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1 Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br > “O MEU DESEJO É QUE O SEU DESEJO NÃO ME DEFINA” (METÁFORAS EM ELLEN OLÉRIA E LUCILLE CLIFTON) TATIANA NASCIMENTO DOS SANTOS Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução Centro de Comunicação e Expressão Universidade Federal de Santa Catarina Campus Reitor João David Ferreira Lima 88040-970 Trindade Florianópolis SC Brasil [email protected] Resumo. Metáforas de autodefinição, inversão e disputa no rap antiga poesia, de Ellen Oléria (2010) e no poema won't you celebrate with me, de Lucille Clifton (1993), questionam a “tradição do silêncio” do racismo sexista. Analiso como permitem às autoras constituir-se em sujeitos, afirmando-se pela palavra. Caminho por teorias feministas de linguagem e tradução e Análise de Discurso Crítica nessa jornada de versos intertextuais que se encontram e transformam para montar identidades negras feministas. Palavras-chave. Ellen Oléria. Lucille Clifton. Metáforas. Negritude. Feminismo. Abstract. The rap antiga poesia” (Oléria, 2010) and the poem “won’t you celebrate with me” (Clifton, 1993) bring metaphors of self-definition, inversion and dispute that challenge the "tradition of silence" of sexist racism. I analyze their use of metaphors as a constitutive tool to affirm subjectivity by the word. Feminist theories of language and translation, with Critical Discourse Analysis, lead me through this journey on intertextual verses meeting to build black feminist identities. Keywords. Ellen Oléria. Lucille Clifton. Metaphors. Blackness. Feminism. 1. Começo

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Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >

“O MEU DESEJO É QUE O SEU DESEJO NÃO ME

DEFINA” (METÁFORAS EM ELLEN OLÉRIA E

LUCILLE CLIFTON)

TATIANA NASCIMENTO DOS SANTOS

Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução

Centro de Comunicação e Expressão

Universidade Federal de Santa Catarina

Campus Reitor João David Ferreira Lima – 88040-970 – Trindade – Florianópolis – SC

– Brasil

[email protected]

Resumo. Metáforas de autodefinição, inversão e disputa no rap antiga

poesia, de Ellen Oléria (2010) e no poema won't you celebrate with me, de

Lucille Clifton (1993), questionam a “tradição do silêncio” do racismo

sexista. Analiso como permitem às autoras constituir-se em sujeitos,

afirmando-se pela palavra. Caminho por teorias feministas de linguagem e

tradução e Análise de Discurso Crítica nessa jornada de versos

intertextuais que se encontram e transformam para montar identidades

negras feministas.

Palavras-chave. Ellen Oléria. Lucille Clifton. Metáforas. Negritude.

Feminismo.

Abstract. The rap “antiga poesia” (Oléria, 2010) and the poem “won’t you

celebrate with me” (Clifton, 1993) bring metaphors of self-definition,

inversion and dispute that challenge the "tradition of silence" of sexist

racism. I analyze their use of metaphors as a constitutive tool to affirm

subjectivity by the word. Feminist theories of language and translation, with

Critical Discourse Analysis, lead me through this journey on intertextual

verses meeting to build black feminist identities.

Keywords. Ellen Oléria. Lucille Clifton. Metaphors. Blackness. Feminism.

1. Começo

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Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014 Disponível em < http://www.entremeios.inf.br >

Na canção antiga poesia, a lésbica negra Ellen Oléria canta ancestralidades1:

“Salve! As negras do sertão / Negras da Bahia / Salve / Clementina, Leci, Jovelina /

Salve / Nortistas, caribenhas, clandestinas / Salve / As negras de mi America Latina”

(OLÉRIA, 20102). Em emocionante apresentação, um coro de mais de 3 mil mulheres

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celebra com Oléria a existência desse panteão múltiplo, simbólico e material de deusas

(“Manhandeua cinge / o nariz da esfinge / de axé tô cercada / Oyá / Yemanjá vive”) e

mulheres que o cotidiano tenta esquecer ou apagar (“a baixa autoestima / da dona Maria

/ sua prima, da sua filha e sua vizinha”), mas resistem: “A vida toda alguma coisa tentou

me matar / E eu me refiz”.

