnastiqueOrthopédique”8). O tratamento mé-zièrista consiste precisamente numconjunto de posturas que possibi-litam o tratamento iniciático de um

“bloco superior” da “cadeia poste-rior” (constituído pela cabeça, co-luna cervical, cintura escapular emembros superiores, e coluna dor-sal até T7) e, logo de seguida, aotratamento do “bloco inferior” da“cadeia posterior” (coluna de T7 atéao cóccix, cintura pélvica e mem-bros inferiores) (figura 5).A cadeia muscular posterior eravista como a estrutura principal atrabalhar. O conceito de “cadeiamuscular” não aparece inicialmentena obra de Mézières. As “cadeiasmusculares” vão sendo “formu-ladas” ao longo da obra da autora:a cadeia braquial, a grande cadeiaposterior e a cadeia ântero-internasão postas em evidência por Méziè-res, enquanto que a cadeia anteriordo pescoço é posta em evidênciapor Nisand (futuro criador da “Re-construção Postural”) e aceite, maistarde, por Mézières (ver figuras 6 e 7 com imagens clássicas, respec-tivamente das cadeias muscularesposterior e anterior).A obra e método de trabalho deMézières parte de um postuladopatogénico: «La forme conditionnela fonction et la douleur est à en-visager comme un signal d’alarmed’une déformation qui aurait atteint

son seuil d’acceptabilité.» O princí-pio terapêutico da Globalidade éproposto bastante cedo pela au-tora e consistia no já referido “tripéde tratamento”. As posturas dealongamento deveriam ser reali-zadas com “alongamento global de todas as cadeias muscularesenvolvidas”, através de “contracçãoisométrica excêntrica”.

Veremos, de seguida, que diversosforam os métodos desenvolvidos a partir do original de Mézières,sendo que tanto a noção de “cadeiamuscular” como os princípios de tra-tamento sofreram grandes altera-ções, por parte de diversos autores.

FFIIGGUURRAA3Françoise Mézières tratando uma doente. Évisível a aplicação do princípio da deslordose.

FFIIGGUURRAA4Françoise Mézières deslordosando

e desrodando uma doente.

- Deformações congénitas

ou primitivas

- Patologias

- Trauma

- Dores

EESSQQUUEEMMAA1“Anel Mézières”.

A musculatura posterior é demasiado

forte e demasiado curta

CCoommppeennssaaççõõeess

Devido ao reflexo anti-álgico à priori

DDeeffoorrmmaaççõõeess

Porque a musculaturaposterior se comportacomo um só músculo

Em lordose

Rotação dos membros

Bloqueio diafragmático

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As ttécnicas dditas ““mézièristas”

As técnicas ditas “mézièristas” cons-tituem todas aquelas que advêmdirecta ou indirectamente do tra-balho de Françoise Mézières.Mézières ensinou a sua arte desdeos finais dos anos 50 até à suamorte em 1991. Perto do fim dasua vida, ela estimou o número deterapeutas com o seu curso comosendo de cerca de mil e quinhen-tos. Esta cifra é meramente aproxi-mativa e não pode deixar de sermoderada pelo facto de os seuscursos não possuírem programa,avaliação de conhecimentos ou re-gisto das presenças dos forman-dos. Ou seja, não eram necessáriasmuitas “condições” e/ou critériospara que um terapeuta fosse con-siderado “mézièrista”. A proliferação de escolas paralelastornou-se inevitável, isto desde osanos 60. Em 1990, Mézières de-clarou: «Je m’indigne en voyant unemultitude de kinésithérapeutes pré-tendre améliorer, voir enseignerma méthode, alors qu’il y a fort peude praticiens qui l’aient réellementassimilée»9. O fenómeno da prolife-ração de escolas (e do método emsi) amplificou-se consideravelmen-te após a publicação do livro deThérèse Bertherat10 “Le corps ases raisons” (1976), traduzido paraportuguês para o desapropriadotítulo “Dê saúde ao seu corpo: asaúde pela antiginástica” (Europa--América). A obra de Bertherat (verfotografia em figura 8) era toda elade “inspiração” mézièrista, sendoque incluía um capítulo inteirodedicado ao método de Mézières.Foi esta mesma obra que permitiua criação da fama relativa ao mé-todo, aliás um tipo de “(re)conhe-cimento” que a própria Mézièresnão pretendia. Depois da obra deBertherat ter conhecido um suces-so mundial de vendas, Mézièresrecebeu o prémio da “Legião de

Honra”, e passou a ser ouvida narádio e vista na televisão. A suafama aumentou de forma descon-trolada, algo que a própria Mézièresnão pretendia. Tanto ela como osfisioterapeutas mézièristas preten-diam manter o método dentro daslides clínicas e académicas, sendoque não gostaram que o métodopassasse a fazer parte da “opiniãopública” (aliás, ainda muitos tera-peutas mantêm esta tendênciapara manter determinada “arte de intervenção” no “segredo dosDeuses”, dificultando, muitas vezes,a assunção de um conjunto muitoavultado de vantagens relativamen-te ao conhecimento de “novos” cam-pos de conhecimento e terapêutica).

Quanto às obras de Bertherat, estasforam feitas para o grande público,possuindo o erro da simplificaçãoabusiva. Porém, é de realçar a ca-pacidade que Bertherat teve paraexplicar o método a todos os quenão possuíam formação especiali-zada. Para além disso, a autorateve, mais do que qualquer outro, a capacidade para compreender as verdadeiras implicações que ométodo Mézières possui para omundo do desporto em geral. Emtodas as suas obras, e principal-mente em “Le repaire du tigre”13,Thérèse Bertherat conseguiu tradu-zir, com grande engenho, o conjuntodos erros e “deformações” que osmétodos gímnicos modernos – e amaioria dos desportos de carácterassimétrico – alimentam. Aquilo quepara Bertherat foi apelidado de“antiginástica”, e que, na actuali-dade, poderia ser apelidado de anti--fitness, consiste precisamente noacalentar da ideia – contra-intuitivamas científica – de que o treino deforça muscular, apanágio das prá-ticas desportivas contemporâneas– poderá resultar num excesso mio--fascial com consequências reuma-tológicas deletérias no longo prazo.

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Regressando à questão da prolife-ração de escolas, o que aconteceuinicialmente, e fortemente após apublicação da obra de Bertherat10,é que, visto que o nome “Mézières”estava fortemente inflaccionado,todos os autores que introduziramideias interessantes no métodorecusavam-se a abandonar a apeli-dação “Mézières”. Tudo isto levou a que Mézières7 acusasse os di-versos autores de adulterarem oseu método e de utilizarem o seunome como um viático.

FFIIGGUURRAA5 Postura de trabalho com o método Mézières.

FFIIGGUURRAA6 EE FFIIGGUURRAA7 Imagens clássicasdos conteúdos principais das cadeias

musculares anterior e posterior.

