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Instituto Saúde da Comunidade Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva Cristiane Moura Lopes O MODO DE PRODUÇÃO DO CUIDADO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: cenário de afetamentos entre os corpos e autopoiese Niterói 2012

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Instituto Saúde da Comunidade

Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva

Cristiane Moura Lopes

O MODO DE PRODUÇÃO DO CUIDADO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO

PSICOSSOCIAL: cenário de afetamentos entre os corpos e autopoiese

Niterói

2012

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Cristiane Moura Lopes

O MODO DE PRODUÇÃO DO CUIDADO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO

PSICOSSOCIAL: cenário de afetamentos entre os corpos e autopoiese

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em

Saúde Coletiva.

Orientador: Prof. Dr. Túlio Batista Franco

Niterói

2012

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Cristiane Moura Lopes

O MODO DE PRODUÇÃO DO CUIDADO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO

PSICOSSOCIAL: cenário de afetamentos entre os corpos e autopoiese

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense, como

requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em

Saúde Coletiva.

BANCA EXAMINADORA

Dr. Túlio Batista Franco (Orientador)

Universidade Federal Fluminense

Dr. Johnny Menezes Alvarez

Universidade Federal Fluminense

Dr. Ricardo Luiz Narciso Moebus

Universidade Federal de Ouro Preto

Dra. Tatiana Ramminger (Suplente)

Universidade Federal Fluminense

Niterói, 12 de Abril de 2012

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Aos usuários dos CAPS, que me afetam e

me emocionam , fazendo-me acreditar que

sempre é possível uma vida nova e um

mundo melhor. À vocês todo o meu

respeito e carinho.

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AGRADECIMENTOS

Reverências!

Agradeço à Deus pela vida e pelo universo maravilhoso do qual faço parte.

Muito Obrigada aos meus antepassados, avôs e avós, maternos e paternos, sem eles não

estaria aqui.

Muito Obrigada ao meu papai Joel Matheus Lopes e minha mãezinha Rusy Moura Lopes, sem

eles não saberia o que é o verdadeiro amor.

Muito Obrigada aos meus irmãos: Fabiane, Fernando, Josilene e Denise, sem eles não saberia

o significado do amor sincero.

Muito Obrigada aos cunhados, e ao Miguel, pelo laço sincero que uniu nossas famílias nessa

caminhada terrena.

Muito Obrigada ao amigo, in memorian, Sr. Wilson Sabará, sem ele não saberia o que é o

verdadeiro incentivo e da caridade.

Muito Obrigada aos amigos: Belayne Zanini Marchi, Fernanda Santos Rodrigues Araújo,

Gleydson Pimenta de Faria, Isabella Lacerda Pimenta, Janaína Sara Lawall e Lucélia do Valle

Monteiro, sem eles não saberia o significado da amizade sincera, desinteressada e motivadora.

Muito Obrigada à amiga, Anacely da Silva Rodrigues, pela amizade sincera construída ao

longo do mestrado, pela ajuda psicológica nos momentos difíceis e por me incentivar sempre, me

dando forças e coragem.

Muito Obrigada às amigas de casa: Annabelle, Juliana, Fabiana e Mariluce, pelo incentivo,

apoio e paciência em escutar meus desabafos com parcimônia e atenção.

Muito Obrigada a todos os meus colegas de trabalho da equipe LACE/RJ, pela compreensão.

Muito Obrigada ao meu orientador Túlio Batista Franco, por ter dividido e compartilhado

comigo seus conhecimentos; pelos momentos de estudo, orientações e trocas tão valiosas para esse

trabalho, sobretudo pela confiança; meus sinceros e cordiais agradecimentos.

Muito Obrigada aos colegas de mestrado: Daniel Enao, Gloria Carmona, Suzi Salvador e

Thiago Constâncio, pela companhia e solidariedade nesse período.

Muito Obrigada à todos os professores da Pós, pela contribuição na minha caminhada

acadêmica.

Muito Obrigada aos professores presentes nessa banca: Johnny Alvarez Menezes, Ricardo

Moebus, e Tatiana Ramminger, por terem aceitado dividir e compartilhar seus conhecimentos

comigo nessa etapa de minha vida.

Muito Obrigada à Universidade Federal Fluminense, pelo ensino público e de qualidade.

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Muito Obrigada à todos os funcionários do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva,

pelo apoio de sempre.

Muito Obrigada à Coordenação de Aperfeiçoamento de Ensino Superior – CAPES, pela

concessão da bolsa de estudos para a realização desse estudo.

Muito Obrigada à toda a equipe do restaurante universitário, por ter me proporcionado

refeições saudáveis e preparadas com muito carinho.

Muito Obrigada à todos os participantes do grupo LEFTS – pelas trocas consideráveis em

relação à Saúde Mental.

Muito Obrigada à Coordenação de Saúde Mental por ter autorizado essa pesquisa.

Muito Obrigada à Coordenação do CAPS Herbert de Souza, que me recebeu de portas abertas

permitindo assim minha entrada no campo.

Muito Obrigada à todos os funcionários, técnicos, residentes e estagiários do CAPS, por terem

compartilhado suas vivências, anseios, esperanças e por terem se disponibilizado a participarem da

pesquisa; em especial à Cynthia Conceição Schmidt Campanatt, meu respeito e admiração pelo seu

trabalho.

Muito Obrigada à todos os usuários do CAPS, sem vocês nada faria sentido.

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RESUMO

Objetivo apresentar o Modo de Produção de Cuidado, enquanto um acontecimento autopoiético, que

está em agenciamento no Centro de Atenção Psicossocial – CAPS – Herbert de Souza, da cidade de

Niterói/RJ, a partir dos encontros entre os corpos na instituição. Entender como opera esse modo de

produção de cuidado é entender as dinâmicas que se estabelecem na Instituição a partir das

configurações que imprimem um determinado modo de trabalho e que refletem por isso, um

determinado tipo de perfil assistencial. Parto da premissa de que para saber se houve mudança no

CAPS, nós temos que analisar o funcionamento da práxis do trabalhador; porque será aí que

encontraremos as práticas, a intencionalidade e as valises tecnológicas que o trabalhador se utiliza no

processo de gestão e produção de cuidado. A questão, portanto, é a de compreender o processo que se

efetiva no cotidiano dos encontros entre os corpos - afecções – dentro do CAPS, uma vez que esses

encontros possuem a potência de revelar as distintas lógicas que se configuram a partir das

micropráticas do Trabalho Vivo em Ato. Mediante o objeto de estudo dessa pesquisa, foi eleita a

abordagem qualitativa, a partir da etnografia, pois entendo que será na esfera das experiências do

cotidiano, da rotina da instituição, lugar onde ocorrem as relações face a face, que se podem conhecer

os interesses, os motivos e as práticas que norteiam as ações dos sujeitos envolvidos e que

caracterizam o modo de produção de cuidado. Utilizei também de outra técnica de coleta de dados -

entrevistas com roteiros semiestruturados, com a qual foram realizadas 12 entrevistas com os

trabalhadores do CAPS. A pesquisa nos revelou que o CAPS possui o desafio de superar as relações

de decomposição, os ‘maus encontros’, (expressões preconizadas por Espinosa), para que de fato

materialize a Reforma Psiquiátrica dentro da instituição, porquanto, ele é um dispositivo

potencialmente potencializador do cuidado quando se torna capaz de promover relações de ‘alegria’,

de ‘composição’, ou seja, quando promove ‘bons encontros’ entre os sujeitos envolvidos.

Palavras-chave: Centro de Atenção Psicossocial. Modo de Produção do Cuidado. Autopoiese.

Afecção. Corporalidade.

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ABSTRACT

I aim to present the Production Mode of Care as an autopoietic event, which is brokering the

Psychosocial Care Center - CAPS - Herbert de Souza, the city of Niterói / RJ, from encounters

between bodies in the institution. Understanding how to operate this mode of production of care is to

understand the dynamics that are established at the institution from the settings that print a particular

way of working that reflect why a particular type of care profile. I start from the premise that to see if

there was a change in CAPS, we have to analyze the functioning of the praxis of the worker, because

there will be practices that meet the intent and technological suitcases which the employee is used in

process management and production care. The question therefore is to understand the process that is

effective in everyday encounters between bodies - conditions - within the CAPS, since these

meetings have the power to reveal the different logics that are configured from the micropractices of

Living Work in Act. Through the study object of this research, a qualitative approach was chosen,

from ethnography, because I believe will be in the realm of everyday experience, the routine of the

institution, where relationships occur face to face, which can meet the interests , the motives and

practices that guide the actions of the individuals involved and characterize the mode of production

of care. Also I used another technique of data collection - semistructured interviews with scripts,

which were performed with 12 interviews with workers in CAPS. The survey revealed that CAPS has

the challenge of overcoming the relations of decomposition, the 'bad encounters' (expressions by

Spinoza), to actually materialize the Psychiatric Reform within the institution, because, it is a device

potentially potentiating care when it becomes capable of promoting relations of 'joy' of 'composition',

and when it promotes 'good encounters' between the subjects involved.

Keywords: Psychosocial Care Center. Method of production of care. Autopoiesis. Affection.

Embodiment.

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LISTA DE TABELAS

TABELA 01 – Número de Leitos de Hospitais Psiquiátricos no Brasil (2002-Julho2011) ...... 23

TABELA 02 - Proporção de recursos do SUS destinados aos Hospitais Psiquiátricos e aos

Serviços Extra-Hospitalares nos anos de 2002-2010.................................................................. 23

TABELA 03 - Expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (2002-2011)............................. 24

TABELA 04 - Centros de Atenção Psicossocial por tipo e Indicador CAPS/100.000 habitantes

por UF (Brasil – 15 de julho de 2011)........................................................................................ 25

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 01 – Atividades do CAPS ........................................................................................ 23

QUADRO 02 – Trabalhadores do CAPS .................................................................................. 23

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12

2 PERCURSO METODOLÓGICO ......................................................................... 13

2.1 Abordagem Qualitativa ....................................................................................... 14

2.2 Observação Participante ..................................................................................... 15

2.3 Percurso Inicial .................................................................................................... 17

2.4 Entrevistas Semi-estruturadas............................................................................ 18

2.5 Os sujeitos da pesquisa...............................................................................,......... 19

2.6 Tratamento dos dados obtidos a partir da observação participante............... 21

2.7 Tratamento dos dados obtidos a partir das entrevistas ................................... 21

2.8 Aspectos éticos da pesquisa ................................................................................. 22

2.9 Referencial Teórico .............................................................................................. 22

3 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE REFORMA PSIQUIÁTRICA ............... 24

3.1 Hospital Psiquiátrico: Instituição Total.............................................................. 24

3.2 A Reforma Psiquiátrica ....................................................................................... 28

3.3 Desinstitucionalização da Assistência Psiquiátrica............................................ 30

3.4 Modo Asilar e ModoPsicossocial: uma coabitação difícil.................................. 32

3.5 Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ...........................................,......... 33

4 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE CORPORALIDADE .............................. 40

4.1 O corpo na Idade Média ...................................................................................... 40

4.2 O caráter biológico da dualidade alma e corpo................................................ 42

4.3 Sociologia do corpo .............................................................................................. 43

4.4 Corporeidade humana: fenômeno social e cultural .......................................... 45

4.5 Técnicas corporais e o Processo de Socialização......................................,......... 46

4.6 Corpo Socializado e Corpo Vivido: habitus e embodiment....................,......... 49

5 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE MICROPRÁTICAS DO PROCESSO DE

TRABALHO EM SAÚDE ......................................................................................... 54

5.1 O Trabalho Vivo em Ato ..................................................................................... 54

5.2 Tecnologias em Saúde ......................................................................................... 56

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5.3 A subjetividade do trabalhador em saúde ......................................................... 58

5.4 O modo de produção do cuidado enquanto um acontecimento autopoiético 59

5.5 Relações de Afecção ...................................................................................,......... 61

6 PERFIL DO CAPS EM QUESTÃO ..................................................................... 63

6.1 O funcionamento .................................................................................................. 64

6.2 Atividades desenvolvidas .................................................................................... 65

6.3 Descrição do local ................................................................................................. 66

6.4 Perfil dos Trabalhadores ...........................................................................,......... 68

6.5 Processo de Recepção / Chegada do usuário no CAPS............................,......... 70

6.6 As Referências e Projeto Terapêutico Individual (PTI)............................,........ 71

7 A PRODUÇÃO DO CUIDADO NO CAPS EM QUESTÃO ............................. 74

7.1 Ambiência ............................................................................................................. 75

7.2 Estigma ................................................................................................................ 77

7.3 Articulação com o Poder Público ....................................................................... 77

7.4 Articulação com o SAMU .................................................................................... 78

7.5 Articulação com a Rede de Saúde Mental ......................................................... 78

7.6 Engessamento dos Profissionais........................................................................... 79

7.7 Recursos Financeiros ........................................................................................... 81

7.8 Relações Trabalhistas .......................................................................................... 84

7.9 Rotatividade dos Profissionais ............................................................................ 85

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 98

8.1 O Caso da Usuária Y ............................................................................................ 101

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 106

APÊNDICE A: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ............................. 111

APÊNDICE B: Roteiro para as entrevistas ............................................................. 113

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1INTRODUÇÃO

Pretendo apresentar o Modo de Produção de Cuidado, que está em agenciamento, no

Centro de Atenção Psicossocial – CAPS, da cidade de Niterói/RJ, a partir dos encontros entre

os corpos na instituição. Entender como opera esse modo de produção de cuidado é entender

as dinâmicas que se estabelecem na Instituição a partir das configurações que imprimem um

determinado modo de trabalho e que refletem por isso, um determinado tipo de perfil

assistencial. Essa investigação inscreve-se numa leitura que consiste em pensar o corpo

enquanto um analisador capaz de revelar o cotidiano das práticas de cuidado instituídas no

cotidiano da instituição a partir dos encontros, das relações de afecção que ocorrem entre os

diversos sujeitos da instituição.

A primeira motivação para o desenvolvimento dessa pesquisa iniciou-se na minha

graduação em Ciências Sociais, no momento em que me deparei com as questões relativas à

Antropologia da saúde e do corpo. Através da perspectiva, principalmente antropológica, aos

poucos fui me aproximando da temática da Saúde Mental; o que levou-me ao bacharelado

com o estudo sobre a História da Loucura, quando evidenciei a transição dos pacientes

portadores de sofrimento mental do confinamento (modelo hospitalocêntrico) à proposta de

acolhimento (modelo psicossocial).

A motivação a seguir, veio com meu interesse em dar continuidade aos estudos na área

da saúde mental, e inspirada por esse desejo me ingressei numa especialização em Ciências

Humanas e Saúde, também na Universidade Federal de Juiz de Fora. Nesse estudo, associei a

temática da corporalidade com o processo de desinstitucionalização da assistência psiquiátrica

no Brasil, com o objetivo de dar sequência a esses estudos. Entretanto, fui tomada por um

desejo de dar continuidade e aprofundar na área da Saúde Mental.

Em consonância, me ingressei no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da

Universidade Federal Fluminense, para melhor compreender a relação entre Saúde Mental,

corporalidade e sociedade. Nesse momento, eis o meu desafio: questionar o modo de

produção do cuidado em agenciamento nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), face à

sua importância enquanto dispositivo alternativo ao modelo hospitalocêntrico.

A pergunta norteadora dessa dissertação é se de fato houve uma mudança no

atendimento ao paciente psiquiátrico nas novas instituições asseguradas a ele pelo SUS –

Sistema Único de Saúde, ou se ao invés de uma ruptura ao modelo hegemônico centrado na

Instituição Total – sentido atribuído por Goffman (1994) e também centrado no

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procedimento, tivemos uma reprodução dos mesmos moldes de atendimento nas novas

Instituições; de outro modo, houve ou não mudança no atendimento ao doente psiquiátrico?

Houve de fato uma desconstrução do modelo centrado no procedimento, ou temos a

reconstrução do modelo centrado nas necessidades do usuário?

Parto da premissa de que para saber se houve mudança no CAPS, nós temos que

analisar o funcionamento da práxis do trabalhador; porque será aí que encontraremos as

práticas, a intencionalidade e as valises tecnológicas que o trabalhador se utiliza no processo

de gestão e produção de cuidado.

A questão, portanto, é a de compreendermos o processo que se efetiva no cotidiano

dos encontros entre os corpos - afecções – dentro do CAPS (DELEUZE, 2002), uma vez que

esses encontros possuem a potência de revelar as distintas lógicas que se configuram a partir

das micropráticas do Trabalho Vivo em Ato (MERHY, 1997).

Para respondermos a questão norteadora desse trabalho, pretende-se avaliar os

serviços que são prestados no CAPS, contudo, e no intuito de inovar no campo científico,

colocamos como pano de fundo para realizar essa avaliação a corporalidade - enquanto um

analisador capaz de revelar os encontros e as subjetividades que se formam e que definem o

perfil assistencial.

2 PERCURSO METODOLÓGICO

O objeto dessa pesquisa é fazer uma avaliação do modo de produção do cuidado que

está em agenciamento. Agenciamento porque está a serviço da produção, do desejo, da vida,

do novo, na medida em que é capaz de gerar acontecimentos e transformações, ao produzir as

linhas de fuga do desejo, da produção e da liberdade, e por conta disso, potencialmente capaz

de disparar processos de mudança nos serviços que estão sendo prestados.

Desta forma, objetivo entender as características intrínsecas dessa instituição,

principalmente em seus processos relacionais, colocando em ênfase a questão da

corporalidade através das relações de afecção dentro da Instituição. (DELEUZE, 2002)

Para tal, constatei a importância de fazer um estudo no CAPS – um território de

práticas específicas e fluxos circulantes - para acompanhar o modo de produção de cuidado

dessa instituição, buscando, portanto, observar como se formam as subjetividades operantes

no CAPS e que caracterizam o perfil assistencial da Instituição.

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2.1 Abordagem Qualitativa

Mediante o objeto de estudo dessa pesquisa, foi eleita a abordagem qualitativa, já que

esta proporciona ao pesquisador, uma combinação de técnicas de pesquisa que levam em

consideração os aspectos relacionais e interacionais entre os sujeitos dentro da instituição.

Apesar de existirem uma diversidade em relação às abordagens qualitativas, essas

perspectivas se convergem num propósito comum, numa certa identidade, já que elas buscam

“[...] analisar o significado atribuído pelos sujeitos aos fatos, relações e práticas, isto é a tarefa

de interpretar tanto as interpretações quanto as práticas dos sujeitos”. (DESLANDES &

ASSIS apud CAMPOS et al., 2008, p.72).

Sob essa perspectiva, concordamos com a posição de Silvana Weller no que diz

respeito à pesquisa avaliativa, quando considera, dentre outros pontos que:

“[...] em primeiro lugar, a avaliação não como evento isolado, e sim, como um

processo que integra avaliadores e avaliados, almejando o compromisso e o

aperfeiçoamento dos indivíduos, grupos, programas e instituições. Em segundo

lugar, é importante destacar que a pesquisa avaliativa soma aos elementos

normativos, a necessidade de considerar os elementos de contexto”. (CAMPOS et

al., 2008, p.81)

Sendo assim, é valorizando esse contexto, que se poderá compreender as micropráticas

de trabalho, enquanto espaço situacional, e entender como se desenvolvem as dinâmicas das

relações sociais que desenvolvem dentro da Instituição. Indo nessa direção, entendo que é na

esfera das experiências do cotidiano, da rotina da instituição, lugar onde ocorrem as relações

face a face, que poderemos conhecer os interesses, os motivos e as práticas que norteiam as

ações dos sujeitos envolvidos e que caracterizam o modo de produção de cuidado.

Para Minayo (2010), a observação simples consiste em um processo pelo qual o

pesquisador se coloca como observador de uma situação social, com a finalidade de realizar

uma investigação científica. Logo:

O observador, no caso, fica em relação direta com os seus interlocutores no espaço

social da pesquisa, participando da vida social deles com a finalidade de colher

dados e compreender o contexto da pesquisa. Por isso, o observador faz parte do

contexto sob sua observação e sem dúvida, modifica esse contexto, pois interfere

nele assim como é modificado pessoalmente. (MINAYO, 2010, p.70).

Uma característica fundamental dessa técnica, é que as observações são obtidas em

ambientes naturais, em vez de ambientes artificiais e experimentais e também no momento

em que os fatos ocorrem. Logo, o observador, poderá presenciar os acontecimentos sob a

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ótica da emoção, do momento, do afeto entre os personagens envolvidos, sem nenhum tipo de

intermediação.

É por conta desse contexto, desse território existencial, no sentido atribuído às

correntes que defendem à cartografia enquanto método ad hoc, que me propus acompanhar os

processos inventivos e de produção de subjetividade, a partir de uma pesquisa avaliativa, o

que em linhas gerais trata de investigar um processo de produção, e não representar um

objeto. (KASTRUP, 2007)

Objetivo, portanto, a partir da abordagem qualitativa, acompanhar os processos que

engendram os sujeitos em seu contexto, buscando principalmente identificar as linhas de

forças, de enunciação e visibilidades constituintes dos dispositivos em questão, e suas

conexões com movimentos de produção de singularidades. Como ressalta Minayo, citando

Lima (2005, p.45), “a avaliação deve revelar os brotos, as flores, os ramos em

desenvolvimento, e não somente os frutos”.

2.2 Observação Participante

Para realizar essa pesquisa adotei a etnografia (por meio do trabalho de campo) que é

uma abordagem qualitativa, já que esta permite ao pesquisador aproximar-se diante da

realidade, do cotidiano da instituição, proporcionando desta forma uma interação com os

protagonistas em seu local de trabalho.

Parafraseando o antropólogo norte-americano, Cliffort Geertz (1978) ressalto a

importância de se realizar um “estudo em CAPS” e não estudos de CAPS; isto porque meu

interesse se centra em compreender os aspectos micropolíticos que se desenvolvem no interior

da Instituição, ao partir de uma “descrição densa” da corporalidade. O importante nesse

sentido não é o simples movimento mecânico dos corpos, mas o significado que estes têm

para o grupo, quais são suas implicações para o contexto social e como eles se correlacionam.

E, sobretudo, de que forma se estabelecem os vínculos entre os usuários-trabalhadores,

usuários-instituição e entre os trabalhadores.

Interessante, perceber o aspecto arbitrário das relações entre os sujeitos que se

estabelecem dentro da instituição, denotando mesmo um cenário de movimentação, de fluxos

e intensidades constantes, principalmente pelo alto grau de liberdade que caracteristicamente

o trabalhador da área da saúde mental tem e pelo processo de captura do trabalho vivo em ato

que ocorre no momento em que o cuidado se dá.

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O trabalho em saúde mental é fortemente marcado pela liberdade, sim, liberdade

porque é ele mesmo, o sujeito-do-trabalho quem define o modo de organização do

seu processo produtivo, isto é, a produção do cuidado. E sendo livre no ato de

governar seu próprio processo de trabalho, mais uma vez, o trabalhador pode tudo.

Ele pode usar a liberdade para fazer um cuidado-cuidador ou para cuidar de forma

sumária e prescritiva. Mas é com base na liberdade de agir que ele faz, e o faz

conforme sua intencionalidade, sua proposta ética e política para o cuidado em

saúde, as verdades que ele constitui para si mesmo. (FRANCO, 2010, p.01).

Daí a necessidade de conhecer a dimensão subjetiva da produção do cuidado, que

surge na relação dos sujeitos-trabalhadores, destes com outros profissionais, com os usuários

e seus familiares.