Essa enunciação de si como autocriadora volta no segundo verso da canção –

“Eu me fiz sozinha. / Força feminina”, e evoca Lucille Clifton, poetisa educadora,

feminista e negra. Em março de 2010, publiquei a tradução de seu poema “won't you

celebrate with me” (1993) no Nosso Jornal do DF (em favor das cotas raciais no ensino

superior). Alguns meses depois, conheci antiga poesia e reconheci a intertextualidade.

Vejo o racismo sexista (PERRY, 2009) como sistema de opressão e

silenciamento que cria uma tradição do silêncio: “Eu não mais serei feita para sentir

vergonha por existir. Eu vou ter minha voz. [...] Eu vou ter minha língua de serpente –

minha voz de mulher, minha voz sexual, minha voz de poeta. Eu vou romper a tradição

do silêncio.” (ANZALDUA, 1999, p. 81, tradução minha4). Para Glória Anzaldua,

poetisa lesbiana chicana, a escrita das mulheres importa ao definir nossa existência em

termos próprios:

Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as

histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar mais íntima

comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me, construir-me,

alcançar autonomia. Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca

ou uma pobre alma sofredora. Para me convencer de que tenho valor e que o

que tenho para dizer não é um monte de merda. Para mostrar que eu posso e

que eu escreverei, sem me importar com as advertências contrárias.

(ANZALDUA, 2000, p. 232)

Traduzi o poema de Clifton por reverberar em mim, para reverberar em

mulheres negras que não leem inglês ou não a tinham lido. Logo, essa tradução é

política, me insere no fluxo de escrita como “prática emancipatória” individual e

coletiva, pois o discurso das mulheres “é duplo, ele é o eco de si e da outra, um

movimento rumo à alteridade” (GODARD, 1990, p. 88, tradução minha5). Para Barbara

Godard, teórica lésbica feminista e canadense,

[...] o discurso feminista é um discurso político dirigido em direção à

construção de novos sentidos, e é focado nos sujeitos tornando-se em/pela

linguagem. Ele busca expor os modos ideológicos de percepção através de

uma expansão das mensagens nas quais experiências individuais e coletivas

1 A canção ainda não está registrada em fonograma. Uma versão está disponível no website youtube.com:

<http://www.youtube.com/watch?v=iwbWZuVkI0w>. Acesso em: 01 mar 2013. 2 Letra enviada gentilmente pela cantora em comunicação pessoal (cf. Referências).

3 Show de encerramento da Marcha Mundial de Mulheres de 2010, em Várzea Paulista, SP.

4 As traduções de Anzaldua (1999) são minhas.

5 Todas as traduções de Godard nesse artigo são minhas.

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originam-se de uma postura crítica contra os contextos sociais do patriarcado

e sua linguagem. (GODARD, 1990, p. 88)

Parto da tradução como prática de reescritura, cocriação; recusa à hierarquia

impermeável autoria X tradução e às gastas metáforas de tradução como reprodução e

atividade feminizada, evocando reprodutivismo biológico (CHAMBERLAIN, 2005). É

tradução feminista de discurso feminista: “aprendemos a forma pela qual o discurso

feminista trabalha no discurso dominante em um movimento complexo e ambíguo entre

discursos” (GODARD, 1990, p. 88). Indo entre as palavras de Clifton e Oléria, localizo-

me como herdeira afrodiaspórica dessa contra-tradição de ruptura do silenciamento.

Entendendo esse encontro textual como enunciações pautadas por relações

dialógicas, no sentido bakhtiniano do termo – dialogia reconhecida como “espaço de

tensão entre vozes sociais” (FLORES; TEIXEIRA, 2009, p. 152) – olho o

funcionamento desses discursos de resistência cotidiana e micropolítica às opressões do

racismo sexista, formuladores são de identidades individuais coletivizadas a partir da

própria existência discursiva.

Investigo como as metáforas de Oléria e Clifton contestam poderes sociais,

raciais e sexuais. Metáforas remetem a uma “determinada experiencia cultural”

(LAKOFF; JOHNSON, 2009, p. 23), ou seja, estão calcadas na experiência, o que torna

fundamental sua dimensão contextual, histórica e intersubjetiva. Elas “tienem sus raíces

em la experiencia física y cultural, no son asignadas de manera arbitraria” (LAKOFF;

JOHNSON, 2009, p. 55).