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Por volta dos anos 80, FrançoiseMézières fez proteger o seu nomeatravés do Institut National de laPropriété Industrielle, o que obrigouos autores referidos a utilizaremoutras denominações para apelida-rem os seus “métodos”.No final, alguns anos depois de Mé-zières ter registado o seu método,muitos outros métodos do tipo “mé-zièrista” surgiram: (a) vários méto-dos que se reclamam como sendoindependentes do método Mézières,apesar da evidência demonstrarque são métodos dependentes de Mézières e pouco diferentes –teorética e pragmaticamente – dooriginal. É o caso do método de Ph-ESouchard (um antigo assistente de Mézières, que, inclusive, ensinoue escreveu sobre o método), a Ree-ducação Postural Global (RPG); (b)as técnicas de antigos alunos deMézières, ditas “método Mézières”,mas que, no fundo, apresentamdiferenças significativas relativa-mente ao método original. É o casodos métodos ensinados pela Asso-ciation des mézièristes d’Europe,pela Association Mézièriste Interna-tionale de Kinésithérapie (AMIK) oupela Association des Mézièristesdu Nord. O método ensinado porestas associações já não é comple-tamente congruente com o métodooriginal, como é advogado pelasmesmas. É o resultado de uma –provavelmente lógica – evoluçãorelativamente ao original; (c) téc-nicas que se reclamam como sendode origem “mézièrista”, mas quenão escondem o facto de apresen-tarem “evoluções” relativamenteao original – tanto no plano teóricocomo no plano prático – evoluçõesque justificam a mudança de ape-lidação do método. É o caso dométodo das “Cadeias musculares e articulares” de Godelieve Denys--Struyf (uma importante retratistae escritora sobre o método Mé-

holísticas), métodos mais ligados àdança, artes marciais (como o Tai--chi) e à expressão corporal/psi-codrama/psicomotricidade, assimcomo métodos clássicos de trata-mento da escoliose (método Schroth,método de Rudolf Klapp, método do Instituto Ortopédico Pini, métodoem cifose, método do psoas, mé-todo Gimnasium, o estruturalismopsicomotor, a reeducação proprio-ceptiva neuromuscular, a ginásticaproprioceptiva e as técnicas de de-sequilíbrio) e os métodos da linhade Bernard Bricot (estes últimos já citados no início deste artigo),levam-nos a apelidar os métodos do “nosso artigo” como métodos de Reeducação Postural do tipomézièrista. Todos estes partilhamde dados conceptuais e práticoscomuns ao método de FrançoiseMézières.

Não se pretende, no entanto, dei-xar de realçar a importância detodos os métodos anteriormentecitados. Muitos deles partem deprincípios parecidos com certas“evoluções” relativas aos métodosmézièristas. Por exemplo, o rolfingtrabalha o alongamento da massa-gem mio-fascial e é também esse o sentido do trabalho básico deMézières, mas as metodologiaspráticas são completamente dife-rentes. A abordagem dos “Trilhosanatómicos” refere a existência dediversos “trilhos miofasciais”, estesmuito parecidos com as “cadeiasmusculares” de Busquet. E podía-mos também comparar os diversosmétodos de tratamento “proprio-ceptivo” da escoliose com os prin-cípios de tratamento segundo aReconstrução Postural de Nisand.E todos estes princípios de “inibiçãotónica” fazem lembrar os princípiosneurofisiológicos de métodos defisioterapia de “reabilitação neuro-lógica” como o conceito de Bobath.

investigação técnico original opinião revisão estudo de caso ensaio

zières), o método das “Cadeias mus-culares” de Leopold Busquet e a“Reconstrução Postural” de Nisand.

Digam o que disserem certos au-tores, todas estas escolas de fi-sioterapia possuem um “tronco co-mum”, nomeadamente no métodoMézières. Todas estas escolas podem,num sentido de “senso comum”,ser apelidadas de “ReeducaçãoPostural”. Mas, devemos ter ematenção que o facto de existiremtantos outros métodos ligados à“reeducação da postura”, como ométodo de Ida Rolf (rolfing) e asso-ciados (ex. “Trilhos anatómicos” de Myers), a técnica de Alexander,diversos métodos de relaxamento(como o “relaxamento muscularprogressivo” de Jacobson e a téc-nica de Gerda Alexander), o treino dealongamento/stretching analítico(desde os princípios mais básicosde Per Henrik Ling), métodos comoo Yoga e o Pilates (para além demuitas outras “invenções de mar-keting” mais modernas e menos

FFIIGGUURRAA8Thérèse Bertherat.

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E podíamos continuar eternamentea referir as parecenças entre osmétodos, as quais podem, pelo me-nos em parte, ser explicadas pelasdiferentes epistemis (M. Foucault)ou paradigmas (T. Kuhn) envolvidosnuma lógica de similitude metodo-lógica muitas vezes não assumida.

Voltando aos métodos do tipo mé-zièrista, já falámos da “antiginás-tica” de Bertherat. Mais do que ummétodo (de trabalho grupal), é so-bretudo um conceito. Um conceitorelacionado com as implicações –pouco percebidas – que os princí-pios mézièristas possuem paratoda a “ginástica ortopédica”.Referimos também a ReeducaçãoPostural Global de Ph-E Souchard.Este é provavelmente o métodomais conhecido de todos. Muitacoisa pode ser dita sobre o mesmo.E é claro que não é minha intençãoconstituir um resumo dos princí-pios do método; muito pela razãode que a maioria desses princípios,supostamente “descobertos” porSouchard, são princípios do métodoMézières. Convido qualquer um aler a obra de Souchard “Le champsclos – Bases de la RééducationPosturale Globale”14 e a compararos princípios do RPG com os prin-cípios preliminares do método Méziè-res. É de lamentar que Souchardraramente refira a “mãe intelec-tual” do seu método, ainda maisporque o mesmo ensinou o métododurante dez anos e escreveu sobreo mesmo. Não é criticável que Sou-chard tenha criado o seu própriométodo. Ainda mais porque as suasposturas de trabalho (o seu méto-do inclui oito posturas de alonga-mento) são claramente inovadoras.Portanto, apesar de as posturasdo RPG não acrescentarem nadaem termos metodológicos ao mé-todo Mézières, são bastante ima-ginativas, inovadoras e eficazes(ver posturas em figura 9).

Em termos teoréticos, Souchardvai dar mais atenção à(s) cadeia(s)anterior(s) do que Mézières; porexemplo, se para Mézières não hácifose sem lordose, para Soucharda cifose poderá constituir-se comouma entidade autónoma relativa-mente à lordose, com cadeias ante-riores envolvidas em independênciada cadeia muscular posterior. ParaSouchard, há dois grandes conjuntosde “retracções” globais: posterior eanterior. As posturas de trabalhovariam segundo as alterações exis-tentes. Se analisarmos bem essas“posturas” veremos que algumassão iguais às posturas de Méziè-res, mas esteticamente mais belase “politicamente” mais correctas;por exemplo, na postura “sentada”é mantida a curvatura lombarneutra, enquanto que essa curva-tura tende a ser “deslordosada” no método Mézières (ver exemplosnas figuras 10 a 15). Talvez Sou-chard tivesse em conta as novaslinhas de estudos “funcionais” queprivilegiam a “utilização da colunaneutra”. Aí, o autor talvez tivesseesquecido a máxima de Mézières “asaúde é o resultado da formaperfeita”, pois, segundo a filosofiados métodos vigentes, a formaprevalece sobre a função.Para além do que fica dito, Sou-chard vai ter em conta a existênciade cadeias musculares um poucodiferentes das do método original.Mas aí, ele não inova tanto quantooutros autores.Aliás, a maioria dos autores “neo--mézièristas” (designação – nova –que me ocorre neste momento), vai possuir uma noção de “bloco” ede “cadeia muscular” muito dife-rente da original. Dissemos, anterior-mente, que o tratamento segundoMézières incluía primariamente obloco superior da cadeia posteriore só depois o bloco inferior. Ora,tanto o método de Souchard como

o método de Busquet tentam daruma ênfase de maior globalidadeaos tais “blocos”, trabalhando osdois “blocos” ao mesmo tempo, namedida do possível. Aliás, enquantoo tratamento segundo Mézières éfeito num colchão, o tratamentosegundo Souchard acaba por serfeito – individualmente – numa mesaprópria, a qual permite colocar emtensão todas as cadeias muscu-lares simultaneamente (principal-mente quando utilizado o sistemade polias).