A observação participante juntamente com o diário de campo (MALINOWSKI, 1984),

foi utilizada como métodos norteadores da pesquisa, pois estes possibilitam ao pesquisador

mergulhar na dimensão simbólica do cuidado, que se estabelece dentro do CAPS se

configurando entre o instituído e o instituinte, definindo assim, o modo de produção de

cuidado que está em agenciamento.

Só estando dentro do território (entendido como espaço de pertencimento, de laço e

engajamento) é que se pode saber se existe alguma particularidade, alguma singularidade no

modo em que os pacientes se utilizam de seus corpos dentro do CAPS, e de que modo esses

pacientes se relacionam com os profissionais nesse território de práticas e sujeitos singulares.

Estudar como se dão essas relações dentro da Instituição é preciso (lembrando Geertz,

1978), para que se possa observar as redes sociais que se estabelecem entre os indivíduos e

capturar as subjetividades que se formam, na medida em que revela os afetos e as

manifestações desejantes na produção do cuidado que acontecem nesse ambiente natural.

Interessante acrescentar nesse sentido, que duas coisas se fazem distintas e necessárias nessa

busca de contemplar a realidade: boas lentes e bons olhos, ambos necessariamente se

complementam à captura analítica da realidade.

“El ojo del cartógrafo no debe ser solo el ojo fisiológicamente concebido, la retina,

sino también el ojo vibrante de um cuerpo que vibra com las intensidades, que se

abre a sus afecciones y afectaciones, y por eso puede percibirlas como expresiones

del mundo de la producción en el campo de la salud.” (FRANCO; MERHY, 2009,

p.185).

Essa perspectiva tem emprestado um importante papel aos diferentes olhares sobre a

realidade e às suas formas de capturar o que se percebe quando conceitos como “olhos-retina”

e “olhos-vibráteis” têm justificado novos arranjos no reordenamento das representações da

realidade percebida/pesquisada. O primeiro olhar se caracteriza pela potência de permitir um

olhar sobre as estruturas, o que é visível; já o segundo, é vibrátil, atua no invisível, no que

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vibra em intensidades dentro da dinâmica simbólica, ou seja, que captura os afetos.

(ROLNIK, 2002).

Para a construção de dados para essa pesquisa, foram conjugados esses diferentes

olhares à captura da realidade, bem como os códigos, símbolos e significados das ações dos

personagens/atores no processo relacional e subjetivo presente no processo de produção de

cuidado; mesmo porque o campo da saúde é um campo que se produz a todo o tempo pela

ação do sujeito. Será nesse sentido, que se torna importante observar o trabalho vivo em ato

(MERHY, 2006) - alive work in action; pois o modo de produção dependente desse trabalho

contém uma grande potência instituinte que formam as redes de subjetividade.

2.3 PERCURSO INICIAL

Antes de iniciar a coleta de dados no CAPS, primeiro entrei com o projeto dessa

pesquisa no Comitê de Ética e Pesquisa – CEP - da Universidade Federal Fluminense. Nesse

momento, foi preciso ter a assinatura de autorização da Coordenação da Saúde Mental – já

que é o órgão ao qual o CAPS está diretamente vinculado.

Enquanto esperava uma vaga na agenda da Coordenação de Saúde Mental, entrei em

contato com a coordenação do CAPS, informando-lhe sobre a pesquisa, com o intuito de ir

‘adiantando’ o trabalho de campo. Apesar de se mostrar receptiva desde o início, a

coordenação do CAPS me recomendou entrar em contato primeiramente com a coordenação

de Saúde Mental, que se situa no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba em Niterói- RJ. Somente

com a aprovação desta, eu deveria retornar à instituição para começar de fato a pesquisa.

Como estava de mãos atadas, já que não consegui ‘entrar no campo’, insisti para

conseguir um horário na coordenação. Depois de algum tempo de contato e de idas e vindas

à Coordenação de Saúde Mental de Niterói, consegui agendar um encontro com o

Coordenador da Saúde Mental para explicar a pesquisa. A demora em conseguir um horário

em tal agenda, foi justificada pelo momento de transição pelo qual a coordenação da Saúde

Mental em Niterói passava. Nesse encontro, conheci o coordenador atual e a nova

coordenadora que logo iria ocupar o cargo. Isso foi importante, porque fiquei resguardada no

caso de termos algum eventual problema em relação à pesquisa, já que ambas as gestões

(atual e a futura) além de ter conhecimento da pesquisa, também autorizaram a mesma. Com

as devidas assinaturas de autorização, retornei ao CEP, para dar seguimento ao processo de

aprovação desse comitê.

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Depois de ter toda a documentação exigida, o que inclui a assinatura da Coordenação

de Saúde Mental, entreguei o projeto para análise ao comitê. Após aproximadamente dois

meses de análise por esse Comitê, obtive a aprovação e autorização para a pesquisa.

Por fim, volto ao CAPS, e mediante comprovação da autorização do CEP e da

autorização da Coordenação da Sáude Mental, tive a liberação pela coordenação do CAPS

para, enfim, começar a pesquisa.

Minha entrada oficial no CAPS ocorreu com minha participação na reunião de

equipe, (que acontece todas as quartas-feiras de 8h às 12h). Nessa reunião, depois de ser

apresentada para toda a equipe, expliquei quais eram os objetivos e qual a metodologia que

seria adotada para a realização da mesma. A direção do CAPS, bem como outros

funcionários, colocou-se à disposição para colaborações em relação à pesquisa. Também

demonstraram interesse no retorno sobre os resultados da pesquisa, para futuras

contribuições e intervenções ao trabalho da equipe.

2.4 Entrevistas Semi-estruturadas

Para essa pesquisa, utilizei também de outra técnica de coleta de dados - entrevistas

com roteiros semi-estruturados. As entrevistas, entendidas como elos comunicativos entre as

reflexões do sujeito e a sua realidade vivenciada, me permitiu uma interlocução de seu

universo simbólico aos temas abordados.

O número de sujeitos para compor o quadro de entrevistas, não fora determinado a

priori, já que fui deixando que as informações obtidas nos depoimentos, em termos de

profundidade, convergência e divergência, me informasse pistas para determinar e estabelecer

a quantidade de entrevistas necessárias.

O convite para a realização das entrevistas foi sendo feito por mim, durante o período

em que eu estava no CAPS, de março à agosto de 2011. Os convites ocorriam em diversos

momentos, principalmente nos que eu entendia (intuitivamente) como sendo propícios para a

autorização. Isso variava muito, pois em alguns momentos era oportuno falar sobre a

entrevista quando o CAPS estava cheio e em outros quando estava mais tranquilo. Nesses

momentos considerados oportunos, eu efetuava os convites e fazia os agendamentos para a

realização das mesmas. Não houve recusa direta e definitiva, apesar da alegação de alguns por

falta de tempo em determinados dias. Entretanto, isso não se tornou o obstáculo, pois apesar

de não poderem realizar em tais dias, logo me apresentam o melhor dia para que eu pudesse

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realizar as entrevistas, de modo que todos os que foram convidados se dispuseram a

participar.

À medida, em que fui realizando as entrevistas e o trabalho de campo, fui organizando

os dados obtidos e por meio das análises que estava fazendo paralelamente, percebi que as

categorias analíticas que foram emergindo destes dados tornaram-se suficiente, a princípio,

para encerrar o ciclo de entrevistas, o que totalizou em 12 entrevistas realizadas. O ponto que

direcionou o encerramento da pesquisa, por conta das qualidades das informações até então

obtidas, convencionou-se intitular de “ponto de saturação”, já que é um delimitador dos

momentos da pesquisa.

O fechamento amostral por saturação teórica é operacionalmente definido como a

suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a

apresentar, na avaliação do pesquisador, uma certa redundância ou repetição, não

sendo considerado relevante persistir na coleta de dados. Noutras palavras, as

informações fornecidas pelos novos participantes da pesquisa pouco acrescentariam

ao material já obtido, não mais contribuindo significativamente para o

aperfeiçoamento da reflexão teórica fundamentada nos dados que estão sendo

coletados. Esta conotação/definição já vinha presente no texto que parece ter

inaugurado o uso da expressão saturação teórica (theoretical saturation).

(FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008, p.17).

De alguma forma esse determinou a hora em que eu parei com as entrevistas e com o

trabalho de campo, de todo modo, ele não determinou o fim da pesquisa, de fato, visto que

precisei retornar ao campo outras vezes, para preencher lacunas em relação aos dados,

acontecimentos e circunstâncias que foram pouco exploradas.

2.5 Os Sujeitos da pesquisa

Os sujeitos desta pesquisa foram os profissionais da equipe técnica e que atuam na

assistência direta e indireta aos pacientes psiquiátricos, que trabalham dentro do CAPS.

A princípio eu tinha definido os critérios de inclusão dos sujeitos da presente pesquisa

pelo período de permanência destes na instituição, incluindo assim, profissionais que tivessem

no mínimo 01 ano; e que concordassem com os termos de consentimento livre e esclarecido –

segundo o modelo que encontra em anexo nesse projeto. Isso se justificava, porque eu

acreditava que o tempo influenciava diretamente nas subjetividades e nos vínculos que se

formavam dentro do CAPS, seja pela questão do contato do profissional com o usuário

(teoricamente) mais aprofundado, pelo projeto terapêutico assistido e à Instituição

propriamente dita.

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Entretanto, ao iniciar a pesquisa, percebi que o vínculo nem sempre se reporta à uma

questão de tempo cronológico, de contato entre usuário e profissional, mas de outro tempo, o

tempo do afeto, do encontro entre esses corpos. Essa percepção se deve à fala de um

trabalhador que me atravessou, quando eu estava ‘observando’ a reunião de equipe dos

trabalhadores. Essa fala me afetou de tal maneira que relativizei os critérios de inclusão que

tinha considerado até então. Mas essas reflexões só me foram possíveis, porque como aponta

Bonet (2004), eu estava ‘no lugar certo’.

Por isso, pensava que na observação, no trabalho de campo antropológico, joga-se

muito com a sorte para estar no lugar certo no momento certo, pelo menos no

começo, quando ainda não se conhecessem os tempos e costumes desse terreno

particular. (BONET, 2004, p.19).

A fala do trabalhador foi a seguinte:

OP – Foi muito importante esse relatório. Nós vimos coisas a partir do olhar de W,

que não tínhamos percebido antes. Essa sensibilidade que ele teve em mostrar a

partir do seu estranhamento coisas que a gente deixou de ver com o tempo em nosso

trabalho, foi magnífico. Acho que todo mundo tinha que ler o relatório do W.

(Fonte: Diário de Campo).

Os outros trabalhadores não ficaram indiferentes à essa fala, posicionando-se também

em relação a importância do estranhamento dos ‘novos olhares’, dos profissionais recém-

chegados na instituição, dizendo inclusive que gostariam de ler tal relatório. Pude perceber

nessa reunião, que os outros trabalhadores ficaram um pouco admirados com a declaração do

colega de serviço, como que não conheciam de fato o que nele estava escrito, ou por não

terem feito um relatório ou por não terem lido o dos outros colegas. Aproveito o momento,

para compartilhar um questionamento a respeito desses relatórios que são pedidos aos

profissionais. Que importância eles têm de fato, para o serviço, se ficam guardados na gaveta,

sem serem compartilhados com os demais trabalhadores? Acredito que eles são

potencialmente reveladores, se forem considerados instrumentos que podem otimizar o

cuidado.

Por conta desse atravessamento, incluí também funcionários da equipe que estavam a

menos de um ano na Instituição e que quiseram participar das entrevistas. Isso me mostrou o

quanto somos (pesquisadores) inevitavelmente afetados pelo campo, e que a cartografia vai

delineando os trajetos e os passos que devem ser percorridos no campo. Excluídos das

entrevistas, foram os usuários e também seus respectivos familiares, já que isso implicaria

numa perspectiva destoante do objetivo dessa pesquisa.

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E06: É, não eu acho, que eu quero mesmo é falar é da tua pesquisa assim, do que eu

falei, de sempre estranhar, sempre perguntar, eu acho isso muito legal. Quando você

falou que tinha, que é um outro agente assim no meio e aí faz todo mundo se

reposicionar ...

Entrevistador: As pessoas ficam meio assim...

E06: E fica, as pessoas se questionam, você vai fazer muita gente se questionar do

que nunca se questionou.

Entrevistador: É, por que o quê acontece? Quando tem uma pessoa, que está, entre

aspas, analisando a pessoa, aí a pessoa se coloca em outra postura.

E06: Pois é, porque a gente, aqui profissionais está analisando a todo o tempo os

pacientes, né, mas não tem ninguém analisando a gente [...] Porque tem supervisão,

tem. Mas ao mesmo assim, quem supervisiona a supervisão, sabe? (Fonte:

Entrevista).

Há, portanto, um duplo afetamento entre pesquisador-instituição, e instituição-

pesquisador, como já comentado. Afetamento esse que nos permitiu colocar em pauta, o

questionamento e as considerações de trabalhadores que a pouco faziam parte da equipe e que

fazem toda a diferença no serviço.

2.6 Tratamento dos dados obtidos a partir da observação participante

As minhas anotações do diário de campo referentes ao Modo de Produção do Cuidado

no CAPS, foram transcritas para o computador no formato doc. Os nomes dos profissionais,

constantes no diário de campo estão em forma de pseudônimo, o que garantirá a privacidade

dos sujeitos, tal como propõe as normas do Conselho de Ética em pesquisa envolvendo seres

humanos.

Para que o leitor não se confunda, adotei como padrão a sigla OP – na frente das

minhas observações diretas no campo que foram transcritas em meu diário, das falas

referentes às entrevistas – que possuem como identificação a letra E na frente dessas

narrativas.

2.7 Tratamento dos dados obtidos a partir das entrevistas

As entrevistas realizadas com os profissionais do CAPS foram gravadas em aúdio e

posteriormente transcritas na íntegra, por mim, o que totalizou 235 páginas para a análise. O

tempo de duração das entrevistas variaram de dezenove minutos e vinte segundos à cinquenta

e nove minutos e vinte e oito segundos. Numa média de quase 37 minutos cada. Todas as

entrevistas foram realizadas individualmente dentro do CAPS, no horário do expediente e

conduzidas por mim.

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Após várias leituras dessas gravações, começei a fazer as análises para essa pesquisa,

não a partir de um caminho pronto, de um itinerário a ser seguido, mas a partir da

movimentação das falas que acabou por me mostrar as que eram a meu ver, mais importantes

naqueles contextos.

2.8 Aspectos Éticos da Pesquisa

Os procedimentos de coleta de dados supracitados atenderão às determinações da

Resolução 196 de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde que estabelece as

diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Esta

Resolução incorpora sob a ótica do indivíduo e das coletividades os quatro referenciais

básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, e visa

assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da

pesquisa e ao Estado. (BRASIL, 1996).

Essa pesquisa foi aprovada e registrada no dia 25/02/2011 no Comitê de Ética em

Pesquisa da Faculdade de Medicina/Hospital Universitário Antônio Pedro, sob o número

CAAE: 0024.0.258.258-11.

O anonimato dos entrevistados foi assegurado nessa pesquisa, e para que os mesmos

não pudessem ser identificados nas falas selecionados e transcritas nessa dissertação,

identifiquei o entrevistado pela letra E acompanhada dos números que variam de 1 à 12, já

que eu entrevistei 12 trabalhadores (E01 à E12). Outra medida para manter o sigilo, diz

respeito à ordem da numeração, já que o E1 não significa ser necessariamente o primeiro

trabalhador que eu entrevistei; bem como o E12 não significa que foi o último, portanto, não

há correspondência entre a numeração e a ordem da realização das entrevistas. No caso, de

algum trabalhador ter citado em sua fala o nome de outro, este foi substituído pelas letras X,

W e Z, de forma a não permitir a identificação do mesmo.

2.9 Referencial Teórico

No intuito de abarcar o objetivo geral e os específicos dessa dissertação, me guiei

epistemologicamente por três referências, sendo que para cada uma, um capítulo, são elas:

Reforma Psiquiátrica, corporalidade e sobre as micropráticas do trabalho vivo em ato. A

especificidade desse trabalho, consiste em associar essas referências para sublinhar o modo de

produção do cuidado que está em agenciamento no CAPS.

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Objetivo geral:

Fazer um estudo avaliativo sobre o modo de produção de cuidado que está em

agenciamento no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, colocando em

ênfase a questão da corporalidade através das relações de afecção dentro da

Instituição.

E, os objetivos específicos dessa pesquisa:

Fazer uma análise do encontro entre os corpos dentro da instituição, para

compreendermos se essa relação estaria aumentando (relação positiva) ou

diminuindo a potência (relação negativa), dos pacientes portadores de

sofrimento mental nesses novos espaços de atendimento.

Compreender como se formam as subjetividades operantes que caracterizam o

perfil assistencial na Instituição, a partir das relações micropolíticas que

ocorrem a partir do trabalho vivo em ato.

Elaborar a cartografia dos corpos dentro do CAPS – território como espaço de

pertencimento, de laço e engajamento de todos - a partir da análise das

tecnologias de cuidado e das narrativas dos sujeitos envolvidos no processo .

Devido às singularidades das referências teóricas utilizadas nessa pesquisa, para fins

didáticos, elas serão apontadas em capítulos separados. Mas ressalto que no momento da

análise das categorias e sub-categorias desenvolvidas nessa dissertação, que as teorias não se

mostraram separadas; elas se corresponderam e comunicaram entre si, mesmo porque caso

assim não o fosse, não teria sentido utilizarmos tais referenciais no mesmo trabalho.

Em relação à corporalidade aponto algumas interpretações sobre o corpo e sobre a

corporalidade humana como sendo um fenômeno social e cultural, já que inevitavelmente

com a Reforma temos o deslocamento desses corpos às novas redes de atenção na Saúde

Mental. Será nessas novas instituições que esses corpos irão transitar e por isso, não pude

deixar de me questionar: Que corpos são esses? De que corpo se está falando? E por fim,

quais suas implicações no cuidado? Também utilizo as micropráticas do trabalho vivo em ato

– enquanto referência epistemológica - procurando evidenciar como essas micropráticas

afetam os corpos dos trabalhadores e dos usuários, a partir das relações de afecção que

ocorrem dentro do CAPS. Em relação ao Referencial teórico sobre a Reforma Psiquiátrica,

evidencio os diferentes momentos e aparatos institucionais, desde o primeiro Hospital

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Psiquiátrico existente na história até a implantação e implementação dos Centros de Atenção

Psicossocial – CAPS – lócus dessa pesquisa.

3 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE A REFORMA PSIQUIÁTRICA

3.1 Hospital Psiquiátrico: Instituição Total

Segundo Michel Foucault (1999) o século XVII pode ser caracterizado como o

período da “Grande Internação”; será entre os muros do internamento que pobres,

vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” farão parte da mesma paisagem que outrora

excluíra e segregava os indivíduos, inicialmente demarcados pela lepra e depois pelas doenças

venéreas. Mais precisamente na segunda metade deste século ter-se-á a criação de vastas

casas de internamento, que apesar de não se assemelharem à nenhuma idéia médica,

prescrevem e estabelecem o controle, a justiça e a repressão dos indivíduos.

Nesses espaços em que se mesclavam, todo o tipo de desordem humana - orgânica,

econômica, social, moral e mental – foi que a loucura se ancorou; sem ter um espaço próprio,

ela ocupou o mesmo espaço da lepra, seja pela segregação ou pela exclusão; assim muitos

leprosários que estavam vazios desde a Renascença foram reativados e se transformaram

nessas casas de internamento. Na Idade Média, entretanto, a segregação dos leprosos tinha

apenas um sentido médico; no Classicismo, a invenção do internamento já agregava um

sentido político, social, religioso, econômico e moral.

Na Inglaterra, essas casas se denominavam inicialmente de ‘houses of correction’

depois se tornaram conhecidas como ‘workhouses’ (a primeira em 1575); nos países de língua

alemã têm-se as casas de correição – as chamadas de “Zuchthäusern” (a maioria do século

XVII), e na França o grande expoente foi o Hospital Geral , Paris – fundado em 1656.

A internação é uma criação institucional própria ao século XVII..como medida

econômica e precaução social, ela também tem valor de invenção. Mas na história

do desatino, ela designa um evento decisivo; o momento em que a loucura é

percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da

impossibilidade de integrar-se no grupo: o momento em que começa a inserir-se no

texto dos problemas da cidade. (FOUCAULT, 1999, p.78).

Com o espaço moral do internamento, a era clássica encontrara ao mesmo tempo o

lugar da redenção comum aos pecados da carne e da razão, sob a ética da instituição familiar

que traçava o círculo dos perigos do desatino; seu papel era entes de tudo, uma reforma moral.

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A doença mental, que a medicina vai atribuir-se como objeto, se constituiu pelo sujeito

juridicamente incapaz e do homem reconhecido como perturbador do grupo. Será a partir

dessa lógica, que teremos a estigmatização do sujeito internado, daí - o doente mental - ser

considerado um perigo social até hoje.

No século XVII e XVIII, o pensamento e a prática da medicina não têm a unidade ou

pelo menos a coerência que nela agora conhecemos. Será, pois, através do asilo de Philippe

Pinel na França e dos retiros de Samuel Tuke na Inglaterra que a psiquiatria positiva do século

XIX encontrará os loucos. A passagem da loucura para o âmbito patológico; ou melhor, a

mudança da concepção clássica da loucura para seu enquadramento pela emergência do saber

psiquiátrico não foi imediata e nem simples assim; a própria idéia de loucura – a que os

gregos chamam de “mória” e os italianos de “pazzia” - já se diferenciava da concepção

vigente na Idade Média - visto como uma consciência dos poderes trágicos do mundo.

(ROTERDAM, 1991). Na Idade Clássica, a loucura se encontrava no campo da razão

encarnada em homens concretos, presentes no mundo social.

A partir de então, busca-se então, a apreensão da consciência dessa loucura. Para tal,

todo um aparato foi se constituindo em busca de uma organização supostamente patológica

das doenças mentais, através do projeto de um “jardim das espécies”, classifica-se e agrupa-se

as doenças; foi-se utilizando dos mesmos recursos investigativos da botânica que a psiquiatria

foi criando o quadro nosológico das perturbações conhecidas como “doença dos

nervos”.(FOUCAULT, 1999).

Através da “idéia de nervoso”- século XVIII - se reordenou uma totalização

individualizante do homem. Os “nervos”, observados enquanto expressão da fisicalidade do

indivíduo assumiram de modo crescente uma significação monista (junção do corpo e

espírito), traduziram as “pertubações físico-morais” resultantes de uma combinação entre o

organismo e os modos e efeitos do comportamento dos indivíduos (DUARTE, 1986).

Num movimento contínuo, os loucos, os que têm problemas dos ‘nervos’ vão sendo

progressivamente isolados dos outros sujeitos que ocupavam o mesmo espaço que ele. Da

mesma forma que a mendicância foi se constituindo num problema de ordem econômica e

social, a loucura foi se afirmando como um saber psiquiátrico; entretanto, no primeiro caso o

mendigo se tornou o tutelado do Estado e no segundo, o louco foi confundido com a própria

loucura e ambos deveriam por isso, ter um espaço e um saber próprio: o Hospital Psiquiátrico

e a Psiquiatria, respectivamente.

A psiquiatria encontrou a sua pátria – o espaço do internamento e nele fará todo o

investimento possível para definir seus discursos e suas práticas e com isto reafirmar a

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pertinência dos internados nesse espaço de confinamento. Passemos, pois, para a situação

desses indivíduos que, desde então, estão sob a égide do internamento.

