O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de...

15
796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza 1 Resumo: Reconstruir o passado islâmico na Espanha é uma tarefa que divide opiniões quanto ao seu pertencimento ou não à identidade e a história espanholas. O Califado Omíada de Córdoba (929-1031), entretanto, detém unanimidade quanto ao reconhecimento de sua magnitude, pela contribuição científica e literária valiosa que esse apogeu legou à Espanha, uma vez que o mesmo propiciou um projeto cultural que seria inestimável para o Renascimento cristão no séc. XIV e que colaboraria para as Grandes Navegações do séc. XV. Ibn Hazm em “O Colar da Pomba”, sua obra-prima literária, ele escolheu este período como plano de fundo de sua teoria amorosa, e suas lembranças serão legadas às gerações posteriores como um vislumbre da vida aristocrática dos habitantes da Al-Andalus omíada, perfazendo uma postura propagandística na saga do amor verdadeiro. Palavras-chave: Al-Andalus, Ibn Hazm, Califado Omíada de Córdoba Abstract: Rebuilding the Islamic past in Spain is a task that divides opinions as to whether or not it belongs to Spanish identity and history. The Umayyad Caliphate of Cordoba (929- 1031), however, holds unanimous recognition of its magnitude, for the valuable scientific and literary contribution that this legacy bequeathed to Spain, since it provided a cultural project that would be invaluable for the Renaissance Christian in the century XIV, and that would collaborate for the Great Navigations of the century. XV. Ibn Hazm in "The Necklace of the Dove," his literary masterpiece, he chooses this period as the background to his loving theory, and his memories will bequeath to later generations as a glimpse into the aristocratic life of the inhabitants of Al-Andalus Umayyad , making a propagandistic stance in the saga of true love. Keywords: Al-Andalus, Ibn Hazm, Umayyad Caliphate of Cordoba 1 Mestra em História Comparada, doutoranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista CNPq. Contato: [email protected].

Transcript of O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de...

Page 1: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

796

O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI)

Celia Daniele Moreira de Souza1

Resumo: Reconstruir o passado islâmico na Espanha é uma tarefa que divide opiniões quanto

ao seu pertencimento ou não à identidade e a história espanholas. O Califado Omíada de

Córdoba (929-1031), entretanto, detém unanimidade quanto ao reconhecimento de sua

magnitude, pela contribuição científica e literária valiosa que esse apogeu legou à Espanha,

uma vez que o mesmo propiciou um projeto cultural que seria inestimável para o

Renascimento cristão no séc. XIV e que colaboraria para as Grandes Navegações do séc. XV.

Ibn Hazm em “O Colar da Pomba”, sua obra-prima literária, ele escolheu este período como

plano de fundo de sua teoria amorosa, e suas lembranças serão legadas às gerações posteriores

como um vislumbre da vida aristocrática dos habitantes da Al-Andalus omíada, perfazendo

uma postura propagandística na saga do amor verdadeiro.

Palavras-chave: Al-Andalus, Ibn Hazm, Califado Omíada de Córdoba

Abstract: Rebuilding the Islamic past in Spain is a task that divides opinions as to whether or

not it belongs to Spanish identity and history. The Umayyad Caliphate of Cordoba (929-

1031), however, holds unanimous recognition of its magnitude, for the valuable scientific and

literary contribution that this legacy bequeathed to Spain, since it provided a cultural project

that would be invaluable for the Renaissance Christian in the century XIV, and that would

collaborate for the Great Navigations of the century. XV. Ibn Hazm in "The Necklace of the

Dove," his literary masterpiece, he chooses this period as the background to his loving theory,

and his memories will bequeath to later generations as a glimpse into the aristocratic life of

the inhabitants of Al-Andalus Umayyad , making a propagandistic stance in the saga of true

love.

Keywords: Al-Andalus, Ibn Hazm, Umayyad Caliphate of Cordoba

1 Mestra em História Comparada, doutoranda em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História

Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista CNPq. Contato:

[email protected].

Page 2: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

797

1. Introdução

Al-Andalus não é um passado tangível, ou ao menos, um passado que tenha um

consenso de sua relevância e pertencimento à história moderna da Espanha. Desde o início em

que arabistas se puseram a analisar e reconstruir o que fora Al-Andalus em seu tempo e como

ela permanecia – ou não – no presente da sociedade contemporânea, outras questões de ordem

moral, política, ideológica e religiosa se fizeram presentes e diversificaram a imagem deste

passado. Estudar Al-Andalus é lidar constantemente com o mito.

A ideia de que Al-Andalus se relacione sempre a um caráter mítico advém do próprio

resgate desse passado. Conciliá-lo com a identidade hispânica é extremamente complicado,

não só porque a ideia de nação espanhola por muitos séculos se firmou sobre a cristandade – e

algumas vezes referenciada ao passado visigodo2 – como também o mundo árabe volta e meia

reivindica o passado andalusino como pertencente a sua história e não à história europeia. O

mito de Al-Andalus ora toma um lugar muitas vezes alógeno para justificar a visão cristã de

formação da Espanha, ora toma o lugar de nostalgia pela decadência moderna das sociedades

árabes.

Nesse sentido, analisar como um andalusino, Ibn Hazm (994-1064) compreendeu o

seu presente e o representou como parte da identidade andalusina é uma forma também de

encarar como a definição de Al-Andalus, mesmo sob uma hegemonia islâmica, estava sujeita

a discursos tanto antagônicos como convergentes, mas que, maiormente se vinculavam a

noções de pertencimento político e ideológicos de um momento. A Al-Andalus de Ibn Hazm

inegavelmente se volta ao mito da civilização ideal perdida, esta conformada com o

desmantelamento do Califado Omíada de Córdoba.