Metáforas importam ao montar “o modo como pensamos e o modo como

agimos, e nossos sistemas e conhecimento e crença, de uma forma penetrante e

fundamental” (FAIRCLOUGH, 2008, p. 241). Escolhendo uma metáfora e não outra,

construímos “nossa realidade de uma maneira e não de outra, o que sugere filiação a

uma maneira particular de representar aspectos do mundo e de identificá-los”

(RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 88).

Metáforas reafirmam e jogam com o caráter essencialmente simbólico da

palavra: “a metáfora não é uma questão meramente linguística ou lexical, ao contrário, o

pensamento humano é largamente metafórico e a metáfora só é possível como expressão

linguística porque existe no sistema conceptual humano” (RESENDE; RAMALHO,

2006, p. 86).

Elas expressam uma dimensão inegociável e profunda da linguagem, essa da

representação de uma coisa por outra: “entender y experimentar un tipo de cosa em

términos de otra” (LAKOFF; JOHNSON, 2009, p. 41); explicitam como as coisas (ou a

percepção que temos delas) são construídas pela linguagem. Significação é, portanto,

criação. E os atos ilocucionários (expressão) ganham força perlocucionária

(significação) quando o enunciado não só expressa, declara, mas significa, ou seja, cria

o que enuncia: e isso é o “poder simbólico de constituir o dado pela enunciação, de

confirmar ou de transformar a visão do mundo” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p.

113).

“[...]o contato entre a língua e a realidade – que se dá no enunciado – provoca o

lampejo da expressividade” (BAKHTIN, 1997, p. 311). Nos versos, as metáforas, que

denotam, de forma notável, a consolidação da significação em expressividade

(BAKHTIN, 1997), são escolhas discursivas deliberadas, conscientes, que rearquitetam

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o esqueleto da significação, deixando o dito mais contundente. Conjugam conteúdo e

forma para ampliar a expressividade do encontro de alteridades em que “o

reconhecimento de si se dá pelo reconhecimento do outro” (FLORES, TEIXEIRA;

2009, p. 152).

2. Meio

As metáforas aqui analisadas são as que as autoras usam para autodefinição

(construção de si mesmas), inversão (retomada de valores depreciados) e disputa

(confronto com a hegemonia). Elas explicitam um processo de constituição subjetiva

desde um encontro simultâneo consigo mesmas e com uma outra.

2.1 Autodefinição

você não vai celebrar comigo?6

você não vai celebrar comigo

o que eu moldei em

um tipo de vida? ninguém me ensinou.

nascida na Babilônia

tanto não-branca quanto mulher

o que eu vi para ser exceto eu mesma?

eu inventei

aqui nessa ponte entre

brilhodeestrela e barro,

minha uma mão segurando firme

minha outra mão; vem celebrar

comigo que todo dia

algumacoisa tentou me matar

e falhou.

Nos versos 06 a 10, Clifton se elabora frente a um mundo em que os modelos

não a espelham, não-branca/negra e mulher/não-homem. Fazer-se na poesia evoca

Audre Lorde, poetisa negra, lésbica e feminista, para quem poesia não é luxo, mas

autodefinição: “A poesia faz algo acontecer, de fato. Ela faz você acontecer.” (LORDE,

2009, p. 184, tradução minha). A escrita de Clifton assemelha-se ao próprio espelho de

Oxum, a Orixá relacionada à água doce e a força criadora do amor. Diferentemente das

associações à vaidade que a relação entre Oxum e espelho suscita, aqui espelho surge

como superfície de enxergar a si mesma para, aí, se autoconstituir: “o que eu vi para ser

exceto eu mesma?”

Em Oléria, a primeira metáfora de autodefinição está no terceiro verso de antiga

poesia:

Minha nova poesia é

Antiga poesia

Eu me fiz sozinha. Força feminina.

6 Uso aqui uma revisão da tradução antes publicada.

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As culturas negras da diáspora são culturas de reverberação: a segregação

espacial de povos inteiros roubados e misturados fracassou na tentativa de desarticular

pessoas e cultura. Abya Yala, como a América Latina e Caribe são chamados por alguns

povos ameríndios, é palco de expressões que reverberam do afoxé pernambucano ao

hiphop de Brasília, as quais reverberam na minha escrita sobre a escrita cantada de uma

poetisa negra, lésbica, versando as reverberações de uma negra poetisa afro-

estadunidense que escreveu o poder da palavra enquanto afirmação da própria

existência.