Para Erving Goffman em “Ensayos sobre la situación social de los enfermos

mentales”, (1994) – o indivíduo na situação, de internamento, passa inevitavelmente por um

processo de “mortificação social” que começa desde o momento em que o mesmo adentra

nestes espaços de internamento, sejam eles o convento, o presídio ou o Hospital Psiquiátrico;

ou seja, todos os indivíduos internados irão passar por esse processo de mortificação social

independente da Instituição Total. Não obstante, apesar de passarem pelo mesmo processo

não significa que vão passá-lo da mesma maneira, ainda mais quando consideramos o

ingresso não voluntário (prisões e hospitais psiquiátricos).

Goffman define uma Instituição Total como “um lugar de residência y trabajo, donde

um gran número de indivíduos em igual situación, asilados de la sociedade por um período

apreciable de tiempo, comparten em su encierro uma rutina diária, administrada

formalmente.” (GOFFMAN, 1994, p.13)

Ao considerar as relações sociais que o indivíduo manterá após ser internado,

diferentemente das que tinha anteriormente, o autor denuncia a vida interna de uma

Instituição Total através de uma perspectiva crítica ao delatar a disputa de poder interna –

entre a própria equipe dirigente e também a relação desta para com o internado.

Algumas características são intrínsecas a essas Instituições: todos os aspectos da vida

se dão num mesmo lugar, pessoas diferentes compartilham da mesma rotina diária, as

atividades diárias já estão programadas etc. O indivíduo nesse esquema, não tem a mínima

participação da programação que irá atingir sua própria vida; embasados num discurso de que

‘eles não sabem o que fazem’, a Instituição se encarrega de regulamentar e controlar a rotina

diária dos internos em seus mínimos detalhes. Resultante desse tipo de controle impera o

distanciamento entre as equipes dirigentes e os internados, como forma de exercer e justificar

o poder sobre o ‘outro’ acabam aprofundando o abismo entre eles; diante da manutenção dos

estereótipos antagônicos se formam dois mundos sociais e culturalmente diferentes. Duas

perspectivas se justapõem: a do mundo dos pacientes – dos internados e a do pessoal da

equipe dirigente.

Ao entrar na Instituição, o doente mental, já começa a sofrer o processo de

“mortificação social”. Desde o primeiro instante, já nos procedimentos de admissão -

“preparação ou programação”, o interno começa a perder sua identificação pessoal, seja por

ter que se adequar a um padrão estético comum (cortar o cabelo) e até por usar a mesma roupa

(uniforme), por exemplo. As regras nesses primeiros momentos se fazem imperativas e o

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indivíduo, tão logo não as siga, conhecerá as punições respectivas. Assim, toda uma lógica vai

se constituindo e vai definindo o comportamento do indivíduo, de acordo com os

procedimentos internos dessa Instituição.

Se por um lado, temos a afirmação do poder da Instituição – com todos os seus

imperativos de moralidade e coerção social, por outro, se tem uma desfiguração pessoal do

internado e este no limite, se torna simplesmente ‘mais um’ na Instituição. Por conseguinte,

quanto mais tempo passar, maior vai ser a incidência desse processo – o de mortificação

social - em sua vida e dessa forma, mais difícil será o seu retorno à vida extra-hospitalar.

Numa Instituição Total, os limites pessoais são completamente transpostos, e os

internados só mantêm contato com sua própria consciência – que não é digna de respaldo,

com o seu corpo – literalmente aprisionado, com os seus atos e pensamentos - controlados ao

extremo e por fim, alguns dos poucos pertences que está autorizado a ter; objetivam-se com

isso mostrar ao doente mental sua nova condição - a de ser um recluso.

O indivíduo por duas rupturas passa diante da mortificação. A primeira: por uma

espécie de “looping” o indivíduo reage defensivamente colocando uma distância entre a

mortificação e o seu eu; a segunda, já mais incisiva viola a autonomia do ato do indivíduo, na

medida em que as sanções invadem a vida do internado. Desde que chega à Instituição, o

indivíduo vai perdendo o controle de sua vida e a “economia personal de los proprios actos”

vai sendo progressivamente destruída, o que acaba resultando numa completa dependência

deste interno à outras pessoas para realizar um simples ato.

Como se há sugerido anteriormente, uno de los medios más efectivos de desbaratar

la economia de acción de uma persona es obligarla a pedir permiso o elementos para

las actividades menores que cualquiera puede cumplir por su cuenta en el mundo

exterior, tales como fumar, afeitarse, ir al baño, hablar por telefóno, gastar dinero o

despachar cartas.(GOFFMAN, 1961, p.51).

Em cada Instituição, entretanto, haverá uma resposta para atos não respeitados por

parte dos indivíduos internos, exemplo: no campo de concentração – dano físico ou morte, na

escola de oficiais – humilhação perante os outros e no hospital psiquiátrico – a cela de

isolamento.

Concomitante ao processo de “mortificação social”, o indivíduo, o interno começa a

receber instruções formais e informais “sistema de privilégios”, como medida de assegurar a

eficácia daquele. Será esse sistema, que legitimará a manutenção do processo citado, por

operações contrárias, ele acaba sustentando a lógica perversa do dar e receber. Esse sistema

se baseia em três elementos básicos, a saber: “as normas de la casa”, recompensas e

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privilégios mínimos – ligados à obediência – e os castigos – evidentemente ligado à quebra de

regras impostas pela Instituição.

No entanto, cada interno utilizará diferentes modos para se adaptar nas distintas etapas

de sua vida no internamento. Para que a Instituição dê conta dessas diferentes adaptações, ela

vai inscrevendo dentro dos muros do internamento um ”juego astuto” objetivando controlar a

tensão existente entre o mundo habitual e o mundo institucional.

Segun los princípios del juego astuto subordina los contactos con los compañeros a

la exigência superior de “eludir complicaciones”; tiende a no ofrecerse como

voluntário para nada; y si acaso aprende a cortar sus vínculos com el mundo

exterior, en la medida necesaria para dar realidad cultural al mundo interior, no lo

hace hasta um punto que pueda conducirlo a la colonizácion. (GOFFMAN, 1961,

p.73).

Sem levar em conta o mundo dos pacientes internados, o Hospital Psiquiátrico,

enquanto modelo de uma Instituição Total acabou tendo suas estruturas abaladas; de modo

contínuo sua importância enquanto espaço de internamento e tratamento aos doentes mentais

acabou sendo questionada. O discurso oficial dessas Instituições – reabilitar o interno – não

dá mais conta desse complexo cenário, neste caso - o da saúde mental, surgem novos atores e

outros cenários que tentam compor a nova cena.

A questão é como encontrar um meio termo nessa equação, que leve em conta o

mundo dos pacientes por um lado e a dos profissionais de outro, sem que com isso se dê

primazia a algum deles.

Este contexto crítico e de crise evidente, de questionamento e avaliação dos

mecanismos institucionalizados no campo da saúde mental permitiu um movimento

denominado de Reforma Psiquiátrica – que colocará o modelo hospitalocêntrico em xeque-

mate.

3.2 A Reforma Psiquiátrica

No contexto da reliberalização do pós-2ª Guerra Mundial (1939-1945), a primeira

psiquiatria (alienista) ressurgiu enquanto uma “Nova Psiquiatria” (novo conjunto de saberes e

práticas terapêuticas); tratava-se de planejar e implementar políticas assistenciais capazes de

afirmar a liberdade e a igualdade social, no interior das sociedades capitalistas devastadas pela

guerra, porém vencedoras. Os fatores que contribuíram para o desenvolvimento de

alternativas ao modelo asilar/hospitalocêntrico – principalmente nas décadas de 40 e 50,

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foram: o clima de liberalismo e de democracia reinante após a vitória dos aliados contra o

totalitarismo nazi-facista, criação de movimentos pró-direitos civis, associação de parentes e

amigos dos doentes mentais, por exemplo.

O ideário da Nova Psiquiatria se constituiu, fundamentalmente, a partir do priori de

que era primordial reverter a situação de exclusão do doente mental. Imbuído desse ideário

igualitário-libertário, o campo psiquiátrico, na Europa e nos EUA, dava origem a uma série de

novas “experiências”: as comunidades ‘terapêuticas’ e a Antipsiquiatria, na Inglaterra; a

Psiquiatria Comunitária ou Preventiva, nos EUA; e no final da década de 1960, a Psiquiatria

democrática, na Itália. Estas iniciativas eram “Experiências que se opunham à prevalência da

atenção à fisicalidade da doença mental e, principalmente, ao isolamento terapêutico,

reinvindicando a necessidade da desinstitucionalização”. (VENÂNCIO, 1993, p.127).

Essa “Nova Psiquiatria” se opunha à psiquiatria organicista pautada pelos tratamentos

que incidiam somente sobre o aspecto físico e orgânico do indivíduo e também pelo

internamento do indivíduo na instituição asilar.

Em oposição à psiquiatria biológica, sustentada pelo eletrochoque, pela internação

prolongada e pelo suposto uso abusivo dos psicofármacos, o novo ideário privilegia a

dimensão social do doente mental à sua esfera individual, o que não significa dizer que essa

“Nova Psiquiatria” discrimina o uso da medicação.

No Brasil o início do processo de Reforma Psiquiátrica data-se do final da década de

70, resultado da crise no modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico1, por um

lado, e na eclosão, por outro, dos diversos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes

psiquiátricos.

A Reforma Psiquiátrica é processo político e social complexo, composto de atores,

instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos

governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos serviços

de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos

mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário

social e da opinião pública. (BRASIL, 2005, p.06).

A Reforma Psiquiátrica, portanto, deve ser entendido por um conjunto de

transformações, de práticas, saberes, valores culturais e sociais, ou seja, em torno do louco ou

da loucura propriamente dita.

1 O primeiro hospício brasileiro – Imperador D. Pedro II - data de 1852, Rio de Janeiro, já em sua época de

funcionamento, se tornou alvo de várias críticas pelos tratamentos que prestava aos internos , considerados hoje

violentos e desumanos; porém condizentes com o quadro geral da psiquiatria naquele momento.

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3.3 Desinstitucionalização da Assistência Psiquiátrica

De acordo com o relatório “Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no

Brasil” do Ministério da Saúde, 2005, podemos considerar três momentos históricos que

caracterizam as etapas do processo de Reforma em nosso país: o primeiro de 1978 a 1991 é

evidenciado como o período em que se fizeram presentes as críticas ao modelo

hospitalocêntrico; o segundo, de 1992 à 2000, período em que se começa efetivamente a

implantação da rede extra-hospitalar e o terceiro período, após 2001, marcado pelo respaldo

jurídico. Será em consonância à essas etapas que conduziremos esse trabalho.

A primeira etapa do processo de Reforma no Brasil teve com O Movimento dos

Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) de 1978 o início efetivo do movimento social em

prol dos direitos dos pacientes psiquiátricos. É sobretudo este Movimento caracteristicamente

plural em sua origem, que através de seus vários atores constituintes como: trabalhadores

integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de

associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas – que

se tornou possível denunciar e lutar a favor dos direitos humanos dos ‘loucos’.

É sobretudo este Movimento, através de variados campos de luta, que passa a

protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos

manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de

assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e

ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos

mentais.(BRASIL, 2005, p.07).

Inspirado pela experiência italiana de desinstitucionalização em psiquiatria e sua

crítica ao manicômio, o MTSM começa a sugerir propostas e ações para a reorientação da

assistência psiquiátrica. Já na década de 80, podemos evidenciar a influência desse

Movimento na Colônia Juliano Moreira – enorme asilo com mais de 2000 internos - por meio

da suspensão dos tratamentos de eletro-choque, abertura dos quartos-fortes e também do

fechamento à novas internações. Neste período, podemos destacar também, a realização do II

Congresso Nacional do MTSM (Bauru, SP), da I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio

de Janeiro) como elementos que contribuíram para a Reforma Psiquiátrica.

Os acontecimentos de extrema importância nesse período e que atentam para a

possibilidade de se construir efetivamente uma rede de cuidados substitutiva ao hospital

psiquiátrico são: o surgimento do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no Brasil,

inaugurado em março de 1986, na cidade de São Paulo, Centro de Atenção Psicossocial

Professor Luiz da Rocha Cerqueira, conhecido como “CAPS da Rua Itapeva”; o início de um

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processo de intervenção na Casa de Saúde Anchieta (Santos-SP) em 1989, devido à denúncia

de maus-tratos e mortes dos pacientes; a implantação, também em Santos, de Núcleos de

Atenção Psicossocial (NAPS) que funcionam 24 horas, de cooperativas, de residências para

os egressos do hospital e associações. (BRASIL, 2004).

Em 1988 é implantado o SUS (Sistema Único de Saúde), entidade que será de extrema

importância na articulação da Saúde Mental no país nos anos vindouros. Em 1989, o deputado

Paulo Delgado (PT/MG) dá entrada no Congresso Nacional de um Projeto de Lei que propõe

a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção dos

manicômios no país. Articulados esses fatores devem ser entendidos como peças

fundamentais e constituintes dessa primeira etapa.

A partir do segundo período do processo (1992-2000) que a Reforma Psiquiátrica,

começa a ganhar contornos mais definidos. Será na década de 90, que as primeiras normas

federais irão regulamentar a implantação de serviços de atenção diária, fundadas nas

experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia, bem como estabelecerá as primeiras

normas para fiscalização e avaliação dos hospitais psiquiátricos.

As experiências iniciais das lutas do Movimento revelam que a Reforma Psiquiátrica,

não sendo apenas uma retórica, era possível e exeqüível.

Será a partir de 2001, com a aprovação Lei Federal Paulo Delgado

10.216/2001(PT/MG) – depois de 12 anos tramitando no Congresso Nacional - que o projeto

da Reforma Psiquiátrica no Brasil passará a ter mais visibilidade e uma maior sustentação;

uma vez que “Dispõe sobre a proteção e o direito das pessoas portadoras de transtornos

mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. Apesar de não instituir

mecanismos claros para a extinção dos manicômios, esta lei é um marco impulsionador à

Reforma no país e que caracteriza a terceira etapa do processo. A partir deste ano, a saúde

mental experimenta uma importante expansão que se dá através de financiamentos criados

pelo Ministério da Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico em

todo o país, é o caso das Portarias: Nº 1174/GM de 07 de Julho de 2005 e Nº 245/GM de 17

de Fevereiro de 2005.

A partir de então, a Reforma Psiquiátrica se consolida como política oficial do

governo federal. Por meio de mecanismos regulatórios o Estado contribuiu efetivamente para

a desconstrução do modelo asilar.

Mecanismos de avaliação e redução de leitos psiquiátricos, institucionalizados pelo

governo federal como “Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria

(PNASH/Psiquiatria)” – 1º processo avaliativo sistemático, anual, dos hospitais psiquiátricos

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no Brasil, instituído em 2002 e o “Programa Anual de Reestruturação da Assistência

Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH)” - estratégia de redução progressiva e pactuada de

leitos a partir dos macro-hospitais, instituída em 2004; aliados à expansão de uma rede de

atenção aberta e comunitária, permitiu a redução e substituição significativa de leitos

psiquiátricos e o fechamento de vários hospitais psiquiátricos em péssimas condições de

funcionamento, como por exemplo: Sanatório Espírita Vicente de Paulo de Ribeirão Preto/SP;

Clínica Espírita de Repouso de Goiânia/GO; Sanatório Barbacena Ltda de Barbacena/MG;

Inst. de Neuropsiquiatria e Reabilitação Funcional de Campina Grande /PB e Hospital

Estadual Teixeira Brandão de Carmo/RJ.2

3.4 Modo Asilar e Modo Psicossocial: uma coabitação difícil

Face ao processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, novas práticas e saberes estão se

constituindo no campo da Saúde Mental como alternativos ao modelo hospitalocêntrico/asilar,

até então dominantes. Será utilizando como exemplo esses dois modos básicos de atenção à

Saúde Mental que evidenciaremos a relação proposta nesse trabalho: a de se pensar os corpos

dos 'loucos' associados à nossa cotidianidade.

Antes, porém, iremos definir o que entendemos por esses modos, acatando a seguinte

proposta: “Por oposição ao modo asilar como paradigma das práticas dominantes, proponho

designar modo psicossocial ao paradigma que vai se configurando tendo por base as práticas

da Reforma Psiquiátrica.” (COSTA-ROSA, 2000, p.151).

Algumas considerações acerca do modo asilar: dá ênfase às determinações orgânicas e

por isso aos psicofármacos; pouca ou nenhuma consideração ao sujeito doente; prescrição do

isolamento como meio de tratamento eficaz, dificultando o contato com a família e a

sociedade; tanto os usuários quanto à população estão excluídos de qualquer participação nos

Hospitais Psiquiátricos.

Por sua vez, o modo psicossocial, preconiza: os fatores políticos e

biopsicosocioculturais como determinantes no processo a saúde-doença; seu tratamento

básico serão as psicoterapias, laboraterapias, socioterapias e um conjunto de dispositivos de

reintegração sociocultural - não bane por isso a medicação, mas também não a exalta; enfatiza

a pertinência do indivíduo a um grupo familiar e social, dentre outros.

O Hospital Psiquiátrico - modelo de uma Instituição Total, no sentido atribuído à

2 Dados extraídos do Relatório de Gestão 2003-2006 do Ministério da Saúde

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expressão de Goffman - se tornou o dispositivo institucional mais evidente do modo asilar e

por isso o alvo mais atingido e criticado. Em outra direção, paralela e concomitante, novos

dispositivos institucionais sublinharão a perspectiva do modo psicossocial e que irá ao

encontro dos principais avanços conquistados na construção de uma atenção em rede e de

base comunitária em Saúde Mental no SUS, são eles: os CAPS, as Residências Terapêuticas,

os Ambulatórios de Saúde Mental, os Centros de Convivência e Cultura, as Equipes

Matriciais de Referência e os Hospitais-Dias. Neste trabalho, iremos abordar o CAPS:

Centros de Atenção Psicossocial, devido sua incontestável relevância no cenário da Saúde

Mental.

3.5 Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)

Os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS – são expressões institucionais face a

Reforma Psiquiátrica e que se configuram como um dos novos modos de atenção à Saúde

Mental que estão se expandindo e consolidando, no país; em oposição ao “modo

hospitalocêntrico/asilar” que progressivamente está sendo substituído por estes.

Por meio de tabelas, é possível visualizar os deslocamentos dos indivíduos com

transtornos mentais para essas novas instituições, ressaltando de antemão, a importância de

avaliarmos os serviços que estão sendo prestados nessas redes, pois partimos da premissa que

não basta simplesmente mudarmos os pacientes de uma Instituição a outra para se ter um

novo modelo de assistência em Saúde Mental, mas sobretudo é importante, mudar o modo de

produção de cuidado para que tenhamos uma mudança no perfil assistencial, esse é o nosso

ponto de vista.

Abaixo, apontarei alguns dados do Ministério da Saúde, em especial da Secretaria de

Saúde Mental, que permite vislumbrar o deslocamento dos pacientes com transtornos mentais

dos hospitais psiquiátricos aos CAPS.

Se por um lado, o que se vê é a redução dos leitos psiquiátricos (Tabela 01) e também

dos investimentos financeiros (Tabela 02) destinados aos Hospitais psiquiátricos:

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Tabela 01 – Número de Leitos de Hospitais Psiquiátricos no Brasil (2002-Julho2011)

Ano Nº de Leitos de Hospitais Psiquiátricos

2002 51.393

2003 48.303

2004 45.814

2005 42.076

2006 39.567

2007 37.988

2008 36.797

2009 34.601

2010 32.735

2011 32.681

Fonte: Saúde Mental em Dados - Ano VI, n9, Julho de 2011/ Informativo Eletrônico. Brasília: julho de 2010

(acesso em 01/11/2011). Observação: Em 2002-2003, SIH/SUS, Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras

Drogas/DAPES/SAS/MS e Coordenações Estaduais. A partir de 2004, PRH/CNES e Coordenações Estaduais.

Tabela 02 - Proporção de recursos do SUS destinados aos Hospitais Psiquiátricos e aos

Serviços Extra-Hospitalares nos anos de 2002-2010

Ano

Composição de Gastos 100%

% Gastos Hospitalares

em Saúde Mental

% Gastos Extra-Hospitalares

em Saúde Mental

2002 75,24 24,76

2003 66,71 33,29

2004 61,83 38,17

2005 52,77 47,23

2006 44,08 55,92

2007 36,65 63,35

2008 34,36 65,54

2009 32,29 67,71

2010 29,44 70,56

Fonte: Saúde Mental em Dados - Ano VI, n9, Julho de 2011/ Informativo Eletrônico. Brasília: julho de 2010

(acesso em 01/11/2011).

Por outro, se têm a expansão e consolidação dessas redes de atenção à Saúde Mental

como substitutivas ao modelo hospitalocêntrico (Tabela 03):

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Tabela 03 - Expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (2002-2011*)

Tipo de

Serviço 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

CAPS I 145 173 218 283 437 526 618 686 761 780

CAPS II 186 208 236 271 322 346 382 400 418 420

CAPS III 19 24 29 26 38 39 39 46 55 55

CAPSi 32 37 44 56 75 84 101 112 128 132

CAPSad 42 58 78 102 138 160 186 223 258 262

CAPSadIII - - - - - - - - - 01

Total 424 500 605 738 1010 1155 1326 1467 1620 1650

Fonte: Saúde Mental em Dados 9 - Ano V, n7, Julho de 2011. *Observação: Números de 2011, até Julho.

Disponível em:< http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/mentalemdados2011.pdf> Acesso em: 15 Jan.

2012

Destaca-se um dado extremamente relevante: em 2006 atingiu-se a marca de 1.010

CAPS cadastrados e em funcionamento no SUS, ano também em que os recursos federais

empregados nas ações extra-hospitalares (correspondendo a um total de 55,92% dos recursos

destinados a Saúde Mental) ultrapassaram o investimento às redes hospitais.

Hoje esses números são ainda mais expressivos, já que até o mês de Julho de 2011,

segundo o relatório do Ministério da Saúde intitulado “Saúde Mental em Dados – 9”, temos

1.650 CAPS implementados no Brasil, o que corresponde a uma cobertura equivalente a 68%

em todo o território (se considerarmos o parâmetro de um CAPS para cada 100 mil

habitantes); evidente expansão se comparado com os 424 CAPS existentes em 2002, o que

significava uma cobertura de 21%.

Outro dado significante, é a implementação por meio da Portaria nº 2.841, de 20 de

Setembro de 2010, do primeiro Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas - 24h –

CAPS ad, no Estado do Rio de Janeiro.

Dados como esses, me permitiu concluir que inexoravelmente há um deslocamento

dos indivíduos com transtornos mentais dos Hospitais Psiquiátricos para os Centros de

Atenção Psicossocial, que precisa ser considerado. Ademais, na tabela 04, temos os

indicadores de cobertura do CAPS para cada 100 mil habitantes. Destaca-se que o Brasil

passou de um indicador de 0,21 em 2002, para um indicador de 0,68 em Julho de 2011, o que

demonstra um grande avanço no que tange à cobertura no país. Os parâmetros para esse

indicador são: Cobertura muito boa (acima de 0,70); Cobertura boa (entre 0,50 e 0,69);

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Cobertura regular/baixa (entre 0,35 a 0,49); Cobertura baixa (de 0,20 a 0,34) e para Cobertura

insuficiente/crítica (abaixo de 0,20).

A acessibilidade melhorou em todo o país e 11 estados já apresentam uma cobertura

considerada muito boa; 07 apresentam uma cobertura considerada boa. O Amazonas, que por

conta da recente expansão de serviços, ultrapassou o DF no que tange a cobertura assistencial

em saúde mental. Permanece como desafio a expansão de serviços para populações

específicas (CAPSad e CAPSi) e de atenção 24 horas ( CAPS III).