Resta dizer que, sendo o métodomais conhecido, é a obra de Sou-chard que tem permitido expor mui-tas bases da “teoria mézièrista” ou “teoria das cadeias musculares”.O autor publicou cerca de duas de-zenas de obras, muitas delas commais imagens que texto, e todaselas com uma certa tendência paraser recalcitrantes. Algumas sãofundamentais, como a já citada “Lechamps clos” e também a recenteobra “Les scolioses – Traitementkinésithérapique et orthopédique”15.Outras advêm da necessidade decriar um método mais adaptado à realidade desportiva como o “Lestretching global actif”16 (o Stret-ching Global Activo constitui ummétodo grupal baseado igualmen-te em posturas de alongamento eprincípios ditos “mézièristas”; foifeito a pensar sobretudo nas neces-sidades dos desportistas). As suasobras foram traduzidas para oportuguês do Brasil e podem serencontradas nas livrarias especia-lizadas. Em certos países, como oBrasil, o método de Souchard éconsiderado muitas vezes comooriginal, sendo que é este queacaba por ser vítima de plágios e de tantos e tantos “formadores” aensiná-lo. Neste mesmo país emparticular, o ensino do método deSouchard atingiu proporções demerchandising avassaladoras.

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“Só as posturas de estiramentoprogressivo cada vez mais globaispermitem alongar todos os múscu-los rígidos, assim como reencontrara retracção de origem”. FrançoiseMézières não valorizava tanto aquestão do “fortalecimento dosmúsculos fásicos” (aliás, tanto elaquanto Bertherat argumentavamque a força da musculatura fásica//anterior fluiria após ter sido inibidoo tónus da musculatura tónica//posterior).

Sublinhemos, igualmente, os princí-pios de alongamento do StretchingGlobal Activo, os quais, segundoSouchard16, distinguem o alonga-mento global do alongamento ana-lítico: (1) “Os músculos existem naforma de cadeias musculares, prin-cípio que irá implicar que o alon-gamento realizado seja tão globalquanto a natureza da cadeia aalongar”. (2) “Cada músculo temdiversas fisiologias, ou seja, cadamúsculo realiza diversas acçõesmusculares, o que implica que sejanecessário alongar um músculo emtodas as suas acções simultanea-mente”. (3) “O alongamento dosmúsculos obedece à mesma fór-mula física que os materiais visco-sos e elásticos, ou seja, a fluagemmuscular (que é a capacidade dealongamento permanente de ummúsculo) está dependente do pro-duto da força de alongamento pelotempo de alongamento, divididos aocoeficiente de elasticidade”. Ora,visto que quanto maior a força maisdoloroso é o alongamento, o alonga-mento deve depender portanto deum tempo mínimo, que é, no casodo alongamento global, muito supe-rior ao que classicamente tem sidoutilizado. Para além disso, como oaquecimento (seja na forma deexercício, seja na forma de calorlocal) aumenta o coeficiente deelasticidade, este fará com que o

alongamento permanente seja me-nor, o que nos leva a afirmar quetodo o alongamento deverá serrealizado a frio, antes da realizaçãode qualquer exercício. (4) “Os nos-sos alongamentos serão sempreactivos, ou seja, o alongamento emSGA deverá ser realizado por meiodo trabalho activo e excêntrico damusculatura a alongar”. (5) “A res-piração é fundamental”. Importaafirmar que o diafragma, em con-junto com outros músculos aces-sórios da inspiração, constitui umacadeia muscular lordosante, sinér-gica de todas as outras cadeias de músculos estáticos e posturais.Como tal, o alongamento só é glo-balmente possível se for acom-panhado do relaxamento/alonga-mento do diafragma. Por isso, to-dos os alongamentos devem serrealizados em expiração máxima.Mais uma vez é notória a parecen-ça dos “princípios do SGA” com osprincípios básicos de Mézières.Importa, contudo, dar ênfase àquestão do “quando” do alonga-mento. Para os diversos métodosmézièristas – e não só o RPG/SGA– o alongamento deve ser tãoglobal quanto possível. E deve serfeito “a frio”; ou seja, ao contráriode tudo o que vem sendo dito eredito pelos “académicos” da “edu-cação física” e do “fitness”, o alon-gamento muscular deverá ser rea-lizado antes do exercício e só nessaaltura ele poderá ser verdadeira-mente eficaz. A partir destes princí-pios, eu próprio tenho desmistifi-cado a ideia de que o alongamentoa frio é mais perigoso que o alonga-mento a quente, e que o mesmodeve ser feito de manhã e o maisglobal e progressivamente possível.Portanto, o alongamento deve sera frio, global, mantido por longosperíodos de tempo e levado progres-sivamente ao longo da amplitudearticular.

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Importa, ainda, dizer que a noção de“cadeia muscular” para Souchardacrescenta um pouco a Mézières,no sentido em que Souchard valo-riza a diferenciação entre muscula-tura fásica (cadeias muscularesdinâmicas) e musculatura tónica(cadeias musculares estáticas). E éo próprio Souchard que expõe emvárias das suas obras os objectivos//princípios da Reeducação Postural(Global): (1º) “Só as posturas ac-tivas em alongamento podem de-volver aos músculos hipertónicos,rígidos e dolorosos, a sua força, oseu comprimento e a sua flexibili-dade”; (2º) “É necessário alongaros músculos da estática e os mús-culos suspensores, encurtando-seos músculos da dinâmica”; e (3º)

FFIIGGUURRAA9 Posturas do RPG.

1. rã no chão com fechamento dos braços;2. rã no ar com fechamento dos braços; 3. postura sentada; 4. rã no chão com aber-tura dos braços; 5. postura de pé contra aparede; 6. rã no ar com abertura dos braços;7. postura “bailarina”; 8. postura de pé.