E por ser linguagem cultura, as reverberações culturais são reverberações pela

linguagem. Os discursos assemelham-se, reconstroem-se, alimentam-se, espelhando-se

uns nos outros e criando seus avessos. Fazem-se numa solidão anunciadora de

controversa coletivização e também denunciam que a estratégia de segregação

colonizadora fracassou: as vozes, “mesmo fraturadas, continuariam cantando em

uníssono” (WERNECK; MENDONÇA; WHITE, 2000, p. 7).

O terceiro verso de Oléria é composto de uma oração – “Eu me fiz sozinha.” – e

uma frase – “Força feminina”. Formalmente, não é um período composto, mas as

relações contextuais entre oração e frase lembram causa e consequência: fazer-se

sozinha demanda força feminina, encerrando uma ideia pouco usual numa cultura

patriarcal que confina mulheres à reprodução. Ou seja, rompem-se tanto o cânone da

divindade masculina criadora quanto a confirmação existencial feminina pela

maternidade (ambas bem recorrentes na mitologia cristã).

O mito da criação é revisitado e feminizado. E essa subversão é das mais

significativas, tanto na canção quanto no poema. Aquilo que considero reverberação

entre Oléria e Clifton é questão de raça e gênero. A experiência negra feminina coletiva

é evocada ao longo dos versos das poetisas, pautada pelo alargamento da textualidade

dialógica: existências que se referem umas às outras e constituem a si mesmas no fluxo

histórico de existências já existidas.

2.2 Inversão

Nas metáforas de inversão, as poetisas se apropriam de imagens depreciativas,

ofensivas e elaboram uma ressignificação das mesmas, positivando-as, denegrindo-as –

no sentido ressignificado e antirracista do termo: importante estratégia de revalorização

que recusa o denuncismo vitimista (HOOKS, 1995). Em antiga poesia:

Minha nova poesia é

Antiga poesia

Eu me fiz sozinha. Força feminina

Escrevo sem ter linha. Escrevo torto mesmo.

Escrevo torto eu falo torto pra seu desespero

O verso “Escrevo sem ter linha. Escrevo torto mesmo.” reverbera a falta de

parâmetros externos enunciada por Clifton, no terceiro verso de seu poema, “ninguém

me ensinou.” Porque nascer na confusão babilônica, nascer na contramão dos padrões

rompe qualquer possibilidade de identificação positiva com o alheio – suas

constituições dão-se no avesso, na inversão das normas. E suas enunciações invertem a

própria lógica de negação das existências não-hegemônicas, retomando, precisamente, o

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que é depreciado, mas agora alçado de negação (não-hegemônico) à afirmação (contra-

hegemônico).

Enquanto Clifton trilha uma autocosmogonia subjetiva (versos 07 a 11),

constatando ser seu único modelo, Oléria aposta no poder contestador que tem sua

enunciação frente ao outro. Sua escrita diverge da prescrição normativa, como é o caso

do verso cinco. A ausência de vírgulas entre as orações é a própria escrita torta de que

nos fala. Esse recurso linguístico aparentemente simples, que parece ter mais

importância em termos de (in)adequação à variante padrão do português do que da

expressividade do texto, conjuga forma e conteúdo para materializar sua metáfora na

escrita.

“Torto” vai de advérbio modal a um modificador significativo no contexto

discursivo de disputa aqui traçado. Por ser assumido, porque a escrita torta é deliberada

e autoconsciente, fala diretamente ao desespero do Um, agora alterizado, tornado outro,

numa relação de intento, a qual monta todo esse campo conceitual de disputa, a partir da

locução conjuncional subordinativa final “pra seu desespero”. Assume-se a disputa

entre discursos hegemônicos e contra-hegemônicos, com ênfase na desestabilização que

estes trazem àqueles. É nítida a impossível paridade desses pares tão opostos, mas a

metáfora é cheia de força expressiva.