Tabela 04 - Centros de Atenção Psicossocial por tipo e Indicador CAPS/100.000 habitantes

por UF (Brasil – 15 de julho de 2011)

UF

CAPS

I

CAPS

II

CAPS

III

CAPS

i

CAPS

AD

CAPS

AD III

Total

CAPS Indicador

Acre 0 1 0 0 1 0 02 0,28

Alagoas 37 06 0 01 02 0 46 0,88

Amazonas 05 04 01 0 0 0 10 0,23

Amapá 0 0 0 01 02 0 03 0,45

Bahia 121 31 03 07 16 0 178 0,85

Ceará 45 29 03 06 17 0 100 0,94

Distrito

Federal 01 02 0 01 02 0 06 0,24

Espírito Santo 07 08 0 01 03 0 19 0,44

Góias 11 14 0 02 04 0 31 0,42

Maranhão 36 13 01 03 06 0 59 0,63

Minas Gerais 81 46 08 12 20 0 167 0,67

Mato Grosso

do Sul 09 06 01 01 04 0 21 0,69

Mato Grosso 24 02 0 02 05 0 33 0,69

Pará 24 12 01 02 06 0 45 0,44

Paraíba 38 08 03 07 08 0 64 1,23

Pernambuco 26 18 02 06 12 0 64 0,59

Piauí 27 06 01 01 04 0 39 0,83

Paraná 35 27 02 08 22 0 94 0,74

Rio de Janeiro 34 39 01 16 18 01 109 0,58

Rio Grande do 12 11 01 02 06 0 32 0,84

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Norte

Rondônia 11 05 0 0 01 0 17 0,74

Roraima 01 0 0 0 01 0 02 0,33

Rio Grande do

Sul 65 37 0 15 24 0 141 1,01

Santa Catarina 43 13 02 06 11 0 75 0,87

Sergipe 19 04 03 02 04 0 32 1,16

São Paulo 61 76 22 30 62 0 251 0,56

Tocantins 07 02 0 0 01 0 10 0,47

TOTAL 780 420 55 132 262 01 1650 0,68

Fonte: Saúde Mental em Dados 9 - Ano V, n7, Julho de 2011. *Observação: UF – Unidades da Federação. Disponível em: <

http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/mentalemdados2011.pdf> Acesso em: 15 Jan. 2012.

Portanto, sublinho a importância de conhecer qual o modo de produção de cuidado que

está em agenciamento nos CAPS, e para isso, apostamos num estudo avaliativo sobre as

práticas assistenciais.

De acordo com o Relatório 2003-2006 do Ministério da Saúde intitulado “Saúde

Mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção” (2007), pode-se

entender o CAPS como:

Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) Serviços de saúde municipais, abertos,

comunitários, que oferecem atendimento diário às pessoas com transtornos mentais

severos e persistentes, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social

destas pessoas através do acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e

fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É função dos CAPS prestar

atendimento clínico em regime de atenção diária, evitando assim as internações em

hospitais psiquiátricos; promover a inserção social das pessoas com transtornos

mentais através de ações intersetoriais; regular a porta de entrada da rede de

assistência em saúde mental na sua área de atuação e dar suporte à atenção à saúde

mental na rede básica. (BRASIL, 2007, p.63).

Segundo o relatório do Ministério da Saúde, intitulado “Saúde Mental no SUS: os

Centros de Atenção Psicossocial” de 2004, o CAPS tem como objetivo:

[...] Dar um atendimento diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais

severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados clínicos e de

reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo hospitalocêntrico,

evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania e da inclusão social

dos usuários e de suas famílias.” (BRASIL, 2004, p.12).

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Os CAPS deverão ter espaço próprio e adequado para atender sua demanda à sua

demanda especifica, e para atingir seu propósito – enquanto espaço alternativo no cenário

psiquiátrico deverão ter os seguintes recursos físicos: consultórios para atividades individuais

(consultas, entrevistas, terapias); salas para atividades grupais; espaço de convivência;

oficinas; refeitório (o CAPS deve ter capacidade para oferecer refeições de acordo com o

tempo de permanência de cada paciente na unidade); sanitários; área externa para oficinas,

recreação e esportes. (BRASIL, 2004, p.14).

Os profissionais que trabalham nos CAPS possuem diversas formações e integram

uma equipe multiprofissional. É um grupo de diferentes técnicos de nível superior e de nível

médio. Os profissionais de nível superior são: enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes

sociais, terapeutas ocupacionais, pedagogos, professores de educação física ou outros

necessários para as atividades oferecidas nos CAPS. Os profissionais de nível médio podem

ser: técnicos e/ou auxiliares de enfermagem, técnicos administrativos, educadores e artesãos.

Os CAPS contam ainda com equipes de limpeza e de cozinha.

Para ser atendido nos CAPS, pode-se: procurar diretamente esse serviço; ser

encaminhado pelo Programa de Saúde da Família ou por qualquer serviço de saúde e a pessoa

pode ir sozinha ou acompanhada, devendo procurar, preferencialmente, o CAPS que atende à

região onde mora. (Se uma pessoa está isolada, sem condições de acesso ao serviço, ela

poderá ser atendida por um profissional da equipe do CAPS em casa, de forma articulada com

as equipes de saúde da família do local, quando um familiar ou vizinho solicitar ao CAPS).

De acordo com a Portaria Nº 336/GM de 19 de Fevereiro de 2002, o Ministro da

Saúde – José Serra, no uso de suas atribuições legais define o Serviço de atenção psicossocial

de acordo com a população do município:

CAPS I – municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes;

CAPS II – municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes;

CAPS III – municípios com população acima de 200.000 habitantes.

Outros três serviços com clientelas específicas e por isso inovadores compõem a rede

CAPS, são ele:

CAPS i II – Serviço de atenção psicossocial para atendimentos a crianças e

adolescentes, constituindo-se na referência para uma população de cerca de 200.000

habitantes, ou outro parâmetro populacional a ser definido pelo gestor local,

atendendo a critérios epidemiológicos;

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CAPS ad II – Serviço de atenção psicossocial para atendimento de pacientes com

transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas, com

capacidade operacional para atendimento em municípios com população superior a

70.000.

CAPS ad III (24h) – Segundo o primeiro parágrafo do artigo primeiro da Portaria nº

2.841 de 20/09/2010, esse tipo de CAPS atende a mesma clientela do CAPS ad II,

porém com o funcionamento durante 24 horas por dia, inclusive nos feriados e finais

de semana.

O Art. 6º da Portaria 336/GM estabelece que os atuais Centros de Atenção

Psicossocial e os Núcleos de Atenção Psicossocial deverão ser recadastrados de acordo com

as modalidades CAPS I, II, III, CAPS i II e CAPS ad II. O mesmo procedimento se aplicará

aos novos CAPS que vierem a ser implantados.

Esses CAPS enquanto dispositivos estratégicos para a consolidação da Reforma

Psiquiátrica pode produzir efeitos positivos no tratamento dos usuarios, na medida em que

coloca em ação a chamada “clínica do encontro”, a qual é pautada pelo diálogo, pela escuta

interessada e pela produção de intersubjetividades e nesse sentido, promover relações entre os

sujeitos que se encontram no CAPS, tendo em vista às ações que englobam o acolhimento, os

espaços de interlocução, as estratégias que permitem a autonomia dos usuários e a

integralidade do cuidado (NUNES et al., 2008)

A integralidade da atenção deve ser pautada pelo entendimento de que o sujeito é um

ser de múltiplas necessidades e que por isso, essas necessidades não podem ser consideradas

de forma isolada e descontínua do contexto social. Nesse contexto, a integralidade pode ser

entendida como uma ação compromissada em quebrar barreiras ao romper com o ideal de

hospitalização, medicalização e isolamento característico do modo asilar.

A noção de integralidade da atenção nos serviços de saúde deve ser permeada pelo

entendimento de que cada pessoa é um todo indivisível, único, mas também social e que as

ações, sejam elas: de promoção, proteção ou recuperação da saúde, não podem ser

fragmentadas. Por conseguinte, para que se tenha a integralidade de fato nas ações de saúde

mental aos usuários, se faz como condição necessária, o envolvimento de todos os níveis de

atenção em saúde, aliando nessa perspectiva os serviços da rede básica de saúde, os serviços

especializados, o esporte, a cultura, o trabalho e o lazer. (NASI et al, 2009).

Portanto, o CAPS, foi escolhido como lócus privilegiado para essa dissertação; uma

vez que há uma produção e apropriação de novas instâncias que delimitam políticas, gestões e

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processos que se organizam em prol de uma nova rede de cuidado na Saúde Mental nesses

centros de atendimento. Efetivamente, o processo de cuidado desenvolvido por essas

instituições implica necessariamente no envolvimento e comprometimento de diferentes

atores incluindo os médicos, enfermeiros, assistentes sociais, recepcionistas, equipe técnica e

dos serviços gerais vinculados aos diferentes sistemas que compõem a relação desses

profissionais com os usuários e seus familiares.

Assim, após a evidência da importância do CAPS - lócus escolhido para a pesquisa -

dentro do cenário da Saúde Mental, passarei para as conceitualizações acerca da

corporalidade, já que como dito anteriormente, com a Reforma Psiquiátrica, nós temos um

deslocamento dos corpos dos pacientes para essas novas redes de atendimento. Sublinho

ainda, que esse deslocamento não passa despercebido, ele afirma ainda mais a loucura, que

agora não está mais aprisionada nos muros do internamento, está entre nós e pode ser vista a

qualquer momento e em qualquer esquina; pois, agora a ‘casa verde’ não está mais fechada,

ela abriu suas portas. (ASSIS, 1979).

4 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE CORPORALIDADE

4.1 O Corpo na Idade Média

Historicamente, pode-se observar uma estreita relação do conceito desenvolvido

acerca do corpo com a concepção de mundo que os homens se utilizam para explicarem o seu

universo; a diferença entre o conceito de corpo desenvolvido na Idade Média para a Idade

Contemporânea revela justamente que noções, conceitos e/ou categorias não podem ser

analisados abstendo-se das concepções que os homens têm do seu universo. Neste capítulo,

iremos abordar as concepções medievais acerca do mundo, para que a partir daí possamos

compreender a categoria ‘corpo’ nesse contexto.

A cosmovisão medieval postulava uma integração do homem – microcosmos, com o

universo - macrocosmos, ambos se fundiam de tal maneira que não se diferenciavam.

Assim, o pequeno expressa o grande. A parte contém o todo. O indivíduo exprime a

sociedade. A mão revela o destino. O rosto estampa o caráter. Esses princípios

valem para tudo; o mínimo está no máximo; mas também pode ser contingente do

máximo. (RODRIGUES, 2001, p.41).

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Na Idade Média, o cosmos constituía, portanto, uma unidade orgânica; mundo que se

desdobrava como um enorme sistema de símbolos. A simbologia entrelaçava o mundo natural

e sobrenatural, encobrindo quaisquer explicações causais e genéticas a partir de uma lógica

estritamente simbólica e analógica.

A cosmovisão da Idade Média3 era inteiramente teocêntrica, em que só o milagre

mudava a ordem das coisas naturais. Nesse mundo, em que não há delimitação do ser e da

coisa, de outro modo, em que não se tem uma distinção do real e do imaginário, o celestial e o

terreno se mesclavam tanto que já não se podia mais delimitar um ou outro; nada era

verdadeiramente espírito e nada era verdadeiramente matéria, ou seja, corpo e alma se

entrelaçavam completamente.

O simbolismo corporal tinha lugar crucial nos padrões medievais em que a

inseparabilidade do corpo e da alma se traduzia de modo vivo na sensibilidade dos homens

em dar sentido á própria dor, ou seja, o sofrer tinha uma conotação positiva; pois através da

dor era possível justificar a tortura como uma ação sobre o espírito, por meio daquilo que

chamaríamos de corpo: todos os sofrimentos impingidos ao corpo eram sofrimentos

estabelecidos sobre a alma e vice-versa. Dentro dessa lógica simbólica, o espírito não se

separava da matéria, bem como o corpo da alma; consequentemente à essa visão um cadáver

jamais era um mero cadáver, eis um ponto que merece ser destacado. Estamos diante de um

paradoxo: ora como explicar uma sociedade que legitima a tortura e considera um sacrilégio a

dissecação do corpo humano? A chave para a questão acima se pode ser justificado pelo fato

de que: “abrir o corpo era também bulir no espírito.” (RODRIGUES, 2001, p.58).

Com o aparecimento do dualismo cartesiano foi possível a superação do tabu medieval

– abertura do corpo humano – possível graças à separação entre corpo e alma; que se iniciou a

partir de um projeto de superar a dor; agora considerada como um problema da máquina

corporal; “[...] foi necessário desencantar o corpo, despojando-o de sua condição de

microcosmos.” (RODRIGUES, 2001, p.59).

Mais do que isso, a partir dessa disjunção expressa na dicotomia cartesiana corpo

versus alma, o corpo ressignificado, se tornou apenas sobra de uma alma. Agora o corpo

individual não se dilui mais no corpo social, nem no cósmico ou no universo; ele se encontra

numa nova fase em que suas próprias contradições terão que ser explicadas sob novos

ângulos. O deslocamento do sentido do corpo como algo difuso no meio social,

3 O universo medieval caracteriza-se por sua continuidade, sua coesão singular e seu simbolismo religioso entre

o mundo cósmico e o natural, o homem ocupa o posto intermediário desses mundos. (História da Filosofia

Cristã. Petrópolis, Vozes, 1982).

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indiferenciado foi perdendo espaço para sua individualização e diferenciação paralelamente a

outras concepções (foi o que aconteceu com a categoria ‘morte’) que de maneira análoga, foi

evidenciando o caráter biológico da dualidade alma e do corpo.

4.2 O caráter biológico da dualidade alma e corpo

A partir do século XVI, com a separação do corpo e da alma, o homem passa a ser

considerado como uma das espécies biológicas em que seus processos fisiológicos passam a

ser submetidos a questionamentos de cunho científico. Acontece que essa perspectiva nos

remete a um problema: a mesma ciência que insere o homem na natureza é ao mesmo tempo,

a que o dota de capacidade de transformá-la, ou seja, ele pode mudar o mundo. Entretanto,

mudar o mundo à vontade é próprio de um Deus; não de um homem, de um mortal – é

precisamente nesse ponto que a questão da morte natural se torna uma equação importante. O

fato é: apesar de o homem poder controlar e até mesmo transformar a natureza, não o dota de

potencialidades suficientes para contornar a morte; ele pode mudar tudo, menos sua condição

enquanto um ser mortal. Então qual foi a estratégia utilizada pelo homem para resolver esse

impasse?

Já que a morte se tornou um fenômeno independente de sua vontade, ou seja,

inevitável, só restou ao homem definir (pelo menos, a morte que lhe seria mais digna). Em

poucas palavras, o homem desloca sua impotência diante da morte para o ideal de se ter a

‘morte natural’, “que pressupõe a capacidade humana de intervenção sobre as leis da natureza

e o desenvolvimento do ambicioso projeto de supremacia sobre elas.” (RODRIGUES,1983,

p.156). Sob a alcunha desse projeto o homem pretende eliminar a morte violenta, a morte

precoce, a morte causal, enfim pretende ter uma morte com idade avançada e com menos

sofrimento possível.

Ao mesmo tempo, a noção de morte “natural” é coerente com o espírito das

classes que então emergem: ela é um protesto contra a brevidade da vida,

porque, se a morte não deriva mais do arbítrio das forças do além, mas de

causas a que os homens estão submetidos enquanto partes da natureza, ela

deriva, então, de causas que os homens podem, senão abolir, ao menos

controlar. (RODRIGUES, 1983, p.156).

A naturalização da morte, pelas razões acima, suscita outras considerações; nesse

momento (século XVII e XVIII) a morte se divide em duas: de um lado, a morte ‘natural’,

pois tudo inevitavelmente irá terminar para este homem mortal; de outro lado, a morte ‘não-

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natural’, inaceitável – que se pode atribuir a uma causa externa não natural (isto é: não

controlável). Desta forma, a morte natural se transforma rapidamente em uma aspiração do

homem moderno ocidental, que cultiva todos os meios para alcançá-la, principalmente através

da medicalização (seja para adiar o sofrimento ou para retardar a morte).

A partir dessa morte considerada como ‘natural’, o médico, inspirado na oposição

corpo/alma, desenvolve o seu novo conceito de doença, bem como novas formas para tratá-la;

a doença adquire o caráter de elemento exterior, ou seja, ela se transforma numa entidade

distante do homem, capaz de comportar um tratamento específico, descolado de outros

aspectos da integridade humana. A morte medieval foi deposta diante da medicina, e os

desígnios de Deus foram paulatinamente sendo substituídos pelas doenças mortais,

catalogadas e oficializadas pelo saber médico. A morte antiga diante da nova medicina,

começa a deixar de existir: “os médicos terão já substituído na cabeceira dos moribundos os

homens da Igreja e já estará largamente anunciada a morte quase integralmente laica do

século XX.” (RODRIGUES, 1983,p.158).

Cabe-nos, aqui, evidenciar justamente esse corpo, que não mais atende aos desígnios

celestes da Idade Média, mas tão somente aos propósitos da medicina que os utilizará para

constituir o seu saber, isso se faz necessário, porque irei mostrar adiante, que esses propósitos

de estendem dessa época até os momentos atuais, principalmente pelo conhecimento

psiquiátrico - determinante para o direcionamento de práticas voltadas para o cuidado em

saúde mental.

4.3 Sociologia do Corpo

De acordo com Le Breton (2002) podemos datar que no século XIX, se teve os

primeiros estudos sobre o corpo nas Ciências Sociais, em seu livro La Sociología del Cuerpo

considera que as reflexões sobre a corporeidade humana podem ser descritas em três

momentos históricos, quais sejam: uma “sociologia implícita do corpo”, “sociologia

detalhista” e no último momento uma “sociologia do corpo”. Segundo ele, desde os primeiros

estudos pode-se constatar uma tendência comum, todos de alguma forma voltam-se para o

corpo não só pelos fatores biológicos, mas o consideram como uma forma moldada pela

interação social.

A Sociologia considerada implícita pode ser exemplificada sob o ponto de vista de Le

Breton, através dos estudos de Villermé, Marx e Engels. Apesar do corpo não ter sido um

tema a parte naqueles estudos, ele foi abordado na medida em que a corporeidade se relaciona

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aos indicadores vinculados à saúde pública e às condições de vida dos trabalhadores. Nesse

contexto, o mais importante era revelar a condição miserável das classes trabalhadoras no

contexto da Revolução Industrial, numa tentativa de aliviar o corpo dos trabalhadores que se

exauriam depois das horas de trabalho exaustivo, em suas jornadas diárias. A comprovação

implícita do caráter social da corporeidade desemboca, em uma chamada à realização de

reformas, ou de maneira mais geral, ao compromisso revolucionário.

Estudos como de Robert Hertz (1980) e Marcel Mauss (2003), são exemplos de

abordagens preconizam outras dimensões na abordagem do corpo, ou seja, não se limitam à

dimensão biológica do corpo.

Para colocar em pauta alguns dos princípios dessa corrente, hoje considerada

completamente limitada; considera-se que:

as diferenças sociais e culturais são provenientes do aspecto biológico, ou melhor,

dizendo, de um imaginário biológico, e assim naturalizam-se as diferentes condições

justificando através das observações científicas, como: peso do cérebro, ângulo

facial, fisionomia[...].” (LE BRETON, 2002, p.17).

Para essa corrente a ordem do mundo obedece a uma lógica biológica, por isso se

pesa, se mede, se corta, se classifica e se vai transformando os resultados em indícios de

degeneração, de inferioridade, e de criminalidade, por exemplo. Diante, desse aspecto

biologizante da vida, só restava ao homem se conformar, pois “o homem não pode fazer nada

contra essa ‘Natureza’ que o envolve” (LE BRETON, 2002, p.18). Aqui, as qualidades do

homem, são entregues e deduzidas à esquemas físico-corporais, ou seja, o seu próprio corpo

correspondia diretamente ao seu comportamento; sua aparência, portanto, um mero reflexo

desse esquema.

A Sociologia do corpo como foi descrita para o autor Le Breton, é o estudo da

“corporeidade humana como fenômeno social e cultural, matéria simbólica, objeto de

representações e de imaginários.” (LE BRETON, 2002, p.14).

A corporeidade tomada nesse sentido expressa a singularidade desse novo olhar nos

estudos sobre o corpo, uma vez que considera antes de tudo, uma incidência social sobre o

corpo. Sendo assim, o corpo – moldado pelo contexto social e cultural do ator – poderá, então,

ser entendido como uma manifestação objetiva do elo entre o indivíduo e a sociedade. Por não

estar isolado numa esfera pura e simplesmente biológica, o corpo abarca uma dimensão muito

maior, fato esse que revela que sua natureza não é indiscutível; precisa ser analisada

cuidadosamente para que não caiamos num erro, como disse Le Breton: “É um absurdo omitir

o homem que encarna o corpo”. (LE BRETON, 2002, p.25).

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Ultrapassando os limites biológicos, já não se considera o homem como um produto

de seu corpo; ao contrário, ele agora é visto como o que produz as qualidades de seu corpo em

sua interação com outros homens. Essa Sociologia detalhista, como a chamou Le Breton,

marca avanços significativos nos estudos que abordaram a temática do corpo.

4.4 Corporeidade humana: fenômeno social e cultural

O texto de 1936, “As técnicas do Corpo”, pode ser considerado uma referência nos

estudos que abordam a temática do corpo e por isso, merece algumas considerações; seu

autor, Marcel Mauss, chama a atenção para o fato de que as técnicas corporais são específicas,

ou seja, são contextuais; assim muda-se o contexto e aquelas mudarão. Sendo a principal

expressão dos indivíduos, as técnicas do corpo - “as maneiras pelas quais os homens, de

sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” – podem ser

vistas como elo entre o indivíduo e a sociedade. (MAUSS, 2003, p.401).

Mais do que um simples arranjo de movimentos físico-psiquícos, as técnicas corporais

são os reflexos sociais; na medida em que cada sociedade possui seus hábitos próprios terá,

por conseguinte, suas próprias técnicas corporais para os expressarem. Sob essa ótica, a

técnica é antes de tudo uma força educadora, mesmo porque para cada técnica há uma

aprendizagem, como disse Mauss ao citar o exemplo de se reconhecer a diferença da marcha

inglesa para a marcha francesa. O mesmo mecanismo que acionamos para ver essa distinção –

das marchas - é o mesmo que nos faz reconhecer a diferença de um doente para um doente

mental.

O que está subjacente à essa questão, é o que Cliffort Geertz chamou de redes sociais

– que compartilhamos socialmente. A questão se deve ao fato de que se eu compartilhar, eu

reconheço. É por isso que se eu não compartilhar os códigos e símbolos que são

disponibilizados socialmente não saberei a princípio nem reconhecer o que seja uma marcha,

bem como a diferença de indivíduos se movimentando; quanto mais saber o que seja uma

marcha francesa e uma inglesa. Sem os códigos sociais, nenhuma distinção seria possível.

Esse é o ponto; estudar uma técnica é também estudar os elementos que a formaram, ou

melhor, é conhecer o contexto em que elas se cristalizaram.

