O MITO E A HISTRIA: LE GRAZIE DE UGO FOSCOLO · O tema da composição, ... a perfeição das...

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  • SOB O SIGNO DAS GRAAS: MITO E HISTRIA EM LE GRAZIE DE UGO

    FOSCOLO

    Karine Simoni (Doutoranda, UFSC)

    [email protected]

    RESUMO: O artigo tem como objetivo mostrar o neoclassicismo de Ugo Foscolo

    mediante Le Grazie, composio potica inconclusa de tema mitolgico, elaborada em

    vrias etapas entre os anos de 1802 e 1822. Alm de apresentar as razes biogrficas para a

    composio do poema, o estudo discute como Foscolo utilizou a mitologia e a poesia como

    alternativas para difundir a civilitas contra a angstia e a incerteza do presente ps-

    Revoluo Francesa.

    Palavras-chave: Ugo Foscolo, Le Grazie, Neoclassicismo, Revoluo Francesa

    Refletir sobre a literatura na perspectiva da histria significa j de incio partilhar do

    pressuposto de que existe uma relao entre ambas: embora cada uma apresente as suas

    especificidades, tm em comum a caracterstica de registrar acontecimentos. Essa faculdade

    foi, durante muito tempo, uma relao no-problemtica na busca pelo objetivo de

    identificar e relatar o modo como os Homens concebem a si prprios e ao mundo que os

    rodeia. Porm, ao longo do sculo XVIII, a histria reivindicou para si o estatuto de

    cientificidade e de verdade. A literatura passou a ser vista como produto da imaginao e da

    fantasia do autor e, apesar de apresentar uma grande possibilidade de interpretar a

    mailto:[email protected]

  • realidade, durante todo o sculo XIX a histria se esquivou de um dilogo com essa

    disciplina.

    Felizmente, a reviso dos paradigmas de anlise da realidade, o fim da crena em

    verdades absolutas, a intertextualidade e a interdisciplinaridade que marcaram os debates ao

    longo do sculo XX e a transio para o sculo XXI trouxeram novas possibilidades para o

    estudo dessas disciplinas: o parentesco entre ambas, mesmo que trabalhem com abordagens

    diferentes, permanece no centro das discusses. Isso no significa que seja fcil percorrer

    os lugares reservados a esses saberes sem correr o risco de encontrar a ausncia de um

    ambiente especfico a cada um deles (SOUZA, 2002, p. 84-85).

    Tanto o crtico literrio como o historiador precisam assumir os problemas

    epistemolgicos e ter presente que a narrativa histrica difere da literria justamente pelo

    modo como se aproxima do real: a meta do historiador pesquisar e selecionar dados,

    estabelecer relaes entre as evidncias do que poderia ter existido, e construir um discurso

    que apresente solues para os questionamentos que se aproxime ao mximo do

    acontecido. J a liberdade de criao do discurso literrio no tem limites, inventa

    personagens e fatos na elaborao da sua trama, e no tem nenhum compromisso em

    aproximar o acontecido do real. Mas, em relao literatura, no tarefa fcil para o

    historiador aproximar-se da obra de fico: para faz-lo preciso estar atento, a fim de no

    considerar o texto literrio como um mero reflexo da sociedade.

    Dadas as limitaes de espao, no o objetivo desse estudo aprofundar o assunto1.

    Entretanto, a partir dos pressupostos apresentados, pretende-se aqui analisar o poema Le

    Grazie, de Ugo Foscolo (Zante/Grcia, 06 de fevereiro de 1778 - Londres, 10 de setembro

    de 1827), destacando como o autor utilizou-se da mitologia e da poesia em busca de uma

  • alternativa para difundir a civilitas contra a angstia e a incerteza do presente ps-

    Revoluo Francesa. Na primeira parte, visto que Foscolo um autor pouco conhecido no

    Brasil, ser realizada uma breve apresentao do autor e da obra em questo, para na

    seqncia discutir como a escrita potica se relaciona com o perodo e como se estabelece

    essa relao de complementaridade. Da mesma forma que a crtica literria atual reconhece

    que a compreenso da obra est vinculada tambm ao contexto, pretende-se seguir a anlise

    considerando o texto literrio no como fonte ou ilustrao para a construo do

    conhecimento histrico, mas como uma possibilidade de perceber as vicissitudes da poca

    em que foi escrito.