“Torto”, além de modificar sintaticamente escrita e fala (uma vez que se trata de

um hiphop), habilita uma dimensão semântica em que o lugar depreciado é assumido

com orgulho, não de forma ingênua, mas consciente de seu ímpeto questionador. É o

anúncio de que o dominador há de se desesperar com a voz contra-hegemônica, e é

também a recusa de se debater contra esse desespero, numa tentativa de ajuste ao

padrão. É uma afronta, é malcriação, desaforo: insolência mesmo. Anzaldua chama as

línguas tortas, desafiadoras dos cânones, de deficientes, pesadelo, aberração:

Deslenguadas. Somos los del español deficiente. Nós somos seu pesadelo

linguístico, sua aberração linguística, sua mestizaje linguística, o assunto de

sua burla. Porque nós falamos com línguas de fogo nós somos crucificadas

culturalmente. Racialmente, culturalmente e linguisticamente somos

huérfanos – nós falamos uma língua órfã (ANZALDUA, 1999, p. 80).

Em How to tame a wild tongue (“Como domesticar uma língua selvagem”), a

tradução acima é o primeiro parágrafo de um tópico chamado “Terrorismo Linguístico”

(Linguistic Terrorism), em que Anzaldua alerta para a depreciação que é internalizada

pelas falantes das variantes não-padrão (ela está falando especificamente do conflito

entre o “chican spanish”, falado pela comunidade latina, residente nos EUA, e o inglês

padrão, ensinado nas escolas, de forma a apagar seus sotaques), e sobre essa

internalização conta que “nossa língua tem sido usada contra nós pela cultura

dominante” (ANZALDUA, 1999, p. 80).

Subverter o uso envenenado, retomar a própria língua dita torta, é retomar a

própria existência: “Identidade étnica é gêmea de pele de identidade linguística – eu sou

minha língua. Enquanto eu não puder me orgulhar de minha língua, não poderei me

orgulhar de mim mesma.” (ANZALDUA, 1999, p. 81). Tal orgulho passa por

compreender a condição de ilegitimidade da própria língua frente aos sistemas de poder

que assim a condicionam – não para ajustar-se ao cânone, mas questioná-lo, e à tradição

do silêncio imposta pelo racismo sexista lesbofóbico.

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Chamar a própria escrita de aberração é um movimento bastante diferente de vê-

la acusada de “grunhidos ou cuinchos” (HOOKS, 2008, p. 858). O primeiro traduz por

uma elaborada estratégia de apropriação e ressignificação; o segundo representa nada

mais que a velha tática colonizadora de definir para conquistar, e definir pelo

estranhamento, pelo desumanizante – para justificar a conquista. Na etapa colonial da

colonização, a igreja católica publicava bulas para justificar o sequestro e evangelização

dos povos não-brancos , considerando-os sem alma, portanto inumanos.

Clifton pergunta: “o que eu vi para ser, além de mim mesma?”. A invisibilização

que os cânones de branquitude, adequação sexo/gênero e humanidade impõem aos

corpos desviantes de sua padronagem é espelho de duas faces: as que não são

reconhecidas como humanas e não enxergam no modelo uma possibilidade de

constituição da qual partir – logo, constituem-se por si. Subvertendo, inclusive, a lógica

criador-criatura, o que aparece na resposta que o próprio poema fornece àquela

pergunta: “eu inventei / aqui nessa ponte entre / brilhodeestrela e barro / minha uma

mão segurando firme / minha outra mão”. Versos ecoados nos versos de Oléria em

antiga poesia: “Eu me fiz sozinha / Força feminina”. As enunciações de Clifton e Oléria

contestam, frontalmente, a paradoxal interdição da criatividade das mulheres (uma vez

que a criação maternal é reforçada).

2.3 Disputa

Para a filósofa feminista e educadora indígena María Lugones (2008), a

contemporaneidade é a modernidade da colonização. As novas roupagens da dominação

usam, como ferramenta, entre outras, preconceito linguístico e seus diversos graus de

desvalorização das variantes consideradas não-padrão para garantir que alguma seja

considerada padrão, inclusive e principalmente no aparato estatal escolar (BORTONI-

RICARDO, 2004).

É essa variante que define as outras como variações menores de si e as acusa de

erradas, não-cultas, tortas. O poder definidor, classificatório, tem sido usado a partir de

uma assimetria entre poderes, em que um grupo possui o “privilégio de atribuir valores

aos grupos classificados” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 77).