2. O resgate de Al-Andalus

Antes de comentarmos como Ibn Hazm elaborou Al-Andalus conforme suas

ideologias, devemos compreender como o nosso presente reelaborou esse mesmo lugar do

passado. A história de Al-Andalus foi uma elaboração, em certa medida, vinculada a projetos

ideológicos impregnados da ótica orientalista e que lograram se firmar na mentalidade atual

sobre o que é ser “árabe” e “oriental”, aspectos que também estão contidos na percepção do

que fora Al-Andalus.

2 REI, A. Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: A ‘Laude’ e o ‘Dolo’, os cimentos do

discurso da Reconquista. Del Nilo al Guadalquivir - II Estudios sobre las fuentes de la conquista Islámica.

Actas dos II (2009) e III (2010) Colóquios Internacionais sobre Fontes Não Árabes sobre a Conquista Árabe,

Granada, 1ª edição, 2013, pp. 83-96. p. 83.

Page 3: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

798

O movimento orientalista foi muito importante para a elaboração da visão do Oriente

para o mundo ocidental. Conforme conceituação da filóloga Luz Gómez García, depreendido

do sentido elaborado por Edward Said, o orientalismo é um discurso de poder que perpetua a

visão eurocêntrica da história nos interesses do domínio do Ocidente sobre aquilo que não é o

Ocidente. Originalmente correspondia a um estudo filológico dos textos das línguas asiáticas,

tornando-se logo a posteriori uma ciência da ilustração, formando a visão exótica do Oriente

que é própria da cultura europeia nos séculos XVIII ao XX. Atualmente, a noção do

orientalismo provém das lutas anticoloniais de meados do séc. XX, evidenciando uma

ideologia “do outro” em contraposição ao poder colonial representado pela identidade

europeia.3

Segundo o historiador Pierre Guichard, no séc. XVII, o conhecimento árabe na

Espanha havia praticamente desaparecido, e o país não possuía mais contato com seu passado

muçulmano,4 assim a percepção e o abarcamento deste período da história não teria sido algo

natural para os espanhóis, tampouco teria se mantido presente como parte da identidade

hispânica por um longo período. O historiador Eloy Martín Corrales considera que a

islamofobia/morofobia da Península Ibérica teria iniciado justamente com a Reconquista da

Granada em 1492, porém não pela tomada da cidade, mas pelo início da expansão castelhana

pelo litoral norte-africano que viria a coloca-la em constante embate com os interesses

otomanos, também expansionistas. As diversas batalhas que se seguiram pela possessão do

comércio e dos territórios provocariam perdas humanas e econômicas inestimáveis, levando a

Coroa Espanhola a endurecer suas políticas contra os mouriscos e finalmente expulsá-los em

1609.5

Após esse período de tensão na relação da Espanha com seu passado islâmico, o

movimento orientalista mobilizando o romantismo retomaria esse passado como parte da

história espanhola, dando início a diversas levas de arabistas – ou na época, orientalistas – que

de acordo com seu posicionamento político elaboraram uma forma de resgatar e analisar Al-

Andalus. Em uma primeira leva, viriam os arabistas liberais, distanciados do conservadorismo

e do tradicionalismo, como Pascual de Gayangos (1809-1897), até serem transpostos por

outra corrente, a tradicionalista, representada pelo arabista Francisco Javier Simonet (1827-

3 GÓMEZ GARCÍA, L. Orientalismo. In: Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009. p. 253-254.

4 GUICHARD, P. De las revueltas mudéjares al “legado andalusi”. In: Esplendor y fragilidade de al-Andalus.

Granada: Editorial Universidad de Granada, 2002. p.318. 5 MARTÍN CORRALES, E. Maurofobia/islamofobia y maurofilia/islamofilia em la España del siglo XXI.

Revista CIDOB d’Afers Internacionals, Barcelona, n. 66-67, p. 39-51. p. 40.

Page 4: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

799

1897).6 Ainda que mais calcadas na experiência local do que numa perspectiva estrangeira –

como a francesa, que se lança ao “longínquo oriente” – essas correntes de pensamento,

mesmo opostas em ideologia e que se colocavam como caminhos para se redescobrir a

história da Espanha muçulmana estavam completamente sujeitas ao Orientalismo espanhol.

O passado como Al-Andalus tornou o orientalismo espanhol mais brando em sua

iniciativa imperialista, uma vez que ele se forjou de um caráter maiormente “doméstico” que

era mais uma interpretação literária e pictórica de seu passado islâmico, produto do

romantismo, que um orientalismo científico.7 Foi aproximadamente entre o final do séc.

XVIII e o início do XIX, período em que o orientalismo experimentava o auge como uma

ciência da ilustração, que se forjou a imagem de Al-Andalus e, segundo o historiador

González Alcantud, os franceses detiveram um papel fundamental: no olhar francês, Al-

Andalus ressurgiria como a materialidade das “Mil e Uma Noites” da fantasia oriental, como

a representação terrena da beleza e da condição moral, fruto da problemática romântica da

filosofia ilustrada sobre o Oriente, e encarnada em estética e em moral. De Antoine Galland a

Voltaire, Al-Andalus seria exaltada como fonte de inspiração romântica.8 Esta busca pelo

“oriental” que estava dentro das fronteiras europeias atraía não somente europeus como

também árabes que ansiavam resgatar culturalmente a memória de um passado islâmico. Da

segunda metade do séc. XVIII ao séc. XX, há um movimento numeroso de viajantes

muçulmanos para a Península Ibérica, os quais elaboraram “diários de viagem”, o estilo

literário árabe conhecido como riḥla, que segundo o historiador espanhol Nieves Paradela

