O Milagre Do Coracão

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O Milagre do Coração (The Midwife – A Parteira) Carolyn Davidson CLÁSSICOS HISTÓRICOS ESPECIAL Nº 90

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Romance

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O Milagre do Coração

(The Midwife – A Parteira)

Carolyn Davidson

CLÁSSICOS HISTÓRICOS ESPECIAL Nº 90

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CAPÍTULO 1

Kirby Falls, Minnesota

Janeiro, 1892

— Uma pena que além de tão bonito também seja

um homem proibido! — Bonnie Nielsen lançou um olhar

demorado na direção do alvo de seu interesse.

— Lembre-se de que ele é casado, Bonnie —

comentou Leah, calculando mentalmente o valor de sua

conta, antes de abrir a bolsinha a procura das moedas e

dar uma rápida olhada no cavalheiro em questão.

Ele estava parado próximo ao grupo que se reunia

em torno do fogão do armazém geral. Os braços tinham

sido cruzados na altura do peito e os lábios cerrados

formavam uma linha dura, mas, ainda assim, a figura

máscula destacava-se entre os presentes.

Diante da leve reprimenda de Leah, as bochechas

de Bonnie foram cobertas pelo rubor. Com um suspiro, a

moça olhou para a freguesa do armazém.

— Bem, os mais bonitos são sempre casados, não?

Isso é uma pena! — Suas mãos trabalhavam rapida-

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mente para embrulhar as poucas mercadorias que Leah

acabava de comprar. — Você nunca olha para os

homens com admiração, minha cara? — inquiriu,

aceitando as moedas que lhe eram entregues.

— Não, para mim basta ter de lavar a roupa deles

todos os dias. Por que deveria admirá-los se já tenho

muito trabalho para cuidar das coisas dos distintos

cavalheiros da cidade? —. tornou, espirituosa, pegando

o pacote que lhe era entregue e dirigindo um rápido

olhar ao grupo de homens que riam de algum gracejo

secreto que um deles proferira.

Como sempre, seus olhos se detiveram por mais

tempo do que o necessário na figura alta e enigmática

de Garlam Lundstrom. Ele era essencialmente um fruto

proibido. Sim, maravilhoso, mas proibido. Bonnie tinha

razão, Gar era bonito, muito bonito, com cabelos claros

que não escureciam nem mesmo no inverno, como

acontecia com os dela própria. Os olhos, então, eram de

um azul intenso que contrastava com cílios e sobran-

celhas escuras como as noites sem luar. Aliás, estas

também eram mais um enigma na figura silenciosa do

belo sr. Lundstrom. Sendo loiro, os cílios e sobrancelhas

deveriam ser claros como os cabelos, não? Mas talvez os

pêlos do peito e da…

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Leah fechou os olhos consternada com a natureza

dos pensamentos que invadiam sua mente. Ora, talvez

estivesse passando muitas noites sozinhas e muitas

horas falando consigo mesma para quebrar o silêncio da

solidão que a envolvia num abraço impiedoso, o que, às

vezes, roubava-lhe o ar e a torturava.

Nessas ocasiões, até conseguia banir a imagem de

Gar Lundstrom de seus pensamentos, mas, como agora,

ao tê-lo a poucos metros de si, era mais difícil fazê-lo. De

qualquer forma, de que adiantava se torturar com tais

sentimentos e emoções!? O homem era casado. Sim,

casado com Hulda Lundstrom, a mulher que ele

escolhera para esposa.

Hulda era uma senhora pequena e delicada que ra-

ramente vinha a cidade, e, quando o fazia, sempre trazia

o filho pequeno bem junto de si, como se tivesse medo

de perdê-lo.

Sem sombra de dúvida, Gar deveria estar voltando

para casa agora, Leah deduziu, tomando o cuidado de

desviar o rosto quando ele proferiu uma breve

despedida e saiu do armazém. A conversa recomeçou

entre os homens e ela aproveitou para também seguir

para a porta, consciente dos olhares intensos dos

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cavalheiros que se reuniam em torno do fogão naquela

manhã fria de inverno.

A maioria deles era casada, mas sempre havia um

ou dois solteiros no meio do grupo. Muitos já haviam

tentado se aproximar de Leah, uma viúva arredia, es-

perando conseguir algum tipo de barganha ou envol-

vimento amoroso.

Só de pensar nisso ela se aborrecia. Não gostava

nada do atrevimento dos homens, principalmente,

porque imaginava que nenhum tinha intenções sérias a

seu respeito, e, mesmo se tivessem, não pretendia se

envolver com ninguém. Com passos firmes, seguiu para

a pequena casa onde vivia e fechou o portãozinho de

madeira atrás de si antes de seguir pelo caminho que

serpenteava pelo jardim, terminando nos degraus da

varanda da frente.

Segurava o pacote que trouxera do armazém pelo

barbante que o mantinha amarrado e este oscilava de

um lado para outro como se fosse um pêndulo a contar o

tempo de seus dias difíceis. O pior era que, apesar de ter

comprado apenas um pouco de chá, um pedaço de

bacon e um pouco de açúcar, gastara quase todo seu

dinheiro, e, a menos que seus fregueses viessem buscar

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a roupa que lavara e a pagassem, teria sérios problemas

para pagar o aluguel daquele mês.

Imersa em suas considerações, levou a mão à

maçaneta.

— Yoo-hoo! Sra. Gunderson!

O chamado vinha da casa ao lado e,

impulsivamente, Leah virou-se para atendê-lo.

— Olá, sra. Thorwald — respondeu à vizinha. — Está

tudo bem com a senhora? — perguntou, abrindo a porta

e dando um passo adentro.

— Acho que estou com um pouco de amidalite, que-

rida — contou a velha senhora, quase oculta atrás do

vidro da janela à medida que se inclinava para falar

através da estreita abertura pouco acima do peitoril.

— Deixei alguns pedaços de carne cozinhando para

fazer uma sopa antes de ir ao armazém. Preciso

descascar alguns legumes para acrescentar ao caldo e,

no jantar, levarei uni prato para a senhora — prometeu

Leah, sabendo que, muito mais do que a sopa, a viúva

Thorwald queria um pouco de companhia e atenção.

Acenando, deu outro passo adentro e fechou a porta

atrás de si.

O calor das chamas que crepitavam no fogão da co-

zinha aquecia toda a casa, uma vez os cômodos eram

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interligados. Leah poderia caminhar em círculo e visitar

todos os aposentos em questão de segundos. Mas, em

vez disso, pendurou o casaco no cabideiro junto à porta

de entrada, deixou as botas de cano alto sobre um

tapete e calçou os confortáveis chinelos de pêlos.

Cozinhava na parte de trás do fogão preto, mas

imaculadamente limpo, e o caldo da sopa exalava um

cheiro delicioso. Ela desembrulhou o bacon rapidamente

e sua boca encheu-se de água diante da simples idéia

de que teria uma refeição suculenta para o jantar. Com

dedos ágeis, fatiou-o e acrescentou os pedaços, um a

um, à panela.

No entanto, uma batida vigorosa na porta da frente

a assustou no momento em que colocava um pouco

mais de água em seu preparado.

— Já estou indo! — gritou, e os pés abrigados nos

confortáveis chinelos não fizeram qualquer barulho à

medida que Leah cruzava o assoalho de madeira em

direção à porta da sala.

— É Hobart Dunbar, sra. Gunderson — o visitante

identificou-se em alto e bom som, como se desejasse

dissipar qualquer inconveniente que a presença de um

homem na porta de uma mulher sozinha poderia

suscitar.

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Na verdade, o proprietário do único hotel de Kirby

Falis era muito discreto, e também prudente o bastante

para esperar na varanda enquanto Leah trazia a trouxa

de toalhas de mesa e aventais que lavara e passara com

capricho. Alvejante e goma eram luxos pelos quais o

hoteleiro pagava à parte, pois, felizmente, a sra. Dunbar

se recusava a passar quase um dia todo debruçada

sobre a tábua de lavar roupas, como o próprio marido

contara a Leah quando contratara seus serviços.

— Entre, por favor, sr. Dunbar — Leah disse cor-

dialmente, gesticulando para convidá-lo ao interior de

sua casa.

Entretanto, como sempre, Dunbar recusou o convite

com um movimento de cabeça.

— Não, não. Obrigado, madame. Vou esperar aqui.

Pode fechar a porta para que o frio da manhã não roube

o calor de sua casa — aconselhou-a, movimentando os

pés e encolhendo o pescoço para que a gola do pesado

casaco de lã o protegesse do vento frio de inverno.

Leah apressou-se a seguir para o aposento que

usava como lavanderia e pegou as roupas que preparara

na tarde anterior. Embrulhada num velho lençol, a

trouxa continha peças miaculadamente brancas e

engomadas. Até mesmo os gorros que a sra. Dunbar e

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as três garçonetes usavam para servir às mesas tinham

sido passados, engomados e estavam impecáveis para

serem usados.

Entre uma refeição e outra, as três garçonetes fa-

ziam as vezes de camareiras e também limpavam os

quartos e o saguão do hotel, mais uma prova da pra-

ticidade com que Hobart Dunbar dirigia seu negocio. Até

mesmo a sra. Dunbar se revezava entre a recepção, o

restaurante e o serviço de quarto.

— Obrigado, sra. Gunderson — Hobart pegou a trou-

xa que ela lhe entregava e colocou algumas moedas nas

mãos de Leah. — Amanhã à tarde mando o menino

trazer outro fardo como este — prometeu, antes de girar

nos calcanhares e voltar para sua carroça estacionada

mais à frente.

Leah segurou as moedas com firmeza e entrou.

Contudo, através da janela envidraçada viu outro cava-

lheiro passar pelo portão e cruzar seu pequeno jardim.

Rapidamente, cuidou de pegar as roupas de Brian Ha-

velock, pois sabia muito bem que ele, ao contrário do

hoteleiro, aceitaria mais do que depressa um convite

para entrar em sua casa.

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Leah estava sem fôlego quando abriu a porta para

Brian. O leve sorriso mal curvava os lábios rosados e

carnudos.

— Eu o vi passar pelo portão — murmurou ela,

tentando explicar porque lhe trouxera as roupas antes

mesmo que batesse.

Brian olhou fixamente para a porta entreaberta.

— Está sozinha, Leah? Será que não posso me

juntar a você para, quem sabe, tomarmos um xícara de

chá?

Ela negou com um movimento de cabeça.

— Lamento, mas tenho pressa. Vou visitar a sra.

Thorwald que não se sente muito bem.

O desapontamento do rapaz era visível e o olhos

afoitos percorreram-na de alto a baixo.

— Eu, realmente, gostaria de passar algum tempo

em sua companhia, sabe disso, não? — As palavras

eram suplicantes e o sorriso que as acompanhava tinha

um charme premeditado.

Leah suspirou.

— Sei o que deseja, sr. Havelock, e, mesmo

correndo o risco de ser rude, devo lhe dizer que não

estou disponível para tais coisas.

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— Ora, mas minhas intenções são outras, Leah! —

Brian corrigiu-a rapidamente. Um intenso rubor deixou

as faces alvas ainda maia rosadas do que o vento frio da

manhã já deixara naturalmente.

Pestanejando, Leah o fitou com ar de incredulidade.

— São outras? — repetiu, franzindo o cenho. Brian

assentiu e deu um passo a frente para se aproximar

ainda mais dela.

— Sim, para começar gostaria de lhe pedir permis-

são para vir visitá-la com freqüência, madame.

— Pois eu pensei que o senhor estivesse fazendo a

corte a Kirsten Andersen — Leah comentou ríspida,

então ergueu a mão num gesto de quem pretendia dar o

assunto por encerrado. — Mas isso não vem ao caso,

afinal, sou muito velha para o senhor, sr. Havelock, e

também muito ocupada para perder meu tempo, ou o

seu, com essa bobagem.

— Pelo menos dançará comigo no sábado à noite?

— ele pediu esperançoso.

Leah assentiu, desejando que Brian fosse embora o

mais rápido possível.

Sorrindo, o jovem contou o dinheiro que lhe devia

pela roupa lavada e passada, e, ao entregá-lo, ainda

segurou os dedos de Leah nos seus.

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— Vou aguardar essa dança ansiosamente,

madame.

Sem dizer uma palavra, Leah deu-lhe as costas, en-

trou na casa e fechou a porta atrás de si. Um suspiro de

pesar escapou-lhe dos lábios, se ao menos ele fosse

alto, tivesse ombros largos, cabelos claros e aqueles in-

críveis olhos azuis de Ga… Agoniada, balançou a cabeça

de um lado para outro como se para se livrar de uni

inseto incômodo. A imagem que lhe viera a mente era

proibida e ela sabia disso, mas como evitar de pensar

em Gar Lundstrom se todas as vezes que fechava os

olhos o via com uma nitidez e pungência assustadoras!?

Nunca em seus quase trinta anos Leah se sentira

tão sem controle sobre os pensamentos e desejos que

pulsavam em seu corpo e alma. O pior era que Ganam

Lundstrom jamais fizera nada para despertar o interesse

dela. Ainda assim, Leah não conseguia tirá-lo da cabeça.

Exasperada, mordeu o lábio inferior. Desde a pri-

meira vez que o vira na igreja, há mais ou menos um

ano, sentira-se imediatamente atraIda pelo homem alto

e sério, depois ralhara consigo mesma durante todo o

trajeto de volta para casa por ter se permitido tal

ousadia. Céus, Ganam era casado!

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Como se não bastasse, ela própria era apenas Leah

Gunderson, a mulher que lavava e passava roupas para

quase todos os solteiros da comunidade. Não que isso

fosse algo de que devesse se envergonhar. Como

também não se envergonhava de suas habilidades e

conhecimentos de ervas que lhe valiam a definição de

curandeira, pois muitas vezes os usara para consertar

ossos quebrados ou para tratar de ferimentos graves e

outros nem tanto assim.

De qualquer forma, jamais iria deixar que suas ha-

bilidades como parteira também viessem à tona. O

médico que atendia às futuras mamães de Kirby Falis

estava velho e cansado e não se incomodava em deixar

que a viúva que morava numa das áreas mais afastadas

cuidasse de alguns de seus pacientes. Mas Leah sabia

que partes não deveriam se tornar uma de suas

ocupações ali, em Kirby Falis, Estado de Minnesota.

Ainda assim, precisava confessar que sentia falta de

usar as técnicas que aprendera desde muito jovem.

Visitara mulheres em todas as etapas de trabalho de

parto juntamente com sua mãe, Minna Poik. Ajudara-a a

trazer crianças ao mundo desde que tinha dezesseis

anos e começara a se apresentar como viúva para poder

fazer isso sem maiores problemas.

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Sim, naqueles idos de mil e oitocentos, uma mulher

solteira não poderia ajudar em partos. Havia um estigma

que proibia tal contate. As jovens eram consideradas

inocentes demais para a tarefa.

Inocente… Algumas vezes Leah até esquecia qual

era o verdadeiro significado da palavra. Uma mulher que

fora obrigada pelo destino a viver sozinha e a ganhar o

próprio sustente não tinha muitas oportunidades de ser

inocente ou ingênua…

Como sempre, as roupas que precisava lavar

vinham em primeiro lugar e, por isso, a panela de sopa

foi colocada na parte de trás do fogão para que Leah pu-

desse aquecer a água da lavagem no tacho de cobre. Do

final da manhã até o começo da tarde, eia se revezou

entre a tábua de lavar e a mesa onde cortou os legumes

para colocar na sopa. Passaram-se horas até que ter-

minasse a pilha de roupas de Orville Hunsicker. Assim,

Leah se apressou para completar o prometido à vizinha

que dependia de sua bondade.

A sopa ficou um pouco rala, mas a sra. Thorwald

adorou do mesmo jeito, sorvendo cada colherada com

suspiros e elogios.

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— É uma graça divina tê-la como vizinha, minha

querida — disse eia suavemente, raspando o fundo do

prato de louça com a colher. — Nem pode imaginar o

quanto aprecio sua companhia.

Leah sorriu, um pouco envergonhada de sua impa-

ciência, enquanto observava a velha senhora deliciar-se

com a sopa.

— Fico feliz em ser útil — confessou. Sua mente

voltou a se concentrar na pilha de roupas que ainda

tinha para pendurar no varal que improvisara na cozinha

naquela noite. Elas deveriam estar secas pela manhã e

assim teria de passá-las antes do meio dia.

— Por acaso tem mais um pouco daquele ungüento

que me deu para passar no peito e na garganta,

querida? — pediu, erguendo o rosto para Leah que

notou-lhe os olhos purulentos e a boca levemente

trêmula.

Uma pontada de culpa a assolou

— Claro que tenho. Vou até em casa buscá-lo ejá

trago para a senhora. — Levantou-se e deu uma espiada

na tigela de sopa. — Por que não tema o reste da sopa

que ficou na tigela, assim poderei levá-la para casa para

lavar?

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Os olhos da sra. Thorwald brilharam e a viúva as-

sentiu no mesmo instante.

— Será ótimo para minha amidalite, não é mesmo?

Uma sopa quente num dia frio como este vai ser

perfeito.

Leah calçou as botas e vestiu o casaco antes de

abrir a porta da frente e seguir para o portão de sua

casa.

O sol tinha baixado no horizonte e a noite começava

a cair sobre a pequena Kirby Falis. Sob as botas de couro

de Leah, a neve se acumulava como se fosse enormes

montes de açúcar.

— Ah, sinto como se tivesse acabado de adotar uma

avó — resmungou consigo mesma, galgando os degraus

da varanda da frente de sua casa. Não que isso fosse de

todo mau, admitiu silenciosa. Era só que, algum dia,

desejava poder…

— Sra. Gunderson! — A voz era profunda, máscula e

altamente sonora.

Leah ficou imóvel, um pé na escada outro na va-

randa, como se uma força maior a paralisasse. Uma

figura alta deu um passo a frente, saindo das sombras

do telhado íngreme. Surpresa, observou o braço com-

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prido mover-se para que mãos hábeis pudessem erguer

a aba do chapéu.

— Madame?

O simples cumprimente tinha o poder de fazer seu

coração bater com quase duas vezes a velocidade nor-

mal, e Leah apertou as mãos contra o peito numa vã

tentativa de silenciá-lo.

— Desculpe-me, senhora. Não tive a intenção de

assustá-la — tornou ele, cerimonioso.

Lentamente, Leah seguiu para a porta. Suas pernas

tremiam quando se virou para encarar Garlam

Lundstrom.

— Não me assustou propriamente, senhor. Só fiquei

surpresa com sua presença. Estava pensando em minha

vizinha, que está com uma terrível amidalite — contou,

suspirando. — Mas, diga, o que posso fazer pelo senhor?

— Não sei direito como começar… Fui informado de

que a senhora poderia me ajudar, já que o médico da

cidade não está… ãh, disponível — disse, escolhendo as

palavras com cuidado.

Leah inclinou-se na direção de Gar Lundstrom.

— O senhor está doente? Tem algum ferimento que

precise de cuidados?

Ele negou com um movimento de cabeça.

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— Não, não sou eu, madame. — Gar deu um passo

a frente e seu rosto ficou em evidência. Era óbvio que

estava ansioso e preocupado com alguma coisa.

— Quem então? Seu filho?

— Minha esposa. Hulda está prestes a dar a luz e

precisa de ajuda. A moça do armazém disse que a

senhora sabia muita coisa sobre como curar as pessoas

e tratar de ferimentos, então pensei que…

— Não costumo ajudar em partos, sr. Lundstrom —

Leah o interrompeu com rispidez. — Posso dar alguns

pontes para fechar um corte e conhecer algumas ervas

que ajudam na cura de algumas doenças, mas o

nascimento de bebês é coisa para médicos e parteiras

experientes.

— Sim, mas o doutor não…

— Entendi, não está disponível.

Gar aproximou-se mais e seus olhos brilhavam com

uma intensidade que fez Leah prender a respiração.

— Já exigi demais da sorte e de meus animais ao

voltar para a cidade hoje, madame. Além disso, temo

por ter deixado minha esposa sozinha durante todo esse

tempo. — Esticou o braço e tentou segurar o braço de

Leah. — Preciso que venha comigo. Certamente deve

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saber alguma coisa sobre o nascimento de bebês. Não

existe mais ninguém a quem eu possa pedir ajuda.

— Sua esposa não tem nenhuma amiga que tenha

tido filhos? — perguntou Leah num tom esperançoso.

Gar negou com um movimento de cabeça.

— Não. Hulda não costuma sair da fazenda, a não

ser para ir a igreja ou ao armazém geral, mas isto só

quando está em condições de fazê-lo.

— E, faz um bom tempo que não a vejo na cidade —

comentou ela, tentando se lembrar qual fora a última

vez que encontrara a sra. Lundstrom.

— Ultimamente ela tem passado grande parte do

tempo na cama. Há meses está assim. — Gar contou

com o cenho franzido. — Não tem se sentindo nada

bem.

— Lamento, mas não posso fazer nada para ajudá-

lo, sr. Lundstrom — Leah disse, respirando fundo e cer-

rando os lábios ao encará-lo.

Os olhos azuis se estreitaram quando Gar a fitou.

— Mas a senhora precisa ir comigo, não existe nin-

guém mais a quem eu possa recorrer. Minha esposa

necessita de ajuda.

Leah meneou a cabeça de um lado para outro,

apesar de seu coração estar batendo descompassado

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dentro do peito. Como poderia dar as costas àquele

homem, sabendo que, como ele acabava de dizer, Hulda

estava em trabalho de parto, sozinha numa casa de

fazenda distante dezena de milhas da cidade?

As mãos enormes de Gar Lundstrom escorregaram

pelo antebraço de Leah e a seguraram pelo cotovelo.

— A senhora tem de vir comigo! Precisa de um ca-

saco mais quente?

Leah o encarou perplexa e ele hesitou levemente,

antes de prosseguir:

— Venha, vamos pegá-lo o mais rápido possível.

Hulda está sozinha e, por certo, desesperada.

Leah fechou os olhos. Era demais para ela. Como

poderia negar ajuda, por menor que fosse, a alguém que

estava sofrendo?! Sabia muito bem que o trabalho de

parto muitas vezes era sofrido e demorado, e, em

algumas ocasiões, a demora e o sofrimento poderiam

ser fatais para mãe e filho.

— Está bem. Irei com o senhor. Vou pegar minha

bolsa — capitulou, puxando o braço para longe do toque

perturbador.

Sem se fazer de rogado, ele a seguiu até o interior

da casa.

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— Espere aqui — Leah pediu, antes de seguir para o

quarto. Ajoelhando-se ao lado da grande cômoda que

mantinha junto à janela, abriu uma das últimas gavetas.

Sob os vestidos de verão estava uma sacola de couro

com alças grandes.

Pegando-a, Leah se levantou e deu um longo

suspiro. Estava acontecendo outra vez. A sensação

inquietante que a dominava à medida que se voltou

para encarar o homem que a seguira até o quarto era

desoladora.

Como se estivesse com medo de que Leah pudesse

fugir, Gar ficou parado na soleira da porta, os olhos e a

postura em alerta, ao mesmo tempo em que observava

atentamente a mobília simples e parca do aposente.

— Não precisava ter me seguido, sr. Lundstrom.

Disse-que iria com o senhor.

Ele assentiu com um movimente de cabeça.

— Sim, a senhora disse. — Os olhos azuis brilhavam

de maneira atrevida enquanto ele a fitava com atenção.

— Será que é mais forte do que aparenta, sra. Gun-

derson? — Esperou um momento, então, voltou a as-

sentir. — Sim, acho que é. Precisa ser.

Ao vê-lo rumar para a porta da frente, Leah o

seguiu, mas não ~em antes admirar o brilho dourado

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dos cabelos claros sob a tênue iluminação. Eia apagou a

lâmpada e ambos saíram para a varanda.

— Preciso dizer à minha vizinha aonde estou indo. E

também prometi que levaria um pouco de ungüento

para a ajudá-la — explicou, lembrando-se do que dissera

à sra. Thorwald. — Espere-me no portão da casa dela.

Não vou me demorar. — Sem mais uma palavra, deu-lhe

as costas e dirigiu-se para a casa ao lado, só agora se

dava conta de que um grande trenó puxado por belos

animais estava parado na rua. Era surpreendente que

não o tivesse notado antes.

No entanto, não havia tempo para devaneios sobre

tnivialidades e ela apressou o passo para chegar rapi-

damente à casa da vizinha.

A sra. Thorwaid aceitou o frasco de ungüente que

Leah tirou da bolsa de couro e agradeceu. Então, ao

ouvir as explicações dela sobre os motivos que a

obrigavam a ir embora rapidamente, a velha senhora

resmungou:

— Ah, Huida vai mantê-la ocupada durante a noite

toda, minha querida. Isso eu posso garantir. A ara.

Lundstrom é o que chamam de uma péssima panideira.

Talvez ela tenha sorte de o doutor não poder atendê-la

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hoje. Afinal, ele já lhe causou muitos problemas no

último parto.

Com aquelas palavras ecoando em seus ouvidos

como um pressagio de mau agouro, Leah seguiu para o

trenó, e uma mão enluvada estendeu-se em sua direção

para ajudá-la a subir. Hesitou por durante alguns

segundos, então colocou os dedos nas mãos de Gar

Lundstrom.

Ele a puxou com grande facilidade e, ao vê-la sen-

tar-se, jogou uma manta de pele sobre seu colo para

protegê-la do frio e da neve. Só depois puxou as rédeas

e incitou os animais a partirem.

Apesar de sentir o calor do corpo másculo que

estava ao lado do seu, Leah tremia como se estivesse

enfrentando uma tempestade de neve sem proteção.

— Sente-se mais perto de mim — Gar ordenou num

tom firme. — Precisa manter-se aquecida. — As mãos

enormes circundaram-lhe os ombros e ele a puxou no

banco até que seus quadris ficassem colados um ao

outro.

Leah engoliu as palavras de protestos que estavam

presas em sua garganta. Gar era grande demais, quente

demais; e estava perto demais… Movida por um

impulso, ela se permitiu deliciar-se com tal contato.

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Durante aquele breve momento, não pensou em mais

nada que não fosse a presença de Gar Lundstrom ao seu

lado. E isso, por si só, já era o bastante para fazer seu

coração bater descompassado.

A mulher que estava em trabalho de parto naquele

leito enorme era uma das visões mais tristes com a qual

Leah já se deparara. Os lábios ressequidos de Hulda

Lundstrom estavam cerrados e os cabelos longos,

molhados de suor, colavam-se ao rosto pálido como

cera. Eia gemia incessantemente.

Sem pestanejar, Leah tirou o casaco, deixou a bolsa

de couro sobre uma cadeira e foi logo dizendo:

— Preciso de água quente para me lavar.

— Agora mesmo. — A voz sonora de Gar Lundstrom

estava impregnada de emoção e seu rosto, normalmen-

te impenetrável, também dava sinais de sofrimento e

preocupação quando ele deixou o quarto e rumou para a

cozinha a fim de providenciar o pedido de Leah.

— Há quanto tempo está assim? — Leah perguntou

a Hulda, que gemia conforme seu corpo se contorcia por

causa das violentas contrações.

— Não faz muito tempo… talvez há algumas horas.

— Sua voz estava rouca, as dores a enfraqueciam e

castigavam. Hulda abriu os olhos revelando uma passiva

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aceitação de seu destino. — Não está sendo pior do que

das outras vezes — disse, então calou-se, assolada por

uma nova contração. O corpo pequeno parecia

desaparecer na maciez do colchão.

— Como?! Quantas vezes já esteve em trabalho de

parto? — Leah inquiriu, virando o rosto quando a porta

se abriu e Gar surgiu no aposento com uma bacia de

água fumegante nas mãos.

— Duas. Não, três. Mas os bebês morreram. Só Knis-

tofer sobreviveu. — O olhar de Hulda dirigiu-se ao

marido. — Não precisa ficar aqui, Gar. Vá para junto de

Knistofer — sussurrou. — Ainda vai demorar um bom

tempo até que o bebê nasça.

Leah virou-se para o dono da casa, a fúria

crescendo dentro de seu peito.

— O senhor não me disse que sua esposa estava

tendo um parto difícil. Acho que deve voltar a cidade e

trazer o médico até aqui de qualquer jeito. Se ela já

perdeu muitos bebês antes, precisamos agir com

cautela desta vez.

A água quente foi colada sobre o toucador com o

máximo de cuidado para que não derramasse e o ho-

mem alto e forte virou-se em direção à cama.

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— O doutor não virá — declarou lacônico. Havia

uma dureza no simples comentário que fez um calafrio

percorrer Leah de sito a baixo. — Da última vez ele disse

a Hulda que seria impossível que ela tivesse um bebê

vivo, pois seus órgãos tinham ficado seriamente compro-

metido por causa dos outros partos prematuros e

abortos. Deixou bem claro que não se responsabilizaria

se minha esposa tentasse urna tolice dessas mais uma

vez.

— Tolice?! — Leah repetiu com voz quase inaudível,

embora seu coração batesse forte e a ira estivesse se

es~ando por suas veias como um veneno rápido e letal.

— Ora, eu queria dar um outro filho a meu marido,

será que isso é tão mau assim? — Os olhos de Hulda se

encheram de lágrimas quando ela encarou Leah. E, mes-

mo enquanto falava, gemia e se contorcia por causa de

uma nova contração. As mãos corriam por sobre o

ventre protuberante e a cabeça inclinava-se para trás,

de encontro aos travesseiros, conforme a dor se

intensificava.

Leah pastou-se ao lado da cama e sentou-se junto à

pobre mulher.

Page 27: O Milagre Do Coracão

— Molhe um pedaço de pano na água quente —

disse ela, olhando para Gar que assistia a cena parado

junto ao toucador.

Sem uma palavra, ele pegou um pedaço de flanela

quadrado do alto de uma pilha e mergulhou-o na bacia

antes de trazê-lo até a cama.

— Deixe que eu faço isso enquanto a senhora se

lava — sugeriu, sem alterar o tom de voz.

Leah ficou em pé, cedendo-lhe seu lugar no leito,

depois caminhou até a bacia e enrolou as mangas do

vestido de lã. Uma enorme tristeza a dominou enquanto

esfregava as mãos com o sabão carbólico que trouxera

na bolsa de couro. Era óbvio que, devido ao histórico

médico de Hulda, as chances de o bebê nascer vivo

eram quase nulas. Ainda assim, ela faria tudo o que

estivesse a seu alcance para ajudar a trazer o filho

dessa mulher desesperada ao mundo.

— Puxe o lençol — pediu a Gar Lundstrom, retor-

nando para junte do leite. — Depois coloque um lençol

limpo ou >um cobertor embaixo dela.

— Eu não… — Huida respirou fundo, suas faces

contorcidas pela dor e pelo esforço de falar. — Não

quero que ele fique. Saia, Gar. Saia, por favor.

Page 28: O Milagre Do Coracão

— Seu marido poderá sair depois que tiver feito o

que pedi — Leah disse num tom gentil. — Deixe-o erguê-

la Hulda. É importante que tenha lençóis limpos sob sèu

corpo.

Um leve meneio de cabeça traduziu a concordância

de Hulda e Gar fez como Leah solicitara. As mãos

enormes eram gentis quando ele as passou por sob as

pernas da esposa antes de colocar iençóis limpos sob a

parte inferior do corpo miúdo. Então, ficou em pé e

olhou para Leah em busca de novas instruções.

Leah engoliu em seco ao notar que não havia a me-

nor esperança no fundo dos olhos azuis. Não havia mais

o brilho arrogante e nem mesmo a expressão

impenetrável, em vez disso, Gar Lundstrom parecia

estar lhe suplicando ajuda, e, talvez, um milagre que ele

próprio sabia ser impossível acontecer.

— Estarei na cozinha se precisarem de mim.

Leah assentiu a preparou-se para ajudar a jovem

mulher.

— Erga sua camisola, Hulda — pediu com voz

macia. Quero sentir a criança.

Os dedos de Hulda agarraram-se à flanela branca

do traje e ela o puxou até pouco acima do estômago,

revelando o ventre protuberante que abrigava a criança.

Page 29: O Milagre Do Coracão

Enquanto a barriga enorme ondulava e enrijecia-se

ao máximo para expelir aquele ser que, originalmente, o

corpo não reconhecia como parte de si, Leah colocou a

mão sob a parte inferior do ventre de Hulda e tentou

sentir o bebê da melhor maneira possível.

Mas nada acontecia, a não ser os movimentos rit-

mados que eram a causa da dor que não cessaria até

quê a criança fosse expelida.

— O bebê se moveu alguma vez depois que você

entrou em trabalho de parto? — perguntou, assim que o

espasmo diminuiu de intensidade.

Hulda meneou a cabeça de um lado para outro. Os

olhos fechados e a boca entreaberta como se todo o ar

do mundo não fossem suficientes para mantê-la via.

— Quase nada. — Um soluço escapou-lhe dos lábios

antes de ela cerrar os dentes. — Desta vez o bebê

precisa viver. Não suportarei passar por tudo de novo!

De repente, um grito agudo escapou dos lábios de

Hulda e Leah ergueu a voz, chamando por Gar.

— Abra minha bolsa e procure pelos frascos que

contêm raízes secas. Preciso daqueles onde está escrito

erva-de-são-cristóvão e inhame-silvestre. Pegue um

pedaço de cada, por favor, e faça um copa de chá bem

Page 30: O Milagre Do Coracão

forte com as ervas — ordenou, sem ousar erguer o rosto

para encará-lo. — Isso a ajudará a suportar a dor.

Gar apressou-se por seguir suas instruções e Leah o

ouviu mexer nas panelas e chaleiras da cozinha. Em

menos de cinco minutos ele estava de volta.

— Aqui está o chá. — Deixou a caneca na mesinha-

de-cabeceira e hesitou por alguns instantes. — Tem

mais na cozinha quando este acabar. Há mais alguma

coisa que eu possa fazer?

— O senhor já fez mais do que devia. — O tom era

cortante e, como se não bastasse, o olhar que dirigiu a

ele também o era.

Os olhos azuis se estreitaram diante da reprimenda

inesperada, então, endireitando os ombros como quem

deixava claro que pretendia se defender em caso de um

novo ataque, ele saiu do quarto e fechou a porta atrás

de si.

Ainda culpando-o mentalmente por feito a mulher

engravidar quando era óbvio que não poderia, Leah

encheu a colher com o líquido esverdeado e levou-a aos

lábios de Hulda.

— Tome isso, por favor, abra a boca — pediu com a

suavidade.

Page 31: O Milagre Do Coracão

Obediente, Hulda deixou que a colher fosse levada

a seus lábios e sorveu o líquido com certa dificuldade.

Leah repetiu o gesto até que quase todo o chá

tivesse sido tomado, restando apenas o fundo da xícara.

— Escute, quero que levante um pouco a cabeça

para que possa beber o que sobrou diretamente na

caneca.

Mesmo fraca, Hulda conseguiu fazê-lo e, aos

poucos, a infusão começou a surtir efeito. Leah

sussurrou uma prece em agradecimento e cuidou de

sentir o bebê outra vez.

Não havia o menor sinal de que o parto seria imi-

nente, a não ser uma grande quantidade de sangue

fluindo. Definitivamente, as coisas não estavam indo

bem, concluiu, meneando a cabeça de um lado para

outro. Precisava saber o que estava acontecendo lá

dentro, onde o colo do útero teimava em segurar o bebê

prisioneiro. Assim, cobrindo a mão e o braço com uma

camada de óleo, invadiu os recessos do corpo de Hulda

Lundstrom a procura do bebê. No entanto, no lugar da

cabeça que tanto esperava, encontrou duas partes

macias e arredondadas: as nádegas. Como se não

bastasse a posição, a criança ainda era grande demais

para os quadris estreitos da mãe.

Page 32: O Milagre Do Coracão

Leah puxou a mão e suspirou.

— Meu filho está morto? — Hulda sussurrou, a voz

cada vez mais fraca. Tinha começado a transpirar por

todos os poros do corpo e a camisola de flanela, bem

como a cama sob ela, estavam completamente molha-

das de sangue e suor.

— Não, está vivo — Leah respondeu. — Mas o bebê

está sentado. Nossa única chance é virá-lo para que

nasça.

— Neste caso faça o que for preciso — disse a

mulher do fazendeiro, cada palavra pontuada por um

gemido de dor. — Se eu não puder dar outro filho a

Ganam, nao quero mais viver.

— Não diga isso! Sua vida vale muito mais para seu

marido do que a de qualquer filho que possa lhe dar,

senhora — Leah tentou convencê-la.

Todavia, Hulda Lundstrom não se deixou enganar.

— Não, não vale. Mas, talvez, se eu der outro filho a

meu marido ele possa aprender a me amar.

Os olhos de Leah se encheram de lágrimas e ela as

enxugou com o braço.

— Não. Você não morrerá! Não pode nem pensar

nisso! Vai viver, vai viver!

Page 33: O Milagre Do Coracão

CAPÍTULO II

Infelizmente, naquela noite, o milagre da vida não

aconteceu como Leah esperava.

O rosto de Gar Lundstrom estava pálido e

contorcido pela raiva. Os olhos fundos, emoldurados por

enormes olheiras, denunciavam que ele passara a noite

em claro. Então, de repente, como se tivesse acabado

de buscar forças em algum lugar oculto dentro de si, ele

ergueu as duas mãos para o alto, depois as apertou uma

contra a outra enquanto fitava a mulher que tinha a sua

frente.

— Por quê? — A simples pergunta ecoou pela casa

como um grito de incredulidade, dor e desespero.

Leah passou os braços em torno de si, antes de

responder:

— Não sou médica, ar. Lundstrom. Sou apenas uma

mulher que conhece umas poucas coisas a respeito das

ervas e de como cuidar de certos ferimentos — disse,

dando um longo suspiro. Contudo, no ftindo, não con-

seguia isentar-se da culpa que a assolava, mesmo sa-

bendo que não havia nada que pudesse ter feito para

mudar as tramas do destino.

Page 34: O Milagre Do Coracão

— Já trouxe uma criança ao mundo antes, sra. Gun-

derson? Ou esta foi a primeira vez que viu uma mulher

morrer sob seus cuidados? — grunhiu ele em tom acu-

sador, ao mesmo que curvava os ombros como se o

fardo estivesse sendo pesado demais para carregá-lo.

Leah relutou em responder, muito embora soubesse

que deveria se defender da culpa que lhe estava sendo

imputada.

— Eu não pedi para vir aqui, ar. Lundstrom. —

Respirou fundo para tentar se acalmar e ignorar as

acusações que estavam sendo feitas em um momento

de desespero. — E, sim, eu já ajudei outras crianças a

virem ao mundo. Mas nenhuma das mães apresentou os

problemas que sua esposa teve.

— Hulda sobreviveu três vezes antes disso, mesmo

tendo os mesmos problemas dessa noite. O que poderia

ter causado… — Agitou-se e moveu a mão de um lado

para outro enquanto tentava encontrar palavras para

expressar o horror vividamente estampado no rosto

anguloso.

Leah condoeu-se o vê-lo tão desamparado.

— Ela era uma mulher muito pequena dando a luz a

uma criança muito grande — explicou, erguendo o rosto

e ousando encará-lo. Estava determinada a não se

Page 35: O Milagre Do Coracão

deixar culpar injustamente. — Eu tentei virar a criança,

mas não foi possível. O senhor estava lá. Viu o sangra-

mento. Por isso, o nascimento foi muito mais doloroso e

violento do que a ara. Lundstrom poderia suportar.

Entre eles, Hulda jazia embaixo de um lençol limpo,

sua face serena no leito de morte. Ela era uma mulher

pequena e frágil que, no entender de Leah, jamais

deveria ter sido submetida a tal provação. Aliás, uma

provação que acabara por matá-la.

Leah fechou os olhos como se o gesto pudesse

apagar a visão horrenda que tinha diante de si. Como se

a morte,pudesse ser esquecida com tanta facilidade.

— É melhor o senhor ir até a cidade e falar com o

agente funerário, ar. Lundstrom. E também tentar en-

contrar alguém que possa cuidar do bebê.

Os olhos azuis de Gar acompanharam Leah enquan-

te ela seguia até o bebê.

— Vou levar meu filho comigo até a cidade. Tem

leite na despensa se precisar para o bebê.

Leah olhou através da janela e admirou-se com a

quantidade de neve que cobria a paisagem. Em algum

momento durante a noite, deveria ter acontecido uma

verdadeira nevasca. Agora, sob os primeiros raios de sol

da manhã, a camada branca e reluzente começava a

Page 36: O Milagre Do Coracão

derreter, como se fosse um presságio de mudanças na

existência daquelas pessoas solitárias que haviam

passado a noite na fazenda dos Lundstrom.

Quatorze de janeiro. A data .de nascimento da filha

de Hulda Lundstrom.

Leah pegou a menina, ninando-a carinhosamente de

encontro a seu peito e tentando aquecê-la como a mãe

teria feito se tivesse sobrevivido.

— Tudo bem, tudo bem, anjinho — sussurrou, ina-

lando o cheiro da recém-nascida. Esse era um aroma

que sempre despertava uma grande emoção dentro

dela. — Como vai chamá-la? — indagou, por fim, sen-

tindo a presença de Gar atrás de si.

— Hulda ainda não tinha se decidido entre Linnea e

Karen.

— Karen é um excelente nome. Forte e breve —

Leah deixou que seus pensamentos falassem mais alto

que a discrição. — Além do que, ela sempre poderá

escolher um segundo nome quando fizer a primeira

comunhão.

Gar assentiu e Leah observou quando a pequenina

uniu os lábios num movimente de quem se preparava

para sugar.

— Eles aprendem rápido — comentou pensativa.

Page 37: O Milagre Do Coracão

Gar parou junto a porta, a cabeça baixa como se

todo o corpo viril estivesse ameaçando vir ao chão de-

pois da longa noite de agonia.

— Irei até a igreja e falarei com o pastor primeiro. E

mais fácil encontrá-lo do que ao doutor.

— Onde está seu filho? — Leah perguntou. Tinha

ouvido o som de vozes abafadas, depois o choro triste

de uma criança vindos da cozinha, alguns minutos an-

tes. — Ele está bem?

Gar lançou-lhe um olhar de desdém.

— A mãe dele acabou de morrer. Meu filho nunca

ficará Abem+ outra vez. — Virando-se abruptamente,

saiu do quarto.

Leah o seguiu com passos vagarosos, pois não

queria assustar a pobre criança ao aparecer sem avisar.

Ficou parada na soleira da porta enquanto Gar pegava o

filho pela mão e saía com ele da casa. Com pernas

trêmulas, Leah foi até a janela envidraçada e observou

pai e filho caminhando sobre a grossa camada de neve

para chegarem até o celeiro, onde Gar já deveria ter

atrelado os animais ao trenó.

Em questão de segundos ele já conduzia o único

meio de transporte que poderia deslizar sobre o solo

coberto de neve através das portas duplas de madeira.

Page 38: O Milagre Do Coracão

O garotinho estava aconchegado no banco da frente

com o enorme cobertor de pêlo enrolado em torno de

seu corpo pequenino. Gar juntou-se ao filho e pegou as

rédeas. Com um olhar rápido na direção da casa, incitou

os animais e os fez seguir para a cidade de Kirby Falis.

Leah afastou-se da janela e tentou ser prática. Ali-

nal, há muito aprendera que só os fortes e práticos

conseguiam sobreviver às adversidades.

Pegando o leite, ferveu-o e o colocou num pequeno

saleiro de mesa, que lavara bem, depois o cobrira com

um pedaço de flanela dobrado em dois. Segurando a

recém-nascida no braço esquerdo, pegou a mamadeira

improvisada e deixou o leite gotejar na boca pequenina.

— Claro que os seios de sua mãe poderiam alimen-

tá-la muito melhor, meu anjo, mas precisamos nos virar

com o que temos — disse, passando o dedo mínimo

pelos lábios do bebê para ajudá-la a sugar. — Talvez o

médico se Lembre de mandar uma mamadeira de

verdade ou algo mais prático para alimentá-la.

Um gemido escapou da boca pequenina e a filha de

Hulda virou a cabeça procurando pelos seios de Leah.

— Oh, meu bem, eu não posso ajudá-la — ela sus-

surrou, umedecendo os lábios minúsculos com novas

Page 39: O Milagre Do Coracão

gotas de leite desnatado. — Isso é o melhor que posso

fazer por voce.

Era unia tarefa frustrante, mas Leah a conhecia bem

e alimentou a recém-nascida pacientemeflte durante

quase uma hora, até que ambas estivessem exaustas

demais para prosseguir. Pelo menos uns trinta gramas

de leite deveriam ter passado pela garganta da menina,

o resto molhara o cobertor no qual ela estava

embrulhada.

— Preciso dar um banho em você, pequenina —

murmurou carinhosa. — Mas não antes que tenha lhe

dado tempo para dormir e ganhar um pouco de forças.

Logo, um travesseiro grande aninhado em duas ca-

deiras unidas próximas ao fogão da cozinha, pois este

era o local mais aquecido da casa, serviu de berço para

acomodar a mais nova dos Lundstrom.

Ao procurar o que’ fazer, Leah logo descobriu que

havia um pedaço de osso de pernil, ainda com bastante

carne, sobre o balcão da cozinha, coberto por um pano

de prato imaculadamente limpo, como se Hulda tivesse

planejado utilizá-lo no jantar, provavelmente, como

parte de uma sopa. E, preparar uma sopa era o mínimo

que ela própria poderia fazer para ajudar a pequena

família a superar o momento de perda e transtorno.

Page 40: O Milagre Do Coracão

Assim, cortando as cebolas que encontrou

penduradas em urna réstia presa ao gancho da parede,

colocou as fatias no caldeirão com água para ferver.

Uma breve visita à dispensa, rendeu-lhe alguns tomates

que fatiou e, juntamente com grãos de feijão, adicionou

à sopa.

Pelo jeito, Hulda tinha feito um bom planejamento

para aguardar a chegada dos dias frios de inverno. As

prateleiras estavam repLetas de produtos da horta e

pomar da fazenda, todos devidamente acondicionados

para não estragarem.

Leah segurou a vasilha que trazia na mão com mais

força, como se esta pudesse ser um elo que a ajudasse a

compreender a mulher que passara muitas horas na

cozinha, trabalhando para garantir o bem-estar de sua

pequena família.

O coração apertou-se dentro de seu peito, por causa

da culpa que sentia pela morte de Hulda, mesmo

sabendo que estava sendo injusta consigo mesma.

Fizera o máximo que pudera para salvá-la, mas a mulher

escolhera seu destino e este não lhe permitira resgatá-la

dos braços da morte. E não era tudo, Gar Lundstrom,

com seu iasano desejo de ter outros filhos, também fora

parcial-mente responsável pela morte da esposa.

Page 41: O Milagre Do Coracão

Mas e quanto ao garoto? Leah franziu o cenho ao

pensar no pequeno Kristofer, que agora deveria estar

com o pai cuidando dos preparativos para os funerais da

mãe. Como ele sobreviveria depois dessa perda

traumática?

Claro que seria muito mais fácil para o bebê que

acabava de nascer, pois este nem chegara a conhecer

amor maternal e, assim1 não sentiria tanta falta de

Hulda. Contudo, o mesmo não poderia ser dito da

situação do pobre Kristofer Lundstrom, Leah suspirou

tristemente.

Quanto a ela própria, também teria que dar um jeito

em suas coisas depois daquela longa e fúnebre noite. As

roupas que deixara no cesto precisavam ser

penduradas, pois logo haveria, pelo menos, dois cava-

lheiros batendo a sua porta a procura das trouxas que

deveriam ser entregues. Enquanto isso, ali estava ela, a

lavadeira oficial dos solteiros da cidade, cuidando de um

bebê recém-nascido, em uma fazenda que ficava dez

milhas distante de Kirby Falis.

De qualquer forma, sua índole generosa fe-la decidir

que faria o que pudesse para ajudar enquanto esperava

Gar Lundstrom voltar para casa.

Page 42: O Milagre Do Coracão

E varrer o chão e tirar o pó da mobília não demorou

mais do que meia hora. Contudo, durante todo esse

tempo, Leah se manteve distante do quarto no segundo

andar, onde o corpo de Hulda Lundstrom jazia inerte e

frio sob o lençol.

Tarefa cumprida, esquentou mais um pouco de leite

e passou outros trinta minutos tentando alimentar o

bebê que acordara resmungando, em seguida, banhou-a

com carinho antes de se sentar na cadeira de carvalho

que havia na sala de estar e ninar a menina como se

fosse uma mãe experiente.

Quando o trenó de Lundstrom voltou a passar

diante da janela envidraçada, a carne que cozinhava

para a sopa já estava se soltando do osso de pernil.

Também não ficou surpresa ao ver que logo atrás do

dono da casa estava o veículo que Joseph Landers

conduzia sempre que a situação clamava por seus

serviços de agente funerário.

Imediatamente, Leah seguiu até a porta e estreme-

ceu ao sentir a lufada de ar gelado que invadiu a casa

juntamente como os recém-chegados.

— Kristofer, vá se aquecer junto ao fogão — Gar

disse abruptamente para o filho e Leah observou a cena

enquanto o menino seguia a ordem à risca.

Page 43: O Milagre Do Coracão

Bastou um olhar para confirmar que as mãos pe-

queninas do pobre garoto estavam vermelhas de frio e o

nariz e faces também. Na verdade, as pálpebras dele

mal se moveram quando passou por Leah; os olhos

estavam inchados, dando a impressão de que Kristofer

chorara o tempo todo em que estivera fora de casa.

E, por certo, fora isso mesmo que acontecera,

deduziu Leah, mordendo o lábio inferior enquanto fitava

o pequeno Lundstrom com um misto de ternura e

compaixão. O menino esfregou as mãos uma contra a

outra, então, limpou o nariz na manga da camisa de

flanela.

Obedecendo a um impulso, Leah tirou o pequeno

lenço de algodão do bolso e o estendeu a Kristofer.

— Obrigado, senhora. — A voz infantil estava per-

meada pela rouquidão característica do choro e Leah

sentiu um aperto no peito ao imaginar a dor que a

criança deveria estar sentindo com a perda da mae.

Silenciosa, viu os homens rumarem para o segundo

andar da casa, ouviu-lhe os passos pesados e também o

murmúrio de vozes que chegava até a cozinha.

— Kristofer? — disse, testando o som daquele

nome quando pronunciado por seus lábios. Será que fora

a mãe que escolhera chamá-lo assim? Provavelmente.

Page 44: O Milagre Do Coracão

Gar, por certo, teria preferido algo como Lars, Igor, ou

um nome mais viril e robusto. Já Kristofer era o tipo de

nome que uma mãe carinhosa dava ao filho de cabelos

claros e sedosos.

— Sim, senhora, o que deseja? CO menino ergueu

o rosto, seus olhos azuis avermelhados por causa das

longas horas de choro e soluços contidos

— Por acaso está com fome, Kristofer? — Leah in-

dagou gentilmente. — Fiz uma sopa de feijão com al-

guns pedaços de pernil. Precisa comer alguma coisa,

meu querido.

Os olhinhos inchados se voltaram para o caldeirão

que estava no fogão escuro e logo a língua rosada des-

lizou pelos lábios úmidos.

— É verdade, senhora. Estou com um pouco de

fome, não comi nada no café da manhã.

Leah aproveitou a oportunidade para se ocupar e

esquecer que havia um cadáver no andar superior.

— Então venha até a pia para se lavar um pouco —

chamou, consciente de que os homens começavam a

descer as escadas com o corpo de Hulda.

Propositadamente, colocou-se atrás do garoto,

agindo como um escudo protetor para impedi-lo de ver o

frágil corpo da mãe sendo carregado para fora da casa.

Page 45: O Milagre Do Coracão

Então, quando a porta dos fundos se fechou atrás de Gar

e de Joseph, Leah colocou as mãos nos ombros

pequenos.

— Venha comer agora, meu querido. Vou cortar al-

gumas fatias de pão para você — prometeu, levando-o

até a mesa e puxando uma das cadeiras para que Kris-

tofer se sentasse.

Ele obedeceu sem pestanejar, apenas os dedinhos

trêmulos denunciavam o quão faminto estava.

Leah cuidou de fatiar o pão antes de procurar pela

manteiga e geléia. A cada vez que passava diante da

janela, acompanhava o progresso do corpo de Hulda em

direção ao carro flínebre. Observou que havia mais um

homem lá fora e que fora este quem abrira a porta tra-

seira da carroça da funerária para que Gar acomodasse

o corpo da mulher dentro do caixão guardado ali.

Os dois agentes funerários conversaram entre si en-

quanto Gar Lundstrom baixou os olhos e chutou leve-

mente a roda da carroça como se o gesto pudesse mi-

nimizar sua dor.

Algum tempo depois, Leah ouviu o som de arreios

ecoando pelo pátio, e, segundos mais tarde, Gar entrou

na casa.

Page 46: O Milagre Do Coracão

— Precisa comer alguma coisa, sr. Lundstrom —

disse a ele. — Fiz uma sopa com os feijões e ossos de

pernil que encontrei na cozinha. Espero que não se

importe.

Ele deu de ombros e tal gesto já falava por si só.

AQue importância isso tem?@, parecia estar dizendo.

Então, com um suspiro, Gar admitiu sua fraqueza

humana.

— Tem razão, estou faminto.

Enquanto Leah servia uma generosa porção da sopa

num prato fundo, Gar se lavou na pia, então, parou ao

lado do filho, quando já retornava à mesa.

— Kristofer… — murmurou, como se precisasse

pronunciar aquele nome apenas para sentir que ambos

estavam vivos. Lentamente, fechou os olhos e respirou

fundo.

— Estou aqui, pai — atalhou o garoto com a boca

cheia de comida. Mas aquela resposta simples pareceu

satisfazer o fazendeiro que se sentou ao lado do filho.

— O que o senhor vai fazer com o bebê? Falou

com o médico quando esteve na cidade? — indagou

Leah, servindo um pouco de café fresco ao homem que

olhava fmxamente para o prato de sopa de feijão que

tinha diante de si.

Page 47: O Milagre Do Coracão

Sem ter a menor idéia do que deveria fazer a

seguir, Gar ergueu o rosto e a encarou.

Percebendo que os pensamentos dele estavam

muito longe dali, Leah entregou-lhe uma colher e

sugeriu:

— Acho melhor começar a comer. O senhor está

precisando.

— Sim, estou — concordou e sorveu a sopa sem

proferir uma só palavra, então, colocou um pouco de

açúcar a xícara de café e fitou o liquido escuro por uni

momento. — Não tem creme aqui — disse

acusadoramente.

— Vou lhe dar um pouco — Leah se prontificou,

pegando a jarra do armário. O creme estava espesso

amarelo e ela encheu o recipiente de louça até a boca

antes de colocá-lo na mesa.

— Obrigado — agradeceu Gar, observando-a en-

quanto ela colocava uma dose generosa de creme na

xícara de café preto.

Sem dizer uma só palavra, sorveu o liquido

fumegante e continuou a fitá-la por entre cílios

semicerrados.

Foi então que o bebê se moveu no berço

improvisado nas duas cadeiras. Primeiro ouviu-se um

Page 48: O Milagre Do Coracão

chorinho discreto, depois este se transformou em gritos

agoniados. Leah deixou a xícara de lado e foi até o berço

montado junto ao fogão. Curvou-se para pegar a

pequenina nos braços, ao mesmo tempo em que

murmurava algumas palavras de conforto.

— Entregue-a para mim. — O rosto anguloso de Gar

era uma máscara impenetrável quando ele esticou os

braços para pegar a filha. — Deixe-me pegá-la.

Kristofer olhou atônito para o pai, depois para Leah,

como se estivesse com medo das verdadeiras intenções

ocultas por trás de tal gesto.

— Pode ficar tranqüilo, filho. Agora, vá para o

celeiro e ajude Benny a alimentar o gado. Não fiz isso

direito hoje, portanto, preciso que tomem conta dos

animais para mim.

O garoto assentiu de pronto e, rapidamente, pegou

seu casaco e saiu da casa para ajudar o empregado do

pai.

— Vou segurar minha filha agora, sra. Gunderson —

Antes que Leah pudesse fazer ou dizer qualquer coisa,

ele já havia se levantado e tirava o bebê de seus braços.

— Vi minha mulher sangrar até a morte, bem diante de

meus olhos. Ainda não consigo ser nobre o suficiente

para perdoar a senhora pelo mal que nos causou.

Page 49: O Milagre Do Coracão

Leah sentiu a pernas trêmulas diante de tal

acusação. Atordoada, deixou-se cair na cadeira junto à

mesa.

— Pois eu lhe disse quando foi me procurar que não

era médica, senhor. Fiz o melhor que pude. O médico

tinha prevenido ao senhor e sua esposa que S ela não

poderia mais ter filhos. Seus órgãos estavam tão

danificados pelos abortos anteriores que até mesmo

este bebê poderia ter morrido se eu não a tivesse tra-

zido ao mundo à força.

A lembrança do sangue jorrando do corpo de Hulda

e se espalhando pelo lençol ainda era tão vivida em sua

memória que ela fechou os olhos para tentar se livrar

desse horror.

— Sua esposa não teria sobrevivido ao parto, não

importa quem a tivesse atendido. Não tinha condições

de dar à luz! — Ergueu o rosto, os olhos marejados de

lágrimas e os lábios trêmulos. — Se quer culpar a

alguém que está vivo, sr. Lundstrom, culpe a si mesmo.

O senhor a engravidou depois de o médico ter dito que

ela não poderia gerar outro filho. Não jogue sua culpa

nas minhas costas porque este é um fardo que me

recuso a carregar.

Page 50: O Milagre Do Coracão

O rosto anguloso perdeu o tom avermelhado de um

homem que enfrentara o vento gélido do inverno para

se transformar numa máscara acinzentada de agonia.

— Sei muito bem qual foi minha culpa, não precisa

ficar me lembrando — resmungou num tom gutural.

Leah entortou os lábios, porém, nada disse.

— Esteja pronta para partir em dez minutos — de-

clarou Gar com aspereza, então, jogando um acolchoado

sobre o bebê, saiu da casa apressadamente.

Leah não imaginava para onde ele pudesse estar

levando a filha. Os passos eram firmes e decididos

enquanto Gar passava pelo celeiro e depois dirigia-se

para uma casinha que havia na outra extremidade das

pastagens. Quando não pôde mais vê-lo ou sequer

Suportar a agonia que a dominava, ela se afastou da

janela e tentou dizer a si mesma que o destino dos

Lundstrom não era de sua conta. Bem que gostaria

de poder ajudar as duas pobres crianças, mas, se para

isso tivesse que enfrentar a fúria e a acusação do pai

delas, então, sem dúvida, era melhor esquecê-los de

uma vez por todas.

Algum tempo depois, Gar a levou para casa e du-

rante todo o trajeto os dois ficaram no mais completo

silêncio, como se um não pudesse, sequer, suportar a

Page 51: O Milagre Do Coracão

companhia do outro. Ao chegarem, ele parou os animais

em frente à pequena casa onde Leah viva e esperou

apenas o tempo suficiente para que ela descesse antes

de começar a se afastar.

— Minha bolsa! O senhor está com minha bolsa, sr.

Lundstrom! — gritou Leah, correndo atrás da carroça.

Sem dizer nada, ele pegou a bolsa de couro do as-

soalho perto de seus pés e a jogou na direção de Leah.

Os olhos azuis estavam tomados por uma ira e deses-

pero tão profundos que Leah não conseguiria esquecer

tão cedo. Essa era uma lembrança que a assolava prin-

cipalmente à noite, quando repousava a cabeça no tra-

vesseiro e o via fitando-a com aquele ódio, acusando-a

de uma culpa que não tinha, cobrando-a pelo milagre da

felicidade que não pudera lhe dar…

As roupas molhadas estavam penduradas em varais

que cruzavam a pequena cozinha como um emaranhado

digno de uma teia de aranha. Com sua tarefa finalmente

concluída, Leah curvou-se para passar sob a melhor

camisa de Orville Hunsicker enquanto escapulia do mar

de roupas em que se transformara sua cozinha e seguia

direto para o quarto.

Page 52: O Milagre Do Coracão

Estava exausta e embora tivesse imaginado que o

sono não viria com facilidade, mal tinha colocado a

cabeça no travesseiro quando foi abraçada pelas névoas

do reino de Morfeu.

A mulher sofreu sem proferir um único som, os

olhos escuros se voltaram com ódio para a criança que

acabava de nascer de seu ventre. Então, de súbito, o

bebê rosado e saudável ficou imóvel sob a mãe, com o

pescoço torcido num ângulo totalmente inconcebível.

Gritando, a mãe apontou para Leah e sua acusação

ecoou a quilômetros de distância.

— Assassina! Assassina!

Com os punhos cerrados, o pai furioso também vol-

tara sua ira para Leah que fugiu correndo do quarto,

enveredando por um labirinto escuro e tenebroso du-

rante sua fuga desenfreada.

Então, ao entrar em um segundo quarto para fugir

do primeiro, descobriu-se diante de Hulda Lundstrom,

num leito coberto de sangue, com o dedo apontado em

sua direção e também gritando: “Assassina, assassina!”

Page 53: O Milagre Do Coracão

Leah acordou sobressaltada, com a respiração

ofegante como se, de fato, tivesse corrido durante um

longo tempo. Olhando para a janela viu que, ao contrário

da última noite, quando uma forte nevasca caíra sobre a

cidade, a noite estava clara e a lua brilhava no céu.

Através das diáfanas cortinas de renda divisou os

contornos do hotel ao lado do qual ficava o armazém

geral e o banco, todos alinhados e podendo ser vistos de

qualquer ponto de Kirby Falls. Sim, ela não estava mais

correndo pelas ruas de Chicago, fugindo da fúria de um

pai enlouquecido pela perda do filho.

Leah segurou a cabeça entre as mãos. Há quanto

tempo essa fatalidade acontecera? E por quanto tempo

mais seria perseguida pelas lembranças de um lindo

recém-nascido, um menino rosado e forte, que morrera

por causa da mãe que não queria um filho do marido,

mas apenas o dinheiro dele!?

E agora, como se não bastasse, ainda seria ator-

mentada pela morte de Hulda Lundstrom, que dera a

própria vida apenas para agradar ao homem com o qual

se casara. Leah não podia acreditar que o destino estava

sendo tão cruel com ela pela segunda vez. Que sina

triste a sua! Fugira de Chicago por causa da morte de

um bebê e, quando pensara estar segura em Kirby Falls,

Page 54: O Milagre Do Coracão

acabara presenciando a morte de uma outra mulher

que, ao contrário da primeira, não medira esforços para

agradar ao homem que amava.

— E esse homem tinha de ser justamente Gar

Lundstrom, meu Deus! — gemeu em meio ao pranto e

ao desespero de quem não entendia por que o enredo

do destino estava sendo tão repetitivo e cruel para com

ela.

A semana passou mais lentamente do que o

habitual e cada dia parecia ser mais longo do que o

anterior. Leah fora até o armazém geral, mas os

comentários sobre a morte de Hulda Lundstrom ainda

eram o assunto do momento. Por sorte, recebeu muitos

olhares de simpatia e palavras de conforto das senhoras

que sabiam que ela havia feito o melhor que pudera

para ajudar a esposa do fazendeiro.

No entanto, mesmo isso não era o bastante para

poupá-la das feridas que sangravam-lhe a alma. A sen-

sação de que deveria fazer alguma coisa para ajudar a

pequena família que estava tentando sobreviver à

tragédia da perda da mãe e esposa era forte demais

para ser ignorada.

Page 55: O Milagre Do Coracão

Apesar disso, quando no final da terrível semana

Gar Lundstrom apareceu em sua porta carregando a

filha recém-nascida nos braços, seus pensamentos ge-

nerosos desapareceram no mesmo instante em que ele

a encarou através da tela da porta.

— Trouxe minha filha para a senhora — declarou

Gar rispidamente, os dedos longos segurando a maça-

neta, forçando-a a dar um passo atrás enquanto ele

entrava na pequena sala.

— E trouxe-a para que e por quê, sr. Lundstrom? —

inquiriu, observando a criança enrolada na manta.

— Descobri que não posso cuidar de um bebé e da

fazenda ao mesmo tempo. Deixei-a com Ruth Warshem,

a esposa de meu ajudante Benny, mas ela tinha que

trazê-la de volta para mim à noite. E eu não posso me

levantar às quatro da manhã para cuidar dos animais se

passo a noite toda acordado com um bebê >que chora

de hora em hora.

— E o senhor quer que eu tome conta dela?! —

Leah encarou-o estupefata. Era muita petulância entrar

em sua casa sem ser convidado e ainda por cima fazer

tal exigência.

— Eu não posso mais fazer isso. Senão minha fa-

zenda ficará em ruínas e não terei nem mesmo dinheiro

Page 56: O Milagre Do Coracão

para sustentar meus filhos e a mim. O máximo que

posso fazer é cuidar de Kristofer que já está grandinho.

— E o que o leva a pensar que sou a pessoa certa

para assumir esta obrigação, senhor? — interpelou-o, a

raiva mesclada à indignação.

Gar inclinou a cabeça num ângulo que lhe conferia

um ar arrogante e autoritário.

— Simples, não há ninguém mais que possa fazê-lo.

Leah riu, um riso agudo e cortante.

— Bem, pode esquecer, sr. Lundstrom. Não estou

disponível.

A boca carnuda curvou-se e os olhos azuis a reta-

lharam como se fossem armas mortais.

— Vou pagá-la bem — grunhiu, sem uma nota de

gentileza ou humildade na voz de barítono.

Leah abriu a boca para se recusar a assumir tal

responsabilidade, contudo, do fundo de sua mente veio

um aviso de que deveria ser cautelosa. Poderia pre-

servar seu orgulho próprio e também suas finanças se o

ajudasse com o bebê e aceitasse algum dinheiro em

troca do trabalho, além, é claro, de aliviar um pouco a

pesada carga que recaía sobre os ombros fortes de Gar

Lundstrom.

Page 57: O Milagre Do Coracão

Aliás, ombros que talvez não fossem nem tão fortes

assim! Ali estava mais uma prova de que nenhum

homem era totalmente invencível, concluiu pensativa. A

vida poderia encurralá-lo quando menos se esperava.

— Pensando melhor, talvez eu possa fazê-lo durante

algum tempo — disse lentamente, seus olhos voltando-

se para a pequena criatura que repousava nos braços

musculosos do pai e que agora começava a emitir

gritinhos de desconforto.

Gar entregou-lhe a filha com mãos relutantes, como

se esta não fosse uma escolha, mas sim uma necessi-

dade urgente.

Leah abriu o cobertor. Brilhantes olhos azuis a fi-

taram e uma boca pequenina e rosada se abriu para em

seguida fechar-se em um gracioso biquinho. Entao a

menina bocejou e esfregou os olhos com as mãos.

Ela encantou-se imediatamente com o rosto bonito,

que já começava a perder a aparência disforme dos

recém-nascidos e mostrava que filha de Hulda era muito

parecida com o pai. Movida por um impulso, acariciou-

lhe a bochecha com a ponta dos dedos.

— Com o que o senhor a está alimentando? — per-

guntou, virando-se de costas ao sentir que lágrimas

traiçoeiras começavam a minar-lhe dos olhos.

Page 58: O Milagre Do Coracão

— Com leite de vaca. Mas tem que ser fervido e

depois esperar esfriar. Ruth disse que não é bom dar

leite muito frio ou muito quente, mas que é importante

fervê-lo e diluí-lo em um pouco de água. Também com-

prei bicos no armazém para usar nas garrafas que

transformamos em mamadeiras.