Analisar sob tal debate o período “o meu desejo é que o seu desejo não me

defina”, verso 16 de antiga poesia, não se trata unicamente de apontar que o desejo do

outro está ontologizado em metáfora, pois isso não daria conta de apontar a amplitude

subversiva que o campo metafórico de desejos-entidade em oposição-disputa desvela.

Aqui, somos postas frente a um dos temas mais centrais e recorrentes nas reverberações

afrodiaspóricas (NASCIMENTO DOS SANTOS, 2011) das poetisas aqui dialogadas: se

há tipos de existência/desejo que aniquilam existências/desejo outras, como elas podem

coabitar o mesmo mundo, senão em conflito?

Em Oléria, esse conflito é explicitado como disputa de desejos: ao desejo de

aniquilamento colonial, a poetisa responde “O meu desejo é que o seu desejo não me

defina / A minha história é outra / Tô rebobinando a fita”. Aqui, gostaria de trazer os

versos iniciais de outra canção oleriana, testando (OLÉRIA, 2009):

eu

eu não domino a esgrima

mas minha palavra

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a minha palavra

minha palavra é afiada e contamina

As orações coordenadas adversativas e, em especial, a repetição do sintagma

nominal (minha palavra / a minha palavra / minha palavra), trazem uma ideia de

confronto de alteridades que é retomada em “O meu desejo é que o seu desejo não me

defina / A minha história é outra” (antiga poesia).

Para contar essa história outra, há que se usar outra linguagem; reinventar-se a si

mesma demanda reinventar a linguagem, em especial a linguagem do opressor; aqui se

pauta a primeira instância de disputa discursiva em análise. O uso metafórico de

“esgrima” traz uma referência imediata ao código de prestígio por referir-se a uma

prática aristocrática; mas o alcance metafórico do enunciado não se encerra aí,

completando-se na seleção lexical de “dominar”, que consolida a assunção de duelo,

embate (racial e de gênero). Uma mirada a “eu não domino a esgrima (a), mas minha

palavra é afiada (b) e contamina (c)”:

A coordenação adversativa de (b) reforça o caráter beligerante em termos

formais; enquanto a força semântica de (b) e (c) extrapola o caráter opositivo ao trazer

despeito ou desprezo pelo código de prestígio, que se torna irrelevante ou ineficaz perto

da palavra que não só é afiada, mas contamina. O modificador “afiada” faz referência

direta a espada, lâmina, corte – a seleção lexical flui dentro do campo conceitual-

metafórico de combate.

Além de desenvolver-se no campo metafórico das disputas, a agência que

“palavra” tem em testando é exemplo do recurso metafórico da ontologização. As

metáforas ontológicas são aquelas que nos permitem “considerar acontecimientos,

actividades, emociones, ideas, etc., como entidades y sustancias” (LAKOFF;

JOHNSON, 2009, p. 64), ou seja, nos permitem corporificar experiências, sensações,

entes não-materiais.

Os versos de Oléria e Clifton trazem, em reverberação, uma imagem específica

do existir a partir das tentativas de aniquilação. Em Clifton, a disputa está vencida e a

celebração deve ser compartilhada: “... vem celebrar / comigo que todo dia / alguma

coisa tentou me matar / e falhou”. Oléria, no verso “todo dia alguma coisa tentou me

matar / e eu me refiz”, enfatiza a agência de si mesma na sobrevivência, diferentemente

de Clifton – que enfatiza o fracasso do opositor. Mas ambas prestam saravá à sua

própria existência, que aqui significa a existência possível de muitas outras. Vivendo

pela palavra (WALKER, 1988), mesmo a aprendida, inicialmente, com o opressor – e

então subvertida.

3. Caminhos compartilhados

bell hooks [sic], educadora negra, feminista e heterossexual, comenta o uso de

línguas colonizadoras como estratégia de descolonização e reconstrução de afetividades

perdidas pela trágica empreitada branca de sequestro negro:

De que modo descrever o que deve ter sido para os africanos, cujas ligações

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mais profundas foram forjadas historicamente no espaço da fala

compartilhada, serem transportados abruptamente para um mundo onde o

verdadeiro som da língua materna não tinha sentido... Eu os imagino ouvindo

inglês falado como a língua do opressor, no entanto eu os imagino também se

dando conta de que essa língua precisaria ser possuída, tomada, reivindicada

como um espaço de resistência. Imagino que o momento em que eles

perceberam que a língua do opressor, tomada e falada pelas bocas dos

colonizados, poderia ser um espaço de ligação foi uma intensa alegria

(HOOKS, 2008, p. 859).