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Em matéria de métodos “neo-mé-zièristas”, é preciso entender que o método Mézières propriamentedito é, provavelmente, o mais pas-sivo de todos. Todos os outrostendem para as posturas “activas”.Voltando à questão das “cadeiasmusculares”, importa referir que,se Souchard refere a existência decadeias dinâmicas, então Busquetvai dizer que somente existe umacadeia estática: a grande cadeiaestática posterior. Todas as outrascadeias musculares são sobretudode natureza dinâmica.A obra de Busquet é bastante pro-lixa. Inicialmente, a sua única obratraduzida para português, nomeada-mente a “A pubalgia”17, constituiuma importante referência dentroda linha de Mézières. Mas é estra-nho que Busquet praticamentenem sequer refira o nome deMézières em praticamente toda asua obra17,18.De espantar está a linha de cadeias“neuromeníngeas” e “viscerais” emque Busquet vai colocar realce. Asua obra possui uma grandeza deconhecimento anatómico que qual-quer outro mézièrista não possui.Num ponto de vista dos métodos“neo-mézièristas” é aquele que,segundo uma linha “orto-reumato-lógica” possui a maior completude.Neste ponto, é preciso referir que,se utilizássemos um critério de ca-tegorização dos métodos “neo-mézièristas” diferente do utilizadoatrás, poderia dizer que há, sobre-tudo, métodos de linha mézièristade natureza ortopédica (RPG e “Ca-deias Musculares”), de naturezapsicossomática (“Cadeias muscu-lares e articulares” de GodelieveDenys-Struyf e “morfoanálise” dePeyrot) e métodos de natureza neu-rológica (“Reconstrução Postural”).Apresento, agora, esta nova cate-gorização, pois os métodos de Go-delieve Denys-Struyf19 e de Peyrot

FFIIGGUURRAA10 EE FFIIGGUURRAA11 Postura de Mézières (à esquerda) e a “correspondente” ‘rã nochão’ do RPG de Souchard (à direita).

FFIIGGUURRAA12 EE FFIIGGUURRAA13 Postura de Mézières e a “correspondente” ‘rã no ar’ do RPG deSouchard.

FFIIGGUURRAA14 EE FFIIGGUURRAA15 Postura de Mézières e a “correspondente” ‘rã sentada’ do RPGde Souchard.

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(impossível encontrar qualquer re-ferência sobre este método) são detal forma “diferentes” que só commuito esforço podemos considerá--los como métodos da linha da pos-tura e/ou da motricidade humana.Esses métodos dão importância ao ser humano na sua totalidadepsíquica e somática, e relacionam,de forma ímpar, a postura com osestados psicológicos (e vice-versa).Por exemplo, Godelieve Denys-Struyf,grande retratista de posturas, de-lineou a existência de cinco tipos de posturas, as quais se refeririama cinco tipos diferentes de persona-lidade. É dela a frase “a estruturagoverna a função e submete opsiquismo”. A sua concepção depostura enquanto entidade psicos-somática holística é fundamental à compreensão integral do serhumano. A sua “visão” releva deuma orientação mais psicologistado método Mézières; e leva-nos aentender até que ponto o conceitode Mézières (talvez seja mais cor-recto começar a utilizar este termoao invés de “método Mézières”) éabrangente e tende para uma visãoglobalista do ser humano, visão –aliás, também posta em evidênciapor Thérèse Bertherat – mais pró-xima das abordagens psico-corpo-rais e psicomotricistas do que daactividade desportiva tida no seufrio “fisicalismo” quase anti-humano.Em matéria de métodos neo-mé-zièristas, o mais desconhecido detodos é, indubitavelmente, a Re-construção Postural20,28, o que ébastante injusto, pois este é simul-taneamente o mais fiel e o maisevoluído dos métodos pós-Méziè-res. É, como já dissemos, o maisfiel dos métodos, pois é aquele quemais respeita as bases teoréticasdo método original; é, também, omais científico dos métodos, pois,estando ligado à Universidade LouisPasteur – Strasbourg, é aquele quemais respeita os critérios de uma

necessária cientificidade; é tambémo método com os princípios maisinteligentes, pois foi o único que –finalmente – compreendeu a “pos-tura” enquanto entidade primacial-mente neurológica. Ora, era precisoter surgido este método em 1992para finalmente percebermos – ospoucos que sabem sequer da exis-tência dele – que a postura não étalvez tanto o resultado de umamaior ou menor flexibilidade mio--fascial; se calhar, a postura depen-de, mais do que da elasticidade dosmúsculos, do seu tónus (e jamaispodemos esquecer que é atravésdas variações de tónus que osistema nervoso comunica com osistema muscular).

A Reconstrução Postural difere do método Mézières em diversosaspectos, nomeadamente: (a) En-quanto Mézières se referia à exis-tência de três cadeias muscularesposturais (a grande cadeia pos-terior, a cadeia ântero-interna –diafragma e psoas – e a cadeiabraquial), Nisand acrescenta edescreve pormenorizadamente umanova cadeia muscular – a cadeiaanterior do pescoço. (b) Nisandpropõe uma nova interpretação da lógica das compensações cor-porais, salientando a importânciade um conjunto de respostas neu-rológicas aquando do movimento(respostas evocadas) e o contributodos centros neurológicos centraispara o surgimento das deformi-dades. Assim sendo, o tratamentopassa não só pelo alongamentoglobal das cadeias musculares (Mé-zières), mas também pelo trabalhode consciencialização corporal combase na estimulação neuro-sensorial(ou seja, na modificação do padrãode excitabilidade muscular dascadeias posturais), de modo a queos alongamentos possuam um efei-to de neuroplasticidade adaptativaeficaz e não só um efeito de modi-

ficabilidade temporária do tónus.(c) O método da Reconstrução Pos-tural propõe uma outra forma deinterpretar o aparecimento de dor.A dor não tem origem na própriadeformidade, mas sim na incapa-cidade que a estrutura hipertónica(rígida) tem de se deformar. A par-tir destas diferenças, o método detratamento por Mézières por meiodo estiramento em “contracçãoisométrica excêntrica” transforma--se num meio de tratamento por“solicitação activa induzida”, ou seja,da postura trabalhada passiva-mente passa-se para um trabalhode carácter mais activo, mediantea facilitação de padrões de posturapor meio de “pontos-chave” (à se-melhança do papel dos mesmos“pontos-chave de controlo” do mé-todo Bobath de tratamento dasdisfunções neurológicas), partes do corpo que são sujeitas a movi-mentos de grande amplitude com oobjectivo de induzir ou solicitardeterminado padrão postural. Asposturas em Reconstrução Postu-ral são obtidas, portanto, a partirde pontos periféricos precisos, esão mantidas não por temposnecessariamente muito prolonga-dos (Mézières), mas até ao pontoem que se verifique a normalizaçãotónica. O agravamento da dismorfiaé, ao contrário do que ocorre como método Mézières, uma condiçãoobrigatória para se obter a posturanormal, é um ponto de passagempara a obtenção de um padrão pos-tural “correcto”. Diferenças metodo-lógicas levam a diferentes técnicas,sendo que muitas das manobrasmézièristas foram modificadas ousuprimidas: o mézièrista tende aevitar as compensações, enquantoque o “reconstrutor” tende a lidarcom todas as posturas que possamser efectivas no sentido de se obteruma inibição do padrão; o mézièris-

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ta identifica a dismorfia como algo“anormal”, enquanto que o recons-trutor identifica a dismorfia comoum ponto de passagem para aobtenção de um padrão posturalvantajoso; o mézièrista tende aencontrar uma postura correctivae a mantê-la o máximo de tempopossível, enquanto que o recons-trutor tende a manter a “postura”só até que exista exaustão e extin-ção da resposta evocada (normali-zação tónica); as autoposturas sãoimpensáveis na Reconstrução Pos-tural (o que levanta uma série dequestões relativamente ao tra-balho de Reeducação postural emgrupo), pois o próprio sujeito nãoconsegue educar as suas própriasreacções tónicas correctivas; osproponentes da Reconstrução Pos-tural não falam de “correcção mor-fológica” como os mézièristas, massim de “restauração morfológica”,a qual tem por base não o alonga-mento mio-fascial correctivo massim o alongamento com vista à nor-malização de padrões de activaçãotónica das cadeias musculares.