Para abordar a questão do que chama de idiossincrasia social, Mauss se utiliza da

palavra habitus, pois em sua opinião é infinitamente melhor para exprimir a hexis, o

adquirido, diga-se literalmente adquirido desde a infância – ‘Imitação Prestigiosa’. Esse

aprendizado varia não simplesmente como os indivíduos e suas imitações, variam “sobretudo

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como as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios.” (MAUSS,

2003, p.404).

A criança como o adulto, imita atos bem sucedidos que ela viu ser efetuado por

pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela. O ato se impõe de fora, do

alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo – Imitação

Prestigiosa (MAUSS, 2003, p.405).

É precisamente nessa noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado,

autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento

social. O livro de Elsdon Best (1925) sobre a maneira de andar da mulher maori (Nova

Zelândia) é lembrado por Mauss para evidenciar que: “Era uma maneira adquirida, e não uma

maneira natural de andar. Em suma, talvez não exista “maneira natural” no adulto.”

(MAUSS, 2003, p.405). Este ao relativizar a maneira natural nos permitiu concluir, que não

existe maneira natural, pois toda maneira natural é a priori uma maneira social.

Ao fazer uma “enumeração biográfica das técnicas do corpo”, Mauss enfatiza o

processo do aprendizado das técnicas como uma etapa importante da vida e que será

definitiva em todas as outras na vida dos indivíduos. Dessa forma, o grande momento da

educação do corpo, é de fato, o da iniciação, iniciação das técnicas corporais, uma vez que

serão por essas técnicas que iremos apreender o elemento social da cultura que no qual

estamos inseridos.

O processo de iniciação ao aprendizado dessas técnicas, não precisa coincidir

necessariamente com a infância, mas é precisamente no momento em que as técnicas são

repassadas ao indivíduo que este processo se inicia. Nesse sentido, acrescento que podemos

entender as técnicas corporais como espelhos de regras e normas a serem cumpridas pelos

indivíduos. Outros dois processos podem ser compreendidos a partir desse enfoque: o

processo de socialização (através da transmissão e da adequação às técnicas do corpo) e o

processo de mortificação social (através da imposição ao cumprimento de normas específicas

que destroem a autonomia do indivíduo) – que acontece a todo indivíduo que passa algum

tempo dentro de uma Instituição Total.

4.5 Técnicas corporais e o Processo de Socialização

Por que estabelecemos a relação entre socialização, técnicas do corpo com o processo

de mortificação social? A priori, por defender a hipótese de que é através do corpo, ou mais

precisamente, das técnicas corporais que tanto a socialização quanto a mortificação

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acontecem. E também, porque ambos são processos que acontecem por imposição social, de

fora para dentro, do alto para baixo, enfim, que são exteriores e coercitivos aos indivíduos;

para usar termos durkheimianos, e que agem diretamente nos corpos.

De acordo com o verbete sociológico do Dicionário Sociológico de Allan G. Johnson,

o processo de Socialização consta como sendo “o processo através do qual indivíduos são

preparados para participar de sistemas sociais.” (JOHNSON, 1997). A questão é que apesar

de sermos preparados para participamos de sistemas sociais, não significa que temos

consciência disso; o que em outras palavras pode ser entendido como: apenas aceitamos os

sistemas como se esses fossem naturais, que simplesmente é o que parece ser. Esse é o elo

com as técnicas corporais que gostaria de fazer nesse momento.

Nossos movimentos, nossos gestos, nossos ‘atos técnicos’ nos parecem sem

significados e por isso, se tornaram pura e simplesmente naturais; os naturalizamos e ponto

final. Esquecemos, entretanto, que neles estão incluídos uma gama de símbolos, sistemas de

idéias e significados sociais que estão imersos nos corpos dos indivíduos, tenham eles

consciência disso ou não.

Acontece que o processo de socialização (ou endoculturação) por que passam as

pessoas, desde o momento em que nascem até a hora em que morrem, é que os propicia,

através da educação, essa naturalização inconsciente de seu próprio corpo, ou melhor, de suas

técnicas corporais. Ora, se o homem aprende essas técnicas corporais, será com ela mesmo

que ele orientará seu universo simbólico, social, cultural e econômico. Sob essa ótica, a

socialização irá ao encontro dos papéis sociais que o indivíduo vai adquirindo ao longo da sua

vida; portanto, em cada momento um papel social a cumprir e uma técnica corporal específica

que assegure esse papel.

Erving Goffman, em seu livro Internados (1994), estudou justamente o

comportamento dos indivíduos numa Instituição Total – expressão cunhada por ele – para

mostrar um cenário em que nele acontece uma espécie de ressocialização dos indivíduos que

ali são inseridos. Num espaço como este, o indivíduo passa por um processo do que ele

chamou de “mortificação social”, uma vez que nesse espaço, o indivíduo vai perdendo toda a

sua singularidade, particularidade e se tornando um indivíduo impotente diante de todo o

controle e rigor da equipe dirigente.

Não se trata de um aspecto, estático e determinante, se mudarmos o contexto, esse

mesmo indivíduo terá outro papel, e outras técnicas corporais a utilizar; exatamente é o que

ocorre quando o indivíduo está numa Instituição Total e também quando, por exemplo, está

fora dela.

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Coisas aparentemente naturais para nós são históricas, interessante é perceber que são

históricas porque são sociais, nesse sentido qualquer simples adaptação a um objetivo físico,

mecânico e químico deve ser pensado não somente por esferas de caráter mecanicista; deve-

se considerar a adaptação de acordo com o seu contexto social, uma vez que ela: “[...] é

efetuada numa série de atos montados, e montados no indivíduo não simplesmente por ele

próprio mas por toda sua educação, por toda a sociedade da qual faz parte, conforme o lugar

que nela ocupa”. (MAUSS, 2003a, p.408).

Esses ‘atos montados’ devem ser entendidos como: ato técnico, ato físico, ou mesmo

ato mágico-religioso que o indivíduo realiza em sua vida cotidiana, seja em função do

trabalho, do estudo, do lazer, ou de qualquer momento que não possua especificidade alguma;

de outro modo, são simplesmente atos que os indivíduos, aliás, todos os indivíduos realizam

em sua vida, independente dos seus diversos fins que venham a ter. Todos esses atos, esses

modos de agir, são técnicas do corpo; nesse sentido, técnica é considerada como o sinônimo

de um ato tradicional eficaz.(MAUSS, 2003a, p.407)

Essas técnicas corporais são variáveis, elas se dividem e variam seja em virtude do

gênero ou da faixa etária do indivíduo, por exemplo. A questão, não é tanto pela diferença

com que uma pessoa faz determinado gesto e não outro, mas sim conhecer as tradições que

impõem isso; conhecer essas tradições é o mesmo que dizer conhecer o contexto em que elas

aconteceram.

Para Mauss, o corpo é o primeiro e o mais natural objeto técnico do homem, e será

através desse corpo que todas as técnicas serão, por um lado ensinadas e por outro aprendidas.

A forma como são transmitidas e absorvidas estão intrinsecamente ligadas ao contexto

específico em que às mesmas aconteceram. Portanto, a educação das técnicas é mister nesse

processo, ela consiste em “fazer adaptar o corpo a seu uso”, em adestrar o homem e assim,

impor a este mesmo homem um conjunto de atitudes que serão permitidas ou não.

Independente da técnica corporal, estamos “diante de montagens físio-psico-

sociológicas de série de atos”. Essas séries são montadas “pela autoridade social e para

ela”. Contudo, em suas considerações finais acerca das técnicas do corpo, Mauss, atenta para

o fato de que não se poderá ter uma visão clara dessas montagens, desses atos senão fazendo

intervir uma tríplice consideração: é o tríplice ponto de vista, o do Homem Total, que é

necessário: biológico, sociológico e psicológico (MAUSS, 2003a, p.405). Fica evidente,

portanto, que a relação do indivíduo e de sua sociedade é que permeia todo esse aparato de

invenções e intervenções no comportamento dos homens.

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Outro texto, também de Mauss é significativo nessa questão - “Efeito Físico no

indivíduo da idéia de morte sugerida pela coletividade”. Ao abordar casos de morte na

Austrália – Nova Zelândia, o autor deixa explícito que fatos como o sugestionamento coletivo

da “idéia de morte” revela a ligação direta entre o físico, o psicológico e o moral, isto é, o

social. (MAUSS, 2003b).

Considerando somente os casos em que o sujeito que morre não se crê ou não se sabe

doente, Mauss conclui que a consciência desses indivíduos é invadida por sentimentos de

origem coletiva, e que, portanto não revelam nenhum distúrbio físico; desta forma, deslocado

todo o sentido da morte ou doença à questão corporal.

A questão central do texto é o equilíbrio ou ruptura do indivíduo em relação ao grupo

que está inserido. Para nós, o que importa sobre os casos de morte (por sugestionamento

coletivo) é que eles evidenciam uma conexão entre o fator orgânico e social de modo que não

podemos separar um do outro quando queremos compreender a relação do indivíduo com o

grupo que está inserido. “... só a consideração do psico-orgânico não é suficiente; a

consideração do social é necessária” (MAUSS, 2003b, p.364).

Outro autor, também contribui para mostrar os limites do enfoque puramente

fisicalista. Robert Hertz abordou a questão da proeminência da mão direita nas sociedades

humanas, comprovou que os canhotos eram estatisticamente menos numerosos que os destros.

Para cada 100, 2 eram canhotos. As razões fisiológicas são secundárias quando se observa o

obstáculo cultural formado pelas representações sempre negativas associadas à mão esquerda

e positivas à mão direita. A oposição não é somente física, mas também moral: a esquerda

implica deformação, e a direita o certo. Apesar de não ter dirigido sua argumentação a teoria

darwiniana, ele comprova os limites do enfoque biológico.

Compartilhando com Mauss, Le Breton e Hertz, nós concluímos que o fisiológico está

subordinado à simbologia social; esse é o ponto que nos interessa. Não basta simplesmente

conhecer e compreender o quadro clínico de um usuário do CAPS, precisamos entender

também qual o significado dessa condição no contexto sócio-cultural em que ele está inserido.

4.6 Corpo Socializado e Corpo Vivido : Habitus e Embodiment

Convergindo com a problemática que foi delineada, até então – a de se pensar o corpo

(sobretudo como um fenômeno sócio-cultural), cabe explicitarmos nossas escolhas

epistemológicas que fluíram rumo a articulação de duas vertentes importantes na interpretação

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do corpo: a noção de embodiment – corpo experenciado e a noção de habitus – corpo

socializado.

A compreensão da relação entre o indivíduo e sua cultura, poderá ser pensada através

da abordagem do tema do corpo como meio de construção da pessoa ou na abordagem da

experiência vivida do corpo, na sua experiência cotidiana, ou para expressá-lo de outro modo,

no corpo experimentado.

O projeto de se pensar a “experiência” a partir de uma reflexão sobre o corpo teve em

Maurice Merleau-Ponty seu grande expoente; sua obra Fenomenologia da Percepção (1945)

se tornou um marco nas discussões sobre embodiment nas Ciências Sociais. Sua abordagem

não se dá a partir de um corpo constituído, mas de um “corpo vivido”, experenciado – de ser-

no-mundo – que habita o mundo, ou seja, que estabelece relações. “O corpo é o veículo do ser

no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos

projetos e empenhar-se continuamente neles.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.122).

O corpo é o fundamento de nossa experiência no mundo, dimensão mesma de nosso

ser, lócus de onde emanam e onde são armazenadas nossas experiências, portanto, não é

simplesmente matéria inerte ante o espetáculo da cultura, é "corpo vivido".

A análise do que poderíamos chamar de "experiências" do corpo dá-nos a

possibilidade de uma compreensão do relacionamento do indivíduo com o seu corpo,

alavancando-nos para uma reflexão maior: a que se refere ao processo de encorporação, que

transforma em invisível toda ação simbólica que perpassa o sujeito.

Thomas Csordas, no texto Palavras dos seres sagrados: um estudo de caso em

fenomenologia cultural (1994) trabalha com a perspectiva de uma Antropologia da imediatez,

pois toma o mundo no sentido do concreto, do vivido. Este autor considera que existem

determinados fenômenos que não podem ser explicados pelo paradigma da representação,

uma vez que existe uma dimensão da vida social que é vivida através do corpo e que não

passa pela representação; é o caso quando o indivíduo está em transe e fala línguas. Para

Csordas, não se trata de uma representação (pois não passa pela consciência), o importante é a

fala imediata - porque ela significa alguma coisa para o grupo.

Em favor de um entendimento experencial do estar-no-mundo, Csordas defende que o

social e o cultural vão estar em nós de uma forma pré-objetiva, pois nossa forma de estar no

mundo é corporal e cultural. O ponto central de seu trabalho é a existência corpórea e o fato

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de que o social que carregamos em nosso corpo é anterior a qualquer objetivação. Este

argumento é demonstrado em particular no caso de Dan4:

Seguindo esta linha, nosso argumento no caso de Dan sugere que pode fazer sentido

considerar a verbosidade não como um traço da personalidade fundamentado na

alteração neuroatômica mas como uma estratégia adaptativa que emerge

espontaneamente de uma síntese corpórea pré-objetiva. (CSORDAS, 1994, p.14).

Sua perspectiva, no entanto, é contrária à perspectiva de Merleau-Ponty, pois que

Csordas considera que a teoria daquele está condenada por "tratar o social como um objeto ao

invés reconhecer que nossos corpos carrregam o social por todos os lados inseparavelmente

conosco antes de qualquer objetivação." (CSORDAS, 1994, p.14).

É notório salientar, sob a ótica de Csordas, a existência de uma dimensão da vida em

sociedade que é vivida através do corpo, que não passa pela consciência. Em consonância a

isto que afirmamos que o corpo é nossa forma de estar no mundo.

O fundamento de tudo isto se faz na medida em que o corpo não é simplesmente um

invólucro fisicalista - o que não significa dar cabo à esta dimensão - mas evidenciar seu

sentido cultural intrínseco à experiência corporificada no nível existencial do estar-no-mundo.

Essa questão, também foi discutida por Miriam Cristina Rabelo e Paulo César Alves,

mais precisamente no capítulo “Corpo, experiência e cultura" extraído do livro "Tecnologias

do Corpo: uma antropologia das medicinas no Brasil (2004); segundo os autores uma onda de

estudos sobre o corpo está se intensificando como resultado da intensa exposição e exploração

que a nossa sociedade mantém em relação ao corpo, além de conduzir necessariamente à um

"repensar das relações entre natureza e cultura que poderíamos, grosso modo, como marcado

por uma tentativa de explorar mediações."(RABELO; ALVES, 2004, p.175).

Imiscuída no corpo, a subjetividade já não pode mais ser entendida como espaço

bem demarcado de existência pessoal... No corpo, encontramos uma dimensão de

existencial social anônima, pré-pessoal, que nos remete para a esfera do hábito

arraigado, da ação irrefletida, de aspirações não articuladas e disposições

sedimentadas e dificilmente acessíveis à reflexão. (RABELO e ALVES, 2004,

p.175).

Na mesma direção, Pierre Bourdieu expõe sua teoria sobre o corpo ao falar de um

senso corporificado do jogo social que opera sem passar pela consciência do indivíduo. Desta

forma, as experiências adquiridas no jogo social se transformam em esquemas corporais que

4 Caso de Dan: caso de um jovem paciente com câncer no cérebro, que teve sua capacidade lingüística afetada

após uma cirurgia.

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expressam a modalidade singular do ser no mundo enquanto membro de uma tradição, de

uma cultura, de uma classe. O corpo, nesse contexto "corpo socializado", é a síntese das

situações vividas pelo sujeito; é assim que Bourdieu concebe o habitus - corpo socializado.

Está certo que não são as condições objetivas que causam as práticas, ou vice-versa; entre

uma e outras temos o habitus, o mediador que faz com que práticas e idéias de dado sujeito

pareçam sensatas e razoáveis. Ele - habitus - é o princípio gerador das práticas e, em sua

relação com o repertório total de práticas sociais, o princípio unificador (BOURDIEU, 1987).

O conceito de habitus faz a ligação entre estrutura e agente, coordenando as ações

sociais: ele, traduz os conceitos abstratos de classe e os transforma em atitudes, em ações

concretas. Existe uma rede objetiva de regras que pré-dispõem os indivíduos nas suas

escolhas, decisões e práticas, inclusive, no que tange às interações sociais entre os homens.

Não obstante, o habitus não é imutável e mudando o campo - o lugar onde aquelas interações

acontecem, o habitus mudará.

Forma particularmente ejemplar del sentido práctico como ajuste anticipado a las

exigencias de un campo, lo que el lenguage deportivo lhama el "sentido do juego"...

da una idea suficientemente exacta del encuentro cuasi-milagroso entre el habitus y

un campo, entre la historia incorporada y la historia objetivada, que hace posible la

antecipación cuasi-perfecta del porvenir inscrito en todas las conficguraciones

concretas del juego." (BOURDIEU, 1991, p.113)

Löic Wacquant em "Seguindo Pierre Bourdieu no campo" aborda duas questões: o

conceito de campo, que como outrora salientado, corresponde ao espaço de lutas, ou melhor,

onde se dão os conflitos nas interações sociais; e o conceito de habitus, ressaltando que ambos

são relacionais. Wacquant mostra que Bourdieu rompe com o estruturalismo quando desloca

justamente o problema da estrutura para a estratégia, ou seja, a partir do pressuposto de que

cada um de nós faz uso do mundo do corpo pelo habitus encorporado, deixa explícito que

habitus e corpo são inseparáveis.

[...] além de ter permitido iniciar o corte decisivo com o paradigma estruturalista,

deslocando o seu foco analítico "da estrutura para a estratégia", da álgebra mental

mecânica das regras culturais para a fuída ginástica simbólica dos corpos

socializados.(WACQUANT, 2006, p.14).

A proposta sociológica especificamente sobre o corpo em Bourdieu é um referencial

importante nessa pesquisa, primeiro porque permite-nos pensar a produção do corpo com base

na história incorporada pelas disposições e segundo, porque nos possibilita entender a

corporificação da história, ou seja, a internalização desta nos corpos dos indivíduos.

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O corpo é nesse sentido, mais do que um meio para se chegar ao conhecimento das

práticas que estão imersas no cotidiano dos sujeitos, é a própria vivencia do sujeito no mundo.

Dentro do CAPS, esse corpo, é mais que um corpo, é um sujeito que historicamente carrega

dentro de si os dispositivos da Reforma Psiquiátrica. Quando olhamos e vemos esses corpos

na instituição, estamos diante da manifestação da introjeção desses dispositivos que marcam o

modo como esses pacientes vivenciam a Reforma, de fato, no seu cotidiano.

Em consonância com Bourdieu, afirmamos que a linguagem corporal é também uma

marcadora de distinção social entre os indivíduos, que se estende desde a forma de

apresentação – incluindo o consumo de vestuário, artigos de beleza, higiene e de cuidados -

até a própria manipulação desse corpo; que se traduzem em maneiras de distinguir-se dentro

de um mesmo universo social.

O corpo é a mais irrecusável objetivação do gosto de classe, que se manifesta de

diversas maneiras. Em primeiro lugar, no que tem de mais natural em aparência, isto

é, nas dimensões (volume, estatura, peso) e nas formas (redondas ou quadradas,

rígidas e flexíveis, retas ou curvas, etc...) de sua conformação visível, mas que

expressa de mil maneiras toda uma relação com o corpo, isto é, toda uma maneira de

tratar o corpo, de cuidá-lo, de nutri-lo, de mantê-lo, que é reveladora das disposições

mais profundas do habitus". (BOURDIEU, 1988, p.188).

No trabalho de campo, essa linguagem corporal se fez de forma nítida para mim, na

medida em que eu não precisei ver exame clínico nenhum para conseguir identificar e

distinguir quem eram os usuários e que eram os profissionais que ali estavam trabalhando.

Isso me foi possível, devido às disposições sociais incorporadas nos pacientes, porque como

Bourdieu bem aponta, existe um habitus específico, que define e caracteriza os indivíduos e

que se dispõe para nós de forma imediata.

Para entender esse habitus, é preciso entender onde ele se dá, onde ele é construído,

nesse sentido, Bourdieu nos propõe uma filosofia da ação (que ele chama de disposicional),

cujo eixo central é a relação entre as estruturas objetivas e as estruturas incorporadas

(baseados pelos conceitos de habitus e campo. O conceito de campo, mostra-se fundamental,

já que é entendido como espaço onde se trava uma luta concorrencial entre os agentes em

torno de interesses específicos (capitais específicos):

É isso que acredito expressar quando descrevo o espaço social como um campo, isto

é, ao mesmo tempo, como um campo de forças, cuja necessidade se impõe aos

agentes que nele se encontram envolvidos, e como um campo de lutas, no interior do

qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição

na estrutura do campo de forças, contribuindo assim para a conservação ou a

transformação de sua estrutura. (BOURDIEU, 2005, p.50).

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Sendo assim, o CAPS pode ser entendido enquanto um novo espaço social e político,

já que é referenciado pelos interesses dos agentes que o integram e que vão direcionar as

práticas de saúde que estão em agenciamento e que definem este ou aquele perfil assistencial.

Entender o corpo nesse espaço social, é entender as práticas que moldam o cuidado no CAPS,

pois enquanto um ‘campo’ determina certas condições sociais e históricas específicas,

moldando o indivíduo, inscrevendo-lhes valores, significados e também regras de conduta

dentro da instituição.

Sem esses conceitos, nosso estudo certamente perderia o sentido, já que nossa

proposta inscreve-se numa leitura que consiste em pensar o corpo enquanto um analisador

capaz de revelar as práticas de cuidado instituídas no cotidiano da instituição a partir dos

encontros, das relações de afecção que ocorrem entre os diversos sujeitos da instituição;

relações essas que passam, perpassam e atravessam os corpos dos usuários e dos

trabalhadores.

Se por um lado temos os aspectos macros (econômicos, sociais, políticos) que definem

em grande medida a organização dos serviços; por outro, temos os processos que ocorrem

micropoliticamente, onde efetivamente ocorre a produção de cuidado a saúde e que marcam o

perfil assistencial da instituição. No próximo capítulo, irei evidenciar justamente de que modo

esses processos micropolíticos ocorrem dentro da instituição e que afetam os encontros entre

os corpos no CAPS, sob a luz de dois conceitos: ‘Trabalho Vivo em Ato’ e ‘Teoria da

Afecção’.

5 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE AS PRÁTICAS DO PROCESSO DE

TRABALHO EM SAÚDE

5.1 O Trabalho Vivo em Ato

Parte-se do pressuposto de que o trabalho, como qualquer outra atividade humana é

um ato produtivo, que potencialmente pode modificar e produzir algo novo na natureza, mas

também em nós mesmos. Como o trabalho é orientado social e coletivamente, ele está

implicitamente ligado à ação intencional do trabalhador, influenciando assim nos meios e

modos de se trabalhar e realizar determinada ação.

Nessa efetivação do trabalho propriamente dito, pode-se dizer que na saúde, o

trabalhador utiliza de determinadas ferramentas ou valises tecnológicas para realizar o seu

trabalho, uma vez que:

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Estas valises representam caixas de ferramentas tecnológicas, enquanto saberes e

seus desdobramentos materiais e não-materiais , que fazem sentido de acordo com

os lugares que ocupam naquele encontro e conforme as finalidades que o mesmo

almeja. (Merhy, 2000, p.02).