    Ugo Foscolo: um intelectual talo-grego na Itlia dos franceses

    Ugo Foscolo um dos autores mais significativos do Oitocentos Italiano. Ainda

    pouco conhecido no Brasil, em parte devido falta de tradues das suas obras, o autor se

    tornou clebre na Itlia tanto por sua vasta e importante obra como por ter levado uma vida

    tipicamente romntica e desregrada. Cronologicamente circulou num perodo bastante

    peculiar, composto por uma srie de eventos que sacudiam a Europa naquele momento,

    como a Revoluo Francesa.

    O autor aprendeu o grego como lngua materna, e o italiano com cerca de dez anos,

    quando, com a morte do pai, mudou-se para Veneza. Ainda muito jovem comeou a

    freqentar os sales literrios de homens e mulheres influentes, e tambm a ter contato com

    as idias e as discusses que giravam em torno da Revoluo e do governo napolenico.

  • Inicialmente Foscolo acolheu com bastante entusiasmo os princpios da Revoluo, e

    quando Napoleo tomou a Itlia em 1796, posicionou-se a favor do imperador francs, por

    acreditar que s um lder forte seria capaz de unificar a pennsula. No entanto, em 1797,

    Napoleo assinou o Tratado de Campofrmio, pelo qual Veneza seria cedida ustria.

    Esse acontecimento provocou uma profunda desiluso em Foscolo, que passou a ver

    Napoleo como um traidor. A partir de ento, iniciou uma longa e contnua vida de exlio:

    passou por vrias cidades italianas, pela Frana, Sua e Inglaterra, at morrer em Londres.

    Na vida literria, Foscolo conhecido principalmente pelo romance epistolar Le

    ultime Lettere di Jacopo Ortis [As ltimas cartas de Jacopo Ortis], que os crticos afirmam

    ser similar a Os sofrimentos do jovem Werther de Goethe. Alm do romance, comps peas

    de teatro, odes e sonetos de alto valor literrio e artstico, escreveu um imenso epistolrio e

    traduziu, entre outros, A Sentimental Journey, de Sterne. Alm disso, foi um perspicaz

    terico da literatura, tendo escrito vrios ensaios sobre os mais diferentes assuntos: da

    religio poltica, dos costumes histria, da literatura traduo.

    Le Grazie: a poesia entre o passado mtico e a histria do presente

    Le Grazie insere-se num momento muito particular da vida de Foscolo, que escreveu

    a maior parte da poesia quando morou em Florena, de agosto de 1812 a novembro de

    1813. Teria se dirigido cidade porque, tomado por uma febre reumtica inconstante,

    manifestou a vontade de readquirir a sade na Toscana (FOSCOLO, 1954, p. 77). A

    considerar a vasta produo literria desse perodo, no exagero afirmar que foi um dos

  • mais profcuos da sua vida de literato: voltou a escrever poesias, retomou a traduo de

    Homero e de Sterne, comps quase que totalmente a tragdia La Ricciarda.

    O tema da composio, como o prprio ttulo sugere, mitolgico e didasclico, ou

    seja, com inteno didtica, que em Foscolo pode ser traduzida como patritica

    (VERDENELLI, 2007, p. 307). As Graas, nome latino que designa as Crites gregas,

    eram deusas da alegria e da beleza, e geralmente estavam associadas a Eros e Afrodite. Em

    algumas verses apareciam tambm como deusas da dana, dos modos, da fertilidade e da

    amizade. Com as Musas, cantavam e danavam para os deuses do Olmpio; presidiam os

    banquetes e eventos sociais. Eram conhecidas principalmente como Tlia (a que traz

    flores), Aglaia (brilho e esplendor) e Eufrsina (jbilo e alegria). Hesodo catalogou-as

    como filhas de Zeus e Hera, em algumas verses, e de Zeus e Eurinome, filha do Oceano,

    em outras (MONDADORI, 1997, p. 183).