Alonso, ansiavam idealizar Al-Andalus na mesma proporção em que o presente se mostrava

desencorajador para os árabes.9

O orientalismo doméstico se evidenciaria pela nostalgia, que tanto viria por parte dos

europeus como por parte dos árabes. Nesse sentido, haveria duas consciências apresentadas

em cada grupo: a consciência romântica, que estaria ligada a raízes cristãs e europeias, e a

consciência religiosa dos árabes voltada ao islã cultural. Nesse sentido, podemos associar aos

árabes também a produção de um conhecimento dito orientalista, que obviamente não seria

europeu e ocidental, mas uma reelaboração de povos árabes do passado islâmico nas terras

ocidentais. Cabe aqui comentar a estranheza de se mobilizar o termo “orientalismo” para se

6 GUICHARD, P. Introduccion: sobre la historia de al-Andalus. In: Esplendor... Op. cit., p. 13-14.

7 GONZÁLEZ ALCANTUD, J. Al-Ándalus: pinceladas autóctonas y europeas de ilustración y romanticismo. In:

Al Ándalus y lo Andaluz: Al Ándalus en el imaginario y en la narración histórica española. Córdoba:

Almuzara (Edição Kindle), 2017. p. 586. 8 Ibid. p. 387.

9 PARADELA AFONSO, N. El otro labirinto español. Viajeros árabes a España entre el s. XVII y 1936. Madrid:

Ediciones de la UAM, 1993. p. 136. apud GONZÁLEZ ALCANTUD, J. Al-Ándalus... Op. cit., p. 595.

Page 5: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

800

referir ao continente europeu, porém ainda que de uma iniciativa propriamente não-europeia –

no caso árabe ou berbere – o que esses estudiosos buscavam na Europa era o “oriental

idealizado”, mesmo que este estivesse em seu passado. A Espanha, diferentemente de outras

nações europeias, respaldou o orientalismo dentro de suas fronteiras, por isso ela abarcaria

uma dimensão dupla e ambígua, por permitir a busca desta idealização tanto por povos

ocidentais como por povos orientais. Entretanto, ainda que houvesse um movimento

“orientalista” árabe, foi o movimento europeu que prevaleceu e se difundiu, promovido por

viajantes românticos centro-europeus, cuja influência no imaginário ocidental e até no oriental

perduraria até o final do séc. XIX; por meio de sua visão, a Espanha estaria envolta em um

ambiente “sensual” expresso pelos contrastes entre as figuras históricas dos mouros e dos

cristãos que corresponderiam à natureza própria da Espanha.10

Os relatos europeus triunfariam

como síntese explicativa do caráter nacional espanhol, enquanto que os relatos árabes não

encontrariam eco por estarem presos a uma categoria mais isolada, que é própria da questão

da consciência da decadência árabe no mundo moderno.11

O orientalismo espanhol

doméstico, portanto, depreende um sentido diferente daquele proposto por Edward Said, uma

vez que ele não manifesta uma “violência colonial”, e sim uma adequação de um contexto

marcado pela autoctonia, isto é, pela relevância do passado do local quanto a sua percepção

no mundo.12

O encontro do outro, mas que também permitia ver a si mesmo era um aspecto muito

peculiar do orientalismo espanhol, que esbarrava na sua semelhança e de certa forma

pertencimento com a história do colonizado, o mundo árabe-muçulmano. Na segunda metade

do séc. XIX, quando se contrapunham as noções de civilização e barbárie refletidas entre a

Europa cristã e o Oriente muçulmano, uma nova perspectiva orientalista abarcaria a dimensão

única do caso hispânico: o historiador espanhol Francisco Javier Simonet resgataria o

arabismo espanhol pela corrente tradicionalista, de atitude antiárabe, elaboraria uma tendência

nacionalista dos estudos orientalistas ao falar do passado de Al-Andalus referindo-se aos seus

gentios como “muçulmanos espanhóis” e não como “árabes da Espanha”. Essa mudança de

paradigma sugeria que a cultura islâmica de Al-Andalus havia sido um fenômeno estritamente

espanhol que pouco ou nada devia às contribuições orientais.13

Assim, se reconhecia o

elemento islâmico do passado andalusino, mas desvitalizava a sua relação com o Oriente,

então vilipendiado pelo imperialismo. A nacionalização do passado islâmico vinha ao

10

GONZÁLEZ ALCANTUD, J. Al-Ándalus... Op. cit., p. 598. 11

Ibid., p. 608. 12

Ibidem, p. 1239. 13

Ibidem, p. 319.

Page 6: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

801

encontro das tendências liberais e conservadoras que se faziam presentes na sociedade

hispânica do final do séc. XIX, uma vez que aceitava a herança árabe, porém a fundamentava

em elementos autóctones. Essa visão acabou por ser a majoritária entre os arabistas espanhóis

até meados do séc. XX, dominando a historiografia até os anos 70.

Da mesma maneira que se elaboraram argumentos que procuravam desvincular o

elemento árabe – e assim a relação com o Oriente Médio – do passado da Espanha, tornando

seus mouriscos e sua cultura islâmica desvinculados do restante do mundo árabe-islâmico e

puramente autóctones, outros argumentos que buscaram desvitalizar e até mesmo anular o

legado árabe e islâmico em Al-Andalus.