Para Lorde, a poesia não é luxo (LORDE, 1984). Amplio sua assunção à

palavra: é estratégia de vivência, de reaprender a viver em meio a economias de caos,

desmazelo, abandono, perda e sobrevivências críticas. Palavra não só palco de

macrodisputas de poder: também trama onde se forja o próprio nó da existência, fio que

tece as micropolíticas do devir. É a essa dimensão ontológica da palavra que procurei

dar ênfase, bem como a seus enraizamentos contra realidades de destruição.

Há algo mais na disputa entre os discursos hegemônicos de silenciamentos e os

discursos contra-hegemônicos que um embate pelo poder (de) falar. O embate é por

poder (de) existir, e existir pela palavra. A dimensão perlocutória da enunciação, que

não só expressa, mas constrói sentidos ao expressá-los, deve ser percebida juntamente à

força expressiva das metáforas, porque elas se articulam em termos de “como se cria o

que se cria”, conectando conteúdo e forma e apaziguando uma antiga e falaciosa

clivagem entre essas instâncias processuais da episteme.

A metarreflexão elaborada por Oléria nos versos iniciais de testando aponta para

a consciência da função de sua palavra como desafiadora daquelas naturalizações,

desconstruindo os paralelismos rígidos que criam e opondo-se, radical e francamente, às

culturas de silenciamento racistas, sexistas e lesbofóbicas. Assim, sacode a prerrogativa

de proferir inexistências que elas têm.

Parece-me muito interessante, no entanto, que a relação conflituosa estabelecida

entre quem se rebela e (contra) quem oprime não se dê sempre em termos de

aniquilação. Em antiga poesia, Oléria apresenta e comenta muitos outros saberes

entendidos de forma desprestigiada (saberes femininos, saberes negros, saberes anciãos,

saberes não-escolarizados), não aceitos como conhecimento válido de mundo; ademais,

ela nos presenteia com suas cosmovisões, suas epistemologias da resistência negra, da

resistência negra feminina, da resistência negra feminina lesbiana.

A homenagem que presta à própria Clitfon homenageia lideranças quilombolas

palmarinas Akotirene e Dandara, saúda a ancestralidade material – desde sua avó

(“minha vó formou na vida / e nunca soube o que é reprovação”) até Clementina de

Jesus, Leci Brandão e Jovelina Pérola Negra – e também as imaterializadas –

Manhandêua, Oyá e Yemanjá. Seus versos cantam a existência daquelas que escreveram

e produziram conhecimento, sua própria história, na carne mesma, uma na carne da

outra: “a vida toda alguma coisa tentou me matar / e eu me refiz / Dandara / Akotirene”.

Completa-se a metáfora individual, autocentrada da autocriação: em Oléria,

fazer-se sozinha é fazer-se em bando, relembrando e celebrando a existência de

mulheres negras que conformam nossa existência agora materializada. Uma celebração

de amor entre mulheres, amor lesbiano, portanto7: as referências são criadas desde

7 A metáfora literária da lésbica (FARWELL, 1988), entretanto, não é alegoria discursiva, uma vez que

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dentro, internas, advindas da experiência compartilhada e, mesmo que dialoguem com

um outro dominador, não dependeram dele para se constituir – a autocosmogonia de

Clifton é ampliada em Oléria para uma cosmogonia compartilhada.

Se a cosmogonia em Oléria conjuga ancestrais corporificadas e imateriais, na

corporificação da autocosmogonia, em Clifton, a materialidade é inventada da própria

carne-terra a partir da imaterialidade do céu: “eu inventei / aqui nessa ponte entre /

brilhodeestrela e barro, / minha uma mão segurando firme / minha outra mão”.

Reinventando um dos maiores mitos da criação das mulheres, vindas agora do barro

original automodelado, encerro com a belíssima metáfora de Clifton.

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está fazendo referência à escrita da negra lesbiana Ellen Oléria pela escrita negra lesbiana da autora

desse artigo – e é a partir da experiência material, corporificada, que me permito refletir teoricamente.

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