  • As Graas em trs momentos: Annimo (sc. I, Pompia), Botticelli (Primavera, detalhe, 1477-1482?, Galleria degli Uffizi, Florena) e Rubens (As trs Graas, 1638?, Museu do Prado, Madri). Nas artes, em geral, so representadas como jovens virgens que danam em crculo, cuja forma fsica varia de acordo com o ideal de beleza de cada poca. Em comum nessas trs obras so o entrelaar dos braos e a colocao das figuras - duas voltadas para uma direo e a terceira para a direo oposta. As Graas de Pompia e as de Rubens esto nuas, enquanto o renascentista Botticcelli usou o recurso de um vu muito sutil para dar mais leveza cena.

    Temas e personagens clssicos so muito presentes nas obras de Foscolo. No apenas

    representaes ligadas s grandes figuras da tradio helnica, mas deusas e heris, ninfas e

    semideuses povoam o imaginrio das odes e dos sonetos, sejam eles de cunho biogrfico ou

    ligados a contedos histricos. Bigrafos e crticos explicam a preferncia pelo modelo

    clssico a partir do elemento biogrfico da origem, a ilha grega Zante2. Entretanto,

    importante destacar tambm que o interesse pelo perodo clssico fora retomado pelos

    Iluministas e acelerou-se com a consolidao da Revoluo Francesa e principalmente com

    o governo napolenico. O prprio Napoleo teria buscado inspirao na arte e nos

    personagens da Roma Antiga como propaganda do seu governo. As mudanas polticas que

    levaram ruptura com o passado prximo abalaram tambm o barroco e o rococ,

    representantes da concepo esttica desse passado. Em lugar dos temas religiosos, surgiu

  • na arte o gosto pelo historicismo, pelos temas do cotidiano e pela mitologia clssica

    (CESERANI, 1999, p. 687). Alm disso, a descoberta de Pompia e Herculano

    intensificaram o interesse pela temtica grega e romana nas artes figurativas e na literatura.

    Le Grazie o poema de Foscolo mais direcionado ao mundo grego antigo.

    subdividido em trs hinos, dedicados respectivamente a Vnus, Vesta e Palade, que

    celebram as Graas, divindades que tiveram a misso de suscitar nos homens sentimentos

    puros e elevados, dando incio ao processo de civilizao. Foscolo dedicou o poema a

    Antonio Canova (1813-1816), o maior representante italiano da esttica neo-classicista3. O

    escritor de Zacinto entendeu prestar uma homenagem esttua em mrmore que Canova

    estava esculpindo em 1813 sob encomenda para Josefina de Beauharnais, ex-esposa de

    Napoleo.

    A escultura de Canova celebrava um tema particularmente atraente aos artistas e

    tericos do Neoclassicismo: as trs Graas. Porm, a novidade de Canova em relao aos

    demais escultores foi a de colocar Aglaia, Tlia e Eufrsina abraadas de modo frontal,

    diferentemente da poca clssica, na qual uma das figuras era sempre representada de

    costas para o observador.

  • Le tre Grazie. Canova, Museu Ermitage de Petersburgo. O abrao das trs Graas e a posio das pernas foram colocadas de modo a causar um efeito de movimento circular, enquanto a expresso facial d a sensao de delicadeza a toda a obra.

    A obra de Canova teve um grande sucesso: quando foi inaugurada, Stendhal disse que

    o escultor havia criado um novo tipo de beleza - a perfeio das formas e o ideal de beleza

    eterna (PAVANELLO, 2002, p.23). Da talvez o motivo pelo qual Foscolo o considerou o

    mais ilustre renovador do mito clssico, embora no haja indcios de que tenha visto

    pessoalmente a escultura que o inspirou.