O primeiro historiador espanhol que se aventurou a negar a contribuição e a presença

árabe em Al-Andalus, considerando-a um fenômeno completamente hispânico, foi Ignacio

Olagüe em sua tese La Revolución Islámica en Occidente de 1974. A sua visão marcaria um

novo momento nos estudos arabistas espanhóis, em que se alegaria que não ocorreu nenhuma

invasão árabe, porém tampouco conquista ou ocupação, haveria a chegada do islã como

religião que seria englobada por hispânicos e a reestruturação política na região teria sido

ocasionada pela disputa de grupos já presentes, como visigodos, vândalos, alguns berberes,

bizantinos e bascos. Segundo Olagüe, pensar em uma invasão, até mesmo presença, domínio

ou legado árabe não passa de uma “doutrina política”, considerando que tanto o islã como a

cultura andalusina foram uma herança romana oriental, vinculando esta experiência ao

elemento visigodo e retirando qualquer contribuição árabe e até islâmica.14

A sua argumentação foi duramente refutada por historiadores como Pierre Guichard,

Dolors Bramon, entre outros, o que era de se esperar visto a longa tradição que havia

resgatado e valorizado o caráter árabe-islâmico da sociedade andalusina, mas ainda assim ela

encontra bastante sucesso na internet, tendo sido até mesmo reeditada em 2004. A

historiadora Maribel Fierro aponta que a proposta de Olagüe estava vinculada ao fascismo

espanhol: sua intenção era limitar o máximo a “intervenção estrangeira” na História da

Espanha, alegando que houve uma “espanização” do árabe e assim, a “essência espanhola”

teria se mantido intocada.15

A proposta de Olagüe, para Fierro, seria o pilar base do

nacionalismo andaluz.

Em 2006, um outro historiador chamado Emilio González Ferrín, resgatou a obra de

Olagüe e elaborou um livro chamado História General de Al Andalus, que apesar do título,

14

OLAGÜE, I. La Pretendida Invasión Árabe. In: La Revolución Islámica en Occidente. Madrid: Fundación

Juan March, 1974 (e-book). p. 7-50. 15

FIERRO, M. Al-Andalus en el pensamiento fascista español. In: MARÍN, M. (dir.). Al-Andalus/España.

Historiografías en contraste, siglos XVII-XXI, Madrid: Casa de Velázquez, 2017 (edição kindle). p. 9416.

Page 7: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

802

não pretendia ser uma narrativa da história de Al-Andalus, mas o reforço da antiga teoria de

uma cultura autóctone que floresceu e que se manteve única, a despeito das invasões

almorávidas e almôadas, dinastias berberes, indo além de Olagüe ao propor que a Europa

seria devedora de Al-Andalus – este reconfigurado como uma experiência puramente

“hispânica – por nela ter ocorrido o primeiro renascimento europeu.16

O historiador

Alejandro García SanJuan dedicou um livro chamado La Conquista Islámica de la Península

Ibérica y la Tergiversación del Passado em 2013 para rebater principalmente Ferrín, mas

também o próprio negacionismo andalusino, considerando-o uma fraude historiográfica.17

Para o historiador Luis Molina o movimento negacionista serve para diferentes linhas de

pensamento, ainda que em seu teor não haja alteração; enquanto Olagüe buscava minimizar o

componente árabe-muçulmano para atender à historiografia nacionalista espanhola, a proposta

de Ferrín, ainda que também acometida por sentimentos nacionalistas andalusistas, não se

expressa por meio de fatores políticos ou ideológicos, mas pela onda do pós-modernismo,

com sua relativização, e pelas teorias de conspiração.18

Atualmente um dos negacionistas mais polêmicos e que atrai mais atenção é o literato

arabista Serafín Fanjul, que politicamente e literariamente se assemelha ao nosso Olavo de

Carvalho: conhecido antigamente como um homem de esquerda, nos últimos anos converteu-

se em uma espécie de “paladino antiárabe”, empenhando-se na negação da identidade árabe

andalusina.19

Em seu livro Al-Andalus contra España, sua proposta consegue ir além daquela

de seus predecessores: não se trata apenas de retirar o legado árabe ou pulverizar o peso do

Islã no território ibérico, Fanjul trata de refutar quaisquer heranças árabes e islâmicas e

questionar a convivência entre muçulmanos e cristãos na Península Ibérica.20

Serafín Fanjul

atualmente representa o que há de mais feroz na negação do passado andalusino como parte

da identidade espanhola e também como parte da história e memória da Península Ibérica.

Isso se dá porque seu ataque não se direciona somente às análises de outros arabistas ou de

uma crítica às fontes, mas aos próprios arabistas, incutindo em sua proposta e em sua figura

um caráter sensacionalista. Sua argumentação acaba por ser uma caricatura, o que é de certa

forma o que o negacionismo representa para a historiografia espanhola.

16

Ibid., p. 9521. 17

SANJUAN, A. Introducción. In: La conquista islâmica de la península Ibérica y la tergiversación del

passado. Madrid: Marcial Pons Ediciones de Historia, 2013 (edição kindle). p. 161. 18

MOLINA, L. Alejandro García Sanjuán, La conquista islâmica de la península Ibérica y la tergiversación del

pasado. Marcial Pons, Madrid, 2013. Medievalismo, n. 25, 2015, p. 455-459. p. 455-456. 19

GONZÁLEZ ALCANTUD, J. Viaje pós-moderno al encuentro de Clifford Geertz, com posdata. In: Lo moro:

las lógicas de la derrota y la formación del estereotipo islâmico. Barcelona: Anthropos, 2002. p. 226. 20

FANJUL, S. Presentación. In: Al-Andalus contra España: La forja del mito. Madri: Edicciones Akal, S.A.,

2014. (Edição Kindle), p. 26.

Page 8: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

803

3. Al-Andalus no olhar de Ibn Hazm

Se há um momento em que todas as correntes de estudo sobre Al-Andalus concordam

é quanto ao esplendor do Califado Omíada de Córdoba. Enquanto uns apelam para enaltecer o

elemento árabe-islâmico por meio dele, outros o mobilizam como oriundo de um

desenvolvimento puramente hispânico – nesse caso visigodo – porém nenhum deles é capaz

de negar que se a Espanha teve um passado áureo, este o foi por meio da existência do

califado.