— E Ruth não pode cuidar de sua filha vinte e

quatro horas por dia? — Leah questionou, perguntando-

se como a mulher poderia ter desistido de ficar com

essa criança.

— Não. Ela tem uma irmã doente que precisa de

seus cuidados e outra que também está prestes a ter

um bebê e que necessitará de ajuda.

— Entendo. Os bebês necessitam de cuidados a

todo instante, sr. Lundstrom. Para que sua filha tenha

tudo que precisa, necessitarei de uma quantidade de

leite diária.

— Posso lhe trazer uma vaca. — Aquelas palavras

soaram como pedras batendo de encontro ao muro de

objeções que Leah ainda mantinha em torno de si.

— Mas eu não sei como ordenhar uma vaca! — re-

plicou, levantando o bebê em seus ombros e batendo-

lhe levemente nas costinhas para acalmá-la.

Page 59: O Milagre Do Coracão

O olhar exasperado de Gar Lundstrom dirigiu-se às

faces de Leah e depois ao bebê que ela segurava.

— Neste caso eu a ensinarei, senhora.

— Por quanto tempo? — interrogou ela, não que-

rendo deixar de encará-lo, mas, ao mesmo tempo, tendo

medo que as lágrimas voltassem a trai-la.

— Por quanto tempo for necessário para que possa

aprender, ora essa — retrucou Gar impaciente.

Franzindo o cenho, Leah o fitou com expressão

igualmente aborrecida.

— Sabe muito bem o que estou querendo dizer. Por

quanto tempo espera que eu cuide de sua filha?

— Por quanto tempo for necessário — repetiu a

mesma resposta que já tinha dado anteriormente.

Mas será que aquela não era uma maneira um tanto

irresponsável de entregar as responsabilidades com o

cuidado e educação de uma criança recém-nascida nas

mãos de alguém que nem ao menos da família era?!

Leah suspirou profundamente e ergueu o queixo.

— Eu nunca tive filhos. Como o senhor sabe que

cuidarei bem de sua menina?

Os olhos azuis a percorreram de alto a baixo, como

se estivessem avaliando todos os seus atributos femi-

Page 60: O Milagre Do Coracão

ninos, e, por fim, quando ele falou, foi num tom firme e

decidido:

— Eu sei.

— Mas por que eu?

— A senhora está em dívida para comigo. — Ele se

inclinou em sua direção, as narinas pulsando e os dentes

à mostra.

Por um instante, Leah divisou uma fúria contida na-

quele semblante másculo a qual jamais poderia

enfrentar.

— Sei muito bem qual foi minha culpa na morte de

Hulda. Quanto a senhora, talvez possa acalmar sua

consciência enquanto me ajuda a criar a menina.

Não fora a mesma conclusão a que ela própria che-

gara minutos antes? E agora, com toda essa arrogância

machista e o conhecido orgulho dos imigrantes suecos,

ele estava lhe dando uma chance de ajudar. Seus braços

acariciavam a criança ternamente e, de súbito, o

coração encheu-se de ternura ao antecipar a alegria que

seria conviver diariamente com um bebé.

— Certo, cuidarei de sua filha. Mas será apenas por

seis meses. Quem sabe ao final desse período já tenha

encontrado uma mulher que possa viver em sua casa e

cuidar de seus dois filhos como eles merecem. Além do

Page 61: O Milagre Do Coracão

que, ao final de seis meses o senhor já terá terminado

de semear as plantações e também terá feito o primeiro

corte do feno. Terá de levá-la no verão.

Gar estava parado ao lado dela e Leah baixou os

olhos para as botas gastas e másculas que ele usava

com a calça colocada dentro do cano alto e cadarços

que amarravam na parte frontal.

— O que me diz? — O calor do corpo do bebê era

reconfortante contra sua pele fria, bem como os pe-

quenos movimentos da menina. A respiração cálida era

ritmada e tão suave que Leah chegou a confundi-la com

a sua própria.

— Certo, está combinado. Seis meses é um bom

tempo — concordou Gar Lundstrom. — Vou lhe pagar

dois dólares por semana e trarei a vaca e algumas

roupas para a menina amanhã mesmo.

Leah quase recusou tal oferta. Mas, quando estava

abrindo a boca para verbalizar o que tinha em mente, o

viu tirar duas moedas do bolso de couro que tinha preso

à cintura da calça e colocá-las sobre a mesa ao lado da

janela.

Céus, era muito dinheiro! Dois dólares era bem mais

do que ousaria pedir pelo trabalho. Ainda assim, a

simples idéia de que poderia comprar o que quisesse

Page 62: O Milagre Do Coracão

para comer, e, talvez, guardar uma pequena quantia que

lhe ajudasse nos momentos diflceis e inesperados, pelos

quais todos passavam algumas vezes, a estava

encantando.

— Tenho uma cesta com algumas das coisas dela

na r~ carroça. E o bastante para passar um ou dois dias.

Ruth está lavando as fraldas de Karen hoje e as trarei

quando voltar aqui. — Sem mais uma palavras, saiu da

sala, foi : até a carroça e retornou trazendo um casto de

vime nos braços. — Penso que já está tudo certo entre

nós, não?

Leah assentiu e Gar fitou o bebê que ela carregava,

estendendo uma das mãos para acariciar a cabecinha

macia. Com o lopgo dedo indicador, alisou os cabelinhos

loiros e ralos. Então ele se foi sem nem ao menos ousar

olhar para trás…

Leah mergulhou num sono leve, consciente do pe-

queno ser a seu lado, então, de repente, acordou com o

som de alguns gemidos de protestos.

Em seu ninho de travesseiros, a pequena Karen

Lundstrom mexia a cabeça de um lado para outro como

se estivesse a procura do seio da mãe que deveria ali-

Page 63: O Milagre Do Coracão

mentá-la. Como não encontrasse a fonte do prazer que

procurava, levou as mãozinhas aos lábios e sugou-as

com avidez. No entanto, ao perceber que o gesto não

poderia lhe trazer o alimento que desejava, desatou a

chorar a plenos pulmões.

Leah a observou sob a luz do luar, sorrindo ao re-

conhecer a natureza saudável daquele choro, afinal,

alimentar-se era uma necessidade humana básica e uma

necessidade que ela agora poderia suprir. Levantando-

se da cama, vestiu o casaco e mergulhou os pés nos

chinelos de pêlo, então tomou a menina nos braços.

Durante uma fração de segundo, o choro diminuiu e

pequenina a encarou com olhos arregalados.

Já na cozinha, ela aqueceu a garrafa que fora trans-

formada em mamadeira, colocando-a em uma panela de

água quente. Estava começando a nevar outra vez e os

flocos brancos batiam contra o vidro da cozinha como se

o frio estivesse tentando entrar na casa à força. Con-

tudo, a cozinha estava quente e Leah aproveitou para

puxar sua cadeira de balanço para junto do fogão, aco-

modando-se com sua nova companheira nos braços.

A menina inquietou-se quando os cobertores foram

puxados para longe, a fim de que as fraldas pudessem

ser trocadas.

Page 64: O Milagre Do Coracão

— Shhh, meu anjinho, logo você estará seca e

quente outra vez!

O choro foi se tomando mais e mais agudo e apenas

o bico de borracha da mamadeira cheia de leite foi

capaz de trazer a paz e o silêncio de volta. Leah ba-

lançou-se para frente e para trás, uma das mãos ocu-

padas com a mamadeira e a outra acariciando os ca-

belos claros. A simples presença do bebê a tranqüilizava,

banindo o pesadelo horrível de todas as noite para longe

e deixando-a dormir em paz.

Aquela criança, cujo destino fora drasticamente mu-

dado pela morte da mãe, dependia unicamente dela

para sobreviver.

Leah sentiu uma pena enorme da mulher que fora

enterrada uma semana antes e agora jazia sob o solo

coberto de neve, enquanto sua filha estava sendo

ninada por outra pessoa. Também experimentou uma

certa culpa por estar desfrutando do prazer de ter a

menina sob seus cuidados graças a tristeza que se

abatera sobre a casa dos Lundstrom. Ainda assim, havia

uma parte dela que não cabia em si de contentamento

por ter nos braços essa dádiva maravilhosa, uma

semente de vida que florescera ainda que em um leito

de morte.

Page 65: O Milagre Do Coracão

Ora, o que estava dizendo! A vida era sempre maior

do que a morte, não? Ali estava ela para provar isso.

Apesar de tudo que lhe acontecera, ainda era capaz de

sorrir e quase se sentir como a mãe verdadeira da linda

criaturinha de cabelos claros e olhos tão azuis quanto os

do pai. Sim, olhos como os de Gar Lunds trom… E

bastou esse simples pensamento para fazer o coração

de Leah bater mais rápido em seu peito.

— Oh, céus, não posso pensar nele como homem.

Não posso! — ralhou consigo mesma, tentando apegar-

se ao último resquício de bom senso que lhe restava. —

Garlam Lundstrom é como o fruto proibido que o Senhor

colocou no jardim do Eden. Apesar de me atrair além da

conta, jamais poderei provar de seus lábios, ou

regozijar-me com a masculinidade de seu corpo. E eu

não quero ser punida por não ter resistido ao fruto

proibido..

CAPÍTULO III

Kirby Falis, Minnesota Maio, 1892

— Dona Leah! Encostado na tela de proteção da

porta de entrada, Kristofer Lundstrom esperava

Page 66: O Milagre Do Coracão

impacientemente para que Leah atendesse. As mãos

pequeninas repousavam na maçaneta redonda, apenas

os bons modos o impediam de dar um passo adentro

antes de ser formalmente instruído a fazê-lo.

— Entre, Kristofer — ela o convidou, vindo apres-

sada da cozinha para a sala. O menino estava atrasado

naquele dia. As aulas na escola já deveriam ter ter-

minado há pelo menos uma hora e Leah estivera es-

perando ouvir a voz melodiosa há algum tempo.

Aliás, poderia ajustar seus relógios pelo garoto,

cujos passos ecoavam pelo assoalho de madeira de sua

pequena varanda todos os dias, logo após as aulas. Suas

intenções eram muito claras. Primeiro ele a cumprimen-

tava com respeito, meneando a cabeça enquanto a cha-

mava pelo nome, depois os olhos azuis procuravam pela

silhueta pequenina da irmã e ele corria até o bebé como

se não pudesse mais agüentar de tanta saudade.

Mesmo tendo apenas sete anos, Kristofer era a ré-

plica em miniatura do pai, com cabelos loiros que bri-

lhavam intensamente sob os raios de sol e olhos azuis

contornados por cílios e sobrancelhas escuras. Ele tam-

bém era alto para sua idade, firme e correto, além de

parecer muito mais forte agora que não tinha a presença

Page 67: O Milagre Do Coracão

da mãe que, quando viva, constantemente o puxava

pelas mãos para todos os lugares onde ia.

Leah tocou-lhe a cabeça com a ponta dos dedos,

ajeitando-lhe os cabelos soprados pelo vento.

— Vai ficar um pouco conosco, Kris?

— Não, senhora. Encontrei meu pai no armazém e

ele me disse para vir ver Karen e trazer-lhe isso.

Leah olhou para o pacote que o garoto carregava.

— Para Karen? O que é? — quis saber, estendendo a

mão para receber a encomenda que Kris lhe entregava.

— Bem, papai achou que a senhora poderia fazer

uma roupa mais primaveril. Sabe, algo mais leve do que

os tecidos grossos que ela tem usado desde o inverno.

Os dedos de Leah moviam-se rápido à medida que

desatava os barbantes e tentava chegar ao conteúdo do

embrulho. Logo sua curiosidade foi satisfeita, ali estava

um pedaço de algodão leve e floral, flores rosas

contrastando com delicadas folhagens verde-claro que

formavam uma espécie de fundo para a estampa.

— Oh, mas é lindo! — sussurrou Leah, já

imaginando o belo vestido que poderia fazer. Mangas

bufantes e corpo alto com uma saia longa que iria até os

pés da pequena Karen, protegendo-a do sol e

refrescando-a durante os dias mais quentes. — Diga a

Page 68: O Milagre Do Coracão

seu pai que vou fazer o vestido antes de domingo para

que ele possa vê-la usando-o — prometeu com um

sorriso.

Da cozinha, o bebé resmungou por ter sido deixado

sozinho, mesmo que por pouco tempo, e Kristofer correu

para lá, ansioso por ver a irmã.

Leah ouviu as palavras carinhosas do menino e sor-

riu ao perceber que Karen também o recepcionava com

a alegria de sempre.

— Ela fica maior a cada dia que passa, não é, dona

Leah? — o menino comentou, curvando-se a fim de de-

positar um beijo na cabecinha macia. Com movimentos

rápidos foi até a pia, sem nunca desviar o olhar da irmã.

— Vou me lavar e aí poderei pegá-la um pouco,

não? Leah assentiu.

— Sua irmã estava esperando por você, meu

querido. Já está quase na hora de ela tomar a

mamadeira. Gostaria de alimentá-la hoje?

Kristofer sorriu, revelando um pequeno vão onde

dois dentes-de-leite haviam caído para dar lugar aos

permanentes.

— Oh, sim senhora, eu adoraria.

O fato de as mãos dele ainda estarem úmidas era

um pequeno detalhe, Leah decidiu ao vê-lo esticar os

Page 69: O Milagre Do Coracão

braços. Condescendente para com o afeto genuíno que

havia entre as duas crianças, ela gesticulou em direção

à cadeira de balanço. Kris sentou-se enquanto Leah

tirava a menina de quatro meses do cesto de vime,

Lugar em que Karen passava a maior parte do dia, e

entregou-a ao irmão.

Com um travesseiro embaixo do cotovelo, Kristofer

segurou-a bem junto de si e ofereceu-lhe a mamadeira.

Mãozinhas rosadas agarraram o vidro e o menino riu ao

ver a irmã tentar segurar o frasco transparente de

maneira que o leite lhe chegasse aos lábios famintos.

— Veja isso, dona Leah! Ela também está

segurando. Não vai demorar muito e não precisará mais

de ajuda para se alimentar.

Leah meneou a cabeça de um lado para outro.

— Ainda assim teremos de segurá-la nos braços,

Kris. E importante que estejamos sempre atentos en-

quanto um bebê se alimenta. O fato de Karen saber

segurar a mamadeira não garante que não irá se afogar

se sugar mais leite do que pode engolir.

O rostinho bonito transformou-se em uma pequena

careta.

— Puxa, eu não tinha pensado nisso. Minha irmã

tem sorte de ter a senhora para tomar conta dela, não?

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— Abaixou a cabeça e olhou demoradamente para o

bebê rechonchudo que tinha nos braços. — Sabe, eu

gostaria de tê-la em casa onde poderia vê-la sempre que

quisesse e aposto que papai também.

— Sim, mas seu pai vem visitá-la todos os domingos

tarde — Leah lembrou-o, e, ao mesmo tempo, teve de

admitir para si mesma que estas visitas de Garlam

Lundstrom eram como uma luz que iluminava todo o

resto de sua semana. A visão de Gar na varanda da

frente, logo depois dos serviços dominicais da igreja, era

muito especial para ela, não apenas pelos ovos e

vegetais que ele trazia e deixava na fruteira da cozinha,

mas por um motivo que tinha muito mais a ver com a

alma do que com suas necessidades físicas.

O gesto seguinte dele era colocar dois dólares sobre

o tampo de madeira da mesa. Então, Gar perguntava

sobre a saúde da filha, observando atentamente en-

quanto Leah tirava a criança do cesto e a entregava a

ele na cadeira de balanço. E o mais engraçado era que

Gar parecia estranhamente à vontade ali, balançando-se

na velha cadeira e tendo a filha nos braços. Leah

acabara achando mais fácil deixá-lo sozinho com a

menina do que ficar observando-o falar com Karen com

Page 71: O Milagre Do Coracão

voz suave e terna, ainda mais que algumas vezes suas

palavras eram tão baixas que mal podia ouvi-las.

Gar Lundstrom era, sem dúvida, um bom pai, um

homem gentil e carinhoso para com os filhos, mas que,

por outro lado, exibia uma aura de dureza e seriedade

que contrastava em muito com os momentos em que o

via com Karen.

Apenas quando tinha o bebê nos braços ou falava

com Kristofer ele afastava o véu de austeridade que

usava. Com Leah era sempre frio e formal. Quando a

cumprimentava com um aperto de mãos, ao chegar e ao

se despedir, seus dedos eram firmes, calejados; e os

lábios carnudos jamais se abriam em um sorriso ou em

um arremedo desse gesto cordial.

Sim, Gar não permitia que Leah partilhasse do calor

e afeto que dedicava aos filhos e isso era uma dor e

frustração que ela amargava em silêncio. As vezes, tinha

a impressão que Garlam Lundstrom ainda a fitava com

olhos acusadores. Mesmo quando a agradecia pelos cui-

dados com o bebê era muito reticente. O único gesto

generoso que se permitia era pagá-la bem por seus ser-

viços. Leah tinha certeza de que em nenhum outro lugar

conseguiria ganhar dois dólares por semana para cuidar

de uma criança, talvez nem mesmo em Nova York.

Page 72: O Milagre Do Coracão

— Estive pensando, Knis — ela disse com um sus-

piro, deixando as considerações de lado e tentando ser

prática. — Vou fazer o vestido de Karen amanhã mesmo

— prometeu, acariciando o tecido delicado.

O menino assentiu distraidamente. Seus olhos fixos

nas bochechas rosadas da pequena Karen.

— Vou ficar muito feliz quando chegar o verão e

pudermos levá-la para casa, dona Leah — confidenciou

emocionado.

— E seu pai já arrumou alguém para ajudá-los a

cuidar da casa, Knis? — indagou com voz pausada,

prendendo a respiração com medo de que a resposta

pudesse partir seu coração. A presença de um bebê

tinha lhe trazido uma nova alegria de viver, e, durante

os últimos quatro meses, sentira-se não como a babá,

mas como a própria mãe da criaturinha rosada e chei-

rosa que crescia a olhos vistos.

Todavia Knis negou com um movimento de cabeça.

— Não, a ara. Andersen disse que precisa cuidar das

coisas de Lester e que não poderá trabalhar para nós. Só

que meu pai acha que Lester já está velho demais para

que a mãe fique cuidando dele como se fosse um bebê.

Leah não pôde evitar de sorrir diante do

comentário. Lester Andersen era um homem enorme, de

Page 73: O Milagre Do Coracão

mais de vinte e cinco anos, que trabalhava na serraria

local.

Se a mãe não o mimasse tanto, ele poderia dar um

ótimo marido para uma das moças da comunidade, ou,

pelo menos, era isso que as mulheres diziam quando

conversavam no armazém.

De qualquer forma, onde Gar Lundstrom iria en-

contrar uma governanta para cuidar de sua casa e filhos

não era de sua conta, Leah decidiu com um suspiro.

Caso ele não tivesse conseguido alguém para faze-lo

quando acabasse o prazo de seis meses que lhe dera,

continuaria aceitando os dólares que lhe pagava e

guardaria metade do valor como vinha fazendo. Já havia

conseguido poupar uma boa quantia e, por sorte, seus

trabalhos com roupas também estavam prosperando,

tinha sete fregueses por semana.

— Dona Leah? — O rosto pequenino de Knistofer

exibia uma pequena caneta. — Preciso ir embora agora.

Papai está me esperando no armazém geral. Disse-lhe

que voltaria para casa na carroça com ele.

Leah assentiu, levantando-se de sua cadeira para

pegar a menina dos braços do irmão.

Page 74: O Milagre Do Coracão

— Quando o vejo de novo? — perguntou com

genuíno interesse, pois aprendera a amar não só a

pequena Karen mas também o doce Kristofer.

— Amanhã eu voltarei aqui. Meu pai disse que eu

não deveria vir com tanta freqüência porque poderei

importuná-la ou atrapalhar seus planos, caso precise

sair. Por favor, diga-me se não for conve… conve… —

hesitou, como se estivesse tentando lembrar qual fora a

palavra usada pelo pai.

— Conveniente? — Leah ajudou-o. — Oh, meu que-

rido, sua visita é sempre bem-vinda em minha casa —

garantiu, acompanhando-o até a porta da frente. Suas

mãos repousaram nos ombros pequeninos durante

alguns segundos, enquanto parou ao lado dele.

Kristofer hesitou por um momento, depois ficou na

ponta dos pés para beijar a testa da irmã que estava no

colo de Leah. Então ele partiu, a porta fechou-se às suas

costas e o menino saiu correndo pelo pequeno jardim. Já

no portão, virou-se um pouco e acenou para Leah, antes

de seguir pela rua em direção ao armazém geral.

Leah sorriu e voltou para a cozinha, balançando o

bebê nos braços enquanto o fazia.

— Ele virá amanhã de novo, Karen. E no domingo

seu pai também estará aqui para abraçá-la. Você é uma

Page 75: O Milagre Do Coracão

garota de sorte — murmurou sorrindo. Mentalmente,

calculou que ainda faltavam três dias para o domingo.

Três dias que lhe pareceriam muito mais longos e

intermináveis que o normal…

Para o Estado de Minnesota, a primavera até que

vinha sendo quente demais. Todos os fazendeiros pre-

viam que o corte do feno seria feito bem mais cedo na-

quele ano. No final de maio as plantações estavam altas

nos campos e os cavalos e vacas do pasto já estavam

acompanhados por seus bezerros e potros. As esposas

dos fazendeiros cuidavam dos pintinhos que acabavam z

de sair dos ovos, levando-os, ao primeiro sinal do vento

~ frio da noite, para dentro dos galinheiros onde podiam

ficar aquecidos sob o corpo emplumado das mães. Em

uma manhã de junho, ainda em meio ao efervescer de

tantas novidades, Leah adentrou no armazem geral com

Karen Lundstrom nos braços.

As senhoras em torno dela fofocavam sobre os

acontecimentos mais recentes, algumas repetindo os

mexericos que tinham ouvido no domingo depois da

igreja.

— Ah, a ara. Gunderson está aqui com a pequenina

de Gar — Hazel Nielsen proclamou em alto e bom tom.

Page 76: O Milagre Do Coracão

— Bonnie, venha atender sua amiga — completou,

puxando as cortinas que davam para o depósito da loja

e chamando a filha.

Todos os olhares se voltaram na direção de Leah e

ela limitou-se a sorrir para aquelas senhoras que se

reuniam a seu redor como se fossem abelhas em torno

de uma colméia.

— Como está a menina? — indagou Lula Dunbar, o

dedo indicador tocando a covinha do cotovelo rosado de

Karen. — Veja só como os olhos dela são azuis,

exatamente como eram os de sua mãe — ironizou,

então baixou o tom de voz: — Graças a Deus que não

são frios e maldosos como os do pai. Aquele homem

chega a me dar medo com aquela expressão de frieza.

— Deus me guarde! — exclamou e fez o sinal da

cruz. Leah engoliu um resposta seca e se voltou para

ouvir o que Eva Landers, a responsável pelos serviços de

correios da cidade, que tinha deixado sua escrivaninha

no canto da loja e seguia em sua direção. murmurou

com docilidade. — Céus, que coisa linda

— Ah, deixe-me ver esta menininha, Leah — Eva

ela é! — exclamou, acariciando os cabelos loiros de

Karen enquanto Leah seguia pelo corredor comprido da

loja. — Não dê atenção aos comentários de Lula —

Page 77: O Milagre Do Coracão

cochichou junto à orelha de Leah. — Ela não diz nada

agradável a respeito de um homem desde o dia que se

casou com Hobart.

Leah sorriu e pensou que isso era uma injustiça,

pois o hoteleiro lhe parecia um homem muito correto.

Porém, quem era ela para julgar o que acontecia entre

quatro paredes. Assim, sorriu para Eva que era casada

com o agente funerário da cidade, mas, que, ao con-

trário do marido, muito sério e formal, era uma mulher

sorridente e bastante simpática.

— Se não for incomodá-la, passarei em sua casa

mais tarde para tomarmos um chá juntas — Eva se

ofereceu, piscando para ela num gesto de cumplicidade.

— Faz tempo que não conversamos um pouco.

Leah assentiu de bom grado. Visitantes eram

freqüentes em sua casa, mas em geral iam atrás de

seus trabalhos como lavadeira, engomadeira e até

mesmo costureira, isto para não falar quando desejavam

que lhe indicasse um chá ou ungüento especial para

minimizar as dores. Na verdade, sua prática como

conhecedora de ervas tinha se difundido ainda mais

entre os moradores locais desde o último inverno,

quando começara a cuidar do bebê de Lundstrom.

Houvera uma época em que todas as senhoras da

Page 78: O Milagre Do Coracão

cidade pareciam estar com tosse e iam em busca de sua

ajuda, mas Leah sabia que, no fundo, o que todas

queriam era ver como estava se saindo com o bebê que

perdera a mãe no parto.

— Ah, Leah, que bom vê-la! — Bonnie Nielsen saiu

do depósito da loja e veio a seu encontro, espanando a

poeira da manga do vestido escuro à medida que

passava pela mãe no balcão. — O que posso fazer por

você hoje, querida?

Leah procurou a lista de compras no bolso do

vestido.

— Não preciso de muita coisa, Bonnie. Mas, por

acaso, já tem um pouco de ervilhas frescas?

Bonnie assentiu.

— Sim, a velha sra. Havelock plantou algumas

sementes ao lado da casa, num lugar que pegava o sol

da manhã e as cobria com um plástico todas as noites

para que não congelassem durante o último mês. Ela me

trouxe um pouco dessas ervilhas esta manhã mesmo.

— Vou levar meio quilo, se puder me arrumar, é

claro — disse consciente de que o produto era raro e

que precisava ser racionado para atender a outros fre-

gueses. — E como estão as batatas?

Page 79: O Milagre Do Coracão

— Temo que estejam um pouco mirradas —

Bonnie confessou. — Mas vou ver o que consigo para

você.

— Se está precisando de batatas tudo o que tem a

fazer é me pedir, sra. Gunderson — soou uma voz

máscula às suas costas.

Um burburinho espalhou-se pelo armazém quando

Gar Lundstrom fez a oferta em alto e bom som.

Leah virou-se lentamente. Um sorriso brincava em

seus lábios generosos.

— Eu não o tinha visto na loja, sr. Lundstrom

atalhou com polidez.

— Acabei de entrar, mas ouvi quando perguntou

pelas batatas. Tenho uma boa reserva estocada. Posso

trazê-las para a senhora amanhã.

Ela meneou a cabeça de um lado para outro.

— Oh, por favor, não se preocupe. Pode trazê-las no

domingo, quando vier visitar sua filha — argumentou,

sentindo um rubor tingir-lhe as faces. Era óbvio que

todas as mulheres presentes tinham se movido mais

para perto da cena apenas para ouvir o que diziam.

Garlam Lundstrom remexeu-se com certo descon-

forto, como se somente agora percebesse as inuitas

senhoras que o rodeavam.

Page 80: O Milagre Do Coracão

— Ora, talvez eu possa colocá-las numa sacola e

prendê-la no cavalo de meu filho quando ele vier à

escola amanhã. Kristofer poderá entregá-las à senhora.

Leah concordou.

— Seria ótimo. Pagarei o senhor assim que voltar-

mos a nos encontrar.

As sobrancelhas escuras foram arqueadas e os

olhos azuis se estreitaram.

— A senhora vai dá-las a minha filha também, não?

Leah engoliu em seco. Não queria começar uma dis-

cussão na frente de todos.

— Sim, claro.

— Então não precisará me pagar nada — Os olhos

azuis a percorreram de alto a baixo, suavizando-se ape-

nas quando ele sorriu para a filha com carinho. — Dê a

menina para mim uni pouco — solicitou num tom uni

tanto gutural, estendendo os braços em sua direção. —

Eu a levarei para sua casa e esperaremos a senhora lá.

Leah entregou a criança, murmurando palavras de

agradecimento, e logo Garjá lhe dava as costas e

deixava a loja com a filha no colo. Por um certo lado, até

que fora bom tê-lo encontrado, Karen estava ficando

cada vez mais pesada e o corpinho roliço começava a

deixar-lhe os braços adormecidos, pensou ela, tentando

Page 81: O Milagre Do Coracão

controlar as batidas aceleradas de seu coração e

também tentando justificar a razão de ficar tão feliz ao

vê-lo.

Assim que o homem alto e musculoso deixou a loja,

as mulheres explodiram em um falatório alucinado.

— Ele é mesmo muito sombrio — Lula Dunbar res-

mungou com uma careta, olhando para Leah por sobre

os óculos apoiados na ponta do nariz aquilino. — Faz

muito bem em se afastar de Lundstrom assim que ele

encontrar alguém para tomar conta da casa e das

crianças. Muito embora eu não nem imagine como

Lundstrom vai conseguir isso. Pelo que soube, já pro-

curou em toda a região e não encontrou nenhuma viúva

ou senhora sozinha que tenha aceitado a incumbência.

Leah deu de ombros.

— Eu não tenho pressa de me livrar do bebê. Gosto

de Karen. Ela me faz companhia.

Bonnie a chamou e Leah voltou-se satisfeita por não

precisar mais dar atenção ao bando de abutres de saia.

— Vai querer chá verde hoje? Recebemos um novo

carregamento. E que tal um pouco de fermento fresco

também? Estivemos sem durante quase uma semana e

lembro-me de que pediu um pouco na última sexta-feira.

Page 82: O Milagre Do Coracão

— Sim e sim, quero os dois — Leah respondeu com

um sorriso. — Chá verde é bom para o estômago e

depois de hoje — sinalizou discretamente em direção à

figura soturna de Lula Dunbar. — Certamente, vou

precisar de alguma coisa refrescante para me ajudar a

digerir o que ouvi.

Bonnie concordou, então falou num baixo e

confidencial:

— Todos pensam que a única maneira de Gar

Lundstrem encontrar alguém para tomar conta de sua

casa e dos filhos é se casando. — A voz soou-lhe em

falsete.

Aturdida, Leah pestanejou.

— Casar?! Acredita que ele vá se casar? — a

pergunta foi sussurrada. — Mas só faz cinco meses que

a esposa… — calou-se. Ainda tinha dificuldade de falar

sobre a morte de Hulda Lundstrom, embora a cada dia

que passava tivesse mais certeza de que não fora por

sua culpa.

— O luto é um privilégio reservado a poucos — Bon-

nie filosofou. — Por aqui um sujeite tem sorte se puder

encontrar uma mulher que queira assumir uma família

se ele perder a esposa de repente. Claro que um homem

bonito como Garlam não terá tantos problemas em

Page 83: O Milagre Do Coracão

convencer qualquer moça de bom gosto, mas, ainda

assim, não será tão fácil. — Os olhos de Bonnie bri-

lharam, como se ela própria estivesse fantasiando em

ser uma provável candidata.

— Você gosta dele, não, Bonnie? — Leah indagou.

— Sim, eu gosto. Apesar de tudo o que dizem sobre

ele ser duro e carrancudo. Acho que me parece uma

pessoa decente e honesta. Pena que eu não seja bonita

o suficiente para atrair a atenção de alguém como o

belo sr. Lundstrom.

Embora pessoalmente Leah achasse o mesmo, seu

bom coração não lhe permitia magoar a amiga.

— Não seja tão dura com você mesma, Bonnie.

Algum dia o homem certo irá aparecer e arrebatá-la

para a felicidade como se fosse um inesperado

relâmpago iluminando, para sempre, seu coração

solitário. Espere só para ver.

Bonnie sorriu e elas voltaram a se concentrar na

lista de compras. Sem Karen para carregar, Leah re-

solveu comprar também mais cinco quilos de farinha e

um bom pedaço de tecido para fazer uma roupa nova.

Seu pacote ficou tão grande que precisou segurá-lo com

as duas mãos.

Page 84: O Milagre Do Coracão

Minutes depois, caminhou com passos largos para

casa e encontrou Gar Lundstrom a sua espera. Ele

estava sentado na varanda, recostado sobre o pilar da

direita, as pernas longas apoiadas no segundo degrau,

Karen em seu colo, os pés pequeninos sobre a barriga

musculosa enquanto o pai a mantinha em pé.

A menina balançava para frente e para trás segu-

rando-se no dedo indicador de Gar, gemendo e rindo

deliciada diante do homem que a fitava com ternura.

— Karen gosta muito de tê-lo por perto — Leah co-

mentou, observando-os, ao galgar o primeiro dos

degraus.

Gar a encarou, a expressão taciturna como sempre.

— Ela está crescendo rápido demais. Perdi muito

deixando para vê-la apenas aos domingos.

Leah sorriu complacente.

— Bem, logo que contratar uma governanta poderá

tê-la de volta, sr. Lundstrom. Além do que, combinamos

que ficaria comigo durante seis meses. — E qualquer

período superior a esse seria um grande erro,

Leah falou consigo mesma, sabendo que, da

maneira que estava, já sofreria muito ao ter de se

afastar da criança, imagine só se aceitasse criá-la por

mais tempo.

Page 85: O Milagre Do Coracão

— Começo a me perguntar se não estive

procurando ajuda no lugar errado, sra. Gunderson. — Os

olhos azuis encontraram os dela e Leah ficou atónita

diante da expressão calculista que divisou nas

profundezas da cor do céu. Alheio ao desconforto que

provocava, Gar a percorreu de alto a baixo, parando um

pouco na altura dos seios fartos, da cintura fina e dos

quadris arredondados. Ela sentiu-se desfalecer sob tal

inspeção.

— Percebi que preciso mais do que uma

governanta, sra. Gunderson — prosseguiu Lundstrom

calmamente, os olhos azuis voltando a encarar o rosto

de maçãs salientes de Leah. — Vim à cidade hoje para

falar com a senhora sobre um assunto que interessa a

nós dois.

O coração deu um salto dentro do peito de Leah.

Ah, certamente estava enganada, ralhou consigo mesmo

ao dar-se conta do rumo de seus pensamentos. O

homem nem ao menos gostava dela, muito embora o

ódio inicial que demonstrara após a morte da esposa

tivesse desaparecido ao longo dos meses. Claro que Gar

não estava pensando em lhe fazer uma proposta! Isso

era bobagem de sua imaginação!

Page 86: O Milagre Do Coracão

— Vamos entrar — convidou-o, tomando fôlego para

que sua voz não soasse em falsete. Talvez fosse melhor

conversarem na sala de visitas, onde a atmosfera não

seria tão familiar e romântica, sim, ali poderia sentar no

sofá de crina de cavalo e ouvir a proposta que ele tinha

a lhe fazer. Porque, evidentemente, polo andar da

carruagem, estava prestes a ouvir uma proposta. O

mistério era qual seria o teor dela!

— Sra. Gunderson… Quero dizer, Leah — Gar a

seguiu até a cozinha, chamando-a pelo nome de ba-

tismo, como se o que tinha a dizer fosse pessoal e

íntimo demais para o uso de formalidade.

— Sim? — Leah se voltou para encará-lo, a mesa

disposta entre os dois e os dedos longos e femininos

ocupados em desatar o nó que prendia o barbante em

torno do enorme pacote.

Gar ergueu as mãos para dissuadi-la de seu intento.

— Por favor, deixe isso de lado por um momento e

sente-se. — Puxou uma cadeira, esperou até que ela

tivesse acatado a sugestão e só depois também o fez,

encarando-a.

Nervosa, Leah mordeu o lábio inferior, antecipando

as palavras que estavam por vir. Se ele lhe oferecesse o

emprego de governanta, teria de recusar para evitar que

Page 87: O Milagre Do Coracão

as fofocas destruíssem sua reputação de uma vez por

todas. Virou o rosto e o encarou, com o queixo

levemente erguido, como se o estivesse desafiando a

fazer a oferta que sabia seria recusada.

Novamente os olhos azuis a perscrutaram com

grande atenção, dessa vez, detendo-se nas tranças cor

de mel que ela usava como uma coroa em terno da

cabeça, depois observando as maçãs salientes e a boca

de lábios generosos que estavam cerrados numa

expressão firme e determinada.

— Vim lhe pedir que se case comigo, Leah

Gunderson — A voz era solene, as palavras simples e

lógicas, como se Gar as tivesse escolhido

cuidadosamente antes de lhe fazer a oferta. — Preciso

de alguém para cuidar de minha casa e criar meus

filhos. Quero minha filha conosco, na fazenda que é o

lugar ao qual ela pertence. Isso, sem falar que minha

casa está muito negligenciada. Estou entendendo bem?!

O senhor está me oferecendo uma casa suja e duas

crianças pequenas para cuidar?

Os ombros largos endireitaram-se quase

imperceptivelmente e as sobrancelhas escuras foram

arqueadas com leve desdém.

Page 88: O Milagre Do Coracão

— Talvez, mais do que tudo, eu esteja lhe

oferecendo um jeito de aliviar a culpa que pesa em sua

consciência, sra.Gunderson.

— Pois garanto-lhe que não sinto culpa alguma —

replicou com firmeza, os lábios tremendo levemente

enquanto a dor provocada por tal acusação a atingia

como um punhal afiado. Passara muitas noites acordada

relembrando os acontecimentos da morte de Hulda e

sabia que não tinha por que se sentir culpada. — Fiz o

melhor que pude por sua esposa, meu caro.

— Não importa — falou Gar, menosprezando sua

tentativa de se defender. — Se você vier morar em

minha fazenda como Leah Lundstrom, terá um lugar

para viver até o resto de seus dias. Prometo que a

tratarei muito bem e jamais erguerei um dedo para a

senhora, pois abomino violência física.

— Ora, ora, mas é mesmo uma oferta e tanto! —

Leah exclamou com leve cinismo. — Mas isso se um

marido e uma casa fosse o que eu estivesse procurando.

— Seu tom era cortante e ela sentiu uma pontada de

remorso ao vê-lo baixar o olhar.

— É tudo o que posso lhe oferecer — disse Gar após

alguns instantes. As mãos enormes ergueram-se e tra-

çaram um círculo no ar, indicando o espaço da pequena

Page 89: O Milagre Do Coracão

cozinha. — Pelo menos, viver em minha casa será muito

melhor do que viver aqui.

— Uma vez que estiver limpa e organizada, pode

ser.

— O que uma mulher jovem e saudável como você

conseguiria fazer em pouco tempo, quero dizer, orga-

nizar a casa. A senhora até mesmo encontraria uma

despensa cheia de batatas e vegetais prontos para seu

uso — completou, lembrando-a de suas necessidades.

Os raios de sol que penetravam através da janela

sobre a pia refletiram nos cabelos dourados de Gar

Lundstrom no momento em que ele ficou em pé. Era

impressionante como os cabelos claros brilhavam como

se fossem ouro liquido. Como um guerreiro viking, Gar

parou diante dela com as pernas longas e musculosas

levemente separadas e os ombros largos bem erectos.

Apenas a pequena figura da filha dele destoava do

quadro de virilidade. O rostinho redondo voltando-se

para encarar Leah. E talvez tenha sido justamente essa

última visão que tenha virado a situação em favor de

Garlam Lundstrom.

— Pensei que o senhor estivesse prestes a me

propor que me tornasse sua governanta — Leah

confessou.

Page 90: O Milagre Do Coracão

— Jamais me ocorreu receber uma proposta de

casamento a essa altura de minha vida. Vou fazer trinta

anos dentro de um mês.

Ele meneou a cabeça de um lado para outro.

— Pois não creio que isso seja uma barreira entre

nós. Não acho que uma pessoa de trinta anos seja velha.

Eu mesmo estou com trinta e quatro.

— E diferente para os homens — argumentou Leah.

— Mas eu já estou velha demais para ter filhos.

Os olhos azuis se transformaram em duas enormes

pedras reluzentes.

— Não é isso que estou querendo de você. Já tenho

dois filhos e também já tive uma mulher em minha cama

e não foi nada divertido vê-la morrer dando a luz a

minha filha. Não quero correr esse risco outra vez.

Então era assim que seria, Leah pensou consigo

mesma. Ela não conheceria o toque de um homem e

nem mesmo saberia como era fazer amor com o marido,

muito menos descobriria a mágica de perder a virgin-

dade e sentir-se feliz nos braços do homem que a tor-

naria mulher no sentido mais pleno da palavra…

— Você também já foi casada, Leah. Pode dizer com

franqueza que gostaria de viver esse tipo de

relacionamento outra vez? — indagou Gar com

Page 91: O Milagre Do Coracão

aspereza. — Sei por experiência que as mulheres não

gostam de intimidades na cama, elas apenas suportam

isso para poderem ter filhos.

Leah movimentou a cabeça de um lado para outro,

sem saber ao certo com o que estava concordando ou

discordando. Nunca tinha sido casada como dissera a

todos em Chicago e também em Kirby Falis. Apenas

tomara emprestado o nome de solteira de sua mãe para

poder fazer seu trabalho de parteira sem ser proibida ou

espezinhada por todos. E agora, quando surgia a pri-

meira oportunidade de descobrir como era um

casamento na intimidade, aquele homem estava lhe

dizendo que não saberia o que era ter o corpo

musculoso sobre o seu e que jamais a tomaria nos

braços para juntos gerarem uma criança de suas

próprias entranhas.

— Deixe-me pensar melhor no assunto, sr. Lunds-

trom — disse, orgulhosa pela firmeza de sua resposta,

embora interiormente as emoções estivessem total-

mente desordenadas.

Gar virou-se para colocar Karen no cesto, depois

voltou-se para Leah e estendeu-lhe a mão, esperando

até que ela retribuísse o gesto.

Page 92: O Milagre Do Coracão

As mão grande e calejada era quente e forte. Os

dedos entrelaçaram-se aos dela com firmeza. Não era

um aperte de mão como muitos outros, mas sim um

aperto de mão que selava um estranho acordo entre os

dois.

Leah sentiu o coração disparar e também percebeu

as batidas aceleradas do de Gar quando seu dedo indi-

cador tocou-o em um ponto do pulso. De repente, ficou

apavorada ao perceber que todo seu corpo vibrava e an-

siava por ele como nunca ansiara por homem algum.

— Virei procurá-la amanhã, Leah — prometeu Gar,

sem alterar o tom de voz.

A medida que as mãos se separavam, seus olhos

encontraram as íris azuis e ela pensou ver um resquício

de emoção àli. Tão certo quanto seu nome era Leah

Gunderson, sabia que Garlam Lundstrom estava lhe

escondendo algo. De repente, ele não lhe parecia tão

proibido quanto antes, nem tão reservado.

— Está bem.

Com um gesto de cabeça, que fez com que algumas

mechas douradas lhe caíssem sobre a testa, Gar se

afastou e saiu pela porta da frente.

— Ele não quer uma esposa — murmurou consigo

mesma, espiando-o através da janela envidraçada. —

Page 93: O Milagre Do Coracão

Quer uma governanta e alguém para cuidar das crian-

ças. — A saia longa do vestido cor de pêssego flutuou

em torno de seus tornozelos quando se virou e retornou

apressadamente à cozinha.

Da cesta de vime ecoou um gritinho deliciado à me-

dida que Karen estendia os bracinhos rechonchudos e

comemorava a aproximação de sua mãe postiça. Como

sempre, Leah sentiu-se emocionada diante de tal visão.

Movida por um impulso, ajoelhou-se ao lado do cesto.

— Você é tão encantadora, minha querida! — mur-

murou, enroscando os dedos nos cachinhos dourados.

— Seu irmão também é uma criança adorável.

Entre os dois, não sei qual toca mais meu coração.

A menina riu em resposta ao comentário e Leah

inclinou-se para beijá-la na testa. Segundos depois, sus-

pirando, levantou-se e foi até a pia a fim de esquentar a

água para o chá que prometera a Eva Landers.

O sol brilhava altaneiro no céu, quase ofuscando-a

com sua claridade e ela pestanejou, não só para se livrar

do brilho excessivo quanto para se libertar dos

pensamentos e desejos traiçoeiros que a torturavam.

Sim, a imagem de Gar Lundstrom, alto e viril, um

homem da terra com cabelos dourados e olhos azuis, a

perseguia sem trégua. Como poderia se sentir tão

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atraída por alguém que a desprezava? Alguém que

poderia lhe roubar não só o coração mas também a

alma para sempre…

De súbito, Leah teve medo, medo de dizer sim e

terminar se perdendo na grandeza do amor que já sentia

por Garlam, mas também medo de dizer não e vê-lo se

casando com outra mulher, o que o tornaria um homem

mais proibido do que nunca…

CAPÍTULO IV

— Eu me casarei com você, Garlam Lundstrom —

Leah repetiu as palavras olhando para o espelho e

observou o rubor subindo-lhe do pescoço para as faces.

Ela chegou mais de perto do vidro mágico, tentando

controlar o tremor das mãos enquanto seus dedos

trabalhavam apressadamente para fechar os botões do

vestido.

Respirando fundo, arriscou outra vez:

— Está bem, vou me casar com você, Gar. — Ah,

assim estava bem melhor. Era uma resposta mais na-

tural e sincera. Os olhos piscaram e ela observou o tom

Page 95: O Milagre Do Coracão

azulado dos próprios olhos no espelho, surpresa ao

perceber o brilho intenso que havia ali. Céus, Gar

poderia achá-la uma oferecida se o fitasse com olhos

lânguidos e sensuais. O que haveria entre eles deveria

ser um acordo de negócios, se o entendera bem, e agora

lá estava ela corando e pestanejando como se fosse

uma adolescente apaixonada e impressionável.

De súbito, uma sonora batida na porta chamou-lhe

a atenção e ela se voltou do espelho oval, que estava

pendurado sobre a cômoda, para a porta de entrada.

Ora, pelo menos Gar não iria se casar com uma mulher

feia e desengonçada, pensou, e, no mesmo instante,

ralhou consigo mesma por estar sendo tão pretensiosa.

De qualquer forma, a verdade era que sua pele era

viçosa e sem nenhuma mancha ou imperfeição, os olhos

de um azul-claro, não tão impressionantes quanto os de

Gar, mas ainda assim bonitos, e o nariz clássico

compensava as maçãs salientes do rosto.

A batida ecoou mais uma vez pela casa e o gritinho

extasiado de Karen deixava claro que a menina tinha

divisado o pai através da porta de tela.

— Leah? Você está aí? — A voz de Garlam Lunds-

trom era estridente e, sem esperar por uma resposta,

ele abriu a porta e entrou na saia.

Page 96: O Milagre Do Coracão

Leah apressou-se em atendê-lo.

— Estou aqui — falou, a respiração ofegante por

causa das batidas aceleradas de seu coração.

Gar olhou da filha para ela.

Karen estava tentando se erguer na beirada do

cesto, inclinando-se em direção ao pai e resmungando

em sua linguagem peculiar. Sempre que Gar Lundstrom

entrava na pequena casa, o silêncio do mundo de Karen

deixava de existir e a menina ria e falava ao mesmo

tempo. Claro que as palavras que emergiam dos lábios

pequeninos poderiam não fazer qualquer sentido para

alguém que as escutasse pela primeira vez, mas para o

pai que a fitava com adoração parecia ser um presente

dos céus. E, em sua inocência, Karen retribuía o amor

paterno com todo fervor de seu coração angelical.

Agora Gar se ajoelhava ao lado da menina e acari-

ciava-lhe a cabeça coroada de cachinhos dourados.

— Pensei tê-la ouvido conversar com alguém. Tem

mais alguém aqui com você, Leah?

Ela negou com um movimento de cabeça.

— Não, estou sozinha. Costumo conversar com Ka-

ren quando saio de perto. Isto a deixa muito mais

tranqüila — disse, sufocando um sorriso. Certamente, ao

saber que estava prestes a aceitar sua proposta, Garlam

Page 97: O Milagre Do Coracão

Lundstrom iria ficar muito satisfeito, mas era melhor dar-

lhe a notícia com cuidado.

Alheio aos sentimentos que despertava, Gar ficou

em pé, o que fez com que Karen começasse a chorar.

— Ah, pequenina, você tem um pulmão e tanto.

Deixa seu irmão no chinelo! — curvou-se sobre a filha e

estendeu a mão para acariciá-la. — Mas agora fique

quietinha que preciso falar com sua amiga, a Sra.

Gunderson.

Como se entendesse, Karen fungou um pouco e es-

fregou os olhinhos com o punho, depois abriu um sorriso

inesperado.

— Ela está tentando convencê-lo a ceder a seus de-

sejo — Leah disse com suavidade, totalmente impres-

sionada com os muitos recursos de sedução da criança.

— Sim, mas e quanto a você? — perguntou Gar,

tomando-a de surpresa. — Será que vou conseguir con-

vencê-la a dizer sim, sra. Gunderson? Vai me dar uma

resposta hoje?

O comentário espirituoso era algo totalmente novo

na imagem que tinha de Gar e Leah ficou momenta-

neamente sem fala enquanto perscrutava o rosto bonito.

Depois de uma breve hesitação, meneou a cabeça num

Page 98: O Milagre Do Coracão

gesto afirmativo, colocando as mãos no bolso do avental

porque não sabia o que fazer com elas.

— Sim, pensei muito em sua proposta, Sr. Lunds-

trom. Aceito me casar com o senhor. Vai trazer alguns

benefícios para mim.

— E para mim também — ele admitiu. Seu olhar

recaiu sobre o bebê no cesto. — Isto para não falar em

minha filha. A propósito, Kristofer está esperando lá fora

para saber qual foi sua resposta. Meu filho está muito

ansioso, Leah. Já se tornou muito importante para Kris.

— Brindou-a com rápido sorriso. — Adora os biscoitos e

pães que você prepara.

— Kristofer é um menino maravilhoso. — Estranhos

comentários estavam fazendo, Leah concluiu. Falar so-

bre crianças e benefícios quando tudo o que queria ouvir

era que o futuro marido a apreciava como mulher. Como

se não bastasse, não pudera nem mesmo usar a postura

e inflexão de voz que tanto treinara diante do espelho.

O próximo sábado seria bom para mim. Você tem

alguma objeção? — inquiriu Gar, perscrutando Leah com

as íris azuis.

— Não. Estarei pronta até lá. Avisarei meus

fregueses durante essa semana. O sr. Dunbar também

terá de conseguir alguém para cuidar dos lençóis e

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toalhas do hotel, a não ser que ele queria levá-los até

sua fazenda.

Gar meneou a cabeça de um lado para outro.

— Não, isto não. Você ficará muito ocupada com as

coisas da casa. Nem pense em continuar trabalhando

para o hotel dos Dunbar. Também foi a última vez que

trabalhou para os solteirões da cidade, Leah. — As

palavras eram firmes, autoritárias e nem um pouco

agradáveis de se ouvir no que dizia respeito a ela. Não

que fosse sentir falta da tábua de lavar, mas sim porque

era uma decisão que deveria tomar sozinha, sem a

menor interferência de quem quer que fosse.

Ergueu o queixo com orgulho e quase riu ao

reconhecer a atitude desafiadora que estava prestes a

tomar.

— Vou dizer isso aos meus fregueses — prometeu

no tom mais digno que foi capaz de proferir. — Mas

tenho tempo suficiente para continuar trabalhando até o

final desta semana e assim ganhar mais um dinheiro

extra, sr. Lundstrom.

A expressão que se apoderou daqueles incríveis

olhos azuis era como um mar em dia de tormenta. Uma

ruga vincou a testa altiva e máscula de Gar.

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— Não vou discutir com você sobre isso, Leah.

Afinal, ainda não estamos casados. Mas, guarde bem

uma coisa, uma vez que aceitou ser minha esposa e

viver sob meu teto, irá ouvir e respeitar meus desejos e

opiniões.

Ela cerrou os dentes, tentando controlar-se para não

ser rude, mas, ao mesmo tempo, recusando-se a ouvir

tal comentário de cabeça baixa.

— Certamente vou respeitar seus desejos em

muitos aspectos, sr. Lundstrom. No entanto, o senhor

não está se casando com uma garotinha inexperiente.

Sou uma mulher que já viveu sozinha e cuidou do

próprio nariz durante muitos anos. Não estou

acostumada a pedir favores e esperar que o senhor dê a

última palavra sobre tudo. Cumprirei minhas obrigações

para com seus filhos e sua casa e, a menos que esteja

enganada, isso é tudo o que espera de mim.

Uma pequena careta desfigurou o rosto anguloso.

— Creio que acabaremos nos entendendo no final,

senhora. Enquanto isso, vamos tentar fazer o melhor

para viver em harmonia — Gar declarou, avaliando-a

com atenção. Sim, decididamente ela era uma mulher

muito bonita. Parecia alta, com aquela postura ereta que

deixava claro que não estava acostumada a se curvar

Page 101: O Milagre Do Coracão

diante de ninguém, mas, apesar disso, chegava-lhe na

altura dos ombros. Tinha uma figura graciosa, sem ser

excessivamente magra. Os olhos azuis eram quase

acizentados e os cabelos de um louro-escuro, com

reflexos cor de mel. O que mais o impressionava eram

os seios redondos e firmes e a cintura fina que,

aparentemente, não pedia o recurso de nenhum

espartilho.

As faces de Leah tornaram-se mais do que rubras

quando ela se deu conta da avaliação por que passava.

— Será que fui aprovada, senhor? — indagou, cur-

vando os lábios com ironia.

A resposta de Gar não veio com a facilidade

esperada. Ele estava tão entretido com os atributos

femininos da futura noiva que mal ouvira a pergunta

mordaz.

Sim, Leah Gunderson era uma mulher muito

desejável, concluiu, encantado ao pensar em como os

quadris arredondados e os seios fartos contrapunham-se

ao abdome plano e a cintura fina. Certamente, ela

deveria ter um corpo escultural, capaz de enlouquecer

uni homem e… Mas, céus, no que estava pensando! Isso

não iria fazer diferença para um casamento como o

Page 102: O Milagre Do Coracão

deles, iria? SÓ o bem-estar das crianças o interessava,

nada mais.

— E, então, sr. Lundstrom? — Leah insistiu na per-

gunta, encarando-o com irritação.

Naquele momento, Gar a fitava com pensamentos

mais sóbrios. Observou a bota gasta que aparecia sob o

vestido azul-marinho e decidiu que talvez a futura noiva

estivesse precisando de algumas roupas novas.

— A senhora não iria comigo ao armazém dos

Nielsen na próxima semana, antes do casamento? —

interrogou. — Pode comprar o que estiver precisando…

Eu pago.

Os olhos dela se estreitaram diante de tal oferta e o

queixo quadrado foi erguido num gesto desafiador.

Ali estava uma mulher orgulhosa, se é que conhecia

um pouco do gênero feminino, Gar concluiu. Ela não

aceitaria sua oferta com docilidade. Talvez precisassem

de algum tempo para construírem um relacionamento

mais sólido e estável antes de tentar se aproximar como

gostaria.

— Não creio que seja uma boa idéia — contradisse-

o, entreabrindo os lábios carnudos para proferir sua re-

cusa. A medida que o fazia, a língua rosada tocou-lhe a

Page 103: O Milagre Do Coracão

parte superior dos lábios umedecendo-o com um misto

de delicadeza e sensualidade.

A visão o fascinou como há muito não acontecia. De

repente, a vontade de se aproximar e toma-la nos

braços o fez cerrar os punhos e baixá-los junto ao corpo

que queimava com um fogo que até já esquecera como

era. Que tolice! Leah era uma mulher decente, com uma

ótima reputação, e, por certo, não o queria em sua

cama!

— Não se preocupe que eu mesma posso bancar as

compras que, porventura, precisar fazer — ela atalhou,

tirando-o de seus devaneios.

— Mas ficaria feliz em poder lhe comprar um vestido

para nosso casamento, Leah — tornou Gar, esforçando-

se para não ofendê-la outra vez. — Sapatos também e

tudo o mais que você precisar.

Como imaginava, Leah recusou com um movimento

de cabeça.

— De jeito nenhum. Tenho algum dinheiro no banco

e não vou chegar a sua casa como se fosse uma indi-

gente, sr. Lundstrom. Todavia, devo lhe confessar que

sou uma pessoa de hábitos simples. Tudo o que vou

precisar é de uma cômoda e alguns ganchos na parede

do quarto para guardar meus pertences.

Page 104: O Milagre Do Coracão

Gar assentiu, estranhamente satisfeito com o com-

portamento orgulhoso dela. Sim, talvez aquela mulher

fosse mesmo perfeita para sua vida.

— Certo, então estarei aqui no sábado de manhã.

Deixe tudo preparado que cuidarei do resto.

Leah assentiu e o acompanhou até a varanda, ace-

nando para Kristofer que estava na carroça.

Foi essa imagem de doce feminilidade que Gar cap-

tou enquanto incitava os animais a partirem. Mas,

intuitivamente, algo dentro dele reconhecia que Leah

Gunderson era muito mais do que uma mulher frágil e

dócil, ela era prática e eficiente e tinha um brilho

enigmático no fundo dos olhos azuis que o fazia ansiar

em descobrir todos os seus segredos.

— Uma coisa de cada vez, Garlam. Uma coisa de

cada vez…

— Falou comigo, papai? — Kristofer perguntou, ain-

da eufórico com a notícia do casamento.

— Não, Kris, não falei. Estava pensando em voz alta.

— Ouvi as meninas dizerem que é isso que

acontece quando estamos apaixonados, papai —

gracejou em sua inocência pueril e nem imaginou que

era a única pessoa em toda aquela história a estar

seguindo a trilha da verdade.

Page 105: O Milagre Do Coracão

— Mas se você casar com Lundstrom, quem vai cui-

dar de minha roupa? — Brian Havelock ficou parado

diante da porta de Leah, com a pilha de roupas nas

mãos, e encarando-a com olhar suplicante.

Aos olhos dela, o jovem cavalheiro não passava de

um menino crescido. Se ele fosse dez anos mais jovem,

poderia se curvar e beijá-lo nas faces rosadas para con-

solá-lo, ou então, se fosse dez anos mais velho, talvez

pudesse ter aceitado sua corte, emendou mentalmente.

— Sabe que dependo de você, Leah! — Brian con-

tinuou, encarando-a com tristeza.

— Ora, mas estou certa de que a sra. Pringle ficará

feliz em tê-lo com freguês, Brian — respondeu ela,

segurando as moedas que o jovem acabava de lhe co-

locar nas mãos.

— Vou lhe dizer uma coisa, madame, está perdendo

seu tempo com aquele homem — Brian declarou, en-

chendo-se de coragem e dando um passo a frente. — Eu

seria um bom marido para você. Tenho um emprego fixo

na serraria e minha casa já está quase pronta.

Leah afastou-se dele, protegendo-se atrás da porta

da sala. Sua voz era firme quando tratou de pôr um fim

Page 106: O Milagre Do Coracão

às últimas esperanças do jovem pretendente, mas não

conseguia deixar de sentir pena dele.

— Sinto muito desapontá-lo, Brian. Mas, já tinha lhe

dito no inverno passado que sou muita velha para você.

Brian abriu a boca para protestar, porém, Leah si-

lenciou-o com um gesto de mão.

— Não importa. Já tomei minha decisão. Vou me

casar com Garlam Lundstrom no próximo sábado, por-

tanto, é a última vez que lavo suas roupas.

Sem alternativa, o rapaz aquiesceu e deu um passo

atrás.

— Sim, já entendi — resmungou e, girando nos cal-

canhares, seguiu pelo caminho que serpenteava por

entre os canteiros do jardim.

Brian iria ser um bom marido algum dia, para a

mulher certa, é claro, ponderou Leah, observando-o se

afastar. Jovem e ansioso por agradar, tinha as quali-

dades essenciais ao romantismo que as mocinhas bus-

cavam. Kirsten Andersen perdera um bom partido

quando desistira de conquistar Brian Havelock para se

casar com um sujeito da cidade vizinha.

Entrando na sala e se curvando sobre o cesto de

Karen, Leah pegou a menina e ergueu-a para o alto,

rodopiando alegremente.

Page 107: O Milagre Do Coracão

— Ah, logo você irá morar com seu pai, minha pe-

quenina — cantarolou.

— E a senhora também, dona Leah — soou uma

vozinha infantil, vinda da porta de entrada.

Leah voltou-se para encarar o recém-chegado.

— Ah, Kristofer, você me assustou. Não o vi chegar.

O menino abriu a porta de tela e entrou na sala.

— Está feliz porque também vai morar com a gente,

dona Leah? — encarou-a esperançoso.

— Oh, sim — assegurou-lhe prontamente. — Vamos

nos divertir bastante juntos, Kristofer. Karen, você e eu.

Sempre que pudermos iremos colher flores no campo e

você também poderá me ajudar a buscar o leite no

celeiro e separar os ovos para vender.

— A senhora não gosta de caçar? — interrogou o

garoto, entortando os lábios como se as opções que ela

acabava de enumerar não lhe parecessem tão

atraentes.

Leah negou com um movimento de cabeça.

— Eu jamais seria capaz de matar um ser vivo, meu

querido — confessou com olhos brilhantes.

— Ah, mas caçar é diferente, senhora — Kristofer

garantiu-lhe. — Só podemos matar o que vamos comer,

Page 108: O Milagre Do Coracão

meu pai disse que assim não é pecado. A não ser, é

claro, no caso das ratazanas e cobras.

Leah estremeceu.

— E aparecem muitas delas na fazenda de vocês,

Kris?

— De vez em quando — o menino contou, dando de

ombros.

Leah ajeitou Karen nos braços e então a ofereceu ao

irmão, que tinha vindo visitá-la com um intuito óbvio.

— Você queria ver Karen? Deseja pegá-la um

pouco? Os olhos azuis se iluminaram diante da proposta.

Leah entregou-lhe o bebê, mas ajudou-o a sustentar o

peso até que Kris se acomodasse na cadeira de balanço.

— Pode se ajeitar na cadeira e ficar à vontade — ela

disse, sabendo que os dois irmãos iriam falar em sua

própria língua durante um bom tempo.

Era sempre assim, Kristofer sussurrava palavras que

Leah não conseguia entender e Karen ria deliciada ao

mesmo tempo em que proferia os seus eternos res-

mungos que para o menino pareciam soar como uma

frase inteligível e lógica.

— Leah? — Da varanda, a terceira visitante dos

últimos dez minutos chamou-lhe a atenção. — Está

ocupada?

Page 109: O Milagre Do Coracão

— Entre, Eva. Estou me preparando para colocar o

jantar no fogo.

Leah sorriu para a mulher que se apressou em cru-

zar a sala e olhou cautelosa para Kristofer.

— Tome cuidado para que ela não tente ficar em pé

e caía de seu colo, Kris — preveniu-o com o carinho de

sempre.

— Pode deixar, dona Leah. Eu tomo — Kristofer

prometeu pacientemente.

— Chegou uma carta para você — Eva declarou,

assim que entrou na cozinha. — E a primeira que recebe

desde que chegou à Kirby Falls, por isso a trouxe assim

que pude. Espero que não sejam más notícias, querida.

— Puxando o envelope do bolso, Eva estendeu-o à

amiga e observou preocupada enquanto Leah

inspecionava a letra, o selo e depois o anverso do

envelope.

Os dedos longos alisaram o papel para desfazer

uma dobra que havia em uma das extremidades.

— Não vai abri-la? — A curiosidade de Eva era

evidente, mas Leah não se importou, pois sabia que a

mulher estava preocupada e não apenas interessada em

saber mais sobre sua vida para sair contando às

senhoras que freqüentavam o armazém dos Nielsen.

Page 110: O Milagre Do Coracão

— Sim, creio que vou — anunciou, como se tivesse

acabado de tomar a decisão. Seus dedos procuraram a

aba do envelope e ela a ergueu para encontrar a carta

que estava dentro. O papel translúcido e brilhante

estava coberto, de alto a baixo, por uma caligrafia ar-

redondada e feminina.

Leah virou-o nas mãos, procurando pela última linha

para identificar o remetente, antes de ler o que estava

escrito.

— Anna Powell — sussurrou, a voz trêmula deixava

transparecer uma nota de medo. Seus olhos voltaram ao

começo da página e ela devorou a mensagem, sem se

dar conta de que estivera prendendo a respiração desde

o momento que descobrira que fora Anna quem a

enviara. Ao terminar de ler, sua cabeça girava e o rosto

ficou pálido como o papel que trazia nas mãos. Trêmula,

puxou uma cadeira e deixou-se cair abruptamente.

— Leah!? Você está bem? — Eva ajoelhou-se a seu

lado, o rosto transfigurado pela preocupação, e segurou-

a pelo pulso.

— Sim… sim, claro que estou — Leah balbuciou, a

boca seca e os lábios rígidos embora ainda tentasse en-

saiar um sorriso. — É só uma carta de uma mulher que

conheci lá em… lá no lugar de onde vim.

Page 111: O Milagre Do Coracão

Eva franziu o cenho, não parecia convencida de que

Leah estava mesmo bem.

Pestanejando para afastar a tontura e também o

medo do passado, Leah encheu o peito de ar e tentou

falar com a maior naturalidade que conseguiu.

— Minha amiga só escreveu para contar que tem

alguém me procurando. Acho que preciso lhes mandar

meu novo endereço, não? — gracejou, conseguindo se

libertar dos dedos de Eva em seu pulso e segurando a

mão da amiga num gesto de agradecimento. — Pode

ficar tranqüila que está tudo bem.

— Não sei, não. Por um minuto você ficou tão

estranha — Eva murmurou. — Parecia até que estava

vendo um fantasma, embora o bom Deus saiba que eu

não acredito nestas bobagens de criaturas do outro

mundo.

— É, nem eu — Leah meneou a cabeça de um lado

outro. — Não acredito mesmo em fantasmas… — Ainda

assim, na carta que dobrara em quatro e ainda segurava

nas mãos, recebera notícias de um fantasma do passado

que precisava evitar a qualquer custo…

Page 112: O Milagre Do Coracão

O pesadelo estava de volta depois de cinco meses

paz. Talvez, o fato de ter tido Karen a seu lado,

ocupando-a e alegrando-a com sua presença inocente, a

tivesse ajudado a esquecer um pouco o passado. O

escuro não lhe parecia tão tenebroso ultimamente, pois

tinha as lembranças do riso inocente de uma criança, do

doce aroma dos cabelos loiros e cacheados e do brilho

amoroso que divisava no fundo dos olhos azuis do an-

jinho que tinha sob seus cuidados para ajudá-la a afastar

o pavor da morte.

Sim, durante um bom tempo o terror da morte pa-

recia ter ficado bem longe de Kirby Falis, Minnesota. Tão

longe quanto as ruas de Chicago. E também tão longe

quanto a mansão ricamente decorada de Sylvester e

Mabelle Taylor. Aquela casa de horrores onde um bebê

tinha sido morto pelas mãos ensandecidas da própria

mãe. A cabeça dele torcida para o lado, a respiração

sufocada para sempre e o corpo perfeito e pequenino

inerte e silencioso para toda a eternidade…

Leah deu um longo suspiro e fechou os’ olhos para

esquecer o que vira muitos anos antes. Todavia, ador-

mecida ou acordada, as noites sempre traziam consigo

as terríveis recordações da morte daquela criança em

Page 113: O Milagre Do Coracão

Chicago e ela não tinha como fugir desse fantasma que

vivia em suas lembranças.

Levantou-se sabendo que não conseguiria mais dor-

mir. O robe de lã trouxe um pouco de calor a seu corpo

frio quando ela o fechou em torno de si, os chinelos de

pêlos também a aqueceram e ela deixou o quarto.

Os gravetos que ainda estavam incandescentes no

fogão precisavam de apenas um pouco mais de lenha

para que voltassem a crepitar e aquecer a cozinha. No

entanto, por precaução, Leah o alimentou com uma

quantidade de lenha muito maior do que a necessária

para ter o fogo aceso durante algumas horas. Colocou

água para ferver e torrou alguns grãos de café. O forte

aroma espalhou-se por todos os cômodos da casa e ela

inalou-o, sentindo-se reconfortada pelo cheiro familiar.