Com todas estas inovações, o mo-delo de Nisand (porque é de um“modelo” que efectivamente setrata) constitui o mais inovador detodos os métodos de ReeducaçãoPostural. É, provavelmente, o maisneurológico dos métodos e tambémo mais contra-intuitivo dos mesmos.

Infelizmente, de todos os métodos,este é o único que carece de umaatitude de “comercialização” e deexploração para além da Univer-sidade Louis Pasteur. Ou seja, é um método condenado à reclusãoteorética. O que não pode deixar de se considerar como antitético.As implicações que este – e todosos outros métodos – possuem paraa “dinâmica desportiva” e do axioma“exercício é saúde” são muitas ecarecem de uma análise.

As iimplicações dda RReeducaçãoPostural ddo ttipo ““mézièrista”

para aa pprática ddesportiva

Pretende servir este capítulo donosso artigo de veículo de tomadade conclusões, para além das ne-cessárias e intransponíveis refle-xões relativas às implicações teo-réticas e/ou pragmáticas (para omundo do desporto) dos métodosanteriormente tratados.

Começaria por dizer que, dentro doconjunto dos métodos neo-méziè-ristas, há aqueles que seguem umalinha mais comercial de divulgaçãoe aqueles que seguem uma linhamais conservadora de desenvolvi-mento. Em particular, métodos co-mo a “antiginástica” de Bertherat ea “Reeducação Postural Global”auferem de uma fama a nível mun-dial, a qual tem permitido criar umnúmero incomensurável de cursose formações com preços simples-mente indescritíveis. Para alémdisso, tanto a “antiginástica” quantoo “Stretching Global Activo”, filhodo RPG, tornaram-se métodos de utilização grupal e massificada,a qual, não querendo diminuir a suaimportância, não possui o mesmograu de eficácia que os métodosverdadeiramente individuais.

Diria que todos os métodos neo--mézièristas possuem a robustez ea vitalidade de uma metodologiainovadora, que não deixou de possuir,principalmente no mundo francó-fono, a capacidade de criar umaverdadeira “revolução na ginásticaortopédica”. Por motivos de coe-rência histórica, de parcimóniacientífica e de pureza metodoló-gica, diria que é devido ao métodoMézières o seu necessário e ina-lienável reconhecimento enquantométodo fundador de um conceitotambém ele fundador. Não critico,contudo, todos os esforços deinovação, tanto teorética quanto

pragmática, relativamente ao maispuro método original. A evoluçãoconstitui um caracter especifica-mente humano, e de tal forma o é,que é raro um método não brotarnuma nova linha mais ou menosindependente, mais ou menos autó-noma, de métodos-filhos e/ou novasmetodologias.

Direi, contudo, que o conceito detrabalho postural com base noalongamento global das estruturasmiofasciais (organizadas em cadeias)com vista à reestruturação mor-fológica caracteriza a totalidadedos métodos de linha mézièrista,pelo menos aqueles que se relacio-nam mais com a nossa profissão.

É, igualmente, preciso entender quea base científica dos métodos emanálise é real, sendo que os es-tudos que envolvem a electromio-grafia de Jacobson não deixammargem para dúvidas de que aactividade tónica dos músculos denatureza postural é mais persis-tente e menos “moldável” que aactividade tónica dos músculos de natureza fásica. O mesmo serádizer que a diferenciação teoréticada musculatura humana em doisgrandes tipos – músculos tónicos//posturais e músculos fásicos//dinâmicos – essencial para a pres-crição metodológica dos métodosda linha de Mézières, é já consi-derada mais “facto” que “teoria”, oque releva de uma grande impor-tância para a consubstanciaçãoconceptual dos métodos de traba-lho em Mézières. Claro que não édespiciendo o argumento – utilizadopor tantos – de que o facto deexistirem músculos de naturezapostural não obriga à utilização deuma ginástica do tipo “estática”.Ora, penso que esta questão co-meça a ganhar novos contornoscientíficos na actualidade, sendoque tem sido inalienavelmente de-

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monstrado que os músculos de na-tureza “tónica” são mais “sensíveis”a um trabalho também ele tónico,enquanto que os músculos de natu-reza “fásica” são mais “sensíveis” aum trabalho dinâmico (que os dife-rentes desportos de resistência eforça/potência muscular tão bemdemonstram). Aliás, o conceito deginástica “estática” e/ou “postural”é anterior à revolução de Mézières,sendo que ganhou importantescontornos científicos com a intro-dução e desenvolvimento do métodoPilates. Não devemos esquecer,igualmente, que a primeira obra de Françoise Mézières – “La gym-nastique statique” (1947) – é an-terior ao princípio de observaçãoque levaria à criação do seu método.

Tudo isto demonstra que o con-ceito de “ginástica estática” não éderivado de Mézières e da suarevolução. O que realmente derivada “revolução mézièrista” é a novametodologia de “ginástica estática”,a qual, até ali se centrava especial-mente no treino de força muscular,e a partir dali, viria a centrar-se notrabalho de alongamento muscularglobal.

Importante será também dizer que a ideia de que a postura e/oumorfologia estaria relacionada como estado de comprimento-tensãodos grupos musculares tambémnão é apanágio criador de Mézières,pois, no mundo anglo-saxónico, adita ideia já vigorava nas ginásticasmais clássicas. Aliás, durante dé-cadas, acreditou-se que o trabalhodo transverso abdominal ou dosrectos abdominais levaria à dimi-nuição da hiperlordose lombar (já,naqueles tempos pré-Mézières,considerada como “malade postu-ral”). Só mais tarde, Souchard14

viria a deixar bem claro – melhorque a própria Françoise Mézières –que o treino, seja estático, seja