Segundo o historiador Pierre Guichard, a identidade andalusina se forma justamente

sob o Califado Omíada de Córdoba, uma vez que toda a produção literária sobre a presença

árabe na Península Ibérica, assim como todo o fomento científico e filosófico, se deu à

sombra do califado do séc. X.21

Após o desmantelamento do mesmo, há toda uma difusão de

sábios e de produções intelectuais que se concentravam em Córdoba e passam a ser

empregados em outras regiões, como uma forma de angariar prestígio para os reis de taifas22

,

assim como também por reinos cristãos e posteriormente pelo Califado Almôada. O projeto

cultural omíada não seria interrompido quando do seu fim, mas ressignificado conforme as

novas políticas que se fariam presentes na região.23

O papel de Ibn Hazm neste processo é, no entanto, um ponto fora da curva. Filho do

ministro do grão-vizir Al-Mansur, sua vida esteve até a juventude completamente inserida no

contexto aristocrático e político omíada, porém mesmo diante da guerra civil que duraria 22

anos – de 1009 a 1031 – e mesmo após o efetivo fim do califado omíada, ele se manteve fiel à

causa omíada, ocasionando a sua total inadequação ao regime político que se seguiu.24

Dessa

forma, Ibn Hazm não fez parte do movimento cultural de dispersão que tomou a Península

Ibérica, visto que quando se atreveu a divulgar suas posições, foi duramente perseguido, tendo

até seus escritos queimados em praça pública. Ao contrário de outros sábios e poetas que se

filiaram aos novos poderes, ele se recolheu na pequena cidade de Manta Lisham (Montija),

onde escreveu até o fim da vida em isolamento.25

21

GUICHARD, P. Introduccion: sobre la historia de al-Andalus. In: Esplendor... Op. cit., p. 15. 22

Príncipes de cada um dos trinta estados islâmicos independentes resultantes da desintegração do Califado

Omíada de Córdoba a partir de 1009. GÓMEZ GARCÍA, L. Taifa. In: Diccionario... Op. cit., p. 319.

23

AL-JABRI, M. O ressurgimento andalusi. In: Introdução à crítica da razão árabe. São Paulo: UNESP,

1999. p. 108-109. 24

Ibid., p. 54. 25

SANCHEZ RATIA, J. Quince Bagatelas en torno a Ibn Hazm y su Collar de la Paloma. In: IBN HAZM, Al-

Andalusi. El Collar de la Paloma (El Collar de la tórtola y la sombra de la nube). Tradução de Jaime Sanchez

Ratia. Madrid: Hipérion, 2009. p. XXI.

Page 9: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

804

Das suas obras, que vão desde a tratados filológicos a de jurisprudência islâmica, O

Colar da Pomba se destaca pelo caráter, a princípio, puramente literário e nostálgico. Ibn

Hazm não procurou apenas narrar o amor por meio das lembranças da aristocracia omíada de

Córdoba, ele buscou manter a memória da forma mais idealizada possível da sua cidade natal.

Quando em 1023 o mesmo iniciou a redigi-la, ainda havia esperança de reviver o período

áureo califal, assim ao mesmo tempo que a epístola representava um modelo filosófico e

teológico que ele divulgava – o do projeto cultural – ela também se configurava em uma

propaganda política do governo que ele defendia.

Um dos maiores exemplos de como o amor é ilustrado com o fundo de pano da causa

omíada é a associação das suas características e dos casos que ele levanta com a situação do

califado ou com seus governantes. Essas associações são apresentadas por meio da narrativa

de personagens com os quais ele conviveu, porém também por meio de poesias em que ele

inclui no elogio ao amor ou ao amado o elogio a um califa omíada.

Na maioria dos capítulos, a associação com a causa omíada é apresentada por meio de

poemas. Quando quer ilustrar a temática discutida, Ibn Hazm escolhia apresentar personagens

históricos, com os quais não necessariamente ele conviveu, e escrever um poema, no qual o

personagem louvado muitas vezes é um representante da dinastia omíada cordobesa.

Curiosamente também é apresentado com carinho Al-Mansur, o grão-vizir que deturpou a

legitimidade do poder omíada ao se elevar como uma espécie de regente do califa Hisham II,

por ele ser menor de idade no momento da morte do pai, mas que manteve tal posição até o

fim da vida e ainda a repassou para seus filhos, o que viria a desencadear a guerra civil

andalusina.26

Apesar do seu caráter dúbio, toda a vida de Ibn Hazm no califado foi sob o

poder e a influência de Al-Mansur, assim por mais que sua posição tenha afetado a

juridicidade do califado, em O Colar da Pomba ele aparece como um exemplo de homem

digno e amigo.27

Interessante notar que na lembrança de Al-Mansur e de seus descendentes que mais se

demonstra as relações que a família de Ibn Hazm detinha com o poder. No capítulo “Sobre

quem se enamora de alguém ao lhe ser descrito”, Ibn Hazm relatou ter tido antipatia pelo neto

de Al-Mansur sem conhece-lo apenas porque seu pai e o dele disputavam o privilégio do

sultão – aqui o grão-vizir por antonomásia28

– e por desejarem as “glórias mundanas”.29

Dessa

26

VERNET, J. El Califato. In: Al-Andalus: El Islam en España. Barcelona: Lunwerg, 1992. p. 20-21. 27

IBN HAZM, Al-andalusi. Señales del amor. In: El Collar de la Paloma (El Collar de la tórtola y la sombra de

la nube). Tradução de Jaime Sanchez Ratia. Madrid: Hipérion, 2009. p. 57. 28

Desde o séc. X no mundo oriental, o califa perderia o poder na prática com a sua submissão à autoridade de

sultões e vizires. Primeiramente esta submissão aconteceu no Califado Abássida em relação aos sultões turcos,

Page 10: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

805

forma, percebemos que era favorável à família do autor apoiar Al-Mansur a fim de satisfazer

seus próprios interesses políticos, o que curiosamente na concepção de Ibn Hazm não

desqualificava sua postura pró-omíada.