Suspirando, sentou-se na cadeira de balanço e

apoiou os pés no assoalho para dar impulso ao corpo e

manter a cadeira em movimento. A carta que recebera

estava no bolso do robe e ela a pegou, embora já

houvesse decorado o conteúdo da mensagem.

Anna Powell, uma amiga e ex-vizinha, era a única

pessoa que sabia do paradeiro de Leah Gunderson. Ape-

sar das pressões, Anna havia se mantido fiel a sua pro-

messa de não delatá-la; não divulgara nada sobre o des-

Page 114: O Milagre Do Coracão

tino de Leah. Contudo, há poucas semanas, ela tinha

sido interrogada por um arguto detetive de uma agência

famosa em Chicago e fora por isso que escrevera, queria

preveni-la de que a estavam procurando.

Felizmente a proposta de Garlam Lundstrom tinha

vindo em boa hora. Não havia nada melhor para en-

cobrir as pistas que deixara do que mudar de nome,

Leah decidiu. Uma mulher de nome Gunderson não

existiria mais em poucos dias, em seu lugar, haveria

uma distinta senhora, casada com um próspero fazen-

deiro de Kirby Falis, chamada Leah Lundstrom. E, com a

proteção de um marido como Garlam, talvez até mesmo

um homem tão rico quanto Sylvester Taylor tivesse

dificuldade de encontrá-la e culpá-la por um pecado que

não cometera.

Quando o simples pensamento trouxe um pouco de

paz à alma agoniada de Leah, a filha de Garlam

proclamou seu desconforto, provavelmente causado por

uma fralda molhada, em alto e bom som. Leah se

levantou no mesmo instante, um sorriso substituindo o

olhar sombrio de antes, seus passos leves, como se

pisassem em nuvens de algodão, enquanto seguia para

junto da menina.

Page 115: O Milagre Do Coracão

Os cobertores tinham sido jogados para o lado, as

pernas roliças e as mãos cheias de dobrinhas agitavam-

se freneticamente no ar. Sim, Karen Lundstrom estava

implorando para ser tomada nos braços e Leah atendeu

ao pedido que não era nada discreto.

— Tudo bem, minha querida. Shh, shhh. Mamãe

está aqui, agora. — As palavras sussurradas acalmaram

o bebê e Karen demonstrou sua satisfação na linguagem

peculiar que usava ao perceber que Leah a levava

consigo para a cozinha.

A luminosidade da arandela ajudou na troca da

fralda suja por uma limpa e, logo depois, uma suave

canção de ninar, e o movimento ritmado da cadeira de

balanço, fizeram os olhinhos azuis se fecharem outra

vez. Em minutos, Karen estava profundamente

adormecida, mas a cadeira continuou a ser

movimentada para frente e para trás, para frente e para

trás, como se acompanhasse o ritmo dos pensamentos

da mulher que a ocupava…

Foi só quando o sol já se erguia no horizonte que a

cabeça de Leah finalmente tombou para o lado e suas

pálpebras cederam ao peso do sono…

Page 116: O Milagre Do Coracão

A carroça da fazenda reluzia ao sol com aquela nova

pintura vermelha. Algo totalmente novo no que dizia

respeito a Garlam Lundstrom. Sim, uma tinta vermelha e

brilhante cobria a madeira e os assentos tinham sido

forrados com almofadas de couro, acolchoadas e muito

mais confortáveis para condutor e passageiros.

No sábado de manhã, vários olhares curiosos acom-

panharam o veículo enquanto este seguia rumo à rua

principal de Kirby Falis. Acomodados nos bancos novos e

macios estavam Garlam e seu filho, o menino acenava

orgulhoso para todos os conhecidos que avistava.

- Ah, papai, as pessoas estão mesmo gostando de

nossa carroça, não estão? — Os pés de Kristofer

chutaram a parte frontal da carroça, acompanhando o

ritmo do trotar dos cavalos.

Um simples olhar reprovador foi o suficiente para

fazê-lo parar.

- Desculpe, pai. Eu estou empolgado porque vamos

buscar dona Leah e todas as coisas dela hoje. Esta

semana demorou bastante a passar, não acha?

Gar assentiu, seu rosto ficando mais e mais verme-

lho ao perceber os olhares curiosos que as pessoas da

cidade lhe dirigiam enquanto rumava para seu destino.

Page 117: O Milagre Do Coracão

Ora, pintar a carroça, por certo, tinha sido uma

tolice sua, mas a verdade era que a velha carroça

estava parecendo tão malcuidada… E depois, a tinta

vermelha estava sobrando no celeiro, pois fora usada

para pintá-lo no ano anterior.

Isto sem falar que Kristofer também tinha insistido

muito para que o fizesse.

A sombra de um sorriso brincou nos lábios de Gar.

Logo ele erguia uma mão para cumprimentar Joseph

Landers, parado ao lado da agência funerária, nos fun-

dos da qual também funcionava a marcenaria. O agente

funerário tinha dois ofícios e sempre exalava um cheiro

de madeira fresca. Sim, era um cheiro agradável, Gar

decidiu, controlando o trotar dos animais.

Osol brilhava forte no céu e os homens sentados na

varanda do Hotel Dunbar se abanavam com folhas de

jornal e um tipo exótico de leques de papel colorido.

Enquanto Gar passava, a porta do hotel se abriu e Lula

Dunbar saiu na calçada, acenando-lhe em saudação.

Então, de repente, a mulher abriu a boca e seu rosto

longo e fino assumiu uma expressão aturdida.

— Eu nunca antes tinha visto… — ouviu-a a dizer

num tom ríspido, mas as demais palavras se perderam

no ar quente da manhã de verão.

Page 118: O Milagre Do Coracão

— Acho que a sra. Dunbar ficou impressionada com

nossa carroça vermelha — Kristofer comentou alegre-

mente, remexendo no assento como se não pudesse

agüentar ficar parado por muito mais tempo.

— Sim, já percebi — o pai respondeu com uma pe-

quena caneta, puxando as rédeas ao passar pelo ar-

mazém geral. Desceu minutos depois de Kristofer já ter

entrado na loja.

— O senhor deveria pintar algumas flores na lateral

da carroça — disse EricMagnor, que se encontrava junto

ao gradil onde se amarravam os animais. O dono da

serraria, um senhor grisalho e de boa aparência, na casa

dos cinqüenta anos, riu do desconforto de Gar.

— O fato de se tornar um noivo deve tê-lo feito

bem, Lundstrom. Talvez sua futura esposa possa

adicionar os toques finais na carroça para você. As

mulheres são muito habilidosas com desenhos.

Gar resmungou uma resposta qualquer,

amaldiçoando silenciosamente a decisão que tomara de

seguir o conselho de Kristofer.

— Ah, pai, a dona Leah vai gostar muito se pintar-

mos a carroça e a deixarmos como nova — dissera-lhe,

e, por alguma estanha razão, naquele momento a pin-

Page 119: O Milagre Do Coracão

tura lhe parecera uma boa idéia. Agora, no entanto,

arrependia-se do fundo de seu coração.

— Não ligue para o que o sr. Magnor disse, sr.

Lundstrom — Bonnie Nielsen atalhou, surgindo na porta

do armazém geral. — Nós achamos que sua carroça está

muito bonita assim. — Pouco atrás dela uma meia dúzia

de senhoras murmuraram sua aprovação, tendo

Kristofer no meio delas. — Kris nos contou que foi ele

quem o convenceu a fazê-lo e posso apostar que Leah

vai adorar — Bonnie completou, segurando a porta

aberta para deixá-lo entrar.

— Por falar na ara. Gunderson, a que horas será o

casamento? — Orville Hunsicker indagou. — Eu até com-

prei uma gravata nova para assistir ao acontecimento.

— Dentro de uma hora — Gar respondeu, sentindo o

rubor tomar conta de seu pescoço e subir para as faces.

A situação era ainda pior porque tinha de passar em

meio ao grupo de senhoras que o rodeavam como

abelhas junto à colméia. — Preciso de algumas coisas,

srta. Nielsen — falou à Bonnie, entregando-lhe uma

pequena lista. — Se puder deixá-las separadas, passarei

aqui para pegá-las depois que tiver carregado os

pertences da sra. Gunderson.

Page 120: O Milagre Do Coracão

— Ah, então não irá demorar muito — Bonnie

comentou com um sorriso. — A casa já estava mobiliada

quando Leah a alugou. Acho que a cadeira de balanço

foi o único móvel que ela comprou, além da cama, é

claro.

— Bem, quanto antes melhor. — Gar estava detes-

tando ser o centro das atenções. Assim, girou nos cal-

canhares e saiu da loja tendo Kristofer em seu encalço.

— Vamos na casa da dona Leah agora? — O menino

lutava para acompanhar os passos do pai.

— Sim. Entre logo na carroça.

Quando o veículo começou a se mover. Avistaram

Brian Havelock caminhando cabisbaixo pelas ruas em-

poeiradas. A certa altura, o moço chutou uma pedra e

praguejou baixinho, como se estivesse muito aborrecido

com algo.

— Ele está assim porque gosta da dona Leah, pai —

Kris contou, colocando a mão em concha ao lado da

boca a fim de abafar o som de suas palavras. — Acho

que não quer que nos casemos com ela. Também o ouvi

dizer a sra. Dunbar que terá de procurar outra pessoa

para cuidar de suas roupas.

— Bem, problema dele. — Gar estava consciente de

que agora o olhar de Havelock se cravava em suas

Page 121: O Milagre Do Coracão

costas. — Brian terá que procurar outra mulher para

atender a suas necessidades. Leah vai se tornar parte de

nossa família e ponto final.

Logo a carroça foi conduzida pôr uma ruazinha es-

treita que passava em frente ao jornal e a barbearia.

— Aposto que todos vão querer assistir ao

casamento — Kris comentou, olhando para trás. — Até

as senhoras que estavam no armazém usavam seus

vestidos de domingo, pai.

Um pouco mais à frente, sob a copa de alguns

bordos, uma fileira de cinco casas, com seus portões e

cercas de madeira pintados de branco, reluziam sob o

sol de verão.

Nos degraus da varanda da casa do meio, Leah ob-

servava a carroça se aproximar.

Gar fez os animais pararem e desceu, mas Kris cor-

reu na frente para saudá-la.

— A senhora gostou de nossa carroça, dona Leah?

— o menino foi logo perguntando, encarando-a com um

misto de ansiedade e orgulho.

— Claro, e também poderei pintar algumas flores na

lateral dela se você quiser, Kris — Leah ofereceu-se de

pronto. — Aliás, talvez você até possa me ajudar.

Page 122: O Milagre Do Coracão

— Engraçado, Eric Magnor teve a mesma idéia —

Gar contou num tom irritado.

Leah arqueou as sobrancelhas e fez uma pequena

caneta.

— Bem, como o homem mais rico da cidade, o ar.

Magnor deve ser uma espécie de autoridade neste tipo

de assunto. Ouvi dizer que a casa dele tem objetos

maravilhosos e que faz questão que seja tudo do bom e

do melhor.

— Pois eu acho que ele estava zombando de mim —

Gar resmungou, seguindo-a até o interior da casa.

— Não. As flores ficariam lindas sobre o fundo

vermelho da carroça — Leah insistiu. — Eu costumava

ser muito habilidosa com essas coisas quando era

jovem.

Um mão enorme a segurou e a fez parar onde

estava.

— Você ainda é jovem, Leah. Não tente envelhecer

antes do tempo.

Ela se virou para encarar o homem com quem se

casaria dali a poucas horas.

— Sim, sinto-me jovem hoje, sr. Lundstrom. E, en-

tão, gostou do meu vestido novo? — Tinha comprado o

traje pronto, com a ajuda de Bonnie. As margaridas

Page 123: O Milagre Do Coracão

brancas com miolos amarelos davam um ar alegre ao

vestido, e o fundo azul-marinho adicionava um toque de

distinção e elegância.

Gar assentiu prontamente.

— Eu mesmo não poderia ter escolhido melhor, mi-

nha cara — declarou num tom polido.

Se ele soubesse como fora difícil escolher algo que

não denunciasse o quanto estava ansiosa por agradá-lo!,

Leah pensou. A princípio, ficara tentada a comprar um

vestido rosa, com decote enfeitado de renda e que

deixava seus ombros e colo totalmente à mostra. En-

tretanto, teve medo de parecer ousada demais e pre-

feriu o vestido alegre, mas discreto, que poderia ser

usado durante todo o verão.

Sabia que estava bem, com o rosto naturalmente

rosado por causa do sol, os cabelos brilhando intensa-

mente, depois de terem sido lavados e escovados du-

rante horas à fio, com aquela tonalidade cor de mel que

contrastava com o azul-acinzentado dos olhos. Bem,

verdade que suas mãos estavam trêmulas, mas isso

ninguém iria reparar, porque era normal uma noiva ficar

um tanto nervosa no dia de seu casamento.

Sim, Leah Gunderson iria se casar dentro de uma

hora e pelo menos metade da cidade de Kirby Falis iria

Page 124: O Milagre Do Coracão

estar na Igreja Luterana para assistir a cerimônia que a

transformaria na nova ara. Lundstrom.

No entanto, o que ninguém poderia imaginar era

que a noiva, que todos pensavam ser viúva e

experiente, era na verdade uma virgem apaixonada pelo

homem que lhe propusera um casamento de

aparências…

CAPTULO V

Ela não seria relegada a um quarto escuro nos

fundos da casa. Na verdade, o quarto para o qual Gar a

levou era grande, com teto alto e janelas envidraçadas

que se abriam ao longo de toda uma parede, dando

vista para o campo verdejante. Dali podia ver os

primeiros raios de sol que aqueciam os dias de verão e

eram filtrados pela cortina fina de renda que também

ajudava a aquecer o aposento quando fechadas nas

noites de inverno.

Mesmo nas sombras, era óbvio que aquele era um

aposento destinado às noivas da família. A cama era

Page 125: O Milagre Do Coracão

enorme, coberta por um acolchoado bordado com pon-

tos delicados e bonitos.

- Era dela? — Leah indagou, com uma nota de

censura a permear-lhe a voz melodiosa, enquanto

tocava o bordado com as mãos.

Garlam apoiou-se contra o batente e fitou-a com

indolência.

- Não, o acolchoado era da minha mãe.

- Não estava me referindo ao acolchoado, mas ao

quarto — Leah explicou de um só fôlego.

Como ela podia pensar que fosse tão insensível?!

- Se é a Hulda que se refere, saiba que ela nunca

dormiu aqui. Ela odiava as janelas. Nos dias de

tempestade, costumava se esconder no armário. — Não

havia o menor sinal de cinismo ou zombaria da voz de

barítono, apenas a verdade sobre a mulher com que se

casara e trouxera para a Fazenda Lundstrom como sua

esposa.

Leah virou-se para encará-lo.

— Quem dormia aqui, então? -

O rosto dela exibia um ar de… De quê? Aflição,

talvez? Ou medo de que estivesse trazendo-a para seu

próprio quarto? Não, Gar decidiu. Isto não iria passar

pela mente de Leah. Ela jamais deixaria que o medo

Page 126: O Milagre Do Coracão

ficasse evidente em suas feições, era orgulhosa demais

e também corajosa demais para entregar-se às

fraquezas humanas.

— Ninguém jamais dormiu neste quarto, senhora.

Se quer mesmo saber, ele foi construído para ser o

quarto principal, o dos senhores da fazenda, más quan-

do Hulda o recusou, mudei nossas coisas para outro com

uma janela menor, e, claro, armário maior —

acrescentou com uma pitada de humor negro.

Leah passou pelo toucador e olhou para a cômoda

que combinava com o móvel.

— Eu só pedi uma cômoda e alguns ganchos para

pendurar minhas roupas. Isto é muito mais do que

esperava. — Mirou-se no espelho e encontrou os olhos

de Gar que estava um pouco mais atrás. Os olhos azul-

acinzentado interrogaram-no silenciosamente. — Onde

fica o seu quarto? — finalmente ousou indagar.

Ele deu de ombros e moveu a cabeça em direção ao

corredor.

— Do outro lado, no final do corredor. Depois do

quarto em que coloquei Karen quando chegamos. Na

verdade, existem dois quartos entre nós, minha cara —

revelou com leve zombaria. — Eu disse a você que não

Page 127: O Milagre Do Coracão

iria esperar que aquecesse minha cama e estava sendo

sincero, Leah.

Ela assentiu.

— Acredito nisso, Garlam. — Os olhos perderam um

pouco o brilho e Leah suspirou ao abaixar-se para pegar

a mala que Gar deixara no chão.

— Eu faço isso — interrompeu-a ele, quase a em-

purrando. — Onde quer que eu a coloque?

Ela gesticulou em direção à cama, mas depois

mudou de idéia.

— Não, ali não, pode sujar o acolchoado. — Olhou

distraídamente em torno de si. — Lá, no assento da

janela.

E foi o que ele fez. Então, olhou para um ponto da

paisagem onde um de seus ajudantes conduzia as vacas

leiteiras para o celeiro, tendo um colhe em seu encalço.

Uma pontada de orgulho inundou-lhe o peito e ele

endireitou os ombros ao confirmar que a cada dia que

passava a fazenda ficava mais e mais próspera.

E Leah estava logo atrás dele, Gar podia sentir-lhe a

presença como se fosse um nuvem de calor aquecendo-

lhe o corpo. Ela não usava qualquer perfume que

pudesse revelar-lhe a preferência por uma fragrância em

Page 128: O Milagre Do Coracão

especial, mas cheirava à limpeza e frescor, exatamente

como o ar do campo.

— Quantas cabeças de gado tem? — A voz

melodiosa revelava um interesse genuíno e Gar agarrou-

se ao assunto para se livrar do rumo sensual que seus

pensamentos começavam a tomar.

— Vinte e sete no total, mas apenas seis vacas lei-

teiras. O pasto está cheio de bezerros e potros, mas

muitos ainda estão colados à mãe. Também tenho dois

bois, mas deixo-os num pasto separado, um pouco mais

longe daqui. — Havia uma nota de orgulho em sua

resposta, mas ele não pretendia se desculpar por isso.

Tinha trabalhado duro para conseguir tudo o que tinha.

Contratara três ajudantes para cuidar da fazenda e

pagava os melhores salários da região, em contrapar-

tida, exigia que fossem tão dedicados quanto ele

próprio.

— Também cria cavalos? — Leah quis saber, olhan-

do dele para a cena pastoral que se desenrolava abaixo

da janela envidraçada de seu novo quarto. — E porcos,

tem alguns?

O sol já estava baixando no horizonte e o céu tingia-

se dos tons púrpura e laranja do entardecer. Logo a

Page 129: O Milagre Do Coracão

noite cobriria a paisagem com seu manto negro pon-

tilhado de reluzentes estrelas prateadas.

— Sim e sim — respondeu às duas perguntas que

lhe haviam sido feitas. — Tenho duas porcas e dois

filhotes quase crescidos num chiqueiro que construí

atrás do celeiro, para evitar que o cheiro chegasse até

aqui na casa. Os cavalos estão num estábulo perto do

cocheira. Tenho seis deles.

— E um é meu — contou Kristofer, surgindo na

porta. Gar virou-se abruptamente da janela e Leah

apressou-se em dar uni passo atrás, mesmo assim, suas

mãos esbarraram uma na outra e as pernas musculosas

roçaram no vestido azul-marinho com margaridas

brancas.

— Você levou a carroça para o celeiro, filho?

Kristofer assentiu com um movimento de cabeça.

— Sim, pai. Benny cuidou dos animais e eu já trouxe

o resto das coisas para dentro. — O menino olhou para

Leah com um sorriso. — Deixei tudo sobre a mesa da

cozinha, não sabia onde a senhora gostaria de guardá-

las.

Ela sorriu e estendeu a mão para o enteado.

Kristofer fitou-a deliciado e aceitou a oferta de pron-

to, entrelaçando os dedos aos dela.

Page 130: O Milagre Do Coracão

— Venha comigo, vamos ver o quarto de Karen,

dona Leah. Mas não podemos fazer barulho. Ela está

dormindo no meu antigo berço, meu pai e eu o

limpamos bem e também encontramos lençóis e

acolchoados nos armários que serviram direitinho.

Leah fitou o menino com carinho, depois voltou-se

para Gar, sua expressão mudando completamente quan-

do se dirigia de um para outro. Mas a verdade era que

com o homem que se transformara em seu marido

poucas horas antes ela tinha de ser muito cuidadosa.

— Pode ir — Gar respondeu à pergunta silenciosa

que lhe fazia com um leve arquear de sobrancelhas. —

Enquanto isso trago o resto de seus pertences para o

quarto? Onde quer que eu coloque a cadeira de balanço?

Ela parou na soleira da porta, um pé já no corredor.

— Acho que ficará bem na cozinha. Tem um bom

espaço ao lado da janela que dá para a varanda.

— Está bem — capitulou e observou os dois se afas-

tarem no corredor, o filho de seu coração é a mulher que

escolhera para ser sua nova esposa. Por falar em

coração, nunca antes uma mulher fizera seu coração

bater tão descompassado e, ele temia que Leah Gun-

derson ainda pudesse lhe reservar muitas outras sur-

presas como essas.

Page 131: O Milagre Do Coracão

Inesperadamente, lembrou-se de Hulda. Pobrezinha,

chegara até ele com seu espírito fraco e saúde frágil e

talvez por isso nunca tivesse conquistado seu amor.

Claro que aprendera a dar valor aos esforços dela como

mãe e excelente dona de casa, mas, ainda assim,

faltava alguma coisa no casamento deles e Gar sabia

que parte da culpa pela união não ter dado certo

também era sua. Meneando a cabeça de um lado para

outro, tentou banir as lembranças para longe, poiso

remorso vinha sendo implacável para com ele nos

últimos meses, enquanto guardara luto pela mulher com

quem vivera dez anos de sua vida.

De repente, um grito agudo ecoou no ar, como se

alguém estivesse muito insatisfeito e clamasse por

atenção. Sem pestanejar, Garlam seguiu rápido pelo

corredor e se reuniu ao resto da família.

— Shh, shhh, meu anjinho! — Leah tirou a menina

do berço e aninhou-a junto a seu peito.

Os olhos de Karen estavam cheios de lágrimas

quando ela apontou o dedinho gordo para o berço do

qual acabava de ser tirada.

— Ah, ela não gostou do berço, papai — Kristofer

comentou franzindo o cenho.

Page 132: O Milagre Do Coracão

— Karen vai acabar se acostumando com o tempo,

Kris — Leah assegurou ao menino. — Por enquanto,

vamos levá-la para baixo e deixá-la sentada no cesto de

vime enquanto preparo alguma coisa para comermos.

— Eu a carrego — Gar se prontificou mais do que

depressa, tirando a menina dos braços de Leah.

Karen agitou-se durante alguns instantes, mas o pai

fez-lhe cócegas na barriguinha com o dedo indicador e a

menina sucumbiu ao gesto, rindo e agarrando-se à

camisa branca de Garlam.

— Que tal um pouco de pão com geléia e chá? —

Leah sugeriu, riscando um fósforo para a acender a

lanterna pendurada pouco acima da mesa redonda da

cozinha.

— Bem, eu acho que você vai encontrar alguns pe-

daços de carne assada e queijo fresco no refrigerador —

Gar disse.

— Refrigerador? — Os olhos de Leah arregalaram-se

intrigados.

— Sim, fica sob a despensa. Eu coloquei alguns de-

graus que a levarão ao porão. Em uma das paredes tem

uma porta que dá acesso a um quartinho no subsolo,

Page 133: O Milagre Do Coracão

todo revestido com metal. Isso ajuda a manter a

temperatura baixa durante o verão e também nas outras

estações. Em geral, conserva bem as sobras de alimento

durante um bom tempo.

Leah apressou-se em seguir para despensa e

descobrir esse lugar secreto e quase mágico do qual

Garlam falava. E foi exatamente como ele falou, ao

chegar no porão, descobriu-se diante de uma porta que

a deixou entrar num quarto cujas paredes eram forradas

com folha de metal. A temperatura ali era tão baixa que

a fez estremecer. Sobre uma mesa colocada no centro,

havia um pedaço de queijo e restos de carne cobertos

com um pano de prato. Ela os pegou e voltou rapida-

mente à cozinha.

— Puxa, eu mal conseguia ver direito lá embaixo —

comentou, a respiração um tanto ofegante por ter

subido os oito degraus que levavam ao nível da

despensa.

Gar observou-a por sobre os longos cílios escuros.

— Sempre deixamos velas no refrigerador. Da pro-

xima vez, leve um fósforo ou mesmo uma lanterna com

você.

Page 134: O Milagre Do Coracão

— Construiu este “refrigerador” sozinho — falou,

alterando um pouco o tom de voz ao falar do inusitado

cômodo no subsolo.

Gar chacoalhou os ombros e, por uma fração de

segundo, Leah pensou ver um brilho de orgulho nos

olhos azuis.

— Sim, construí.

Ela fatiou a carne rapidamente, cortou o queijo em

pedaços e colocou-os junto com um pedaço de pão que

encontrara no armário da cozinha.

— Quem fez o pão para vocês? — perguntou

intrigada.

— A mulher de meu ajudante Benny, o .nome dela é

Ruth. Ruth nos dá uma ajuda sempre que pode.

Também nos faz biscoitos quando tem tempo — contou

Gar, balançando Karen nos joelhos.

— Sim, mas os biscoitos dela não são tão bons

quanto os da senhora, dona Leah — atalhou Kristofer

mais do que depressa.

Leah sentiu uma onda de calor espalhar-se por suas

faces, tingindo-as de vermelho, diante do elogio sincero

da criança e acabou sorrindo ternamente para Kris. Suas

mãos trabalharam rápido, executando as tarefas

Page 135: O Milagre Do Coracão

rotineiras e em menos de cinco minutos sua nova família

já estava acomodada em torno da mesa.

Gar abaixou a cabeça e proferiu uma breve prece

de agradecimento pelos alimentos que tinham diante de

si e, ao terminar, olhou rindo para o filho que dava um

longo suspiro.

— É que eu estou faminto, pai — o menino

confessou, enchendo o prato. O pão estava coberto por

um bife e ele voltou a colocar outra fatia antes de levá-lo

aos lábios.

— Deixe-me lhe servir um pouco de chá, Kris —

Leah falou, adiantando-se às mãos pequeninas. — A

chaleira está um pouco quente. — Então, como se não

pudesse suportar ficar parada diante do homem que a

fitava tão atentamente, levantou-se e começou a mexer

na chaleira.

Kris agradeceu polidamente, Gar também meneou a

cabeça ao ser servido e Karen sugou o liquido que lhe foi

levado a boca numa xícara de porcelana pintada à

mãos.

— Deixe-me segurá-la enquanto você come — pediu

Leah, estendendo os braços para o bebê.

Ele aquiesceu e Leah tirou-lhe a criança do colo,

voltando para seu próprio assento.

Page 136: O Milagre Do Coracão

Foi uma refeição muito rápida, Kristofer e Gar fa-

mintos demais para perder tempo com conversa e Leah

concentrada no prato do qual tirava pequenos pedaços e

os oferecia a Karen.

— Preciso ir até o celeiro agora. Ainda tenho de

terminar algumas tarefas do dia — Gar declarou, em-

purrando o prato vazio e começando a se levantar.

— Sim, está bem. — Leah o perscrutou por sob as

longas pestanas enquanto o via deixar a casa depois de

ter pego um chapéu que estava pendurado no gancho

atrás da porta. Sim, era um chapéu de palha bem típico

dos fazendeiros da região, e não aquele chapéu de feltro

branco que Gar costumava usar quando ia à cidade ou à

igreja, que o deixava com ar ainda mais arrogante.

Contudo, agora ele parecia apenas um fazendeiro

cuidando de suas terras,

Ah, mas um fazendeiro alto e bonito, emendou de-

pressa. Perscrutando-o através da janela envidraçada

enquanto ele seguia para o celeiro onde os outros tra-

balhadores da fazenda haviam acendido as lanternas

que iluminavam o princípio de noite.

Ouvindo os primeiros grilos cantarem, Leah olhou

em torno da cozinha que seu marido havia entregado a

seus cuidados, bem como todo o resto da casa, desde o

Page 137: O Milagre Do Coracão

momento que haviam chegado de Kirby Falls. Por um

momento, ela prendeu a respiração desejando que a

cama do dono da casa também fosse parte dos domínios

ao qual teria livre acesso.

“Ah, sua tola!”, ralhou consigo mesma. “Nem ouse

pensar em tal bobagem!” Aquele era um casamento de

conveniência para ambos e estava muito longe de ser

uma união amorosa. Sabia disso desde o começo, o

pacto fora que cuidaria da casa e das crianças enquanto

Gar lhe daria um teto e garantiria a comida na mesa.

Será que não era um acordo bom o suficiente para

deixá-la feliz, ainda mais que acabava para sempre com

seus dias de solidão e lhe dava uma família adorável?!

— Dona Leah!? — Kristofer chamou-a da porta e

apontou para o chão. — Meu pai deve ter pisado numa

poça de lama. E melhor a senhora limpá-la antes que

grude e não saia mais. Minha mãe sempre tinha que

ficar de joelhos para esfregar essas coisas.

Leah pestanejou e olhou na direção em que o

garoto apontava. Grandes porções de terra marcavam o

assoalho de madeira polida.

— Ah, mas será que você e seu pai não sabem usar

um tapete para limparem os pés antes de entrar em

casa? — perguntou, fazendo uma pequena careta.

Page 138: O Milagre Do Coracão

Kristofer riu.

— Sim, minha mãe costumava deixar um tapete lá

fora, mas ele acabou sumindo depois que ela foi morar

no céu. A sra. Warshem limpou a casa para nós ontem,

para que a senhora não a encontrasse suja ao chegar

aqui, mas isto não vai durar muito tempo com meu pai

entrando e saindo do celeiro a toda hora.

Leah deu um longo suspiro e pegou a vassoura que

estava atrás da porta. Ora, ora, ora, pensou, esfregando

o assoalho até que ficasse limpo, a primeira coisa que

teria de fazer no dia seguinte seria arrumar um tapete

para ensinar lições de boas maneiras aos homens da

casa, afinal, não queria passar todos os seus dias es-

fregando o chão, tinha muito mais coisas a fazer.

A lua já estava alta no céu quando Leah colocou

Karen no berço e cobriu-a com um acolchoado colorido.

Ela deixou a parte de cima da janela uni pouco aberta

para que o quarto ficasse ventilado e também a porta

entreaberta para que luminosidade do corredor entrasse

discretamente no quarto da criança sem contanto fazê-

la despertar. Com cuidado, saiu do aposento e caminhou

Page 139: O Milagre Do Coracão

para o seu próprio quarto que ficava depois do de

Kristofer.

Girando a fechadura, adentrou no belo aposento

que Garlam lhe destinara. Era incrível, pensou,

recostando-se contra a porta, nunca sonhara em ter um

quarto tão bonito quanto aquele e muito menos urna

casa como a da fazenda, com cinco quartos no andar

superior e quatro salas e outros aposentos, contando

com a cozinha, no térreo.

Sim, uma casa como a dos Lundstrom era um luxo

com o qual jamais ousara sonhar!, pensou suspirando e

limpando uma lágrima que lhe rolava dos olhos. Então

riu de si mesma. Como era tola! Para que chorar quando

tudo estava saindo tão bem? Por que sentir aquele vazio

e o aperto no peito quando sua vida estava

encaminhada e estável para sempre? Agora tinha uma

bela casa, lindos e amados filhos, ainda que não ti-

vessem saído de seu ventre, e um marido que fazia seu

coração bater descompassado.

— Leah? — Chamou-a a conhecida voz de barítono,

parecendo estar bem junto da porta na qual ela estava

encostada.

Page 140: O Milagre Do Coracão

Mais do que depressa, Leah limpou o rosto com a

manga do vestido e abriu a porta, dando um passo atrás

para deixá-lo entrar.

— Sim?

— Bem, pensei que deveríamos combinar nossos

horários o quanto antes. Não faz sentido fazê-la esperar

até amanhã para saber como serão as coisas.

As palavras foram proferidas num tom autoritário e

Leah o perscrutou com o olhar, tentando decifrar a

mensagem na integra.

— Você quer tomar café antes ou depois de realizar

suas tarefas? — indagou, tentando ser prática.

— Bem, o café preto costumo tomar antes de orde-

nhar as vacas, depois, quando terminar, torno um café

reforçado. Gosto de bacon, lingüiça ou mesmo algumas

costeletas de porco quando as temos em mãos.

Também aprecio, ovos cozidos e mingau de aveia, além

de pão torrado no forno a lenha.

Ela o observou sob à luz das velas que estavam

acesas em sua mesinha-de-cabeceira.

Garlam estava vestido com a camisa clara que

usara no casamento e ainda a trazia por dentro da

cintura da calça azul-marinho, cujas barras escondiam-

se nas botas de cano alto. O suspensório também fazia

Page 141: O Milagre Do Coracão

parte do traje e dava-lhe um ar de distinção, mas o que

mais chamou a atenção de Leah foi a maneira como os

músculos bem definidos surgiam por sob o tecido rústico

da calça e os pêlos dourados que apareciam por entre os

botões da camisa, aberto na altura do peito.

— Quer dizer que gosta de um farto desjejum, ãh?

Bom, acho que posso dar conta disso sem maiores pro-

blemas. E a que horas vai querer que eu o sirva, meu

caro sr. Lundstrom? — questionou com uma ponta de

cinismo a permear-lhe a voz.

Ele colocou as mãos na cintura o que só fez acen-

tuar-lhe a virilidade dos quadris e peito largo.

— Quando terminar a ordenha. Você pode tocar o

sino da varanda quando a comida estiver pronta e eu

virei assim que puder. Se demorar, guarde tudo no forno

para que não esfrie.

Leah assentiu lentamente.

— Vamos ver se entendi, quer que eu prepare um

verdadeiro banquete para o café da manhã e se não

aparecer para comer em tempo, terei de mantê-lo quen-

te até que você consiga se separar de suas vacas?

Garlam a fitou com as sobrancelhas arqueadas.

— Acho que está zombando de mim, sra.

Lundstrom.

Page 142: O Milagre Do Coracão

Leah engoliu em seco. Céus, Gar acabava de cha-

má-la pelo nome, um nome que lhe dera poucas horas

antes e que os unia para todo o sempre.

— Sim, talvez eu estivesse — ela admitiu, baixando

o olhar para as botas sujas de lama. Talvez fosse melhor

falar com ele sobre o assunto no dia seguinte, decidiu,

sabendo que teria de pôr tapetes em vários lugares da

casa.

— Neste caso é bom saber que não temos nada que

discutir sobre meu café da manhã — preveniu-a com

expressão levemente aborrecida.

— Mas eu não estava discutindo. Já havia dito que

daria conta disso.

— Okay, poderemos discutir o resto de suas tarefas

amanhã. Agora é melhor você ter uma boa noite de

sono. Esta casa é grande demais para uma mulher

sozinha mantê-la em ordem. Talvez eu possa persuadir

Ruth Warshem a vir lhe dar uma ajuda uma vez por

semana.

— A esposa de Benny? — perguntou Leah, curiosa.

— Sim — Gar assentiu. — Ruth é uma boa mulher e

também não tem medo de trabalho pesado.

Page 143: O Milagre Do Coracão

— Pois saiba que acabou de se casar com alguém

que também não tem medo de trabalho pesado, sr.

Lundstrom — atalhou num tom defensivo.

— Sei disso, minha cara — concordou, unindo as

mãos na parte inferior das costas, enquanto a observava

sob a tênue iluminação das velas. — Sempre tive

confiança em você, Leah. Acho que é a mulher perfeita

para mim.

Ela deu um passo atrás quando Gar começou a ca-

minhar para a porta, mas ainda teve tempo de notar

como os olhos azuis brilhavam ao fitá-la de alto a baixo,

parando por mais tempo na altura dos seios redondos e

firmes como se quisesse desvendar os mistérios ocultos

atrás do decote comportado. Céus, ele era seu marido e

essa era sua noite de núpcias!

Mas que diferença fazia? Iriam dormir separados,

exatamente como fora combinado. Fechando a porta

atrás dele, Leah desejou secretamente que Gar se ar-

rependesse de ter lhe proposto um casamento de apa-

rências, e que o corpo másculo e viril ansiasse por toma-

la como mulher, exatamente como ela ansiava por se

entregar a ele sem reservas…

Page 144: O Milagre Do Coracão

Ah, Leah Gunderson não era uma mulher que

poderia ser domada com facilidade, Gar concluiu depois

de uma semana de convivência em comum. As vezes,

Leah era muito exigente, implicando muito quando ele e

Kristofer se esqueciam de limparem os pés no tapete

antes de entrar em casa. Também menosprezava os

horários dele, insistindo que o banho de Karen deveria

vir primeiro do que os interesses dos adultos da família.

No terceiro dia após o casamento, encontrou-a com

os braços mergulhados na banheira de água quente,

tendo uma criança aos prantos e coberta de espuma nas

mãos, mas sem demonstrar um pingo de simpatia pelas

reclamações de Karen, conforme a tirava da água e a

enrolava em uma toalha felpuda.

— O que você fez para minha filha? — Gar exigiu

saber, parando na porta do quarto de banho. — Por que

ela está chorando tanto?

Leah virar-se para ele, encarando-o com irritação.

— Sua filha espirrou água com sabão nos olhos e

depois esfregou-os com as mãos. Mas agora está cho-

rando porque o banho chegou ao fim e ela não quer sair

da banheira. Se nos der licença por alguns minutos, vou

secá-la e trocá-la, depois poderemos conversar.

Page 145: O Milagre Do Coracão

Mas Gar ficara parado exatamente onde estava,

pois não queria se afastar da .visão deslumbrante que

tinha diante si: Leah com aquele vestido molhado

colando-lhe ao corpo e revelando-lhe a curva mais que

perfeita dos seios redondos e fartos. Até mesmo se

esquecera o que o trouxera até ali. Sentira-se

hipnotizado pela visão da mulher com sua filha nos

braços. Depois de alguns minutos, libertou-se do transe

contemplativo em que se encontrava e seguiu

apressadamente para o celeiro onde as tarefas do dia

ainda precisavam ser feitas.

Leah era uma mulher intrigante, decidiu Gar, no alto

da carroça de feno sob o forte sol do meio-dia.

Perguntou-se o que ela estaria fazendo agora para trazer

a melodia do riso que ecoava do interior da casa da

fazenda e chegava até o pátio com um som rico e

alegre, digno de uma família feliz. Segurando as rédeas

com firmeza, ouviu outra vez a voz do filho e os gritinhos

entusiasmados de Karen, logo seguidos pelo riso

contagiante da mulher que trouxera para a fazenda

como sua esposa.

Os animais responderam prontamente ao comando

que lhes dera e logo estavam descendo à ladeira e ru-

mando em direção aos campos de feno onde a alfafa

Page 146: O Milagre Do Coracão

esperava para ser preparada e guardada no celeiro. Dois

de seus empregados já estavam lá, empilhando o feno e

deixando-o pronto para quando a carroça chegasse. Gar

deu uma olhada para o céu. Nuvens escuras estavam se

formando a oeste e precisava guardar todo aquele feno

até o anoitecer, antes que a chuva chegasse.

Por isso, eles trabalharam por horas seguidas, ig-

norando o sino que anunciava as refeições do dia. Fi-

nalmente, Gar mandou Lars Nielsen, irmão mais novo de

Bonnie, buscar um pouco de água e alguns sanduíches

para lhe saciar a fome.

Lars era um rapaz alto e forte que aos dezoito anos

estava querendo guardar dinheiro para comprar sua

própria fazenda.

Ele retornou cerca de meia hora mais tarde, condu-

zindo a carroça da família, com Leah acomodada a seu

lado no assento de couro. Assim que os cavalos

pararam, ela entregou uma cesta de vime nas mãos de

Gar que a fitou com o cenho franzido.

Será que estava zangada por que não tinha apare-

cido para o almoço nem mesmo para o lanche da tarde?

Não era o que parecia. Aquele sorriso largo e doce era

como um bênção depois de tanto calor, isto para não

Page 147: O Milagre Do Coracão

falar que a água que ela lhe trouxera desceu-lhe fresca e

benfazeja pela garganta seca.

— Fiquei me perguntando se vocês teriam tempo

para comer? Parece que vai chover logo, não? — Leah

olhou preocupada para as nuvens escuras que se aglo-

meravam no céu, um pouco mais a oeste.

— Sim, precisamos ser rápidos — admitiu. — Mas o

que trouxe para nós?

— Um pouco de sopa quente que coloquei nestes

potes de conserva, pois achei que assim poderiam vira-

los nos lábios e tomar mais rápido. Também fiz san-

duíches — contou, desembrulhando as fatias de pão e

bife enfeitadas com tomate e algumas folhas de alface,

depois descendo e colocando Karen na parte de trás da

carroça.

— Karen está começando a gatinhar — Gar comen-

tou, observando quando o bebê se agarrava à lateral de

madeira e espiava-os com um sorriso nos lábios. Mas

logo voltou a cair sentada no assoalho de madeira e

reclamou com alguns gritinhos irritados.

— Ainda vai demorar um pouco até que consiga,

mas ela aprende — Leah sorriu.

Page 148: O Milagre Do Coracão

Benny Warshem e o jovem Lars comeram com gosto

e agradeceram Leah efusivamente pela refeição, en-

tregando-lhe a cesta e os potes de compota vazios.

— Obrigado, sra. Lundstrom — Benny disse pela

terceira vez. O sorriso alargou-se em seu rosto, reve-

lando dentes brancos e brilhantes se destacando contra

a pele bronzeada pelo sol do verão em Minnesota.

— Sim, obrigado, senhora. Estava ótimo — Lars

acrescentou, corando ao falar com a esposa do patrão.

— Deveremos terminar dentro de mais ou menos

quatro ou cinco horas, Leah — declarou Gar. – Temos

mais uns quatro ou cinco carregamentos para levar ao

depósito no celeiro. Olhou de soslaio para alfafa.

— Mande Banjo para nos ajudar quando chegar em

casa — pediu, referindo-se ao terceiro de seus ajudantes

que ficara no celeiro cuidando de arrumar espaço para

os carregamentos ainda por vir.

— Sim, farei isso — prometeu, subindo na carroça e

erguendo as rédeas para vira-la e voltar para casa.

Os olhos azuis de Gar não se desviaram dela. Obser-

vando-a quando manejou as rédeas com precisão e de-

pois voltou-se para avisar Kristofer que deveria segurar

Karen com cuidado.

Page 149: O Milagre Do Coracão

— Sra. Lundstrom! — ele gritou quando os cavalos

já iam a certa distância.

Leah fez os animais pararem e virou-se para

encarar o marido.

— Sim, algum problema? — protegeu os olhos com

as mãos em concha, para se livrar de alguns raios de sol

que teimavam em driblar as pesadas nuvens.

— Não, só queria lembrá-la que ainda não pintou

aquelas flores que prometeu — tornou Gar, colocando as

mãos nos quadris e rindo com prazer pela primeira vez

nos últimos seis meses.

Leah ficou séria durante alguns instantes, depois,

finalmente, pareceu entender o significado da frase e

também começou a rir bem-humorada, acenando-lhe

antes de voltar para casa com seus filhos. Era uma visão

muito reconfortante.

Os homens voltaram logo ao trabalho, mas Garlam

Lundstrom ficou ali parado, observando a mulher que

estava trazendo uma nova luz a sua vida até ela de-

saparecer no horizonte. De repente, uma alegria imen-

surável encheu-lhe o peito e ele agradeceu ao céu por

estar vivo. Sim, apesar de tudo, a vida era linda!

Page 150: O Milagre Do Coracão

CAPÍTULO VI

— Teve um dia duro? — Gar perguntou, colocando

um pouco de batatas em seu prato, depois entregando-

as a Leah. Ela arqueou uma sobrancelha.

— Não, na verdade não. Limpei a saía e passei um

pouco de roupa. Ah, e também coloquei um pouco de

fermento para crescer — revelou, misturando vagem às

batatas amassadas que oferecia à Karen.

— Nada mais?

Leah ergueu os olhos rapidamente.

— O que mais está querendo saber, Gar? Certo,

ajudei Kristofer com as lições de aritmética e com o

alfabeto enquanto Karen tirava um cochilo e também

costurei algumas de suas meias. — Não gostava nenhum

pouco da maneira como estava sendo interrogada e,

para descarregar sua raiva, deu uma enorme mordida

na coxa de frango que estava em seu prato.

— Quem esteve aqui hoje? — Gar prosseguiu com o

interrogatório, erguendo o rosto para encará-la e se-

gurando o garfo diante da boca. Ele esperou até Leah

Page 151: O Milagre Do Coracão

parar de mastigar para acrescentar: — Vi marcas de

roda diante da casa.

A indignação a fez enrubescer.

— Foi a sra. Thorwald, minha vizinha em Kirby Falls.

Orville Hunsicker a trouxe para me ver. — Colocou o

talher sobre a mesa e o retalhou com o olhar. — Por

quê? Será que não posso receber visitas?

— E eu não posso perguntar quem esteve em minha

casa? — replicou Gar com um muxoxo.

Os olhos de Leah brilharam como duas gemas

preciosas.

— Claro que sim. Afinal, como acabou de dizer, a

casa é sua. Mas, quando me perguntou sobre como foi o

meu dia, pensei que estivesse interessado em saber o

que fiz.

— Não estou te cobrando pelos trabalhos

domésticos, Leah. Esta casa é sua também e pode fazer

o que bem entender.

— Ah, quer dizer que posso viver aqui por que sou

sua esposa, mas devo pedir permissão se quiser receber

visitas? — atalhou com sarcasmo.

— Não distorça minhas palavras, minha cara. Não

foi isto o que eu quis dizer.

Page 152: O Milagre Do Coracão

— Então o que foi que quis dizer, sr. Lundstrom? —

interpelou-o. — Por acaso devo lhe fazer um relatório

detalhado do que foi dito aqui em sua ausência? Ou

então contar-lhe quantas xícaras de chá servi à visita

em sua cozinha?

— Esta não é minha cozinha. Pensei ter deixado

bem claro que a casa também é sua no dia em que a

trouxe para cá! — exclamou, erguendo o tom de voz

acima do normal.

Foi o bastante para que Kristofer levantasse da ca-

deira e corresse para fora.

— Veja só o que você fez! — Leah exclamou, fuzi-

lando o marido com o olhar, antes de se levantar e

seguir o menino.

Ela o alcançou no meio do pátio. Suas mãos segu-

raram-no pelos ombros, trazendo-o para bem junto de si,

como se quisesse reconfortá-lo.

— Eu não quero que você e meu pai briguem — Kris

choramingou, voltando-se para encará-la. — Não gosto

quando as pessoas gritam umas com as outras. Minha

mãe também não gostava.

— E seu pai costumava gritar com ela, querido? —

Leah perguntou num tom pausado, os dedos mergu-

Page 153: O Milagre Do Coracão

lhando nos cabelos claros para acariciar a criança que

amava como se fosse sua.

Kristofer hesitou ligeiramente.

— Só quando minha mãe fazia coisas que não

deveria, como quando se levantava e esfregava o chão

mesmo estando doente demais para fazê-lo. Um dia ela

até desmaiou e papai precisou carregá-la para o quarto.

— Sua mãe desmaiou? — repetiu ela, imaginando o

quanto a pobre Hulda deveria ter se esforçado para que

tudo corresse bem para sua pequena família.

Kristofer a encarou com olhos tristes.

— Mamãe ficava cansada muito fácil, dona Leah.

Papai não tinha muita paciência com ela. Ficava bravo e

gritava quando achava que estava fazendo mais do que

deveria.

— Esta é uma reação típica dos homens — Leah

disse mais para si mesma do que para o menino. —

Quando os homens não sabem como lidar com uma

situação, eles gritam e tentam controlar as coisas à

força. — Em sua pequena experiência com o sexo

oposto, descobrira que essa era a regra que vigorava e,

pelo jeito, Gar Lundstrom não parecia ser uma exceção a

ela.

Page 154: O Milagre Do Coracão

— Papai está bravo com você. — Os lábios peque-

ninos foram levemente entortados à medida que Kris

olhava para a janela da cozinha.

— Ei, entrem logo vocês dois! — Gar tinha saído na

varanda e os observava com o cenho franzido. — O

jantar vai esfriar.

Havia uma nota de frustração na voz sonora e Leah

achou que talvez fosse melhor não desafiá-lo nesse

momento.

Ajeitando o braço em torno dos ombros do menino,

empurrou-o em direção à casa.

— Venha, querido, vamos deixá-lo se acalmar

enquanto comemos nosso jantar — sussurrou junto aos

cabelos loiros, como se aquele fosse um segredo só

deles.

— Está bem. — Escapando de seus braços, Kristofer

correu para a casa, passou pelo pai e entrou rápido na

cozinha.

— E a senhora, dona Leah, será que aceitaria sen-

tar-se à mesa comigo se eu prometer segurar minha

língua atrevida? — Gar indagou assim que ficaram a

poucos centímetros um do outro.

Era um pedido de desculpa inesperado, mas muito

bem-vindo, e Leah o aceitou de bom grado.

Page 155: O Milagre Do Coracão

— Claro que sim. Só queria que Kris soubesse que

não está bravo com ele.

— As vezes, meu filho é um pouco sensível demais

— comentou, segurando a porta aberta para que ela

entrasse e depois seguindo-a até a mesa e pegando o

prato. — Gostaria que eu esquentasse um pouco as

batatas, Leah? — ofereceu-se.

Leah tirou-lhe o prato das mãos, seus dedos encos-

tando nos deles e o breve toque fazendo-a estremecer.

Ora, mas que coisa! Garlam tinham o poder de enfurece-

la e depois sempre tentava acalmá-la com gestos

cordatos e humildes. Como podia ser tão paradoxal!?

Irritada, cuidou de esquentar as batatas ela mesma

e colocou-as novamente diante de Gar, que agradeceu

com um movimento de cabeça.

Leah queria comer rapidamente, pois estava cons-

ciente do cesto de roupas que ainda tinha para passar.

Karen iria dormir dentro de uma hora ou duas, e,

caso se apressasse, poderia passar todas as camisas de

Gar1am, dobrá-las e guardá-las na gaveta. As roupas de

Kristofer só precisavam serem dobradas e ela própria

tinha três vestidos que estavam pedindo por uma boa

passada à ferro.

Page 156: O Milagre Do Coracão

— Ainda está brava comigo? — a pergunta de Gar a

tirou de seus devaneios e ela ergueu o rosto para

encará-lo.

— Não, claro que não — negou. — Só estava pla-

nejando o que vou fazer mais tarde. Tenho roupas para

passar e também gostaria de preparar um prato especial

para o jantar de amanhã. Acho melhor fazer uma lista

com o que vocês gostam de comer ou não. Precisam me

dizer para que fique mais fácil cozinhar.

Ele assentiu, dando uma rápida olhada para Kris-

tofer que continuava cabisbaixo.

— Falaremos sobre isso mais tarde — Gar

comentou, franzindo o cenho e Leah se perguntou o que

ele teria visto para mudar de assunto.

— Claro — concordou, levantando-se para levar seu

prato à pia. Quando se virou de novo para a mesa,

descobriu que Gar já tinha saído.

Kristofer também terminara de comer e hesitava

entre limpar a boca no guardanapo que Leah colocara

diante de seu prato ou na manga da camisa de flanela,

por fim, acabou se decidindo pela segunda opção.

Leah teve vontade de repreendê-lo, mas o bom

senso a preveniu de que não era o momento. Em vez

disso, aproximou-se e sorriu para o menino.

Page 157: O Milagre Do Coracão

— Não fique triste, Kris. — Curvou-se e segurou-lhe

o rostinho entre as mãos. — Seu pai gosta muito de

você.

Kristofer concordou com um movimento de cabeça.

— Eu sei, e acho que ele gosta da senhora também,

dona Leah, apesar de ser meio durão algumas vezes.

— Sim, acho que gosta — Leah respondeu, voltando

a ficar ereta. E talvez mais do ele próprio esperava, falou

consigo mesma. Não era tola e tinha percebido como

Garlam Lundstrom olhava com interesse para seus

atributos femininos.

— Meu pai disse que eu deveria ajudá-lo a cuidar

dos bezerros antes de tomar meu banho — Kris revelou,

levantando e seguindo para a porta.

Uma vez sozinha, Leah admitiu que não era só

Garlam que se sentia fisicamente atraído por ela. Há

muito tempo que seu coração disparava e um estranho

comichão se espalhava por seu corpo sempre que o ma-

rido a olhava daquela maneira intensa e perscrutadora.

Aliás, ele já mexia com suas emoções antes de se

casarem, agora que dividiam a mesma casa as coisas

estavam quase lhe fugindo ao controle. Tinha medo de

se trair a qualquer hora, por isso, às vezes o tratava com

certa frieza e arrogância.

Page 158: O Milagre Do Coracão

Mas Garlam não era homem para ser tratado com

frieza por mulher alguma. Por mais que ao lhe propor

casamento tivesse lhe dito que não a queria em sua

cama, era óbvio que estava tendo dificuldade em con-

trolar seus impulsos naturais, ainda mais depois de tê-la

morando sob o mesmo teto, vivenciando situações muito

íntimas e reveladoras.

E Leah também o queria com a mesma intensidade.

Porém, ela sabia que se cedesse aos impulsos do desejo,

teria muito o que explicar sobre sua falsa viuvez e

latente virgindade. O problema era que ainda não

estava pronta para fazê-lo sem deixar que os fantasmas

do passado viessem à tona. Quem sabe algum dia

poderia abrir as portas de seu coração e deixar dona

felicidade entrar, conduzida pelos braços musculosos de

seu marido…

O sol estava quase se escondendo no horizonte e as

luzes púrpuras do entardecer banhavam a paisagem

bucólica da Fazenda Lundstrom.

Leah ajeitou-se na cadeira de balanço que havia na

área da frente e depois enrijeceu-se ao ver Gar sentar-se

a seu lado no balanço de dois lugares e impulsioná-lo

com os pés. Os dois se movendo em um só ritmo, como

Page 159: O Milagre Do Coracão

se, pela primeira vez, estivessem seguindo na mesma

direção.

— Quero lhe perguntar uma coisa, Leah — Gar disse

depois de um momento de hesitação. — Acho que está

na hora de saber de onde você é e como acabou se

tornando uma entendida em ervas.

— Sou de Chicago — contou, os olhos fixos nas ga-

linhas que se empoleiravam nas rampas do galinheiro.

— E aprendi o que sei sobre ervas com minha mãe.

— O que me intriga é por que, entre todas as

cidades que poderia morar, escolheu Kirby Falls que é

pouco mais do que um vilarejo.

Ela alisou a saia do vestido com movimentos vaga-

rosos, mas sua mente trabalhava a todo vapor.

— E por que não? — retrucou com um riso forçado.

— Achei que era um bom lugar para se viver.

Uma expressão intrigada cruzou o rosto anguloso e

os olhos azuis brilharam com desapontamento ao vê-la

ser tão lacônica sobre o passado.

— Ah, sim, um ótimo lugar para se viver! — tornou

Gar com ironia. — Vamos, Leah, não tente me enrolar.

Estou perguntando porque desejo conhecê-la melhor.

Isto não é crime, é?

Page 160: O Milagre Do Coracão

Não, não era crime, mas poderia ser o primeiro

passo que o levaria a descobrir a verdade sobre o seu

passado, Leah completou mentalmente. Por isso,

quando falou tentou ser diplomática.

— Nasci em Kirby Falis, Gar. Isto foi há trinta anos.

Por acaso já vivia aqui nesta época?

Ele negou com um movimento de cabeça, ao

mesmo tempo que a perscrutava com os incríveis olhos

azuis.

— Não, vim do leste com minha família quando ain-

da era um adolescente, há mais ou menos vinte anos.

Quando veio para a América, meu pai achou que seria

bom morar em Nova York, mas logo percebeu que es-

tava enganado. Ao ouvir falar das comunidades de

Minnesota decidiu vir para cá, pois era um lugar muito

mais parecido com nosso país de origem.

— Neste caso, eu tinha me mudado daqui muito

antes de você chegar com sua família — ponderou ela

com voz pausada. — Minha mãe me levou com ela e nós

fomos morar em Chicago. Ela era curandeira e parteira e

aprendi o que sei de tanto acompanhá-la.

— E sua mãe ainda mora na cidade? — Gar ques-

tionou, a voz um tanto hesitante, como se já soubesse a

resposta à pergunta que acabava de fazer.

Page 161: O Milagre Do Coracão

Leah ergueu a cabeça, seus olhos deixando o tecido

da saia que estivera dobrando em pequenas pregas.

— Não, minha mãe morreu há alguns anos então

eu… eu resolvi me mudar da cidade. — Desfez as pregas

e começou a alisar o tecido que amassara.

— E quanto ao seu marido? — Gar prosseguiu, en-

trando com muito cuidado naquele assunto que era

quase proibido. Nunca antes a ouvira falar sobre o

marido morto e isto o intrigava. Que mistérios Leah

escondia?

— Também morreu lá, pouco depois de minha mãe

— falou num tom rouco, que talvez aos ouvidos alheios

soassem como se ainda estivesse de luto, mas que, na

verdade, era uma reação natural à mentira que acabava

de contar. Aliás, sua mãe sempre dizia que uma mentira

levava a outra e Leah rezava secretamente que não pre-

cisasse mais dizer nenhuma, nem hoje nem nunca.

Surpreendendo-a, Gar virou-se no balanço e captu-

rou-lhe o olhar.

— Parece que você já sofreu demais Leah. Espero

que possa esquecer seus infortúnios, e, finalmente, en-

contrar a paz aqui conosco.

Page 162: O Milagre Do Coracão

Um pássaro noturno gorjeou na árvore defronte à

casa e seu canto afinado parecia ser uma melodia de

fundo para as palavras de Gar.

Leah limitou-se a menear a cabeça em agradeci-

mento, com medo de se deixar trair pelas emoções que

explodiam em seu peito.

— Foi depois de ficar sozinha que decidiu vir cá,

certo? — Gar voltou a questioná-la depois de alguns

minutos de silêncio.

Respirando fundo, ela acabou por lhe contar parte

de sua verdade.

— Sim, eu sabia que tinha nascido em Kirby Falis e

pensei que… Bem, não importa o que pensei, o que im-

porta é que vim para cá. E o resto da história você já

sabe, comecei a lavar roupas para fora, costurar, cuidar

dos ferimentos de alguns doentes e com esse dinheiro

pagava o aluguel daquela casinha em que morava.

— Não restou nenhum parente de sua mãe por

aqui?

Ela negou com um movimento de cabeça.

— Não, nenhum. Meu pai também morreu e duvido

que algum dos moradores, mesmo os mais antigos, ain-

da se lembre de Minna Polk. — Ficou pensativa durante

alguns segundos. — Pelo que sei, não existe nenhuma

Page 163: O Milagre Do Coracão

família Polk por aqui, portanto, minha mãe deveria estar

certa quando dizia que não havia ninguém da família de

meu pai para nos amparar em Kirby Falis. Por isso ela foi

embora e me levou junto.

Gar sorriu e continuou a encará-la, desta vez mais

relaxado. A mulher com quem se casara era bonita,

muito bonita, disse a si mesmo, observando-lhe o perfil

clássico. Ela tinha o nariz reto, as maçãs do rosto e o

queixo um tanto proeminentes, mas isso até que lhe

conferia uma beleza exótica. Riu ao pensar que o de-

talhe do queixo talvez fosse uma impressão sua, pois

Leah vivia erguendo-o em sinal de desafio a tudo que

considerava injusto ou abusivo. Sim, além de bonita, ela

também tinha personalidade, o que era muito raro nas

mulheres de sua época.

— Sente falta de morar na cidade? — quis saber,

tentando fazê-la revelar o que lhe ia na alma.

— De Kirby Falls? Não… apenas de conversar com

algumas senhoras e de tomar chá com a sra. Thorwald e

Eva Landers — sorriu. — Mas eu amo seus filhos, Gar,

eles não são filhos de meu ventre, mas sim do meu

coração. Também sinto-me muito feliz de viver nesta

linda casa que dividimos. Se quer mesmo saber,

Page 164: O Milagre Do Coracão

algumas vezes até gosto de você — brincou, entortando

levemente os lábios.

— E isto é o máximo que podemos esperar de um

relacionamento como o nosso, não? — Fitou-a atenta-

mente, esperando para ver-lhe a reação ao mesmo tem-

po que uma imensa tristeza se apoderava de seu peito.

Leah baixou os olhos como se tivesse medo de al-

guma coisa.

— Eu realmente gosto de você, Gar. Acho que essa

história de nos casarmos vai funcionar para todos, para

as crianças e para nós dois.

Talvez fosse daquelas palavras de conforto que ele

estivesse precisando, muito mais do que o prazer que

lhe pedia com olhos suplicantes, concluiu, ainda sem

ousar encará-lo.

No entanto, Gar estava começando a perder a ba-

talha para suas emoções. Inesperadamente, ergueu as

mãos e tocou-a nos ombros, traçando-lhe o contorno do

colarinho com a ponta dos dedos.

Leah ergueu o queixo e o fitou com os enormes

olhos azul-acinzentados. Era óbvio que estava perplexa

com sua atitude. A língua rosada que tanto o fascinava

deslizou sobre o lábio superior, num convite incons-

ciente, mas irrecusável.

Page 165: O Milagre Do Coracão

Ora, sua promessa que fosse para o inferno!, Gar

gemeu em pensamento, antes de curvar-se e posar os

lábios na testa altiva. Os caracóis dourados e macios

roçaram-lhe no nariz e ele inalou a fragrância suave de

lírios do campo. Era um perfume doce, mas não tão

intoxicante quanto o de madressilva ou o das primeiras

rosas que se abriam no jardim. Sim, Leah exalava aquele

perfume suave todas as noites após o jantar, quando ela

se banhava com folhas de lírios que colhia nos campos

silvestres. Dizia que o banho no final da tarde ajudava-a

a relaxar e a tirar a poeira do dia.

E Gar não conseguia evitar de imaginá-la nua, com

a água escorrendo por todo o corpo, os cabelos soltos e

chegando-lhe até o meio das costas, os seios redondos e

firmes empinados e convidando-o para tocá-los. Sim,

seios que agora estavam a poucos centímetros de suas

mãos…

Ele estremeceu e seus dedos deslizaram pelo

pescoço de Leah, acariciando-o com um misto de

ternura e sensualidade.

— Ah, Leah, Leah! — gemeu. Céus, nunca tinha ou-

vido aquele som em sua própria voz, rouco e ainda

assim impregnado de uma suplica sensual. Sem poder

Page 166: O Milagre Do Coracão

mais se conter, segurou-a pelo queixo e fê-la erguer um

pouco mais o rosto para receber seus lábios sedentos.

E a boca carnuda e rosada era mais doce e macia

do que Gar havia imaginado. Ela não se movia para

retribuir seu beijo, mas também não o recusava. A

respiração estava ofegante, como se a experiência dos

lábios se tocando tivesse lhe roubado todo o ar, mas,

ainda assim, Leah não o beijou.

Gar aproveitou um suspiro para lhe invadir a boca e

tentar sorvê-la de um outro ângulo. Enlouquecido pelo

desejo, sugou levemente o lábio inferior e enveredou

pelos recessos da boca convidativa da esposa com sua

língua quente e faminta.

Leah estremeceu e emitiu um gemido de surpresa

que o fez rir e transferir suas carícias para as faces

angulosas e para as pálpebras que protegiam os olhos

azuis. Depois beijou-a na ponta do nariz e também junto

à orelha delicada, ao mesmo tempo em que murmurava

palavras carinhosas na língua materna que quase tinha

esquecido.

— Por favor, Gar. — Ela estava ofegante e seus mo-

vimentos eram um tanto desajeitados ao tentar afastá-lo

de si. — Não creio que devamos fazer coisas como

estas.

Page 167: O Milagre Do Coracão

— Ah, devemos sim, Leah. Qual é o mal em parti-

lharmos alguns beijos amigáveis? Tenho certeza de que

não interferirá em nada no nosso acordo.

Ela discordou, meneando a cabeça de um lado para

outro.

— Pois eu não penso assim. — Tremendo, afastou-

se dele, mas continuou a encará-lo com olhar assustado.

Se não soubesse que era viúva, teria pensado que

estava lidando com uma virgem inexperiente, Gar de-

duziu franzindo o cenho. Mas, talvez, o marido de Leah

não tivesse sido carinhoso e dedicado o suficiente para

acariciá-la e tratá-la com amor antes de torná-la mulher

em sua cama. Havia muitos homens assim, egoístas e

interessados apenas no próprio prazer. Por certo, o sr.

Gunderson devia ter sido um desses e não ensinara a

Leah como era bom beijarem-se nas noites de luar ou

trocarem doces carícias antes de mergulharem sob os

lençóis e unirem seus corpos no calor da paixão.

Diante do simples pensamento de que ela estivera

nos braços de outro, Gar parou imediatamente de mo-

vimentar a cadeira de balanço. Não conseguia suportar

a idéia de Leah ter pertencido a outro homem. Ator-

doado, ficou em pé.

Page 168: O Milagre Do Coracão

— Você tem razão, minha cara. Acabei me deixando

levar pelo calor da noite e a magia do luar. Peço que me

perdoe — sussurrou, abaixando levemente a cabeça em

sinal de rendição.

Logo a viu levantar-se e começar a seguir para a

porta da cozinha.

— Está bem, nos veremos pela manhã, Gar. — A

respiração estava um tanto ofegante, as maçãs salientes

mais rosadas do que o normal. Contudo, havia um brilho

no fundo dos olhos azuis que deixava claro que, apesar

de assustada, Leah não tinha detestado a experiência

como queria dar a entender.

Ao vê-la se afastar, Gar passou a língua sobre os

próprios lábios e apreciou o gosto dela que o impregnara

como um néctar dos deuses. Sim, o gosto de sua

mulher, aquela que escolhera para acabar com sua

solidão e que agora sabia que deveria conquistar para

ser feliz e também para fazê-la feliz. Afinal, os dois

mereciam essa chance.

O dr. Berg Swenson costumava freqüentar a igreja

todos os domingos e aquele dia não era exceção.

Page 169: O Milagre Do Coracão

Leah o observou com ar reprovador. Como ele podia

encarar Deus dentro do santuário sagrado e ainda assim

não ser partido em dois pela ira do Senhor? Este homem

que rezava e falava calmamente com a maioria dos

moradores da vila era, no entender dela, uma das piores

criaturas que já conhecera.

Swenson escolhia seus pacientes de acordo com o

que podiam lhe pagar, e, mesmo assim, sempre preferia

atender àqueles que tinham pequenos problemas, fa-

cilmente tratáveis, que não colocariam em cheque suas

habilidades profissionais. E o fato de ter se recusado a

cuidar de Hulda Lundstrom por saber que ela não teria

chances de sobreviver, o colocava na parte mais baixa

da escala de valores da mulher que presenciara a morte

da pobre Hulda.

Então, a certa altura, depois de Leah ter assistido a

toda celebração, cantado seus hinos favoritos e também

ouvido um sermão brilhante do pastor, foi surpreendida

pela aproximação do médico.

— Sra. Lundstrom. — Swenson era pomposo e ja-

mais lhe ocorrera que alguém pudesse não responder a

seu cumprimento ou chamado, embora Leah estivesse

seriamente tentada a fazê-lo.

Page 170: O Milagre Do Coracão

No entanto, as boas maneiras que a mãe lhe ensi-

nara falaram mais alto e ela se voltou para encará-lo.