Segundo Merhy (2000) existem três tipos de valises que podem ser utilizadas pelo

trabalhador em saúde: uma vinculada a sua mão e na qual cabe, por exemplo, algum

equipamento (como um estetoscópio) e que se expressa pela tecnologia dura; outra que está

na sua cabeça na qual os saberes encontram-se estruturados (como a clínica e a

epidemiologia) e que se expressam por tecnologias leve-duras; e por fim, uma outra, que está

presente no espaço relacional que se dá entre trabalhador-usuário, e que se expressa por meio

das tecnologias leves. Por conta da variação que pode surgir em função da utilização pelo

trabalhador de um dos três tipos de valises, nenhum trabalho será igual à outro trabalho,

principalmente quando olhamos para tais valises sob a ótica da micropolítica e da

singularidade implicada nos processos de trabalho.

Vale que o cuidado de fato se produz a partir da ação dos sujeitos (entendidos

individual ou coletivamente), por meio dos encontros estabelecidos entre trabalhadores e

usuários, que são nesse sentido, os destinatários finais de toda a lógica produtiva em seus

espaços micropolíticos de atuação.

Na saúde, em particular esses processos se realizam por meio do “trabalho vivo em

ato”, pois é um trabalho que acontece no momento em que a produção do cuidado está se

dando. Sua variação decorre da forma em que essa interação está se construindo no espaço

relacional entre trabalhador-usuário, ou seja, vai depender da maneira em que os

instrumentos, as normas e as tecnologias estiverem sendo usadas pelo trabalhador em ato.

Os distintos modelos de atenção variam nesta situação relacional. Mas sem dúvida, a

valise que, por suas características tecnológicas próprias permite reconhecer, na

produção dos atos de saúde, uma situação de permanente disputa em aberto de jogos

de captura, impossibilitando que as finalidades e mesmo os seus objetos, sejam de

uma única ordem, é a valise do espaço relacional trabalhador–usuário. Os processos

produtivos em saúde, que ocorrem neste espaço, só se realizam em ato e nas

interseções do médico e do usuário. É este encontro que dá, em última instância, a

singularidade do processo de trabalho do médico enquanto produtor de cuidado.

(MERHY, 2000, p.03)

Entende-se então que a produção da saúde está diretamente vinculada ao trabalho

humano, configurado em Trabalho Vivo em ato, já que esse acontece no exato momento da

sua atividade criativa, como nos é demonstrado na tese 07 do Livro Salud: cartografia Del

trabajo vivo por Emerson Merhy:

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TESIS 7 – El trabajo en salud está centrado permanentemente, en el trabajo vivo em

acto, un poco a semejanza con el trabajo en educación. Además, actúa distintamente

de otros procesos productivos en los cuales el trabajo vivo en acto puede y debe ser

encuadrado y capturado globalmente por el trabajo muerto y por el modelo de

producción. (MERHY, 2006, p.19).

Se caracteristicamente o trabalho em saúde é “trabalho vivo em ato”, ele também é

marcado por disputas de capturas por diversas lógicas sociais, que procuram direcionar a

produção das ações de saúde conforme os interesses dos protagonistas envolvidos no

processo. Dessa forma, sempre haverá nesse espaço de disputa, forças que operam em ato e

que definem as tecnologias em saúde que serão utilizadas pelo trabalhador no momento que

nesse processo produtivo acontece. Passemos então às especificidades dessas tecnologias.

5.2 Tecnologias em Saúde

Tecnologias em Saúde não são entendidas aqui apenas por equipamentos e máquinas,

mas sobretudo pelos saberes que são constituídos na produção de cuidado decorrente da

organização das ações humanas nos processos produtivos, inclusive em sua dimensão

subjetiva. Conforme as considerações anteriores, é particularmente por esse sentido que o

trabalho em saúde, ‘vivo em ato’ não pode ser compreendido apenas pela lógica do trabalho

morto (expressado nos equipamentos e nos saberes tecnológicos), pois seu objeto se configura

em processos de intervenção no ato, que operam a partir de tecnologias relacionais, ou seja,

de encontros de subjetividades.

Segundo classificação proposta por Emerson Merhy (1997, 2006), as tecnologias que

envolvem o trabalho em saúde se dividem em: tecnologias leves, leves-duras e duras; contudo

esclarece-se que em todo processo de saúde se tem a presença dessas três tecnologias. O que

irá sublinhar qual é o modo de produção de cuidado que se estabelece na Instituição é o tipo

de tecnologia que está predominando. Modelos alternativos ao procedimento-centrado,

invertem a correlação da tecnologia ao preconizar o uso central das tecnologias leves em

contraposição ao modelo tradicional que utiliza preponderantemente das tecnologias leve-dura

e dura, deixando assim àquela tecnologia como subsidiária, ou seja, secundária ao trabalho em

saúde, pois considera o aspecto relacional como um simples fator.

[...] las tecnologías envueltas en el trabajo em salud, pueden ser clasificadas

como: blandas(como el caso de las tecnologias de relaciones del tipo de

producción de vínculo, autonomización, acogimiento, géstion como una

forma de gobernar procesos de trabajo), blandas-duras (como el caso de

saberes bien estructurados que operan em los procesos de trabajo en salud...)

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y duras (como el caso de equipamientos tecnológicos del tipo máquinas,

normas, estructuras organizacionales.” (MERHY; 2006, p.19).

A questão que concerne à essa perspectiva é então a de saber qual modelo de

tecnologia está operando o trabalho vivo em ato, que se expressa como processo de produção

de relações intercessoras. Compreender esses modelos tecnológicos e assistenciais que se

desenvolvem nos permite captar a dinâmica do modelo de cuidado que a instituição promove.

TESIS 14 – La efectividad de la tecnología blanda del trabajo vivo en acto en La

salud, se expresa como proceso de producción de relaciones intersectoras, en uma de

sus dimensiones claves, que es su encuentro con el usuario final, que en última

instancia, “representa” necesidades de salud como su intencionalidad, que puede,

por tanto, con su interés particular, “publicizar” las distintas intencionalidades de los

varios agentes que envuelve el trabajo en salud.

TESIS 15 – Es en este encuentro del trabajo vivo en acto con el usuario final, que se

expresan algunos componentes vitales de la tecnología blanda del trabajo en salud:

las tecnologías articuladas a la producción de los procesos intersectores, las de lãs

relaciones que se configuran, por ejemplo, por medio de las prácticas del

acogimiento (o recibimiento?), vínculo, autonomización, entre otras.( (MERHY,

2006, p.20).

As configurações que podem aparecer por conta dessas tecnologias marcam um

espaço em que a intencionalidade do trabalhador no trabalho vivo tem um papel central, pois

tem uma impactação no modo produtivo do cuidado. Esse tipo de consideração tem sentido

para nós, pois nos baseamos na premissa de que: para saber se houve mudança no CAPS, nós

temos que analisar o funcionamento da práxis do trabalhador; porque será aí que

encontraremos as práticas, a intencionalidade e as valises tecnológicas que o trabalhador se

utiliza no processo de gestão e produção de cuidado. De outro modo, analisar essa práxis

significa analisar o modo de produção de cuidado que está em agenciamento.

O mesmo autor sublinha que as relações entre os sujeitos e o agir cotidiano no cenário

em que se dá a produção do cuidado, configura então, o que se pode chamar de “micropolítica

do trabalho vivo em ato”. De acordo com esse ponto de vista, o espaço onde se produz saúde,

deve ser entendido também como um espaço social, no qual se realizam os desejos e onde

ocorrem os processos de intersubjetividade, que estruturam a ação do sujeito trabalhador-

usuário.

O processo de captura do trabalho vivo, das práticas adotadas no plano da

micropolítica, nos permite mergulhar nas ações dos diversos sujeitos envolvidos no processo

de cuidado. Face à isso, relacionamos suas ações com o tipo de cuidado estabelecido; pois o

trabalho é uma atividade de criação na medida em que o cuidado em saúde não é algo natural,

mas uma produção humana; decorre que pode-se ter nesse sentido vários tipos de cuidado: um

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cuidado do tipo cuidador, um cuidado não-cuidador, um cuidado sumário, um cuidado

baseado no procedimento.

Concluí-se então que ao analisar o trabalho desenvolvido no CAPS, terei analisado

também o tipo de cuidado que está sendo produzido nesse espaço social, pois o trabalho vivo

(como apontado anteriormente) tem uma potência instituinte que está diretamente imbricada

na ação do sujeito em acionar justamente essa potência, seja em termos de saberes, de

instrumentos, relações e do trabalho em si utilizado.

5.3 A Subjetividade do trabalhador em Saúde

Existe uma produção subjetiva do cuidado em saúde que não pode ser desconsiderada

quando se pretende analisar os serviços de saúde, isso se deve ao fato de que dentro de uma

mesma equipe de trabalhadores pode-se ter atuações singulares na produção do cuidado, já

que trabalhador na hora em que está operando o cuidado, atua de uma forma diferente, mesmo

que tenham que seguir a mesma diretriz normativa da instituição. Isso nos mostra o quanto as

práticas de cuidado são mediadas pela singularidade de cada um atuando na construção de um

socius, de um microcosmo em que cada um está inserido e de onde opera micropoliticamente.

A produção subjetiva do cuidado nesse contexto está sempre em movimento, na

medida em que está constantemente se constrói e reconstrói os territórios existenciais, a partir

dos fluxos de intensidades contínuas entre os sujeitos que atuam na construção da realidade

social.

En el caso específico de La salud, las conexiones entre los diversos procesos de

trabajo que se realizan entre trabajadores-trabajadores y trabajadores-usuarios

pueden formar un campo energético, invisible, que funciona em flujos circulantes

que envuelven al cuidado em acto y configuran "líneas de vida" o "líneas de

muerte", según si el encuentro trabajador-usuario produce acogimiento, vínculo,

autonomía, satisfacción, o un modo de actuar que se manifieste de forma acotada,

burocrática, produciendo heteronomía, insatisfacción. Dependiendo de La situación

existente habrá un aumento o reducción de la potencia de actuar.(FRANCO;

MERHY, 2011, p.04).

Compreender essa dimensão subjetiva do cuidado se torna fundamental para

entendermos de que forma os fluxos circulantes que evolvem o cuidado estão se produzindo.

O aspecto relacional impulsionado pelo trabalho vivo em ato, constitui-se como um

campo rico e que deve ser explorado nas investigações acerca da produção de cuidado que se

tem na Instituição.

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Esse processo relacional é impulsionado pela liberdade imanente ao Trabalho Vivo

em ato, e vai operando relações em fluxos de alta intensidade no interior do processo

de trabalho. Esses fluxos fazem com que haja conexão entre os muitos

trabalhadores, pessoas e coisas, que se colocam no plano do processo de produção

do cuidado e são partes constitutivas dele. (FRANCO et al, 2009, p.27)

Portanto, o perfil assistencial de uma instituição não é determinado pelo espaço físico

onde se realiza o cuidado (ele pode interferir, mas não determina), e sim pelo espaço social,

pelo território no qual o trabalhador se engaja como sujeito ético-político, o qual o acompanha

onde ele estiver operando seu processo de trabalho. Será então, a partir do entendimento das

subjetividades operantes que poderemos ter por conseguinte o entendimento do modo de

produção do cuidado em agenciamento no CAPS, isto porque o entendemos o modo de

produção como um acontecimento autopoiético.(MERHY, 2006). Essa correlação será

evidenciada logo a seguir.

5.4 O Modo de Produção de Cuidado – como um acontecimento Autopoiético.

Como apontado anteriormente, partimos da premissa de que nos processos relacionais

entre sujeitos, sejam eles individuais e/ou coletivos há uma micropolítica operando nos

encontros desses sujeitos e que vão revelar no ‘trabalho vivo em ato’ qual o modo de

produção do cuidado que está em agenciamento no CAPS. Trabalhando com o conceito de

autopoiese desenvolvido por Maturana e Varela (MATURANA e VARELA, 1995) e

compartilhando com a perspectiva de Merhy, acreditamos também que esse modo de

produção de cuidado deve ser entendido enquanto um acontecimento autopoiético. (Merhy,

2006).

Para compreender partes desta cartografia lanço mão da noção de autopoiese, que

me ajuda a compreender um pouco mais os vários processos constitutivos das ações

nos encontros, como no caso da relação entre aquele que cuida e aquele que é

cuidado. Dimensão típica do campo da saúde. (MERHY, 2006, p.76).

A noção de autopoiese – termo cunhado na década de 70, pelos biólogos chilenos,

Humberto Maturana e Francisco Varella, quando descreveram o movimento de uma ameba.

Esse conceito surgiu da combinação do prefixo grego auto –si mesmo e do radical poiesis –

criação, produção, que tem como caráter inovador a proposta de se pensar nos seres vivos

como estando em constante processo de si, e incessante engendramento de sua própria

estrutura. (KASTRUP, 1995).

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Para Maturama, falar de autopoiese, não significa falar necessariamente de auto-

referência, mas sim, é falar dos processos, os quais, quando se dão e se constituem, vão

formando o ser vivo como uma unidade, “[...] os seres humanos se caracterizam por

literalmente, produzirem-se continuamente a si mesmos – o que indicamos ao chamarmos a

organização que os define de organização autopoiética”. (MATURANA e VARELA, 1995,

p.84).

A partir da concepção de autopoiese, utilizada para definir os seres vivos como

sistemas que produzem continuamente a si mesmos, porque conseguem recompor

continuamente os seus elementos para sua sobrevivência, concluímos então que esses

sistemas são produtos e produtores ao mesmo tempo. Lógica essa que será fundamental para o

nosso ponto de vista em relação aos serviços de saúde. Porque o entendemos também como

sistemas complexos que se recompõem o tempo todo face a diversos campos que vão se

constituindo dentro da esfera do que podemos chamar de cuidado.

Será por conta desse constante processo de si e desse incessante engendramento que

acreditamos ser possível pensar no modo de produção de cuidado enquanto um corpo

autopoiético; que faz e se re-faz, que se territorializa e se desterritorializa, o tempo todo, tal

como o cuidado que está sendo constantemente agenciado na instituição, a partir de novas

formas de configurações entre o instituído e o instituinte, ou seja, entre o plano molar e o

plano molecular e entre os diversos sujeitos.

Esse acontecimento autopoiético, que está em constante agenciamento no CAPS, visto

sob a ótica da subjetividade - deve ser entendido então enquanto um processo, que vai se

constituindo na relação do sujeito, do objeto e do meio na qual se inscreve, a partir do qual as

relações de afetamento também vão se constituindo e vão imprimindo um determinado modo

de cuidado na instituição.

Tal como a autopoiese - o movimento da vida produzindo a vida, entendemos o modo

de produção de cuidado, ou seja, entendemos o movimento autopoiético, como o movimento

do cuidado que também produz o próprio cuidado; assim acreditamos que entender como esse

cuidado está sendo produzido é - para nós - compreender a movimentação desse corpo

autopoiético no CAPS. Compreender essa movimentação, é essencial para entendermos os

diversos mecanismos que são acionados no momento em que o processo de cuidado está se

dando, primeiro porque, segundo Merhy, todo serviço de saúde está vinculado a processos

produtivos de atos cuidadores, e segundo, por não podermos separar estes atos dos processos

de trabalho, das relações que se desenvolvem micropoliticamente a partir dos encontros entre

os sujeitos que estão na instituição.

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Como todo serviço de saúde está vinculado a processos produtivos de atos

cuidadores, creio que o melhor modo de tentar entender tanto sobre um

estabelecimento de saúde, quanto o cuidado, é debruçando- se sobre os seus

processos de trabalho e as ações que revelam os jogos de intenções que os mesmos

contém, suas redes agenciais protagonistas e as modelagens tecnológicas que as

realizam, para se poder desvendar a maneira pela qual estão implicados, enquanto

uma organização e uma matriz institucional. Isto é, como se constituem enquanto

“lugares” de relações, de micropolíticas de encontros e de jogos de poder entre

“sujeitos” concretos. (MERHY, 2004, p.07).

O cuidado enquanto um acontecimento autopoiético, se define a partir dos encontros

micropolíticos entre quem cuida e quem é cuidado. Entender o modo de produção de cuidado

- esse acontecimento autopoiético é entender como os sujeitos se afetam e estão sendo

afetados na instituição, é o que Espinosa designou de cartografia de um corpo, já que estamos

correlacionando tanto a capacidade de aumentar, quanto a capacidade de diminuir a potência

do sujeito com esse acontecimento autopoiético que se produz e re-produz na instituição; eis

pois nosso objetivo com essa pesquisa.

5.5 Relação de afecção

A relação de afecção entre os trabalhadores e usuários do CAPS, ou seja, a afecção

entre os corpos desses sujeitos, para melhor enfatizar o ponto de vista aqui discutido, será

mister para compreendermos os afetos que são produzidos a partir dessas interações que

ocorrem inevitavelmente dentro dos CAPS e que vão imprimindo uma certa identidade

subjetiva e um modo singular de produzir o cuidado.

Nessa concepção o indivíduo se traduz num grau de potência, esse grau de potência

por sua vez reflete o poder de ser afetado e essa relação de poder-ser-afetado é

necessariamente preenchido por afecções. Estudar essas afecções (affectio) é compreender

não somente os corpos dentro da instituição, mas entender o tipo de tratamento que é

desenvolvido pelos trabalhadores em seu cotidiano; “De fato, estas afecções são imagens ou

marcas corporais; e as suas idéias englobam ao mesmo tempo a natureza do corpo afetado e a do corpo

exterior afetante”. (DELEUZE, 2002, p.55).

O aspecto relacional torna-se claro segundo essa visão filosófica que preenche

justamente as lacunas do invisível do que não pode ser dito, somente expressado ou

corporificado no nível das dimensões simbólicas dos sujeitos. Não obstante, é preciso

delimitar o campo das afecções (affectio) com o campo dos afetos (affectus), pois apesar de

operarem no mesmo espaço possui significados distintos:

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A affectio remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do corpo

afetante, ao passo que o affectus remete à transição de um estado a outro, tendo em

conta a variação correlativa dos corpos afetantes [...] Por afetos, entendo as afecções

do corpo pelas quais a potência de agir desse mesmo corpo é aumentada ou

diminuída, favorecida ou impedida[...] (DELEUZE, 2002, p.56).

Nossa investigação inscreve-se numa leitura que consiste em pensar o corpo enquanto

um analisador capaz de revelar as práticas de cuidado instituídas no cotidiano da instituição a

partir dos encontros - das relações de afecção - que ocorrem entre os diversos sujeitos da

instituição. É á idéia do afetamento entre os sujeitos.

[...] É nos encontros que se expressam e se reproduzem diferentes graus de abertura,

diferentes graus de intensidade, turbulências acontecem, geram-se outros repertórios

existenciais que se solidificam. Pequenos eventos podem reverberar em outros jeitos

de funcionar, viver e apresentar-se frente ao outro (Liberman, 2010, p. 120).

Esses diferentes graus de abertura, podem dar margem à encontros que promovem

alegria a partir da relação do que Espinosa chama de relação de composição e decomposição;

“A ordem das causas é então uma ordem de composição e de decomposição e de

decomposição de relações que afeta infinitamente toda a natureza.”(DELEUZE, 2002).

A relação de composição pode ser vista como um processo de adição, ou seja, que se

dá a partir do encontro entre um corpo que convém com o nosso corpo, na medida em que

otimizaria a potência do ser e por isso, pode ser entendido como uma relação de alegria, de

expansão. Ao contrário, porém, essa abertura, pode dar margem à maus encontros, que

promovem assim uma diminuição da potência do sujeito, ou seja, promoveria uma relação de

decomposição, de tristeza.

Na saúde esse processo se torna muito claro, pois sempre o trabalhador está afetando e

sendo afetado pelo usuário, conhecer essas afecções entre os corpos significa, sob nosso ponto

de vista, nos permite conhecer o modo de produção de cuidado (acontecimento autopoiético)

que está em agenciamento no CAPS.

Ao considerar os devires, os fluxos e as forças da existência, esse encontro de

sujeitos não acontece apenas em função do adoecimento, mas integrando um

cotidiano existencial onde os mesmos estão em mútua implicação. Movidos por

éticas singulares, esses sujeitos padecem à medida que forças exteriores lhes são

impostas e reduzem a sua potência de vida por meio de dispositivos que objetificam

em ‘bem ou ‘mal’ os acontecimentos e seus desdobramentos em suas vidas,

conformando uma ordem normalizadora da vida. (VIEIRA, SILVEIRA, FRANCO,

2011, p.17).

Mas nós, como seres conscientes, recolhemos apenas os efeitos dessas composições

e decomposições: sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e com

ele se compõe, quando uma ideia se encontra com a nossa alma e com ela se

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compõe; inversamente, sentimos tristeza quando um corpo ou uma ideia ameaçam a

nossa própria coerência. (DELEUZE, 2002, p.25).

Partilhando dessa consideração, acreditamos na importância de darmos atenção ao

CAPS enquanto um território existencial, marcado e delineado pelos encontros entre os

corpos a partir das relações de afecção. Que tipo de relação está se constituindo no CAPs?

Relações de composição ou de decomposição? Será na busca de entender essas relações que

iremos fazer o trabalho de campo no Centro de Atenção Psicossocial, para compreendermos

que tipo de acontecimento autopoiético está sendo agenciado na instituição.

Depois desses suportes teóricos, entro de fato no CAPS, “O trabalho de campo é essa

mistura de observação participante e participação observante, já que entramos e saímos de

cena” (BONET, 2004).

Apesar de já estar no campo desde Março, fui sentir de fato que tinha entrado em

campo, em cena, quando no Livro das Oficinas, vi registrado minha participação na

oficina de beleza, da seguinte forma: “Ainda nesta ocasião tivemos a presença da

pesquisadora Cristiane, que como observadora participante sentou-se conosco”.

(Fonte: Livro das Oficinas,19/05/2011).

Assim ao entrar em cena, ao entrar nesse mundo desconhecido procuro descortinar os

símbolos e significados presentes nos encontros entre os usuários e trabalhadores, por meio da

apresentação da sua rotina de serviços, da sua lógica interna de funcionamento e de seus

regulamentos próprios e que implicam diretamente no modo de produção do cuidado em

agenciamento na instituição.

6 PERFIL DO CAPS EM QUESTÃO

Para essa pesquisa, elegeu-se o CAPS Herbert de Souza, localizado no município de

Niterói, modalidade CAPS II. A escolha se deve ao fato de que este CAPS já havia

amadurecido seu projeto assistencial pelo seu tempo de funcionamento. A princípio,

funcionava como Hospital-Dia do ano de 1989 até 1992, depois se tornou NAPS – Núcleo de

atenção Psicossocial (nesse momento os atendimentos se davam no Hospital Psiquiátrico de

Jurujuba). Em setembro de 1998 teve suas instalações transferidas para a atual localização,

uma casa de dois andares no Centro de Niterói. Esses dados foram muito difíceis de serem

levantados, já que nem a coordenação do CAPS e nem a Coordenação de Saúde Mental,

souberam de pronto me dar essas informações.

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A coordenação atual do CAPS, me informou que não possuía esses dados, e que na

ocasião em que passou a coordenar esse serviço (em Janeiro de 2005) procurou se informar e

levantar informações a partir de registros, tanto no CAPS, como na Coordenação de Saúde

Mental, mas nada encontrou. Por conta disso, foi criada uma data simbólica para a

comemoração do CAPS fora do Hospital, que passou a ter como data representativa o dia 10

de Outubro. Entrei, então em contato com a Coordenação de Saúde Mental, que também não

tinha conhecimento sobre as datas referentes ao CAPS. Os dados só foram conseguidos,

porque a coordenação por sua vez, entrou em contato com o médico que coordenou o serviço

quando esse tinha sua atuação no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. Depois de muitos

contatos e telefonemas, a secretaria desse médico me passou as datas informadas.