    Na obra de Foscolo, encontramos trs partes desiguais em forma de hinos: o primeiro,

    dedicado a Vnus, composto de 299 versos, o segundo, dedicado a Vesta, apresenta 350

    versos e o terceiro, dedicado a Palade, tem apenas 24.

    Aps dedicar a poesia a Canova, inicia-se o primeiro hino, que descreve o nascimento

    das Graas do mar Inio, juntamente com Vnus:

    Alle Grazie immortali

    le tre di Citerea figlie gemelle

    sacro il tempio, e son dAmor sorelle;

  • nate il d che a mortali

    belt ingegno virt concesse Giove,

    onde perpetue sempre e sempre nuove

    le tre doti celesti

    e pi lodate e pi modeste ognora

    le Dee serbino al mondo. Entra ed adora4. (FOSCOLO, 1985, p. 1048)

    O evento comoveu os Homens, ainda em estado ferino, e os conduziu moderao

    dos instintos animalescos. Quando Vnus volta ao Olimpo, deixa as filhas sobre a terra para

    que tornem a estadia terrena mais agradvel aos mortais, convidando-os prtica da paz, do

    amor, da poesia e da harmonia, que teria originado as belas-artes: a pintura, a escultura e a

    arquitetura.

    V-se no primeiro verso uma das principais preocupaes do poeta na composio: o

    culto s Graas, que teria se iniciado na Becia, onde eram consideradas deusas da

    vegetao. Mas elas teriam sido abandonadas pelos Homens, e por isso ele planeja dedicar,

    sobre o monte de Bellosguardo, nos arredores de Florena, um templo exclusivo para o

    culto a essas divindades, j que na Antiguidade eram veneradas junto deusa do amor.

    Florena oferece a Foscolo a paisagem, o idioma, a moradia serena: transfigura-se

    facilmente na terra natal Grcia. Da mesma forma, o Mar Inio, que assiste ao nascimento

    de Vnus e das Graas, volta-se ao poeta como uma lembrana autobiogrfica da nativa

    ilha Zante.

    No segundo hino, dedicado a Vesta, smbolo das virtudes humanas, trs mulheres

    amadas pelo poeta - Eleonora Nencini, Cornelia Martinetti e Maddalena Bignami -

    participam de um rito como sacerdotisas no templo das Graas. As trs mulheres, notveis

    pela sua beleza, so concebidas como a encarnao dos dons que as trs filhas de Vnus

  • dispensaram aos Homens, e simbolizam respectivamente as artes da msica, da poesia e da

    dana. Assim, a primeira sacerdotisa, Nencini, oferece s Graas o som da harpa, secreta

    harmonia que rege o mundo. A segunda sacerdotisa, Martinetti, oferece s deusas um favo,

    smbolo da eloqncia e da poesia, a amabilidade da palavra que torna os homens

    inteligentes. Nesse momento, Foscolo apresenta um panorama da histria da literatura

    grega e italiana, e narra como, atravs das Musas, as Graas originaram a poesia grega e

    como, expulsas pelos Otomanos, passaram da Grcia para a Itlia dividindo-se em duas

    partes: uma delas teria atingido o vale do rio P e alimentou a poesia de Boiardo, Ariosto e

    Tasso; a outra, atingindo o mar Tireno, alcanou a Toscana e inspirou a poesia de Dante,

    Petrarca e Boccaccio. Por fim, a terceira sacerdotisa, Bignami, dana diante do altar das

    Graas e consagra a elas um gracioso cisne para agradecer o retorno do marido de uma

    campanha blica. Tambm nesse segundo hino h de se considerar o elemento biogrfico

    de Foscolo: o ritual e as ofertas que as sacerdotisas dedicam s Graas, como divindades

    que a sociedade atual deve venerar, no apenas um refinado artifcio neoclssico de

    carter alegrico, mas uma homenagem de Foscolo vitalidade dos mitos pr-cristos.