Apoiador do poder de Al-Mansur e também da legitimidade dos omíadas, a nostalgia e

a ânsia de regresso dos tempos prósperos se fazem claras em O Colar da Pomba. No capítulo

sobre “O Retraimento”, Ibn Hazm apresentaria tanto a família amirida30

como dispenderia

panegíricos aos omíadas. Sobre sua nostalgia e esperança, ele declamou:

Bendiga Deus os dias que passaram e as noites,

Nos pareciam um nenúfar que se abre com fragrância:

Suas pétalas foram os dias, beleza e esplendor,

E seu centro a noite que encurta a existência.

Nos divertimos então, exuberantes e entranhados

Vinham, sem darmos conta, os dias e se iam,

Mas depois deles chegaram outros tempos, como

Ao pacto leal segue, sem duvidar, a traição.

[...]

Não desesperes, oh alma, que nosso tempo

Talvez volte, de frente e verso, tal como

O Clemente devolveu o reino aos Omíadas.

Refugia-te nas boas faces e tenha paciência.31

Reforçando sua posição política e a crença na autenticidade do poder omíada, Ibn

Hazm incrementaria com um panegírico ao pretendente à califa omíada de então, Abu Bakr

Hisham Ibn Muhammad, que deterá o poder efetivo entre 1026 e 1031. Porém o poema,

claramente editado pelo copista32

, perde um pouco o sentido apologético por seus versos

sobreviventes conterem alusões vagas sobre a alma conhecer o mundo mesmo presa no corpo,

as benesses serem reconhecidas pelo homenageado e os rios fundirem-se nos mares, o que nos

fazem tentar entender como eles poderiam estar louvando a figura do homenageado.33

Ainda que a citação de personagens ligados ao poder nos referencie sobre a posição

política que Ibn Hazm e sua família detinham no califado, é por meio das lamentações de sua

vida presente no momento de elaboração de O Colar da Pomba que o autor contrapunha um

passado esplendoroso com seu presente calamitoso, e assim forjava a imagem de um paraíso

terrestre quando o Califado era a instituição oficial de poder em Al-Andalus. No capítulo “De

mas também foi abarcada no Califado Fatímida no séc. XI pelos vizires armênios. Assim, ainda que

nominalmente Al-Mansur fosse um grão-vizir – hayib – o seu papel era idêntico aos sultões que inauguraram

essa nova configuração de poder no mundo islâmico, em que o califa possuía um papel meramente cerimonial. 29

Ibid., p.71. 30

Epônimo dos descendentes de Al-Mansur Ibn Abi Amir (938-1002). 31

Tradução nossa. IBN HAZM, Al-andalusi. El Retraimiento. In: El Collar... Op. cit., p. 230-231. 32

O copista informa no colofão que “embelezou” algumas partes e encurtou poemas que considerou enfadonhos,

o que nos faz perder muito do sentido original da obra. ANONIMO. Colofón. In: IBN HAZM, Al-Andalusi. El

Collar... Op. cit., p. 455. 33

IBN HAZM, Al-Andalusi. El retraimiento. In: El Collar... Op. cit., p. 231-232.

Page 11: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

806

quem não se enamora senão com uma longa convivência”, Ibn Hazm retrataria sua situação ao

narrar sobre o sofrimento de haver perdido pessoas e coisas que amava:

As recordações das coisas passadas me afligem em qualquer vida que retomo e sou um

defunto das penas que se conta entre os vivos, e um sepulto de tristeza, que anda por esse

mundo entre gentes de carne e osso.34

A vida aristocrática corbobesa omíada seria sempre a referência de um mundo ideal

para Ibn Hazm e o amor por ele narrado tem peso e carga afetiva graças a essa relação

pesarosa que o autor possuía com a perda de seus privilégios. No capítulo “Sobre a

fidelidade”, Ibn Hazm demonstra abertamente essa relação do sentimento amoroso com sua

posição política ao apresentar como exemplo de fidelidade amorosa a que ele resguarda diante

de sua vida desmoronada:

De minha fidelidade me orgulho em um longo35

poema em que relaciono as calamidades que

me tem atormentado e conto as estadias, andanças e vagabundeios a que de improviso me

forçou a sorte. Assim começa:

Que se foi e se foi e com ele a bela paciência,

Mas as lágrimas proclamam o que o peito esconde,

Um corpo fatigado, mas um coração enternecido.

Quando sobreveio a separação, ela foi dolorosa.

Nunca se assentou em nenhuma casa ou pátria,

Nem chegou jamais a aquecer seu próprio leito.

Como essas nuvens vaporosas que, espaçosas,

O vento não consegue empurrar para outros horizontes,

Ou como a ideia de um único Deus, que se a introduz

Na alma de um herege, se entedia e a rechaça.

Ou uma estrela que, em seu périplo, corta o firmamento

E que sua rápida marcha obriga, após curtos ocasos

A novas alvoradas [...]36

Penso que se ela quisesse recompensá-lo ou ajuda-lo

Jogaria sobre ele uma torrente de lágrimas, que o seguisse.37

Na poesia sobrevivente, o lamento de Ibn Hazm não soa com uma lamentação

amorosa, mas social. Ainda que a edição provável do copista possa ter ocultado à nossa

apreciação algum objeto amoroso, o poema resplandece, na medida do possível, o apego à sua

ideologia a despeito dos revezes de sua vida. A seguir do poema, para reforçar que sua

menção à fidelidade é política e não amorosa, vem quando ele menciona da perseguição que

sofreu por defender sua posição política no mundo em que vivia. Ele disse:

Também me vanglorio da fidelidade em uma longa qasida38

minha que trago aqui a cópia,

por mais que seja, em grande parte, alheia ao teor deste livro. [grifo nosso] A razão para sua

composição foi a seguinte: alguns me atacaram, os que havia acabado de se vangloriar, me

jogaram na cara várias reprovações mal-intencionadas e me acusaram de sustentar com uma

34

Tradução nossa. Ibid., p. 83. 35

Poema também editado, pois o autor diz ser longo, mas em relação a outros apresentados, é bem curto. 36

O tradutor informa que nesta parte ocorreu a edição do copista. 37

Tradução nossa. IBN HAZM, Al-Andalusi. Sobre la fidelidad. In: El Collar... Op. cit., p. 244-245. 38

Estilo poético árabe de origem pré-islâmica.