O CAPS está registrado no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES

- está registrado sob o número 2293269, no qual possui as seguintes especificações: esfera e

gestão municipal, administração indireta/fundação pública.

O CAPS está localizado no município de Niterói. Esse município possui uma

geografia privilegiada, uma área com uma unidade territorial de 133.916 quilômetros

quadrados, localizada entre a Baía da Guanabara (oeste), o Oceano Atlântico (sul), Maricá

(leste) e São Gonçalo (norte). Niterói juntamente com outros 16 municípios faz parte da

Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

De acordo com os dados do IBGE de 2009, conta com 350 estabelecimentos de saúde,

destacando-se 85 estabelecimentos de saúde, 05 estabelecimento de saúde público estadual,

61 estabelecimentos de saúde públicos municipais, 19 estabelecimentos de saúde privado e

1.114 leitos para internação em estabelecimentos públicos de Saúde. (IBGE, 2010)

Niterói possui 04 Centros de Atenção Psicossocial, sendo dois CAPS II, um CAPS ad

e um CAPSi, que se organizam segundo uma lógica territorial, conforme o território adstrito.

Nesses serviços preconiza-se que as ações desenvolvidas nessas instituições sigam os

princípios da Reforma Psiquiátrica, de acordo com as diretrizes do Sistema Único de Saúde, a

partir de uma perspectiva de desconstrução da lógica manicomial.

6.1 O funcionamento do CAPS

O CAPS funciona das 08h às 17h de segunda à sexta-feira. No serviço estão

cadastrados 62 pacientes do sexo feminino e 144 pacientes do sexo masculino, sendo que

destes 35 necessitam de Acompanhante Domiciliar (AD). Em média, diariamente 80

pacientes frequentam o CAPS, esse controle é realizado por um livro de assinaturas que fica

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disponível na portaria do CAPS, no qual o paciente deverá assiná-lo assim que entra na

instituição, entretanto, em vários momentos, presenciei pacientes que chegam ao serviço e

que não assinaram o livro.

Para o desejejum dos pacientes são ofertadas em média: 40 refeições, 60 para o

almoço e 40 para o lanche da tarde. Esse número não é fixo, podendo ser variado segundo o

número de pacientes que estão na Instituição. Todos os dias, verifica-se no livro de frequencia

o número de pacientes presentes para fazer o pedido junto à empresa terceirizada que fornece

a alimentação para todos os CAPS de Niterói. No lanche da manhã e da tarde é oferecido pão

com manteiga e café com leite, em relação ao almoço há uma variação no cardápio ofertado.

O lanche da manhã é servido de 8h às 9h, o da tarde, acontece geralmente por volta

das 15h. Agora em relação ao almoço, não se tem uma hora certa, já que o alimento não é

preparado no CAPS. As refeições são trazidas do Hospital Psiquiátrico de Jururuba, e por

conta disso, os horários não são determinados. Teve dias em que as refeições chegaram às

11h, e já teve outros que chegou às 13h, 13:30h e até 14h. Esses atrasos são problemas que

inteferem diretamente na vida dos pacientes, e precisam por isso, serem questionados e

colocados na pauta de discussão das demandas internas do CAPS. Registro que nas

entrevistas, em nenhum momento esse problema foi citado pelos trabalhadores.

6.2 Atividades desenvolvidas no CAPS

As atividades desenvolvidas no serviço foram especificadas no quadro abaixo.

QUADRO I – ATIVIDADES DO CAPS

Nome da atividade Dias de funcionamento Horário

Oficina de Música Segunda-feira 14h às 15:30h

Oficina de Culinária Terça-feira 10h às 11:30h

Oficina de Esporte Sexta-feira 10h às 11h

Oficina de Beleza 1 Terça-feira 13:30h às 15h

Oficina de Beleza 2 Quarta-feira 14:30h às 16h

Oficina de Saúde Sexta-feira 14h às 15h

Oficina de Jornal Terça-feira 1oh às 11h

Oficina de Informática Sexta-feira 15h às 16h

Oficina de Letras Segunda-feira 10:30h às 11h

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Oficina de Jardinagem Quinta-feira 9:30h às 10h

Grupos Jovem Quinta-feira 11h às 11:30h

Ponto de Encontro Quinta-feira 14h de 15 em 15 dias

Programa de Geração de Renda Todos os dias Todo o dia

Fonte: Setor administrativo do CAPS. Dados disponibilizados em Outubro de 2011.

As atividades ofertadas são variadas, sendo que os pacientes são indicados a participar

de determinada oficina ou grupo, de acordo com o Projeto Terapêutico Individual ou com a

indicação das referências, isso vai depender muito do quadro clínico e também do interesse do

paciente, já que teoricamente ele não tem obrigação de participar.

6.3 Descrição do local

O CAPS em questão, tem suas instalações numa casa que possui três pavimentos. O

CAPS possui um muro na entrada e dois portões, um de garagem e outro para a entrada das

pessoas. Sempre tem um funcionário no portão para controlar o acesso à entrada no CAPS.

O primeiro pavimento está no nível da rua, sendo o local em que há uma circulação

maior de pessoas, pois além de ser o local de acesso é também o lugar onde os pacientes

ficam a maior parte do tempo. Nele temos uma área aberta na qual se encontram cinco bancos

de três lugares cada, logo na entrada; e na lateral à direita, se tem as cadeiras com mesas

debaixo de uma lona azul, que são utilizadas pelos pacientes para se alimentarem e também

quando estão participando de alguma oficina, ou simplesmente para sentar. Por conta dessa

lona, esse lugar é ainda mais quente. No final dessa área, têm a cozinha, local onde é

preparado o café com leite, e distribuído as refeições. Essas refeições não são preparadas no

CAPS, pois já vem pronta do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba.

Na parte interior, tem uma varanda com uma mesa e uma cadeira, onde fica o usuário-

bolsista do Programa de Geração de Renda para atender o telefone. Entrando por essa

varanda, temos a sala de convivência. O lugar onde os pacientes ficam maior parte do tempo.

Essa sala é pintada de azul, e tem do lado direito três cadeiras e dois sofás grandes. Do lado

esquerdo, há dois sofás grandes, um pequeno e um individual.

À esquerda dessa sala, tem a cantina. Espaço utilizado para a venda de doces, balas,

biscoito, cafezinho e refrigerante. Nessa cantina trabalham os usuários-bolsistas do Programa

de Geração de Renda. Nela há uma pia, um balão, uma geladeira e um armário. A renda das

vendas é convertida em materiais para as oficinas. Atrás da cantina, há o banheiro feminino.

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Em frente à cantina, tem a sala dos técnicos. Nessa sala ficam os arquivos com todos

os prontuários dos funcionários, bem como os livros referentes às oficinas, e dos recados, no

qual os funcionários fazem suas considerações acerca de algum problema em relação à

alguma coisa ou algum paciente. Tem também um quadro branco, em que os funcionários

deixam escritos com um pincel, os recados mais urgentes. Também tem outro quadro, com a

relação do horário e atividades exercidas pelos funcionários. Quando entrei na instituição,

esse quadro com os horários de trabalho e suas respectivas atividades não estava atualizado.

Depois de uma semana, esse quadro foi atualizado. No centro da sala, há uma mesa redonda,

com cadeiras. No canto há um armário, onde os funcionários colocam as bolsas e um

bebedouro. Essa sala (sala dos técnicos), a sala da administração e da enfermagem, são as

únicas que possuem ar-condicionado na instituição.

Ainda nesse pavimento, há a sala de dispensação de medicamentos, que possui uma

mesa, cadeiras e um armário. Os medicamentos ficam separados em potinhos, com os

remédios e os nomes dos pacientes e ficam dentro do armário. Em frente essa sala, tem o

banheiro masculino, e uma área que possui dois bancos.

O segundo pavimento possui dois acessos que são independentes entre si, o primeiro

se dá pela escada que fica entre a cantina e a sala dos técnicos. Assim que a pessoa sobre a

escada tem um pequeno espaço onde fica o bebedouro e o banheiro dos funcionários. Muitos

pacientes esperam nesse espaço para serem atendidos. Esse andar possui um consultório

utilizado para atendimentos dos pacientes. Nesse consultório tem a saída para uma varanda

externa. Mais duas salas compões o andar, essas são usadas para atendimento, oficinas e

reuniões. Há também mais duas salinhas, uma onde as auxiliares administrativas trabalham e

outra, com os arquivos e demais documentos do CAPS. É a partir dessa salinha que se chega

ao terceiro pavimento. Esse só possui uma área coberta, que serve como depósito para

materiais, como tinta, por exemplo.

O outro acesso para o segundo pavimento é do lado de fora da casa e a escada para

acessá-lo fica ao lado da cozinha. Subindo as escadas, temos à direita, a sala do bazar e a

esquerda o banheiro dos terceirizados.

No início da pesquisa, as paredes estavam sujas, e uma pintura nos ambientes se fazia

mais que necessária, mas como salientado nas entrevistas, a questão da limitação dos recursos

financeiros não permitia que esse problema fosse superado. No final do ano, esse problema

foi solucionado com a pintura interna dos ambientes. Isso foi possível graças a colaboração

dos familiares, que ajudaram na compra dos materiais necessários para a pintura. Essa questão

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acerca da aparência do CAPS será melhor discutida no tópico sobre ambiência, já que se trata

de aspectos importantes para além de uma estética.

6.4 Perfil dos trabalhadores do CAPS

Em Outubro de 2011, mês em que esse quadro foi elaborado, o CAPS, tinha uma

equipe multidisciplinar, composta por: 04 estagiários de Psicologia; 25 Funcionários/RPA de

diversas áreas; 02 Funcionárias/servidoras (01 médica e outra Psicóloga); 04 residentes e 04

funcionários terceirizados; o que totalizava em 39 trabalhadores.

Quadro II – Trabalhadores do CAPS.

Função Formação Data de entrada e saída no CAPS

Estagiário Psicólogo 03/2011

Estagiário Psicólogo 03/2011

Estagiário Psicóloga 03/2011

Estagiário Psicólogo 03/2011

Funcionário/RPA Acompanhante Domiciliar 04/2002

Funcionário/RPA Acompanhante Domiciliar 09/2010 à 10/2011

Funcionário/RPA Acompanhante Domiciliar 02/2011

Funcionário/RPA Acompanhante Domiciliar 10/2011

Funcionário/RPA Assistente Social 01/2011

Funcionário/RPA Auxiliar Administrativo 04/2011

Funcionário/RPA Auxiliar Administrativo 02/2011

Funcionário/RPA Comunicação 09/2010

Funcionário/RPA Enfermeira 06/2007

Funcionário/RPA Médico Psiquiatra 07/2008

Funcionário/RPA Médica Psiquiatra 10/2011

Funcionário/RPA Psicóloga 11/2010

Funcionário/RPA Psicóloga 09/2009

Funcionário/RPA Psicóloga 04/2007 à 09/2011

Funcionário/RPA Psicóloga 01/2008 à 10/2011

Funcionária/RPA

Psicóloga

(Estagiária até 08/2011) 08/2010

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Funcionário/RPA Psicólogo 09/2011

Funcionário/RPA Psicólogo 02/2012

Funcionário/RPA Serviços de Manutenção 04/2011

Funcionário/RPA Terapeuta Ocupacional 10/2011

Funcionário/RPA Oficineira 10/2011

Funcionário/RPA Técnica de Enfermagem 01/2005

Funcionário/RPA Técnico de Enfermagem 06/2004

Funcionário/RPA Técnico de Enfermagem

(Oficineiro) 11/2010 à 08/2011

Funcionário/RPA Terapeuta Ocupacional 04/2005 à 10/2011

Funcionário/Servidora Assistente Social 07/2008

Funcionário/Servidora Psicóloga (coordenação) 01/2005

Residente Enfermeiro 03/2011

Residente Psicóloga 03/2011

Residente Médica Psiquiatra 03/2011

Residente Médica Psiquiatra 03/2011

Terceirizados Serviços Gerais 03/2011

Terceirizados Serviços Gerais 03/2011

Terceirizados Porteiro 07/2009

Terceirizados Porteiro 02/2005

Fonte: Setor administrativo do CAPS. Dados disponibilizados em Outubro de 2011.

A sigla RPA significa “Recibo de Pagamento a Autônomo” e se refere aos

funcionários que trabalham a partir de contrato sem vínculo empregatício. Como demonstrado

no quadro, dos 27 funcionários, 25 se encontram nessa situação, o que correponde a 92,6%,

número bastante alto, e que tem repercussões no cotidiano da instituição, fato esse

diretamente relacionado à saída dos profissionais. Enquanto realizava essa pesquisa, 05

funcionários saíram do serviço e outro já se encontra na iminência de sair, pois como é

residente, ao cabo de seu estágio deve se retirar do serviço para terminar sua formação em

outra instituição.

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6.5 Processo de Recepção / Chegada do usuário no CAPS

Os pacientes chegam ao CAPS por indicação de outros serviços da rede de saúde,

indicação da família, de médicos particulares ou de demanda espontânea, sendo recebidos por

uma equipe técnica que faz uma avaliação acerca do caso, para definirem se será um paciente

que irá fazer parte do CAPS ou se terá que ir para outro lugar, ou seja, se é justificável sua

posterior permanência na Instituição. No caso do paciente não ficar no CAPS, ele sai do

serviço com um encaminhamento na mão e quando possível, com o contato do lugar para

onde deverá ir.

Todo paciente está sujeito à um processo que é denominado no serviço de “Recepção”,

que pode demorar dois, três, quatro ou mais encontros e pode ser feita por qualquer

trabalhador da equipe técnica. Encontramos nas falas das entrevistas, uma pergunta

norteadora no que tange à Recepção e que é feita pelos profissionais que estão nesse processo:

E01: Faz parte de quem está na dupla ou individual ou trio, de quem tá envolvido na

recepção de se perguntar: por que o CAPS?(Fonte: Entrevista).

A lógica da territorialidade é um fator que está atrelado à possibilidade ou não do

paciente fazer parte do CAPS, já que a rede de Saúde Mental de Niterói é dividida em

territórios, no qual os pacientes só podem ser atendidos se fizerem parte de tal localidade;

caso contrário, ele não poderá ser atendido pelo serviço em questão. O CAPS tem como

territórios adscritos: Centro, São Domingos, Morro do Estado, Ilha da Conceição, São

Lourenço, Santa Bárbara, Ponta d’Areia, Bairro de Fátima, Ingá, Caramujo, Fonseca (até a rua

22 de Novembro), Vila Pereira Carneiro.

Essa lógica da territorialidade além de ser uma questão de área geográfica, se vincula à

demanda e qualidade dos serviços, como apontado na fala abaixo:

E09: [...] a gente também não consegue dar conta é, porque , de, de a gente aqui é

uma equipe restrita, então assim a gente tem um espaço restrito, e a lógica da rede é

territorial, não pode estar ampliando muito esse, esse, atendimento. E mesmo

morando em Niterói, tem que pertencer a nossa área, que na verdade é uma área

enorme, maior parte de Niterói [...]. (Fonte: Entrevista).

A partir dessa definição, caso o paciente seja aceito no CAPS, começa o investimento

em seu tratamento, primeiro a definir suas referências e paralelamente seu projeto terapêutico

individual.

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6.6 As Referências e Projeto Terapêutico Individual (PTI)

A partir da investigação iniciada na recepção e uma vez determinado que o paciente é

um paciente para o CAPS e não para um Ambulatório, por exemplo, abre-se um prontuário

para o paciente e começa-se a delinear quem serão as referências médica e não-médica (outras

especialidades) desse paciente dentro do CAPS. A exigência do acompanhamento médico,

sendo do CAPS ou não, se justifica pela possível intervenção medicamentosa.

E04: A referência que é o médico ou o psicólogo, não precisa necessariamente ser

um psicólogo, pode ser uma assistente social, ou um enfermeiro, mas tem que ter um

médico para ver a medicação. Alguns casos têm médicos particular, médico fora

[...]. (Fonte: Entrevista)

Pode haver mais de duas referências, é o que acontece quando nessa dupla, se tem o

acompanhamento de um estagiário, que embora possa ser também uma referência, ele não

poderá sê-lo sozinho com o médico.

Não existe relação entre recepção e referência, ou seja, o paciente nem será terá por

referência o profissional que fez sua recepção. Poderá ser ou não, depende de cada caso e

cada situação, que pode sofrer variações, segundo vários fatores que são definidos em reunião

de equipe.

Será nessas reuniões semanais que se tem a discussão dos casos, a supervisão clínica e

institucional. Por conta disso, toda a equipe técnica obrigatoriamente deve participar, sendo

que toda falta deverá ser devidamente justificada.

Nas reuniões de equipe, que acontecem todas as quartas-feiras (08h às 12h) e que são

orientadas pela direção do CAPS, ficará acordado quem serão as referências para determinado

caso, que podem variar, devido à: a disponibilidade do profissional (que já pode ter muitos

pacientes referenciados e por conta disso não ser a pessoa mais apropriada), à indicação e ou

determinação da coordenação ou até mesmo do interesse e vontade do profissional.

E01: E aí é, essas coisas são definidas, muitas vezes, [...] na recepção [...] alguém

que diz, agora estou mais disponível, me interessei mais pelo caso.[...] me interessei

mais pelo caso.

E09: [...] qualquer um dos técnicos, se elege para acolher o caso...

E06: Vai do desejo de cada um. Como disse a psicanálise, é o desejo que, que na

reunião de equipe é passado, e a gente pergunta, ah quem? Tem uma recepção,

paciente tal, tal, tal, quem vê...

Entrevistador: Aí define quem vai ficar?

E06: É.

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E07: [...] ah eu quero atender fulano e outros não, outros a gente pode escolher.

(Fonte: Entrevista)

Nas reuniões também é decidido se o paciente irá ou não precisar de um AD

(Acompanhante Domiciliar), dependendo do Projeto Terapêutico Individual – PTI indicado ao

paciente. Em alguns momentos, a mudança do Projeto Terapêutico Individual do paciente, já

é suficiente para resolver os problemas que envolvem o tratamento do paciente, outros, só

mesmo mudando a referência.

E04: Se tem algum problema, verifica se é um problema de referência, se é uma

estratégia mudar de referência, ou então, se é uma estratégia mudar o Projeto

Terapêutico [...].

E08: Porque o Projeto Terapêutico você tem que estar avaliando para ver se é isso

mesmo, se continua, para? Se teve uma melhora ou não? (Fonte: Entrevista).

Carvalho e Cunha (2006) sugere a substituição do uso do termo ‘individual’, pela

palavra ‘singular’, baseando na premissa de que para as práticas em saúde – em especial na

atenção primária – é extremamente importante levar em consideração não somente o

indivíduo, mas todo o contexto social que envolve a sua vida. Ademais os projetos

terapêuticos podem ser familiares, coletivos e até territoriais, o que acabaria a reduzir o uso da

palavra ‘individual’.

Esse projeto terapêutico será realizado pelos técnicos de referência, que irão dizer se o

tratamento será intensivo ou semi-intensivo e quais as atividades que o paciente deverá

participar.

E09: Quem são as referências, porque tem sempre o médico psiquiatra e um técnico

de referência. Defini-se se vai precisar introduzir um AD no caso, né, um

Acompanhante Domiciliar, dependendo do Projeto Terapêutico que foi tratado,

tratado para esse paciente. (Fonte: Entrevista).

De um modo geral, as referências são entendidas como um elo entre o paciente e o

serviço, o que não significa dizer que a partir desse elo, venhamos a ter a construção de um

vínculo entre o usuário e o profissional. Esse é um paradoxo, que iremos abordar

posteriormente.

E01: A gente costuma dizer que os pacientes, a gente não pode dizer que o paciente

é nosso. O paciente é sempre do serviço, que estamos aqui transitoriamente [...] e o

laço dele é com o serviço, precisa ser com o serviço. (Fonte: Entrevista).

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De acordo com a fala desse trabalhador, o vínculo se constitui a partir de um elo do

usuário com o serviço, o que constitui numa visão precária do ponto de vista do cuidado. Na

realidade, o vínculo deve ser entendido por outra lógica, pela lógica do afeto, das relações de

afecção que perpassa os indivíduos a partir dos encontros micropolíticos que ocorrem na

instituição. Do ponto de vista do cuidado, a instituição deve ofertar recursos tecnológicos

capazes de assegurar, sobretudo, o vínculo entre trabalhador e usuário, o que pressupõe o

princípio da integralidade da assistência.

E03: [...] porque cada paciente tem sua referência na qual tudo o que for [...]

vinculado à ele essa referência vai estar ligado e aí a gente quando tiver um

problema para passar para, daquele paciente a gente vai levar para a referência, no

caso. (Fonte: Entrevista).

Como cada paciente possui uma referência, estas possuem um papel central no serviço

principalmente no que diz respeito às necessidades dos usuários e à construção ou não do

vínculo entre trabalhador e usuário.

E09: cachorro que tem um monte de dono, morre de fome, né? [...] Porque assim, a

vantagem de você ter um técnico de referência, é a garantia de que aquele paciente

não vai ficar esquecido, então assim, a gente tem, tem pacientes, que aqui a gente

tem atendimento é intensivo, semi-intensivo e não-intensivo, né.

E10: O ponto positivo que eu vejo é não perder o fio da meada dos casos, é aquela

velha historia que cachorro com vários donos não é de ninguém morre de fome, né?

(Fonte: Entrevista).

Como dito nessas falas, existe na instituição uma supervalorização acerca da

referência que precisa ser considerada. Como iremos mostrar na sequência, existe uma

variação em torno do que seja a referência dentro da instituição; para o entrevistado E03 ela

possui um caráter mais instrumental, enquanto para o entrevistado 05, é apontada como

potencialmente importante para a efetivação do cuidado no CAPS.

E03: [...] se o paciente sumir do CAPs a referência deve entrar em contato para ver o

que está acontecendo [...] Aí aquela referência tem que entrar em contato, ligar, vê o

telefone lá, ver o que está acontecendo.

E10: [...] aquele vínculo precisa ser preservado, porque alguém tem que estar

naquele lugar para que ele possa se endereçar aquela questão maníaca dele, entende,

não precisa ser uma pessoa daquele lugar, sabe. Mas aí é no caso a caso, agora, se a

referência é uma referência que não cuida, que não se deu, porque não cuida, porque

não quer cuidar, aí é outra conversa. Eu não vejo isso aqui. (Fonte: Entrevista).

Ao mesmo tempo, a referência é tida como um norte para o paciente e para os demais

integrantes da equipe.

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E05: A Referência é um norte, um norte para o paciente, um norte para equipe.[...]

Então a Referência é isso, é a referência, é o ponto de referência, ela é o norte

daquele paciente. É alguém que está mais próximo, fazendo contato mais próximo

com a família, né, que está mais atento com as ações daquele paciente, né. (Fonte:

Entrevista).

Essas funções podem ser entendidas como investimentos pessoais. Pessoal, no sentido

subjetivo do termo, no qual as relações entre trabalhador-usuário se definem a partir de desejo

de cada profissional em estabelecer um encontro no qual há uma produção de afecto (no

sentido de Espinoza), podendo produzir nos que se encontram, “paixões alegres ou tristes”, o

que terá um efeito sobre o usuário, no sentido de favorecer ou não seu projeto terapêutico de

autonomização. Caberá à ele, por si, promover um cuidado-cuidador ou um cuidado-sumário,

no momento em que este se deparar com o paciente.