dinâmico, de um qualquer músculoe/ou grupo muscular jamais poderápermitir o trabalho de “correcção”de uma deformidade, mesmo queseja funcional. O autor associa issoao facto de não existir, no nossocorpo, um sistema muscular de“antagonismo puro”, ou seja, aacção de determinados músculosnão poderá contrariar completa-mente a acção de outros conjuntosmusculares. Eu acrescentaria que,sendo o músculo transverso abdo-minal um músculo de inserção pos-terior lombar e anterior abdominal,ele jamais poderia ter o efeito de“deslordosar” a coluna (aliás, osmézièristas mais clássicos atéacreditam que o trabalho do trans-verso abdominal tem um efeitolordosante e que, como tal, deveser evitado). Quanto aos músculosflexores dinâmicos do tronco, sendodinâmicos nunca poderiam contra-riar a acção de uma musculaturaestática (posterior). Este é um bomargumento para tantos e tantosdesportistas e terapeutas que acre-ditam que o treino dos músculosanteriores dinâmicos do troncopoderá fazer com que aumente acifose dorsal. Como poderá aumen-tar a cifose dorsal por esse meca-nismo, ou seja, como poderá cons-tituir-se determinado design postu-ral se estamos a falar de músculosde natureza dinâmica e não está-tica/postural?... Portanto, até aquijá citei uma série de mitos e as con-tradições existentes nos mesmos.Mas não fiquemos por aqui. Vamosanalisar a ideia – clássica e hege-mónica – de que o trabalho de “cor-recção postural” carece de “forta-lecimento muscular”. Ora, o que aexperiência dos mézièristas temdemonstrado é que o fortalecimentomuscular, mesmo que somentedirigido à musculatura fásica (o queé, aliás, impossível, pois não há

forma de isolar completamente otrabalho da musculatura dinâmicarelativamente à musculatura postu-ral), tem por resultado o aumentodo tónus da musculatura de natu-reza postural. Ora, é esse mesmoexagero tónico que se pretendeinibir com o trabalho de “reeduca-ção postural”. Portanto, por exem-plo, o trabalho de fortalecimentodos extensores do tronco, comvista à correcção de uma hiper-cifose dorsal, é cem por centoirracional. E isto por várias razões.

Primeiro que tudo, como se podefortalecer músculos essencialmentetónicos (músculos extensores dotronco e musculatura adutora dasomoplatas) com exercícios de for-talecimento dinâmico? Não é muitológico, pelas razões já apresenta-das. Mas, ainda assim, visto quedissemos que o trabalho dos mús-culos fásicos comportaria o tra-balho co-sinérgico dos músculosposturais, ainda podemos pensarna possibilidade de exercícios defortalecimento abdominal e de for-talecimento dos extensores dotronco poder ter como resultado o encurtamento dos músculos ex-tensores. A experiência tem de-monstrado que, geralmente, essetrabalho de força irá somente levarà criação de uma nova deformida-de. Ou seja, a correcção da cifose,ou não é simplesmente conseguida,ou então, é conseguida à custa do encurtamento da musculaturaextensora, ou seja, à custa de umanova deformidade (com todas asconsequências sintomáticas quetal acarretará). O trabalho de forçamuscular, pura e simplesmente,não é correctivo, pois tem semprecomo consequência a criação detensão numa musculatura de na-tureza já por si hipertónica. Aquisurgem muitas questões. Uma de-las consiste no facto de a maioria

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dos atletas possuir um semblantede “endireitamento” do tronco, beloe atractivo. Ora, esse mesmo “endi-reitamento” do tronco constitui, ameu ver, algo comparável ao açúcarda alimentação: é belo, sabe bem,tem bom aspecto (pois já foi útil em tempos passados), mas faz mal(pois já não se adequa às necessi-dades do Homem presente). Osatletas, pelo facto de possuíremintensa actividade física, desenvol-vem muita tensão nos extensoresdo tronco. Isto acontece, claroestá, porque todo o trabalho deforça muscular – no qual é exímio o conjunto de desportos contempo-râneos – irá criar a hegemonia detensão da musculatura postural,ou seja, o trabalho desportivo irásuper-solicitar o trabalho postural.Isto leva a que os extensores dotronco da maioria dos atletas fi-quem demasiadamente encurta-dos, dando-lhes uma aparência de“direitos”. Ou seja, a grande maioriados atletas possui o tal aspectohegemonicamente belo, à custa deuma deformidade (de retracçãomuscular) em rectificação ou lor-dose dorsal. Talvez isto expliqueque estes mesmos atletas “direiti-nhos” sejam altamente vulneráveisa dorsalgias e cervicalgias, assimcomo ao aparecimento de hérniasdiscais.

Por tudo o que fica dito, e por mui-to mais, posso e devo dizer que o“endireitamento postural” consti-tui uma ideia supramente mitifi-cada. Não só a “bela forma” ou“postura correcta” não consistenuma “postura direita” (ao contrá-rio do que quase toda a genteacredita, incluindo especialistas da área), como essa tal “posturadireita” constitui um erro posturalinacreditavelmente dominante. Sehá coisa que os mézièristas demons-traram, sem margem para dúvidas,

é que a ideia de que devemos man-ter uma “postura direita” e de quetoda a nossa higiene postural serelaciona com o “estar direito” cons-titui um mero e estulto mito. Tendoem conta a natureza funcional dacadeia muscular posterior, a postu-ra “correcta” consiste, na realida-de, em toda a postura que permitao alongamento muscular posteriore o trabalho de inibição tónica dashegemonias musculares prevale-centes. Assim sendo, é bastantecomum os mézièristas recomen-darem aos seus doentes que estesse sentem com a lombar bemapoiada, se não cifosada. Maistarde, Souchard, temendo o nívelde contra-intuição presente nestaideia, viria a trair os princípios de higiene postural mézièrista, pre-ferindo, muitas vezes, a colocaçãoda coluna lombar neutra. Sugiro aobservação das figuras anterior-mente demonstradas (compare-sea posição da coluna lombar nasdiversas posturas Mézières vs.Souchard). Diria que o treino decorrecção de uma hiperlordosesomente poderá ser conseguidocom o trabalho de ablação total dacurvatura, o que corresponde nãopropriamente à inversão da curva-tura (como muitos críticos de Mé-zières têm sugerido), mas sim àeliminação de qualquer nível delordose, mesmo a funcional (ouseja, consiste, mais uma vez, noprincípio mais genuinamente méziè-rista, a deslordose). Mas voltandoàs questões da “higiene postural”,talvez seja pertinente dizer que,para os mézièristas, a postura“ideal” consiste na postura do “co-cheiro” (estou a referir-me verda-deiramente ao “curvado” cocheiro).Todo o trabalho de “endireitamen-to” somente irá criar uma hiper--solicitação do trabalho muscularda cadeia muscular posterior, o

que, a longo prazo irá traduzir-sena fadiga e consequente “encurva-mento”. Ou seja, o trabalho de forçada musculatura extensora irá, pelanatureza de trabalho neuromusculardesta musculatura, criar um nívelde fadiga tal, que a pessoa irá,lentamente tender para a cifose.Quer isto dizer que, ao contrário doque a intuição nos poderia fazerpensar, o trabalho dos extensoresdo tronco ainda vai aumentar maisa cifose (a não ser claro que, comoacontece com os desportistas, secrie a retracção hegemónica damusculatura entre as omoplatas, oque levaria a um “endireitamentopatológico”). É preciso entender quea capacidade de “endireitamentopostural” está dependente do bomfuncionamento tónico da muscu-latura extensora postural, o que,tendo em conta o que sabemos dofuncionamento deste tipo de mús-culos, significa a capacidade demanter a contracção por períodosprolongados de tempo sem criarfadiga. Ou seja, o “endireitamentopostural” será tanto maior quantomais flexíveis forem os músculosposturais; a capacidade para mantera contracção está fortemente de-pendente da capacidade elástica da musculatura. Significa, então,que, quanto mais flexível for amusculatura postural, mais capaci-dade tem a mesma de gerar umacontracção anti-gravítica persis-tente. Aliás, as minhas observa-ções têm-me dado a entender que a facilidade para nos mantermos“direitos” advém do comprimentoda cadeia muscular posterior, ouseja, advém da flexibilidade da mus-culatura posterior. E isto não énovidade alguma, pois, qualquerbom observador poderá facilmentever a diferença na forma como umapessoa flexível se senta, relativa-mente a uma pessoa menos flexível.