    (DEI, 1972, p. 357)

    O cenrio do terceiro hino a mtica ilha de Atlntida, totalmente inacessvel aos

    mortais, refgio de Palade quando o instinto ferino dos Homens desencadeia vcios e

    guerras. O poeta imagina que as Graas, turbadas pela potncia das paixes humanas, so

    levadas a esse mundo de harmonia para que Palade tea um vu incorruptvel que as proteja

    das atitudes dos mortais. Com o vu, as Graas podem retornar ao convvio humano e

    cumprir a sua misso de civilizar os homens. O mundo de Atlntida silencioso, e essa

    quietude o smbolo da moderao que leva harmonia. Para alcan-la, o Homem deve

  • apoiar-se em valores como a juventude com as suas esperanas, o amor espiritual, o afeto

    filial, a ternura materna, a hospitalidade. A mudana de cena entre os trs hinos representa a

    passagem das Graas da Grcia, onde nasce a primeira forma de civilizao, Itlia, que

    recolhe a herana da cultura clssica.

    Grosso modo, esses so os assuntos de cada hino. A composio foi interrompida

    vrias vezes: alguns versos foram publicados na Biblioteca Italiana em 1818 e em 1822,

    mas a primeira edio integral veio a pblico postumamente, em 1848. Pelo fato de nunca

    ter sido terminada e apenas com a morte de Foscolo o texto integral ter sido entregue aos

    editores, a obra que hoje lemos construo de crticos. Mas, apesar de inconclusa, no se

    trata de uma obra fragmentada, como se acreditava at o incio do Novecentos; Le Grazie

    hoje aceita pela crtica como uma obra aberta. Para Francesco Flora, citado por Walter

    Binni,

    Encontrar a ordem que o poeta poderia propor maldade: eu diria que tem menos

    importncia daquilo que se acredita. O que faz a unidade das Grazie o tom da arte: ,

    se fosse possvel diz-lo, a graciosidade... E a sutil indstria de uma mais rigorosa

    edio das Graas, ser no indulgir a todas as vrias redaes foscolianas, sem vs

    solicitudes pela ltima inteno do poeta, que inatingvel; e se fosse conhecida nos

    privaria talvez de muita poesia que ele sentiu e que uma busca de ritmo externo teria

    apagado. (BINNI, 1982, p. 273)

    O prprio Foscolo advertiu que o poema tem estilo entre o pico e o lrico e que o

    seu fim didtico. Examinando os projetos de Foscolo nos quais ele buscou juntar os

    vrios fragmentos de modo a resultar num desenho orgnico e num discurso coerente,

    pode-se advertir essa exigncia didtica. Mas qual seria o objetivo de Foscolo, isso ser

    apresentado e discutido na prxima e ltima parte do artigo.

  • Le Grazie: alegoria e poesia didtica

    Durante boa parte do sculo XIX, Le Grazie foi considerada uma poesia inferior, seja

    pelo tema, seja pelo fato de no ter sido concluda. Para os mentores do Risorgimento5 a

    composio mais importante de Foscolo era o Dei Sepolcri, poesia em que o domnio

    napolenico na pennsula era afrontado diretamente. Alm disso, Francesco De Sanctis, o

    maior crtico e historiador literrio italiano do Oitocentos, avaliou negativamente o poeta,

    que nessa obra teria se apresentado com todo o aparato da erudio, em uma forma finita,

    da ltima perfeio: se v o artista consumado; existe apenas o poeta (DE SANCTIS,

    1971, p. 179). No Novecentos a crtica retomou e reavaliou a poesia, e crticos como Flora

    (1940) sustentaram que a obra seria o pice da poesia foscoliana, e at mesmo do

    Oitocentos italiano.