— Bom dia, dr. Swenson.

— Bom dia. Tenho um caso sobre o qual gostaria de

conversar com a senhora — o médico foi logo dizendo,

num tom confidencial.

— Ah, sim?! — A surpresa de Leah era genuína.

— A senhora pode me dar atenção por um minuto?

Leah assentiu e no instante seguinte se viu puxada para

o pátio da igreja, longe dos ouvidos curiosos.

— Tenho um paciente que não tem reagido bem a

minhas tentativas de curá-lo. Estive pensando que talvez

a senhora pudesse me acompanhar até a casa dele para

vermos o que pode ser feito.

Leah mordeu a língua, com medo de ganhar um

inimigo se dissesse o que lhe ia na lama. Justamente por

isso, foi muito cuidadosa ao se manifestar:

— Verdade, doutor? E o que o faz pensar que posso

ajudar alguém que o senhor não conseguiu curar? Cer-

tamente, o senhor é mais preparado do que eu para

cuidar de enfermidades.

— Este homem está com uma febre alta e nada do

que lhe dou faz efeito. O problema é que está enfra-

quecendo muito.

Page 171: O Milagre Do Coracão

— Há quanto tempo ele está doente? — Leah inda-

gou, sua mente se concentrando nas ervas que pode-

riam ser usadas no caso.

O médico franziu o cenho.

— Esta é a questão. Ele só mandou me chamar há

três dias, mas a febre o vem consumindo há algum

tempo.

— Não sei se poderei ser de grande ajuda — Leah

disse rapidamente. — Tenho cuidado de ferimentos, os-

sos quebrados e algumas dores de garganta, mas febre

pode ser sinal de uma doença muito mais grave, doutor.

— O paciente a pagará bem por seus serviços,

senhora. Leah retesou-se toda. Se dinheiro era o recurso

final que o médico pretendia usar para convencê-la, iria

ter uma grande surpresa.

— Pois saiba que verei seu paciente e não pretendo

cobrar um centavo pela visita. Afinal, faço isso pelo pra-

zer de ajudar um semelhante e não para encher meus

bolsos de moedas e minha alma de pecados, doutor.

— Qual o problema, Leah? — Gar parou a suas

costas, carregando Karen nos braços.

O cheiro de pinho que emanava do corpo másculo,

deixava-a ainda mais consciente de sua presença. De-

pois da noite anterior, aquele aroma era suficiente para

Page 172: O Milagre Do Coracão

fazê-la queimar de desejo. Mesmo atordoada, virou-se e

o incluiu rapidamente na conversa.

— O doutor quer que eu vá ver um paciente dele

para descobrir se conheço alguma erva que possa ajudá-

lo no tratamento. — Deu um passo atrás para que Gar

tomasse parte no pequeno círculo. — Se importaria se

fôssemos agora?

— Quem está doente? — Gar quis saber, olhando

em torno do pátio da igreja como se a atitude bastasse

para descobrir qual membro da comunidade local não

estava presente.

— Eric Magnor — Swenson contou.

As sobrancelhas escuras foram arqueadas e Gar

pestanejou.

— Eric? Eu não ouvi ninguém dizer nada. Certa-

mente ele não está… — franziu o cenho e calou-se com

medo de dizer o pior.

— Não, não é nada além de uma febre persistente.

Achei que talvez sua mulher pudesse nos ajudar de

alguma forma, Lundstrom.

— Sim, claro. Poderemos passar por lá ao voltarmos

para casa. Eric a está esperando?

— Eu disse a ele que sugeria uma visita da sra.

Lundstrom — o médico respondeu.

Page 173: O Milagre Do Coracão

— E o sr. Magnor concordou? — Leah questionou

preocupada.

O doutor assentiu.

— Mais do que concordou, senhora, está esperando

ansioso por nos.

— Nesse caso, não há mais o que esperar —

prontificou-se ela, olhando para o marido em busca de

aprovação.

E Gar não poderia fazer outra coisa que não fosse

consentir, afinal, além de gostar de Eric Magnor, sabia

que Leah jamais recuaria diante de um pedido de ajuda.

Fora assim que a conhecera e era assim que seria para o

resto de seus dias, disso não tinha a menor dúvida.

A casa enorme ficava no alto de uma colina, nos

arredores de Kirby Falis. Era uma construção toda

branca, com colunas gregas sustentando a varanda e

uma incrível aura de poder e riqueza circundando-a na

forma de jardins bem cuidados e personificada no

mordomo que veio receber os visitantes de domingo.

— Ah, que bom que veio. O sr. Magnor estava a sua

espera, sra. Lundstrom. — O cumprimento foi dirigido a

Leah, mas excluía os dois homens que a acom-

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panhavam. — Será que os cavalheiros poderiam esperar

na sala de visitas? — atalhou o mordomo, abrindo as

portas duplas que davam acesso a uma sala ricamente

decorada.

— Leah? — A voz de barítono de Gar fazia uma

pergunta silenciosa, mas ela entendeu perfeitamente o

que o marido queria saber.

— Está tudo bem — respondeu com um breve sor-

riso. — Não vou me demorar muito, fique tranqüilo.

- Segurando a saia do vestido de domingo, acompa-

nhou a figura imponente até as escadas de mármore

que levavam ao segundo andar. Ao virar-se para trás,

encontrou o olhar encorajador de Gar que a ajudou a

ganhar coragem para seguir em frente.

O quarto para o qual foi levada era espaço, com

janelas enormes se abrindo para o sol e ar fresco da

manhã. Eric Magnor vestia um robe de seda, e a calça

do terno apareciam pouco abaixo do joelho, deixando

claro que ele não permitiria que a doença o pegasse

desprevenido e o atirasse em uma cama, de pijama,

como, obviamente, alguém com febre deveria ficar.

Eric estava sentado diante da lareira, embora está

não tivesse sido acesa por causa da temperatura agra-

Page 175: O Milagre Do Coracão

dável de verão. Ao vê-la, sorriu levemente e sinalizou

para que se aproximasse.

— Por favor, sente-se, sra. Lundstrom — a voz soou

fraca e ao tentar se levantar, num gesto de cortesia, as

pernas não conseguiram sustentar-lhe o peso do corpo.

A pele do rosto do sr. Magnor também estava pálida

como cera e os lábios um tanto trêmulos, o que, por

certo, era resultado da febre prolongada.

Estranhamente, hoje ele parecia mais velho do que

o habitual, os cabelos grisalhos colados ao rosto e as

poucas rugas mais acentuadas devido ao estado

debilitado.

Leah se aproximou do dono da serraria. Suas mãos

tocaram-lhe a testa e transmitiram-lhe o intenso calor

que se apoderava daquele corpo.

- A febre ainda não cedeu nem um pouco, sr. Mag-

nor? — perguntou, sentando-se no local indicado.

Ele deu de ombros.

— Bem, ela vai e volta e já estou cansado das

pílulas e poções que o médico da cidade tem me

receitado.

Leah inclinou-se para trás e o observou atentamen-

te. O mais grave era o estado geral do que a febre em si.

Page 176: O Milagre Do Coracão

Magnor parecia letárgico e seus olhos tinham perdido o

brilho.

- A senhora tem alguma erva que possa me sugerir?

Ouvi dizer que tem conseguido curar muita gente na

cidade com seu tratamento alternativo.

- Bem, na verdade, tenho uma sacola cheia de

ervas, mas não está aqui comigo — confessou. — E creio

que algumas delas poderiam ajudá-lo sim. Agora, se

meu marido me emprestar a carroça para que eu vá até

em casa buscá-las, poderei medicá-lo com minhas ervas.

Por enquanto, sugiro que peça a seu mordomo, ou outra

pessoa de sua confiança, que o ajude a tomar um banho

para baixar a temperatura do corpo e depois vá direto

para a cama. Pode ser que ajude, e, certamente, não o

fará piorar.

- Meu cocheiro poderá levá-la até sua casa — Mag-

nor declarou, erguendo uma das mãos na direção do

mordomo que, aparentemente, estivera esperando sem

ser notado por Leah.

— Chamou senhor? — o serviçal murmurou com

discrição.

— Acompanhe a sra. Lundstrom até lá embaixo e

faça tudo o que ela disser.

Page 177: O Milagre Do Coracão

Leah rumou para a porta e antes de sair lançou uni

olhar preocupado na direção do pobre homem. Sim,

Magnor era uni pobre homem, pois havia coisas na vida

que nem mesmo com todo dinheiro do mundo se

poderia conquistar, urna delas era a saúde, a outra, a

felicidade.

Ainda pensava nisso quando encontrou Gar na porta

da sala de visitas.

— O que houve Leah? — ele inquiriu, parecendo

preocupado. — Não pode ajudar Eric? — Deu um passo a

frente para oferecer-lhe o braço.

Leah o segurou, apreciando o gesto conforme me-

neava a cabeça em direção ao médico que também se

aproximara para saber o que tinha acontecido. Então,

ouviu vozes de crianças vindas de algum ponto no jar-

dim e franziu o cenho.

— Onde estão as crianças? — perguntou, sabendo

que tinham deixado Karen dormindo na carroça, sob os

cuidados de Kristofer.

— Karen acordou e uma das criadas os levou para

brincarem no pátio. Duvido muito que estejam sentindo

nossa falta.

Page 178: O Milagre Do Coracão

— Hãhã… — o mordomo pigarreou para lhes

chamar a atenção. — O que faremos, madame? Posso

pedir ao cocheiro para levá-la até sua casa?

— Não, eu mesmo levarei minha esposa — Gar

disse bruscamente, ainda sem saber ao certo o que

estava acontecendo.

Leah o puxou pela manga da camisa.

— Mas eu terei de voltar aqui, Gar. Só vou até em

casa buscar minha bolsa de ervas para dá-las ao sr.

Magnor.

Ele ficou silencioso durante alguns instante, então,

logo a fitou com o cenho franzido.

— Neste caso, talvez seja melhor o cocheiro nos

seguir para traze-la de volta e ainda levá-la para casa

quando tiver terminado. Afinal, não poderei vir buscá-la

porque preciso cuidar dos animais, e, com sua ausência

ainda precisarei tomar conta de Karen — comentou,

parecendo contrariado.

- Isto é importante, Gar — lembrou-o com voz sua-

ve. — Aliás, a vida de uma pessoa é sempre algo muito

importante.

— Sim, mas sua família também é importante Leah

Lundstrom. Nunca se esqueça disso — falou, sentindo-se

Page 179: O Milagre Do Coracão

uni tolo, mas, ao mesmo tempo, não conseguindo con-

trolar o ciúme que o assolava como um monstro voraz.

— Eu não me esquecerei, Garlam. Juro que não me

esquecerei — prometeu e seus olhares se encontraram

durante um longo momento, revelando emoções e sen-

timentos que ainda demorariam muito para serem ver-

balizados, mas que ambos sabiam estar lá, no fundo de

suas almas.

— E então, madame? — o mordomo insistiu. —

Devo chamar o cocheiro para acompanhá-los até a

fazenda?

- Sim, faça isso, por favor — foi Gar quem

respondeu por ela. Em seguida, voltando-se para a

esposa, tomou-lhe as mãos entre as suas. — Desculpe-

me se fui egoísta há pouco, Leah. E que já não sei mais

como viver sem seus cuidados e sua ajuda com as

crianças. Porém, EricMagnor é um amigo e tenho

consciência de que devo deixá-la cuidar dele da melhor

maneira possível.

— Obrigada, Gar — Leah agradeceu, tomada por

uma emoção nova, a emoção de descobrir um grande

companheiro no homem com o qual se casara. Estava

tão inebriada com a cumplicidade que partilhavam que

não notou que o dr. Swenson se afastara, indo embora

Page 180: O Milagre Do Coracão

sem nem sequer lhe perguntar o que pretendia dar a

seu paciente.

Mas talvez fosse mesmo melhor assim. Como dizia o

velho ditado, quem não ajuda…

CAPITULO VII

Já fazia muito tempo que escurecera quando a febre

finalmente cedeu e Eric Magnor conseguiu dormir. Leah

sentou-se ao lado da cama, seus olhos atraídos pelas

feições austeras do homem que conhecera naquela

manhã. Claro que já o tinha visto na cidade, mas nunca

antes haviam se falado.

Na verdade, Eric fora mais do que um cavalheiro

para com ela, instruindo a governanta e o mordomo

para atender tudo o que dissesse. Assim, Leah traba-

lhara junto com os dois serviçais que, por certo, tinham

grande estima pelo patrão.

E Eric havia bebido o chá sem reclamar. O

preparado era uma mistura de eupatório e baga de

sabugueiro que a mãe de Leah havia descoberto anos

Page 181: O Milagre Do Coracão

atrás. Ele também tinha suportado as compressas com

toalhas molhadas quando a febre subira muito, e depois

tremera sem reclamar quando o mordomo o abanara

com um grande leque. Na verdade, o estado debilitado

do homem era assustador e Leah não relaxou até que o

viu suar a ponto de toda sua roupa ficar completamente

molhada.

- Acho que ele está melhor — disse a Thomas, o

homem alto e magro que cuidava do patrão sem medir

esforços, trocando-lhe a camisa molhada e também a

roupa de cama.

— Sim, madame — assentiu o mordomo. — Acho

mesmo que está melhor. E a primeira vez que meu

patrão consegue dormir em três dias.

— Que Deus o proteja, então! — sussurrou Sara

Perkins, a governanta. — Nunca o vi tão abatido. E olhe

que faz anos que trabalho aqui.

— Bem, já que o sr. Magnor está melhor, vou para

minha casa. — Leah levantou-se e só então se deu conta

dos músculos doloridos por causa das longas horas que

passara debruçada sobre o paciente. — Detesto ter de

pedir ao cocheiro de vocês que me leve para casa, mas

meu marido já deve estar preocupado com minha

demora.

Page 182: O Milagre Do Coracão

Thomas pigarreou e olhou em direção à porta.

— O sr. Lundstrom a está esperando lá embaixo,

senhora.

— Mesmo? — perguntou, passando pelos criados e

começando a deixar o quarto. — Há quanto tempo está

aqui?

- Faz horas, deixei-o entrar assim que o sol se pôs,

madame.

Será que estivera tão compenetrada em seu

trabalho que não percebera a chegada de Gar? Era o

que parecia e tal percepção a fez se apressar, à medida

que rumava para o largo hall.

— Gar? — O sussurro não bastou para acordá-lo e

Leah foi até a poltrona que ficava ao lado da janela da

sala de visitas. Suas mãos tocaram-lhe o ombro e Gar

estremeceu sob o breve contato.

— Leah? — Como se tivesse reconhecido o toque

daqueles dedos mágicos, despertou e murmurou o nome

dela.

— Shh… relaxe, está tudo bem — tranqüilizou-o,

antes de sentar-se em um pufe que havia diante da

poltrona e apoiar as mãos nos joelhos do marido. —

Quem ficou com as crianças?

Page 183: O Milagre Do Coracão

— Benny levou Ruth para dormir em nossa casa. Eu

disse a ela que passasse a noite em seu quarto. Espero

que não se importe.

— Claro que não. Ainda bem que eu troquei os len-

çóis esta manhã — completou, deixando-se levar por

suas preocupações de dona de casa, além do que, gos-

tava de Ruth e queria que estivesse bem acomodada.

— E como está ele? — quis saber Gar, abaixando as

mãos para tomar as dela entre as suas.

— Bem melhor.

Diante de tal resposta, correu os dedos ao longo da

palma estreita, acariciando-a com movimentos

circulares.

— Estas mãos são mágicas, não?

— Mágicas não, mas as vezes ajudam a curar al-

gumas pessoas — disse, um tanto ofegante por causa

das estranhas emoções que aquela carícia em suas

mãos estava suscitando.

— Você tem um dom precioso, Leah. Envergonho-

me de ter sido tão egoísta quando me aborreci ao saber

que passaria a maior parte do domingo longe de mim e

das crianças.

Page 184: O Milagre Do Coracão

Ela sorriu para o marido e quando seus olhares se

encontraram foi como se só agora começasse a

conhecer o verdadeiro Garlam Lundstrom.

— Eric Magnor é um bom homem, não? Os criados o

tratam com ternura e devoção, Gar. Esse tipo de

cuidado não se conquista apenas com bons salários.

Um leve sorriso brincou nos lábios carnudos de Gar.

— Sim, Eric é um bom homem. Existe uma certa

tristeza no fundo dos olhos dele, mas nunca chegamos a

falar sobre o assunto. — Baixou a voz até que se

tornasse quase um sussurro. — Ouvi dizer que a esposa

dele não era feliz aqui e por isso foi embora e nunca

mais voltou.

Leah meneou a cabeça de um lado para outro.

— Que pena! Esta casa tão grande e tanto dinheiro

sem ter com quem partilhar!

— Mas ele partilha isso sim, querida — Gar corrigiu-

a, tratando-a carinhosamente. — A maior parte dos

moradores de Kirby Falls trabalha na serraria e Eric os

paga mais do que bem. A igreja também recebe uma

parte substancial de sua generosidade. Para ser franco,

suspeito que ele invista muito mais nesta cidade do que

qualquer um de nós pode imaginar.

Page 185: O Milagre Do Coracão

Leah bocejou e sentiu seus olhos se encherem de

lágrimas, talvez pelo simples gesto de bocejar ou mes-

mo por ter ouvido a triste história de um homem so-

litário. Assim, pestanejou e libertou as mãos das de Gar

para levá-la a boca e conter um segundo bocejo.

— Estou muito cansada, sr. Lundstrom — murmu-

rou, desejando recostar a cabeça no peito largo e ceder

aos impulsos do corpo. Entretanto, em vez disso, baniu o

pensamento insano para longe e ficou em pé.

— Acha que é seguro ir embora e deixá-lo sem sua

assistência? — Gar indagou, levantando-se rápido e

segurando-a pelo braço.

- Sim, o sr. Magnor está dormindo profundamente.

Creio que o pior já passou.

Com movimentos vagarosos, Gar a conduziu até a

porta da frente.

— O que há de errado com Eric?

Leah deu de ombros.

— Não sei com certeza. Ele só tem uma dor nas

costas que deve ter sido causada pelas distensão dos

músculos por causa da febre e dos tremores. E difícil

dizer se tem uma infecção na garganta ou em outra

parte qualquer do corpo. — Virou-se para olhar Sarah

Perkins que descia as escadas de mármore.

Page 186: O Milagre Do Coracão

— Vou abrir a porta para a senhora, sra. Lundstrom.

— Obrigada, Sarah. E cuide para que seu patrão

tome água de hora em hora. O corpo dele precisa ser

hidratado, a água sempre ajuda a eliminar infecções. E,

caso a febre volte, prepare um chá com as ervas que

deixei e faça-o beber uma xícara cheia.

— Sim, senhora farei isso. Thomas está com ele

agora. Depois vou levar uma jarra de água fresca para

deixar no quarto. — Apesar do cansaço, a governanta

estava ereta e sem um único fio de cabelo fora do Lugar

quando abriu a porta da frente e se despediu de Gar e

Leah.

— Voltarei aqui na terça-feira — Leah prometeu.

- A não ser que ele piore amanhã. Se isso acontecer,

mande o cocheiro me buscar na fazenda que virei vê-lo.

Sarah assentiu novamente.

— Pode ficar tranqüila, senhora. Cuidaremos bem

dele. E tenho certeza de que meu patrão gostará muito

de vê-la retornar a esta casa.

Leah agradeceu e cambaleou levemente enquanto

seguia até a carroça de Gar.

Ao vê-la cambalear, Gar passou-lhe o braço pela

cintura e a trouxe para junto de si.

Page 187: O Milagre Do Coracão

— Você está bem? — indagou preocupado. Então,

sem esperar por uma resposta, ergueu-a do chão e

cuidou de acomodá-la no assento de couro.

Leah aceitou o gesto sem reclamar. De repente, um

grande cansaço a dominava. Era como se estivesse qua-

se sem forças. No entanto, esta não era uma situação

nova para ela. Havia ocasiões em que tivera de passar

não só uma noite mas também alguns dias velando pela

saúde de seus pacientes. Essa noite, no entanto, sentira

algo inteiramente diferente dos acontecimentos

anteriores. Sim, era como se conhecesse o paciente há

muito, muito tempo e houvesse laços incompreensíveis

unindo-os num só espírito, por isso, agora se sentia tão

fraca quanto o próprio Eric Magnor. Como poderia ser?

Leah não sabia e nem pretendia explicar o inexpli-

cável, assim, ergueu os olhos e olhou para a janela do

quarto no segundo andar, onde o mordomo velava pelo

sono do patrão.

— Espero que fique tudo bem — murmurou

suspirando.

— Vai ficar, querida. Vai ficar. Agora repouse sua ca-

beça em meu ombro — Gar sugeriu com ternura,

colocando os animais em movimento e aproximando-se

mais dela.

Page 188: O Milagre Do Coracão

Leah obedeceu e, ao fechar os olhos, ouviu-o sus-

surrar outra vez:

— Leah, ah Leah! — Era apenas o som de seu

nome, mas preferido de uma forma tão carinhosa e

gentil que a fez sentir-se abraçada e amada como uma

criança que procura o colo da mãe para protegê-la do

mundo. Leah…

O bebê se ajeitou em seus quadris à medida que

Leah entrava no armazém geral. Um dos braços cheios

de dobrinhas de Karen estava nas costas de Leah, onde

a mãozinha atrevida mexia-lhe na trança que deixara

solta, a outra mão a menina erguia para acenar para as

pessoas que a cumprimentavam.

Ah, não havia nada como um bebê para ajudar

alguém, pensou Leah, respondendo aos cumprimentos

e sorrisos ao mesmo tempo que caminhava para o

balcão.

Bonnie Nielsen a observou com o cenho franzido

enquanto passava o dedo sobre o nariz de Karen.

— Você parece exausta, Leah. Por acaso dormiu um

pouco?

Page 189: O Milagre Do Coracão

- Claro. Eu tirei um cochilo ontem. O pobre Gar que

teve de trabalhar o dia inteiro nas plantações para

ajudar os rapazes.

— Por falar nisso, meu irmão afirma que seu Gar é

um bom homem — Bonnie contou, apoiando-se sobre o

balcão. — Lars disse que ele trabalha duro e que

também paga bem a seus ajudantes. Leah concordou.

— Sim, Gar é justo e se dá muito bem com seus aju-

dantes. Até mesmo permitiu que Benny Warshem cons-

truísse uma casa perto do campo de feno. Banjo vai para

casa todas as noites, mas ele e seu irmão chegam à

fazenda bem cedo, logo depois do café da manhã.

— E você veio à cidade sozinha hoje? — Bonnie

indagou, espiando por sobre o ombro de Leah para ver

se mais alguém cruzava a porta envidraçada.

- Não. Gar mandou Lars comprar um pouco de

madeira na serraria. Está construindo baias novas no

estábulo para acomodar melhor as éguas.

— E você já visitou seu paciente? — a filha do dono

do armazém quis saber.

O fato de todos ao redor delas se calarem

abruptamente fez Leah perceber que já sabiam do que

acontecera e estavam interessados em suá resposta.

Page 190: O Milagre Do Coracão

— Não, não vi, mas depois daqui irei até lá e Lars

deverá me apanhar quando sair da serraria.

— Ouvi dizer que foi o próprio dr. Swenson quem

pediu sua ajuda, Leah — a sra. Pringle apressou-se em

dizer. — A casa de Eric é mesmo tão elegante quanto

aparenta por fora?

Leah ignorou á curiosidade excessiva das perguntas

e respondeu apenas o que julgou ser correto.

- É verdade, eu fui visitar o sr. Magnor.

- Eric é um homem muito gentil — Eva Landers

declarou, saindo de sua escrivaninha no canto da loja e

caminhando até Leah. Estava segurando um envelope

nas mãos, o que fez com que o coração de Leah batesse

descompassado. — Isto é para seu marido — anunciou

Eva.

Leah suspirou e aceitou o envelope que lhe era en-

tregue. Dois meses já haviam se passado desde o dia

em que recebera a carta de Anna Powell e talvez ti-

vesse se preocupado à toa. Provavelmente, ninguém

mais estaria procurando uma parteira que desaparecera

de Chicago após a morte do bebê dos Taylor. Ou, pelo

menos, era nisso que desejava piamente acreditar.

Page 191: O Milagre Do Coracão

A mansão de Magnor ficava a pelo menos um qui-

lômetro do armazém e as pernas de Leah já começavam

a dar sinais de cansaço, o que se agravava por ter de

carregar Karen nos braços e também ser obrigada a

parar várias vezes no caminho para responder os

cumprimentos dos moradores da cidade, além de

perguntas sobre a saúde de Eric, já que todos tinham

ouvido falar sobre o que acontecera no domingo. As

notícias se espalhavam depressa em Kirby Falls e isso

era um dos inconvenientes de uma cidade pequena,

porém, Leah sabia que muitos dos que a interrogavam

tinham interesse genuíno na melhora do dono da

serraria.

O sol brilhava forte quando ela finalmente subiu os

degraus que conduziam à porta da frente da casa

branca e ergueu o punho para tocar o sino preso na

madeira entalhada.

Quase que imediatamente, Sarah atendeu, receben-

do-a com um sorriso de boas vindas.

- Ah, sra. Lundstrom, que bom vê-la. O patrão está

perguntando pela senhora desde que acordou. — Fez

Leah entrar no hall e depois a conduziu até outro par de

portas que se abriam na sala de visitas. — Sr. Magnor, a

Page 192: O Milagre Do Coracão

sra. Lundstrom acaba de chegar — anunciou com

exagerada satisfação.

- Sra. Lundstrom — Eric Magnor surgiu a sua frente,

tomou-lhe a mão nas suas e beijou-a como um

cavalheiro deveria fazer. — Por favor, entre em meu

estúdio. — Seu olhar recaiu sobre Karen e então voltou-

se para Sarah que entendeu perfeitamente a

mensagem.

— Deixe-me cuidar do bebê — a governanta se ofe-

receu. — Pode ficar tranqüila que vou levá-la para

cozinha e lhe dar um biscoito.

Leah entregou a menina de bom grado, pois seus

braços já estavam adormecidos por carregá-la durante

tanto tempo, e logo se viu conduzida ao interior do

estúdio de Eric Magnor.

Aquele era um aposento impressionante. Duas das

paredes eram cobertas por enormes prateleiras repletas

de livro e na parte dos fundos ficava uma imensa janela

enfeitada por cortinas de renda branca com xale em

veludo verde-musgo. Havia também uma grande

escrivaninha de carvalho, sobre o qual estavam diversos

papéis e livros.

Page 193: O Milagre Do Coracão

Diante da lareira de mármore branco estavam dis-

postas duas cadeiras e foi exatamente para lá que Eric a

conduziu.

— Queira se sentar, por favor, madame. — A voz

dele estava trémula e rouca, talvez por causa da doença

ainda, Leah ponderou.

— Obrigada, senhor. — Escolheu a cadeira mais

perto da porta e acomodou-se no assento confortável.

- Ah, meu bebê estava tão pesado que estou

sentindo meus braços adormecidos — contou com um

riso suave. — Da próxima vez virei de carroça até sua

casa.

- Espero mesmo que o faça, senhora — Eric atalhou

franzindo o cenho. — Não é fácil caminhar com uma

criança pesada nos braços. Se tivesse pedido, teria

mandado o cocheiro buscá-la.

Leah recusou a oferta com movimento de cabeça.

— Ah, não! A carroça de meu marido está aqui perto

serraria. Gar mandou o jovem Nielsen buscar algumas

madeiras para construir baias novas e eu vim com Lars

para a cidade. O rapaz também deverá passar aqui para

me apanhar e levar-me para casa.

- Não quero lhe causar nenhum inconveniente, sra.

Lundstrom. Já tenho uma grande dívida para com a

Page 194: O Milagre Do Coracão

senhora. — Eric Magnor inclinou-se para frente na

cadeira e explicou: — Chamei Berg Swenson outras

vezes quando estive doente, mas nunca fiquei tão abor-

recido com a incompetência dele quanto agora. Swen-

son não tinha a menor noção do que fazer para me

ajudar. Imagine que pensou até em colocar um pouco de

bálsamo na sola de meus pés para ajudar a febre baixar.

— O olhar consternado que acompanhou tal revelação já

falava por si só.

Não era preciso ser muito esperto para descobrir

que o velho médico perdera todo o crédito com o dono

da serraria, Leah deduziu, mas absteve-se de fazer

qualquer comentário.

- Estou em dívida para com a senhora, era. Lunds-

trom. — Eric ficou em pé e caminhou até a lareira.

- Mas, além de minha gratidão, também gostaria

que aceitasse minha amizade. Creio que podemos ser

amigos, não? Quero que saiba que tudo o que tenho

nessa vida está a seu inteiro dispor.

Leah sentiu uma estranha emoção pulsar em seu

peito.

- Por favor, ar. Magnor, não pedi um único centavo

por ter vindo ajudá-lo. Sua oferta de amizade, para mim,

já é um pagamento mais do que suficiente. Não estou

Page 195: O Milagre Do Coracão

precisando de nada e sua recuperação é o que me deixa

mais feliz nessa história toda. Também é reconfortante

saber que ganhei um amigo.

— A senhora é uma mulher muito especial. — Ele

fez uma pausa e o queixo tremeu um pouco, como se

estivesse tendo dificuldade em controlar suas emoções.

- Posso chamá-la de Leah? Não quero ser

presunçoso, mas sinto como se já nos conhecemos há

tempos.

— Leah está bem para mim — respondeu com sin-

ceridade. — Vim aqui hoje porque queria ver se está

plenamente recuperado, sr. Magnor e também porque

prometi que o faria. O senhor não teve mais febre, teve?

Ele negou com um movimento de cabeça.

— Não tive nada. Acordei ontem de manhã, ou me-

lhor, à tarde, sentindo-me refrescado. Talvez tenha sido

por causa dos galões de água que meu ajudante

despejou em minha garganta durante toda a noite. E,

pelo que ouvi, Thomas só estava seguindo suas ordens.

Leah riu diante do bom humor dele.

— Minha mãe sempre dizia que beber bastante a

água era como dar uma boa lavada por dentro de nosso

corpo e por isso ajudava a curar muitas doenças. Fico

feliz que esta velha crença de família o tenha ajudado a

Page 196: O Milagre Do Coracão

se recuperar. Precisou tomar mais chá ao longo da

noite?

— Não, graças a Deus. O gosto era forte e amargo

demais. De qualquer forma, seja qual for a origem das

ervas que usou, preciso reconhecer que funcionaram

direitinho. E, pode estar certa, minha boa senhora, que

nunca mais mandarei chamar o dr. Swenson quando eu

estiver doente.

Um leve rubor tingiu as faces de Leah.

— Ora, estou certa de que o velho doutor tem seus

talentos. Nem todo mundo usa o tipo de remédios que

minha mãe me ensinou a fazer com as ervas.

— Sua mãe também era uma curandeira? — A voz

de Eric Magnor estava baixa e contida quando ele voltou

a se aproximar de onde Leah estava sentada. — Onde

vocês moravam, quero dizer, você e sua mãe?

Leah forçou-se a sorrir.

- Na cidade grande. Fomos para lá há muitos anos e

mamãe… — Ergueu as mãos do colo e movimentou-as

de forma a dar o assunto por encerrado. — Estou certa

que o senhor não vai querer ouvir essa história

enfadonha. Basta dizer que acabei voltando para Kirby

Falls há alguns anos, porque a cidade grande não é para

mim.

Page 197: O Milagre Do Coracão

- Sente-se melhor aqui? — indagou o velho senhor,

seus olhos fitando-a num misto de ternura e interesse

enquanto esperava por uma resposta.

— Sim — Leah confirmou, notando o véu de tristeza

que encobria os olhos de Eric Magnor. — Mas é melhor

sentar um pouco, senhor. Precisa poupar suas forças

para ficar completamente bom.

Surpreendentemente, Eric assentiu e acomodou-se

na cadeira ao lado.

- Confesso que ainda estou um pouco fraco, mas

meu apetite está ótimo, Leah. Como já disse, acho que

foram os remédios que me deu que me ajudaram a estar

em pé hoje. — Sorriu de maneira afetuosa e, com um

leve meneio de cabeça, acrescentou: — Ficaria muito

feliz se viesse me visitar outras vezes. Gosto muito de

sua companhia.

Leah abaixou a cabeça, talvez para ocultar o leve

sorriso que tais palavras suscitaram. Nunca antes tinha

sido tão prontamente aceita por alguém, exceto pelo

doce Kristofer e Karen, é claro. Até mesmo Gar…

Bastou pensar nele para se lembrar de todos os de-

veres que a esperavam na fazenda. Além do quê, Gar

deveria estar esperando pela madeira para começar a

construir as baias e logo iria querer seu jantar. O fato de

Page 198: O Milagre Do Coracão

Ruth ter lhe prometido que ajudaria na casa se fosse

preciso, não lhe dava o direito de abusar da boa vontade

da mulher. Era sua obrigação cuidar do bem-estar da

família e ficar sentada aqui, nesta sala absolutamente

maravilhosa, conversando sobre amenidades, era muita

irresponsabilidade de sua parte.

— Preciso ir — disse e levantou-se, mas gesticulou

para que seu anfitrião permanecesse sentado. — Por

favor, sr. Magnor, não se levante. Posso muito bem

encontrar a saída. — Exibiu um breve sorriso. — Só que

primeiro preciso encontrar meu bebê. Estou certa de

que sua governanta não está preparada para as

peraltices e exigências de Karen, ela é uma menininha

muito sapeca.

Eric Magnor inclinou-se em sua direção, mesmo sem

se levantar.

— Você é feliz, Leah? — As palavras estavam im-

pregnadas de uma urgência inexplicável e o olhar que

lhe dirigiu exibia um interesse desmedido. — Sei que

sua vida pessoal não é de minha conta — apressou-se

em dizer —, mas acontece que me preocupo com seu

bem-estar. Afinal, cuidou do meú como ninguém jamais

havia feito antes.

Page 199: O Milagre Do Coracão

Leah virou-se a fim de avaliar o homem que tinha

pedido sua amizade e que agora lhe fazia perguntas

íntimas, mas não viu nenhum sinal de malevolência em

tal gesto, muito pelo contrário, ele parecia estar

genuinamente interessado em sua felicidade e inspirava

confiança, como se fosse o velho tio favorito que ela

nunca tivera.

— Sim, tenho uma vida boa na fazenda —

respondeu apressadamente. — O sr. Lundstrom me trata

multo bem — acrescentou, sabendo que todos na cidade

comentava que Gar só se casara para ter alguém que

cuidasse dos filhos e da casa.

Eric assentiu.

- Imaginava mesmo que tratasse. Até onde sei,

Garlam é um homem honrado.

Leah virou-se para a porta e descobriu Sarah parada

lá, com Karen adormecida em seus braços.

- Ela dormiu antes mesmo de comer alguma coisa —

sussurrou, relutante em entregar-lhe o bebê de volta. De

qualquer forma, Leah pegou a filha de seu coração e

rumou para o hall de entrada da suntuosa mansão. A

carroça da fazenda já estava na metade da ladeira que

levava à frente da casa e, em questão de minutos, Leah

Page 200: O Milagre Do Coracão

já havia se acomodado ao lado de Lars Nielsen e Karen

continuava adormecida em seus braços.

Ela olhou para trás enquanto Lars virava a carroça

numa espécie de circulo para retornar por onde viera e

divisou um vulto escuro atrás de uma das janelas

envidraçadas, provavelmente a do estúdio. Ergueu a

mão para acenar e sorriu quando Eric Magnor retribuiu

seu gesto.

Ele estava bem, quase totalmente recuperado, e

Leah sentia uma grande satisfação ao pensar que

colaborara pana o bem-estar de um ser humano. Por

certo, Gar também ficaria feliz ao ouvir as boas notícias.

— O quê?! Ele quer ser seu amigo? Você tem de ter

senhoras como amigas, Leah. Eric Magnor pode ser meu

amigo, não seu. Não é correto pana uma mulher visitar

um homem que vive sozinho e ainda por cima chamá-lo

de seu amigo!

Ah, nunca deveria ter contado a ele sobre a

conversa que havia tido com Eric!, Leah ponderou com

um suspiro. Estava atrasada com o jantar por ter

passado grande parte do dia fora e por isso corria de um

Page 201: O Milagre Do Coracão

lado para outro servindo o frango em molho e o purê de

batata que acabava de preparar.

- Pois saiba que o que eu disse não significa que

passarei horas visitando o pobre homem, Garlam

Lundstrom. Ele simplesmente me agradeceu pela ajuda

e pediu que o considerasse como um amigo. Como eu

não tenho muitos, achei que era uma boa idéia aceitar a

oferta. Agora, se você não gostou, o problema é seu. O

que está feito está feito! — exclamou, dando-lhe as

costas.

O grunhido dele a preveniu de que estava muito

zangado.

Ah, Leah ainda iria levá-lo a loucura com eu gênio

indomável e atitudes desafiadoras!, Gar pensou exas-

perado. Ela estivera fora durante toda manhã e boa

parte da tarde e embora soubesse que a viagem até

Kirby Falls não tivesse levado muito mais tempo do que

o necessário, Gar se irritava. Principalmente quando se

lembrava de ter ficado de olho na estrada esperando a

carroça da fazenda regressar com seus passageiros e o

carregamento que pedira.

Havia dito a si mesmo que era a madeira que es-

perava com tanta impaciência, mas, bem lá no fundo,

sabia que estava ansioso para ter Leah de volta.

Page 202: O Milagre Do Coracão

O beijo que lhe roubara na varanda não tinha sido

suficiente. E ainda assim fora muito mais do que espe-

rava. Como Leah conseguia ser tão imprevisível? Ao

mesmo tempo que reagia a um beijo seu como uma

virgem inexperiente, era capaz de lhe dizer “se não

gostou o problemas é seu”. Como podia ser tão ousada?

Uma mulher não deveria ser tão rude com o marido,

deveria?

De súbito, Gar ficou em pé ignorando o fato de a

cadeira ter caído no chão com a impetuosidade de seu

gesto. Com dois passos cruzou a distância que os se-

parava e no momento seguinte segurou-a pela cintura,

erguendo-a e colocando-a sentada sobre o balcão da

cozinha, entre o moinho e torradeira de café.

- Garlam Lundstrom! O que você está fazendo? —

esbravejou Leah, suas palavras abafadas pela palma de

uma mão enorme que lhe cobria a boca.

- Estou colocando as coisas em seus devidos lugares

em minha cozinha — replicou ele num tom mordaz.

— “Minha cozinha”! — corrigiu-o. — E trate de me

colocar no chão agora mesmo.

— Somente depois de entrarmos num acordo, mo-

cinha — Gar declarou, inclinando-se de forma que seus

olhos se encontrassem. — Você tem uma língua muito

Page 203: O Milagre Do Coracão

afiada. Será que nunca ninguém lhe disse que isto

acabaria colocando você em maus lençóis?

- Pai? Você está bravo com a dona Leah? — Kristofer

interferiu, remexendo a comida no prato que tinha

diante de si.

- Ah, veja só o que você fez! — Leah resmungou,

preocupada com o menino.

- Pode ficar tranqüilo, Kris, que não estou bravo com

Leah — falou suavemente com o filho.

Leah inclinou-se para frente, tentando descer do lu-

gar onde fora colocada, e Gar inalou o cheiro de canela e

maçã que emanava dela, por causa da torta que

colocara no forno poucos minutos antes.

Esse aroma mesclado ao cheiro natural da pele alva

e acetinada atuou como um afrodisíaco sobre seu corpo

vulnerável, e, sem poder se controlar, Gar cobriu a boca

de Leah com a sua.

Os lábios fartos estavam quentes e macios, e, a me-

nos que estivesse muito enganado, aqueles lábios tam-

bém ansiavam por provarem o gosto dos dele. Animado

com a descoberta, Gar sugou-lhe o lábio inferior, antes

de se concentrar no superior e forçá-la a abrir mais a

boca para vasculhá-la com a língua experiente.

Page 204: O Milagre Do Coracão

O gemido que ela emitiu era típico de uma mulher

que reconhece a urgência e a necessidade do desejo

físico que a acomete.

Então, ao vê-la apoiar-se em seu peito, Gar sentiu

uma onda de prazer invadi-lo. Céus, os seios redondos e

firmes estavam pressionados contra seu tórax, dei-

xando-o ainda mais consciente da beleza e feminilidade

de tais atributos e obrigando-o a conter seus próprios

gemidos para não assustá-la.

No entanto, uma sonora batida na porta o trouxe de

volta à realidade, ainda que a contragosto.

— Sim? — Gar respondeu, ainda sentindo o sabor

dos lábios doces que estiveram colados aos seus.

— Gar? Um dos novilhos ficou preso no atoleiro e

precisamos tirá-lo de lá — gritou Banjo Kemmel da

varanda dos fundos da casa.

— Está bem, já vou — Gar prometeu ao empregado

cuja silhueta podia ser vista através da tela da porta e

seus olhos voltaram a se concentrar na mulher que

ainda estava em seus braços. Suas narinas pulsaram

enquanto respirava fundo pana sentir-lhe o perfume

mais uma vez e seus braços a apertaram com força,

hesitando em deixá-la.

Page 205: O Milagre Do Coracão

Leah o fitou languidamente, as mãos apoiadas no

peito viril do marido e a boca entreaberta como se ainda

não tivesse se refeito do beijo que haviam partilhado.

— Gar? O que… Gar?

Ele a colocou no chão, segurando-a pela cintura

com mãos firmes.

- Preciso sair para desatolar aquele novilho, Leah —

falou com voz rouca.

— Está bem, então me solte — disse ela, recompon-

do-se e olhando de soslaio para Kristofer que assistia à

cena em silêncio. — Kris e eu vamos dar comida pana

Karen enquanto você cuida dos animais — acrescentou,

sorrindo para o menino. — Coma querido.

— Sim, dona Leah. — Parecendo mais tranqüilo, Kris

abaixou a cabeça e levou uma porção de frango aos

lábios. — Ah, está comida parece ótima — elogiou,

observando o molho suculento e o purê que fora dis-

posto em seu prato, enfeitado com algumas folhas de

ervas finas da horta da fazenda e bolinhos quentes.

— Humm, parece mesmo — Gar concordou, o arre-

pendimento tingia suas faces de vermelho. Nunca de-

veria ter beijado Leah na frente do filho. — Senão for

pedir muito, Leah, guarde um pouco no forno para mim

e para Banjo, porque ele certamente deverá jantar aqui

Page 206: O Milagre Do Coracão

esta noite. Devemos demorar um pouco para desatolar

aquele novilho e com todos irmãos e irmãs que Banjo

tem, não vai sobrar nada na panela quando ele chegar

em casa.

- Pode deixar — prometeu ela, voltando a se con-

centrar na comida e dando-lhe as costas.

Bem, depois do que acontecera, até que era um mi-

lagre que ela estivesse respondendo às suas perguntas,

concluiu Gar, girando nos calcanhares e saindo para o ar

fresco do final de tarde.

Encontrou Banjo no meio do pátio, selando os ca-

valos que usariam para ajudá-los a tirar o novilho do

atoleiro. E, mesmo durante todo o tempo que se con-

centrou no trabalho, mergulhando na poça de lama que

havia no pasto atrás do celeiro, Gar não deixou de

pensar em como fora bom beijá-la. Deveria ser muito

melhor ainda tê-la sob os lençóis de sua cama….

CAPITULO VIII

Page 207: O Milagre Do Coracão

O bolo de lama grudava em seus pés e pernas e

pingava pelo chão à medida que caminhava, cada passo

exigindo mais esforço do que o habitual. As botas que

carregava pareciam pesar muito mais do que se

lembrava. Gar estava encharcado até os ossos e sua

mente voltou-se para o frango em molho e o purê que

Leah deixara no fogão. Claro que, a esta altura, o

bolinho de massa já deveria ter perdido a consistência,

mas, com a fome que ele sentia, isso pouco importava.

Banjo estava alguns passos atrás do patrão, pare-

cendo alegre e orgulhoso pela façanha que acabavam

de realizar.

— Sr. Lundstrom, o senhor laçou aquele danado e

puxou-o como eu nunca vi ninguém fazer antes.

E era verdade, mas o fato de ter precisado entrar na

lama até os joelhos diminuía um pouco a satisfação de

Gar pela tarefa realizada, por isso, ele se limitou a

concordar com um leve menear de cabeça.

— Será que dona Leah guardou alguma coisa para

nós comermos, sr. Lundstrom? — Banjo rumou para a

bomba d’água, ligando-a e colocando a cabeça sob o

jato para molhar os cabelos e o rosto. — Uau! — ex-

clamou, antes de passar os dedos por entre as madeixas

escuras e esfregar as mãos embaixo da água gelada.

Page 208: O Milagre Do Coracão

A simples idéia de precisar se lavar na água fria fez

Gar virar na direção da varanda.

— Leah! — chamou, pois a vira na janela minutos

antes. Com um pouco de sorte, talvez houvesse água

quente no reservatório que mantinham na cozinha e 1

pudesse se lavar com ela. — Leah! — gritou outra vez, e

logo a viu surgir na porta da cozinha.

Ah, Leah deveria ter lido sua mente!, Gar concluiu,

agradecendo aos céus ao vê-la carregando uma enorme

bacia com água fumegante.

— Estou aqui, Gar. Você nem me deu chance de

responder direito. Demorei um pouco para sair porque

precisei encontrar uma bacia que fosse grande o bas-

tante para caber. seus pés.

— Meus pés? — ele parou na grama, abaixo do úl-

timo degrau da varanda, e a observou colocar o reci-

piente de alumínio no assoalho de madeira. Uma toalha

estava pendurada em seus ombros e também um

paninho para se esfregar. Como se não bastasse, Leah

pegou uma barra de sabão do bolso do avental e es-

tendeu-a na direção do marido.

— Vou empurrar a bacia um pouco mais para frente

e você poderá esfregar as mãos e o rosto primeiro,

depois suba até aqui e cuidaremos de seus pés.

Page 209: O Milagre Do Coracão

— Cuidar de meus pés?! — repetiu ele, não enten-

dendo direito quais eram os planos dela. Ao abaixar-se e

lavar o rosto e as mãos, teve de admitir que a água

quente era um alívio para alguém cuja coceira já havia

se espalhado por todos os pontos onde a lama havia

grudado. Por sorte, a água quente era o bastante para

dissolver os resíduos enquanto esfregava a pele das

faces.

— Ah, agora já está se parecendo mais com um ser

humano — Leah atalhou num tom provocante.

O alívio o fez dar um longo suspiro. Ela não estava

zangada. Não ficara brava por tê-la beijado a força antes

de sair da cozinha. Isso era muito bom!

Surpreendendo-a ainda mais, Leah o fitou demora-

damente por sob os longos cílios dourados.

— Está parecendo terrivelmente cansado, sr.

Lundstrom.

— Sim, estou mesmo. Mas o pior já passou. O

novilho está seguro em terra firme e eu também estou

quase limpo, graças à voce. — Curvando-se sobre a

bacia, uniu as mãos em concha, encheu-as de água e

jogou-a nos braços. — Eu estava com medo de enfrentar

a água fria da bomba — confessou.

Page 210: O Milagre Do Coracão

— Acho que estou precisando arrumar uma boa es-

posa para mim, sr. Lundstrom. — .Banjo disse, um pouco

mais atrás. — Afinal, quero ser tão bem tratado quanto o

senhor. Essa é uma vida de rei, não?

Gar fitou o empregado com uma expressão

divertida no olhar. Seu humor tinha melhorado bastante

graças ao gesto atencioso de Leah.

— É uma boa idéia, Banjo, mas pode procurar em

outro lugar, meu caro, porque esta já tem dono: é

minha.

— Suba na varanda, Gar — Leah orientou-o, mo-

vendo a bacia mais para a beirada do assoalho de ma-

deira. — Segure-se naquele pilar e estique o pé em cima

da bacia para mim.

Ele a fitou intrigado. O que Leah estaria planejando?

Mesmo sem entender, fez o que era dito. Incrédulo,

observou-a se ajoelhar, segurar seu pé com as mãos e

começar a esfregá-lo com o pano cheio de espuma.

As mãos de Leah trabalhavam rapidamente, esfre-

gando-lhe não só os pés mas também a parte inferior

das pernas.

— Agora pise aqui — instruiu-o, colocando a toalha

limpa no chão e mandando-o se secar.

Page 211: O Milagre Do Coracão

Em questão de minutos, Leah já tinha terminado a

outra perna e pé e se levantava para jogar a água suja

no terreiro, do outro lado da varanda. Quanto ao

paninho de esfregar, pendurou-o numa corda que man-

tinha na varanda, como uma espécie de varal impro-

visado. Então, com as mãos nos quadris, fitou-o com um

brilho divertido no olhar.

— O que está esperando, Garlam? Eu só lavei, não

pretendo secar também — declarou empertigada. —

Agora vou tirar seu jantar do fogão — disse, antes de

girar nos calcanhares e entrar na casa.

- Acho que o senhor vai ter de se enxugar sozinho,

patrão — Banjo riu. — E rápido, porque dona Leah já

está mexendo nas panelas.

— Sim, tem toda razão, meu caro — concordou e

executou a tarefa o mais rápido que pôde. Poucos mi-

nutos depois, já estavam sentados à mesa, provando do

jantar que fora requentado.

Banjo comeu rapidamente e ainda limpou o prato

com um pedaço de pão de milho que Leah fizera no dia

anterior. Assim que terminou, o rapaz se levantou e

seguiu para a porta.

Page 212: O Milagre Do Coracão

- Estarei aqui amanhã bem cedo, patrão — pro-

meteu alegremente. — E obrigado outra vez pelo jantar,

dona Leah.

O ajudante se foi e Gar passou a comer mais

vagarosamente, as dores de estômago minimizadas

pelas porções generosas que já engolira. Foi naquele

exato momento que observou Leah trazer Karen da sala

de estar, onde costumava colocá-la sentada no tapete

com uma porção de brinquedos, para a cozinha.

O bebê esticou o bracinho rechonchudo para o pai.

— Ela sentiu sua falta durante o jantar — contou

Leah, sentando-se na cadeira de balanço com a menina

no colo. Havia uma camisola de flanela e uma fralda

limpa bem ao lado, e, em pouco tempo, a pequenina já

estava pronta para dormir.

— Nunca alguém lavou meus pés — Gar comentou,

as palavras escapando-lhe dos lábios antes mesmo que

pudesse perceber o que fazia.

— Ah, mas eu aposto que sua mãe lavou sim, e

mais de uma vez, meu caro — gracejou Leah, beijando a

palma das mãos de Karen e fazendo com que a garota

risse divertida.

— Você sabe exatamente como agradar Karen —

murmurou Gar, comendo o último pedaço de frango que

Page 213: O Milagre Do Coracão

tinha no prato. — As vezes, fico me perguntando se

Hulda fazia isso com Kristofer quando ele era um bebê.

Não consigo me lembrar de vê-la rindo e brincando com

o filho.

— Claro que brincava. Você não lembra porque tal-

vez não tenha prestado atenção — argumentou ela,

fitando-o por sobre a cabecinha de Karen. — Tenho

certeza de que Hulda era uma mãe muito dedicada.

— Sim, ela era muito boa para o garoto. Más era

sempre tão quieta e calada, em certos momentos me

parecia quase triste. — Levantou-se da cadeira e levou o

prato à pia. — Acho que não devo falar sobre Hulda com

você, não é?

Leah negou com um movimento de cabeça.

— Pode falar sobre sua falecida esposa todas as ve-

zes que quiser, Gar. Ela foi parte de sua vida e mãe de

seus dois filhos.

— Sim, e essa pequenina que tem nos braços nem

chegou a conhecê-la. Vai pensar que…

— Diremos a verdade a Karen quando ela tiver

idade para entender — Leah o interrompeu. — Ela

precisa saber que a mãe deu a vida para que ela

pudesse nascer e viver.

Page 214: O Milagre Do Coracão

- E assim que vê o que aconteceu com Hulda? —

inquiriu Gar, arqueando as sobrancelhas escuras. Por

alguma estranha razão, esta explicação nunca tinha lhe

ocorrido. Nem pensara que uma vida fora dada para que

outra pudesse existir. Ainda assim, isso fazia muito

sentido. Hulda sabia os riscos que corria e aceitara-os

sem reclamar e de bom grado.

- Claro. Hulda queria te dar outro filho e ela o fez. Se

quer saber, acho que morreu feliz, Gar. Ela sabia que o

bebê tinha sobrevivido. Ouviu Karen chorar e depois

beijou-a na testa. Estava com os lábios no rosto da filha

quando morreu.

Ele não sabia disso. Não sabia que Hulda vira a

criança que gerara. Tudo o que conseguia se lembrar

daquela noite era o sangue que cobria o lençol a palidez

mortal do rosto da esposa, depois a bagunça que Leah

limpara sozinha.

- Você nem me deixou ajudá-la — disse, com a

mente perdida em meio às lembranças das horas ter-

ríveis que sucederam o nascimento de sua filha.

- Aquele não era lugar para você, Gar — Leah co-

mentou, ninando a criança e impulsionando a cadeira de

balanço num ritmo suave. — Lembro-me que minha mãe

sempre dizia que homens nessas horas só atrapalham.

Page 215: O Milagre Do Coracão

- Mas a culpa de tudo que aconteceu foi minha —

admitiu em voz alta pela primeira vez. — Eu a culpei,

Leah, pois queria muito acreditar que Hulda só tinha

morrido porque você não cuidou dela direito. Agora que

olho para trás percebo que fui injusto. Minha mulher só

morreu porque ficou grávida e isso aconteceu por minha

causa.

Leah o encarou com ternura.

- Não, Gar, Hulda engravidou porque queria outro

filho. Ela me disse isso.

— Não sei; aliás, a única coisa que sei é que vou

carregar essa culpa pelo resto de meus dias — con-

fessou, seguindo para a porta e espiando a noite escura.

— Ela não iria gostar de vê-lo sofrer, ficou grávida

porque queria vê-lo feliz, Gar. Acho que Hulda não tinha

um pingo de egoísmo e por isso se doou inteira para sua

família.

— Sim. — Ele reconheceu a verdade contida em tais

palavras. — E eu não a tratei como deveria. Hulda era

uma boa mulher, mas não consegui me apaixonar por

ela. — Suspirou e virou-se para Leah. — Claro que

gostava de minha esposa, mas este não é o sentimento

que deve imperar em um casamento. Gostar, a gente

gosta de um amigo, mas os laços que nos unem a

Page 216: O Milagre Do Coracão

alguém com quem constituímos uma família precisam

ser, antes de tudo, de amor.

Leah o fitou, mas não disse nada. Era melhor deixá-

lo continuar.

— Meu pai e o de Hulda combinaram que nos ca-

saríamos assim que tivéssemos idade para fazê-lo e

nenhum de nós teve escolha.

— Como não? Vocês poderiam ter dito não, não

poderiam?

— Não naquela fase de minha vida. Fui criado para

fazer exatamente o que meu pai dissesse — contou Gar.

— Ele me deixou esta fazenda como herança, pois era

seu filho único, e nunca ousei contrariá-lo em nada. —

Suspirou outra vez. — Fui criado assim, Leah, mas

pretendo criar meus filhos de maneira bem diferente.

Eles terão direito a escolher o próprio destino.

— Tenho certeza de que terão — Leah assentiu com

um leve sorriso brincando nos lábios rosados. — Você é

um bom pai, Garlam. E seus filhos te amam muito.

— Nunca antes ninguém lavou meus pés — repetiu,

a lembrança daquele momento sobrepujando tudo o

mais que pretendia dizer.

- Só fiz isso porque não queria que trouxesse toda

aquela lama para dentro de casa. Já passo tempo de-

Page 217: O Milagre Do Coracão

mais esfregando a sujeira que você traz consigo quando

entra sem limpar os pés — comentou, o sorriso que

brincava no canto de seus lábios conferindo um tom de

gracejo ao comentário.

- Vou tentar ser mais cuidadoso de agora em diante

— prometeu Gar.

- Não se comprometa tanto — Leah o preveniu. —

Porque depois posso cobrá-lo, sr. Lundstron.

Gar riu.

- Sei que cobrará. Mas, diga, não quer que eu leve

Karen para a cama? — perguntou, vendo-a levantar da

cadeira com o bebê adormecido nos braços.

- Não, eu mesma a levo. Você poderia ajudar Kris-

tofer com os números. Ele está na escrivaninha da Bala.

Passei-lhe algumas contas para fazer.

Gar viu-a deixar a cozinha e ouviu-lhe o som dos

passos no assoalho da escadaria. Seu olhar acompa-

nhou-a, detendo-se no balançar dos quadris arredon-

dados até que Leah chegou ao último degrau.

Ela se virou antes de entrar no quarto de Karen e

durante um longo momento, seus olhares se encontra-

ram. Uma forte emoção os dominou, como se os

sentimentos os unissem num só corpo, uma só alma.

Page 218: O Milagre Do Coracão

Leah era sua esposa, a mulher que escolhera para si

sem a interferência do pai ou ninguém mais e ele sentiu

um grande orgulho ao imaginá-la como sua. Sim, só sua,

era delicioso pensar nela como a sra. Lundstrom.

Claro que, às vezes, Leah era teimosa e indepen-

dente demais para seu gosto, isto para não falar na

língua afiada que o tirava do sério. Mas esse era apenas

um dos lados da personalidade complexa que estava

mexendo com suas emoções, como nunca acontecera

antes. Ela era uma mulher que naquela tarde fizera algo

que ele jamais esqueceria: Leah lavara-lhe os pés.

Haveria gesto mais sublime e abnegado do que este?

Gar achava sinceramente que não…

— Chegou carta para você, Leah — Eva Landers

disse da escrivaninha onde arrumava o malote que

acabara de receber. Pouco atrás dela havia diversos

escaninhos de madeira com o nome dos moradores de

Kirby Falis, e, à medida que falava, Eva colocava as

cartas e cartões postais nos cubículos devidamente

identificados.

— Já vou pegar — Leah respondeu, seus dedos pro-

curando pelas moedas dentro da bolsinha de couro. No

entanto, o tremor que a percorreu diante da notícia que

Page 219: O Milagre Do Coracão

acabava de receber a impediu de segurar as moedas e

obrigou-a a virar a bolsa sobre o balcão para encontrar o

que queria. — Acho que tenho o valor exato aqui, Bonnie

— falou, mas um grande branco se apossara de sua

mente e tinha dificuldade de lembrar-se da quantia

exata que deveria pagar pelas compras.

Ao notar-lhe a indecisão, Bonnie inclinou-se sobre o

balcão e pegou três moedas.

— Está aqui, Leah, já peguei — anunciou, guar-

dando as moedas no caixa.

— Obrigada — Leah agradeceu, reunindo o con-

teúdo da bolsa e fechando-a outra vez. — Vou pegar

minha carta.

— Ah, duas cartas em um ano! Você está

começando a ficar popular, Leah — Eva brincou.

O envelope branco estava endereçado

simplesmente a Leah Gunderson, aos cuidados do

agente de entregas postais de Kirby Falis, sem endereço

do destinatário ou do remetente. Leah dobrou-o

rapidamente e o colocou em seu bolso, antes de

agradecer a Eva.

— E de alguém da cidade grande? — Eva

perguntou.

Page 220: O Milagre Do Coracão

— Deve ser — respondeu evasiva, forjando um sor-

riso. — Acho que Gar já deve ter terminado o que foi

fazer na serraria Eva. E melhor eu pegar o que comprei

e esperá-lo lá fora.

E foi o que ela fez. Depois de pegar os pacotes que

Bonnie preparara, levou-os até a calçada e olhou na

direção da serraria. A cidade ficava sempre muito mo-

vimentada nos dias de pagamento, mas naquele dia

estava ainda mais do que o habitual, com coches e

carroças vindo e indo em todas as direções.

— Bom dia, dona Leah — Brian Havelock saudou-a,

tocando na aba do chapéu e parando a uma distância

respeitável. — Ouvi dizer que senhora visitou o sr.

Magnor na semana passada. Pelo que soube também o

colocou em pé bem depressa.

Leah assentiu.

— Fiquei feliz em poder ajudar, sr. Havelock. — Ora,

certamente Gar já deveria estar a caminho, pensou, sem

dar muita atenção ao jovem. A carroça vermelha poderia

ser avistada de longe e Leah foi até a rua, ansiosa por

vê-lo surgir no horizonte.

— Aposto que Eric Magnor lhe pagou uma verda-

deira fortuna para visitá-lo no domingo de manhã, não

Page 221: O Milagre Do Coracão

pagou? — Brian comentou, empurrando o chapéu para

traz e mordiscando um palito de dentes.

— O que disse? — Leah estava chocada com as pa-

lavras grosseiras que acabava de ouvir. Será que tinha

se enganado ao julgar Brian como um amigo?

— Ora, a senhora sabe muito bem o que eu quis

dizer. Eric é cheio do dinheiro e deve ter-lhe pedido uma

boa quantia para curá-lo.

— O senhor está passando dos limites, sr. Havelock!

— exclamou ríspida. — Temo que não tenhamos mais

nada a dizer um ao outro.

Brian deu dois passos a frente e esticou a mão a fim

de segurá-la pelo pulso.

— Há muito venho me perguntando o que o

fazendeiro grandalhão fez para convencê-la a se casar

com ele, Leah. Agora acho que já sei. Garlam Lundstrom

está muito bem estabelecido naquela fazenda produtiva.

E você pode ficar tranqüila para o resto da vida, não?

Leah lutou para se libertar, mas o gesto só serviu

para fazer com que Brian a segurasse com mais força

ainda.

— Conte-me, foi bom dormir com um homem da

terra, Leah? — Riu zombeteiro. — Eu te ofereci um bom

lugar para viver nesta cidade e também um marido

Page 222: O Milagre Do Coracão

jovem e saudável para lhe fazer feliz e aquecê-la no

inverno. Você não deu a menor importância, nem

mesmo apareceu no baile aquele dia que prometeu dan-

çar comigo. — O riso agora estava impregnado de

amargura e desdém. — Perdeu a melhor chance de sua

vida, minha cara.

— Pois saiba que nunca achei sua proposta, muito

menos você, atraente, sr. Havelock — Leah falou por

entre os dentes, com medo de que a conduta deles co-

meçasse a chamar a atenção. — Quanto a não ter ido ao

baile, sabe muito bem por que não o fiz. Tive de cuidar

de Karen, foi naquele sábado que o pai a trouxe para

mim. E tem mais, meu marido ficaria muito zangado se

soubesse o que o senhor acaba de me dizer.

— Bem, duvido que a senhora tenha coragem de

contar a ele — Brian a desafiou. — De qualquer forma,

não se esqueça de que quando se cansar de seu fa-

zendeiro poderá vir me procurar. Passaremos bons mo-

mentos juntos, minha querida.

Leah puxou o braço com força e finalmente conse-

guiu se libertar dos dedos de aço. Tremia ao dar dois

passos atrás.

— Nunca mais ouse pôr suas mãos imundas em

mim, Brian Havelock! — grunhiu num tom baixo e

Page 223: O Milagre Do Coracão

controlado, mas nem por isso menos ameaçador. —

Tenho acesso fácil a muitas armas de caça de Gar e

estou certa de que posso aprender a usá-las com fa-

cilidade se precisar abater algum animal inoportuno.

Brian riu, mas se afastou.

— Por acaso está me ameaçando, querida?

Leah estava prestes a responder quando uma car-

roça vermelha surgiu mais a frente. Ela deu as costas a

seu antigo pretendente e ergueu a mão para acenar

para Garlam. Quando olhou para o local onde deixara

suas compras, viu que Brian tinha desaparecido rapi-

damente e agradeceu aos céus por isso.

Se ouvisse as barbaridades que Brian ousara dizer a

sua esposa, Gar faria mais do que apenas limpar a

poeira das ruas da cidade arrastando Brian pelos ca-

belos. E não estava nos planos de Leah tomar parte num

espetáculo público em plena rua principal da cidade.

— Você está pronta, Leah? — Gar foi logo pergun-

tando ao parar a carroça e saltar.

— Já trouxe as compras para fora. Estão ali — falou,

apontando para os muitos embrulhos que deixara na

calçada.

Page 224: O Milagre Do Coracão

— Puxa, hoje comprou a loja toda, não? — Os mús-

culos das costas e dos braços ficaram evidentes quando

ele se abaixou para pegar os pacotes.

Leah o observou acomodar tudo na carroça e depois

fitá-la com ar interrogador.

- Pronta? — inquiriu outra vez, esfregando as mãos

no lenço branco que sempre trazia no bolso.

- Estou. Mas você ainda não precisa passar no

ferreiro?

- Preciso sim, mas não demorarei mais do que dez

minutos por lá — prometeu Gar, ajudando-a a subir na

carroça.

- Se estacionar na sombra eu esperarei do lado de

fora. Assim poderei conferir minha lista com o que tem

aí atrás.

Ele aquiesceu e logo estavam seguindo pelas ruas

de Kirby Falls. Em menos de cinco minutos Gar já

estacionava a carroça sob a copa frondosa do casta-

nheiro que havia diante da oficina do ferreiro.

Gar desceu rapidamente e cumprimentou Sten

Pningle com um aperto de mão. Os dois homens

começaram a avaliar algumas ferraduras e Leah pegou o

leque para se abanar enquanto esperava. Sabia que o

marido precisava encomendar ferraduras novas para os

Page 225: O Milagre Do Coracão

animais da fazenda e que por certo estava discutindo

preços e condições de pagamento, portanto, não

adiantava ter pressa.

Leah apreciou a paisagem banhada pelo sol de

verão durante algum tempo, depois se concentrou em

manter as moscas afastadas de seu rosto, pois estas se

aglomeravam naquela parte da cidade uma vez que a

estrebaria era ao lado da oficina do ferreiro.

E foi justamente para esse último estabelecimento

que Eric Magnor conduziu o garanhão preto que cos-

tumava montar.

Leah observou animal e cavaleiro e achou que os

dois formavam um belo par, ambos tinham porte ele-

gante e altivo. Sim, porque apesar da idade que tinha o

sr. Magnor ainda era um homem bastante bonito.

Como se pressentisse que estava sendo observado,

Eric virou-se, e, ao notá-la, acenou-lhe gentilmente.

- Atenderei o senhor em um minuto, sr. Magnor —

Sten Pringle apressou-se em dizer, ao ver um de seus

melhores clientes saltar do cavalo e amarrá-lo diante da

loja.

- Não tenha pressa. — O dono da serraria respondeu

num tom polido, então tocou a aba do chapéu e seguiu

para junto de Leah.

Page 226: O Milagre Do Coracão

- Sra. Lundstrom, que prazer em vê-la! — O cum-

primento era jovial e os olhos acinzentados percorreram-

na de alto a baixo com grande interesse. — Não gostaria

de descer e esperar por seu marido naquele banco

embaixo da árvore? — sugeriu polidamente.

Leah negou com um movimento de cabeça.

— Não, obrigada, senhor. Gar não irá demorar. —

Sorriu e observou que as olheiras tinham quase desa-

parecido do rosto de Magnor, a pele também exibia uma

cor bastante saudável — Felizmente o senhor parece

muito bem. Ninguém diria que esteve tão mal na

semana passada — ela comentou, aliviada por vê-lo

recuperado.

- Sim, estou muito melhor, Leah — respondeu Eric,

usando seu nome de batismo e aproximando-se mais da

carroça. — Não sei nem como lhe agradecer pelo que

fez. Minha governanta e Thomas ainda proclamam aos

quatro cantos como a senhora cuidou bem de mim. Só

espero que agora as pessoas da cidade não resolvam

fazer fila diante da porta de sua casa para pedir ajuda.