Page 12: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

807

dialética doutrinas fúteis, por sua incapacidade de se fazer oposição aos argumentos por mim

avançados, fazendo triunfar a verdade e quem as defendem, e por pura inveja que tinham por

mim.39

As referências às perseguições que sofrera em O Colar da Pomba leva ao arabista

Sanchéz Ratia a considerar que a mesma foi elaborada em uma data posterior à oficialmente

aceita, uma vez que as polêmicas teriam sido uma constante na vida do autor após a efetiva

destituição do Califado Omíada de Córdoba.40

Todavia, considerar que elas pudessem estar

presentes ainda durante as disputas pela nova hegemonia de poder não soa deslocado, uma

vez que a voz de Ibn Hazm cada vez mais soaria inadequada em um mundo que não mais

reconhecia a validade do califa omíada e já se dividia em reinos de taifas.

A ênfase do autor em se desculpar por levar tão explicitamente o tema político em seu

capítulo também é digna de nota, uma vez que é uma das poucas partes em que ele é

categórico. De toda forma, o capítulo sobre a fidelidade é extremamente vinculado à postura

política do autor, o que corrobora que sua argumentação filosófica muito mais se associa ao

seu papel como membro destituído da aristocracia cordobesa do que como um relato

meramente contemplativo e teórico sobre o amor.

Porém, de todos os relatos que reconstroem o imaginário de Al-Andalus sob o poder

omíada, o mais significativo é quando o autor relembra o amor não correspondido por uma

escrava cantora em Córdoba. O relato, que é bem extenso, narra a beleza e a elegância desta

escrava durante o domínio de Al-Mansur até o momento que o grão-vizir morre e em poucos

anos seguem-se os embates pelo poderio da cidade, em que a família de Ibn Hazm foi

desterrada, seu pai assassinado e a cidade califal – Madinat Al-Zahra – e a cidade viziral –

Madinat Al-Zahira – foram destruídas. No meio desta destruição, Ibn Hazm reencontraria a

escrava, porém não a reconheceria. Ela teria perdido toda a sua beleza diante de tanto

desgosto.41

A associação indireta é muito pertinente, enquanto gozava do esplendor califal, a

escrava e Córdoba eram resplandecentes, quando devastadas pelo avanço dos berberes e dos

usurpadores do califado, Córdoba e a escrava encontravam-se em ruínas.

Não permanecia nela senão a parte que se recorda o que fora o todo, essa pitada que dá uma

ideia do que outrora fora um conjunto, na razão da pouca atenção que havia prestado a si

mesma, ou por ter-lhe faltado o cuidado que havia desfrutado durante os dias em que os

ventos sopravam a nosso favor [grifo nosso] e ela gozava de nossa grande proteção, e

também por ter derrotado suas energias nas suas saídas de casa, a realizar tarefas próprias de

sua condição, das que antes era resguardada e cujo cumprimento era eximida.42

39

Tradução nossa. IBN HAZM, Al-Andalusi. Sobre la fidelidad. In: El Collar... Op. cit., p. 245-247. 40

SÁNCHEZ RATIA, J. Nota de rodapé. In: IBN HAZM, Al-Andalusi. El Collar... Op. cit., p. 247. 41

IBN HAZM, Al-Andalusi. El Consuelo del olvido. In: El Collar... Op. cit., p.325-333. 42

Tradução nossa. Ibid., p. 333.

Page 13: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

808

As memórias de Ibn Hazm podem não descrever minuciosamente Al-Andalus, mas

dão ideia do como essa região lhe era valiosa e como o poder omíada se configurava no

poderio legítimo para ele. Ao mencionar os poetas e sábios de seu passado, ele reforça a

imagem de uma sociedade digna de todo mérito e menção, que detinha uma cultura própria,

valores elevados e um governo que correspondia em grandeza àquilo que dominava. A

valorização do local, daquilo que fazia de Ibn Hazm e seu pertencimento cultural único e

inestimável vem da escolha em ilustrar o amor com histórias que pertenciam ao imaginário de

sua época e lugar, isto é, de Al-Andalus. A base de seus relatos são personagens que estavam

completamente entranhados nas relações culturais, sociais, políticas e religiosas andalusinas,

por isso que o resgate de sua memória também é o resgate do passado de Al-Andalus como

califado. O mesmo defendeu sua maneira de narrar o amor quanto à seleção dos personagens

das anedotas:

Me forcei neste livro a me ater a permanecer nas fronteiras que me colocaste e me limitar a

dar por bom aquilo que vi ou tenho por certo, por ter recebido de gente de confiança.

Dispensa-me de contos de beduínos e de antigos, pois nossos modos não são os seus e as

histórias sobre eles correm livremente. Além disso, não é meu estilo fatigar outras costas que

não as minhas, nem tampouco brilhar com joias emprestadas.43

Essa referência à escolha de Ibn Hazm em se ater a contar a história de Al-Andalus é

algo inovador para a época. Segundo Sánchez Ratia, nos primeiros séculos de existência

andalusina, tudo que vinha do Oriente era sobrevalorizado, aqueles que iam ao Levante

voltavam como sábios e eram venerados.44

A escolha de Ibn Hazm em valorizar o local reflete

mais uma vez o projeto cultural do Califado Omíada de Córdoba, que a partir de Abd Al-

Rahman III, o primeiro autointitulado califa, viria a fomentar uma produção cultural de

referência que rivalizaria com aquela produzida em Bagdá, e acabaria por elevar como capital

intelectual do mundo islâmico a cidade de Córdoba.45

Ibn Hazm em O Colar da Pomba mais

uma vez se alçava como o maior representante do legado omíada em Al-Andalus.