    A avaliao de Flora apresenta Le Grazie como uma espcie de histria potica do ser

    humano rumo civilizao, representada pela presena do mito, que para o crtico

    caracterizaria o gosto tipicamente neoclssico. Em outras palavras, essa poesia incitaria

    estados de nimo, figuras femininas amadas, fantasias e paisagens valiosas ao poeta, cada

    tema sendo cantado com a mesma elegncia de estilo, de lngua e de verso. A inspirao

    central, o mito das Graas que, nascidas do mar, difundem com o seu sorriso a civilidade

    das artes e transformam o ser bestial em ser humano, seria uma alternativa ao triste

    presente.

    Naturalmente, cada poca faz a sua leitura da obra literria, e a crtica mais atual v

    com reservas o termo classicismo em Foscolo. Primeiramente porque escrever a histria da

    literatura como histria das escolas literrias hoje questionado e bastante problemtico,

  • visto que o ps-modernismo tem se preocupado justamente com a individualidade do autor,

    mesmo que esta possa se inserir num determinado movimento ou escola literria. Alm

    disso, para boa parte da crtica Foscolo considerado um autor pr-romntico ou

    romntico, dada a passionalidade com a qual confronta vrias das suas obras, alm de ter

    levado uma vida inquieta e desregrada, tipicamente romntica. Especificamente em Le

    Grazie, Foscolo demonstra o seu mundo afetivo, exprimindo os seus sentimentos e paixes

    em detrimento da anlise fria da simples razo louvada pelo sculo das Luzes. Nessa poesia

    h tambm referncia a Vico, do qual Foscolo tomou a concepo da histria como mestre

    da vida. Assim, para o crtico Marcello Verdenelli, Foscolo um autor moderno, j que ao

    estado de profunda crise da sociedade, da poltica, do tempo, contraps a nica salvao

    possvel, a da literatura, ou melhor, a de uma nova concepo literria mais em sintonia

    com as problemticas dos novos tempos (VERDENELLI, 2007, p. 6). Ou seja, Foscolo

    seria um autor moderno, e essa modernidade estaria no fato dele no mais defender o

    classicismo puro e simplesmente esttico, que se fundamentava nos ideais da harmonia e da

    beleza, e via na arte clssica a nica forma de beleza, mas por sentir a exigncia de

    reescrever o estatuto e a funo da literatura na sua instncia poltico-civil; uma idia de

    literatura que no poderia mais prescindir da moral, da poltica, da histria, da filosofia.

    Com efeito, a crtica atual tende a aceitar a idia de que o mito no simplesmente

    reinvocado por Foscolo nas formas originais do mundo clssico, mas recriado e

    atualizado artisticamente pelo poeta, a ponto de sobrepor-se aos acontecimentos histricos.

    Foscolo retoma o mito por acreditar no seu valor emblemtico, sinal de verdade profunda,

    capaz de guardar e transmitir valores universais. Pense-se por exemplo nas Graas que

    subtraem os mortais do estado de barbrie, trazendo-os civilidade atravs das belas-artes.

  • Foscolo sem dvida tinha autoridade para transitar pelos dois mundos - o grego e o

    italiano - e graas a essa fuso pde abraar o passado e o presente e lanar-se tambm em

    direo ao que estaria por vir, no de forma proftica, mas como cidado-intelectual que

    refletia sobre a histria universal e sobre os problemas do seu tempo. Como ele prprio

    indicou na dissertao Di un antico inno alle Grazie, publicada em ingls durante o perodo

    do exlio na Inglaterra, para se entender o valor simblico dos mitos preciso considerar o

    significado das allegorie:

    As alegorias, como que parecem coisas ridculas aos crticos metafsicos, foram para os

    artistas os materiais de trabalho mais belos e eficazes; e o desprezo no qual caram

    entre ns deriva do uso insensato que lhes foi feito, e do mau-gosto dos inventores

    modernos. Uma alegoria no que uma idia abstrata personificada, a qual para agir

    mais rapidamente e agilmente sobre os sentidos e sobre a imaginao se une mente

    com maior prontido. Aos poetas e artistas da Grcia, Venere no era outra que a

    representao personificada da beleza ideal (FOSCOLO, 1985, p.1097-8).