Duvido que o sr. Lundstrom apreciaria ter a mulher

solicitada com freqüência.

Leah sorriu, alegre com o reconhecimento a seu tra-

balho. Era estranho, sempre recebera elogios com uma

Page 227: O Milagre Do Coracão

certa reserva, mas tinha uma empatia inexplicável com

Eric Magnor. Era como se soubesse que as palavras dele

vinham do fundo do coração e que não eram motivadas

por interesses obscuros.

- Como está sua menininha? Minha governanta ficou

encantada com ela e também com o menino que é

muito educado. Imagino que os dois a mantenham

ocupada o dia todo, não?

Um sorriso brincou nos lábios de Leah conforme ela

assentia.

- Bastante. Hoje estão com a esposa de um dos

empregados de Gar, mas confesso que já estou sentindo

saudade. Kris e Karen não são filhos de meu ventre, mas

são os filhos de meu coração. Eu os amo muito. Cuido de

Karen praticamente desde que nasceu e Kris é tão doce

e educado que seria impossível não amá-lo.

- Lundstrom é um homem de sorte por tê-la en-

contrado. E também muito esperto por ter se casado

com você, Leah. Espero que a esteja fazendo feliz.

O comentário foi feito num tom interrogador e Leah

o encarou durante alguns instantes, pensando em como

deveria responder.

Page 228: O Milagre Do Coracão

- Será que estou sendo muito atrevido ao lhe fazer

tal pergunta? — Eric questionou, perscrutando-a com os

olhos acinzentados.

Ela negou com um movimento de cabeça.

- Não, não está. E, se quer mesmo saber, Gar

Lundstrom é um bom marido e um ótimo pai.

- Fico feliz que seja assim. — Magnor murmurou,

passando os dedos pela lateral reluzente da carroça.

- Se algum dia houver alguma coisa que eu possa

fazer para ajudá-la, Leah, por favor, não hesite em me

dizer. Quero que saiba que minha casa sempre estará

aberta para recebê-la, seja a hora que for. Tenho uma

dívida muito grande para com você.

Leah sentiu um intenso rubor tingir-lhe as faces.

- O senhor não me deve nada, sr. Magnor. De qual-

quer forma, agradeço sua oferta.

- Leah? — A voz de Gar soou um pouco mais alta do

que o habitual e ela virou-se para encará-lo, notando de

pronto a ruga que se formava entre os olhos azuis e a

maneira como as sobrancelhas escuras tinham sido

levemente arqueadas.

— Olá, Gar. Já podemos ir? — perguntou, dobrando

o leque e cuidando de colocá-lo de novo no estojo.

Page 229: O Milagre Do Coracão

— Ah, sr. Lundstrom, eu estava justamente dizendo

1 a sua esposa o quanto apreciei a ajuda dela no último

domingo — Eric explicou a Garlam, estendendo-lhe a

mão num gesto de cortesia.

Gar aceitou o cumprimento e murmurou um tanto

ríspido:

- Tenho certeza de que Leah ficou feliz em ter

podido ajudar, senhor.

- É evidente que sim. Agora, se me dão licença,

tenho negócios a tratar com Sten. — Tocou de leve na

aba do chapéu, antes de seguir para a oficina do

ferreiro.

Gar subiu rápido na carroça e colocou os cavalos em

movimento, chicoteando com mais força do que seria

necessário.

- O que significa isso? — quis saber ele, após alguns

minutos.

- Isso o quê? — Leah repetiu franzindo o cenho.

Gar fuzilou-a com as íris azuis. As mãos enormes

seguravam as rédeas com tanta força que era possível

ver os nódulos brancos que se formavam nas juntas.

- Sabe muito bem que me refiro ao que Eríc Magnor

estava dizendo para você. Tudo o que precisavam falar

um com o outro já foi dito na última terça-feira. Ele nao

Page 230: O Milagre Do Coracão

tinha motivos para se aproximar da carroça e ficar

conversando como se fossem velhos conhecidos.

Ah, pelo jeito, Gar estava de péssimo humor e ela

não estava disposta a enfrentar uma discussão logo

agora. Por isso, virou o rosto para o lado e fingiu apre-

ciar a estrada.

- Leah, você ouviu o que eu perguntei?

- Sim, mas não vou responder a um comentário tão

sem sentido quanto o que fez, Gar. Acho melhor

voltarmos para casa em silêncio para não nos arre-

pendermos do que dissermos num momento de raiva.

- Seja como for, saiba que não quero que fique

conversando com Eric Magnor no meio da rua. Não gosto

da maneira como ele olha para você.

Leah continuou ignorando-o, embora interiormente

não conseguisse deixar de pensar que no olhar em que

Gar via maldade ela enxergava apenas uma genuína

afeição, quase paterna, se é que podia defini-la assim.

Durante a meia hora que se seguiu, nenhum dos

dois voltou a falar, então, como se não pudesse mais

suportar o silêncio, Gar anunciou:

- Amanhã o ferreiro irá a fazenda para fazer a

ferradura de alguns dos animais. Convidei-o para al-

moçar conosco. Espero que não se importe.

Page 231: O Milagre Do Coracão

- Claro que não. Afinal, a casa é sua é pode convidar

quem quiser.

- A casa é nossa, Leah. Já lhe disse isso.

Leah não respondeu ao comentário e Gar suspeitou

que ela não voltaria a falar antes que tivesse esquecido

o assunto. E tudo porque não gostara de vê-la conver-

sando com Eric Magnor no meio da rua!

Leah ouviu-o resmungar alguma coisa, mas não lhe

deu a menor atenção. Já estava na hora de Gar revisar

um pouco seus conceitos ultrapassados de como deveria

ser o comportamento adequado de uma esposa.

Tinha sido Leah Gunderson, senhora do próprio des-

tino, durante muito tempo para, àquela altura de sua

vida, curvar-se aos caprichos machistas de um homem.

Mesmo se esse homem fosse o marido por quem estava

apaixonada…

CAPÍTULO IX

Page 232: O Milagre Do Coracão

— Mamãe! — A palavra que emergiu dos lábios de

Karen, assim que Leah entrou na cozinha, não poderia

ter sido mais nítida e clara.

No entanto, logo atrás dela, Garlam pareceu se

inquietar com a novidade.

— Mamãe — o bebê continuou a reclamar enquanto

estendia os bracinhos roliços em sua direção.

— Eu disse a Karen que mamãe estaria em casa

logo e parece que ela tirou as palavras de minha boca —

contou Ruth, mexendo o conteúdo de um caldeirão que

estava no fogão. — Karen está chamando por você

desde o momento em que se foi.

O coração deu um salto dentro do peito de Leah e

ela curvou-se para pegar a menina do cesto, deposi-

tando inúmeros beijos nos cachinhos dourados.

— Sentiu minha falta, meu amorzinho? — sussurrou

com ternura.

— Se importa de me ajudar a carregar o resto de

seus embrulhos, Leah? — Gar perguntou da porta, onde

tinha acabado de deixar dois pacotes no chão.

Ela virou o rosto para encará-lo.

Gar estava olhando para o bebê com uma

expressão taciturna e Karen, ignorando totalmente a

tensão entre eles, esticou os bracinhos para o pai.

Page 233: O Milagre Do Coracão

— Papa… papai. — Seus lábios estalaram ao pro-

nunciarem cada sílaba e ela se debateu no colo de Leah,

atirando-se em direção ao pai.

- Puxa, mais uma novidade! — Leah exclamou, se-

gurando-a com cuidado para que a menina não caísse.

Gar se aproximou e pegou-a no colo.

- E então, minha pequena, comportou-se bem en-

quanto ficou com tia Ruth? — Ele deu as costas a Leah,

fingindo prestar atenção na mulher que passara metade

do dia com as crianças. — Obrigado por ter cuidado

dela, Ruth. E desculpe por estarmos chegando a esta

hora. Não pretendíamos demorar tanto.

- Não precisa se desculpar. Sei que nesta época a

cidade fica muito movimentada e tudo é mais difícil,

imagino só como não será daqui a alguns anos, quando

o número de habitantes aumentar. — Sorrindo, mexeu o

conteúdo do caldeirão pela última vez antes de deixar a

colher de lado. — Achei que iam chegar em casa com

fome depois de terem passado quase todo o dia fora e

tomei a liberdade de fazer uma sopa com aquele pedaço

de osso de pernil que você tinha no refrigerador, Leah.

- Ah, obrigada, Ruth. Foi muito bondade de sua

parte. — Durante alguns instantes, Leah se sentiu quase

que uma estranha em sua própria casa. De repente,

Page 234: O Milagre Do Coracão

dava se conta de que qualquer um poderia preparar um

caldeirão de sopa. Gar também era muito eficiente para

lidar com a filha, portanto parecia que só lhe restava

carregar os últimos pacotes de suprimentos que

comprara no armazém geral para dentro.

Ela passou por Gar e seguiu até a varanda. Seus pés

moveram-se lentamente ao descerem os degraus e pa-

rarem ao lado da carroça. Os pacotes estavam pesados

e ela os tirou do veículo para logo depois deixá-los sobre

a grama, a fim de ajeitá-los melhor nas mãos.

— Desculpe-me pelo que falei, Leah, não deveria ter

sido tão rude. — Gar surgiu na varanda. — Pegue Karen

que eu mesmo carregarei isto.

Ela recusou com um movimento de cabeça.

— Você me disse que deveria levar o resto para

dentro e posso muito bem fazê-lo, obrigada. — Sem nem

mesmo olhar na direção do marido, passou os dedos sob

o barbante e ergueu os pacotes, caminhando de volta

para a casa.

Do celeiro, soou a vozinha alegre de Kristofer:

— Ei, dona Leah! Espere que vou ajudá-la. — Ves-

tindo calça escura e camisa azul-claro o menino parecia

um homenzinho ao correr em sua direção.

Como sempre, Leah sorriu ao vê-lo.

Page 235: O Milagre Do Coracão

— Obrigada, Kris.

— Pai, já estamos com armação das baias quase

prontas — contou orgulhoso. — Benny e eu trabalhamos

duro o dia todo.

— Que bom, isso vai me poupar muito tempo.

Kris assentiu e pegou um dos pacotes da mão de

Leah.

— Puxa, a senhora deve ter feito uma lista bem ~

grande hoje. Comprou algum doce? — Os olhos azuis

brilharam esperançosos, enquanto os dedos pequeninos

agarravam-se à maçaneta da porta da cozinha.

— Bem, você não gosta de pirulitos de hortelã

gosta? — provocou-o.

- Ah, eu adoro, dona Leah.

- Então, depois de comermos um pouco de sopa e,

quem sabe, pão com manteiga, pode chupar um pirulito

desses, Kris.

Gar entrou na cozinha logo atrás deles, silencioso e

com o cenho franzido.

— Coloque o cadeirão de Karen ao lado da mesa,

Kristofer. Depois vá se lavar para o jantar.

O menino olhou furtivamente para o pai, depois vi-

rou-se para Leah.

Page 236: O Milagre Do Coracão

— Está bem, já vou — prometeu e logo se apressou

em fazer o que era dito.

O jantar foi silêncio, apenas Karen interrompia a

quietude com seus gritinhos para que Leah a alimen-

tasse com pedaços de pão e o caldo da sopa. Então, mal

tinha terminado a refeição, Gar levantou-se e saiu,

fechando a porta de tela atrás de si com mais força do

que seria necessário.

— Meu pai está zangado com a gente? — Kristofer

perguntou com o cenho franzido.

— Não, claro que não! — Leah respondeu,

desejando que suas palavras fossem verdadeiras. E

eram, num certo sentido. Afinal, a ira de Gar era dirigida

a ela, não às crianças.

— Bem, então ele deve estar com muitas coisas na

cabeça — Kris ponderou, de súbito, parecendo muito

sábios para seus sete anos.

— Sim, tem razão, querido — concordou Leah, for-

jando um sorriso. — O ferreiro virá aqui amanhã e talvez

seu pai esteja pensando nisso.

O alívio ficou evidente nas feições infantis, a

preocupação se dissipando à medida que Kris aceitava

aquela teoria simples. Logo ele também terminava o

Page 237: O Milagre Do Coracão

prato e pedia licença para ir ajudar o pai e Benny no

celeiro.

— Bem, agora ficamos só nós duas, Karen, querida

— Leah sussurrou, passando os dedos por entre os

cachinhos dourados da criança aninhada na cadeira alta

que Gar fizera para Kristofer, anos antes.

Seu gesto carinhoso foi recompensado por um

risinho encantador, ao mesmo tempo em que Karen

erguia os braços, pedindo colo.

Claro que Leah não resistiu ao apelo charmoso e, ao

pegá-la, abraçou-a bem junto ao peito, beijando-lhe o

alto da cabeça.

— Seu pai pode ter ficado zangado ao vê-la me

chamar de mamãe, meu anjinho, mas eu fui a Única

mãe que você conheceu. Acho também que você é

minha filha, uma filha do meu coração, ainda que tenha

nascido do ventre de Hulda, sobre quem vou lhe contar

assim que puder entender. — Um suspiro escapou dos

lábios de Leah e a cabecinha de Karen repousou sobre

seus seios.

A menina ainda balbuciou alguma coisa em seu lin-

guajar indecifrável antes de fechar os olhos e relaxar,

aconchegando-se na maciez dos seios redondos.

Page 238: O Milagre Do Coracão

Leah cantarolou uma cantiga de ninar enquanto

acomodava-se com o bebê na cadeira de balanço

colocada junto à janela. Ouvia-se um leve crepitar de

madeira conforme a cadeira ia para frente e para trás e

os raios de sol, filtrados pelo vidro da janela, incidiam

sobre as cabeças loiras formando um halo de luz em

torno delas.

Para o homem que as estava observando da

varanda, aquela era uma cena quase irresistível. Ainda

assim, em seu peito pulsava um forte ressentimento por

Leah ter conquistado o amor incondicional de seus filhos

tão rapidamente. E, mais ainda, por Karen tê-la

chamado de mãe, um tratamento que deveria ter sido

dirigido a Hulda, se ela não tivesse morrido daquela

forma triste.

Mas, talvez, o pior de todos os ressentimentos fosse

por ele próprio se sentir tão atraído por Leah, como se

sua lealdade para com a falecida tivesse sido esquecida

nos últimos meses, desde que trouxera sua nova esposa

para a fazenda. Era difícil lidar com tantas emoções

contraditórias.

Sim, sentira-se atraído por Leah desde o primeiro

momento que a vira, aqueles longos cabelos cor de mel,

o rosto de traços angulosos contrapondo-se ao nariz

Page 239: O Milagre Do Coracão

clássico e ao brilho dos olhos azul-acinzentados o tinham

deixado fascinado. E era óbvio que não fora o único.

Leah atraía a atenção dos homens por onde quer que

passasse. Desde o jovem Brian Havelock, que era

obviamente apaixonado por ela, até Eric Magnor, cuja

riqueza e posição social o tornavam um grande partido

para qualquer mulher.

Até mesmo o ferreiro, Sten Pringle, tinha observado-

a furtivamente enquanto ela permanecera na carroça,

sob a copa do castanheiro. A mulher com quem se

casara era loira, educada e bonita, e, apesar de viverem

sob o mesmo teto, precisava reconhecer que ela não lhe

pertencia.

Era justamente isso que o incomodava. Não conse-

guia mais suportar tal situação, principalmente porque a

desejava com tanta intensidade que chegava a lhe

provocar dor física.

Ainda assim, sabia que não tinha o direito de sentir

ciúme dos próprios filhos, nem mesmo quando sua prin-

cipal razão era defender os direitos e a memória de

Hulda. Por isso, tinha de pedir perdão a Leah por sua

atitude.

- Leah… — Falou o nome dela sem pensar, obser-

vando-a ao vê-la erguer a cabeça para encará-lo através

Page 240: O Milagre Do Coracão

da tela da porta. — Desculpe… Não foi o bastante Karen

ter me chamado de papai. Fiquei aborrecido porque ela

te chamou de mamãe — confessou, sabendo que

deveria ser sincero se quisesse preservar a dignidade

desse relacionamento. — Doeu perceber que Hulda

nunca iria ouvir a filha tratá-la dessa forma. Porém,

minha parte racional diz que não deveria ter me deixado

levar por essas emoções, pois acabarei me acostumando

e aceitando.

Leah arregalou os olhos diante da confissão inespe-

rada e começou a abrir a boca para dizer algo, contudo,

foi impedida de fazê-lo.

- Não diga nada — ele a silenciou. — Não estou me

desculpando pelo que aconteceu antes de chegarmos

em casa. Podemos discutir nossas diferenças mais tarde,

por enquanto, só vim buscar algumas luvas extras no

quarto de banho.

Leah o viu abrir a porta de um cômodo, à direita da

cozinha, e pegar algumas luvas no armário, antes de

girar nos calcanhares e voltar a sair para o ar fresco do

final de tarde.

Ela se remexeu na cadeira e pensou em Hulda. Por

mais que fosse doloroso, entendia o que Gar deveria ter

Page 241: O Milagre Do Coracão

sentido ao pensar na mulher que fizera de tudo para ter

um segundo filho.

Uma lágrima de pesar pela mãe que não pudera

embalar a filha rolou pelas faces de Leah.

Impulsivamente, levou a mão ao bolso a procura do

lenço. Contudo, seus dedos se enroscaram em um

pedaço de papel e ela pestanejou.

A carta! Céus, tinha esquecido da carta. Ficara tão

aborrecida com Brian e depois com Gar que até se

esquecera da carta que Eva Landers havia lhe entre-

gado. Antes de abrir o envelope, enxugou os olhos com

o lenço e voltou a guardá-lo. Só depois rasgou a lateral e

tirou o papel brilhante de dentro dele.

Uma caligrafia familiar surgiu diante de seus olhos

e, desta vez, a assinatura de Anna Powell estava no

centro da folha, não no final. A mensagem era curta e

simples. Anna fora descuidada e tinha deixado seu

caderninho de endereços sobre a escrivaninha da sala

como sempre fazia, porém, o mais inesperado de tudo

era que alguém havia invadido a casa e tudo o que

estava faltando era o caderno de endereços de Anna.

Será que Leah achava que poderia haver alguém

tão desesperado para encontrá-la que teria coragem de

Page 242: O Milagre Do Coracão

agir assim? Invadindo propriedade alheia para conseguir

seu endereço?

Pelo que podia se lembrar, Leah sabia que havia es-

crito palavras de carinho e amizade no caderno de Anna,

assinando-o e colocando o novo endereço logo embaixo.

- Sim, com toda certeza existe alguém desesperado

para me encontrar, minha amiga — Leah sussurrou,

amassando a folha entre os dedos e olhando para o céu

como se a procura de uma ajuda ou inspiração divina.

Afinal, só mesmo isto para salvá-la do passado e

garantir o futuro.

O sol não passava de uma bola alaranjada quase

oculta atrás das colinas e a escuridão começava a baixar

seu manto sobre a paisagem bucólica da fazenda,

quando Leah finalmente colocou Karen na cama. Em-

balar a criança em seus braços para dormir era, pro-

vavelmente, um mimo excessivo que poderia acabar por

estragá-la, mas a alegria que sentia ao ter o corpinho

quente junto do seu era uma desculpa boa demais para

justificar seu ato, decidiu.

Com certeza, assim que tivesse a idade de Kristofer,

Karen não iria querer mais colo e muito menos canção

de ninar ao dormir e Leah sabia que aí, sim, sentiria

Page 243: O Milagre Do Coracão

muita falta dos bracinhos queridos em torno de seu

pescoço.

Pensando nisso, saiu do quarto da menina e foi até

o de Kris, batendo levemente na porta.

- Kris? Já se deitou?

- Não. Entre, dona Leah.

Ela abriu a porta e foi saudada pelo rostinho sono-

lento e sorridente do enteado.

- Ah, vejo que você está pronto para receber o ho-

mem de areia — gracejou.

- Eu nunca tinha ouvido falar sobre o homem de

areia antes de a senhora vir morar conosco, dona Leah

— Kris confessou, erguendo um pouco o corpo da cama

e se apoiando em um dos cotovelos. — Pode me contar

a história dele outra vez? — pediu com olhos brilhantes.

Leah não resistiu ao apelo e sentou-se no colchão

de penas, ajeitando uma madeixa loira que teimava em

cair sobre a testa pequenina. Talvez houvesse se

enganado e Kristofer também estivesse ansioso para ser

mimado aquela noite.

- Claro que posso — disse, abaixando-se para beijar

cabeça no ponto onde acabara de afastar o cabelo. — Só

coloque a cabeça no travesseiro e feche seus olhos que

o homem de areia virá te visitar na hora certa.

Page 244: O Milagre Do Coracão

O menino fez o que era dito, ajeitando-se nos

travesseiros.

- Ah, meu quarto cheira muito bem à noite, dona

Leah — murmurou, esfregando o nariz no travesseiro. —

Acho que parece um perfume de flores, lírios-do-campo

e tílias.

Leah sorriu, começando a narrar o conto infantil

com palavras doces e uma melodia suave, cantando e

explicando a história que sua mãe tinha lhe ensinado

anos antes. Em questão de minutos Kris já tinha re-

laxado nos travesseiros, seus lábios se abrindo um pou-

co enquanto ele inalava o perfume das flores nos lençóis

e das madressilvas que se enroscavam na treliça pouco

abaixo da janela do quarto.

- O cheiro das madressilvas que seu pai plantou irá

ajudá-lo a ter bons sonhos, meu querido — Leah

murmurou, ajeitando os lençóis sobre o menino e to-

cando de leve nas mãos pequeninas, antes de se le-

vantar da cama, dar meia-volta e sair do quarto.

Ficou surpresa ao perceber uma figura alta e mus-

culosa parada na soleira da porta.

O homem a sua frente era uma versão adulta do

menino que estava adormecido e era impossível não

reconhecê-los como pai e filho.

Page 245: O Milagre Do Coracão

- Shh! Venha comigo — Gar chamou-a, sinalizando

para que o acompanhasse até o andar inferior.

Ela o seguiu até a cozinha e dali para a varanda dos

fundos.

- Não sou um homem ciumento, Leah — Gar foi logo

dizendo ao fitá-la com atenção.

- Não mesmo? Puxa, então me enganou direitinho!

— ironizou Leah, depois mordeu o lábio achando que

deveria ter se controlado. Não era hora de provocá-lo.

Se tinham de viver juntos, então era bom que ambos se

esforçassem para o bem-estar de todos.

- Viu só? E isso que me irrita. Você se está sempre

pronta para me atacar com seus comentários e teimosia.

Por que não me ouve e obedece como uma boa esposa,

pelo menos uma vez na vida?

- Eu não sou Hulda, Gar — replicou, suspirando. —

Você não se casou com uma mulher doce e submissa

dessa vez. Nunca prometi que iria me curvar a sua

vontade todas as vezes que ficasse aborrecido com

alguma coisa.

- Bem, mas desta vez vai me ouvir — empertigou-se

ele, elevando o tom de voz.

Leah retalhou-o com o olhar.

Page 246: O Milagre Do Coracão

- Não ouse gritar comigo. Pode acordar as crianças

e elas não precisam vê-lo tendo um ataque de raiva.

As mãos enormes seguraram-na pelos ombros, e,

por um momento, Leah pensou que ele fosse sacudi-la

com força. Corajosa, ergueu o rosto e enfrentou-o

desafiadora. Os dedos de aço estavam cravados em sua

pele e na manhã seguinte teria de lidar com as marcas

roxas que ficariam, mas, como Gar não poderia vê-las,

Leah não se importava.

- Pois saiba que não estou tendo um ataque de

raiva. Só estou lhe dizendo que não é certo você ficar

conversando com outros homens na calçada e ainda

encorajá-los a se aproximarem da carroça quando eu

não estiver junto.

— Encorajá-los?! Eu encorajei Eric Magnor a se

aproximar de mim? Você deve estar sonhando, Garlam

Lundstrom. Falei com o sr. Magnor durante alguns

minutos, mas isso foi tudo. Se quer saber, estava di-

zendo a ele que você é um bom marido é um pai ma-

ravilhoso para seus filhos. O que há de mal nisso?

A pressão dos dedos em sua pele diminuiu um

pouco.

- Ele gosta de você, Leah. Vi como te olha.

Page 247: O Milagre Do Coracão

- Bem, fico feliz que alguém goste de mim. sr.

Lundstrom. Especialmente porque você parece não

sentir a mesma coisa.

Gar meneou a cabeça de um lado para outro.

- Não sabe como me sinto em relação a você. Como

pode saber quando eu nem… — Transferiu as mãos para

os quadris e o queixo anguloso tremeu como se

estivesse se preparando para enfrentar um oponente.

- Você me tira do sério, Leah. Sua língua afiada e

mania de independência são impressionantes. Como se

não bastasse, ainda me deixa de lado para tratar de

todas essas pessoas que a procuram pedindo ajuda.

Ela estava boquiaberta com a veemência de tal

revelação.

— Já entendi. O problema não é só Eric Magnor, não

é, Gar? Você não quer que eu trate as pessoas que

precisam de mim, certo?

— Também, achei que todos iam parar de

importuná-la assim que se mudasse para a fazenda,

porque é muito longe da cidade, mas parece que estava

enganado. A semana passada Hobart veio aqui a

procura de ajuda para a mulher que estava sofrendo

com seus problemas femininos, depois Lars pediu um

ungüento para cuidar do dedo machucado de Bonnie. E

Page 248: O Milagre Do Coracão

também não imaginava que as coisas iriam tão longe a

ponto de alguém tirá-la da igreja no domingo a fim de

levá-la para atender um doente. — Deu um longo

suspiro depois fitou-a com um brilho acusador no olhar.

— Você pertence a todos, Leah, menos a mim que sou

seu marido. Até mesmo as crianças a têm mais do que

eu.

- Engana-se, Gar. Sou sua esposa, pertenço a você

— respondeu, sentindo que havia muito mais do que

ciúme por trás do desabafo. — Gosto do sr. Magnor, ele

é meu amigo, mas nada mais do que isso. Também

gosto de ajudar os outros quando sei que posso fazê-lo.

Quanto aos seus filhos, céus, eu os amo muito e acho

que é natural que eles percebam isso e me retribuam

esse amor.

Gar balançou a cabeça como se essas não fossem

as palavras que esperava ouvir.

- Você tem sorrisos para dedicar a todos, mas, para

mim, só sobram as palavras duras. E não ouse me dar as

costas antes que eu tiver terminado de…

Ela o ignorou, não pretendia ficar ali para ouvir mais

nada. Sabia que Gar não era um homem cruel, mas

quando estava de mau humor era capaz de dizer coisas

das quais acabaria se arrependendo.

Page 249: O Milagre Do Coracão

- Vou caminhar um pouco — disse ela, descendo os

degraus da varanda. — Talvez você se sinta melhor se

sentar no balanço e refletir um pouco.

- Não quero que fique andando sozinha pela fazenda

à noite — deu um passo a frente para segurá-la pelo

braço, mas Leah libertou-se de seu toque rapidamente.

— E sério, Leah, venha se sentar comigo e aí

conversaremos melhor.

Ela negou com um movimento de cabeça.

- Não, não creio que seja uma boa idéia — recusou-

se, seguindo pela grama.

- Então irei com você — disse ele num tom baixo e

rouco, enquanto a mão enorme a tocava no ombro.

Tomada por um impulso de momento, Leah afastou-

se daqueles dedos e começou a correr sobre a grama

úmida, Por alguma estranha razão, a chama do desejo

passou a se espalhar por todas as veias de seu corpo,

intumescendo-lhe os seios e deixando a garganta seca.

Ao ver a porta do estábulo aberta, correu para lá e

entrou, mesmo sabendo que Gar iria segui-la.

O som dos animais ressonando e também o forte

aroma de madeira fresca impregnavam o ar. De repente,

ouviu passos logo atrás e virou para descobrir Gar

entrando e fechando a porta dupla atrás de si.

Page 250: O Milagre Do Coracão

- Não se mova, Leah, existem muitos pregos e tá-

buas espalhados pelos corredores e você poderia cair e

se machucar.

E Leah sabia que era verdade, tinha divisado o bri-

lho dos pregos e sabia que se tentasse driblá-los seria

uma verdadeira corrida de obstáculos. Mas, céus, por

que estava correndo, afinal?, perguntou-se de repente e

então o coração disparou em seu peito quando o peso

da verdade a assolou sem a menor piedade.

Estava correndo de si mesma, do medo que sentia

de sucumbir ao desejo de se entregar aos braços

musculosos do marido, permitindo que ele a tornasse

mulher.

- Você não vai fugir de mim agora — Gar sussurrou,

aproximando-se e envolvendo-a num abraço.

Como ele tinha chegado tão perto sem que perce-

besse? Como as mãos fortes podiam se mover com

tanta urgência e ainda assim parecerem tão gentis ao

deslizaram por seu corpo, como se a ira de minutos

atrás tivesse dado lugar a outras emoções?

- Você escolheu o lugar para que isso finalmente

acontecesse, Leah — Gar falou com voz rouca. — Não

era o que eu teria preferido, mas a escolha foi sua e não

Page 251: O Milagre Do Coracão

vou recuar. Não quando o desejo que sinto chega a me

causar dor física.

- Do que está falando? — Ah, por certo aquela voz

baixa e hesitante não era sua, era?, pensou, sentindo as

mãos calejadas deslizarem até sua cintura.

- Estou dizendo que não posso deixá-la ir embora

Leah, porque meu corpo clama pelo seu há muito

tempo, querendo senti-la mais perto, muito mais perto

do que isso.

Ela cambaleou quando se sentiu puxada de

encontro ao corpo viril, com apenas uma camada de

roupas os separando.

Os dedos longos e experientes traçaram-lhe a linha

da espinha, passando pela cintura, para logo depois

pararem na altura dos quadris arredondados.

- Coloque os braços em torno de meu pescoço… por

favor — Gar pediu, sussurrando com urgência.

Leah ainda tentou protestar.

- Não, não quero me deitar com você, muito menos

em um estábulo. — Contudo, antes mesmo que tivesse

terminado a frase, seus braços já o enlaçavam pelo

pescoço.

Gar riu baixinho.

Page 252: O Milagre Do Coracão

- Fico feliz que, pelo menos uma vez, tenha me

ouvido. — As palavras eram gentis, mas o corpo que se

colava ao dela era firme, com a extensão de sua

masculinidade, rígida e protuberante, projetando-se de

encontro ao ventre de Leah. Sem querer, ela o com-

parou ao garanhão que Eric Magnor montara naquela

manhã, os dois eram machos maravilhosos dentro de

suas respectivas espécies.

Leah estremeceu; o calor espalhando-se por todas

as suas células e pelos recessos mais íntimos de sua

feminilidade.

- Tem certeza de que é isso que deseja, Gar? Você

disse que…

Um longo suspiro escapou dos lábios carnudos.

- Leah, ah, Leah! Eu lhe disse uma mentira quando

falei que não a queria em minha cama. — O corpo

másculo estava quente e trêmulo. — Confesso que até

pensei que conseguiria resistir ao que sinto por você.

Mas desde o primeiro dia que a trouxe para cá fiquei

tentado a quebrar minha promessa. — As mãos enormes

tocaram-lhe a face numa carícia suave.

- Mas você nunca me procurou como mulher —

gemeu ela.

Page 253: O Milagre Do Coracão

- Não, não procurei. Só que todo esse meu orgulho e

excesso de autocontrole quase me levou a loucura. Foi

insuportável ver os outros homens da cidade admirá-la e

saber que a queriam como eu. Tive medo, muito medo

de perdê-la, Leah. Não sei mais viver sem você.

- Viver sem mim? As vezes tenho impressão que

você nem gosta de mim — gemeu, tentando controlar as

batidas aceleradas de seu coração.

- Aí é que se engana, sra. Lundstrom — sussurrou,

as palavras mais eficazes do que nunca por causa da

maneira suave com que as proferira. — O que sinto por

você é muito mais do que simplesmente gostar. Tenho

uma necessidade de tocá-la que chega a suplantar todo

e qualquer resquício de bom senso. Esta noite já pensei

até em torná-la minha mulher, no sentindo mais com-

pleto da palavra, com ou sem seu consentimento. Aliás,

todos os dias quando a vejo fico tentado a voltar atrás

na palavra que lhe dei e levá-la para minha cama.

- Eu também te quero, Gar — Leah sussurrou.

— Não me tente se não tiver a intenção de levar

isso até o fim, Leah — murmurou, como se uma simples

resposta dela pudesse mudar sua vida para sempre.

Page 254: O Milagre Do Coracão

— Estou sendo honesta, Gar, eu te quero muito,

muito mesmo. Mas tem mais uma coisa que preciso te

contar antes…

— Shhh… conte mais tarde. Por enquanto, já me

disse tudo o que eu queria e precisava ouvir — declarou,

tomando-a nos braços e carregando-a ao longo do

corredor.

— Para onde…

— Psiu! Não vou levá-la para uma das baias como

está pensando, Leah — tranqüilizou-a. — Há feno e

palha limpa no canto da parede e tenho certeza de que

estaremos bem acomodados ali.

E mal ele havia terminado de falar Leah já se

descobriu colocada sobre uma cama de feno e palha.

Antes que tivesse se dado conta do que acontecia, os

dedos longos e másculos desabotoavam o vestido de

algodão azul.

Tudo aconteceu rápido demais e, de repente, Leah

já se descobria inteiramente nua diante dos olhos ávidos

do marido.

— Ah, céus, como você é linda! — ele sussurrou

antes de curvar a cabeça e cobrir os seios virgens com a

boca úmida e afoita.

Page 255: O Milagre Do Coracão

— Como pode dizer isso com toda essa escuridão?

— Leah perguntou num fio de voz.

O riso foi baixo e abafado por causa da proximidade

da boca carnuda com as auréolas rosadas dos seios de

Leah.

— Eu a tenho observado com grande atenção desde

o dia em que nos casamos, meu amor, e agora a sinto

sob meus lábios e posso tocá-la com minhas mãos. Além

disso, os raios do luar me ajudam a confirmar que você

é ainda mais maravilhosa do que em minhas fantasias

românticas.

Leah estremeceu quando Garlam abraçou-a posses-

sivamente e rolou com ela sobre o feno, seus corpos se

tocando com toda intimidade.

— Ah, Leah, você é tão macia e parece estar quase

pronta para mim! — Gar gemeu, cobrindo-a com seu

corpo ao mesmo tempo que continuava a sugar-lhe o

seio com avidez.

Deliciando-se com a sensação de prazer que expe-

rimentava pela primeira vez, ela mergulhou os dedos

nos cabelos loiros e segurou-lhe a cabeça mais junto de

seu peito. Ao mesmo tempo que ansiava para que o ato

de amor sé consumasse por inteiro, temia que o maior

de seus segredos fosse descoberto.

Page 256: O Milagre Do Coracão

O que Gar faria ao perceber que ela era virgem?

Como reagiria ao saber que nunca fora casada e muito

menos viúva?

Alheio ao turbilhão de emoções que a dominava,

Gar ergueu a boca dos seios redondos para o pescoço

elegante, queixo e depois para os lábios rosados.

Enroscou sua língua na dela e esse gesto trouxe consigo

todo o calor necessário para derreter a resistência de

Leah.

De repente, ela não se importava mais com o

passado e nem com os segredos que poderiam vir à

tona quando seu corpo tivesse finalmente atingido os

píncaros do prazer carnal. Por isso, entregou-se às

carícias que trocavam, inebriada com a delicadeza com

que Gar a preparava e excitava para recebê-lo como

marido e como homem, unindo seus corpos naquele

momento precioso de comunhão com a vida.

- Erga um pouco mais os quadris, meu amor — sus-

surrou, as mãos enormes segurando-a pelas nádegas e

ajustando-se a sua intimidade. Então ele penetrou nos

recessos onde nenhum homem jamais estivera.

O gemido rouco que escapou dos lábios de Gar en-

quanto ele se curvava sobre Leah foi como um grito de

Page 257: O Milagre Do Coracão

vitória depois de uma longa batalha para conquistar o

objeto de seu desejo.

E o mesmo aconteceu com Leah, que sentiu todo

seu corpo vibrar e colou-se ao do marido, ansiosa por

experimentar toda a extensão de sua masculinidade.

Para surpresa dela, a dor que sentiu foi pequena se

comparada a magnanimidade do prazer. Lágrimas

quentes rolaram-lhe pela face quando celebrou o mo-

mento de paixão com o homem que era seu marido.

Gar pulsava dentro dela, enchendo-a de energia, de

uma nova essência de vida e Leah passou as pernas em

torno dele até que seus corpos se ajustassem com

perfeição e a semente de vida encontrasse seu destino.

Algum tempo depois, Gar começou a se afastar,

lenta e cuidadosamente.

— Gar? — ela murmurou, fazendo a pergunta si-

lenciosa que tanto a afligira antes do ato de amor.

— Você era virgem, Leah. Como isso é possível? —

As mãos enormes ainda estavam mergulhadas nos ca-

belos cor de mel, segurando-a enquanto Gar se apoiava

no cotovelo para encará-la. — Acho que mereço uma

explicação. Uma vez que minha esposa não é o que dizia

ser, quero saber com quem me casei.

Page 258: O Milagre Do Coracão

Leah estremeceu e seus olhos ficaram marejados de

lágrimas. Só esperava que Gar não estragasse um mo-

mento tão bonito como o que acabavam de vivenciar

com um de seus acessos de raiva.

— Você se casou com uma virgem, Garlam

Lundstrom.

— Isto eu já sei. O que estou perguntando é como

pode ser virgem depois de ter sido casada?

— Simplesmente porque meu casamento nunca

existiu — confessou num tom baixo e controlado. — Eu

não podia ser uma parteira se não fosse casada. Então,

quando morava em Chicago, comecei a dizer que era

viúva para poder ajudar as mulheres em trabalho de

parto e nunca mais pude deixar de fazê-lo. Não existe

marido nenhum enterrado por lá.

— E por que não me contou a verdade desde o co-

meço? Será que significo tão pouco para você que não

pode partilhar todos os seus segredos comigo?

— Bem, quando me propôs casamento disse que

iríamos dormir separados e achei que não havia necessi-

dade de remexer no passado.

— Mas hoje você sabia quais eram minhas

intenções — gemeu frustrado. — Não tive o cuidado

Page 259: O Milagre Do Coracão

necessário com você Leah, poderia tê-la machucado

com minha paixão excessiva.

— Ora, Gar, você foi muito cuidadoso sim. — Ergueu

para acariciar os cabelos loiros que caíam sobre a testa

altiva. — Você me fez mulher e acho que o fez com

grande ternura. Eu queria ter te contado, tentei antes de

nos perdermos no corpo um do outro, mas você disse

que nada mais importava. Minha mente não estava na

mentira que contei, mas sim na verdade que eu estava

prestes a descobrir.

— Verdade? Que verdade, Leah?

— A de que a união de um homem e uma mulher é

uma coisa maravilhosa. Que o homem foi feito para

penetrar nos recessos sagrados do corpo de sua esposa

e assim trazer vida e prazer a esse mundo.

— Pois eu temo que não tenha havido muito prazer

para você, Leah. — Tocou-a nas faces, um gesto gentil

que deixava claro o pedido de desculpa. — Acho que a

machuquei com minha impetuosidade, não importa o

que diga.

— Só um pouquinho — confessou, com um sorriso

encantador.

— Venha comigo agora, querida — disse Gar, le-

vantando-se, vestindo a roupa e depois ajudando-a a

Page 260: O Milagre Do Coracão

fazer o mesmo. As mãos enormes eram delicadas en-

quanto a auxiliavam com as peças íntimas.

Minutos depois saíram do estábulo, Gar segurando-a

pela cintura e Leah apoiada no peito largo, como dois

típicos amantes.

A lua brilhava no céu parecendo um enorme

espelho a refletir seus raios prateados sobre a terra. Gar

fitou-a nos olhos e comentou num tom rouco:

— Ontem foi a última noite que dormiu sozinha,

minha cara. Hoje dormiremos juntos no quarto que

construí para receber minha esposa. Pela primeira vez,

vou abrir meus olhos pela manhã e encontrar minha

mulher a meu lado na cama. Isso é muito mais do que

ousei sonhar. Eu te quero, Leah, te quero de uma forma

tão intensa que chega a me assustar.

CAPITULO X

Gar observou-a colocar uma calda de creme sobre

os biscoitos e se perguntou se

Page 261: O Milagre Do Coracão

Leah tinha consciência de que sua mão estava tre-

mendo ao fazê-lo. Ela trouxe o prato até ele e deixou-o

cair sobre a tolha, por pouco não espalhando o creme

por toda a mesa.

- Desculpe-me, escorregou — disse envergonhada,

antes de começar a se afastar. Contudo, não foi rápida o

suficiente ao fazê-lo e uma mão calejada a segurou pelo

pulso.

— Leah, quer olhar para mim, por favor?! — pediu

Era decepcionante ver que mesmo depois de terem se

amado com paixão ela ainda não conseguia fitá-lo nos

olhos, ou que, de manhã, ao acordar, enfiara a cabeça

sob os travesseiros e escondera-se embaixo dos lençóis

para evitar seu toque. Ou pelo menos era o que tinha lhe

parecido naquele momento. Agora que pensava melhor

no assunto, Gar começava a perceber que Leah tinha se

comportado exatamente como uma noiva virgem se

comportaria na manhã seguinte à lua-de-mel.

Ora, e ele tinha sido um grande tolo por não se dar

conta disso antes. Acabara se afastando dela em lugar

de procurá-la embaixo dos lençóis e clamar por seus

lábios como ficara seriamente tentado a fazê-lo.

Na noite anterior, ele a tinha levado para a casa e

subido as escadas sentindo-se como um homem em sua

Page 262: O Milagre Do Coracão

noite de núpcias, sussurrando palavras de amor

enquanto cruzavam a soleira da porta do quarto. Tinha

explorado o corpo feminino com mãos curiosas, suas

lembranças do encontro apressado sobre o feno do es-

tábulo parecendo incompletas demais para satisfaze-lo.

E Leah o deixara amá-la outra vez. Ao romper da

aurora, Gar a tinha deixado sozinha no quarto que

construíra para receber sua noiva e cuidara de seguir

para o curral a fim de ordenhar suas vacas. Então,

enquanto se dedicava ao trabalho, não conseguia pensar

em mais nada que não fosse a mulher que tivera nos

braços. Agora, quando se sentavam à mesa para tomar

o café da manhã, confirmava que ela estava

envergonhada por ter se entregado a suas carícias.

— Leah, está tudo bem com você? — perguntou,

vendo-a sentar-se a mesa e se entreter em atender aos

pedidos de Kristofer e aos gritinhos de Karen.

— Sim, claro — disse, não desviando os olhos do

bebê que alimentava. — Vamos, meu anjinho, abra a

boca pana comer. Este mingau de aveia está muito bom.

— Mingau de aveia? — Mesmo para seus ouvidos a

pergunta pareceu ansiosa demais, concluiu Gar, dei-

xando-se trair por seu grande apetite. Mas, afinal, era

Page 263: O Milagre Do Coracão

um grande homem, e precisava ter um grande apetite

para manter-se firme!, concluiu, rindo de si mesmo.

— Sim, mas fiz o mingau para as crianças. Karen

ainda não pode comer ovos com bacon e biscoitos com

creme. É muito forte para ela e Kristofer também não

gosta muito disso.

— Por acaso não sobrou nenhum pouco de mingau

de aveia? Eu bem que gostaria de experimentar — Gar

murmurou,- mexendo no prato cheio que tinha diante de

si.

— Pode comer o meu, papai — Kristofer ofereceu.

— Pensei que você gostasse de mingau, Kris — Leah

comentou, franzindo o cenho ao ver o garoto empurrar o

prato para o outro lado da mesa.

— Eu gosto — ele disse, levantando-se da cadeira.

— Mas acontece que Lars disse que a irmã dele vem

aqui hoje para buscar um dos filhotes que nasceram e

eu quero estar no celeiro quando ela chegar.

— Não a deixe levar a fêmea que nasceu por último

— Gar avisou ao filho que já estava na porta, com um pé

na varanda.

— Está bem, pai — Kristofer já disse antes de fechar

a porta atrás de si.

Page 264: O Milagre Do Coracão

— Você ainda não respondeu a minha pergunta —

Gar lembrou-a, pegando o prato que o filho rejeitara.

— Claro que estou bem. Por que não estaria?

— Não sei, parece que está se movendo mais

devagar do que de costume hoje, Leah. Estou com medo

de tê-la machucado.

— Temos mesmo que ficar falando sobre isso, Gar?

— Mas você não olha para mim enquanto falamos,

Leah! Por acaso está brava comigo? Até mesmo se es-

condeu embaixo dos Lençóis esta manhã!

A colher que ela segurava caiu sobre a mesa

fazendo um barulho surdo, grandes porções de mingau

se espalharam pela toalha.

Karen riu alto, obviamente feliz com o que acabava

de acontecer, e esticou os bracinhos para pegar a colher

e tentar continuar com a festa. Apenas os movimentos

rápidos de Leah a impediram de conseguir seu intento.

— Ah, pelo amor de Deus, Gar, se terminou de

comer melhor ir lá para fora cuidar de seus afazeres! —

ralhou Leah. — Seu amigo ferreiro virá almoçar conosco,

lembra-se? — completou, pegando Karen e começando a

se afastar da cozinha.

Gar observou-a durante alguns instantes, depois le-

vantou-se e a seguiu, alcançando-a no corredor e pas-

Page 265: O Milagre Do Coracão

sando braços em torno dela e da filha. Inclinou um

pouco a cabeça para o lado a fim de poder ver-lhe o

rosto, e uma de suas mãos brincou com o bebê.

— Por favor, Leah, deixe-me saber em que está pen-

sando. Temo que esteja zangada comigo e não quero

que isto aconteça. Você é minha esposa.

Leah virou-se e ergueu o rosto para receber os

lábios que pousaram seu queixo.

— Só preciso me acostumar com a novidade, Gar.

Não esperava que isto fosse acontecer. Sei que somos

marido e mulher e que é normal que… — parecia estar

tendo dificuldade em pronunciar o resto da frase.

Karen ergueu a mãozinha e acariciou o rosto do pai.

A maneira como ria alegremente deixava claro que

estava adorando a novidade de vê-los tão perto um do

outro.

— Karen está feliz porque eu estou te abraçando,

Leah, querida — Gar disse, murmurando as palavras

junto à orelha dela. — O que faz com você seja a única

que não está muito à vontade coma situação.

— Talvez logo eu me acostume com isso, sr.

Lundstrom — falou, antes de encará-lo e confessar: —

Mas preciso dizer que Karen e eu gostamos muito de

Page 266: O Milagre Do Coracão

sentir seus braços em torno de nós. Só me dê um

tempo, certo?

Tempo? Ele já estava contando os minutos que fal-

tavam para anoitecer e poder toma-la nos braços sob os

lençóis de sua cama. Seu corpo respondeu à sen-

sualidade dos pensamentos que o assolavam, pedindo

por um contato mais íntimo.

— Meus braços estiveram vazios por muito tempo,

Leah. Agora estão gritando para sentir o calor de seu

corpo. Não se afaste de mim.

Ela movimentou a cabeça de um lado para outro.

— Não, não vou me afastar e nem ousarei recusá-

lo ,. como marido.

— Bem, não foi isso que eu quis dizer. Claro que

adorarei tê-la em minha cama, mas o que peço também

é que passe os braços em torno de meu pescoço, beije-

me e, talvez, sussurre que gosta um pouquinho de mim.

— Não preciso sussurrar essas palavras. Eu gosto de

você, Garlam Lundstrom e pensei que já soubesse disso.

Ele sorriu, admirando o rosto vermelho de indigna-

ção e os olhos azul-acinzentando como o céu que

anunciava uma tempestade iminente.

— Ora, ora, eu não sabia disso. Então talvez você

possa encontrar outras palavras românticas para

Page 267: O Milagre Do Coracão

sussurrar em :meu ouvido. Que tal? — sugeriu, piscando

maroto.

O rubor tornou-se ainda mais intenso e Leah fez

uma careta.

— Garlam Lundstrom, tenho a impressão de que

está flertando comigo!

— Pode apostar que estou, madame! — Garlam riu

e pensou que as longas noites de solidão tinham

chegado ao fim. — Quero partilhar a cama com você

esta noite e todas as outras, Leah. Tenho certeza de que

irei ensiná-la a gostar dos momentos que passaremos

juntos.

— Eu gostei… — Não conseguiu terminar de falar,

sua pouca experiência no quesito relações íntimas im-

pedindo-a de verbalizar o que sentia.

O riso suave de Gar ecoou pelo corredor.

— Ah, você sabe tão pouco sobre a vida, senhora

minha esposa!

— Tudo o que sei é que agora sou sua esposa de

verdade, Gar.

Ele anuiu com um movimento de cabeça.

— Sim, sra. Lundstrom. Talvez, amanhã cedo eu

deva lhe perguntar se não descobriu nada de novo.

Page 268: O Milagre Do Coracão

Ela deu um passou atrás e Gar não fez nada para

impedi-la de se afastar desta vez. Estava mesmo na

hora de se concentrar em seu trabalho.

— Vou para o estábulo trabalhar nas baias novas e

preparar o feno. Quanto a sua pergunta, eu não me

esqueci que convidei Sten Pringle para almoçar.

Uma pequena covinha, que Leah nunca tinha visto

antes, surgiu na face esquerda de Gar conforme ele

sorria. Quem sabe, só a estava notando agora porque

antes Gar nunca tivesse sorrido de verdade, ponderou,

precisando se controlar para não tocá-lo com a ponta

dos dedos e deixá-lo ver o quanto o amava.

Alheio as emoções que a assolavam, Gar soprou-lhe

um beijo antes de seguir para a porta e tentar cuidar de

suas obrigações. Sabia que seria muito difícil esperar

que a noite chegasse para poder amá-la novamente,

mas teria que fazer um esforço. Afinal, ninguém

conseguia viver só de paixão, embora fosse muito bom

se entregar ao sentimento que era uma completa no-

vidade em sua vida…

— Vou ter que voltar com Sten para a cidade, Leah

— Gar anunciou, logo depois do almoço, quando ela

Page 269: O Milagre Do Coracão

terminava de arrumar a cozinha e os homens já estavam

todos no celeiro ou no estábulo. — Preciso de um novo

arreio para aquela égua preta e também de dobradiças

para a porta do celeiro.

— Posso ir com você? — ela pediu. — Só preciso

sovar um pouco o pão e colocá-lo para crescer outra

vez. Também seria bom dar um banho rápido em Karen.

— Tudo bem, posso esperá-la sem problemas. Direi

a Sten para ir na frente — começou a sair e parou na

soleira da porta. — Também vou falar com Kris,

provavelmente ele vai querer nos acompanhar.

No entanto, Kris recusou a oferta e Leah ficou estra-

nhamente satisfeita com a notícia. O menino estava en-

tretido com Benny, Lars e Banjo, que haviam prometida

aele que cavalgariam juntos para ver as condições das

pastagens a oeste, onde estavam confinados os touros.

Agora, aninhada no banco da carroça, Leah

esperava por Gar, chacoalhando Karen nos joelhos e

cantarolando uma cantiga infantil.

— Essa eu nunca ouvi — Gar falou, acomodando-se

a seu lado. — Onde aprendeu todas as canções que

canta para as crianças?

Leah riu, seu humor estava muito melhor do que

pela manhã.

Page 270: O Milagre Do Coracão

— As vezes minha mãe cantava-as para mim e

nossos vizinhos também sempre cantarolavam enquanto

trabalhavam. Acho que quando eu era pequena passei

mais horas nas casas desses vizinhos do que na minha

própria casa.

— Sua mãe não ficava com você?

Leah apressou-se em corrigir o mal-entendido.

— Claro que ficava, mas quando ela ia atender al-

guém ou fazer algum parto essas pessoas tomavam

conta de mim.

— Ah, sua vida não foi muito fácil, não? — Incitou

os cavalos a trotarem rápido e carroça foi sacolejando

pela estrada de terra batida. Movido por um impulso,

esticou o braço e passou-o em torno de Leah e da filha,

trazendo-as para mais junto de si.

— Sim, mas foi duro para minha mãe também. Só

percebi isso quando voltei a Kirby Falis. As pessoas

estavam acostumadas com o dr. Swenson e — tinham

medo de confiar em outra pessoa, ainda mais uma

estranha. Demorou algum tempo até aceitarem que eu

também poderia ajudá-los.

— E o que fez nesse meio tempo?

Um riso breve curvou os lábios rosados.

Page 271: O Milagre Do Coracão

— Tentei me virar da melhor forma possível — con-

fessou, observando-o de soslaio. — Lavava algumas

roupas e vivia com o mínimo necessário para sobreviver.

Alguns meses depois de ter chegado aqui, quase mudei

de idéia e voltei para Chicago. Já tinha até começado a

arrumar minhas coisas quando Hobart Dunbar bateu em

minha porta e pediu que eu cuidasse de um dos

hóspedes que havia caído na escada do hotel. O dr.

Swenson não estava me Kirby Falis e o homem tinha um

corte profundo na cabeça.

— Então você ficou. — O braço forte apertou-a

ainda mais contra o peito viril. — Fico imaginando

quando foi isto… antes ou depois de eu tê-la notado?!

— Quem pode saber. — Sentiu o coração disparar

diante da simples lembrança que poderia ter ido embora

antes de Garlam entrar em sua vida. — Sou muito

teimosa e resisti, aos poucos as coisas começaram a

melhorar. Alguns dos solteiros que trabalham na serraria

me procuraram para cuidar de suas roupas, Hobart me

encarregou das toalhas e lençóis do hotel e o dr.

Swenson, depois de ver como cuidei do corte na cabeça

do hóspede do hotel, começou a me mandar pacientes

que ele não tinha interesse em tratar, alguns cortes,

ossos quebrados.

Page 272: O Milagre Do Coracão

Gar resmungou alguns impropérios diante da men-

ção ao médico da cidade.

— Acho que em certos dias a única coisa que inte-

ressa a Swenson é uma boa garrafa de uísque, Leah. Ele

está envelhecendo e não tem nem ânimo nem físico

para atender a certos chamados fora da cidade.

— Ele não tem família?

— Sim, mas os filhos já estão crescidos e foram em-

bora daqui. A esposa morreu há seis ou sete anos.

Seguiram em silêncio durante vários minutos. En-

tão, Gar pigarreou e remexeu-se no assento de couro.

— Fico feliz que o doutor não tenha vindo comigo

quando Hulda precisou de ajuda.

— Você disse que ele não estava disponível —

Leah lembrou-o.

— Porque Swenson tinha andado bebendo naquela

noite. Quando o encontrei, disse claramente que não

viria comigo para trazer ao mundo outra criança morta.

Gritou que avisara Hulda de que se ela engravidasse de

novo não teria sua ajuda.

— Estou surpresa de você não tê-lo esbofeteado

depois disso.

— Bem, confesso que tive vontade de matá-lo,

mas eu não estava com tempo para me meter em

Page 273: O Milagre Do Coracão

encrenca. Estava nevando muito e Hulda precisava de

ajuda o mais rápido possível. Foi aí que recorri a você.

— E o que o fez pensar que eu o ajudaria?

Ele a perscrutou com o olhar.

— Você tem um bom coração, Leah. E as pessoas

diziam que era muito boa na arte de curar os doentes

que lhe chegavam as mãos. E, também, você nunca

dava atenção quando os homens a ficavam cortejando.

Sempre foi uma senhora muito respeitada por essa sua

atitude e eu gostava disso.

O elogio trouxe uma onda de alegria ao peito de

Leah. Fascinada, voltou-se para encará-lo.

— Eu pensei que nunca tivesse me notado antes do

dia que veio me pedir ajuda.

— Ah, mas eu tinha assim — murmurou,

estendendo seu olhar para o rosto de pele alva, os

cabelos cor de mel e o corpo de curvas generosas. — Só

que não podia deixar que esse interesse transparecesse

ou fugisse ao controle. Eu era um homem casado, Leah,

e você não era minha esposa, portanto, não podia me

dar o direito de apreciá-la como mulher. O pior era ter

de ficar ouvindo Brian Havelock contar vantagens a seu

respeito, sobre como pretendia convencê-la a se casar e

Page 274: O Milagre Do Coracão

coisas assim. Era óbvio que aquele frangote não era

homem o bastante para você.

— Pois eu pensei que me odiasse, Gar. Isso na noite

que Hulda morreu e também muito tempo depois.

— Eu odiava a mim mesmo. Culpei-a porque assim

era mais fácil aceitar minha responsabilidade no que

havia acontecido. — Franziu o cenho e respirou fundo.-

As vezes, ainda fico muito zangado comigo mesmo por

ter engravidado Hulda, mas já não me sinto mais tão

culpado quanto antes. Estou aprendendo a lidar com

minhas falhas e virtudes.

— Todos nós temos falhas e virtudes, Gar. Só temos

que aprender a conviver com elas da melhor maneira

possível.

— Sim, acho que você tem razão, sra. Lundstrom, e

espero, do fundo do meu coração, que nunca minhas

falhas a afugentem de mim.

— Eu digo o mesmo, Gar. Eu digo o mesmo — Leah

murmurou, lembrando-se das cartas de Anna Powell e

da acusação injusta que pesava sobre suas costas.

O armazém estava lotado e, como de costume,

Karen foi o centro das atenções, com todos os presentes

Page 275: O Milagre Do Coracão

mimando-a com carinhos e gracejos, até mesmo os se-

nhores que se reuniam na mesa junto ao velho fogão.

Leah seguiu por entre os outros fregueses e parou

diante do balcão, entregando sua lista a Bonnie.

— Deixe-me ver sua mão — pediu, segurando os

dedos da moça e removendo a pequena bandagem. —

Ah, já estava quase boa. Tome cuidado da próxima vez,

mocinha, deveria ter cortado o tecido, não metade do

dedo.

— Eu tomarei, pode deixar, e obrigada pelo

remédio que mandou com Lars. Se não fosse isso não

sei como conseguiria trabalhar nesta última semana.

— Não precisa me agradecer, Bonnie. Mas, acha

que pode cuidar de minha lista rapidinho? Gar deve

passar aqui a qualquer momento. Ele só ia buscar um

arreio novo no ferreiro.

— Claro, cuidarei disso agora mesmo.

E enquanto a jovem Nielsen se ocupava da lista de

compras, Leah ficou ouvindo a conversa das senhoras

que, como sempre, aproveitavam a ida ao armazém

para colocarem as fofocas em dia.

Lula Dunbar era a que mais falava e, por um ins-

tante, Leah teve pena do pobre Hobart. Como ele podia

Page 276: O Milagre Do Coracão

agüentar uma mulher que via defeito em todos e que

fazia questão de dizer isso em alto e bom tom?

Ainda estava pensando nisso quando o barulho ca-

racterístico da porta do armazém sendo aberta chamou-

lhe a atenção.

— Leah, é seu marido — Bonnie avisou,

sinalizando na direção do homem alto e loiro que

acabava de entrar.

Leah virou-se para encarar Garlam. O rosto angu-

loso tinha uma expressão sombria quando ele acenou

para ela daquela maneira que já lhe era familiar.

— Preciso ir, senhoras. Bonnie, você já colocou

todas as minhas coisas juntas?

Bonnie assentiu.

— Sim, só levarei um minuto para fazer o

embrulho.

Leah seguiu para junto de Gar e entregou-lhe Karen.

— Karen está muito pesada, Gar. Importa-se de

carregá-la só por um minuto?

Ele assentiu, tomando a criança nos braços.

— O xerife disse que precisa falar com você, Leah.

Ele está aí fora. Quer que eu te acompanhe?

Diante do que acabava de ouvir, Leah sentiu como

se todos os seus planos de felicidade estivessem ruindo

Page 277: O Milagre Do Coracão

por terra. O rosto ficou pálido como uma folha de papel

e, sem dizer uma só palavra, meneou a cabeça e saiu

para rua a procura do xerife.

Morgan Anderson era um homem discreto e sua

presença raramente era notada pelos moradores da

cidade, uma vez que crimes eram raridade na pequena

Kirby Falls. Um bêbado ocasional poderia passar a noite

na cadeia do xerife e, de vez em quando, os tra-

balhadores da serraria provocavam alguma algazarra ao

se reunirem para beber, geralmente logo após o dia do

pagamento, mas isto era tudo o que os habitantes locais

conheciam como atitude fora-da-lei.

Talvez por esse motivo Morgan fosse quase um es-

tranho para Leah que, trêmula, atravessou a rua e parou

diante do xerife que estava recostado no pilar da

varanda da barbearia.

— Meu marido disse que o senhor queria falar co-

migo. — Esperou até que o sr. Anderson endireitasse o

corpo e colocasse as mãos no bolso da calça de sarja.

Apesar do olhar perscrutador que lhe dirigiu, o xerife

tinha uma aparência bastante respeitável.

— Sim, sra. Lundstrom. Ontem recebi um visitante

que estava a sua procura. Não sabia ao certo o que

Page 278: O Milagre Do Coracão

deveria responder ao sujeito, mas quando ele ameaçou

espalhar cartazes de recompensa com sua foto por

todos os cantos da cidade, achei melhor ser mais

cuidadoso.

— Quem era ele? — Seria possível que Sylvester

Taylor a tivesse localizado depois de três longos anos?

As ameaças estridentes de Taylor ainda a perseguiam

em seus pesadelos. Gritando que iria mandá-la para a

prisão, ele a tinha seguido até sua casa naquela fatídica

noite em que o bebê morrera. Entre outras coisas,

chamara-a de assassina e mentirosa.

E quem iria acreditar numa pobre parteira acusada

por um homem rico e influente que tinha muito dinheiro

para contratar os melhores advogados do país?

— Um detetive de Chicago — respondeu o xerife

Anderson calmamente. — Vamos caminhar um pouco,

senhora. E a melhor maneira de evitarmos os ouvidos

curiosos.

Leah hesitou por alguns instantes, depois caminhou

ao lado dele na calçada estreita.

— Eu dificilmente daria ouvidos ao que o homem

tinha a dizer, sra. Lundstrom. Mas o fato é que ele

parecia muito convencido de que seu cliente conseguiria

mandar prendê-la. Também me contou que a senhora

Page 279: O Milagre Do Coracão

fez o parto de Mabelle Taylor e que foi descuidada, por

isso o garoto morreu.

— Não vou nem tentar me defender dessa

infâmia, xerife. Só vou dizer que é mentira — Leah

murmurou, respirando fundo. — Mas o que mais o

detetive disse? Terei de voltar a Chicago algemada?

Os lábios de Anderson se abriram num arremedo de

sorriso.

— Não, não creio que a coisa vá tão longe,

madame. Disse a ele que sabia onde a senhora estava,

mas que só a intimaria a dar seu depoimento quando a

corte a notificasse de que seria julgada.

— Quer dizer que vou ficar em liberdade vigiada

de agora por diante?

— Sim, a não ser que a senhora deseje se adiantar e

provar sua inocência antes de ouvirmos notícias de

Chicago.

Leah negou com um movimento de cabeça.

— Não tenho como fazer isso. Seria minha palavra

contra a da sra. Taylor. Tudo o que posso lhe dizer é que

a esposa de Sylvester Taylor é uma demente. Qualquer

criatura capaz de matar o próprio filho não deve ser

considerada um ser humano. E foi o que Mabelle Taylor

fez, ela matou a criança.

Page 280: O Milagre Do Coracão

— Esta é uma acusação muito grave, madame.

— No entanto é a verdade, xerife.

Morgan parou bem defronte ao hotel.

— Acho que devemos voltar, vi seu marido ao lado

da Casa Mercantil. Deve estar a- sua procura.

— Sim, certamente está. — O coração batia des-

compassado em seu peito e ela tinha dificuldade em

respirar. Precisava pedir ajuda a Gar, era sua única

chance. Por certo seu marido saberia o que fazer.

Mas, se soubesse, será que acreditaria nela? Depois

dá estranha circunstância que acabara por uni-los, a

morte de Hulda no parto, será que Gar iria acreditar em

sua versão dos fatos?

Leah ficou ainda mais aturdida. Ou será que a frágil

harmonia que haviam conquistado naquele casamento

também seria colocada em cheque?

Ah, isto ela teria que pagar para ver. O problema

era que o preço era alto demais e o jogo da vida não

admitia blefes…

CAPITULO XI

Page 281: O Milagre Do Coracão

— Vai me contar o que Morgan Anderson queria

com você, Leah? Ou será que não posso saber? — Gar

ficara em silêncio durante a meia hora que demorara o

trajeto da cidade até a fazenda. Só agora, ao ajudar a

esposa a descer da carroça, verbalizava a pergunta que

o incomodava.

— Claro que você pode saber. Vou lhe contar tudo.

Só estou um pouco confusa, preciso colocar meus

pensamentos em ordem antes de fazer o que me pede.

— Ela deu uni passo atrás e as mãos de Gar soltaram-lhe

a cintura.

Foi naquele exato momento que Karen acordou e

virou a cabeça nos ombros de Leah, resmungando por

seu sono ter sido interrompido antes da hora.

— Shh, querida… Shhh! — Leah balançou a menina,

tentando reconfortá-la.

— Mais tarde entrarei para conversarmos — decla-

rou Gar, pegando o arreio que fora buscar na cidade e

começando a caminhar em direção ao estábulo. A parte

traseira da carroça continuava cheia, resultado das

compras que haviam feito no armazém geral.

— Traga minhas coisas quando você entrar — Leah

pediu e ele assentiu com um movimento de cabeça.

Page 282: O Milagre Do Coracão

Com Karen nos braços, galgou os degraus da va-

randa e nem mesmo o som da voz empolgada de Kris-

tofer conseguia penetrar na névoa de preocupação que

a envolvia. O que deveria fazer? Como deveria falar com

Gar a respeito do detetive?

Pensativa, ajeitou a menina no colo e embalou-a

para que voltasse a dormir, mas, dessa vez, ao contrário

do que sempre acontecia, seus lábios não cantarolaram

tinia canção de ninar. Afinal, não havia música em sua

alma e muito menos melodia suave em seu coração.

Restava-lhe apenas o terrível peso do medo.

A essa altura, o detetive deveria estar de volta a

Chicago e, provavelmente, já falara com Sylvester Tay-

lor, Leah ponderou. Quanto tempo ainda demoraria para

o milionário aparecer em Kirby Falls alardeando suas

acusações?

Um suspiro escapou dos lábios de Leah e ela seguiu

para a sala, ajeitando o acolchoado sobre o tapete e

colocando dois travesseiros para servir de apoio a me-

nina. Não queria levá-la para o quarto porque se cho-

rasse seria mais difícil ouvi-la.

O jantar daquela noite exigiria pouco trabalho, pois

já deixara as bistecas de porco temperadas, o pão

estava pronto para ser colocado no forno, juntamente

Page 283: O Milagre Do Coracão

com as batatas que pretendia dourar, e os pêssegos em

compota que tinha na despensa deveriam servir muito

bem como sobremesa. Assim, ela se concentrou nas

tarefas rotineiras e o tempo passou mais depressa do

que imaginava.

Kristofer entrou na cozinha no momento exato em

que tirava o pão de milho do forno. Os olhos azuis do

menino brilhavam cheios de empolgação.

— Ah, dona Leah, cavalguei a tarde toda com Banjo

e Lars e eles disseram que não sabem o que fariam sem

minha ajuda. Acham que já sou quase um homem-feito.

Leah riu e abraçou o menino com carinho. Apesar

de toda a tristeza que se abatera sobre a casa dos

Lundstrom, Kristofer era uma criança adorável.