4. Conclusão

A compreensão do que Al-Andalus foi e representou para o mundo medieval e

atualmente para o mundo contemporâneo espanhol e árabe ainda é uma página aberta na

historiografia arabista. As fontes passadas estão carregadas de pensamentos ideológicos que

visam assegurar a legitimidade de seus discursos e muitas vezes idealizam seu contexto como

forma de assegurar a coerência de seus postulados. Isso é o que ocorre com Ibn Hazm: a sua

43

Tradução nossa. Ibidem, p. 13. 44

SÁNCHEZ RATIA, J. Nota de rodapé. In: IBN HAZM, Al-Andalusi. El Collar... Op. cit., p. 13. 45

AL-JABRI, M. O ressurgimento andalusi. In: Introdução... Op. cit., p. 108.

Page 14: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

809

necessidade de se fazer valer a coerência e a perenidade do Califado Omíada de Córdoba

permeia seus textos, como permeia sua epístola O Colar da Pomba, tornando esse passado o

ápice da civilidade e por mérito a governança ideal para as terras andalusinas.

A Al-Andalus vislumbrada nas anedotas e poesias de Ibn Hazm é uma das realidades

possíveis de se resgatar do passado da presença islâmica na Península Ibérica, porém como

qualquer fonte, ela está sujeita a críticas e a uma apreciação analítica. Ao se debruçar sobre o

imaginário elaborado por Ibn Hazm, antes de divisarmos uma sociedade, encontramos uma

ideologia, que se faz presente quando na verdade o amor que protagonizaria o cerne da

questão trabalhada por sua epístola. Neste artigo não procuramos analisar o sentimento

amoroso apresentado por Ibn Hazm, mas como por trás dele vemos a sua tentativa de associar

ao Califado Omíada os valores excelsos do amor verdadeiro.

A argumentação de Ibn Hazm retrata o passado andalusino, mas o faz de maneira

indireta: quando demonstra a ideologia de Estado a qual pertencia com seu raciocínio

filosófico e teológico, devedor do projeto cultural omíada; e ao definir o amor verdadeiro

segundo os valores islâmicos, os quais também eram os valores religiosos da sua sociedade.

Temos em Ibn Hazm um representante deste passado, não por tê-lo descrito minuciosamente,

mas por tê-lo transposto na expressão e concepção sobre o amor.

5. Bibliografia:

Fonte:

IBN HAZM al-Andalusi. El Collar de la Paloma. El Collar de la tórtola y la sombra de la

nube. Tradução de Jaime Sánchez Ratia. Madrid: Hiperión, 2009.

Referências Bibliográficas:

AL-JABRI, M. Introdução à crítica da razão árabe. São Paulo: UNESP, 1999.

FANJUL, S. Al-Andalus contra España: La forja del mito. Madri: Edicciones Akal, S.A.,

2014. (Edição Kindle).

FIERRO, M. Al-Andalus en el pensamiento fascista español. In: MARÍN, M. (dir.). Al-

Andalus/España. Historiografías en contraste, siglos XVII-XXI, Madrid: Casa de Velázquez,

2017 (edição kindle).

GÓMEZ GARCÍA, L. Diccionario de islam e islamismo. Madrid: Espasa, 2009.

GONZÁLEZ ALCANTUD, J. Al Ándalus y lo Andaluz: Al Ándalus en el imaginario y en la

narración histórica española. Córdoba: Almuzara (Edição Kindle), 2017.

________________________. Lo moro: las lógicas de la derrota y la formación del

estereotipo islâmico. Barcelona: Anthropos, 2002.

GUICHARD, P. Esplendor y fragilidad de al-Andalus. Tradução de Purificación de la

Torre. Granada: El Legado Andalusi, 2015.

MARTÍN CORRALES, E. Maurofobia/islamofobia y maurofilia/islamofilia em la España

del siglo XXI. Revista CIDOB d’Afers Internacionals, Barcelona, n. 66-67, p. 39-51.

Page 15: O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) · 796 O mito de Al-Andalus pelo olhar de Ibn Hazm (séc. XI) Celia Daniele Moreira de Souza1 Resumo: Reconstruir o passado

810

OLAGÜE, I. La Revolución Islámica en Occidente. Madrid: Fundación Juan March, 1974

(e-book).

REI, A. Da Crónica Moçárabe de 754 à Crónica General de Afonso X: A ‘Laude’ e o ‘Dolo’,

os cimentos do discurso da Reconquista. Del Nilo al Guadalquivir - II Estudios sobre las

fuentes de la conquista Islámica. Actas dos II (2009) e III (2010) Colóquios Internacionais

sobre Fontes Não Árabes sobre a Conquista Árabe, Granada, 1ª edição, 2013, pp. 83-96.

SÁNCHEZ RATIA, J. Quince bagatelas en torno a Ibn Hazm. In: IBN HAZM al-andalusi. El

Collar de la Paloma. El Collar de la tórtola y la sombra de la nube. Tradução de Jaime

Sánchez Ratia. Madrid: Hiperión, 2009. p. VII-XL.

SANJUAN, A. La conquista islâmica de la península Ibérica y la tergiversación del

passado. Madrid: Marcial Pons Ediciones de Historia, 2013 (edição kindle).

VERNET, J. Al-Andalus: El Islam en España. Barcelona: Lunwerg, 1992.