    A partir da prpria constatao de Foscolo sobre a alegoria, Le Grazie pode ser

    pensada como uma grande alegoria ou, melhor, uma juno de vrias delas: as trs Graas,

    os mitos narrados, as paisagens geogrficas presentes no so apenas produto da

    imaginao ou uma retomada do mito com fim em si mesmo, mas representam um valor

    que o poeta buscou constantemente. Essa busca poderia ser explicada ou pela sua origem

    grega, ou pela sua existncia conturbada, ou ainda pela juno dos dois fatores. Na

    estrutura potica em que reinam os mitos, os acenos a fatos ocorridos em seu tempo no so

    apenas intruses ou figuras de retrica, mas representam antes o terreno natural sobre o

    qual e para o qual o mito, ou seja, o mundo clssico, se faz presente.

    Naturalmente, o passado clssico, espao da beleza e da harmonia, no pode ser

    recuperado, tampouco pode-se lamentar a sua perda. Pelo contrrio, serve de suporte para

  • as esperanas do presente, que poder vir a sentir os benefcios daquele mundo. Por essa

    razo os mitos que Foscolo busca na Antiguidade no servem apenas para representar as

    belezas e a harmonia do mundo antigo, mas tm principalmente o mrito de transmitir ao

    presente aqueles valores que foram smbolo para os antigos, e que para Foscolo ainda

    seriam atuais. Nesse sentido, somente a educao para o belo artstico e para os sentimentos

    mais elevados, como o amor espiritual, o afeto filial, a piedade, a hospitalidade, a fidelidade

    recproca, a ternura materna, poderiam mudar o estado de barbrie enfrentado pela

    humanidade. Tal mensagem assume ainda uma vez um significado atual, seja sob o ponto

    de vista histrico, seja do poltico: no primeiro hino, quando a Grcia antiga se mostra sob

    o efeito das Graas, com a consolidao da agricultura, das leis, da religio, das artes, a

    mtica terra natal vista como um mundo de harmonia, vitalidade e serenidade, contraposto

    ao presente obscuro e brbaro da Itlia ainda no unificada, marcada pelo despotismo e pela

    guerra. Profundamente desiludido, o poeta busca na retomada dos valores clssicos, a

    herana que a Grcia deixou para a Itlia, o restabelecimento dos antigos modos de vida,

    caracterizado pela serenidade, liberdade e autonomia to desejadas e ausentes no presente.

    Foscolo exalta assim um certo modelo de civilizao, um mundo ideal de valores cuja

    reconstruo , para ele, essencial na sociedade presente. Em outras palavras, as divindades

    pags, nesse caso especificamente as Graas, mostraram aos Homens o caminho da paz, o

    valor da no-violncia. Le Grazie constitui-se assim como didtica porque celebra essas

    divindades-smbolos da beleza e da harmonia no em senso esttico, mas moral e civil,

    como civilizadoras do Homem, induzindo-o a superar a bestialidade prpria dos instintos

    incontrolados. Tais valores no encontram espao no tempo presente, com as constantes

    guerras provocadas pela sede de dominao do governo napolenico. Neste sentido, a busca

  • pelo mundo antigo significava para Foscolo a restaurao da ordem e dos hbitos existentes

    antes que Napoleo tomasse o poder na Itlia. Atravs da poesia, ele entendia representar as

    paixes, crenas, costumes e aspiraes dos seus conterrneos, imaginando-a um meio para

    despertar os mais profundos afetos e alimentar as virtudes civis, agindo sobre o costume

    tico e poltico, e sendo portanto um meio para se atingir a to sonhada unidade poltica e

    social.