— Tenho certeza de que sim, meu querido. Agora

que tal experimentar um pedacinho de pão? — Soltou-o

e entregou-lhe uma fatia do pão de milho que ainda

estava quente. — Posso passar um pouco de manteiga

se quiser.

Ele aceitou prontamente.

— Sabe dona Leah, estou muito feliz que a

senhora tenha vindo morar com gente e se tornado

minha nova mãe.

Page 284: O Milagre Do Coracão

Leah acariciou os cabelos dourados e sentiu

lágrimas minarem-lhe dos olhos.

— Eu também estou, Kris, também estou —

murmurou, rezando para que nada no mundo, nem

mesmo todo o ódio de Sylvester Taylor pudesse destruir

a família que ganhara no último verão.

— Eu… eu não imaginava que viria a meu quarto

esta noite — Leah falou num tom hesitante.

Garlam estava parado na soleira da porta, uma mão

na maçaneta e outra no batente.

— Por que duvidou de minha palavra? Quando disse

que nunca mais iríamos dormir separados estava fa-

lando sério, minha cara esposa.

Leah ficou em pé diante do toucador e fitou-o

através do espelho. Os cabelos cor de mel estavam

soltos e caíam como uma cascata reluzente até pouco

abaixo da cintura fina. A mão delicada ainda segurava a

escova suspensa no ar como no momento que o vira

abrir a porta.

— Sim, eu sei, mas pensei que… — Deixando a

escova sobre o toucador, Leah puxou os cabelos para

Page 285: O Milagre Do Coracão

trás e começou a fazer a trança que usava todas as

noites para dormir.

— Pensou o quê? — interpelou-a Gar, dando um

passo adentro e fechando a porta atrás de si.

Leah o viu baixar os suspensórios e desabotoar a

calça de sarja.

— Não importa. — Deu de ombros, subitamente

consciente de que também não estava vestida como

deveria. A camisola de cambraia que vestia era tão fina

que tinha a sensação de que revelava não apenas as

curvas generosas de seu corpo, mas também todos os

segredos e mistérios de sua alma.

— Importa sim, Leah! — insistiu Gar, sentando-se na

cadeira de palhinha e começando a tirar as botas de

cano alto. — Para mim é importante saber no que minha

esposa está pensando.

Leah virou-se de frente para ele, sentindo os olhos

azuis a percorrerem de alto abaixo com grande

interesse.

— Bem, pensei que ainda estivesse zangado porque

não falei nada do caminho da cidade até aqui.

Era uma noite quente, o ar estava pesado, não

havia brisa soprando por entre as cortinas de renda,

nem mesmo os pássaros noturnos que empoleiravam na

Page 286: O Milagre Do Coracão

árvore diante da casa se dispunham a entoar seu canto

triste.

Lentamente, Gar ficou em pé, tirando a camisa e

jogando-a para longe. O peito viril ficou totalmente

exposto e só agora Leah notava que era coberto de

pêlos dourados.

— Ah, minha querida esposa, a ira que senti por seu

silêncio não é páreo para o que sinto agora.

Leah estremeceu, lembrando-se de como seu corpo

havia reagido tão prontamente ao dele na noite anterior.

Diante da simples recordação de como a boca carnuda

havia acariciado e sugado-lhe os seios no prelúdio do ato

de amor, os mamilos túrgidos se projetaram de encontro

ao tecido fino da camisola.

— Será que não podemos deixar para conversar so-

bre o que houve na cidade amanhã, Gar? — pediu,

movida ao mesmo tempo pelo medo e pelo desejo.

— Tem razão, Leah. Creio que podemos conversar

amanhã. A noite não foi feita para conversas, mas sim

para saciarmos nossos corpos sedentos, permitindo que

se conheçam melhor. — Sinalizou em direção à cama,

uma mensagem que era mais do que explícita.

Page 287: O Milagre Do Coracão

Leah se afastou da penteadeira, parte dos cabelos

balançando livremente em suas costas. Então, decidiu

recomeçar a trança que havia deixado pela metade.

— Não! — protestou Gar. — Gosto deles soltos, não

os prenda.

Leah hesitou, mas acabou obedecendo. Confusa so-

bre o que fazer a seguir, sentou-se na cama.

— Vá para o outro lado, Leah. Vou dormir deste. —

As mãos enormes abaixaram calça e cueca ao mesmo

tempo e, logo, Gar estava totalmente nu diante dela.

Por um instante, Leah teve vontade de contrariá-lo.

Como ele ousava tratá-la com tanta ousadia? Então, ao

apreciar a beleza viril do corpo do marido, Leah se

esqueceu do seu orgulho e tudo o mais no mundo, até

mesmo do detetive que viera procurá-la em Kirby Falis.

Naquela noite o mundo lá fora não a impediria de

viver plenamente a magia de pertencer a Garlam

Lundstrom, seu marido. Sim, iria deixar que ele lhe

ensinasse a melhor maneira de amar e ser amada.

E Gar só esperou até que Leah se movesse para o

centro da cama para se sentar no colchão macio e

toma-la nos braços.

Entre os dois só havia o tecido fino da camisola, que

Garlam logo tratou de desabotoar e jogar em algum

Page 288: O Milagre Do Coracão

ponto do chão, antes de se apossar dos seios redondos e

fartos.

No instante seguinte, suas bocas se encontraram

sôfregas e as línguas enroscaram-se denunciando a for-

ça do desejo que os subjugava.

Leah se abriu para recebê-lo enquanto o sentia ex-

plorar cada centímetro de seu corpo com a boca, mãos

e, às vezes, os dois juntos.

— Humm, você aprende depressa, minha adorada

esposa! — As palavras provocantes a agradaram ela

sorriu, escorregando sob o peso do corpo másculo e

começando a beijá-lo no tórax, nos ombros e depois

acompanhando a linha de pêlos que seguia pelo abdome

plano.

Gar gemeu baixinho antes de retribuir o gesto, des-

lizando os lábios sedentos pelo pescoço elegante, o

lóbulo da orelha e, surpreendentemente, descendo para

os quadris e coxas de Leah, o que a fez arquear de

prazer.

— Oh, Gar!

Na noite anterior ele não a tratara com tanto cui-

dado, pois julgava que fosse experiente no jogo da se-

dução. Hoje, no entanto, Gar estava provando que não

Page 289: O Milagre Do Coracão

só a respeitava como mulher como também desejava

lhe ensinar o grande segredo do prazer.

E Leah estremeceu embaixo dele, consciente dos

músculos das pernas e do tórax que a cobriam enquanto

a masculinidade de Gar encontrava o caminho para os

recessos sagrados de seu corpo.

Com um gemido rouco, Gar agarrou-se a ela e a

preencheu com a mais pura seiva da vida. Esse

momento mágico foi seguido por um breve silêncio e

depois ele sussurrou palavras sensuais e ternas no

ouvido de Leah.

Torturada pelo desejo que pulsava em suas entra-

nhas, Leah puxou-o para si como se precisasse sentir

cada centímetro do corpo do marido. Então, de súbito,

descobriu-se explodindo num turbilhão de emoções e

sensações maravilhosas. O que tinha acontecido entre

eles na noite anterior fora bom, mas que estava acon-

tecendo agora, era infinitamente melhor.

Naquele quarto construído para a noiva virgem do

dono da casa e à luz de velas, Leah acabava de des-

cobrir a beleza magnânima do ato de amor. E, naquele

momento, ela conseguiu perceber que a posse não fora

um privilégio de Gar, ela também possuíra o marido,

Page 290: O Milagre Do Coracão

sugando-o para dentro de seu corpo e flutuando com ele

nos braços da satisfação e felicidade que se seguiram.

Leah dormiu nos braços de Gar e quando acordou o

descobriu apoiado em um dos cotovelos, observando-a

com olhos brilhantes. Ela sorriu ao sentir o rubor cobrir-

lhe as faces. Por mais que tivesse se entregado ao amor,

ainda não estava acostumada a ficar totalmente nua

diante de um homem, mesmo que este fosse seu

marido.

— Você corou de novo, Leah. Será que esta manhã

o que a faz corar sãos as boas recordações do prazer

que tivemos?

Ela assentiu, incapaz de falar sobre a noite de amor.

— Guarde bem o que vou dizer, minha querida, não

importa as tempestades por qual passarmos durante

nossa vida a dois, mas esta parte de nosso relaciona-

mento nunca vai ser sacrificada ou ignorada. Podemos

esquecer tudo o mais, menos a felicidade que encon-

tramos nos braços um do outro.

Uma grande emoção tocou o peito de Leah. Nunca

tinha ouvido palavras tão bonitas e poéticas. Ficou

Page 291: O Milagre Do Coracão

surpresa por descobrir um lado sensível e doce naquele

homem alto e forte com quem havia se casado. Obe-

decendo a um impulso, segurou-o pelo pescoço e puxou-

o para junto de si. Seus lábios roçaram um no outro, mas

dessa vez traziam apenas ternura e carinho, uma

espécie de agradecimento pelo que tinham vivido

algumas horas antes.

Gar sorriu, os olhos azuis perscrutando-a como se

quisessem ver-lhe a alma.

— Acabo de descobrir que você é a mulher do meu

coração. Aquela por quem esperei muito tempo. E saiba

que nunca disse isso antes a ninguém, minha querida…

O coche preto chegou no meio da manhã, quando

Gar e seus ajudantes já estavam ocupados com o

segundo corte de alfafa nos campos mais distantes da

casa.

Leah enxugou as mãos no avental florido que usava

e espiou pela janela da cozinha a fim de identificar o

visitante inesperado.

Page 292: O Milagre Do Coracão

Ele tinha acabado de desmontar e com agilidade

amarrava o cavalo em um dos pilares que Gar fizera

próximo ao pátio, justamente para esse fim.

Leah observou a figura imponente de Eric Magnor

galgar os degraus da varanda. Sentimentos

contraditórios a assolavam, ao mesmo tempo que ficava

feliz ao vê-lo sentia-se apreensiva ao pensar em como

Gar reagiria a essa visita. Mas ela não teve tempo de

ficar remoendo o assunto, pois logo apenas a porta de

tela os separava e ela a abriu rapidamente, com medo

de parecer mal-educada.

— Entre sr. Magnor. Mas que bons ventos o trazem

aqui?

Ele a encarou durante alguns segundos, então os

olhos acinzentados percorreram a cozinha. Eric Magnor

seguiu até uma cadeira e puxou-a.

— Será que posso me sentar, Leah?

— Sim, é claro — assentiu, notando que alguma

coisa o preocupava.

— E melhor você também se sentar, Leah. — Ele

removeu as luvas e o chapéu de feltro branco que usa-

va. — Precisamos conversar.

— O que aconteceu, sr. Magnor?

Page 293: O Milagre Do Coracão

— Sente-se, por favor — voltou a pedir, observando-

a enquanto ela obedecia. — Desculpe-me por ter vindo

assim, minha filha — disse após alguns instantes de

hesitação.

— Mas ouvi rumores na cidade e temo que você

esteja precisando de ajuda. O que posso fazer para

ajudá-la, Leah?

— Rumores? — Ora, certamente o xerife não tinha

espalhado a história sobre o detetive contratado por

Sylvester Taylor, tinha?

— Bem, um detetive ofereceu uma recompensa

para quem denunciasse seu paradeiro, e um certo

sujeito de Kirby Falis já está contando vantagens sobre o

dinheiro que vai ganhar assim que o telegrama que

mandou chegar a Chicago.

— O que o senhor está dizendo!? — Leah sentiu o

corpo desfalecer, tinha a forte sensação de que estava

prestes a desmaiar. — Quem seria capaz de fazer isso,

meu Deus!?

— Você desprezou um jovem pretendente antes de

se casar com Gar Lundstrom, não foi? O sujeito trabalha

para mim, Brian Havelock. Ou melhor, Brian trabalhava

para mim.

Page 294: O Milagre Do Coracão

— Brian? Brian seria capaz de fazer isso comigo?

Acho que não, sr. Magnor. Deve estar havendo algum

engano. E como ele poderia saber sobre o detetive de

Chicago?

Eric meneou a cabeça de um lado para outro.

Aconteceram muitas coisas na cidade de ontem

para hoje, minha cara. O tal detetive andou espalhando

cartazes com seu nome, descrição física, e também ofe-

recendo uma recompensa, em vários pontos de Kirby

Falls. Contaram-me que assim que viu um destes car-

tazes, Brian telegrafou para a tal agência de detetives.

— O xerife Anderson não me disse nada sobre esses

cartazes — Leah engoliu em seco.

— Ele não sabia. Foram colocados sem a permissão

de Morgan. Nosso bom xerife os rasgou assim que os

viu, mas já era tarde. O dano já tinha sido feito.

— E o que vou fazer agora?

— O que Gar sugere que faça? — Eric olhou para a

porta como se estivesse esperando o dono da casa

entrar a qualquer momento. — Onde está seu marido,

Leah? Ele deveria estar aqui para ouvir as notícias

junto com você. Precisam estar preparados para o que

acontecerá a seguir.

Page 295: O Milagre Do Coracão

— Garlam não sabe de nada. — Como se essa con-

fissão a condenasse, Leah ergueu as mãos e cobriu o

rosto, torturada pela culpa e pelo medo. — Eu queria ter

contado, mas nós… — Meneou a cabeça de um lado

para outro, pensando na noite de amor e depois na

correria que fora aquela manhã.

Eles tinham perdido a hora e Gar estava atrasado

para o trabalho. Quando acordaram, os rapazes já o

esperavam na carroça para seguirem ao campo de feno

e ele mal se permitiu saborear o farto dejejum a que

estava acostumado.

— Isso é algo que não pode esconder de seu

marido, minha filha — Eric falou com uma ruga a vincar-

lhe a testa larga. — De acordo com o xerife, o assunto é

muito sério.

Ela ergueu o rosto e a agonia estava evidente nas

feições bonita.

— O senhor sabe o que houve? O xerife lhe contou a

verdade?

Eric assentiu.

— Sim, fui procurá-lo assim que ouvi o falatório na

serraria. A cidade também estava fervilhando com as fo-

focas, Leah, mas eu sabia que deveria ouvir a sua

verdade.

Page 296: O Milagre Do Coracão

— Ah, céus! — Abaixou a cabeça, lágrimas quentes

rolavam-lhe dos olhos.

— Leah, o xerife disse que você está sendo acusada

da morte de um recém-nascido.

Lentamente, ergueu o rosto. Os olhos azuis espe-

lhavam a tristeza e o desespero que a consumiam.

— Ah, senhor, Deus é testemunha de que fiz o parto

de Mabelle Taylor e trouxe uma criança viva e saudável

a este mundo, mas, menos de meia hora depois, en-

contrei-a morta com o pescoço quebrado. A mãe me

acusou pelo crime e eu temi por minha própria vida. O

sr. Taylor é um homem rico, bastante influente no país

todo, e ele queria muito um filho.

— Se é assim, por que ele chamou você para cuidar

do caso? Certamente tinha dinheiro para mandar a mu-

lher a um médico — Eric raciocinou e franziu o cenho.

Leah alisou as rugas da toalha de mesa, tentando se

acalmar.

— Não sei. Sylvester Taylor me procurou no meio da

noite e eu o acompanhei até a casa dele. Nunca antes

tinha feito um parto naquela parte da cidade. Grande

parte de minhas pacientes eram mulheres pobres e o ar.

Taylor me surpreendeu ao me oferecer cinco dólares

para ajudar a esposa dele.

Page 297: O Milagre Do Coracão

— Era muito dinheiro para ajudar num parto, não?

Leah anuiu.

— Mais do que eu já tinha ganho antes. Era tanto

que eu não podia recusar, muito embora não pudesse

deixar de me perguntar por que ele não chamava um

dos médicos que costumavam atender os ricos da

cidade.

— O que aconteceu depois? A sra. Taylor teve um

parto difícil?

— Não, na verdade não. — Leah negou com um

movimento e cabeça. — Ela já tinha tido um filho antes

e, por alguma razão, o bebê também havia morrido. —

Fechou os olhos, lembrando a expressão odiosa de

Mabelle Taylor. — Acho que ela matou aquela criança

também, sr. Magnor. E uma mulher diabólica. Quando

coloquei o bebê em seus braços, ela se afastou, como se

o achasse repugnante, nem se permitiu tocá-lo. Meia

hora depois, eu já estava na porta da mansão, pronta

para ir embora, ouvimos a ara. Taylor gritando e

subimos as escadas correndo. O bebê estava morto.

As lágrimas rolaram em cascata pelo rosto de Leah

enquanto ela se lembrava da noite mais trágica de sua

vida. Sua voz falhou ao tentar concluir a história que

nunca havia contado a outra pessoa.

Page 298: O Milagre Do Coracão

— A cabeça do menino estava caída para o lado e

Mabelle apontou para mim dizendo que eu o tinha

trazido morto ao mundo e que a fizera acreditar que

estava apenas dormindo.

— O que Gar acha disso tudo?

— Já lhe disse, ele não sabe.

— Está me contando uma história que nunca contou

a seu marido? Por quê, Leah? Certamente, ele merece

saber.

Os lábios rosados tremeram enquanto Leah procu-

rava por uma explicação lógica.

— Quando cheguei a esta fazenda para ajudar

Hulda no parto, as coisas já estavam fora de controle.

Karen era um bebê enorme, para piorar, ainda estava

sentada e Hulda teve uma forte hemorragia.

— Então Gar a culpou pelo que saiu errado.

Leah levantou e caminhou pela cozinha, parando de

costas para a porta de tela.

— Sim, culpou. Mas eu não aceitei essa culpa, sabia

que tinha feito o melhor que podia. Ninguém poderia ter

ajudado Hulda Lundstrom no estado em que se

encontrava. O dr. Swenson, então, nem tentou. Ele se

recusou a atendê-la naquela noite.

Page 299: O Milagre Do Coracão

Eric se levantou e caminhou até onde ela estava,

suas mãos repousando nos ombros delgados.

— Você achou que Gar iria pensar o pior a seu res-

peito, não? Pensou que ele poderia não acreditar que

estava dizendo a verdade.

— Eu nunca contei essa história a ninguém, ar. Mag-

nor. — O toque daquelas mãos era um conforto e Leah

permaneceu imóvel, deixando-o demonstrar que não só

a compreendia como acreditava em sua inocência.

— É hora de contar a verdade a seu marido, Leah.

Aliás, passou da hora de fazer isso — aconselhou-a num

tom gentil.

— Sim, eu deveria ter contado a ele ontem, depois

que falei com o xerife Anderson, mas aconteceram ou-

tras coisas e acabei deixando para depois.

— Ninguém consegue se esconder do passado para

sempre, minha cara. Todos nós temos segredos. O seu é

mais triste do que o da maioria das pessoas, mas um dia

você descobrirá que os meus também são muito difíceis

de se lidar e esquecer. — Eric Magnor afastou-se dela e

caminhou para o lado oposto da cozinha.

— O senhor tem segredos, ar. Magnor?

Ele se aproximou da mesa e segurou o chapéu e as

luvas que deixara sobre o tampo de madeira.

Page 300: O Milagre Do Coracão

— Você vai saber a resposta a essa pergunta dentro

de algum tempo, Leah. Por enquanto, quero que fale

com seu marido. Diga-lhe o que acabou de me contar.

Honre-o com sua confiança.

— Ah, eu nem mesmo vou poder ir a cidade de novo

— ela suspirou, dando-se conta do ostracismo a que

estava condenada.

— Seus amigos vão ficar do seu lado, minha

querida. O resto das pessoas não importa, de um jeito

ou de outro logo a verdade virá à tona.

— Acha que irão tentar me levar de volta a

Chicago? — A idéia era aterradora, mas a possibilidade

de que acontecesse era muito real.

— Não se eu puder evitar — garantiu Eric com

sobriedade. — Disse que era seu amigo, Leah e estava

falando sério. Todos os meus recursos estão a sua in-

teira disposição. Se precisar, é só pedir. — Olhou por

sobre os ombros dela, e hesitou ligeiramente antes de

dizer: — Entre logo, Gar. Sua esposa está esperando

para conversar com você. Precisará ajudá-la a resolver

alguns problemas.

— Problemas? Que problemas?! — Gar perguntou

mal-humorado. A frieza de sua voz fez Leah estremecer.

— Será que pode me dar licença para entrar em minha

Page 301: O Milagre Do Coracão

própria casa, Leah? — resmungou, começando a abrir a

porta e gesticulando para que ela saísse do caminho.

Leah o encarou com o rosto pálido e os lábios trêmulos e

só se moveu quando o marido a segurou pelos cotovelos

e empurrou para o lado.

— Bem, acho que vou deixá-los sozinho agora —

Eric Magnor disse formalmente. — Leah estava espe-

rando para conversar com você, Gar. Ela vai precisar de

toda sua compreensão.

— E você, Eric, será que já a compreendeu? — Gar

resmungou. Será que minha esposa já lhe contou por

que o xerife a procurou? Ou será que vou ter a honra de

ser o primeiro a saber?

— Gar, por favor! — Leah pediu, agarrando-se ao

avental e espremendo-o nervosamente entre as mãos.

— Não seja grosseiro com o sr. Magnor. Ele veio para me

ajudar.

— Já estava de saída — Eric Magnor repetiu, olhan-

do de Leah para o marido. — Desculpe-me, minha cara,

mas acho que não tenho o direito de interferir nessa

conversa que precisa ter com seu esposo.

E no momento seguinte o dono da serraria já

passava por Gar e fechava a porta atrás de si.

Page 302: O Milagre Do Coracão

Leah e Gar se entreolharam durante algum tempo,

antes de ele finalmente quebrar o silêncio e atalhar num

tom mordaz:

— Bem, minha cara esposa, agora você terá de me

contar tudo o que o xerife Anderson lhe disse ontem, e,

desta vez, não vou tolerar nenhuma desculpa, ouviu

bem.

— Sim, Gar, eu ouvi. Mas não creio que você irá

gostar do que tenho a dizer — suspirou. — Preciso lhe

contar uma história muita longa e triste, e, por favor,

não me interrompa antes de eu terminar, do contrário,

posso perder a coragem de fazê-lo.

CAPITULO XII

A voz de Leah falhou várias vezes enquanto

revelava seu segredo, mas, quando terminou de contar

toda a verdade sobre a morte do bebê em Chicago, as

lágrimas rolavam em profusão por suas faces.

Gar não a interrompeu nem uma vez sequer e agora

a expressão do rosto másculo continuava impassível,

Page 303: O Milagre Do Coracão

como se estivesse pesando tudo o que a esposa

acabava de dizer.

Leah deu um longo suspiro antes de acrescentar:

— Eu não tinha motivos para contar a verdade a

você, Gar. Ninguém em Kirby Falls sabia sobre o in-

cidente em Chicago e eu não queria tornar isso público.

No entanto, tinha muito medo do que poderia acontecer

quando Sylvester Taylor me encontrasse.

— Não é de admirar que o homem tenha ficado en-

furecido, Leah, ele perdeu o filho — Gar murmurou se-

camente. — Mas, pelo menos, a esposa continuou viva.

— Ah, você continua me culpando pelo que

aconteceu com Hulda, não? — Leah reclamou, sentindo-

se abandonada naquele momento difícil.

Os olhos azuis continuavam impassíveis.

— Não, não tenho razão para desconfiar de você,

Leah. Só acho que poderia ter me contado tudo isso

muito antes.

— Ontem — ela prosseguiu —, quando o xerife me

chamou para conversar, disse-me que um detetive de

Chicago tinha vindo a Kirby Falls a minha procura.

— Ah, isso também você escondeu de mim até

agora! Que bela opinião deve ter a meu respeito, não,

Page 304: O Milagre Do Coracão

ara. Lundstrom? Para que acha que serve um marido?

Apenas para fazê-la vibrar de prazer?

— Por favor, Gar, entenda que eu estava apavorada.

Além do que, a noite passada você concordou que po-

deríamos deixar o assunto para hoje.

— Sim, mas por que não me falou logo de manhã?

Ela gemeu exasperada.

— Porque você estava atrasado para o trabalho,

meu caro.

Tais palavras pareceram acalmá-lo um pouco.

— Então, que grandes notícias Eric Magnor veio te

trazer?

— O tal detetive espalhou cartazes com a minha

descrição pela cidade e ofereceu uma recompensa para

quem revelasse meu paradeiro. Brian Havelock viu um

deles e mandou um telegrama para Chicago. E bem

provável que o xerife Anderson tenha de me prender.

Assim que Sylvester Taylor souber onde estou…

— Você não será presa coisa nenhuma, Leah Lunds-

tom! Vamos contratar um advogado para defendê-la e

provar sua inocência. — O tom era de quem não admitia

discussão sobre o assunto.

— Vai mesmo contratar um advogado para me de-

fender? — Leah estava surpresa.

Page 305: O Milagre Do Coracão

Gar confirmou.

— Claro, você é minha esposa, mulher! —

exclamou, aproximando-se dela. As mãos enormes a

seguraram pela cintura. — Agora pare de chorar ou logo

teremos um rio inundando a cozinha. — Delicadamente,

ergueu-lhe o queixo e falou com voz suave: — Mas se

essas lágrimas tiverem o poder de lavar sua lama e

varrer o medo de seu coração, minha querida, pode

continuar chorando. Só que faça isso em meu ombro.

Um marido também serve para apoiá-la nos momentos

difíceis.

— Oh, Gar, vivi com medo durante tanto tempo! —

Leah gemeu e repousou a cabeça no peito largo. —

Deveria ter confiado em você antes.

Um leve sorriso brincou nos lábios carnudos.

— Você é a mulher que escolhi para viver o resto de

meus dias, Leah, e também para me ajudar a cuidar de

meus filhos. Por isso vamos superar isso juntos, como a

família que somos.

— Mama… mamãe — Karen resmungou erguendo

os bracinhos para que Leah a tirasse do cesto de vime.

Page 306: O Milagre Do Coracão

— Só um minuto anjinho, mamãe já está

terminando aqui — Leah respondeu da despensa, onde

estava acabando de guardar o esfregão e as buchas que

usara para limpar a cozinha.

— Leah? Você está aí? — gritou uma voz feminina

vinda da varanda dos fundos.

— Estou aqui — ela respondeu saindo da cozinha e

abrindo aporta de tela. — Eva! Que surpresa! Entre, por

favor.

A agente postal estava parada na porta, o carro fu-

nerário de seu marido, Joseph Landers tinha ficado

estacionado diante da casa.

— Será que tem um tempinho para mim? — Per-

guntou Eva Landers com a expressão cordial que sem-

pre pairava em seu rosto quadrado.

— Claro que tenho! Desculpe se não a vi chegar,

mas estava guardando as coisas na despensa. Cuidado

para não escorregar que o chão está molhado. Acabei de

passar um pano porque os homens vivem trazendo

sujeira em suas botas.

Eva Landers riu e caminhou na ponta dos pés até

chegar à mesa.

— Ah, que criança linda! — exclamou, abaixando-se

um pouco para tocar nos cachinhos dourados de Karen.

Page 307: O Milagre Do Coracão

Depositou um beijo na testa pequenina e Karen res-

pondeu ao carinho com um riso e gritinhos eufóricos.

— Consegue entender o que ela diz? — Eva

perguntou, sentando-se na cadeira mais próxima ao

bebê.

Leah negou com um movimento de cabeça.

— Não muito. Apenas mamãe, papai e “beijo”. Ka-

ren me chama de mamãe — contou num tom baixo e

emocionado.

— Ora, o que é mais que justo, Leah, você pôde não

tê-la trazido ao mundo, mas certamente cuidou dela

como se fosse sua filha — Eva afirmou. — E todos vêem

que é uma excelente mãe, Leah.

— Obrigada, Eva, mas não creio que tenha vindo da

cidade até aqui apenas para elogiar meus pendores ma-

ternais — Leah sorriu e serviu duas xícaras de café.

Eva concordou com um gesto de cabeça.

— Tem razão, não vim. Mas suspeito que você já

esteja sabendo o que aconteceu na cidade nos últimos

dois dias. Vi o coche de Eric Magnor entrar em Kirby

Falls vindo desta direção.

— Sim, o ar. Magnor esteve aqui. Ele me contou

sobre os cartazes e também falou que Brian andou

Page 308: O Milagre Do Coracão

espalhando a notícia por toda cidade, além ter tele-

grafado par Chicago para revelar onde estou morando.

— E ainda pior do que isso, Leah. Lula Dunbar anda

sugerindo aos quatro ventos que a morte de Hulda de-

veria ser melhor investigada, em vez de aceitarmos ape-

nas sua palavra de que não havia como evitá-la.

— Como e quem teria condições de fazer isso? —

Leah empertigou-se.

— Certamente não o dr. Swenson, minha cara —

Eva garantiu com uma careta. — Mas saiba que a sra.

Thorwald saiu em sua defesa e, na frente de todos no

armazém, disse a Lula que por certo, se você não

tivesse ajudado Hulda, o bebê dela também teria mor-

rido naquela noite.

— Que Deus a abençoe por isso. — Os olhos de

Leah se encheram de lágrimas ao pensar na bondade da

ex-vizinha que a defendera sem pestanejar. — A ara.

Thorwald é uma alma boa e leal, não?

— Sim, e há muitas outras como ela na cidade, que-

rida. Mas sabe como algumas pessoas gostam de falar.

Agora Brian anda sugerindo que Eric Magnor tem um

fraco por você. Por isso Brian foi despedido. O que só o

deixou mais zangado. Esse rapazote idiota também

passou a culpá-la por ter perdido o emprego.

Page 309: O Milagre Do Coracão

— Não entendo porque ele fez isso. Tratei-o o

melhor que pude diante das circunstâncias, já que

jamais poderia me casar com um garoto com quase

metade de minha idade. Mas Brian parece que não

entende isso — Leah suspirou.

— Um dia ele vai crescer e perceber que errou —

previu Eva. — Porém, enquanto isso não acontece, ele

está espalhando muitas fofocas pela cidade. O pior é

que não tem sido nada cuidadoso e temo que seu ma-

rido possa dar-lhe uma boa surra quando ficar sabendo.

— Ah, céus, Gar não pode ficar sabendo dos comen-

tários maldosos de Brian… Ele vai matá-lo!

— Foi justamente por pensar assim que resolvi vir

aqui esta tarde, Leah. E melhor que você mesma pre-

pare seu marido para a situação. Caso contrário, temo

que ele possa se descontrolar.

— Muito obrigada, Eva. E, por favor, acredite em

mim, o ar. Magnor não tem qualquer interesse escuso

em mim. Somos amigos e nada mais.

Eva ergueu as mãos para silenciar Leah.

— Isso você nem precisa me dizer, querida. Eric é

um bom homem, e se ele quisesse olhar para uma

mulher teria feito isso há muitos anos. Não quero pa-

recer mexeriqueira, mas acho que Eric Magnor ainda é

Page 310: O Milagre Do Coracão

legalmente casado com a mulher que o abandonou.

Ninguém nunca ouviu dizer que ela morreu.

— Há quanto tempo a ara. Magnor partiu?

— Oh, há uns vinte e cinco ou mais. O pior foi que

levou a filhinha junto e Eric Magnor nunca mais as viu.

Uma lágrima rolou dos olhos de Leah. Podia muito

bem imaginar a dor que o dono da serraria experi-

mentara ao ser abandonado.

— Eu nunca seria capaz de abandonar Gar. Ele teria

que me dar um chute no traseiro para eu descer aquela

ladeira e nunca mais voltar.

— Duvido muito que isso venha acontecer — Eva

comentou com um leve sorriso. — Gar lutaria por você, e

também com você, se fosse o caso. Não tenho qualquer

dúvida de que ele a ama Leah. Basta olhar para os dois

quando estão juntos.

Leah sorriu e rezou secretamente para que Eva esti-

vesse certa. Sabia que Gar gostava dela, mas daí a amar

já era outra história bem diferente. Quem sabe um dia…

— Eva Landers esteve aqui hoje, Gar.

Page 311: O Milagre Do Coracão

— Ah, que bom que foi Eva e não Joseph — ele

gracejou. — Vi o carro funerário aí fora e fiquei me

perguntando se estava com algum plano mirabolante

em relação a mim. — De cabeça baixa, removeu as

meias depois ficou em pé a fim de fazer o mesmo com a

calça grossa de sarja.

Leah fez uma careta no espelho.

— Que ótima sugestão, ar. Lundstrom! Da próxima

vez que tiver uma crise de ciúme acho que vou pensar

serenamente nisso. Onde já se viu ter ciúme de Eric

Magnor.

— Tenho ciúme de qualquer homem que se

aproxime de você, minha cara esposa — Gar confessou.

— Por falar nisso, o que Eva disse: o jovem Havelock

ainda está causando problemas?

— Bem, o ar. Magnor o despediu da serraria e acho

que já pode imaginar a reação de Brian.

Gar tirou a calça e jogou-a sobre a cadeira, agora os

dedos longos estavam ocupados em desabotoar a

camisa branca.

— Brian foi despedido por sua causa, Leah? — quis

saber, aproximando-se dela.

Ela assentiu e seus olhares se encontraram no

espelho.

Page 312: O Milagre Do Coracão

— Brian ficou furioso e espalhou para a cidade

inteira que o ar. Magnor o despediu porque tem in-

teresse em mim. Está me culpando por tudo o que

aconteceu, Gar.

— Quando virar um homem, Havelock irá aceitar a

culpa por suas próprias ações — Gar filosofou. — Agora

ele está precisando de umas boas palmadas para

aprender a se comportar. Não é assim que fazemos com

crianças mal-educadas e travessas?

— Não quero que você brigue com ele, Gar — pediu,

suspirando ao sentir os dedos do marido acariciarem-lhe

o pescoço.

— Venha para cama, Leah. Falaremos sobre isso

amanhã.

Ela sentiu as lágrimas voltarem a rolar por suas

faces. Já tinha chorado mais nos últimos dois dias do que

em quase toda sua vida, pensou, sentindo as mãos

calejadas do marido secá-las com carinho.

— Eu já lhe disse numa noite dessas que nossa

cama é lugar de prazer e conforto, minha querida. E esta

noite será conforto e paz que teremos. — As mãos

enormes forçaram-na a ficar em pé. — Venha comigo,

senhora minha esposa.

Page 313: O Milagre Do Coracão

Ela assentiu, observando enquanto Gar soprava as

velas, duas sobre a penteadeira e uma terceira junto à

cama. As cortinas flutuaram no ar, dançando ao sabor

da brisa noturna e Leah tremeu ao recostar a cabeça no

travesseiro. Os lençóis estavam frios e ela buscou o

calor dos braços do marido para aquecê-la.

Gar a puxou para junto de si, ajustando-lhe as ná-

degas de encontro ao abdome plano e másculo, então

enlaçando-a com as pernas para logo depois passar o

braço em torno da cintura delgada e segurá-la com uma

das mãos. O queixo anguloso repousou nos cabelos cor

de. mel.

— Agora descanse. Você já chorou mais lágrimas do

que tinha para chorar durante o resto de sua vida.

Aconteça o que acontecer, nós iremos superar. Relaxe e

deixe para se preocupar com que estão dizendo na

cidade quando tivermos de ir para lá. Não adianta sofrer

por antecipação.

Leah suspirou.

— Seus braços estão me segurando como se…

— Como se nunca mais pretendesse soltá-la, minha

querida — completou por ela. — Ninguém nesse mundo,

nem Brian Havelock, muito menos um detive em-

Page 314: O Milagre Do Coracão

pertigado de Chicago vai conseguir afastá-la de mim,

ara. Lundstrom.

— Ah, eu só te trouxe problemas, Gar — A voz triste

ecoou na escuridão da noite e Leah se remexeu ao

sentir os braços que a seguravam deslizarem para a

curva de seus selos.

— Pois prometo que lhe darei mais do que apenas

problemas se não ficar quietinha e dormir, ara. Lunds-

trom! — Gar exclamou, segurando-a com mais firmeza e

cobrindo-lhe um dos seios com as mãos.

Leah fechou os olhos e deixou-o acariciá-la com in-

finita ternura. Dessa vez a sensualidade fora esquecida.

Naquela noite, era óbvio que Gar só queria protegê-la e

niná-la com a mesma delicadeza que dedicava a Karen

ou a Kristofer. Sim, ele não a queria apenas para sa-

tisfazê-lo na cama e essa constatação a deixou tão feliz

que Leah finalmente conseguiu dormir o sono dos justos,

não importava o que dissessem as más línguas.

O trabalho tinha prioridade sobre a curiosidade.

Dois dias passaram rapidamente, os homens trabalha-

Page 315: O Milagre Do Coracão

vam a todo vapor para dividir uma imensa pastagem em

duas, construindo cercas e separando os ocupantes.

Leah saiu da casa e caminhou rapidamente, anteci-

pando o cheiro e o sabor das espigas de milho que flo-

resciam no campo e que logo seriam colocadas na

panela. Sorriu ao pegar uma das que estava no galho

mais alto. Era melhor colhê-la antes que o sol quente a

queimasse. Então, parando junto ao milharal, descascou

as espigas e levou-as ao nariz para sentir-lhe o aroma

que ficaria ainda melhor quando fosse cozida ou assada.

— O que a senhora está inventando agora? — brin-

cou Gar, puxando as rédeas do animal que usava para

puxar a carroça de feno.

— Só estou colhendo algumas espigas para fazer no

jantar de hoje. Gosto mais quando elas são novas e

frescas como estas. Quando ficarem amarelas e maiores

você pode usá-la para alimentar os animais.

Ele sorriu, o primeiro sorriso largo depois dos dias

difíceis que haviam tido.

— Muitíssimo obrigado, ara. Lundstrom. Meu reba-

nho irá aprovar sua generosidade. Suba aqui — chamou-

a. — Vou lhe dar uma carona até em casa.

Page 316: O Milagre Do Coracão

Leah ergueu o avental, pesado por causa das

muitas espigas descascadas que havia ali, e subiu na

carroça vermelha.

— Acho que deveria ter trazido um saco para

colocar isto — falou, acomodando-se no assento de

couro.

— Acha que o que pegou vai dar para fazer o que

pretende para o jantar? — Gar perguntou, já anteci-

pando as guloseimas que experimentaria mais tarde.

Afinal, Leah era uma excelente cozinheira e ele um

ótimo garfo, o que tornava o casamento mais que per-

feito nesse sentido também.

— Sim, é mais do que suficiente. — Passou os

braços em torno das espigas e recostou-se para

aproveitar a pequena jornada. — Puxa, teria sido uma

boa caminhada até em casa se tivesse que voltar

andando. Estou feliz que tenha aparecido.

Gar a observou de soslaio.

— Não apareci por acaso, Leah. Tenho ficado de

olho em você no caso de recebermos algum visitante

inesperado. Hoje mais do que nunca porque os rapazes

estão trabalhando na cerca, do outro lado do pasto.

Leah franziu o cenho.

Page 317: O Milagre Do Coracão

— O milharal está muito alto para vermos a casa

daqui, mas eu disse a Kristofer para tocar o sino se

alguém aparecesse.

— Fez bem. E talvez amanhã possamos ir a cidade

— Gar atalhou após alguns minutos de silêncio. — Já

está na hora de descobrir o que o xerife tem a dizer.

— Sim, e eu também tenho muita manteiga e ovos

para deixar no armazém geral para Bonnie vender.

— Você não precisa trabalhar tão duro batendo toda

essa manteiga, Leah. Os porcos usarão o leite que so-

brar e isto até será bom, porque deixa a carne deles

mais macia e tenra.

— Eu sei, mas não me importo com o trabalho… E,

depois, com o dinheiro que consigo posso comprar mui-

tas coisas para as crianças.

Ele parou os cavalos ao lado do celeiro e virou-se

para a esposa.

— Não estou lhe pedindo que me prestes conta

desse dinheiro, Leah. Mas acho que deveria gastá-lo

consigo mesma de vez em quando. Desde que veio para

a fazenda que não compra um vestido novo e tem o

direito de fazê-lo. Trabalha tanto!

— Por acaso está reclamando de meu guarda-roupa

sr. Lundstrom? — Leah brincou.

Page 318: O Milagre Do Coracão

Gar perscrutou-a de alto a baixo, depois um sorriso

sensual brincou em seus lábios.

— Honestamente prefiro quando não está vestindo

nada, minha querida, mas, já que tem de usar alguma

coisa quando está fora daquele nosso quarto, gostaria

que comprasse alguma coisa que lhe agrade. Você está

sempre costurando vestidos novos para Karen, camisas

para Kristofer e nunca tem oportunidade de fazer algo

para si mesma.

Ela segurou as pontas do avental e deu um nó, pre-

parando-se para descer da carroça.

— Segure isso enquanto desço, Gar.

— Espere, vou ajudá-la a descer. — Com um mo-

vimento rápido, Gar saltou e contornou os animais antes

de se postar ao lado do passageiro. Os braços

musculosos a ampararam e ajudaram-na a vir ao chão.

Leah ficou parada ao lado do marido, aproveitando

a sensação gostosa de ter as mãos enormes em sua

cintura.

— Ainda está preocupada com o que pode

acontecer? — Gar perguntou.

— Bem, Sylvester Taylor é um homem muito in-

fluente em Chicago e sei que se ele quiser me levar ao

tribunal, não terá qualquer dificuldade para fazê-lo.

Page 319: O Milagre Do Coracão

— Ele não tem provas contra você, Leah.

— Nem eu contra Mabelle, Gar. E minha palavra

contra a dela. Por certo, os Taylor terão uni bom ad-

vogado que fará de tudo para me desacreditar.

— Também poderemos contratar um. — Soltou-a e

começou a empurrá-la em direção à casa.

— Pensei bem sobre isso, Gar, e decidi que não

posso permitir que gaste seu dinheiro contratando um

advogado para me defender.

— Você não tem outra escolha, caríssima. Sabe mui-

to bem que meu dinheiro é o “seu” dinheiro. Estamos

casados, lembra-se?

Antes que ela pudesse responder, ouviram sons de

cascos de cavalos se aproximando da casa e ambos se

voltaram para a ladeira que serpenteava da estrada até

a sede da fazenda.

— Parece que sua previsão estava certa, tem

alguém vindo aí — Leah falou, apressando-se para

acompanhar as passadas de Gar até a frente da casa.

— Xerife — Gar saudou o recém-chegado, tocando

na aba do chapéu de palha enquanto o observava

desmontar.

Page 320: O Milagre Do Coracão

— Sr. Lundstrom… madame — Morgan Anderson

retribuiu o gesto com polidez. — Estou feliz em en-

contrar os dois juntos.

Leah estremeceu diante de tais palavras.

— Algum problema, xerife?

Morgan segurou as rédeas do animal em uma mãos

e com a outra empurrou o chapéu para trás, deixando-o

cair em suas costas.

— Pode-se dizer que sim, senhora. Esta manhã

recebi um telegrama de Chicago. Parece que o sujeito

que a estava procurando decidiu levá-la aos tribunais.

Vai ter de comparecer em uma audiência daqui a três

semanas.

— E o que eles podem fazer comigo? — Suas pernas

tremiam, mal podendo sustentar-lhe o peso do corpo.

Atordoada, Leah acabou sentando nos degraus da

varanda.

Morgan os fitou com pesar, olhando primeiro para

Garlam, depois para onde Leah estava sentada.

— Ele a está acusando de negligência, senhora, e

também de homicídio culposo. Meus superiores me

incumbiram de escoltá-la até Chicago.

— Minha esposa vai ser presa? — Gar indagou, o

tom era baixo, mas bastava um olhar para o rosto

Page 321: O Milagre Do Coracão

anguloso de Garlam Lundstrom para notar o quanto

estava furioso.

— Eu não diria isso. — O xerife tirou os chapéu das

costa e limpou-a nas pernas. — No entanto, sugiro que

contrate um advogado o mais rápido possível. Talvez

seja melhor ir até Minneapolis atrás de um dos bons.

— O que há de errado com os advogados de Kirby

Falis? — Gar quis saber, franzindo o cenho.

— O único que temos na cidade é o dr. Evan Dun-

woody e ele só trabalha para Eric Magnor, pois existe

muita papelada que precisa de apoio legal na serraria.

Nunca ouvi dizer que Dunwoody tivesse trabalhado para

outra pessoa.

— Alguém mais sabe o que o senhor veio nos dizer,

xerife? — interrogou Leah com preocupação.

Morgan pareceu envergonhado ao responder:

— Foi Ponny Lathers d~ estação de ferro que me

trouxe o telegrama. Tenho quase certeza de que ele

deve ter espalhado a notícia pela cidade.

— Bem, talvez tenhamos que pensar seriamente em

ir a Minneapolis. — Gar sugeriu virando-se para a

esposa. — Podemos pedir a Ruth para ficar com as

crianças durante uns dois dias.

Page 322: O Milagre Do Coracão

— Podemos mesmo fazer isso? Ou eu estou proibida

de me ausentar da cidade? — Leah dirigiu a pergunta ao

xerife.

— Não, a senhora pode ir. Jamais tentaria impedi-la,

sei que não iria fugir e deixar as duas crianças aqui.

— No que tem toda razão — Garlam se apressou em

defendê-la.

— Podemos ir amanhã — Leah arriscou. — Falarei

com Ruth logo depois do jantar.

— Desculpe-me por ter sido portador de más

noticias, meus caros — o xenif~ murmurou, colocando o

chapéu e voltando a montar. — E, sra. Lundstrom, por

favor, gostaria muito que me mantivesse informado de

seus progressos com o advogado. Não quero que aquele

pessoai de Chicago pense que pode nos vencer só

porque vivem na cidade grande. Outra coisa… Acredito

em sua inocência — dizendo isso, esporeou o animal e

partiu.

Leah ficou olhando enquanto cavaleiro e animal de-

sapareciam na nuvem de poeira.

— Pai, seus cavalos estavam indo lá para trás do

celeiro! — Knistofer avisou, surgindo na varanda.

Page 323: O Milagre Do Coracão

— Eu não acredito! — Gar resmungou e correu para

o celeiro a fim de cuidar dos animais que esquecera de

amarrar.

Leah pegou seus milhos e levantou-se lentamente

dos degraus.

— A senhora vai embora daqui, dona Leah? Os olhos

de Kristofer estavam marejados de lágrimas quando ele

a encarou.

— Estava ouvindo nossa conversa, Kris? — Leah

franziu o cenho.

O menino assentiu.

— Eu não tinha intenção de fazê-lo, mas eu estava

tomando água na cozinha e quando o xerife chegou não

pude deixar de ouvir o que diziam.

— Nós só vamos a Minneapolis por uns dois dias,

Kris — explicou. — E Ruth irá tomar conta de você e

Karen. Fica preocupado de passar alguns dias sem seu

pai?

— Eu nunca fiquei sozinho antes — ele disse, se-

guindo-a ao interior da casa.

— Vai dar tudo certo, meu querido — assegurou-lhe

com ternura. — Você sabe que Ruth é uma boa mulher e

gosta muito de você e sua mia.

Page 324: O Milagre Do Coracão

— Eu sei que ela gosta, mas não tanto quanto a

senhora, dona Leah. A senhora vai voltar, não vai?

Leah fechou os olhos pana não deixá-lo ver o

quanto estava emocionada. Era óbvio que Kristofer

estava com medo de perdê-la da mesma forma que

pendera a mãe quase um ano antes, embora por razões

diferentes: uma fora levada pela força das leis divinas,

outra pela força das leis humanas…

— Sim, claro que vou voltar, Kris! — garantiu. — Eu

moro aqui agora. Seu pai, você e sua irmã são minha

família e eu os amo mais que tudo neste mundo. Voltarei

com certeza! — E mal terminou de falar elevou uma

prece aos céus, pedindo que sua promessa pudesse ser

cumprida, não só agora, mas também no dia que tivesse

de ir a Chicago para o julgamento.

CAPÍTULO XIII

Page 325: O Milagre Do Coracão

— Quem vai nos levar até a cidade? — Leah

indagou, descendo os degraus da varanda com uma

pequena valise de couro nas mãos. Estava com a

mesma roupa que usara quando chegara a Kirby FalIs,

quatro anos antes: um clássico casaquinho azul-

marinho, camisa branca de seda, com muitas pregas ao

longo da gola, e saia do mesmo tecido e cor do casaco,

com cintura alta e botões de madrepérola.

O conjunto de três peças lhe caía tão bem quanto

caíra naquela ocasião e Leah tentou sufocar o orgulho

que sentia por isso. Não tinha engordado uma só grama

com o passar dos anos, como acontecia com a maioria

das mulheres, principalmente aquelas que passavam

dos trinta, e esse fato tão banal e mundano lhe servia de

consolo e alento na manhã ensolarada.

— Ninguém vai nos levar — Gar respondeu à

pergunta que a esposa fizera. — Deixarei a carroça & a

égua com Sten Pringle. Já fiz isso outras vezes quando

precisei viajar — contou, antes de estender a mão para

pegar a bagagem dela. Com cuidado, guardou a valise

de couro junto com a sua própria, que fora acomodada

ali minutos antes. — Benny não me deixou ajudar com o

arreio — contou com uma careta. — Disse que se eu o

fizesse iria chegar a Minneapolis cheirando à cavalo.

Page 326: O Milagre Do Coracão

— Ah, Benny Warshem é um homem sábio. — Os

olhos azul-acinzentados mediram o marido de alto a

baixo. — Você, em compensação, Garlam Lundstrom,

não é nada sábio. — Fez uma pausa, antes de acres-

centar brejeira: — Mas devo admitir que é um homem

danado de bonito.

Os cabelos loiros brilhavam como ouro sob os pri-

meiros raios de sol da manhã, o terno impecável acen-

tuava os ombros largos e o porte naturalmente elegante.

Isso para não mencionar os traços harmoniosos do rosto

anguloso. Sim, definitivamente, hoje Gar estava mais do

que apenas bonito, ele estava magnífico em seu traje de

passeio.

E a esse elogio ele respondeu como Leah já imagi-

nava: sorriu enrubescendo e meneou a cabeça de um

lado para outro, contradizendo-a:

— Ora, pare com isso. Sou apenas um simples fa-

zendeiro, Leah Lundstrom. Os almofadinhas da cidade

grande, sim, cuidam da aparência e podem ser consi-

derados bonitos.

Gar estava se tornando previsível, ou talvez, era ela

quem estava começando a conhecê-los melhor.

— Certo, então digamos que você é apenas um fa-

zendeiro bonito, Garlam Lundstrom.

Page 327: O Milagre Do Coracão

— Obrigado. Você também deveria ter comprado

um vestido novo para esta viagem. — As mãos eram

firmes quando a ajudaram a subir na carroça.

— Eu sou apenas a mulher de um simples fazen-

deiro, meu caro — plagiou-o. — Mas pode ficar tranqüilo

que coloquei outro vestido na mala, um que é

suficientemente novo para ser usado em Minneapolis.

Ruth segurava Karen no colo e parara bem junto à

porta da cozinha, por isso, assim que Gar incitou a égua

a partir, Leah se virou para acenar.

— Ah, vou sentir saudade das crianças.

— Sim, mas não tanto quanto elas de vocês. Espe-

cialmente Karen. Você é o sol no céu da vida de minha

filha, Leah.

Ela pestanejou e um lágrima inesperada escorreu

pela face alva.

— Nunca o ouvi dizer algo tão… tão…

Gar puxou as rédeas e fez o animal seguir pela la-

deira que levava à estrada.

— Tão idiota? — completou por ela.

— Não! — negou com veemência. — Não era isso

que eu ia dizer. Suas palavras tocaram meu coração.

Nunca fui uma mulher que poderia ser levada às lá-

Page 328: O Milagre Do Coracão

grimas com facilidade, mas… — Fungou discretamente,

tentando controlar o fluxo de emoções.

— Ah, não? Pois então me enganou direitinho nestes

últimos dias — caçoou Gar.

— É verdade, nunca fui chorona, nem mesmo quan-

do criança — replicou, fuzilando-o com o olhar.

Gar riu e movimentou a cabeça num gesto

condescendente.

— Está bem, admito que nunca tinha visto chorar

antes. Mas isto é bom não acha?

— Não sei, talvez. Quem pode dizer? — Deu de

ombros e sorriu para o marido que estava muito mais

falante do que de costume. Claro que Gar deveria estar

tentando distraí-la para não pensasse nas verdadeiras

razões que os levavam a fazer aquela viagem, mas,

apesar de tudo, Leah gostou imensamente de vê-lo falar

sobre os planos que tinha para a fazenda, do lucro que

esperava obter na próxima feira agropecuária da região

e dos novilhos que estava engordando para vender no

outono.

No entanto, quando Sten Pringle surgiu diante deles

Leah soube que os momentos de descontração haviam

chegado ao fim. Com movimentos lentos, ela desceu da

Page 329: O Milagre Do Coracão

carroça e preparou-se para caminhar até a estação

ferroviária.

Sentiu-se um tanto perturbada quando passou a

mão pelo braço de Gar e juntos começaram a caminhar

pelas ruas empoeiradas de Kirby Falls. Ao passarem

diante do armazém, ergueu os olhos para o marido e

empinou o nariz. Se orgulho fosse mesmo pecado, então

ela teria muito o que acertar com Deus quando subisse

ao céu. Afinal, estava determinada a não deixar que os

moradores da cidade percebessem o que lhe ia na alma.

— Bom dia — Eva Landers mal conseguia desviar os

olhos da impressionante figura masculina que tinha

diante de si.

Leah riu secretamente ao perceber o olhar de ad-

miração da velha amiga.

— Vocês estão vestidos com tanta elegância por al-

guma razão especial? — Eva estava parada na soleira da

porta do armazém, com algumas cantas na mão.

— Pode se dizer que sim — atalhou Leah. — Esta-

mos indo para Minneapolis. Pretendemos pegar o trem

da manhã.

— Deixe-me caminhar com vocês até o hotel, então.

Tenho algumas cartas para Hobart Dunbar.

Page 330: O Milagre Do Coracão

Os homens sentados nos bancos é nas varandas os

observaram enquanto passavam, olhares e cochichos

seguiam o trio à medida que se aproximavam da ponta

do único hotel da cidade.

— Não dê atenção às fofocas — Eva aconselhou-a.

— Isto vai passar.

— Sempre me senti muito bem aqui em Kirby Falis,

mas agora parece que todos me olham com um misto de

recriminação e desprezo. — O bom humor de Leah tinha

desaparecido durante o curto trajeto da oficina do

ferreiro até ali.

— Apenas uma meia dúzia de pessoas deu atenção

ao falatório de Brian. E seja o que for que aquele homem

horrível de Chicago esteja planejando, tenho certeza de

que você será exonerada de qualquer culpa, minha

querida.

O apoio veemente e inesperado trouxe um leve

sorriso aos lábios de Leah e ela virou-se para abraçar a

amiga antes de seguirem em direção à estação

ferroviária.

No entanto, mal haviam atravessado a rua desco-

briram Brian Havelock sentado diante da barbearia.

Page 331: O Milagre Do Coracão

— Espero que aprecie sua viagem, dona Leah! —

ele gritou, o desdém mais do que evidente, apesar da

distância que os separava.

— Não ouse dirigir a palavra a minha esposa! — Gar

disse em alto e bom som, corno se o insulto tivesse sido

a última gota que fazia sua indignação transbordar.

— Ora, eu só estava tentando ser amigável, sr.

Lundstrom — tornou Brian mordaz. — Ouvi dizer que sua

esposa gosta muito de ser amigável para com alguns

homens da cidade.

— Ignore-o, por favor — suplicou Leah. — Venha,

Gar, você disse que nós teríamos que nos apressar para

conseguir lugar nesse trem! — Puxou-o pelo braço, com

medo do que poderia acontecer.

Mas Gar não estava disposto a ignorar o

atrevimento do jovem Havelock. Com cuidado, tirou a

mão da esposa de seu braço, segurou-a e puxou-a de

volta para a calçada.

— Espere-me aqui. Vou ensinar umas coisinhas a

esse cretino. — Sem deixar chance de Leah protestar,

afastou-se rumou para a barbearia, já começando a

afrouxar a gravata. No meio do caminho desabotoou o

paletó e o tirou. Quando alcançou Brian, já havia

enrolado as mangas da camisa na altura do cotovelo.

Page 332: O Milagre Do Coracão

— Está pensando em brigar comigo, velhote? —

Brian escarneceu, fitando o adversário com olhar de

superioridade.

— Estou pensando em lhe ensinar um pouco de

boas maneiras, moleque — Gar respondeu num tom

pausado, antes de entregar o casaco ao barbeiro que

havia saído na frente da loja ao ouvir a confusão.

Brian olhou para o grupo de homens que estava a

sua volta e pareceu ganhar coragem ao ouvir os mur-

múrios da audiência.

— Você pretende me bater com qual braço? — iro-

nizou, virando-se para Gar.

— Acho que vou usar estes dois soldados aqui —

Gar respondeu, movimentando os punhos cerrados para

frente e para trás.

— Então venha me pegar, velhote! — Brian desa-

fiou-o, insistindo em tratá-lo com desdém.

— É, acho que vou mesmo — dando um passo a

frente, Gar acertou um soco no queixo de Brian e o

rapaz gritou alto ao cair na calçada.

Impassível, Gar abaixou-se, pegou-o pelo colarinho

e bateu-lhe no rosto com mão espalmada, uma vez de

cada lado.

Page 333: O Milagre Do Coracão

Brian se debateu e gritou uma série de desaforos

enquanto sentia o peso dos dedos longos a arder-lhe no

rosto. Então voltou a cair na sarjeta, vítima de uma série

de socos que o atingiram com precisão. Seus próprios

pulsos quase não causando nenhum dano ao físico

avantajado de Garlam Lundstrom.

A multidão vibrou enquanto se aglomerava em

torno dos dois homens. Por isso mesmo, Leah quase não

conseguia ver o que estava acontecendo. Atordoada,

recostou-se contra uma das janelas do hotel e cobriu a

boca com uma das mãos. Como isso podia ter

acontecido?!

— Gar não tinha outra escolha — falou Eva ao lado

dela.

— Mas eu não queria vê-lo brigando por minha cau-

sa. Gar deveria ter ignorado os comentários de Brian.

— O que esse garoto idiota andou dizendo? — in-

dagou uma conhecida voz masculina.

Leah virou-se para encarar Eric Magnior que aca-

bava de saltar da sela do garanhão negro. Rapidamente,

ele amarrou as rédeas ao pilar e com dois passos

colocou-se diante das mulheres.

— Será que o senhor não consegue fazer os dois

pararem? — Leah pediu, imaginando que talvez a

Page 334: O Milagre Do Coracão

sobriedade do sr. Magnor conseguisse por fim à briga

estapafúrdia.

Eric balançou a cabeça de um lado pana outro.

— O jovem Havelock está pedindo por isso há algum

tempo. — Postou-se ao lado dela como se desejasse

reconfortá-la. — O que o cabeça-de-vento andou dizendo

desta vez?

— Ele disse que Leah gosta de ser amigável com

alguns homens da cidade — Eva contou. — O tom que

usou foi ainda mais insultante do que as palavras, sn.

Magnon.

Do outro lado da rua, o burburinho aumentou bas-

tante e Leah se virou a tempo de ver o corpo de Brian

ser erguido no ar.

A força de Garlam Lundstrom e seu vigor físico es-

pantava a multidão, afinal, ele segurava Brian, que

também era um jovem alto e forte, bem acima de sua

cabeça.

Os gritos agoniados do jovem arrancava risos da

audiência impiedosa. Apenas Gar permanecia sério,

mesmo depois de jogar Brian sentado ao lado da porta

de entrada da barbearia.

— Você quer dizer mais alguma coisa a mim ou a

minha esposa, frangote? Tem mais algum insulto que

Page 335: O Milagre Do Coracão

queria proferir? — trovejou Gar, trespassando Brian com

as íris azuis.

O rapaz se levantou e começou a limpar a roupa

suja de poeira.

— Está pronto a pedir desculpas a minha esposa por

ser sido tão grosseiro? — Gar agarrou-o pelos ombros e

o fez virar em direção a Leah.

Ela recostou-se ainda mais contra a parede do hotel.

— Não… não faça isto, Gar — sussurrou, abafando o

som das palavras com o a mão que lhe cobria os lábios.

A seu lado, Eric Magnor deu um passo a frente e

panou no centro da rua.

— Penso que o sr. Havelock deve desculpas a outras

pessoas também, não só à sra. Lundstrom — disse em

voz alta, para que todos pudessem ouvi-lo. A figura

sóbria e imponente parada no centro da rua empoeirada

dava um toque irreal à cena.

E todos os presentes ficaram em silêncio, atônitos

com o gesto do dono da serraria. Eric Magnor vivia em

total reclusão em sua casa elegante e raramente

tomava parte nos acontecimentos cotidianos de Kirby

Falls.

Brian o observou o ex-patrão pelo canto dos olhos,

já inchados por causa dos socos que acabava de levar.

Page 336: O Milagre Do Coracão

Gar estava parado a suas costas e Eric um pouco mais a

frente, ele virou-se um para outro como se estivesse

avaliando qual dos dois representava um perigo menor.

De qualquer forma, sabia que era um homem acabado.

Talvez tivesse sido justamente essa falta de perspectiva

que o levou a ir ao extremo:

— Vejam só como eu tenho razão — ele ergueu o

tom de voz e virou-se para os moradores que assistiam

à cena com atenção. — Até mesmo o homem mais

poderoso da cidade não fica imune ao charme desta

mulher, não é mesmo, sr. Todo-Poderoso Magnor? —

ironizou.

Eric não se deixou intimidar pelas palavras maldo-

sas. Retalhando Havelock com o olhar, ele deu um passo

a frente e declarou:

— Não vou permitir que me acuse de observar uma

senhora com olhos adúlteros, ar. Havelock. Muito menos

quando esta senhora é Leah Lundstrom, pois neste caso

meu pecado seria ainda mais imperdoável.

Todos que presenciavam a discussão pareciam mais

interessados a cada minutos.

Eric deu um passo a frente e aproximou-se ainda

mais de Brian.

Page 337: O Milagre Do Coracão

— E não serei acusado de tal pecado, meu rapaz.

Principalmente… — Ergueu o queixo e completou num

tom cortante: — Principalmente, porque a mulher em

questão é minha própria filha, ar. Havelock.

A multidão explodiu em mil comentários e Leah

sentiu seu coração bater alucinadamente dentro do

peito. Sua cabeça rodava e as pernas tremiam. De

repente, tinha a sensação de que nem todo o ar de Kirby

Falls era o bastante para saciar-lhe. Só quando tudo

começou a girar a seu redor e suas vistas escureceram,

ela se deu conta de ia desmaiar. Mas aí já era tarde

demais.

— Leah! — O grito consternado de Gar também não

surtiu mais qualquer efeito. Cruzando a rua com duas

passadas, ele ajoelhou-se ao lado de onde Leah havia

caído, segurando-lhe a cabeça nas mãos e começando a

afrouxar-lhe o colarinho da blusa branca de seda.

Eva permaneceu ao lado deles todo o tempo, aju-

dando Gar a tirar o casaco azul-marinho para que ela

pudesse respirar melhor.

— Alguém traga logo um copo de água! — gritou

Eva, mesmo quando Lula Dunbar já lhe entregava um

copo cheio nas mãos.

Page 338: O Milagre Do Coracão

— Leah, por favor, fale comigo! — Gar pediu, am-

parando-a enquanto Eva tentava fazê-la beber a água.

A atenção de todos agora se voltava para a mulher

caída diante do hotel.

Eric Magnor por sua vez, continuava parado ao lado

da barbearia, esperando que o chamado de Garlam

surtisse algum efeito.

— Ela está bem? — perguntou após alguns

instantes. Gar anuiu com um movimento de cabeça,

ajudando a esposa a sentar-se. Com cuidado, tirou o

copo de água das mãos de Eva e fez Leah sorver um

longo gole.

— Gar? — A voz dela não era mais que um sussurro.

Remexendo-se, empurrou o copo para longe. — Por

favor, já basta. Não quero mais água — disse, olhando

em torno de si, depois se voltando para Eva que con-

tinuava a observá-la com preocupação.

— Deixe-me ajudá-la, Leah — Garlam falou, ampa-

rando-a quando ela se levantou e, com as mãos na

cintura delgada, começou a empurrá-la para longe dali.

— Vou mandar buscar meu coche para levá-la – Eric

se prontificou, mas o olhar duro que Gar lhe dirigiu

deixou claro que a oferta não seria aceita.

Page 339: O Milagre Do Coracão

— Não, minha esposa e eu vamos voltar para casa

em nossa carroça, sr. Magnor. Não vamos mais viajar

hoje. — Na verdade, enquanto ele falava, o som de um

conhecido apito cruzava o ar e um pouco mais a frente,

a locomotiva começava a se afastar na linha do trem,

espalhando fumaça e chacoalhando os vagões como as

peças de um domino.

— Mas eu preciso falar com ela — Eric disse com

urgência, parando a alguns passo de Leah.

Ela meneou a cabeça, ainda atordoada diante de

tantos acontecimentos inesperados.

— A… agora não, por favor. — O sussurro era um

suplicante pedido de privacidade e Eric atendeu-a no

mesmo instante.

Sem se afastar dela nem por um minutos sequer,

ele a empurrou na direção da oficina do ferreiro, Eva

Landers ao lado deles, carregando o casaco e a mala de

Leah.

Secretamente, Gar pensou que eles deveriam pare-

cer um trio e tanto.. Leah pálida e trêmula; Eva sorrindo

e cumprimentando a todos que os observavam com

olhares atentos; e ele próprio, um homem alto e sério

que acabava de defender a mulher que amava, numa

espécie de declaração de amor pública.

Page 340: O Milagre Do Coracão

— Você acha que é verdade? — A cabeça de Leah

estava apoiada nos ombros largos e Gar apertou-a con-

tra si enquanto ela falava. — Como uma coisas dessas

pode ser verdade? — Leah continuou, mesmo antes de

ele ter chance de responder a pergunta inicial.

— Claro que pode ser verdade! — exclamou muito

sério. — Agora se é ou não já é outra história. Contudo,

tenho comigo que Eric Magnor não tinha razão nenhuma

para mentir… Ele sempre foi um homem muito honesto

e correto. Ninguém nesta cidade pode acusá-lo de ser

um mentiroso.

— Então por que ele esperou tantos anos para dizer

isso? Se sabia que eu era sua filha, por que não falou

antes?

— Não sei — admitiu Gar, franzindo o cenho. — Mas

de uma coisa tenho certeza: Eric não vai descansar

enquanto não falar com você. — Segurou com mais

força nas rédeas e ao movimentá-la, percebeu que suas

juntas estavam bastante inchadas.

Leah pareceu ter o dom de ler-lhe os pensamentos.

Page 341: O Milagre Do Coracão

— Você deve ter batido muito forte em Brian — ela

falou, tocando a pele avermelhada. — Deixe-me ver sua

outra mão.

— Não, está tudo bem. Mais tarde você poderá me

fazer um carinho e beijá-la — brincou, mas logo voltou a

ficar sério, ao vê-la soltar o corpo de encontro ao seu,

como se estivesse perdendo as forças. — Leah, você

está bem? Quer colocar a cabeça em meu colo até

chegarmos em casa?

— Não, claro que não! Só estou tentando entender

como tudo isso aconteceu. Nós perdemos o trem para

Minneapolis e teremos que começar tudo de novo

amanhã. Se hoje todos já me olhavam de rabo-de-olho

imagine só como não será amanhã, depois desta cena

dantesca.

— Acho que as histórias de Brian Havelock não vão

interessar a mais ninguém, querida. E ser filha de Eric

Magnor não é algo tão ruim assim. Você deveria ouvir o

que o homem tem a dizer, Leah.