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Compare-se, por exemplo, as se-nhoras com os senhores. Quemtem, geralmente, maior capacidadepara manter uma postura sentadadireita (com pernas esticadas)? Assenhoras, que são mais flexíveis?Ou os senhores, que são mais “for-tes”?... O princípio mais primacialde observação leva-nos a verificarque são as senhoras as que pos-suem mais facilidade em obter de-terminadas posturas, o que advémda sua maior flexibilidade mio-fascial.

A ideia de que as lombalgias estãoassociadas à falta de um “reforçomuscular” é, portanto, falaciosa. E a todos aqueles que poderãoapresentar linhas de estudos quedemonstram essa relação, eu apre-sento linhas de estudos que contra-dizem essa mesma relação, assimcomo muitas outras linhas de es-tudos que relacionam flexibilidade,morfologia, mobilidade, e muitosoutros factores, com a presença//ausência de dor. Diria que aindaestamos muito longe de atingiruma plena maturidade metodoló-gica que permita atribuir credibili-dade suficiente às diversas linhasde estudos existentes. O mesmoserá dizer que, atendendo ao quetenho visto em tantos e tantosartigos, pouco se sabe verdadeira-mente, em termos científicos, sobrea relação entre os diversos facto-res biomorfológicos e a raquialgia.

Prefiro, pessoalmente, mergulharna natureza apodíctica das basesconceptuais de um método revolu-cionário como o método Mézières.E é no seio dessa mesma naturezaque o princípio revolucionário deque as deformidades posturais eas raquialgias são devidas aosexcessos musculares e/ou tónicose não à fraqueza toma aspecto deuma verdadeira “lei” de estudo etio-patogénico e de intervenção tera-pêutica.

Importante será acrescentar que,na actualidade, principalmente nocampo teorético da “ReconstruçãoPostural”, parece que tudo o quedissemos sobre excessos muscu-lares está relacionado mais com o“tónus em si mesmo” do que com o“comprimento muscular”. Assimsendo, as deformidades e doresósteo-musculares advêm sobretudoda incapacidade que as estruturasmusculares têm para criar “pontos”de modificabilidade tónica.

Ora, neste ponto, importa referen-ciar novamente o paradigma deBricot. Ou seja, se vamos passar avalorizar mais o campo “neuroló-gico” do trabalho postural, nãopodemos deixar de sublinhar aimportância do trabalho terapêu-tico com base no treino propriocep-tivo e de equilíbrio e no relaxamentopsicofísico. Aliás, se a “postura”depende fortemente de uma capa-cidade de “controlo neurológicocentral”, que, sendo essencial-mente subcortical, é de naturezafundamentalmente inconsciente,então devemos, tal como o fezBernard Bricot valorizar o papel do trabalho “neurológico”, perce-bendo, de uma vez por todas, que aordem “consciente” e “voluntária”para “endireitar” as costas de nadaserve. Ora, se o mecanismo decontrolo postural é inconsciente de que serve mandar alguém “en-direitar-se”?... A experiência temdemonstrado que as metodolo-gias que fazem uso de estratégiasde controlo consciente da posiçãocorporal são ineficazes. Diria quecertas metodologias de “actividadefísica” que privilegiam o “global” aoinvés do “analítico”, e o “motor” aoinvés do “físico”, como a dança, apsicomotricidade, o relaxamento,as artes marciais e todas as activi-dades que façam uso das capaci-dades de equilibração e de coorde-

nação neuromotora, poderão termais eco no trabalho de “reedu-cação postural”. Portanto, paraalém das metodologias mais fisica-listas, todas as outras mais psico-neurológicas possuem uma impor-tância provavelmente fulcral.

Portanto, temos que uma interven-ção a nível reumatológico, na pre-sença da “deformidade postural” eou de sintomas raquidianos, passapor um trabalho necessariamenteecléctico, centrado fundamental-mente no paradigma Mézières, oque inclui também a sua compo-nente psicofísica e de integraçãoneuro-sensorial.

Como vimos, para o paradigma emanálise, todas as deformidadesposturais possuem origem em “ex-cessos” da musculatura essencial-mente posterior. As lordoses são a origem. As escolioses estãosempre correlacionadas com umexcesso muscular da musculaturalordosante (os mesmos músculosparavertebrais que estão envolvi-dos na flexão lateral, e eventual-mente, na rotação dos corposvertebrais da coluna, são tambémos músculos mais poderosamenteenvolvidos na “lordose”). E as cifo-ses resultam também de umacompensação lordótica, seja devidoà acção de contrariação “directa”da lordose, seja devido à acção dodiafragma, seja devido à acção dosmúsculos rotadores internos, ou daacção mais “indirecta” das cadeiasmusculares anteriores (sempre re-lacionadas com a “posterior”, rela-ção mediada pelo diafragma).

Vimos, também, já bastante atrás,que a o conceito de postura “nor-mal” e de postura “anormal” não écorrecto, visto que ninguém possuiuma postura perfeita. Portanto, nocampo “postural”, raramente al-guém é isento de hegemonias mus-culares, raramente alguém possui

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uma postura dita “normal”, e rara-mente alguém possui caracterís-ticas “perfeitas” de flexibilidademuscular. Ora, o que tudo isto vaiimplicar é que a linha teorética que divide “saúde” de “deformidade”é extremamente espúria, se é quechega a existir. Ou seja, todos nóssomos “doentes posturais” em po-tência e, portanto, tudo o que ficadito para as pessoas com deformi-dades posturais relevantes, mantêm--se oportuno para a totalidade daspessoas, pois todos nós possuímosalgum grau de “deformidade pos-tural”. O mesmo será dizer que, emtermos analíticos, todos nós pos-suímos determinada idiossincra-sia, e somos tanto mais saudáveisquanto melhores as condições debom alinhamento e a proximidade à “bela forma”. E todos devemostender para a “bela forma”. E tudodeveríamos fazer para criar taltendência, a qual não deixa de seaproximar do conceito kantiano de “perfectibilidade” humana.