    Palavras finais

    Fundamental para o historiador e para o crtico literrio perceber que a imaginao

    do escritor na construo da narrativa literria uma forma de transmitir conceitos, valores

    e ideologias. O autor no um resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o

    seu prprio espelho, a sua morada individual e nica. Tem o seu ncleo e o seu rgo,

    atravs do qual tudo o que se passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver

    realidade (CANDIDO, 1985, p. 18). Dessa forma, a obra depende do artista e das

    condies sociais que determinam a sua posio (CANDIDO, obra citada, p.16), de modo

    que toda obra literria pode ser lida como uma evidncia histrica. Apesar da literatura ser

    uma elaborao da imaginao, ela incorpora o universo de sua poca, misturando realidade

    e fico. Desse modo, mesmo sem o compromisso com a objetividade, caracterstica da

    histria, a literatura recria tenses tpicas da sociedade em que foi produzida, uma vez que

    resulta da construo humana e social, j que cada indivduo traz consigo sentimentos,

    experincias, aes, enfim, aspectos de sua poca.

  • Le Grazie de Ugo Foscolo, mais que mostrar uma distncia da histria, constitui um

    antdoto sua crueldade: pela sua estrutura, desenvolvimento das imagens e da linguagem,

    os trs hinos delineiam o universo da arte e da beleza, em anttese ao reino da fora e das

    leis. A poesia de Foscolo, caracterizada pela apropriao da mitologia, defende as razes da

    civilitas contra a ameaa, sempre presente e pronta a ressurgir, dos instintos selvagens e

    primordiais.

    O poema, de fato, elabora as figuras do mito contra a angstia da violncia, em defesa

    das idias constitutivas da civilidade humana. O mito constitui exatamente a representao

    dos valores necessrios e fundamentais, sem os quais no possvel associar a vida. Os

    afetos que derivam do amor, da caridade filial e fraterna, da comiserao e da hospitalidade

    so o centro deste universo de princpios. A mitologia evidencia os sentimentos, e se

    oferece como a prpria linguagem da poesia: transforma o mundo abstrato em histrias

    visveis e concretas, e se torna a alegoria do mundo ideal.

    ABSTRACT: This article aims to show the neoclassicism of Ugo Foscolo through Le

    Grazie, an unfinished poetic composition of mythological theme, made in several stages

    from 1802 to 1822. In addition to presenting the biographical reasons for the poem

    composition, this study discusses how Foscolo utilized mythology and poetry as an

    alternative to spread the civilitas against the anguish and uncertainty of the post-French

    Revolution present.

    Keywords: Ugo Foscolo, Le Grazie, Neoclassicism, French Revolution

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    1Sobre a relao histria e literatura veja-se SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. 2ed. So Paulo: Companhia das Letras, 2003. PESAVENTO, Sandra Jatahy (Org.). Leituras cruzadas. Dilogos entre a histria e a literatura. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000. WHITE, Hayden. Metahistria. So Paulo: EDUSP, 1992, CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. So Paulo: Ed. Nacional, 1985. 2Veja-se como exemplo o estudo de Chiara Lombardi. La sacra isola sotto il sole. Il mito di Atlantide in Platone, Casti, Foscolo e Leopardi. Roma: Prospettiva Editrice, 2006. 3O termo Neo-classicismo, ainda que no possa ser plenamente conceituado, pode ser entendido pela sua potica e pela sua arte baseada nos conceitos de beleza, compostura e serenidade, mesmo na representao da dor, e pela sua ligao a um fenmeno histrico bastante preciso: a retomada da arte clssica, sobretudo estaturia, a partir da segunda metade do Setecentos. Na Itlia teve seu pice no perodo do governo napolenico na pennsula. 4A edio integral da poesia pode ser conferida em http://www.classicitaliani.it/index067.htm5O termo Risorgimento designa o perodo da histria da Itlia entre 1815 e 1860, durante o qual ocorre o processo de unificao da pennsula.

    http://www.classicitaliani.it/index067.htm

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