— Se o que Eric Magnor diz é verdade, como não

me lembro dele?

— Quantos anos tinha quando sua mãe a levou em-

bora daqui? Três, quatro?

Page 342: O Milagre Do Coracão

— Bem, era jovem o bastante para não me lembrar

de ninguém da cidade. — Sentou-se ereta no assento da

carroça. Sua mente concentrada em um novo pen-

samento. — Por que eu não tenho o nome dele? Minha

mãe se chamava Minna Polk, não Minna Magnor.

— Viu só, esta é uma das coisas que terá de per-

guntar a Eric? Só ele pode te dar as respostas que

procura, Leah.

— Não entendo porque minha mãe sempre disse

que meu pai tinha morrido… — Virou o rosto para fitá-lo

nos olhos. — Eu nunca contei a ninguém na cidade que

tinha nascido aqui, e ninguém também chegou a dar

mostras de que me reconhecia. Isto é o mais estranho,

não?

— Bem, é provável que Minna Polk não fosse co-

nhecida por este nome quando viveu em Kirby Falis. —

Parecia o mais lógico para ele, mas sabia que Leah ainda

precisava de tempo para aceitar a verdade, por isso,

deixou-a remoer o assunto durante todo o trajeto de

volta à fazenda.

As crianças ficaram radiantes ao vê-los chegar.

— O trem não veio hoje, pai? — Kristofer perguntou,

correndo para recebê-los.

Page 343: O Milagre Do Coracão

— Sim, veio, mas nos resolvemos deixar a viagem

para amanhã, filho — Disse ao menino, enquanto aju-

dava Leah descer. — Venha me ajudar a colocar estes

cavalos para pastarem um pouco. — Suas mãos ainda

estavam firmes na cintura delgada, pois tinha medo que

Leah pudesse desmaiar outra vez. — Você está bem?

Quer que eu a leve para dentro?

Ela recusou.

— Não. Estou bem. Pode deixar que entro sozinha.

Vá cuidar dos animais. Só estou tentando me recuperar

do susto que levei com a declaração de Eric Magnor.

— Então entre e descanse. Estarei lá num minuto —

falou carinhoso e ficou olhando enquanto Leah se

afastava.

— Pai? Não vamos levar os animais para pastarem?

— Kris indagou, puxando-o pela manga da camisa.

— Sim, filho, eu vou. Só estava esperando para ver

se está tudo bem com Leah.

— Para mim ela parece ótima — o menino

comentou, caminhando ao lado do pai.

— E você deve ter razão — Gar sorriu e passou a

mão pela cabeça loira do filho, despenteando-o.

Kris também sorriu e, inesperadamente, abraçou-o

pela cintura.

Page 344: O Milagre Do Coracão

— Ah, papai, estou feliz que não tenha viajado —

confessou, revelando seu afeto pela primeira vez em

sete anos.

Ah, o amor que fluía de um ser humano para outro

era mesmo uma bênção dos céus, Gar concluiu. Prin-

cipalmente de pai para filho. E ele era uma pessoa de

sorte por ter um filho como Kristofer.

— Você é um bom menino, Kris. Estou orgulhoso de

tê-lo como filho — confessou num tom carinhoso.

— Verdade, pai?

Uma pontada de remorso tocou o coração de Gar

quando ele se lembrou de todas as vezes que deixara de

elogiar o filho ou de confessar o seu amor.

— Claro que sim, tenho muito orgulho de ser seu pai

— falou emocionado. De súbito, finalmente entendeu o

que Eric Magnor deveria sentir em relação a Leah: uma

filha maravilhosa a quem Eric nunca pudera abraçar e

muito menos confessar seu amor. Talvez estivesse na

hora de ajudar pai e filha a se entenderem, afinal, gos-

tava do pai e amava a filha com todo seu coração…

CAPÍTULO XIV

Page 345: O Milagre Do Coracão

O sol estava se pondo no horizonte verdejante da

Fazenda Lundstrom quando uma sonora batida na porta

ecoou por toda a casa. A cozinha já estava nas sombras

e as mãos de Leah se ocupavam em acender a vela

sobre a mesa.

Ao perceber que tinham visitas, ela se voltou

apreensiva para a porta. Quem poderia ser?, perguntou-

se com medo de que fossem notícias de Sylvester

Taylor. Exatamente, por isso, quando se aproximou da

porta de tela a expressão de seu rosto era muito pouco

amistosa.

— Pois não?! — disse ao homem alto e robusto pa-

rado na varanda, ao mesmo tempo em que avistou Gar

vindo do celeiro.

— Sra. Lundstrom? — A voz do desconhecido era

grave e tinha um forte sotaque sueco que Leah apren-

dera a reconhecer depois que viera morar na região. —

Estou precisando muito de sua ajuda.

Era uma súplica a qual ela não podia resistir, não

importava o quão cansada estivesse. Por isso, abriu a

porta de tela e o encarou.

Page 346: O Milagre Do Coracão

— Hans, há quanto tempo! — Garlam exclamou,

galgando os degraus da varanda e cumprimentando o

visitante. — O que o traz aqui, meu velho?

— Vim pedir ajuda a sua esposa, Gar — Olaf res-

pondeu. — Meus garotos estão doentes. A mãe deles

acha que deve ser uma dessas doença de verão, mas

estou assustado com a febre e o vômito que não cortam.

Os meninos estão muitos fracos e preciso de ajuda. Nem

gosto de pensar no que pode acontecer se ficarem assim

por mais alguns dias.

— Já é tarde, Olaf — Gar começou a dizer —, o sol

está pondo e daqui a pouco ninguém mais conseguirá

enxergar um palmo adiante do nariz.

— Sei disso e não pediria ajuda a sua esposa se não

estivesse tão preocupado, meu amigo.

— Estarei pronta num minuto, meu senhor — Leah

declarou, prontificando-se a acompanhá-lo. A simples

lembrança de que havia dois garotos vomitando e com

febre quando ela poderia ter ajudado a curá-los não iria

mesmo deixá-la dormir, concluiu. O melhor a fazer era

acompanhar o sr. Olaf e ver se poderia fazer alguma

coisa pelos meninos.

— Serei eternamente grato por isso, senhora — o

fazendeiro agradeceu, segurando o chapéu de palha nas

Page 347: O Milagre Do Coracão

mãos calejadas e dirigindo um sorriso aliviado para ela.

— Está esfriando, sra. Lundstrom, é melhor trazer um

casaco.

— Vou pegar minha bolsa e já volto — ela anunciou,

antes de subir as escadas correndo e parar diante da

porta do quarto de Kristofer.

— Qual o problema, dona Leah? — o menino quis

saber, sentando-se na beirada do colchão e tirando a

meia.

— Vim lhe dizer que quero que tome um banho

antes de deitar, Kris. Preciso sair, vou ver os filhos de

um de nossos vizinhos que estão doentes, mas estarei

de volta a tempo de preparar o café da manhã.

— Sim, senhora — Kris aquiesceu, mas havia um

brilho de preocupação no fundo dos olhos azuis. — A

senhora vai voltar mesmo, não vai?

Aquilo era mais do que Leah poderia suportar, e,

obedecendo a um impulso, ela foi até o enteado e in-

clinou-se para abraçá-lo.

— Claro que irei voltar, Kris. Amo vocês demais para

deixá-los. Já lhe disse isso. — Depositou um beijo na

testa de pele acetinada e bateu de leve nos ombros

pequeninos. — Agora vá para cama. Sua irmã também já

dormiu.

Page 348: O Milagre Do Coracão

E, mal terminou de falar, já fechava a porta atrás de

si e corria para o próprio quarto a fim de pegar um xale

de crochê e a preciosa bolsa de couro em que guardava

suas ervas, bálsamo e ungüentos. Quando voltou a

descer, Gar estava parado junto a porta e a fitava com o

cenho franzido.

— O sr. Hanson a trará de volta, Leah — ele disse.

— Eu poderia acompanhá-la, mas não quero pedir para

Ruth olhar as crianças outra vez, acho que já estamos

abusando de sua bondade.

— Tem toda razão, e não se preocupe comigo.

Logo estarei de volta — dirigindo um sorriso ao marido,

passou por ele e acompanhou Olaf até a charrete. No

minuto seguinte já desciam a ladeira que levava à

estrada principal.

A casa dos Hanson ficava muitos quilômetros depois

da fazenda deles e Leah agradeceu aos céus por ter

trazido o xale branco consigo. Introspectiva, olhou de

soslaio para o semblante preocupado do homem que

viajava a seu lado, gostaria de poder dizer algo que o

consolasse, mas não conseguia pensar em nada. Mesmo

se a doença que estivesse castigando os garotos fosse

uma das típicas enfermidades de verão, eles poderiam

Page 349: O Milagre Do Coracão

estar correndo sérios riscos. Afinal, era muito comum

crianças morrerem desidratadas naquela época do ano.

— Meus meninos estão muito mal mesmo, senhora

— Hans falou a certa altura. — Estão com febre, têm

cólicas terríveis e ainda por cima vomitam tudo o que

lhes cai no estômago. A senhora já cuidou de algum

caso parecido?

— Sim, e o maior problema é sempre fazer o chá ou

a infusão de ervas parar no estômago de quem está

vomitando. Mas vamos ver o que conseguimos fazer por

seus meninos, sr. Hanson. Tenho diversas ervas que po-

dem ajudar. — Controlou o impulso que sentia de bater-

lhe de leve nas costas largas, pois sabia que poderia ser

mal interpretada. — Que idade têm os seus filhos?

— Quatro e sete — ele respondeu. — São quase

bebês, senhora.

— O senhor só tem os dois?

— Não, temos uma menina de dois anos.

— A mãe ainda a está amamentando? — Leah per-

guntou e logo o viu assentir. — Isso é bom, porque muita

gente acredita que esses vômitos e diarréias possam ser

provocados pelo leite de vaca que se contamina muito

fácil nos dias quentes do verão.

Page 350: O Milagre Do Coracão

— E o que podemos fazer? Acha que todo o leite

está estragado?

Leah negou com um movimento de cabeça.

— Não, não está estragado. E fácil resolver o pro-

blema, só é preciso ferver o leite por uns dez minutos,

até que ele forme bolhas e comece a subir.

Olaf franziu o cenho.

— Nunca ouvi nada sobre isso antes.

— Acredito que não tenha ouvido, sr. Hanson,

afinal, estes ainda são hábitos que precisam ser

difundidos. Mas, por outro lado, pode ser que o mal-

estar de seus filhos não tenha sido causado pelo leite.

Vamos ver quando chegarmos lá — disse, tentando

parecer confiante.

No entanto, a primeira visão que teve das crianças

doentes a deixou muito mais preocupada. Os meninos

estavam com enormes olheiras, a pele mostrava-se seca

e sem vida, eles gemiam de dor, gritando a cada cólica e

puxando as pernas até que lhe encostassem na barriga.

Gerda Hanson curvou-se primeiro sobre o menor,

depois sobre o outro, trocando as toalhas úmidas que

usara para fazer a febre baixar.

— Ah, estou tão feliz que tenha vindo, sra. Lunds-

trom! — disse a mulher com os olhos cheios de lágrimas.

Page 351: O Milagre Do Coracão

— Ouvi dizer que é uma ótima curandeira. As pessoas na

cidade não cansam de repetir que suas mãos são

mágicas.

Leah sorriu e ergueu as mãos para negar o rótulo

que lhe fora aplicado, mesmo contra sua vontade. Então,

com movimentos rápidos, tirou o xale e abriu a bolsa de

couro.

— A senhora tem um pouco de água quente, sra.

Hanson?

— Claro — Gerda respondeu. — De quanto precisa?

— O bastante para fazer um chá com estas duas

ervas. Isto vai ajudar a diminuir o vômito e também a

baixar a febre — explicou.

A noite foi longa, com horas e horas de vigília ao

lado da cama dos pequenos Hanson. Leah se revezava

com a mãe apreensiva, vertendo o chá nas bocas trê-

mulas e trocando as roupas úmidas por causa do calor

dos corpos febris. Mas, finalmente, o romper da aurora,

os dois meninos já estavam bem melhor e dormiam o

sono plácido a que toda criança tinha direito.

— Não sei nem como lhe agradecer pelo que fez! —

Gerda falou ao se despedirem.

Page 352: O Milagre Do Coracão

— Não me agradeça, senhora. Agradeça a Deus.

Mas, por favor, não esqueça de ferver o leite e a água

que dá a seus filhos daqui por diante.

Gerda garantiu que não se esqueceria e Leah foi

para casa, sonhando em dormir um pouco. Mais uma vez

teria de pedir a ajuda de Ruth….

Leah acordou logo após o almoço e foi até a cozinha

a procura de algo que pudesse preencher-lhe o estô-

mago vazio. Não que estivesse propriamente com fome,

mas sim porque sabia que o velho ditado “saco vazio

não pára em pé” era uma verdade, principalmente na

vida da mulher de um fazendeiro de Minnesota.

Ruth tinha se mostrado mais do que curiosa sobre

os acontecimentos da noite anterior e enquanto comia

ela relatou o que acontecera na casa dos vizinhos.

— Sinto muito por ter de mandar chamá-la com

tanta freqüência, Ruth — desculpou-se Leah a certa

altura. — Já comentei com Gar que você vai acabar se

cansando de nós.

— Não é verdade, eu gosto de vir aqui — garantiu a

jovem sra. Warshem com um sorriso. — E, mais do que

Page 353: O Milagre Do Coracão

tudo, fico feliz em ver a maneira como esta casa se ilu-

minou depois de sua chegada, Leah. Gar é um novo

homem desde que se casaram. Mas eu sabia que seria

assim, por isso o mandei levar o bebê para você cuidar.

Leah arqueou as sobrancelhas, mal acreditando no

que ouvia.

— Você fez o quê?! Está me dizendo que convenceu

Gar a levar Karen para mim?

Ruth assentiu.

— Isto mesmo. Algumas vezes, tenho umas espécie

de premonições sobre coisas que irão acontecer. Não

falo muito sobre isso, porque acho que as pessoas me

interpretariam mal. Mas eu sabia que vocês dois

estavam predestinados um ao outro. Vi isso no dia em

que Hulda morreu.

— Contou a Gar? — Leah indagou um tanto

assustada.

— Não. Coisas como essa nunca conto a ninguém,

principalmente aos homens que são muito incrédulos.

Estou dizendo a você porque sei que também tem dons

especiais, como o da cura.

— Ah, este não é bem um dom, Ruth, é uma

questão de conhecimento — tentou explicar, mas a

outra mulher não parecia disposta a ouvi-la.

Page 354: O Milagre Do Coracão

— Não seja modesta, Leah. Todos sabem que você é

uma curandeira que já ajudou muita gente em Kirby

Falis.

Leah logo percebeu que era melhor mudar de

assunto. Ruth ficou na casa da fazenda por muitas horas

ainda e insistiu em preparar o jantar antes de ir embora.

Leah a estava acompanhando até á varanda, quando o

coche preto de Eric Magnor subiu a ladeira e parou

diante da casa.

Eric tirou o chapéu para cumprimentar a jovem era.

Warshem antes de seguir até a varanda onde Leah

estava parada com Karen nos braços.

— Boa tarde — ele a saudou. — Será que está muito

ocupada para me receber?

— Não, claro que não — negou Leah, sinalizando

para que a acompanhasse até a cozinha.

— Ouvi dizer que você passou a noite em claro cui-

dando dos filhos de Olaf Hanson — Eric comentou,

acomodando-se à mesa de madeira escura. — Tem cer-

teza de que está bem, Leah?

Ela anuiu, sentindo o rubor tingir suas faces de

vermelho.

Page 355: O Milagre Do Coracão

— Estou muito bem, sr. Magnor. Cochilei um pouco

esta manhã, pois Ruth veio me dar uma ajuda com a

casa e as crianças.

— E como estão os filhos de Hanson? Espero que

não tenham nenhuma doença grave, não é mesmo?

— Não acredito que tenham. Foi apenas uma dessas

enfermidades de verão. Falei com a mãe e ela me ga-

rantiu que será mais cuidadosa com o — leite nos dias

em que estiver muito quente por aqui.

— Quer dizer que não foi nada parecido com aquela

febre que tive?

— Não, as crianças estavam sofrendo de um mal

totalmente diferente, sr. Magnor.

— Precisamos falar sobre isso, Leah… Este sr. Mag-

nor que você continua usando ao se dirigir a mim.

Ela ergueu o queixo e o encarou arqueando leve-

mente uma das sobrancelhas.

— E como espera que o chame? Disse à cidade toda

que era meu pai, mas não se dignou a me dizer uma só

palavra sobre isso. Se é mesmo meu pai, porque não

contou antes? Faz quatro anos que voltei a Kirby Falls e

o senhor jamais me procurou.

Page 356: O Milagre Do Coracão

O resto de Eric Magnor ficou pálido e ele encolheu-

se na cadeira como se estivesse com vergonha de si

mesmo.

— Venho querendo lhe contar há muito tempo,

Leah.

— Há quanto tempo exatamente? — questionou-o

num tom duro.

— Há muito mais tempo do que você pode imaginar,

minha querida filha. Há mais tempo do que todos os

anos desta minha vida. Quando você voltou à cidade, eu

fiquei observando-a de longe e queria muito te contar

que era seu pai.

Leah sentiu lágrimas quentes minarem-lhe dos

olhos e baixou o rosto para olhar para Karen, não

querendo deixar Eric perceber sua fraqueza.

— Não teria sido mais fácil para todos se o tivesse

feito, senhor? Por acaso lhe ocorreu que eu também

tinha o direito de saber que meu pai estava vivo e perto

de mim.

Eric pigarreou e sua voz estava um tanto rouca,

revelando a emoção que não podia ser disfarçada.

— Eu não sabia onde você estava durante todos

esse anos, minha filha. Tudo o que eu sabia era que sua

mãe tinha me deixado e que eu não poderia me arriscar

Page 357: O Milagre Do Coracão

a magoá-la ainda mais. Confesso que também não

conseguia reunir coragem para ir procurá-las. Minha

escolha foi ficar longe, às margens de sua vida enquanto

você crescia e só tornava a mulher maravilhosa que é

hoje.

— Uma escolha que o senhor continuou a preservar

depois que eu voltei a Kirby Falls, não? — a pergunta era

na verdade uma acusação e Eric abaixou a cabeça,

incapaz de encará-la.

— Eu sei… eu sei. Mas nunca fiquei longe de você

desde o momento que percebi quem era. Estava sempre

observando-a e contei às pessoas que era a filha de uma

excelente curandeira, muitos desses para os quais

contei foram seus primeiros pacientes em Kirby Falis.

Também sugeri aos rapazes solteiros que trabalham na

serraria que poderiam lhe pedir que cuidasse de suas

roupas.

Leah ficou surpresa com essa revelação. Então era

por isso que, de uma hora para outra, vários dos sol-

teirões da cidade tinham ido bater à sua porta!?

— Depois de algum tempo — Eric prosseguiu —,

resolvi deixar meu orgulho de lado e me preparei para

contar-lhe a verdade sobre nosso parentesco. Você já

estava cuidando da filha de Garlam e achei que deveria

Page 358: O Milagre Do Coracão

aliviá-la um pouco, pois tinha muito trabalho pesando

sobre seus ombros, quando na verdade, poderia des-

cansar e aproveitar da herança que é sua por direito. E

foi então que soube que você iria se casar com Garlam.

Aí decidi esperar e ver o que acontecia, pois sabia que

Garlam Lundstrom tinha tudo para se tornar um ótimo

marido para minha filha. Eu mesmo não teria podido

escolher um genro melhor.

— Por que não me contou no dia que fui visitá-lo em

sua casa? — A lembrança daquele encontro ainda estava

muito viva na lembrança dela, inclusive o pedido de Eric

para que se tornassem amigos. Amigos, bah!

Ele movimentou as mãos em sinal de impotência

diante dos fatos.

— Primeiro porque estava doente demais para ra-

ciocinar com clareza, depois, quando tornou a me visitar

naquela terça-feira, percebi que era uma mulher

maravilhosa e uma criatura de quem eu deveria me

orgulhar. Justamente por isso, tive medo, medo de que

não aceitasse meu amor porque eu tinha demorado

tempo demais para proclamá-lo em alto e bom som.

Leah sentiu um estranho arrepio na nuca e virou-se

para a entrada para confirmar uma suspeita.

Page 359: O Milagre Do Coracão

Sim, Gar estava parado na soleira da porta e, com

passos rápidos, aproximou-se dela e colocou as mãos

enormes sobre seus ombros.

— Eu vi o coche parado aí fora — disse, cumpri-

mentando Eric com um gesto de cabeça. — Além do

que, já está na hora do jantar.

— Ah, desculpem-me se os atrapalho, mas isso não

poderia ter sido deixado para depois.

— Se quiser pode ficar para jantar conosco, Eric —

Garlam atalhou, achando que deveria convidá-lo para o

bem de Leah. — Afinal, nesta casa sempre há comida

suficiente para todos. Leah gosta de fartura.

Eric olhou incerto para a filha.

— Não sei se Leah gostaria que eu partilhasse a

refeição com sua família.

— Claro que o senhor pode jantar conosco — Leah

disse rapidamente. Levantou-se da cadeira onde havia

se sentado e entregou Karen a Garlam, antes de rumar

para o fogão e remexer nas panelas.

Foi naquele instante que um pequeno furacão loiro

cruzou a porta da cozinha e olhou para os adultos com o

cenho franzido.

— Ah, eu não ouvi o sino, papai. Mas já está na

hora de comermos? — O olhar curioso recaiu sobre a

Page 360: O Milagre Do Coracão

figura imponente de Eric Magnor, então, concentrou-se

no rosto sério de Leah. — Vamos ter companhia?

— Sim, mas vá se lavar primeiro, Knis — Leah

disse — automaticamente, empurrando o menino em

direção à pia.

— Eu já me lavei na bomba — contou Knis. — É

assim que os homens fazem. A senhora vai sair de novo,

igual ontem?

Leah viu o brilho preocupado no fundo dos olhos

azuis e tratou de acalmá-lo.

— Hoje não, meu querido. O sr. Magnor só veio

falar comigo porque temos algumas coisas para acertar.

Ele vai jantar conosco. Agora pegue um prato para nossa

visita e os talheres também, por favor. — Inclinou-se e

murmurou junto à orelha delicada: — Pode ficar

tranqüilo, Knis, está tudo bem por aqui.

O menino fez como lhe foi pedido e em questão de

minutos todos estavam acomodados em volta da mesa,

com Karen no colo do pai.

Gar proferiu uma breve prece de agradecimento e

logo o silêncio reinou, porque todos estavam saboreando

a deliciosa refeição preparada por Leah.

Page 361: O Milagre Do Coracão

— Você é uma boa cozinheira, Leah, preciso lhe

pedir que mande suas receitas a Sarah – Eric elogiou,

dando uma segunda mordida no bife.

— Bem, na verdade, foi Ruth Warshem que

preparou o jantar hoje, mas este é um os pratos que

costumamos comer com freqüência por aqui. -

— E está muito bom — Eric garantiu.

— São receitas de minha mãe — ela revelou num

impulso. — O senhor dever ter comido muito disso

quando… — calou-se, percebendo que Eric deixava os

talheres de lado. — Desculpe-me, sua cozinheira deve

fazer coisa muito melhores.

— Não, é claro que naquela época em que sua ma-

mãe vivia aqui eu não tinha cozinheira, querida. — Os

olhos acinzentados estavam tristes quando procuraram

pelos dela.

— Ao que parece vocês dois ainda têm muito o que

conversar ainda — Garlam disse, observando-os e tor-

cendo secretamente para que sua esposa e o pai se

entendessem. — Mas, agora, Leah, por favor, coloque

Karen no cadeirão antes que esta sapequinha vire o

prato sobre mim — pediu, vendo a filha enfiar as mã-

ozinhas rechonchudas em sua comida.

Page 362: O Milagre Do Coracão

Leah atendeu-o e depois tentou se concentrar na

comida que tinha diante si. Se há algum tempo alguém

tivesse lhe dito que iria receber a visita do pai e que ele

jantaria com sua família, ela teria respondido que não

acreditava em fantasmas, mas agora, tudo havia

mudado em sua vida. E Eric Magnor estava ali, para

tentar recuperar o tempo perdido. Talvez valesse a pena

ouvir o que ele tinha a lhe dizer…

— Gostaria de caminhar um pouco? — Parecia mais

fácil caminhar pela ladeira circundada de flores sil-

vestres do que continuar ali na varanda, apertando as

mãos nervosamente. Todavia mesmo quando cami-

nharam lado a lado, Leah se sentiu distante do homem

que era seu pai.

Eric pareceu notar isso, pois fitou-a com um brilho

triste no olhar.

— Por que minha mãe o deixou? — Era o que gos-

taria de ter perguntado desde o começo, uma dúvida

que sua mãe nunca tinha esclarecido, pois sempre evi-

tara falar do marido, a única vez que se referiu a ele, já

na adolescência de Leah, Minna o declarou morto e

Page 363: O Milagre Do Coracão

enterrado. Só agora Leah entendia que a mãe deveria

ter falado figurativamente.

— Ela nunca falou nada? — Eric esperou pela

resposta da filha e ao vê-la negar com um movimento

de cabeça comentou: — Bem, então suponho que eu

terei de fazê-lo agora, minha cara. Mas, por favor, tenha

em mente que eu era muito jovem naquela época e sua

mãe também. Como se não bastasse, ela tinha um gênio

muito forte, não era o que se pode chamar de uma

mulher fácil de se conviver — revelou, encarando-a ao

mesmo tempo que parava sob a copa de um enorme

bordo.

— Mamãe era geniosa, sim — Leah admitiu. — Cos-

tumava se zangar com facilidade, até mesmo comigo.

Mas… — hesitou e ergueu o queixo em sinal de desafio

— , mas eu a amava muito, sr. Magnor. Foi muito boa

comigo e me ensinou tudo o que sei. Trabalhou duro

também para me educar sozinha.

— Sim, Minna sempre foi uma boa mãe, apesar de

muito exigente. — O arremedo de um sorriso surgiu nos

lábios finos de Eric. — E não há como negar que ela se

saiu muito bem ao educá-la, minha filha. Mas, como

esposa ela não teve o mesmo desempenho,

Page 364: O Milagre Do Coracão

infelizmente. Não era muito fácil entendê-la, era teimosa

e obstinada.

— Acho que Garlam pode dizer o mesmo de mim

— Leah riu, lembrando-se da palavras do marido.

— Ah, você tem um ar doce e gentil que sua mãe

não tinha, filha. Minna era… — Virou-se para começar a

caminhar outra vez. — Acho que Minna era mais feliz

longe de mim do que quando. estávamos juntos.

— Por isso ela o abandonou?

Eric baixou o rosto, parecendo envergonhado de si

próprio.

— Não, sua mãe me abandonou porque eu cometi

um erro terrível. Sei que não tenho desculpa para o que

fiz. Estava errado e paguei o preço pelo meu ato

impensado. Nós tivemos uma discussão e eu saí muito

zangado de casa. Acabei encontrando outra mulher e…

A pausa foi longa e Leah resolveu concluir por ele.

— Você foi infiel.

Eric aceitou aquela definição sem protestar.

— Sim, foi apenas uma vez, mas, mesmo assim, era

demais para uma mulher orgulhosa como Minna me

perdoar. Não sei se eu próprio perdoaria se estivesse no

lugar dela, mas o fato é que essa situação acabou por

nos separar e me impediu de vê-la crescer, filha.

Page 365: O Milagre Do Coracão

— O senhor nunca procurou por nós? — De alguma

maneira a idéia de que ela as deixara ir, que tinha

Lavado suas mãos quanto ao destino da esposa e da

filha não se encaixava na impressão que tinha do ho-

mem que estava a sua frente.

— Ah, sim, procurei. Sabia que tinham ido a Mi-

neapolis, pois vocês viveram lá durante alguns anos, na

casa da irmã de Minna. Então, quando foi procurá-la,

preparado para suplicar que me desse uma segunda

chance, ela já tinha partido. Berta disse que Minna jurara

que nunca mais queria me ver, sabe como é, ela tomou

as dores da irmã e nunca me deu o novo endereço de

vocês.

— Eu tenho unia tia chamada Benta? — Enquanto

fazia a pergunta, a imagem de uma mulher roliça de

fartos cabelos loiros começou a se formar em sua

mente.

— Sim, agora me lembro, tia Benta tinha uma casa

enorme, onde havia um monte de gente entrando e

saindo.

— Berta tinha uma pensão na cidade. Aliás, acho

que ainda tem.

— Quer dizer que depois dessa tentativa frustrada o

senhor voltou para Kirby Falis e nunca mais tentou nos

Page 366: O Milagre Do Coracão

encontrar — Leah concluiu num tom cortante. —

Esqueceu completamente que tinha mulher e filha.

— Eu voltei, é verdade, mas nunca esqueci que

tinha uma filha. Também tenho meu orgulho e decidi

que se Minna não queria me ver era problema dela. Mas

sempre sonhei em ter minha filha de volta — murmurou,

segurando-a pelos ombros. — Você era uma criança, tão

linha, minha querida…

Leah teve medo de encará-lo. Não queria que Eric

percebesse o quanto aquelas palavras a tocavam.

— Não tive coragem de procurá-la há quatro anos,

quando chegou aqui, minha querida — ele prosseguiu.

— Mas agora desejo ajudá-la e não vou aceitar um

não como resposta. O que aconteceu entre sua mãe e

eu não tem nada a ver conosco. Os laços da paternidade

são eternos, filha. Não posso mudar o passado, mas faço

questão de ajudá-la no presente.

— Ajudar-me?! — Leah repetiu. Durante as longas

horas daquele dia e da noite anterior, ela quase tinha se

esquecido da situação delicada em -que se encontrava.

Não pensara um única vez no xerife ou no detetive de

Chicago.

— Eu já falei com meu advogado e pedi que

verificasse como está sua situação perante a justiça.

Page 367: O Milagre Do Coracão

Contratamos uma firma em Chicago para nos dar assis-

tência em tudo o que for preciso.

O toque dos dedos longos era firme e reconfortante

e Leah permitiu que o pai a acariciasse como há muitos

anos não fazia.

— Vou aceitar sua ajuda — disse a ele. — Não só

por mim, mas também por Gar e pelas crianças. Elas

precisam de mim aqui, sr. Magnor.

— Leah, Leah… – Eric meneou a cabeça de um

lado para outro. — Por favor, não pode usar outro nome

quando se dirige a mim?

— Não sei. Quem sabe algum dia… — Havia muito o

que levar em consideração antes de tomar tal decisão.

No fundo, sabia que o tempo era o melhor remédio para

reconciliá-la com o pai, mas não estava pronta para

admiti-lo… Ainda não.

Um suspiro triste escapou dos lábios de Eric e ele a

segurou pelo cotovelo, começando a puxá-la em direção

à casa.

— Venha, vou acompanhá-la de volta. Seu marido e

filhos estão esperando. É assim que considera estas

crianças, não, Leah? Os filhos de seu coração?

Ela assentiu, mas não disse nada. Caminharam jun-

tos, seus pés movendo em uníssono, e Leah não pro-

Page 368: O Milagre Do Coracão

testou quando o pai pegou-lhe a mão e passou-a pelo

braço. Afinal, era bom sentir o conforto e apoio de

alguém que povoara seus sonhos infantis e depois suas

fantasias adolescentes.

Eric Magnor era seu pai, não era perfeito como ima-

ginara quando criança, nem o herói romântico de sua

adolescência, mas, no fundo, era um homem bom que

estava tentando encontrar o caminho de sua própria

verdade…

CAPÍTULO XV

— Nós não precisaremos mais ir a Minneapolis —

Leah anunciou, levantando-se da mesa e encaminhando-

se para a pia.

Garlam exclamou surpreso diante de tal

comentário:

— Ei, volte aqui! Você não pode me dizer uma coisa

dessas e se afastar como se tivesse falando sobre as

condições do tempo lá fora. — Empurrou o prato para o

lado e tomou um longo gole de café, seus olhos nunca

Page 369: O Milagre Do Coracão

se afastando dela. Ah, Leah tinha uma estranha mania

de provocá-lo fazendo declarações repentinas.

Exatamente como agora, quando lhe dizia que os planos

para a viagem do dia seguinte eram totalmente

desnecessários.

Com toda tranqüilidade, ela virou-se da pia, enxu-

gando as mãos no avental e explicou:

— Acalme-se, Gar. Eric Magnor disse que o

advogado dele contratou alguém em Chicago para

cuidar do andamento do processo. — Baixou os olhos,

parecendo ligeiramente envergonhada, mas depois

prosseguiu, antes que Garlam tivesse se pronunciado

sobre o assunto: — Eu deveria ter lhe contado a noite

passada, mas terminei de limpar a cozinha muito tarde

e, depois de colocar Karen no berço, fui para cama e

estava tão cansada que acabei dormindo como uma

pedra.

Ele engoliu as palavras iradas que estava prestes a

despejar sobre Leah. Era compreensível que Eric Magnor

tivesse se oferecido para ajudar Leah no que fosse

possível, afinal, ele era o pai de sua mulher e tinha todos

os recursos para fazê-lo, no entanto, bem lá no fundo de

seu peito, Gar gostaria de poder livrá-la sozinho dos

fantasmas do passado. De qualquer forma, perder a

Page 370: O Milagre Do Coracão

paciência ou reclamar não iria resolver seus problemas,

muito menos suas frustrações, portanto, ele sorriu.

— E verdade, Leah. Você nem acordou quando tirei

seu vestido. Esta é segunda vez em dois dias que eu me

encarrego de despi-la, sra. Lundstrom — gracejou, e viu

o rubor tingir as faces alvas.

— Não creio que esse seja um assunto que deva ser

alardeado por aí, Garlam Lundstrom — Leah o

recriminou.

— E por que não, se foi a coisa mais agradável que

fiz ontem?

Ela esboçou uma pequena careta e seus olhos se

encontraram com as íris azuis como o céu de verão.

— Lamento, Gar. Sei que ultimamente as coisas tem

sido muito difícil para você e para as crianças e ficarei

feliz quando tudo isso tiver terminado e pudermos ser

apenas uma tranqüila família de fazendeiros de Kirby

Falis.

Gar inclinou a cadeira para trás, apoiando-a nas

pernas traseiras.

— E o que Eric Magnor disse? — interpelou-a com o

cenho franzido.

— Bem, falamos sobre minha mãe e por que ela o

abandonou.

Page 371: O Milagre Do Coracão

— Você ainda está zangada com ele, Leah? — quis

saber, embora acreditasse que, provavelmente não, já

que, ao que parecia, o sr. Magnon não tinha feito nada

de errado.

Leah retomou seu lugar à mesa e inclinou-se na

direção do marido, os pulsos apoiados ao lado do prato

vazio.

— Fiquei zangada porque ele esperou quatro anos

para me reconhecer como filha. Fiquei zangada porque

Eric Magnor manteve-se afastado durante todo esse

tempo e nunca antes tentou se aproximar e me oferecer

sua amizade e ajuda.

Gar a fitou por entre as longas pestanas. Achava

que só o fato de Leah conseguir falar sobre o assunto

sem esconder seus verdadeiros sentimentos já era um

bom sinal.

— E por que você não reconheceu o sobrenome

Magnor? Eric contou por que sua mãe não usava o nome

dele lá em Chicago?

Leah meneou a cabeça de um lado para outro.

— Mamãe sempre disse se chamar Minna Polk e eu

presumi que este fosse o nome de família de meu pai.

Mas é óbvio que estava errada. Ela o inventou para não

ser encontrada. Contudo, quando comecei a me passar

Page 372: O Milagre Do Coracão

por viúva, decidi usar o nome de solteira de minha mãe,

Gunderson, e foi por causa disso que o sr. Magnon me

reconheceu. Afinal, não existem muitas Leah Gunderson

por aí.

Havia uma sombra de tristeza no fundo dos olhos

azul-acinzentados e Gar suspirou, desejando poder mi-

nimizar a dor da esposa.

— Gostaria de poder ajudá-la, Leah. Mas apenas seu

pai pode apagar essa mágoa que traz dentro de si. Deve

tentar perdoá-lo e se importar só com o que daqui por

diante, se não a amargura e o ressentimento podem

crescer como um câncer e tomar conta de seu coração.

— Ele não pediu meu perdão, mas eu já o dei —

confessou Leah, dando um longo suspiro. — Imagino que

seja por isso que eu não esteja tão furiosa, apenas ma-

goada. — Seus olhos se encherem de lágrimas e ela

deixou que escorressem livremente pelas faces alvas. —

Tenho um pai, Gar, tenho até mesmo uma tia materna

que vive em Minneapolis. Quem sabe existam outros

familiares que eu desconheço. Apesar disso, eu me senti

sozinha e abandonada durante muitos anos de minha

vida.

Gar pegou-lhe a mão e levou-a a gentilmente aos

lábios.

Page 373: O Milagre Do Coracão

Um breve sorriso brincou nos lábios rosados de

Leah.

— Bem, mas acho que não faz o menor sentido ficar

me lastimando pelo que passou, não? — Tentou soar

descontraída, enquanto enxugava os olhos no avental.

— Agora eu tenho você, as crianças, e também um

pai que deseja muito me ajudar.

— Eu também desejo ajudá-la, Leah querida. Mas

sei muito bem que Eric tem mais condições de fazê-lo…

Talvez essa seja a melhor maneira que seu pai encon-

trou para lhe pedir perdão. Pense nisso — sussurrou,

então soprou um beijo em sua direção e encaminhou-se

para a porta; onde os empregados da fazenda já o

aguardavam com a carroça carregada de feno. — Pre-

ciso dar umas ordens a Benny e também cuidar daquele

novilho de três anos.

— Os homens virão comer conosco? — questionou

ela, tentando ser prática.

— Estive pensando que poderíamos levar a comida

para eles — Gar confessou com um leve sorriso. — A

égua que domesticamos na última semana é pequena o

suficiente para você poder montá-la, se quiser tentar, é

lógico — acrescentou depressa.

Page 374: O Milagre Do Coracão

O olhos azuis brilharam, e, por uma fração de se-

gundo, a tristeza se foi e Leah pareceu empolgada dian-

te da possibilidade de cavalgar.

— Ah, não sei se conseguirei — murmurou ela,

olhando do marido para o curral. — De qualquer forma,

gostaria de tentar, se você acha que posso lidar com a

égua, já é um bom sinal.

Garlam não pôde resistir mais ao desejo de toma-la

nos braços. Com movimentos rápidos, cruzou a distância

que os separava e a puxou para junto de si.

Leah recostou no peito largo e aproveitou o calor e

a força daquele abraço, antes de inclinar a cabeça para

trás e, oferecer os lábios para serem beijados.

— E assim que vou querer beijá-la esta noite tam-

bém. Depois que escurecer, Leah… — Gar gemeu ex-

tasiado. — Assim e muito mais. Sinto-me como um noivo

que ainda não teve sua noite de núpcias — completou,

beijando-a no canto dos lábios.

Leah riu baixinho.

— Ah, você é apenas um homem que ainda não

teve a chance de viver um casamento tranqüilo, Gar.

Não tenho sido uma boa esposa para você.

— Tem sim, Leah, tem sim, e não resta dúvida de

que será ainda melhor. Assim que nossa vida entrar nos

Page 375: O Milagre Do Coracão

eixos e o medo de seu passado em Chicago tiver sido

finalmente esquecido, vamos nos amar e viver em

harmonia como um velho casal de fazendeiros.

Dessa vez o riso dela pareceu muito mais natural.

— Pois eu já sou quase uma velha, Gar. Há muito

que passei dos dias de minha juventude — falou,

repetindo o conceito de meia-idade que vigorava em sua

época.

— De jeito nenhum! — Gar a contrariou, curvando-

se para beijá-la no rosto. — Você é uma mulher que está

no apogeu de sua vida, minha querida. Bonita, plena e

madura o suficiente para ser amada e seduzida pelo

homem certo, neste caso, eu.

Ah, Gar conseguia mesmo ser engraçado quando

queria, ela concluiu divertida, percebendo que o co-

mentário bem-humorado tinha banido sua tristeza para

longe.

— Virei buscá-la na hora do almoço. Karen pode ir

comigo no cavalo e colocaremos o almoço dos rapazes

em sacolas que penduraremos na sela de sua égua,

Leah. O que acha?

— Acho que será como um bom piquenique, Gar.

Vou levar um acolchoado para forrarmos o chão. Knis-

tofer também irá conosco?

Page 376: O Milagre Do Coracão

— Não, ele está como os rapazes. Gosta muito de

ajudar e parece se divertir com a conversa de Lana e

Banjo, que, no fundo, também não passam de dois

moleques crescidos — completou rindo, antes de soltá-

la. — Sabe de uma coisa, ara. Lundstrom, a senhora

acaba me levando para o mau caminho com esses seus

beijos e sorriso cativante. Eu já deveria ter voltado ao

trabalho, em vez disso, aqui estou, perambulando pela

cozinha, sem conseguir tirar as mãos de cima de minha

bela esposa.

Leah o empurrou para fora, batendo-lhe nos braços

com a ponta do avental.

— O mesmo devo dizer do senhor, sr. Lundstrom. Vá

logo para a lida que eu também tenho muito trabalho a

minha espera. Não posso me dar ao luxo de trocar

beijinhos a essa hora da manhã, muito embora os ache

adoráveis — acrescentou brejeira.

Gar riu e seguiu para a porta.

Ao vê-lo fechá-la atrás de si, Karen, que estava sen-

tada no cadeirão de madeira resmungou:

— Papai, papai! — exclamou, chamando-o com a

mãozinha, e, ao ver que não seria atendida, ela virou-se

para Leah. — Mamãe, mamãe!

Page 377: O Milagre Do Coracão

— Mamãe está aqui, anjinho — Leah a pegou no

colo. — Agora você vai tirar uma soneca que mamãe

tem muito trabalho a fazer. Depois iremos dar um

passeio, você, papai e eu. — Ao falar, olhou para a porta

e observou o homem alto e forte que dava instruções

aos empregados.

Os ombros eram largos, as pernas longas e muscu-

losas e os cabelos claros e brilhantes como uma manhã

de verão. Sim, Garlam Lundstrom, seu marido, era um

homem que deixaria qualquer esposa orgulhosa. Leah

não coube em si de contentamento ao pensar que ele

era seu marido, o marido de Leah Gunderson.

Não, de Leah Magnor!, corrigiu-se rapidamente. Pela

primeira vez, testava o som do nome que era seu por

direito. Sim, ela pertencia não apenas ao homem que

estava observando, aquele que lhe dera o nome de Leah

Lundstrom, mas também àquele que ajudara a gerá-la.

Era a filha natural de Eric Magnor, sangue de seu

sangue, carne de sua carne. E se a influência de seu pai

fosse tão grande quanto diziam, logo voltaria a ser

respeitada na cidade. Mais ainda, se conseguissem

provar que ela estava dizendo a verdade no caso Taylor,

não haveria mais o risco de ir para a prisão.

Page 378: O Milagre Do Coracão

Mas eram muitos “ses” para satisfazer Leah, e ela

sabia que, infelizmente, querer não era poder…

A égua trotava elegantemente, erguendo a cabeça

e deixando a crina ser soprada pelo vento. Leah riu alto

ao vê-la parecer tão nobre e empertigada ao mesmo

tempo. Já tinha montado vários animais em Chicago,

quando precisava ir para as redondezas e subúrbios da

cidade a fim de atender a seus pacientes, mas nada

tinha sido tão prazeroso quanto cavalgar a égua jovem

que o marido separara para ela naquele dia.

Montava com um perna de cada lado do animal e

seus tornozelos estavam expostos, porque o vento

soprava o vestido e o fazia flutuar em torno do corpo da

égua.

O olhar de Gar fixou-se nas pernas grossas e bem

torneadas da esposa e Leah riu alto ao vê-lo se inclinar

como se quisesse descobrir o que havia mais acima. Por

sorte, sua dignidade estava preservada, uma vez que o

calçonete que usava ia até pouco abaixo do joelho.

— Você monta muito bem, minha cara — ele

elogiou, trotando a seu lado. — O que prova que já fez

isto antes. — Karen estava aninhada entre os braços do

Page 379: O Milagre Do Coracão

pai e as rédeas, o corpo musculoso protegendo-a do

vento e amparando-a.

— E verdade, já montei algumas vezes, mas nunca

foi tão bom — Leah admitiu. — Nessas ocasiões eu sem-

pre estava com pressa para visitar um cliente que pre-

cisava de cuidados, ou então, cansada por estar

voltando para casa depois de horas de trabalho. Para

mim, hoje está sendo como um passeio de férias, Gar.

Obrigada.

Os lábios carnudos se abriram num largo sorriso, o

que deixou a covinha na face esquerda mais que

evidente.

Ao observá-lo, Leah se sentiu tolhida por uma forte

emoção. Seu interesse pelo marido ia muito além da

simples admiração pela gentileza, honestidade e força

de seu caráter. E o que sentia agora era ainda mais forte

do que antes. Era como se uma mão gigante estivesse

se apossando de seu coração. Durante alguns segundos,

fitou-o hipnotizada.

Ela prendeu a respiração. Na verdade, não poderia

ter feito outra coisa porque seus pulmões tinha ficado

paralisados. Pestanejou diante da silhueta dourada,

cujos cabelos eram soprados pelo vento. Lágrimas

minaram-lhe dos olhos, mas não eram lágrimas de

Page 380: O Milagre Do Coracão

tristeza, e sim de apreciação. Mais do que nunca, sabia

que o amava com uma intensidade que nunca imaginara

ser possível.

E esse amor não acontecera apenas porque o

achava bonito, gentil, ou pela vida confortável que Gar

tinha oferecido a ela, mas sim porque somado a tudo

isso e magnanimidade do espírito que ocupava aquele

corpo atraente. De unia coisa, Leah tinha certeza, seu

marido representava tudo de glorioso e bom que havia

em sua vida.

O toque dele era pura magia, as mãos a

transportavam para um mundo de puro deleite. Os olhos

azuis a confortavam e aqueciam com seu brilho,

confirmando as mensagens de amor que ele

pronunciava com seu corpo ou sussurrava na escuridão

do quarto que partilhavam.

Tudo isso era tão forte e real, mas ao mesmo tempo

tão difícil de ser definido em palavras que Leah

estremeceu.

— Ah, lá estão os homens! — Gar anunciou, tirando-

a de seus devaneios. — Está vendo, perto daquelas

árvores?

Leah pestanejou. Um sorriso brincou nos lábios

rosados.

Page 381: O Milagre Do Coracão

— E, estou vendo. Vamos almoçar com eles?

— Sim, mas provavelmente embaixo das árvores. O

sol está muito quente hoje. — Virou-se para ela e es-

treitou os olhos, como se tivesse acabado de ver algo

importante.

— O que foi? — Leah perguntou, baixando o rosto

para olhar para si mesma, preocupada com a expressão

misteriosa no rosto do marido. — O que há de errado

comigo?

Gar meneou a cabeça de um lado para outro.

— Não há nada errado com você, querida. Mas

acontece que acabei de perceber que… — hesitou,

então, virou-se para a filha que tinha nos braços. — Está

muito quente, talvez eu deva pedir para Benny levar

Karen de volta para Ruth logo depois que comermos.

Esta é uma longa cavalgada e ela vai querer tirar uma

soneca depois do almoço.

— Nós não vamos retornar assim que almoçarmos?

— Leah ficou surpresa.

— Não, pensei que poderia levá-la para conhecer

toda nossa propriedade. Há um pequeno riacho mais ao

norte que todos consideram muito bonito e eu gostaria

de mostrá-lo a você — declarou com um sorriso

Page 382: O Milagre Do Coracão

enigmático. — Creio que vai gostar muito, ara.

Lundstrom!

O pequeno riacho era na verdade muito bonito, mas

não tão pequeno quanto Leah havia imaginado que

seria. As águas cristalinas serpenteavam sobre um leito

de pequenos pedregulhos vermelhos, depois formavam

uma piscina natural soba copa de algumas árvores, e,

finalmente, cascateavam em uma pequena queda

d’água antes de seguir seu curso para o sul.

Ela ficou encantada com a beleza plácida do local.

— Por que não viemos aqui antes? — perguntou,

olhando para a grama verdejante que margeava todo o

rio e depois respirando fundo para inalar o perfume das

flores silvestres que havia no bosque que circundava

aquele pequeno pedaço do paraíso incrustado na

Fazenda Lundstrom. Curvando-se, mergulhou as mãos

no líquido cristalino e jogou-o sobre as faces e mãos. Ao

erguer o rosto para as árvores que forneciam sombra e

frescor ao riacho, descobriu alguns esquilos enroscados

nos galhos centenários.

— Veja isto! — Leah exclamou rindo deliciada.

Gar olhou para a esposa e teve a certeza de que ela

se encaixava perfeitamente na beleza do cenário.

Page 383: O Milagre Do Coracão

— Você é uma mulher muito bonita, Leah. — Ajoe-

lhou-se ao lado dela e a fitou embevecido.

— Bonita?! — espantou-se ela. — Como pode -dizer

isso? Tenho cabelo com mechas de várias cores dife-

rentes, loiro-claro, loiro-escuro, muitos caracóis cor de

mel, as maçãs de meu rosto são salientes e meus seios

são grandes demais em relação ao resto do corpo. -

Fez uma pequena careta, então pareceu ficar enver-

gonhada por ter citado o último detalhe de sua anatomia

que não a agradava.

— Pois eu acho que seus seios são perfeitos, minha

cara esposa. E o resto de seus defeitos são suportáveis,

mesmo o olhar beligerante que dirige a mim quando

empina o queixo e quer me desafiar.

— Eu nunca tive a intenção de parecer beligerante

ou desafiadora — declarou e um leve rubor tingiu-lhe as

faces.

— Ainda bem que não, do contrário, não sei como

seria — gracejou Gar. — Agora, Leah, acho que podemos

tentar nos entender sobre como aproveitar melhor este

lugar maravilhoso… — Piscou para ela num gesto

sedutor.

— Aproveitar?! — repetiu confusa.

Page 384: O Milagre Do Coracão

— Sim. Estou pensando em colocar o acolchoado

bem aqui sobre a grama para desfrutarmos esta

oportunidade de estarmos sozinhos e colarmos nossos

corpos um no outro — falou, revelando suas intenções e

esperando que ela assentisse.

— Está sugerindo o que estou pensando? Quer fazer

amor aqui? — Leah encarou-o aturdida.

— E por que não, não há ninguém por perto, os

homens voltaram para o pasto e Benny foi levar Karen

para Ruth. Ainda poderíamos aproveitar e nadar um

pouco.

Ela não parecia convencida.

— Não sei nadar, nunca aprendi. — Incerta, curvou-

se em direção da água cristalina como se estivesse

tentando se decidir se o risco valia a pena. — O riacho

não parece fundo o suficiente para nadarmos, não?

— Lá no meio é mais fundo do que pensa, embora

nas margens seja raso — garantiu, seguindo-a quando a

viu levantar-se e começar a se afastar. Segurou-a pelo

braço e a trouxe para junto de si, os dedos começando a

desabotoar o vestido azul de algodão. — Vou ajudá-la

um pouco, certo? — murmurou, e logo já abrira todos os

botões e o vestido caía aos pés de Leah, deixando

Page 385: O Milagre Do Coracão

apenas de corpete e calça que lhe chegava na altura dos

joelhos..

Ao contrário do vestido que era velho e já estava

um pouco desbotado, as roupas íntimas eram novas e

enfeitadas com rendas e laçarotes.

Gar não pôde deixar de pensar que sua esposa gos-

tava de ter peças bonitas de encontro a sua pele, o que

valorizava ainda mais as curvas generosas dos quadris,

a linha sensual dos seios e uma cintura tão fina que ele

poderia segurá-la em uma só mão.

— Nós vamos nadar nus? — Leah perguntou quando

seus olhares se encontraram.

Ele assentiu e curvou os lábios num trejeito engra-

çado ao dizer.

— Como só estamos nós dois neste paraíso natural,

você pode fingir que estamos no Jardim do Éden, minha

querida, pouco antes de o fruto proibido ter sido comido.

A risada de Leah foi contagiante e Garlam riu com

ela enquanto a ajudava a tirar as meias e os sapatos

com dedos apressados e a cada vez que roçava na pele

macia sentia todo seu corpo tremer de desejo.

Leah ficou parada diante dele, o corpete aberto re-

velando-lhe a linha dos seios e a calcete de cambraia

cobrindo-lhe as partes mais íntimas, embora ela tivesse

Page 386: O Milagre Do Coracão

de segurá-las com as mãos para impedir que caíssem a

seus pés, pois os laços já tinham sido desfeitos.

Gar começou a despir-se apressadamente. A protu-

berância de sua masculinidade insinuou-se de encontro

a ceroula de algodão e ele virou-se com medo de ofen-

dê-la ao revelar a intensidade de sue desejo.

No entanto, para sua surpresa, Leah o segurou pelo

braço, forçando-a a encará-la.

— Não se esconda de mim, senhor meu marido. —

Perscrutou-o com olhos atentos, admirando cada centí-

metro do corpo viril e Gar estremeceu ao vê-la mover a

mão direita para abrir completamente o corpete, exibin-

do-se diante dele como nunca antes tinha feito. — Você

é muito atraente, sr. Lundstrom. Seu corpo também é

muito bonito. Aliás, nunca pensei que pudesse ser tanto.

Aquilo era mais do que ele podia agüentar. Como

ficar parado quando ela o elogiava e dizia tudo o que um

homem apaixonado esperava ouvir?! Dando um passo a

frente, Gar a viu soltar a calcete de cambraia, que des-

lizou rapidamente para o chão, deixando-a inteiramente

nua diante dos seus olhos, e à luz do dia, não sob a

pálida iluminação das velas como acontecera até então.

Os olhos azuis se moveram lentamente ao longo do

corpo sensual e feminino, como se quisessem gravar

Page 387: O Milagre Do Coracão

cada detalhe daquela imagem antes de toma-la para si.

Ah, Leah tinha seios fantásticos, os quadris então eram

maravilhosos, curvas que prometiam prazeres quase

inimagináveis. As pernas eram longas e bem torneadas.

Pouco mais acima, caracóis cor de mel protegiam o

tesouro que o corpo dele ansiava tanto em descobrir.

Mas não era isso que Gar havia planejado, pelo me-

nos não tão cedo assim. Tomando a mão de Leah nas

sua, puxou-a para a beirada da água.

Ela estremeceu e Garlam sorriu de sua primeira

tentativa de entrar na piscina natural.

— Ah, não está tão quente quanto pensei que

estaria.

— Sim, mas vai parecer mais quente depois que

você molhar o corpo todo — comentou, conduzindo-a

para o centro daquele monumento da natureza. Quando

a profundidade aumentou, puxou-a para junto de si,

segurando-a pela cintura. Naquela parte do riacho o

fundo estava livre das pedras e ele podia caminhar com

certa firmeza.

Leah estava agarrada a ele, seus olhos brilhavam

com prazer ao sentir as pequenas ondas lamberem-lhe o

corpo, como se envolvesse os dois numa só carícia, num

só afago.

Page 388: O Milagre Do Coracão

De repente, Garlam a colocou no chão, deixando

que a água lhe chegasse até o pescoço e trazendo-a

para bem junto de si.

Leah bateu um pouco as pernas para se manter na

superfície, antes de enroscar as pernas em torno dos

quadris de Garlam.

Diante desse gesto, foi inevitável que a protuberân-

cia máscula do corpo dele não se projetasse de encontro

ao ponto que queria ocupar na intimidade de Leah.

— Ah, se não parar com isso vai me ter muito mais

rápido do que eu havia planejado, meu amor — Gar

falou com voz rouca.

Leah estremeceu e secou as gotículas de água que

nublavam-lhe a visão.

— Você nunca me chamou assim antes, Gar —

suspirou.

— Não mesmo? Pois eu deveria tê-la chamado. Eu

nunca tive ninguém para chamar de meu amor antes.

Você é a única que já mereceu ouvir isto de meus lábios

e peço desculpas se não fiz mais vezes. E a primeira vez

que me sinto assim Leah, como se cada dia valesse a

pena ser vivido em sua plenitude.

— Ah, meu querido! — ela exclamou emocionada. —

Também amo você. Demorei muito tempo para perceber

Page 389: O Milagre Do Coracão

que não era apenas uma atração e, hoje, quando

estávamos cavalgando, tive a certeza de que as mil

sensações que pulsam dentro de mim quando olho para

você, estou em seus braços ou vibro de prazer sob seu

corpo, é o mais puro amor que pode unir duas pessoas.

Eu quase disse isso a você pouco antes de avistarmos os

homens, mas resolvi esperar até que estivéssemos

sozinhos para podermos nos beijar e sentir a proximi-

dade um do outro.

Gar sentiu lágrimas umedecerem-lhe os olhos, es-

tava surpreso com a declaração que acabava de ouvir.

— Você é mesmo meu amor, Leah Lundstrom —

falou, então procurou revelar as palavras que pulsavam

em sua alma e seu corpo há muito tempo. Era hora de

confessar o que sentia. — É a mulher de minha vida, a

única que conseguiu chegar em meu coração, Leah. — A

boca carnuda se curvou no arremedo de um sorriso. —

Desculpe se não digo essas coisas com o romantismo

que você esperava. Nunca antes tinha confessado meu

amor a alguém, nem mesmo a meus filhos. Sempre

achei que eles deveriam saber. Mas agora percebo que

mesmo sabendo é sempre bom ouvir e repetir uma

confissão como essa. Não quero que tenha qualquer

dúvida sobre meu amor por você, querida.

Page 390: O Milagre Do Coracão

Os braços dela circundaram o pescoço largo, ao

mesmo tempo que erguia o rosto para receber o beijo

apaixonado do marido. Suas bocas se uniram num toque

doce e gentil, confirmando que os sentimentos que os

unia não se resumia em mera paixão, mas também em

amor. Sim, o mais puro e verdadeiro amor, do tipo que

transcende a comunhão dos corpos e se revela no

encontro das almas.

— É muito bom estar aqui — Gar sussurrou, ainda

toma do pela emoção —, confessando o meu amor por

você e tendo este lugar maravilhoso como pano de

fundo.

— Vamos voltar aqui outras vezes, não? —

perguntou Leah, beijando-o ao longo do queixo.

— Sim, poderemos fazer isto sempre que

quisermos, ou melhor, quando Ruth aceitar cuidar de

Karen para nós. Mas nunca será tão especial como hoje,

querida. Este momento é único. Estamos fazendo nossos

verdadeiros votos nupciais aqui, é como se nosso casa-

mento estivesse começando agora, entende?

— Entendo. Foi aqui que revelamos o que nos vai na

alma e, portanto, só agora nos tornamos marido e

mulher de verdade — Leah completou, então piscou com

sensualidade. — Mas acho que no que se refere ao

Page 391: O Milagre Do Coracão

encontro de corpos, meu caro marido, o acolchoado

seria mais apropriado do que as águas frias do rio.

— Se é assim que prefere, é assim que faremos, sra.

Lundstrom — Gar brincou, beijando-a na pontinha do

nariz antes de puxá-la e levá-la para fora da água

cristalina.

Leah estremeceu quando sentiu a brisa fria que so-

prava por entre as árvores tocar seu corpo.

— Venha, minha querida, eu vou aquecê-la — Gar

prometeu, puxando-a para o acolchoado estendido sobre

a grama.

Depois de tantos meses juntos, Leah já estava mais

acostumada com o jogo do amor e Garlam viu-a

responder prontamente ao seu toque, enroscando as

pernas nas dele e fazendo-o deitar-se de costas para

cobri-lo com as curvas enlouquecedoramente femininas.

Movida por um impulso, Leah deitou-se sobre o ma-

rido, os seios redondos e firmes clamando

silenciosamente para serem tocados enquanto a palma

de suas mãos deslizavam ao longo dos quadris

másculos, hora acariciando-o, hora provocando-o ao

segurá-lo com firmeza, explorando-o sem o menor

pudor.

Page 392: O Milagre Do Coracão

— Você é tão másculo! — disse a certa altura, os

olhos azuis brilhando sensualmente enquanto falava. —

Adoro tocá-lo, Gar.

O corpo feminino era delgado e os pés

pequeninos mal alcançavam os tornozelos de Gar à

medida que Leah se movia sobre ele e cobria-lhe a boca

com a sua, num beijo úmido e urgente.

— Ah, Leah, Leah! — Aquele era um gemido que

não ocultava a satisfação e o prazer que o dominavam.

Céus, como a mulher com quem se casara podia lhe

propiciar tanta alegria?! Gar chegou a pensar que fosse

explodir de satisfação. Nunca antes se sentira mais

homem ou mais desejado.

Movendo-se com sensualidade, Leah comprimiu o

ventre sobre o abdome plano e musculoso e Gar apro-

veitou para tocá-la com intimidade, preparando-a para

.recebê-lo por inteiro.

— Por favor, querida, guie-me para dentro de você

— ele sussurrou, sabendo que tinha chegado o momento

da rendição final.

Leah obedeceu prontamente, e, em questão de

segundos, ambos eram levados aos píncaros do prazer

humano. A sensação era intensa demais, maravilhosa

demais para que eles, sequer, ousassem falar. Por isso,

Page 393: O Milagre Do Coracão

gemeram juntos, riram juntos e depois deixaram-se cair

sobre o acolchoado em completo estado de saciedade.

O sol moveu-se no céu, anunciando o passar das

horas. Alguns minutos depois de terem se amado, Gar

beijou-a nos lábios e a puxou de volta para a água.

— Venha, vou te ensinar a nadar — prometeu, ins-

truindo-a para que movimentasse braços e pernas

quando não pudesse mais sentir o chão. — Pode ficar

tranqüila que eu te seguro.

Leah acreditou naquelas palavras e fez o que era

dito, porém, a certa altura, Gar a deixou por sua própria

conta e ela afundou como uma pedra.

— Ah, você fez de propósito! — reclamou, jogando

água no rosto anguloso do marido tão amado.

Uma sonora gargalhada escapou dos lábios

carnudos enquanto ele se curvava pana beijá-la nos

lábios entreabertos. Ah, verdade que aquele era um

convite inconsciente, mas mesmo assim era um convite

que um homem apaixonado não era capaz de recusar.

— Não, não fiz — defendeu-se das acusações de

boicote. — Mas foi bom para ver que você precisa de

mais treino, minha sapinha.

Leah fez um biquinho.

Page 394: O Milagre Do Coracão

— Você já me chamou de coisas muito melhores,

Garlam Lundstrom. Sapinha é um pouco demais para um

homem que acaba de confessar seu amor, não acha? —

provocou-o com um sorriso coquete.

— Nesse caso, deixe-me pensar em palavras mais.

agradáveis que possam fazê-la me perdoar por tamanha

ofensa — Gar atalhou, enquanto começavam a sair da

água e seguiam para o acolchoado, onde se ajoelharam

um de frente para o outro.

Leah estremeceu ao vê-lo abaixar a cabeça e mor-

discar-lhe o seio desnudo.

— O que acha de “adorável”, meu amor? — Gar

sussurrou, indo de um seio para o outro. — E linda?

Sensual, talvez? Sim, Leah Lundstrom, todos esses ad-

jetivos se aplicam muito bem a você. E como eu a vejo,

adorável, linda e sensual.

— Eu te amo, Gar. Estou muito feliz que tenha me

trazido aqui hoje! — exclamou ela, mergulhando os

dedos por entre os cabelos dourados como os trigais

beijados pelo sol da manhã.

— E vai ficar ainda mais, querida. Porque quero

fazê-la experimentar sensações maravilhosas antes de

irmos embora.

Page 395: O Milagre Do Coracão

E Gar cumpriu o prometido. As sensações que Leah

descobriu quando seus corpos voltaram a se unir foram

muito mais do que apenas maravilhosas…

CAPÍTULO XVI

— O xerife Anderson mandou dizer que a senhora

deve ir para a cidade, dona Leah. — Lars Nielsen parou

junto a porta de tela e deu o recado da varanda mesmo.

— Ele me parou quando vinha para cá e disse para lhe

dar o recado bem rápido. Parece que deseja vê-la agora

mesmo.

Leah sentiu a boca seca enquanto olhava para o

jovem alto e forte que trabalhava para seu marido.

Apesar de seus temores, forjou um sorriso de

agradecimento.

— Obrigada, Lars.

Lars a encarou sobriamente.

— Tenho certeza de que tudo vai dar certo, senhora.

O xerife não parecia aborrecido nem preocupado quando

falou comigo, o que já é um bom sinal.

Page 396: O Milagre Do Coracão

— Espero que sim. Pode pedir a Gar para vir para

casa? Ele já foi para o curral ao lado do estábulo? — E

provavelmente estava entretido com os novilhos de três

anos de idade que pretendia vender na feira de outono,

pensou ela, admirando mais uma vez a persistência do

marido. Gar era uma daquelas pessoas que fazia

qualquer esforço para tornar seus sonhos realidade, isso

incluía levantar às quatro horas da manhã, trabalhar o

dia todo sem descanso e ir se deitar bem depois de o sol

ter se posto no horizonte.

— Pode deixar que digo a ele, senhora. — Lars

sorria levemente ao se afastar e puxar seu cavalo para o

estábulo.

Leah voltou para sua tábua de passar. A camisa que

tinha quase terminado era uma boa opção para Gar usar

naquela inesperada ida à cidade. Erguendo o ferro,

testou a temperatura com a ponta dos dedos úmidos e

só depois se debruçou sobre o trabalho.

Gar chegou antes mesmo que ela tivesse terminado

de alisar as duas mangas da camisa azul.

Leah passou o ferro preto em torno dos botões e

virou-se para pendurar a camisa no encosto de uma

cadeira. Só então seus olhos se encontraram com os do

marido.

Page 397: O Milagre Do Coracão

Ele segurava as pesadas botas de cano alto nas

mãos e a fitava com o cenho franzido.

— Acho que pisei em algum atoleiro no caminho do

curral até aqui. Desculpe-me querida, mas fiz um grande

estrago na varanda — contou com um sorriso.

— Bem, antes lá do que na cozinha — respondeu

Leah, consciente de que, com aquele comentário banal,

o marido estava tentando desanuviar a tensão que o

recado do xerife suscitara. — Pode deixar, eu limpo a

varanda enquanto você se lava e troca de roupa.

— Lars está atrelando a égua na carroça para mim.

— Gar deixou as botas do lado de fora, bem junto à

porta. — Só vou demorar um minuto. Agradeceria se

colocasse um pouco de água quente na bacia, Leah.

— Claro, farei isso. — Enquanto se concentrava na

tarefa, Leah olhou para o vestido que trocara naquela

manhã. Sim, o traje estava limpo e sem nenhuma ruga

ou amassado, portanto, servia perfeitamente para a

ocasião. Não pretendia se trocar só para impressionar os

outros. — Vou como estou — falou ao marido, abrindo o

reservatório de água e pegando uma grande quantidade

que depositou na bacia de alumínio. Em questão de

minutos, enquanto Gar se lavava no quarto de banho ela

pegou o esfregão e limpou os grossos tufos de grama e

Page 398: O Milagre Do Coracão

barro que estavam na varanda. Ao voltar a entrar na

casa, encontrou-o esfregando a toalha nos cabelos

úmidos.

Gar secou os ombros e o peito, só então se apro-

ximou dela.

— Acabei de passar sua camisa azul. — Leah

pegou a roupa da cadeira e colocou-a diante de si como

se fosse unia espécie de escudo. — Vire-se — disse, não

querendo enfrentar os olhos azuis, pois certamente a

necessidade que tinha dele estava estampada em seu

rosto.