Por exemplo, o mecanismo pato-lógico da artrose está intimamenterelacionado com a “postura”. Osmédicos tendem a relacionar a “ar-trose”, ou qualquer outro processodegenerativo, com a osteoporose e outros factores de desgastearticular. Mas, eu diria que, se apostura fosse perfeita, se o alinha-mento fosse perfeito, nunca teriamestado presentes factores relevan-tes de desgaste articular. Ou seja,a “perfectibilidade” é condição dobom funcionamento articular. Eessa “perfectibilidade” está depen-dente da “forma” e, portanto, dosfactores miofasciais e neuromus-culares que com ela se relacionam.Se a pessoa possuir algo perto da “bela forma”, e não vier a teralguma condição reumatológicae/ou orto-traumatológica relevanteque modifique as condições de

alinhamento articular, é pouco pro-vável que venha a sofrer de qual-quer tipo de condição degenera-tiva. Acrescentaria que estas mes-mas pessoas também são aquelasque podem praticar actividadescomo “andar”, “correr” ou “saltar”com a menor probabilidade de vi-rem a criar problemas articularesdecorrentes de deformidades (anão ser que o excesso de práticadesportiva modifique o panoramatónico-muscular presente). Por ou-tro lado, o que dizer da “saúde” dealguém que possua um certo nívelde desalinhamento e/ou deformi-dade (mesmo que não notória)?...Será que as pessoas com um nívelmínimo de deformidade poderãopraticar actividades físicas com omesmo à-vontade que as pessoasque possuem grande nível de “belaforma”?...

Aquilo que tenho defendido é quenão. Ou seja, deverá haver, para amaioria das pessoas, uma dimi-nuição cabal da tendência para aprática de desportos como os decarácter assimétrico e as activi-dades de fitness, pois, estandoestas actividades grosseiramentecentradas no trabalho da “forçamuscular”, acabarão por funcionarcomo uma porta de entrada para a criação de tensão muscular econsequente deformidade. Atenção:não pretendo negar a evidência quetantos estudos (ditos funcionais)têm lançado sobre determinadasvantagens que advêm da práticadesportiva. Falo só em termos “pos-turais”, “estruturais”, “morfológi-cos”, ou, mais globalmente, “mús-culo-esqueléticos”. E o que defendoé que, ao contrário do que muitospreconizam, a actividade despor-tiva, principalmente as novas mo-dalidades do fitness, potenciam oexacerbar de hegemonias mus-culares que se queriam refreadas.

E isto é tanto mais verdade quantomaior a tendência que o indivíduopossui para a tensão muscular e aretracção mio-fascial.

Em particular, certos desportos,como a musculação, constituem,provavelmente, um factor impor-tante de criação de desequilíbriosmusculares relevantes. Analisem--se as “posturas” dos culturistas e retirem-se as necessárias con-clusões...

Já Françoise Mézières, no seu “Ori-ginalité de la Méthode Mézières”7,dizia que «a la différence de toutesles autres méthodes, ma méthode:1º ne s’adresse qu’à élasticité mus-culaire; 2º ne fait jamais de muscu-lation; 3º tient compte de la mor-phologie normale; 4º n’exerce ja-mais l’inspiration; 5º ne fait jamaisd’exercice analytique; 6º ne fait ja-mais d’exercice perpendiculaire àl’axe rachidien; 7º ne s’adresse qu’auphysique.» E quem a conheceu, dizque Mézières não simpatizava se-quer com o Yoga. O que é perfeita-mente compreensível, pois, estandorepleto de posturas em (hiper)lor-dose, e de fortalecimento dos ex-tensores do tronco, torna-se extre-mamente anti-mézièrista. Portanto,depois de percebermos que tanto ométodo Mézières como os métodosneo-mézièristas não gostam do tra-balho de força, aqui está este autora generalizar o conceito à totali-dade dos praticantes de actividadefísica. A actividade física, principal-mente a actividade intensa e/oucom fins competitivos, constitui umaporta de entrada para a “deformi-dade”. E o atleta inteligente é, indis-cutivelmente, aquele que treina asua flexibilidade!...

Ora, a solução não passa, portanto,pela evicção da actividade despor-tiva, apesar de em muitos casos talser recomendável. Passa, sobre-tudo, pela realização de actividades

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ligeiras, suaves, com carácter essen-cialmente cardiovascular. E essasactividades deverão ser acondicio-nadas a toda uma nova metodologiade trabalho físico.

Ou seja, pretendo dizer que acti-vidades que fazem uso “directo” daforça da cadeia muscular posterior,como a natação, a musculação e oYoga, deveriam ser proibidas aospadecedores de raquialgias. Jamaisdeveriam ser recomendadas, que éo que uma miríade de profissionaisde saúde ainda faz. E essas mes-mas actividades são, a meu ver,desaconselhadas a qualquer pessoa,a não ser àquelas que possuamcondições de flexibilidade excelentes.

Outras actividades, como a maioriados desportos de carácter assimé-trico, e a quase totalidade de prá-ticas do fitness, possuem igual-mente uma incomensurável irracio-nalidade, pelos mesmos motivosque já apresentei.

Por outro lado, certas actividadescardiovasculares, como o simples“andar” podem ser muito benéficaspara a saúde, mas mesmo estasdeverão ser inseridas num novoplano de treino físico. Pois, atémesmo esse “andar” poderá apre-sentar malefícios num indivíduoque apresente deformidade. Nãoserá assim tão estranho pensar no que acontece a um joelho exces-sivamente valgo ou excessivamentevaro, após horas de marcha oumesmo meia hora de corrida... Poroutro lado, o jogo de forças arti-culares deletérias poderá ser be-neficiado de um trabalho preliminarde alongamento. Esse mesmo pla-no ou metodologia é diferente datradicional e consiste na realização,pela ordem que vou apresentar, do seguinte leque de actividades:1º relaxamento; 2º alongamentoglobal; 3º mobilidade articular; 4º

força do core e trabalho facilitado

das extremidades, 5º alongamentoglobal e 6º relaxamento. Portanto,inicialmente, têm de ser criadascondições de relaxamento das es-truturas miofasciais, através dosmétodos de relaxamento. Somenteeste relaxamento inicial irá facilitaro alongamento. Só depois deveráser realizado o alongamento. Estedeve, tal como já foi dito (anterior-mente), ser feito a frio, global eprogressivamente por períodosprolongados de tempo. O relaxa-mento e o alongamento libertam asestruturas articulares. Só nestaaltura deverão ser realizadas asactividades de mobilidade (activida-des cardiovasculares, ginásticas demobilidade), as quais deverão sersuaves. E só no fim de todas asestruturas estarem adequada-mente “libertas” de tensão, é quese pode pensar na realização dotreino de força. Este deve privile-giar o trabalho do “centro do corpo”,como no Pilates, e o trabalho “faci-litado” das estruturas à periferia.De modo a não se acabar o traba-lho físico em posição de encurta-mento, deve-se voltar a alongarglobalmente (com os cuidados ne-cessários ao alongamento a quente)e acabar com o relaxamento.

Ora, é indubitável que este novo“esquema” de trabalho físico impli-caria uma série de mudanças. Nestenovo esquema, a saúde passariapara primeiro plano, enquanto quea “estética”, a “moda” e toda aefemeridade patente no fitnesspassariam para segundo plano.

Este tipo de metodologia tambémobrigaria a que os treinadores eprofessores passassem a dispor deum conhecimento mais alargado da“teoria das cadeias musculares”,das novas formas de alongamento,e das necessárias implicações meto-dológicas do mesmo baseadas noconceito de Mézières. E também

implicaria o erradicar do mito do“endireitamento postural”, já ante-riormente aludido.

O método Mézières e os métodosneo-mézièristas lançam-nos umasérie de pistas relativamente a umnovo conceito de “cultura física”,menos centrada na performancee na robustez muscular e maiscentrada na função com base na“bela forma”.

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