Gar fez como fora dito e, de costas, enfiou os braços

enormes nas mangas da camisa azul-claro. Enquanto ele

abotoava os punhos, Leah passou os dedos por seus

ombros, alisando algumas rugas que se formaram sobre

a pele úmida.

— Leah… — O nome foi pronunciado com incrível

suavidade, e, lentamente, Gar envolveu-a num terno

abraço.

Leah apoiou a cabeça no peito largo, bem em cima

do coração do homem que amava, e fechou os olhos.

— Ah, eu amo você, minha querida esposa — ele

confessou num tom emocionado. — Tudo vai dar certo,

okay?

Page 399: O Milagre Do Coracão

— Estou com medo. — A confissão escapuliu de

seus lábios antes que pudesse contê-la e Gar a abraçou

bem apertado como se o gesto pudesse não só a acabar

com o medo de Leah como também dar-lhe forças para

resistir. Leah inalou fragrância viril que emanava dele e

experimentou um breve instante de paz. Ah, sim, o

conforto e ternura daqueles braços eram justamente o

que estava precisando.

— Fique tranqüila — sussurrou Gar, junto ao

lóbulo da orelha delicada. – Eric sabe o que está

fazendo, Leah. Acha mesmo que ele iria reconhecê-la

como filha para logo depois perdê-la para uma injustiça?

— O sr. Taylor também tem muito dinheiro e bas-

tante influência, Gar. Será minha palavra contra a da

esposa dele.

— A diferença é que você está dizendo a verdade,

meu amor. — Os lábios carnudos pousaram na testa

altiva, e Leah sentiu-se reconfortada pela força e ternura

de tal gesto.

Uma onda de esperança explodiu em seu peito e ela

ergueu o rosto para o marido, oferecendo-lhe a boca

sem falsos pudores.

— Beije-me como se deve, sr. Lundstrom — provo-

cou-o e o sorriso dos dois mesclou-se em um só.

Page 400: O Milagre Do Coracão

— Seja feita sua vontade, caríssima esposa — Gar

proclamou, antes de curvar-se e sugar-lhe os lábios com

paixão. Após alguns instantes, afastou-se perguntou: —

Karen irá com a gente?

Ela assentiu.

— Não quero incomodar Ruth outra vez. Afinal, pa-

rece que estamos sempre lhe pedindo para vir ficar com,

nossos filhos.

Gar assentiu.

— Tem razão, e Kristofer pode ficar com Benny no

celeiro. Você já começou a preparar o almoço?

— Sim, coloquei dois frangos para assar e mandei

Banjo dizer a Ruth para tirá-los quando estiverem

prontos.

— Acho que ela já está vindo — Gar declarou,

olhando através da enorme janela envidraçada e

confirmando que a sra. Warshem acabava de cruzar o

pátio. — Vá buscar Karen e eu digo a Ruth o que fazer —

ele sugeriu.

No entanto, Ruth não deu ouvidos aos donos da fa-

zenda, com sua competência costumeira, assumiu o co-

mando da situação e antes que Leah se desse conta, já

estava acomodada ao lado de Gar na carroça e

Page 401: O Milagre Do Coracão

acenando para Karen que ficara no colo da vizinha

vendo-os partir.

— Ruth se preocupa com você e também gosta

muito das crianças — Gar comentou, estendendo o

braço para segurar a mão de Leah. — Ela acha que você

já tem muito com que se preocupar esta manhã e que

levar um bebê junto seria sobrecarregá-la. Agora,

mudando de assunto — falou piscando de maneira

charmosa — diga-me, o que achou de sua nova égua?

— Minha nova égua? — repetiu, sorrindo ao perce-

ber que o marido tentava distraí-la.

— Sim, aquela que você montou ontem. Não gostou

dela?

— É minha mesmo?! — espantou-se. — Não irá

vendê-la?

Gar negou com uni movimento de cabeça.

— Não se você prometer que irá montá-la pelo

menos uma vez por semana.

— Oh, Gar, podemos mesmo nos dar ao luxo de não

vendê-la? — indagou preocupada. — Não quero vê-lo

atrapalhado para pagar os impostos. Mas — apressou-se

em acrescentar —, devo confessar que há muito tempo

não me divirto tanto como durante a cavalgada de

ontem à tarde.

Page 402: O Milagre Do Coracão

— Foi mesmo da cavalgada que gostou ou teria sido

de nadar no rio? — provocou-a, rindo baixinho.

Leah sentiu o rubor tingir suas faces e aproveitou

para apertar os dedos nos dele.

— Garlam Lundstrom, estou começando a achar que

adora zombar de mim! — revidou, com uma pequena

careta.

O sorriso que brincava no rosto carnudo alargou-se

e o som de uma sonora gargalhada ecoou pela imen-

sidão da estrada.

— Eu adoro tudo o que esteja relacionado a você,

querida. Especialmente, quando a tenho em meus bra-

ços como ontem à tarde.

Leah bateu levemente no ombro largo, como se o

recriminasse por estar falando sobre a tarde de amor

que haviam passado juntos, então seus olhares se en-

contraram e ela divisou a essência do amor emergindo

das íris azuis. Tal percepção suscitou um bem-estar e

alegria tão grandes que ela mal pôde se conter.

— Gar, não importa o que acontecer hoje —

começou a dizer com voz pausada: — Quero que saiba

que tem me feito muito mais feliz do que eu sequer

poderia sonhar que seria um dia — apoiou a cabeça no

Page 403: O Milagre Do Coracão

ombro largo e os braços de Gar a envolveram-na como

se pretendessem protegê-la de tudo e de todos.

De acordo com Morgan Anderson, o encontro de-

veria acontecer na mansão que ficava do lado oposto da

cidade.

O xerife cavalgou ao lado da carroça dos Lundstrom

e o cavalariço de Eric Magnor se encarregou dos animais

assim que eles chegaram e se reuniram ao grupo que já

os aguardava.

Sara Perkins abriu a porta para recebê-los, brin-

dando Leah com um sorriso de boas-vindas.

— O sr. Magnor os espera na sala de visitas — a

governanta anunciou formalmente.

— Obrigada, sra Perkins — Leah agradeceu, seu

próprio sorriso era trêmulo enquanto seguia para a

enorme sala de visitas.

As portas duplas foram abertas antes mesmo que

ela batesse e Eric Magnor a cumprimentou, estendendo-

lhe ambas as mãos.

Leah se viu retribuindo o cumprimento e ficou feliz

ao sentir o calor e conforto que seu pai, obviamente,

pretendia lhe transmitir.

Page 404: O Milagre Do Coracão

— Entre, minha filha, você também Garlam, e o

senhor, xerife. Desculpe-me, mas não sei se conhece

este cavalheiro Leah — Eric foi logo dizendo,

conduzindo-a para junto de um homem elegante parado

diante da lareira. — Tobias Dunbar dirige o jornal da

cidade e passa a maior parte do tempo escondido em

sua redação. — As palavras eram pontuadas de humor

e o jornalista meneou a cabeça concordando com o que

ouvia.

— Temo que o sr. Magnor esteja certo. Minhas mãos

estão sempre cobertas de tinta e minhas camisas vivem

pretas por causa da manchas da tinta de impressão. Cá

entre nós, minha esposa acha que sou um caso perdido

e desistiu de manter minha roupa impecável —

gracejou, embora fosse óbvio que estava exagerando.

— Tobias é irmão de Hobart Dunbar, Leah — Gar

passou a tomar parte na conversa.

Leah assentiu e tentou exibir um leve sorriso.

— Prazer em conhecê-lo, senhor. — Embora o que

aquele homem elegante estivesse fazendo ali ainda fos-

se uma completa incógnita para ela, tinha certeza de

que Eric não o teria convidado se não tivesse uma boa

razão para fazê-lo.

Page 405: O Milagre Do Coracão

Aliás, seu pai parecia estar de ótimo humor, o que,

por si só, foi o bastante para encorajá-la a ter espe-

ranças. Gar e o dono do jornal acabaram se entretendo

em uma conversa sobre a nova escola que seria cons-

truída na cidade e ela aproveitou para voltar sua aten-

ção a Eric Magnor.

— O que está acontecendo, sr. Magnor? — Ainda

não conseguia chamá-lo de pai, embora lá no fundo já

começasse a pensar nele desta forma. — Por que man-

dou me chamar?

Eric ainda a segurava pela mão o que a deixava

ainda mais curiosa.

— Leah, Leah. Quando vai deixar esse “sr. Magnor”

de lado? Será que não pode usar a palavra pai? Ou é

algo muito difícil para você?

— Nunca chamei ninguém assim — confessou um

tanto hesitante. — Mas acho que posso tentar… Pai.

Os olhos acinzentados de Eric, que de uma certa

forma eram muito parecidos com os dela própria,

brilharam emocionados. Virando o rosto para o lado, Eric

pigarreou antes de murmurar:

— Obrigado por isso, minha filha. Era algo pelo qual

eu vinha esperando há muito, muito tempo. — O sorriso

iluminou-lhe as feições e ele a encarou com grande

Page 406: O Milagre Do Coracão

atenção. — Você me chamava de papai quando era uni

pouco maior do que Karen, mas suponho que nem se

lembre mais disso.

— Leah? — Gar chamou-a e ela respondeu pronta-

mente, virando-se ao ver o marido sinalizar em direção à

porta.

— Ah, vejo que a pessoa que eu esperava já chegou

– Eric declarou, afastando-se de Leah para estender a

mão a outro homem que acabava de ser levado à sala

por Sara Perkins. — Querida Leah, a viagem de meu

advogado a Chicago foi muito bem-sucedida. Sr.

Waterford, venha conhecer minha filha, por favor.

O distinto cavalheiro de terno de casimira entrou na

sala, cumprimentou os demais senhores com um leve

menear de cabeça, depois concentrou sua atenção em

Leah.

— A senhora é Leah Gunderson? — ele perguntou.

— Eu represento Sylvester Taylor.

Ah, tinha caído em alguma espécie de armadilha,

Leah pensou, sentindo o chão se abrir sob seus pés.

Cambaleou levemente e e antes que tivesse se dado

conta do que acontecia, Gar já estava a seu lado, se-

gurando-a pela cintura.

Page 407: O Milagre Do Coracão

— Que palhaçada é esta, Magnor? — Gar vociferou,

a fúria evidente no rosto anguloso.

— Não tirem conclusões precipitadas, meus caros —

Eric falou rapidamente. — Vocês vão entender tudo em

um minuto. — Mal concluíra a frase, virou-se para o

visitante de Chicago. — Não vamos demorar com isso,

por favor, puxe uma cadeira e explique a Leah o que

aconteceu.

Escolhendo uma poltrona diretamente em frente à

que Leah fora acomodada pelo marido, Waterford a

encarou.

— Senhora, fui incumbido de lhe entregar uma

carta e lhe pedir desculpas pessoalmente por todos os

problemas que o ar. Taylor lhe causou nos últimos anos.

— Uma ca… carta? — Leah gaguejou. — O Sr. Taylor

mandou uma carta para mim? — Olhou incerta para o

envelope que Waterford estendia em sua direção.

Foi Gar quem pegou a carta e abriu-a no mesmo

instante.

— Quer que eu leia para você, querida? — ofereceu-

se, percebendo que a esposa não teria condições de

fazê-lo.

Page 408: O Milagre Do Coracão

Leah assentiu. O coração batia descompassado den-

tro do peito e o queixo tremia tanto que era incapaz de

proferir um único som.

Gar começou a leitura. Uma nota de incredulidade

permeava a voz de barítono enquanto ele corria os olhos

pelo papel e verbalizava o que estava escrito ali:

“Minha cara senhora,

Sei que minhas desculpas não serão suficientes

para fazê-la esquecer os problemas que lhe causei nos

últimos anos, e mais ainda, nas últimas semanas,

quando resolvi levá-la aos tribunais. Temo que tenha

ficado cego pelo amor que sentia por minha esposa, um

amor que foi tristemente desmerecido.

Acabo de descobrir que a senhora é inocente e que

nunca teve culpa nos terríveis acontecimentos da noite

em que meu filho morreu, há quatro anos. Eu deveria ter

percebido isto antes, mas temo que meu sofrimento e o

amor que sentia por minha esposa sobrepujaram meu

bom senso, cegando-me para a verdade.

Quando voltei a procurá-la esse ano, foi por in-

sistência de minha esposa, Mabelle, que estava grávida

outra vez. Ela a culpava por estar com os nervos à flor

Page 409: O Milagre Do Coracão

da pele nessa gravidez e eu tentei acalmá-la,

procurando-a incessantemente.

No entanto, quando meu advogado contatou o mé-

dico que tinha atendido Mabelle em seu primeiro parto,

achou-o relutante em falar sobre o caso, pelo menos até

que ficou sabendo sobre a morte de nosso segundo

bebê e que uma terceira criança estava a caminho.

Finalmente, então, o médico revelou que suspeitava que

minha esposa tivesse sufocado nosso primeiro filho e,

por certo, deveria ter feito a mesma coisa com a criança

que a senhora ajudou a nascer. Como Màbelle estava

grávida novamente, ele assinou um termo declarando

que temia pela segurança deste bebê, pois não confiava

na saúde mental de minha esposa.

Só agora entendo que o que houve não foi sua

culpa. Minha mulher está internada em uma instituição

para pessoas com problemas mentais e será

acompanhada até o final da gravidez. Vou cuidar para

que desta vez meu filho não morra.

Peço que me perdoe por todos os problemas que lhe

causei e também pelos atos ensandecidos de minha

esposa, pois Mabelle não sabia o que fazia quando a

acusou.”

Page 410: O Milagre Do Coracão

Gar amassou a carta e resmungou irritado.

Um pesado silêncio se abatia sobre a sala elegante.

— Este homem é um covarde! Por que não veio pes-

soalmente pedir desculpas a Leah!? — Gar vociferou

após alguns segundos.

Ah, isso era o de menos! Leah sentiu como se

tivesse nascido de novo. Agora teria a vida inteira pela

frente para ser feliz e não queria mais pensar no

passado.

— Está tudo bem, Gar — tranqüilizou o marido. —

Não vamos nos ater a detalhes. Covarde, ou não, o

importante é que ele disse a verdade e já posso dormir

sem ficar imaginando que poderei ser presa a qualquer

instante.

— Tem razão, senhora — Waterford anuiu. — Ma-

belie Taylor é louca e Sylvester precisou ser muito forte

para admitir isso diante de todos, principalmente,

porque ele é uma figura pública que preza muito a

imagem da família.

— Por falar em imagem pública — atalhou Eric

Magnor —, é exatamente aí que Tobias entra. Nós temos

a carta de Taylor e as informações de Waterford sobre- o

que realmente aconteceu, portanto, podemos limpar sua

Page 411: O Milagre Do Coracão

imagem diante dos olhos dos moradores de Kirby Falis,

Leah.

— Tobias vai fazer isso? Como? — Leah quis

saber, não compreendendo o que havia por trás do

comentário do pai.

— E simples, Leah, Tobias dirige o jornal que é

distribuído para a cidade e região. Ele tem uma

influência que nem eu nem você temos. E Tobias con-

cordou em fazer uma matéria de primeira página sobre

o assunto, deixando claro para todos que você é ino-

cente e que a culpada pelos crimes foi a própria Mabeile.

Isto vai acabar de vez com todas as fofocas.

Leah ficou em silêncio enquanto considerava a

oferta inesperada.

— Não sei se quero que tudo isso venha à tona

agora que as coisas começaram a se acalmar. — Pro-

curou Garlam com o olhar e ele saiu da cadeira onde

estava para se ajoelhar diante dela.

— Deve fazer o que achar melhor, minha querida —

tomou as mãos trêmulas entre as suas. — Mas pense

quê esta oportunidade é uma em mil. O jornal pode

libertá-la de uma vez por todas desse passado que

queremos esquecer.

Page 412: O Milagre Do Coracão

— Estou mesmo livre de qualquer acusação e não

precisarei mais ir aos tribunais? — ela indagou, virando-

se para o xerife.

Morgan Anderson assentiu enfaticamente.

— Com toda certeza, madame. E, se quer minha

opinião, acho que deveria aceitar a oferta do velho Toby.

Vai ser muito bom para que ninguém mais duvide de sua

inocência.

— Está bem, então.

— Está bem?! — Eric se espantou. — E só isso que

tem a dizer, não quer que Tobias escreva nada em

especial?

— Não, tudo o que desejo é esquecer essa história

de uma vez por todas, voltar para minha casa e cuidar

de minha família sem ter com que me preocupar —

confessou, virando-se para Gar e brindando-o com um

sorriso apaixonado que foi plenamente retribuído.

— Neste caso — Tobias alisou as abas do chapéu —

vou agora mesmo para o jornal. Quero escrever a

história e ainda poder revisá-la com cuidado. Esta vai ser

a melhor matéria que já publiquei. Além de trazer o

desfecho de um crime em série, ainda servirá para

mostrar que dona Leah foi acusada injustamente. As

fofoqueiras de plantão vão adorar e com certeza pre-

Page 413: O Milagre Do Coracão

cisarei dobrar a edição. Agora, se me dão licença… —

pediu começando a se dirigir à porta.

— Creio que o acompanharei, sr. Dunbar — Water-

ford falou, também se preparando para partir. — Fe-

licidades, senhora. Parece que daqui por diante tudo

ficará bem.

— Obrigada — Leah agradeceu e logo os dois

homens haviam deixado o aposento, escoltados por

Sarah Perkins.

— Nós também precisamos ir, querida — atalhou

Gar, tocando-a nos ombros.

— Sim, claro — concordou, começando a se

levantar. Eric virou-se da porta que tinha acabado de

fechar atrás dos dois homens e abriu os braços num

gesto significativo.

— Se importaria se eu abraçasse minha filha, Gar-

1am? — pediu emocionado.

Sorrindo, Gar deu seu consentimento e empurrou

Leah em direção ao pai.

Leah atravessou a sala rapidamente e seus braços

se enroscaram em torno do pescoço de Eric, deixando as

emoções fluírem pela primeira vez desde que soubera

quem ele era na verdade.

Page 414: O Milagre Do Coracão

— Obrigada, pai. Ou melhor, obrigada, papai — cor-

rigiu-se lembrando-se de que Eric lhe contara que era

assim que o chamava quando pequena. E talvez o tra-

tamento carinhoso fosse uma boa maneira de reatar os

laços que tinham sido cortados muitos anos antes,

concluiu suspirando.

— Não precisa me agradecer, filha – Eric murmu-

rou, beijando-a na testa. — As coisas se ajeitaram sem

que eu precisasse fazer qualquer esforço. — Ele pi-

garreou, como se quisesse controlar a rouquidão que

denunciava o quanto estava emocionado. — Sou eu

quem devo te agradecer, Leah, por ter me deixado

entrar em sua vida outra vez, mesmo depois de eu ter

sido tão orgulhoso e não tê-la procurado quando ainda

era uma criança. E, mais ainda, por ter me dado um

genro maravilhoso. — Olhou para Garlam, que assistia à

cena com um sorriso nos lábios. — E, então, poderemos

ser amigos, Lundstrom?

Gar se juntou a eles e Leah deu um passo atrás,

formando um pequeno círculo com o marido e o pai.

— Eu já o admirava há muito tempo, Eric — Gar

confessou. — Agora tenho orgulho de tê-lo como parte

de minha família. Imagino que você até fará questão de

ser um bom avô para nossos filhos.

Page 415: O Milagre Do Coracão

— Por acaso tem mais algum a caminho além da-

queles dois garotinhos lindos que estão na fazenda? —

Eric brincou, os olhos acinzentados percorrendo a figura

esbelta de Leah.

— Bem eu espero que um desses dias isso possa

acontecer — Gar respondeu rindo.

— Pois eu não ficaria nada surpresa se esse dia

chegasse logo — Leah comentou provocante.

Os dois homens se entreolharam espantados,

depois voltaram-se para ela com ar indagador.

— Está querendo nos dizer alguma coisa, Leah? —

Gar perguntou, os dedos enormes fechando-se em torno

do cotovelo da esposa.

— Ah, não pode ser — Eric interferiu. — Olhe só

para ela, está com uma cintura de pilão.

— Eu estou olhando — Gar declarou, perscrutando-a

com as íris azuis. — O que você quis dizer, Leah? Acha

mesmo, que está grávida? — questionou após alguns

instantes de hesitação.

Ela meneou a cabeça afirmativamente.

— Pode apostar que sim, sr. Lundstrom — garantiu,

olhando de um para outro com um sorriso nos lábios. —

Ah, sou uma mulher de sorte por ter vocês dois! —

exclamou, abraçando um de cada lado. — E pensar que

Page 416: O Milagre Do Coracão

um ano atrás eu nem imaginava que poderia ser tão

feliz com minha família. Agora tenho pai, marido, filhos

do coração, outro filho em meu ventre…

— Talvez fosse melhor ela sentar — Eric disse,

encarando Gar pouco acima da cabeça da filha.

— Sim, Leah teve uma manhã e tanto. Por certo,

seria melhor fazê-la deitar um pouco e descansar.

De repente, Leah se viu levada para o sofá pelo pai

e pelo marido, um de cada lado. Em poucos minutos

Sarah Perkins já lhe servia uma xícara de chá e a

mimava com uma grande variedade de muffins que

acabava de tirar do forno.

— Se eu soubesse que seria tratada com tanta

deferência, teria te contado sobre o bebê ontem mesmo,

Gar — ela comentou em uma mordida e outra na

guloseima.

— Você já sabia ontem?! — Gar espantou-se. Uma

expressão consternada surgiu nas feições angulosas, por

certo, porque ele estava se lembrando do que acon-

tecera no riacho. — Talvez nadar não tenha sido uma

boa idéia, Leah.

— Vocês andaram nadando? — Eric interrogou e

seus olhos brilharam ao perceber o rubor que tinha as

faces da filha e do genro.

Page 417: O Milagre Do Coracão

— Sim, e Leah também cavalgou.

— Eu estou muito bem, cavalheiros — Leah os silen-

ciou com um tom firme. — Estar grávida não é doença.

Eric se aproximou do sofá e sentou-se ao lado da

filha.

— Não posso nem dizer o quanto está me

deixando feliz, Leah. Quando a vejo, lembro-me do lado

mais humano e bonito de sua mãe. Claro que você não

tem a língua tão afiada quanto ela…

Gar deu uma sonora gargalhada.

— Ah, espere só e verá como está enganado, meu

sogro. Quando a vir em ação vai entender o que digo.

— Não, Leah é mais doce que Minna. Menos orgu-

lhosa, talvez. Ela tem os mesmos cabelos cor de mel e

as maçãs salientes do rosto, mas não deixa que o

orgulho fale mais alto do que seu coração.

— Sim, Leah é linda, e também tem um coração de

ouro. Tanto que recebeu a mim, meus filhos, você e

agora está arrumando lugar pana mais um habitante —

gracejou Gar.

Leah colocou a xícara de porcelana sobre a mesinha

de centro.

— Ei, vocês dois querem parar de falar de mim

como se eu não estivesse aqui! — ralhou. — E, querem

Page 418: O Milagre Do Coracão

saber do que mais, já cansei de ser paparicada. Está na

hora de voltar para casa e cuidar da vida.

Eric riu e Gar piscou pana o sogro.

— Viu o que eu disse? Esta minha esposa é muito

exigente! Primeiro gosta quando a mimamos, depois se

cansa e manda-nos parar. Quem consegue agradá-la?

— Bem, acho que você é a pessoa mais indicada

para esse trabalho, meu rapaz — Eric Magnor declarou,

estendendo a mão para o genro e se despedindo da filha

com um abraço. — Vou visitá-los assim que puder e

espero que façam o mesmo.

— Pode deixar, papai — Leah prometeu, abraçando-

o, antes de sair da casa escoltada pelo marido.

Logo a carroça vermelha já seguia pela estrada de

terra batida.

Era estranho, mas para Leah aquele caminho nunca

tinha parecido tão bonito. Talvez, fosse apenas um re-

flexo de seu estado de espírito, mas também poderia ser

que só agora, sem peso do passado sobre suas costas,

conseguia enxergar a verdadeira beleza que pulsava a

seu redor.

— Estou tão feliz, Gar, que nem consigo acreditar

que tudo isto esteja acontecendo.

Page 419: O Milagre Do Coracão

— Eu também, querida, tanto por não termos mais

que nos preocupar com as acusações de Sylvester Tay-

lor quanto por esse bebê que cresce em seu ventre.

— Sim, acho que estamos sendo abençoados com

essa nova vida, Gar.

— Você tem razão — ele aquiesceu, piscando-lhe de

maneira sensual. — E eu sei exatamente como podemos

comemorar isto.

— Ah, Garlam Lundstrom, você é mesmo

impossível! — Leah resmungou, batendo-lhe de leve nos

ombros ao perceber que ele se referia a uma

inesquecível noite de amor. —. Mas eu te amo mesmo

assim…

— Não mais do que eu, minha querida esposa, não

mais do que eu…

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CAPITULO XVII

— Pedi a Ruth que viesse ajudá-la todos os dias da

semana, em tempo integral — Gar fez a revelação em

seu tom habitual, como se fosse um fato já definido que

não exigia outros comentários.

Leah cerrou os lábios, consciente de que o marido

estava preparado para vencê-la se ela resolvesse dis-

cutir o assunto. Estava aninhada nos braços fortes,

repousando sobre o peito viril. Sua camisola continuava

no chão, onde Gar a jogara um pouco antes, e, de

súbito, percebia que começava a gostar daquela liber-

dade de dormir nua junto ao homem que amava.

— Você acha mesmo que preciso de ajuda? — per-

guntou por fim, consciente da tensão dele enquanto

esperava que contestasse sua decisão.

— Sim, está trabalhando muito.

— Não mais do que qualquer outra mulher de fa-

zendeiro da região — replicou com firmeza.

Page 421: O Milagre Do Coracão

— Bem, eu a vejo costurando à noite, quando já

deveria ter terminado sua cota de serviço do dia. Além

do que, ultimamente tem me parecido muito cansada.

Quase sempre está sonolenta à tarde — Gar prendeu a

respiração e ergueu um pouco o corpo da cama, fa-

zendo-a encará-lo. — Isso é por causa do bebê? Está se

sentindo mal? Quero dizer, tem tido enjôos e não me

disse nada? — A voz de barítono era pura preocupação e

ansiedade.

Leah não queria que fosse assim. Pressionando os

dedos sobre os lábios carnudos que tanto gostava de

beijar, silenciou-o ao mesmo tempo que negava a per-

gunta com um movimento de cabeça.

— Não, estou me sentindo muito bem, honestamen-

te. Ainda não tive qualquer mal-estar e acho que é

normal ficar mais sonolenta no final da tarde, por isso

tenho lhe parecido cansada.

Sob a pálida luz do luar, o rosto anguloso estava

sério, as sobrancelhas arqueadas e os olhos azuis mais

escuros do que o habitual. Era uma expressão que a

fazia lembrar do Gar que conhecera antes de se tor-

narem marido e mulher.

Page 422: O Milagre Do Coracão

— Mas eu não quero quê você se sobrecarregue

como Hulda fazia — continuou ele com suavidade. —

Tenho muito medo, Leah. Não suportaria perdê-la.

As mãos hábeis e delicadas deslizaram para a parte

posterior da cabeça dele e os dedos longos mergulha-

ram por entre os caracóis de cabelos loiros.

— Shhh, querido! Eu não vou morrer no parto. Sou

muito jovem e saudável.

— Já que mencionou, isto é outra coisa que me

preocupa. Você está com trinta anos, esta não é uma

idade um pouco avançada e preocupante para se ter o

primeiro filho? Não deveríamos ir a Minneapolis para ver

um médico competente e saber se está tudo bem com

você?

— Ora, tenho certeza de que está tudo bem comigo!

— exclamou Leah, puxando o rosto amado para junto do

seu e beijando-o ternamente nos lábios. — Mas se é

para deixá-lo mais tranqüilo, Ruth irá me ajudar com a

casa e as crianças e, se eu perceber que alguma coisa

não está bem, prometo que irei ao médico.

Provavelmente, quero muito mais esse filho do que

você, Gar. E muito importante para mim ter um bebê.

Page 423: O Milagre Do Coracão

— Sim, já percebi. As mulheres em geral dão muita

importância a isso, não? E como se precisassem ser mãe

para se sentirem inteiras.

— Sim, mas acho que é o milagre da vida que nos

fascina acima de tudo, e uma forma romântica também

de vermos nosso amor perpetuado no ser que repre-

senta a união de dois corpos, duas almas… Se quer

saber, eu já trouxe mais bebês ao mundo do que você

pode imaginar. E cada um deles é um milagre mara-

vilhoso, especialmente Karen, que lutou tanto para

nascer, apesar de todas as adversidades.

— Pois eu só consigo me lembrar do sangue e da

dor terrível que Hulda sentiu ao dar a luz — Gar

confessou, abaixando a cabeça pana repousar entre os

seios redondos e firmes da esposa.

Os dedos de Leah continuaram mergulhados nos ca-

belos claros e ela segurou-o junto ao vale macio e ro-

sado. Sabia que Gar só se sentiria seguro depois que

visse o bebê nascer calmamente, sem a agonia da morte

que arruinava a alegria e a esperança de vida que era o

nascimento de uma criança.

— O que aconteceu com Hulda não vai se repetir

comigo, querido. Não é sempre assim. Tudo vai dar

certo. Espere e verá — sussurrou, acariciando-o com a

Page 424: O Milagre Do Coracão

ponta dos dedos. — Vamos ser ainda mais felizes do que

agora quando tivermos nosso bebê nos braços…

O ano tinha sido muito bom para todos, a colheita

do trigo ainda estava sendo comentada pelos moradores

da cidade e o último corte de feno já tinha sido

armazenado no celeiro. Agora as cores outonais im-

pressas na vegetação desapareciam sob os pés dos mo-

radores de Kirby Falls à medida que outubro chegava ao

fim e o céu tingia-se do tom acinzentado característico

do inverno.

Como se fosse um sinal de que dali por diante a

temperatura cairia ainda mais, um vento vindo do norte

trouxe uma forte geada consigo e Gar limpou bem o pé

no capacho antes de entrar na cozinha.

— Puxa, parece até que tem neve no solado de

minha botas — ele comentou, esfregando as mãos uma

contra a outra para aquecer. — Pelo frio, é de se esperar

que ainda tenhamos uma boa nevasca antes do final da

semana. Talvez até hoje mesmo. Afinal, já estamos em

novembro.

— Bem, pois eu confesso que me dou por satisfeita

que você tenha aprendido a deixar a neve e os pedaços

de terra congelados lá fora, no capacho — Leah co-

Page 425: O Milagre Do Coracão

mentou, virando-se do fogão, onde estivera ocupada

com o café da manhã da família, para a porta de

entrada.

O sorriso charmoso alargou-se.

— Sim, aprendi a lição, minha querida esposa —

confessou, esfregando mais uma vez a sola das botas no

tapete, pana em seguida se aproximar dela. As mãos

enormes e calejadas cobriram a parte frontal do avental

de Leah, acariciando a leve saliência que lhe denunciava

a gravidez, ao mesmo tempo que os lábios carnudos

roçavam-lhe na base do pescoço.

— Como está meu docinho está manhã?

— Está falando de mim? — provocou-o, arqueando

um sobrancelha. — Ou se refere ao bebê? — Virou-se e

os lábios do marido roçaram em suas faces, para logo

depois sussurrarem em sua orelha:

— Eu sei muito bem como você está, querida, des-

cobri todos os seus segredos há menos de uma hora

quando ainda estávamos na cama. Estou falando a

respeito de nosso bebê.

Leah fechou os olhos e apoiou-se no peito largo.

— Será que algum dia vou parar de enrubescer

quando você diz essas coisas para mim?

Page 426: O Milagre Do Coracão

Gar passou os dois braços em torno dela, suas mãos

encontrando-se sob a curva do ventre levemente pro-

tuberante.

— Espero que não. É uma das coisas que mais gosto

em você, meu amor. Faz com que pareça tão feminina e

apaixonada que meu coração bate ainda mais forte ao

vê-la assim.

— Gar? Quando formos à cidade, como vou comprar

mais flanela no armazém geral sem deixar que as pes-

soas descubram para que vou precisar de tanto tecido?

— Ah, você ainda não está pronta para contar a

novidade às senhoras de Kirby Falis, não? Estou sur-

preso de ver que consegue guardar um segredo por

tanto tempo.

— Pois saiba que não serei capaz de guardar

segredo por muito tempo, senhor meu marido. Já

engordei muito mais do que esperava nesses poucos

meses de gestação. E olhe que eu ainda nem senti a

vida pulsar dentro de mim.

— A vida pulsar?! Está se referindo aos movimentos

do bebê?

Ela assentiu.

— Sim, isto deverá acontecer em breve, dentro de

poucas semanas. Talvez, depois de senti-lo estarei

Page 427: O Milagre Do Coracão

pronta para contar a novidade a nossos amigos e

conhecidos.

— Tem algum medo em relação ao bebê? É por essa

razão que está tão hesitante em contar sobre a

gravidez?

Leah mexeu o cozido que tinha no fogo com a

colher de pau, depois voltou-se e segurou o rosto do

marido entre as mãos.

— Não tenho nenhum medo em relação ao nosso

bebê, Gar. E só que as vezes tenho a sensação de que é

bom demais para ser verdade.

Sorrindo, ele virou o rosto até que seus lábios to-

cassem o centro da palma da mão da esposa. Respi-

rando fundo, fechou os olhos e confessou:

— Não vou descansar até que tenha nosso bebê nos

braços e veja que você está bem depois do parto. Vivo

agoniado com a possibilidade de que algo terrível possa

lhe acontecer enquanto estiver tentando me dar um

filho.

O coração apertou-se dentro do peito de Leah.

Queria muito reconfortá-lo e garantir que tudo sairia

bem, mas sabia que suas palavras não teriam qualquer

efeito sobre o estado de espírito do marido. O que ele

precisava apenas a vivência poderia lhe dar. Sim, so-

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mente quando tivesse presenciado um parto onde a

beleza do nascimento superasse plenamente a dor, os

perigos e o desconforto, Gar Lundstrom perceberia que

nem sempre o florescer da vida era assustador ou pe-

rigoso, muito pelo contrario.

— Quando o bebê se mexer, talvez você consiga

acreditar que está tudo bem, querido. Acho que vai

acabar se dando conta de que está tudo certo comigo,

mesmo se eu decidir tirar um cochilo durante as sonecas

de Karen depois do almoço. Também tenho de lhe dizer

que de todos os bebês que ajudei a trazer ao mundo, o

nascimento de Karen foi o mais difícil.

— Tenha paciência comigo e com meus temores,

minha sábia esposa. Ame este pobre homem e

compreenda que sou apenas um ser humano lutando

para superar meus medos e defeitos. — As palavras

bem-humoradas trouxeram um sorriso aos lábios de

Leah.

— Pois você não me parecia apenas um pobre

homem essa manhã. Ao me tomar em meus braços,

pareceu-me muito mais forte e poderoso que qualquer

ser humano, quase um semideus.

— Eu não machuquei você, machuquei? Fui apres-

sado demais?

Page 429: O Milagre Do Coracão

— Você nunca me machucou Gar. Nem mesmo em

nossa primeira vez, quando foi muito mais que apres-

sado. — As palavras eram provocantes e o sorriso lân-

guido. -- Aliás, devo dizer que o senhor sempre foi

exatamente como eu sonhava: maravilhoso.

O corpo másculo relaxou e moldou-se de encontro

ao dela.

— Então vamos à cidade esta manhã? Quem sabe

até chegarmos lá você já tenha pensado em uma des-

culpa para explicar para o que precisa da flanela, sem

ter de mencionar fraldas cueiros e outros adereços de

bebê.

Leal’ deu de ombros.

— Se começarem a suspeitar, acho que não me im-

portarei de contar a verdade. Já faz algum tempo que

não sou mais o assunto predileto dos moradores de

Kirby Falis.

— Aquele artigo do jornal foi tão doloroso para você

assim, querida?

Ela lembrou do alvoroço que havia se seguido ao

artigo de primeira página em que Tobias Dunbar a

defendia das acusações que pesavam sobre suas costas.

Dunbar tinha publicado a carta de Sylvester Taylor, a

declaração do advogado da família e até mesmo parte

Page 430: O Milagre Do Coracão

do relatório médico sobre a morte dos bebês de Mabelle

e a causa delas.

No final, Leah tinha saído dá confusão sem qualquer

macula a sua honra e reputação e as reações frias e

acusadoras dos moradores da cidade tinham desapare-

cido para sempre. Logo voltara a ser respeitada como

antes, mas nunca se esqueceu de que apenas Eva Lan-

ders, a sra. Thorwald e Bonnie Nielsen haviam perma-

necido suas amigas mesmo antes de a verdade vir à

tona, jamais duvidando de que era uma mulher de bem.

— As pessoas são muito engraçadas, Gar. Adoram

uma fofoca e quando a verdade sufoca o falatório, agem

como se nada demais tivesse acontecido. São raros

aqueles que podem ser considerados amigos verdadei-

ros e continuam a nosso lado mesmo nas horas mais

difíceis.

— Sim, tem razão. Mas você guardou o jornal de

Tobias, não? Eu o vi na estante.

Ela assentiu.

— E verdade. Achei que de vez em quando seria

bom ler todas as coisas maravilhosas que Tobias es-

creveu a meu respeito.

— Pois eu posso lhe dizer todas as coisas maravi-

lhosas que quiser ouvir, querida. — Inclinou-se para

Page 431: O Milagre Do Coracão

beijá-la, depois espiou as panelas no fogão. — Parece

que o mingau de aveia está fazendo bolhas maiores do

que deveria. Acha que já está pronto?

Ela bateu-lhe no peito com os punhos cerrados.

— Ah, seu esfomeado. Se quer tomar o café da ma-

nhã antes de irmos à cidade, é melhor sentar-se à mesa

e chamar Kristofer que ainda está no quarto.

— Mas, e Karen? Não acordou? Quer que eu vá

pegá-la?

— Não, coma primeiro. Eu cuido de Karen. Quero

sair cedo para a cidade. Afinal, você pode estar certo.

Parece que existem algumas nuvens escuras vindas do

oeste e isto, nesta época do ano, é prenúncio de uma

boa nevasca.

— Quantos metros você vai querer, Leah? — Os

olhos de Bonnie Nielsen brilhavam de curiosidade

enquanto ela pegava a tesoura e tirava o papel marrom

em que estava embrulhada a peça de flanela creme.

— Acho que uns quinze metros será suficiente —

Leal’ disse, ocupando-se em escolher botões e linhas em

uma cartela.

Page 432: O Milagre Do Coracão

— O que vai fazer com tudo isso? — quis saber

Bonnie, desenrolando o tecido macio sobre o tampo de

madeira, depois medindo-o numa fita métrica colada à

borda interna do balcão.

— Tenho uma série de roupas para costurar — Leal’

respondeu, sorrindo levemente enquanto separava di-

versas cartelas de pequenos botões de pérolas.

— Sete… oito… Imagino que Karen esteja perdendo

todas as suas roupas, ah? Nove.., dez… — Bonnie con-

tou os metros um a um.

Leah assentiu com um movimento de cabeça, mas,

no fundo, estava pensando em todos os casaquinhos,

calções e pilhas de fraldas e cueiros que iria costurar

para seu bebê.

— Não vai precisar de mais flanela depois? Talvez

alguns tecidos coloridos? Vamos receber um novo car-

regamento dentro de algumas semanas. — Os comen-

tários de Bonnie estavam atraindo olhares curiosos das

outras freguesas do armazém e Leah tentou dar o

assunto por encerrado.

— Talvez, Bonnie. Que tal um pouco de azul para

fazer um pijama para Kristofer? — E também para o

menino que ela acreditava piamente estar crescendo

dentro do seu ventre, concluiu em pensamento.

Page 433: O Milagre Do Coracão

— Comprando, flanela, ah, Leah? — a voz de Eva

Landers soou como um sussurro junto a sua orelha e ela

se virou no mesmo instante para encarar a amiga.

— Ah, pensei que tivesse outras coisas com que se

preocupar do que com minha lista de compras, Eva —

gracejou Leah, piscando brejeira.

— E eu teria, mas não pude deixar de perceber que

está mais bonita do que o habitual, minha querida. Seus

olhos brilham como nunca e isto só acontece quando…

Ora, você pode enganar Bonnie, mas eu sei exatamente

o que todo esse brilho significa.

Uma onda de emoção invadiu o peito de Leal’.

Então será que existia mesmo uma aura especial,

facilmente reconhecível, em torno das mulheres

grávidas?!

— Dá mesmo para notar? — murmurou

emocionada:

O olhar de Eva percorreu-a de alto a baixo, detendo-

se na altura dos botões do casaco.

— Bem, para os mais desatentos não, mas aposto

que, se desabotoar esse casaco, todos conseguirão ver o

que vejo.

Page 434: O Milagre Do Coracão

— Mas eu ainda não quero contar a todos — Leal’

cochichou no ouvido da amiga, e deu graças ao céu por

estarem conversando num tom confidencial.

Eva a abraçou e sussurrou:

— Então não conte. E um direito seu preservar sua

intimidade. Mas quero que saiba que estou feliz por

vocês. Gar é um bom homem e um bebê nascido deste

casamento era tudo o que precisava para completar sua

felicidade, minha cara amiga.

Bonnie pigarreou para chamar a atenção das duas

senhoras que trocavam segredos.

— E então, Leal’? Vai querer levar os botões que

separou?

— Sim — Leah voltou-se novamente para o balcão.

— Isto e os itens da lista de compras que lhe entre-

guei antes. -

Uma sineta tocou na porta da frente quando Gar

empurrou-a e entrou no armazém.

— Leah, já está nevando bastante. Precisamos car-

regar a carroça e seguir para casa o mais rápido pos-

sível. — Com Karen nos braços, ele seguiu até a esposa

e entregou-lhe a menina, enquanto pegava os pacotes

do balcão de madeira escura. — Volto logo para pegar o

Page 435: O Milagre Do Coracão

resto — prometeu, dirigindo-se a Bonnie, antes de

empurrar Leal’ para a porta.

E estava mesmo nevando lá fora. Leah limpou os

flocos brancos do assento da carroça e subiu

apressadamente, abrindo o casaco para enrolar o tecido

de lã em torno do corpo de Karen e mantê-la aquecida

no trajeto até a fazenda.

Gar tornou a entrar na loja e voltou de lá com o

resto das compras que haviam feito. Assim que se ajei-

tou ao lado de Leah, pegou as rédeas e incitou os ani-

mais a partirem.

— Então, Bonnie não tentou descobrir para que

comprou tanta flanela de uma só vez? — perguntou com

um sorriso caçoísta. — Imagino que não tenha sido nada

fácil esconder a verdade, certo?

Leal’ também sorriu.

— Bem, para ser franca, Bonnie concluiu que o te-

cido era para Karen que está perdendo as roupas de

tanto que cresce, e, claro, eu deixei que continuasse a

pensar assim. Mas Eva Landers descobriu a verdade. Ela

disse que meu rosto e meus olhos estão brilhando de um

jeito especial. Gar, o que acha que Eva quis dizer com

essa história de brilho especial?

Page 436: O Milagre Do Coracão

— Que você está parecendo uma mulher feliz, que-

rida. O brilho vem de dentro de você e apenas se reflete

em sua pele e em seus olhos. — Esticou o braço para

puxar o cachecol dela um pouco mais para frente, em-

purrando os flocos de neve que haviam se acumulado

ali. — Você é muito bonita com essas maçãs salientes e

o nariz clássico.

— Fico feliz que pense assim — disse Leal’, desli-

zando sobre o banco e aproximando-se mais do corpo

viril que lhe dava tanto prazer nas noites frias do

inverno, nos dias ensolarados de verão, nas manhãs

agradáveis de primavera e também no entardecer ro-

mântico do outono. Enfim, Gar era o homem que a fazia

feliz em todas as estações do ano!

Karen balbuciou alguma coisa na linguagem pecu-

liar dos bebês, enquanto com a mãozinha rechonchuda

pegava um dos flocos de neve e levava-o aos lábios,

lambendo o cristal e rindo deliciada.

— É a primeira tempestade de neve de minha filha.

— Gar comentou, apreciando o encantamento da me-

nina. Seu coração estava cheio de ternura diante da

visão de Leal’ com a menina nos braços. Mais ainda

porque sabia que sob o pesado casaco de lã uma outra

criança, fruto do amor de ambos, estava protegida da

Page 437: O Milagre Do Coracão

tempestade dentro do ventre da mãe. E, céus, Leal’

mostrara ser mais do que capaz de amar todos os seus

filhos e a ele também, com a mesma ternura e dedi-

cação. Como ela sempre dizia, Kris e Karen não eram

filhos de seu ventre, mas de seu coração. — Vamos ter

que nos apressar se não quisermos ficar presos aqui,

querida. Segure Karen com firmeza. — Mal terminou de

falar, incitou os cavalos a galoparem mais rápido. A

estrada já estava coberta pela neve e a tempestade

tornava-se cada vez mais intensa.

Eles estavam a mais ou menos um quilômetro e

meio da casa da fazenda quando Gar resmungou algo e

apontou para um ponto mais adiante.

— O que é isso? — Leah inclinou-se para frente,

tentando ver melhor, mas mal sendo capaz de discernir

o contorno de uma outra carroça que estava parada

sobre a grama e com uma figura encolhida no assento.

Gar levou os cavalos até a beira da estrada e saltou

rapidamente, suas longas passadas o conduziram a uma

mulher coberta de neve.

— A senhora está bem? Está sozinha aqui? —

interrogou-a.

A estranha ergueu a cabeça, uma expressão

aturdida pairava nos olhos e feições delicadas.

Page 438: O Milagre Do Coracão

— Sim, meu marido seguiu na frente para tentar

encontrar ajuda, senhor. O arreio quebrou e ele precisou

montar o cavalo e me deixar aqui.

Gar resmungou baixinho enquanto ergueu as mãos

para ajudar a mulher a descer do assento alto.

— Por que seu marido não a levou junto, senhora?

Este não é um bom lugar para se deixar uma mulher

sozinha, ainda mais com toda essa neve!

Então ele espantou-se, pois, pela primeira vez, deu-

se conta de que o pesado casaco que a desconhecida

vestia não era capaz de esconder o tamanho avantajado

de seu abdome.

— Céus, a senhora vai ter um bebê! — exclamou

Gar, a surpresa que sentia pontilhando cada uma de

suas palavras. — Será logo? — quis saber. As mãos

gentis ajudaram-na a descer os degraus e depois se-

guraram-na a seu lado quando ela cambaleou.

— Temo que muito em breve, meu senhor. Stephen,

meu marido, queria que eu montasse no lombo do ani-

mal com ele para irmos em busca de ajuda, porém, eu

não poderia. Disse-lhe que ficaria bem aqui até que

fosse até a fazenda mais próxima buscar socorro. —

Ergueu o rosto e o encarou com ar de quem pede des-

Page 439: O Milagre Do Coracão

culpas. — Não queria deixá-lo saber que já estava sen-

tindo as dores.

Depois de lhe garantir que encontrariam seu marido

no caminho ou, quem sabe, na Fazenda Lundstrom, Gar

a conduziu cuidadosamente até seu próprio veículo,

parando diante da carroça para olhar para sua esposa.

— Leah, querida, devo colocar esta jovem senhora

na parte de trás, ou está tudo bem se ela for a seu lado?

Parece que está prestes a dar a luz.

Leal’ virou-se, ajeitando um lugar na parte de trás

da carroça. Karen remexia-se impaciente em seu colo.

— Traga-a para cá, Gar. Ela se sentirá melhor se

puder se apoiar na lateral da carroça.

Pela primeira vez em sua vida, Gar Lundstrom obe-

deceu uma ordem sem nem ao menos discutir. Leal’

tinha muito mais experiência nesses assuntos do que

ele, além do que, trabalhos de parto sempre o deixavam

nervoso e incapaz de pensar com clareza.

Quando voltou a incitar os animais a seguirem em

frente, não pôde deixar de imaginar o que as próximas

horas lhe reservavam. Leal’, por certo, iria precisar de

ajuda para trazer mais um bebê ao mundo e ele tremeu

só de pensar no que isso poderia significar. Não seria

capaz de passar por tudo outra vez. A morte de Hulda

Page 440: O Milagre Do Coracão

ainda estava bem viva em suas lembranças. Mas, talvez,

se tivesse um pouco de sorte, Ruth poderia dar uma

mão e seu trabalho se resumiria a esquentar água e a

separar algumas toalhas e lençóis limpos, além de fazer

um chá e manter-se na cozinha, longe do acontecimento

principal da noite.

Essa última possibilidade o animou.

A casa dos Warshem estava escura e Gar mal freiou

os animais ao passarem diante dela.

— Parece que Ruth não está — disse por sobre os

ombros.

— E, não está mesmo — Leal’ concordou. — Por

certo foi ajudar a irmã.

— Sim, e eu esperava que ela pudesse nos ajudar

também com este novo bebê que decidiu nascer hoje —

suspirou Gar, batendo com as rédeas nas costas dos

animais para obrigá-los a andarem mais depressa.

— Não tem problema, querido. Vamos nos sair bem,

mesmo estando sozinhos — Leal’ garantiu com voz

suave, olhando para a jovem sentada na parte de trás e

sorrindo como se as duas estivessem falando uma

linguagem que apenas elas entendiam.

Page 441: O Milagre Do Coracão

Por sorte, a ladeira que conduzia à sede da fazenda

estava logo à frente e Gar conduziu os cavalos para lá.

As luzes do celeiro estavam acesas, como se fossem um

brilho de esperança em meio a toda aquela neve que

caía em profusão do céu hibernal.

Assim que ouviu o som dos animais e do veículo do

patrão se aproximando, Benny surgiu na porta do

celeiro.

— Ah, Gar, que bom vê-lo. Por acaso encontrou uma

jovem senhora na estrada enquanto vinha para cá? O

marido dela acaba de chegar e estamos nos preparando

para ir buscá-la porque o arreio deles quebrou.

— A moça está aqui comigo — contou Gar. — Mas

acho que devemos levá-la para casa o mais rápido

possível, do contrário, teremos um bebé nascendo bem

aqui no celeiro.

Só de saber que estavam longe da tempestade e

que a casa estava a poucos passos dali já fazia com que

Gar respirasse mais tranqüilo. A visão de um jovem que

correu em direção à carroça com olhar ansioso para logo

se aproximar da cama improvisada na parte de trás,

onde duas mulheres e uma criança estavam alojadas, o

acalmou ainda mais. Afinal, Leal’ poderia encontrar a

ajuda que precisava para fazer o parto no futuro papai.

Page 442: O Milagre Do Coracão

— Kristofer está com você? — perguntou a Benny,

preocupando-se com seu filho mais velho.

— Sim, ele está alimentando as galinhas. Ou talvez

já tenha terminado e ido direto para casa a fim de se

aquecer um pouco.

Mais atrás, as vozes se misturavam com vários ou-

tros sons. Leah tentava acalmar o jovem que tinha

ficado atordoado com a notícia de que o parto seria

iminente e, logo, ele já carregava a esposa para a casa,

tendo Leal’, com Karen nos braços, seguindo-o ao mes-

mo tempo em que se curvava para tentar se proteger do

vento e da neve.

— Vou até lá dar uma mão para eles, Benny. Por

favor, cuide dos cavalos e da carroça para mim, sim?

Enquanto o ajudante concordava de pronto, Gar pe-

gou as compras de Leal’ da carroça e também rumou

para a casa. Pretendia cuidar das crianças e preparar

um Jantar leve para todos enquanto Leah dava assis-

tência à jovem que estava para dar a luz.

Mas não foi tudo tão simples e rápido como ele

havia planejado. A noite recobriu a fazenda com seu

manto escuro e, ainda assim, o bebê não tinha dado os

ares de sua graça. Do quarto que ficava no alto das

escadas não se ouvia nenhum som. Mesmo quando Gar

Page 443: O Milagre Do Coracão

levou os filhos para a cama e acomodou-os sob os

pesados cobertores, a porta permaneceu fechada.

Apenas as ocasionais saídas de Leal’ para pegar mais

água quente ou lençóis limpos quebravam o silêncio

assustador.

Então, a certa altura dos acontecimentos, Stephen,

o marido, desceu as escadas e seguiu para a cozinha.

Seu rosto estava pálido e a boca tremia levemente.

— Não agüento mais vê-la sofrer tanto! — gemeu,

deixando-se cair em uma cadeira e segurando a cabeça

entre a mãos. — Sua esposa pediu que o senhor subisse

e lhe desse uma ajuda.

— Eu?! — Gar levantou-se de um salto, quase der-

rubando a xícara de café que segurava. — O que posso

fazer para ajudá-la?

Os olhos de Sthephen estavam vermelhos quando

se voltou para a expressão aturdida de Gar.

— Não sei, mas por certo mais do que eu. Sharon é

tão jovem. Não deveria tê-la trazido para a cidade hoje.

Moramos há quase dezesseis quilômetros ao norte

daqui, nas terras do velho Burguess, e eu sabia que ela

estava prestes a ter o bebê. Mas minha esposa queria

muito ver o médico para se certificar de que tudo estava

bem, por isso eu a trouxe a casa do doutor.

Page 444: O Milagre Do Coracão

— Vocês foram à casa do dr. Swenson? — inquiriu

Gar, franzindo o cenho. — Ele não tem a menor condição

de trazer uma criança ao mundo.

Stephen respirou fundo.

— Nós não sabíamos disso. Moramos aqui há

poucos meses e Swenson foi o único médico de quem

ouvimos falar. Imagino que não haja outro num raio de

muitos quilômetros.

Gar se recompôs do susto inicial e começou a seguir

para as escadas.

— Mas vocês deram sorte, meu caro. Acabaram no

lugar certo. Minha esposa irá cuidar de tudo. — E sua

coragem durou apenas até abrir a porta do quarto no

segundo andar e dar um passo adentro. Aquela moça

frágil não era Hulda, lembrou a si mesmo. Mas, apesar

de tudo, ela gemia da mesma maneira que vira Hulda

fazer quando estivera em trabalho de parto.

E, como acontecera naquela ocasião, Leal’ estava

ali, parecendo segura, calma e senhora de todos os seus

movimentos. Ao lado da cama, ela ajoelhou-se junto a

mulher e suas mãos executavam uma tarefa misteriosa

enquanto seus murmúrios tentavam dissipar os medos

da futura mamãe.

Page 445: O Milagre Do Coracão

— Gar, venha me ajudar aqui — pediu-lhe, lançando

um olhar imperioso em sua direção. — Feche a porta e

sente-se junto à cabeceira. Preciso que erga Sharon e

deixe-a se apoiar em seu peito enquanto ela empurra o

bebê para minhas mãos.

Gar sentiu uma onda de calor, mesclada a um medo

insano, percorrê-lo de alto a baixo.

— Talvez eu não seja a pessoa mais indicada para

esse trabalho — sugeriu com voz embolada. —

Stephen…

— Não tenho tempo para discutir, senhor meu ma-

rido — Leah silenciou-o abruptamente. — Segure Sharon

do jeito que falei e faça isso agora mesmo.

Não havia mesmo outra coisa a fazer a não ser

seguir à risca as instruções de Leal’. Respirando fundo,

ergueu a figura frágil, apoiando-a contra seu peito.

E Sharon era quase uma criança, tão pequena e

delicada, mas, paradoxalmente, dotada do misterioso

dom de dar a vida a um novo ser, embora nesse pro-

cesso a dor parecesse uma constante aterradora.

— Respire fundo, Sharon — Leah aconselhou-a, cur-

vando-se para olhar sob o lençol que cobria as pernas e

a parte inferior do abdome da jovem. — Agora, empurre,

faça força. Muita força!

Page 446: O Milagre Do Coracão

Em seus braços, Gar sentiu o corpo jovem ficar

tenso, a cabeça da moça apoiada em seu ombro, os

dentes cerrados e as mãos agarradas aos lençóis como

se estivessem a ponto de rasgá-los. Como Leah podia

lhe pedir que presenciasse isso, mesmo sabendo o quão

terríveis eram suas lembranças?

— Outra vez, Sharon! Vamos, respire fundo. Em-

purre! — ela continuou a dizer, alheia aos sentimentos e

emoções que o torturavam.

Sim, como se tivesse em outro mundo, Leal’ estava

totalmente concentrada em sua missão. Ela agachou-se

mais, suas mãos ocupadas sob o lençol, concentrando-

se unicamente na vida, sem jamais pensar na morte.

Talvez fosse esse o segredo…

De repente, não mais que de repente, o ar foi inun-

dado por um choro estridente que, sem sombra de dú-

vida, significava a vitória.

— Oh, meu bebê! — Sharon exclamou triunfante

enquanto seu corpo relaxou de encontro ao de Garlam.

As mãos que até então haviam se enroscado no linho da

roupa de cama agora estavam estendidas em direção ao

pequeno ser vermelho e coberto por uma substância

pegajosa.

Page 447: O Milagre Do Coracão

— Coloque-a deitada, Gar, e venha me ajudar a cor-

tar o cordão umbilical — pediu Leah.

Ele hesitou por um momento, então, dirigindo um

sorriso de encorajamento para a jovem mamãe que os

observava com os olhos marejados de lágrimas, fez o

que lhe fora dito.

— O que devo fazer?

— Segure-o para mim — Leal’ instruiu, entregando-

lhe o pequeno ser nas mãos enormes.

O bebé era tão escorregadio quanto um daqueles

porquinhos besuntados de gordura que havia nas feiras

de animais de que participava, pensou Gar curvando os

lábios num sorriso ao virar-se pana o rostinho enrugado.

— Ei, é um garoto! — disse ele, observando um pe-

queno jato de urina atingir o ar e depois as mangas

dobradas de sua camisa. Uma gargalhada escapou-lhe

dos lábios. — Olhe só o que esse malandrinho fez

comigo!

— Não se mexa agora, apenas segure-o firme! —

ralhou Leah, olhando para o marido com a criança nos

braços. Ela tinha uma tesoura nas mãos e levou-a até o

cordão brilhante e rosado. As lâminas cortaram no ponto

exato entre duas partes que já haviam sido

anteriormente amarradas com um pedaço de barbante.

Page 448: O Milagre Do Coracão

No instante seguinte, mãe e filho estavam separados

fisicamente, mas, por certo, unidos para sempre pelos

laços sagrados do amor materno-filial.

O milagre dos milagres. A magia do nascimento.

Com os olhos embaçados por causa das emoções que

explodiam em seu peito, Gar virou-se para mostrar o

menino à mãe.

— Olhe só o que você ganhou — murmurou, segu-

rando o bebé bem ao lado de Sharon e, com cuidado,

colocando-o sobre o lençol.

— Oh, céus, como ele é lindo! — Com a voz embar-

gada, a jovem brindou o filho com seu olhar carinhoso.

De repente, Gar entendeu que aquele era o mesmo

olhar que vira em Leah naquela manhã. Lá no fundo de

seu peito, o coração encheu-se de esperança. Uma

esperança que ele descobrira naquele quarto, quando

colaborara com a mulher que tomara como esposa e

fizera um voto pela vida. Aqui, onde tinham unido forças

em uma tarefa muito mais gloriosa e importante do que

qualquer outra que pudesse imaginar.

Era engraçado, mas Sharon também parecia revi-

gorada, muito embora seu corpo tivesse enfraquecido

com o esforço que fizera para dar a luz.

Page 449: O Milagre Do Coracão

Entretanto, não era sempre assim, Gar se deu conta

com pesar. Pobre Hulda, ficava fraca e acabada depois

dos partos e, mesmo depois do nascimento de Kristofer,

permanecera na cama durante dias seguidos. Sentiu o

coração comprimir-se em seu peito, e, mais uma vez,

deu graças ao céu por Leal’ ter surgido em sua vida para

lhe mostrar o outro lado da moeda.

Sim, tudo seria diferente na próxima primavera,

quando a hora de Leal’ chegasse. Até mesmo uma jo-

venzinha frágil como Sharon havia sobrevivido ao parto,

que dirá uma mulher de fibra como sua esposa! O som

do riso das mulheres chegou-lhe aos ouvidos e ele

deixou as considerações de lado.

— Seu filho é lindo, Sharon! — Leah estava dizendo,

não parecendo nenhum pouco cansada depois de todo

trabalho que tivera.

— Sim, por favor, deixe-me pegá-lo nos braços.

— Vou limpá-lo primeiro e enrolá-lo numa flanela

para que não tome friagem — Leah explicou, e, em

questão de minutos, já tinha umedecido uma toalha em

água quente, limpado o bebê, enrolado-o em uma das

flanelas e entregado-o nos braços carinhosos da mãe.

Gar aproximou-se e a enlaçou pelos ombros, com

um misto de carinho e orgulho.

Page 450: O Milagre Do Coracão

— Suas costas devem estar doloridas depois de ter

ficado tanto tempo curvada — comentou suavemente.

— Nem tanto — contradisse-o, observando a cena

que se desenrolava na cama, mãe e filho entretidos um

com o outro. — Quando um bebê nasce, nada mais no

mundo importa. Não estou com dores e nem mesmo

cansada. Hoje estou apenas feliz e excitada ao presen-

ciar, mais uma vez, essa dádiva da vida.

— Eu também, querida — Gar confessou. — Eu

também…

O inverno foi duro, a nevasca cobrindo a paisagem e

os flocos brancos batendo impiedosamente contra as

janelas da casa durante todo o mês de fevereiro.

Durante uma semana inteira, Gar precisou cavar uma

enorme trincheira para poder ir da casa até o celeiro.

Então os tímidos raios de sol começaram a aparecer

e se encarregaram do trabalho de derreter a neve

acumulada por toda parte. Em meados de março, já era

possível ver o solo livre da grossa camada branca que o

revestira durante o mês anterior. Porém, uma

inesperada nevasca em abril tornou a surpreendê-los e

deixou Leal’ ansiosa, pois ela já começava a ouvir os

Page 451: O Milagre Do Coracão

primeiros sinais que seu corpo pesado emitia

discretamente.

Então, como se Deus tivesse estendido suas mãos e

tirado o grosso manto hibernal de sobre a paisagem de

Kirby Falis, o sol ergueu-se majestoso no horizonte e

secou e aqueceu a terra úmida e gélida. Tílias

floresceram sob as árvores junto ao bosque e lírios-do-

vale brotaram a oeste da varanda dos fundos, im-

pregnando o ar com o perfume delicioso da natureza em

flor.

Era como um presente do céu, concluiu Leal’, ca-

minhando da casa até o celeiro.

Benny ouviu atentamente enquanto a mulher do

patrão lhe dizia o que precisava ser feito.

A idéia a perseguia há dias e estava determinada a

colocá-la em prática na primeira oportunidade que

tivesse, ou seja, assim que o tempo estivesse firme o

bastante para poder fazê-lo. E o momento era esse.

Kristofer ajudou-a carregando a pequena maleta

que ela lhe dera e exclamando deliciado ao ver a grande

variedade de potes de tintas com cores diversas e tam-

bém pincéis.

Page 452: O Milagre Do Coracão

— Não sabia que pintava, mamãe — o menino co-

mentou, os olhos brilhando de empolgação diante da

novidade. — Posso mesmo ajudá-la?

Ela assentiu, acomodando-se em um barril pequeno

que Benny providenciara. Aliás, o ajudante de Gar

também limpara bem o banco improvisado, então, deu

um passo atrás e ficou a observá-la enquanto Leah

pintava as primeiras flores na lateral da carroça.

Em uma hora, ela já havia terminado uma das la-

terais, o pincel oscilando com leve abandono enquanto a

artista retocava as cores escolhidas.

Kristofer acompanhava-a sem reclamar, mudando o

pequeno barril de lugar cada vez que Leal’ não

conseguia mais alcançar a parte que estava pintando. O

pincel que ele segurava estava impregnado de tinta

verde e seus dedinhos desenharam folhas que nunca

tocavam nos caules, mas que para Leal’ eram as mais

bonitas e perfeitas para combinar com as tulipas e

margaridas que havia criado, pois tudo fora feito com

amor.

Após algum tempo, ela colocou as mãos nas costas

e deu um passo atrás. A criança que carregava no

ventre, estranhamente quieta nessa manhã, fê-la apre-

ciar o visual primaveril que criara na carroça da família

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com muito mais entusiasmo do que teria se não

estivesse prestes a florescer também. Sim, florescer, era

assim que vinha definindo o ato mais importante e

primitivo da humanidade, o de dar a luz a um novo ser.

Para Leah, ser mãe era como uma planta que finalmente

floresce e mostra sua beleza e função ao mundo.

— Está lindo! — Ruth disse, aproximando-se para

admirar o trabalho. — Mas você não acha que deveria

deixar o resto para fazer uma outra hora? Eu já preparei

a cama.

Osorriso de Leah chegou-lhe aos olhos e ela voltou-

se para a amiga.

— Sim, mas eu precisava começar o trabalho. Quan-

to aos retoque, Kris e eu poderemos terminá-los dentro

de alguns dias. Quando levarmos o bebê para a cidade

pela primeira vez, quero que seja na carroça pintada e

enfeitada com as cores da primavera para que todos

possam ver que estamos comemorando o aumento da

família.

— Quer que eu chame Garlam nos estábulos? —

Benny indagou, preocupado ao ver a maneira como Leah

olhou para o céu e segurou a barriga pesada com as

mãos.

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De repente, ela cerrou os olhos e respirou fundo ao

sentir os músculos se contraírem, avisando-a de que

havia chegado o momento tão esperado.

— Sim, por favor, Benny, diga a meu marido que

chegou a hora — pediu com um sorriso. — Temo que

você terá de cuidar do novo bezerro sozinho, pois Gar

estará muito ocupado cuidando de sua própria cria…

E de fato foi o que aconteceu. Naquele mesmo dia,

antes de o sol se pôr, Garlam Lundstrom segurou o filho

recém-nascido nos braços, com lágrimas escorrendo-lhe

pelas faces angulosas enquanto olhava embevecido

para o bebê que ele próprio ajudara a trazer ao mundo.

— Vamos chamá-lo de Eric — disse, virando-se para

a esposa.

— Ah, mandão como sempre, não, senhor meu ma-

rido? — Leah sussurrou, cansada por causa do trabalho

de parto.

— Ora, não concorda que é um belo nome para se

dar a um filho?

Apesar de tudo, ela assentiu.

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— Um nome maravilhoso. Agora embrulhe-o bem e

vá levá-lo para mostrar ao avô e aos irmãos que estão lá

embaixo esperando notícias.

— Eu te amo, sra. Lundstrom. — As palavras vieram

tão naturalmente aos lábios carnudos que soaram como

uma bênção dos céus para Leah.

— Eu também te amo, sr. Lundstrom. Aliás, há mui-

to mais tempo do que pode imaginar. Nossas vidas se

cruzaram de uma maneira inesperada, mas foi a melhor

coisa que já nos aconteceu.

Gar segurou a criança junto ao peito viril e curvou-

se sobre a cama para roçar os lábios ternamente nos da

esposa.

— Ah, minha querida Leah. Você é a mulher da

minha vida, a única capaz de me fazer feliz…

Leah retribuiu o beijo e sorriu, sabendo que, final-

mente, podia descansar. Tinha conseguido tudo o que

sempre sonhara e um pouco mais. Além do amor de Gar,

também ganhara três lindos filhos que completaram sua

felicidade e lhe davam razões de sobra para continuar

acreditando que a vida era bela…

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