7 A PRODUÇÃO DO CUIDADO NO CAPS EM QUESTÃO

Nunca se viu um cuerpo: se vem hombres y mujeres. No se vem cuerpos. (Le

Breton)

Como dito na introdução, para entender o modo de produção do cuidado no CAPS, irei

enfocar a relação corpo e cuidado, a partir da Teoria da Afecção, ou seja, a partir dos

afetamentos que ocorrem dentro da instituição. Chamei-os de ‘afetamentos transversais’,

porque esses afetamentos atravessam os corpos dos pacientes, ao mesmo tempo, que

atravessam também o corpo dos trabalhadores. Potencialmente esses afetamentos podem se

dar de forma positiva, e também de forma negativa.

Mas, quando encontramos um corpo exterior que não convém ao nosso (isto é, cuja

relação não se compõe com a nossa), tudo ocorre como se a potência, operando uma

subtração, uma fixação: dizemos nesse caso que a nossa potência de agir é

diminuída ou impedida, e que as paixões correspondentes são de tristeza. Mas, ao

contrário, quando encontramos um corpo que convém com a nossa, diríamos que sua

potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são de alegria, nossa

potência de agir é ampliada ou favorecida. (DELEUZE, 2002, p.33).

Enquanto subtração (relação de decomposição) o encontro dos corpos estaria

promovendo uma diminuição da potência do sujeito, ou seja, promoveria uma relação de

tristeza, ao passo que, ao contrário, a adição (relação de composição) se daria no encontro

entre um corpo que convém com o nosso corpo, na medida em que otimizaria a potência do

ser e por isso, é uma relação de alegria, de expansão. Que tipo de relação está se constituindo

no CAPs? Relações de composição ou de decomposição?

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Para responder essa questão, num primeiro momento irei apontar os problemas citados

pelos trabalhadores e que devem ser mudados no CAPS, uma vez que diminuem a potência

dos usuários, por isso aqui, segundo nossa concepção teórica, são considerados geradores de

relações de decomposição. São eles:

7.1 Ambiência

O conceito de ambiência, segundo o Ministério da Saúde, se fundamenta em três

espaços, que apesar de serem apontados separadamente, são indissociáveis. (BRASIL, 2010).

1) O espaço que visa à confortabilidade focada na privacidade e individualidade

dos sujeitos envolvidos, valorizando elementos do ambiente que interagem com as

pessoas – cor, cheiro, som, iluminação, morfologia, sinestesia, arte, tratamento das

áreas externas – e garantindo conforto aos trabalhadores e usuários.

A fala abaixo descreve bem essa situação no CAPS, no que tange à falta de

confortabilidade, na questão da individualidade e privacidade dos usuários.

E01:[...] muitas vezes a gente atende o paciente no banco, em pé ou no corredor e

alguma coisa pode se perder ali, porque a gente é interrompido, porque tem outras

pessoas passando, que alguém chama e não entende qual é a sutileza daquela

conversa e que é um atendimento e que poderia ser privado. (Fonte: Entrevista).

2) O espaço que possibilita a produção de subjetividades – encontro de sujeitos –

por meio da ação e reflexão sobre os processos de trabalho.

3) O espaço usado como ferramenta facilitadora do processo de trabalho,

favorecendo a otimização de recursos, o atendimento humanizado, acolhedor e

resolutivo.

A questão da privacidade e individualidade é realmente muito delicada nesse CAPS e

que precisa ser revista. Em vários momentos presenciei atendimentos sumários, rápidos e sem

a devida atenção, por estarem acontecendo no meio de um corredor, por exemplo. As

interrupções eram constantes, seja por outros pacientes que se aproximavam do profissional

para pedir ou falar alguma coisa; seja por outros profissionais que se dirigiam ao técnico, ou

até mesmo, para simplesmente pedir licença – já que estavam no meio de uma passagem de

acesso importante no estabelecimento.

Interessante pensar a partir do conceito de ambiência, que a instituição dever ser

entendida por duas dimensões: a do espaço físico e a do espaço social, profissional e de

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relações interpessoais e nesse sentido, além de preconizar por um espaço físico adequado,

sublinha também a necessidade de ser sobretudo um espaço social, ou seja, acolhedor,

resolutivo e humano.

Para uma atenção psicossocial, sob esse referencial, considera-se que tanto os fatores

de aspectos materiais que se relacionam com a aparência e valorização do ambiente da

Instituição, como cor, conforto, privacidade; quanto os aspectos não-materiais (o sentir-se

acolhido e seguro, a oferta de espaços de expressão de subjetividades) são essenciais para um

bom atendimento do serviço. (KANTORSKI et all. 2011).

E06: Pois é, um lugar já largado porque as pessoas vão se cuidar?(Fonte:

Entrevista).

A ambiência então está diretamente ligada ao cuidado em agenciamento e deve ser

entendida como uma ferramenta potente para um atendimento mais acolhedor, equânime e

humanizado, pois além de operar a partir da revitalização dos espaços. No processo de

mudança e organização de novos arranjos espaciais na instituição, a ambiência não pode ser

entendida como uma categoria isolada do processo do trabalho, mas sim como uma

facilitadora de uma possível mudança no modo de produção do cuidado, na medida em que,

permite a construção de novas subjetividades.

E01: A gente precisa de estrutura. É estrutura física [...] As coisas acontecem

essencialmente por isso, mas a gente precisaria de uma estrutura física para, mais

digna de um trabalho. O quê a gente sente muita falta é disponibilidade do espaço

físico mesmo, até para as oficinas acontecerem melhor [...] porque a gente vive

assim, a segunda palavra em Saúde Mental é improviso. A gente funciona no

improviso assim, e aí se a gente tem um espaço mais adequado, as salas de

atendimento, pudesse ter lugares mais adequados.

E05: É, deixa eu ver, de repente é mudar de local assim, para um espaço maior [...]

se fosse um lugar maior, se tivesse mais, seria bem melhor para eles.

E07: Aqui nesse CAPS eu acho que a estrutura física deveria mudar assim... Então

assim, eu acho assim que deveria ser uma casa plana, a sempre pediu assim uma

casa que não tivesse dois andares que tivesse uma área externa maior, para a gente

poder fazer algumas atividades com os pacientes. Porque aqui fica tudo muito

tumultuado assim, e aí a gente fica, né, nossa intenção, é que tivesse um espaço

físico maior.

E09: Primeiro lugar o espaço físico que é inadequado. Mas, enfim, isso é uma

precariedade. (Fonte: Entrevista).

O espaço físico vem sendo denotado como um problema que o CAPS enfrenta. Ele

não possui área própria para as atividades de recreação, como uma área de lazer, ou espaços

apropriados para a realização das oficinas terapêuticas. As oficinas de beleza que acontecem

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nas terças-feiras são realizadas num corredor lateral onde fica as cadeiras para os pacientes se

alimentarem. Por não ter uma cobertura apropriada, está coberta por uma lona azul, que

esquenta demais o local e causa problemas para os frequentadores da oficina quando chove.

Outra coisa citada é o fato do CAPS estar situado numa casa de três pavimentos, ao

invés de estar numa casa ou num lugar plano. Alguns pacientes possuem dificuldades na

locomoção, seja por problemas clínicos ou até mesmo por efeito colateral pelo uso

prolongado das medicações que eles utilizam.

No que tange aos problemas relacionados com a estrutura física, os profissionais me

disseram que muitas vezes já repassaram o pedido de transferência do CAPS para instalações

mais apropriadas, mas que até então, não tiverem nenhum respaldo pelos órgãos competentes

a respeito dessa situação.

7.2 Estigma

Foi apontado também pelos trabalhadores, que usuário do CAPS sobre estigma por

parte de outros profissionais de saúde por ser um usuário do CAPS.

E04: É difícil, tem uma certa resistência, tem um certo medo, né, sobre o paciente

psiquiátrico, que ele não pode ficar sozinho, não pode ir desacompanhado, ele não

tem como responder a clínica dele. (Fonte: Entrevista).

Essa estigmatização velada promove um distanciamento e faz com o que o elo entre o

CAPS e o restante da rede não se desenvolva efetivamente. Na prática, isso resulta em

grandes dificuldades seja para a marcação de uma consulta ou de um exame para o paciente,

sob a alegação de que o paciente não pode ficar sozinho, ou que não pode responder pela sua

clínica.

7.3 Articulação com o Poder Público

Entrevistador: E o CAPS está tentando de alguma forma conseguir um outro espaço

ou nem entra na discussão do CAPS?

E07: Está. Não! Entra, a gente já fez o pedido para a Prefeitura, os familiares daqui

também já, né, se mobilizaram para isso, mas infelizmente a gente fica um pouco à

mercê do poder público.

E08: Assim para melhorar o CAPS, é questão Prefeitura, Fundação e a Saúde

Mental que deixa muito a desejar.

E11: Se eu fosse olhar por aí, né, vou ter que botar um monte de faltas, de falhas, né,

é, na atualidade muitos, falhas partindo da, do poder governamental, sabe? É, eu

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acho que a gente vive um momento em que o poder governamental, ele sustenta na

área social, se sustenta muito mais numa encenação, numa teatralidade, muito mais

em marketing, não é? (Fonte: Entrevista).

As reclamações em torno dos problemas oriundos da falta de sintonia e articulação

com os órgãos competentes referentes a Saúde Mental de Niterói, vão desde aos problemas de

recursos financeiros, físicos e até os trabalhistas. A Reforma nesse contexto, não se dá

somente pela implementação dos CAPS, é preciso estar além de um imaginário anti-

manicomial, precisa ser expressa por atitudes do poder público que assegurem uma estrutura

mínima nos CAPS.

7.4 Articulação com o SAMU

E03: Tem muita assim para melhorar. Algumas coisas, por exemplo, o trabalho da

SAMU, por exemplo, que né, porque a gente às vezes depende muito da SAMU,

quando um paciente está num quadro é, é, de convulsão ou outro tipo qualquer [...]a

gente liga para a SAMU, tem vezes que a SAMU, a gente até entende que a SAMU,

às vezes, é pouco, poucas ambulâncias para, um leque, né, e às vezes a gente vê que

realmente eles demoram e a gente não sabe porque e os pacientes às vezes fica aqui

[...] às vezes, eles não vêem [...] (Fonte: Entrevista).

A falta de articulação como o SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência –

é um problema que o CAPS enfrenta. Já teve várias vezes, que mesmo ligando e pedindo uma

ambulância nos casos de emergência, ainda assim não foram atendidos pelo SAMU. Já teve

situações em que os funcionários tiveram que levar em carros próprios os pacientes nos

momentos de crise, porque o SAMU, não fez o pronto-atendimento, ou quando o faz, faz

depois de muito tempo.

7.5 Articulação com a Rede de Saúde

E02: [...] é precário também depender de um serviço, da própria rede às vezes é até

meio complicado. Até mesmo agora que a gente começou agora com um serviço

com um rapaz que foi contratado é de fazer exames de sangue, a gente antes não

tinha isso, entendeu? [...] às vezes encaminhava o paciente, mas o paciente não

conseguia porque o outro serviço lá não conseguia atender porque era psiquiátrico.

(Fonte: Entrevista).

Nessa fala, temos uma questão que apesar de ser discutida adiante, merece ser

apontada: esse rapaz contratado – fazia uma importante ponte entre o CAPS e o restante da

rede, que foi interrompida pela sua saída da Instituição. Isso é um problema e um exemplo de

que várias ações necessárias ao CAPS são interrompidas no serviço devido ao desligamento

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dos profissionais, ou seja, projetos que se encontram em processo embrionário, antes de se

constituírem como ações efetivas no serviço são rompidos por conta desses afastamentos.

Todos perdem com isso, o CAPS, os trabalhadores, os usuários.

E04: Uma coisa que a gente está tentando ver é a parte da saúde física dos nossos

pacientes que é muito precária. E isso é um processo que ainda está engatinhando, a

gente tem diabetes, hipertensão, câncer, essas coisas todas, a gente ainda não

consegue ainda meio que engajar eles na rede. (Fonte: Entrevista).

Existe uma falta de articulação do CAPS com a rede de saúde de Niterói, problema

que precisa ser solucionado, principalmente quando vemos na instituição pacientes que

possuem outros problemas clínicos e que poderiam a partir de tratamentos específicos terem

seus problemas solucionados se, esse elo não fosse tão fluido, como o é na prática.

7.6 Engessamento dos profissionais

E06: Também dos profissionais, isso de, que já está cristalizado, sabe.

Entrevistador: Ah, entendi. Que já está muito tempo na rede e aí...

E06: E que é assim, aquele paciente é assim, ah é assim mesmo. Não! (Fonte:

Entrevista).

O engessamento dos profissionais é entendido aqui como um fator de subtração, ou

seja, um fator que diminui a potência do sujeito. Esse engessamento se dá pela falta de

abertura à novas perspectivas, visões e novos olhares, para o cotidiano, pessoas e situações

dentro do CAPS.

E07: Eu acho assim, para o paciente, às vezes eu acho que a gente fica, é, eu acho

que a gente fica um pouco engessado no trabalho, sabe, às vezes a gente fica, está

tão acostumado, aquilo que a gente fez numa época deu certo?E aí a gente fica tão

com aquilo que, ah não, deu certo, então vamos continuar com aquilo, que a gente

esquece que aquele cara pode estar muito mais do que a gente pensa, entendeu? E aí,

eu acho que isso é muito negativo assim. Eu acho que às vezes, chega alguém de

fora... E é, mas assim, eu digo assim, às vezes chega alguém de fora e fala “por que

você não faz isso com fulano? (Fonte: Entrevista).

É como se todas as relações se naturalizassem de tal maneira que as pessoas não

enxergassem mais as coisas, as pessoas e as situações e não percebem as necessidades mais

básicas de uma pessoa, como é o caso de uma toalha.

E06: Tem, mas é, é, é, são essas coisas cristalizadas que, por isso que eu falei dos

novos, que estão chegando, porque estranha ver um banheiro sujo, estranha. Dizer

que não tem toalha, é estranho, e para quem está já é...

Entrevistador: Já normalizou.

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E06: “É assim mesmo”.

Entrevistador: Naturaliza.

E06: Não é assim mesmo! A gente toma banho mas a gente tem toalha...

Entrevistador: É.

E06: A gente toma banho mas o banheiro está limpo. Então não é normal. [...] Mas

por exemplo, não tem toalha. E essa questão surgiu agora “Ah, não tem toalha”!

Entrevistador: É, como é que ele vai tomar banho?

E06: Então é uma questão que a gente está providenciando agora, assim sabe.

E07: Bom qualquer paciente pode tomar banho, né, tem chuveiro lá atrás, é, o único

problema é que a gente não tem toalha, às vezes o paciente se enxuga com o pano de

chão ou às vezes ficam molhados o dia inteiro. (Fonte: Entrevista).

Sobre esse incidente uma funcionária desabafou:

OP - Isso é um absurdo! Para quer ter chuveiro, se o paciente não tem como se

secar? Já teve vezes que o paciente se secou com pano de chão porque não temos

dinheiro para comprar toalhas. Em alguns casos ficam molhados porque não se tem

como secar. (Fonte: Diário de Campo).

Em relação a esse problema, outra profissional, também se manifesta, dizendo na

entrevista:

E06: [...] são essas coisas cristalizadas que, por isso que eu falei dos novos, que

estão chegando, porque estranha ver um banheiro sujo, estranha. Dizer que não tem

toalha, é estranho. (Fonte: Entrevista).

Já presenciei uma situação desumana ocasionada pela falta de toalha no CAPS. Um

usuário defecou na roupa e precisou por conta disso tomar um banho para se restabelecer.

Enquanto o usuário estava tomando banho tudo estava sob controle; o problema apareceu de

fato, quando o banho acabou, pois não tinha toalha no CAPS para o usuário se enxugar.

Para resolver de pronto a situação, o estagiário sobe ao segundo andar, onde eu me

encontrava, para procurar no armário de roupas doadas, algo que ele pudesse dar para o

usuário se enxugar e usar. Enquanto o estagiário revirava as roupas com rapidez, falava em

tom de revolta e indignação:

OP: Mas isso é um absurdo! Não vai servir nele, não vai servir nele. Aqui tem mais

roupa de mulher, como é que eu vou fazer? Ele está todo molhado no banheiro lá em

baixo. Como é que pode não ter toalha no CAPS?(Fonte: Diário de campo).

Também me fiz a mesma pergunta: como pode coisas desse tipo permear o serviço do

CAPS? Como conceber, sem se revoltar, que um usuário, se enxugue com pano de chão ou

fique molhado na instituição, porque o serviço não tem verbas suficientes para comprá-las?

Será nesse sentido, que a perspectiva de um ‘olhar novo’ se torna importante no serviço,

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porque esse olhar vai de encontro à contextos problemáticos, que estão naturalizadas há muito

tempo, ao permitir um questionamento diante dessas situações. Esses olhares funcionam

como molas propulsoras, que colocam como diz o ditado, ‘a roda para girar’.

Maturana e Varela ressaltam a importância da relativização de olhares:

Só quando, em nosso ser social, chegarmos a duvidar de nossa profundamente

arraigada convicção de que nossas inabaláveis e "eternas" certezas são verdades

absolutas (verdades inobjetáveis sobre as quais já não se reflete), aí então

começaremos a nos desvencilhar dos poderosíssimos laços que a armadilha da

"verdade objetiva e real" tece. Desumana armadilha esta, pois nos leva a negar

outros seres humanos como legítimos possuidores de "verdades" tão válidas como as

nossas. (MATURANA; VARELA, 1995, p.25).

Na saúde, o compartilhamento de perspectivas, é de suma importância para a

construção do conhecimento. Do conhecimento do caso, das dificuldades, dos impasses e das

necessidades de cada paciente. Essa construção de conhecimento compartilhada, relativizada

pelo questionamento das verdades absolutas, produz uma nova subjetividade para todos os

envolvidos no processo; sejam eles os trabalhadores ou usuários.

Foi a partir dessa relativização, que foi possível, começar as providências para se ter

toalhas no CAPS. Pode-se dizer então, que sendo assim, esses atravessamentos de olhares e

perspectivas aumentam a potência do usuário quando são valorizados pelo serviços.

7.7 Recursos Financeiros

São inúmeros os relatos que evidenciam o problema de falta de recursos financeiros no

CAPS, são eles:

E03: Porque como aqui a gente não tem verba, entendeu, seria de muita importância

que aqui fosse visto com outros olhos.

E05: Porque é difícil assim a gente manter a oficina mais pela verba mesmo, né, que

é difícil, a gente faz tudo, pede doação, faz uma coisa, faz outra, e assim funciona,

mas com dificuldade, isso deveria ser bem mais fácil, né, porque isso ajuda muito a

eles, né, muita coisa.

E08: Digo até, desde um material para a oficina que não tem uma verba, e tem que

correr atrás, né, que a gente não tem uma ajuda. Não tem o recurso, a gente tem que

inventar.

E09: A gente tem dificuldade de, de conseguir os insumos às vezes, mais simples,

mais básicos e tal [...]. (Fonte: Entrevista).

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A falta de estrutura e de recursos financeiros influencia diretamente na vida dos

usuários, afetando-os negativamente.

Mediante a falta de estrutura e de recursos financeiros, mecanismos vão sendo

ativados internamente para tentar dar conta desses problemas, que apesar de serem paliativos,

vão sendo construídos para fazer frente à esses problemas, é que pode-se chamar de ‘linhas de

fuga’, a partir de novas práticas institucionais.

[...] práticas na perspectiva de desterritorializar os saberes e fazeres instituídos e

possibilitar a vigência de linhas de fuga, de movimentos nômades rumo a um plano

conceitual ainda desconhecido, em busca de novas perspectivas para a clínica em

seu devir. A desterritorialização, como conceito deleuziano, compreende

movimentos que nos projetam para um hibridismo conceitual fruto de uma

mobilidade e do desenraizamento da realidade em que nos situamos para o plano do

devir. (VIEIRA; SILVEIRA; FRANCO; 2011, p.11).

É o caso da pintura do segundo pavimento do CAPS, que só foi possível, pela

movimentação de arrecadação de dinheiro e materiais providenciados pelos profissionais que

se mobilizaram a partir das vendas das roupas doadas, juntamente com a ajuda dos familiares

dos usuários.

A título de exemplificação da situação em relevo, transcrevo a reportagem “Saúde

Mental sobrevive de doações” de Luiz Gustavo Schmitt, intitulada de “Pais e funcionários

ajudam a manter centros municipais de assistência”:

“Um cartaz afixado à entrada do Centro de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi)[...],

no Ingá, informa: “Recebemos contribuições em dinheiro para a festa da unidade e

para um fundo de obras”. No Centro de Atenção Psicossocial (Caps), no Centro, um

aviso colado na parede pede: “Deposite aqui sua doação”. Funcionários das

unidades, municipais, e pais de pacientes contam que coletam dinheiro e promovem

eventos para ajudar a driblar a escassez de recursos que assola o serviço. O objetivo

é arrecadar verba para serviços básicos, como transporte para visitas domiciliares a

pacientes, manutenção predial e compra de material para oficinas de artes. - O

serviço é mantido graças ao esforço pessoal dos funcionários e das famílias dos

assistidos — informa a diretora da Associação dos Usuários e Amigos da Saúde

Mental [...]. No CAPS, pais de pacientes dividiram os custos da pintura do segundo

andar. Agora, eles querem angariar verba para colocar um toldo na área externa da

unidade. No Capsi, funcionários e familiares pretendem consertar o toldo do pátio,

que está rasgado, e pintar as paredes descascadas do imóvel. [...] médico do Caps,

diz que a falta de infraestrutura tem prejudicado o atendimento. Ele conta que

enfrenta dificuldades para transferir pacientes para internação em unidades

hospitalares municipais. Compro papel com o meu dinheiro para imprimir

prontuários médicos. A impressora e o computador são meus, porque os daqui não

funcionam. Agora, é comum que os pacientes da saúde mental sejam recusados

numa emergência? O Hospital de Jurujuba está superlotado. Também não é possível

marcar consultas com oftalmologistas e ortopedistas, por exemplo. O problema é

que não há vagas. Procurada, a Secretaria municipal de Saúde não se pronunciou

sobre o assunto. (Disponível Online: <http://oglobo.globo.com/niteroi/saude-mental-

sobrevive-de-doacoes-3273507> Acesso em: 25 Jan. de 2012).

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Segundo a reportagem acima, esse problema não é específico do CAPS em questão,

sendo também compartilhado por outros CAPS, o que evidencia um problema mais estrutural

e abrangente, envolvendo assim a gestão da Saúde Mental no município de Niterói como um

todo.

E03: seria de muita importância que aqui fosse visto com outros olhos, né, que o

trabalho que é feito aqui dentro, só quem está aqui dentro mesmo é que consegue ter

uma noção de como é o trabalho e como é difícil, e o que a gente tem que fazer para

conseguir alguma coisa. (Fonte: Entrevista).

Apesar dos arranjos inventados pela equipe para dar conta dos problemas, Koda

(2003), ressalva que o trabalho em Saúde Mental perde seu poder de questionamento da

sociedade, quando os profissionais tomam para si o trabalho árduo de dar conta das várias

dimensões da existência do sujeito e daquilo que o Estado preteriu e que deveria dar

cumprimento no desenvolvimento de suas políticas. Se por um lado os arranjos, mostram a

eficácia no cotidiano da instituição, por outro, evidenciam a ausência do poder público nessas

mesmas questões.

Isso fica evidente quando colocamos sob relevo, a potência existente no trabalhador de

acionar e operar mecanismos de mudanças na instituição. (Ver falas abaixo).

E08: Então hoje em dia, a gente luta, inventa, faz muitas coisas para dar conta.

E09: ...é, a gente não tem ajuda da, da prefeitura, tanto é que a gente está tendo aí

várias iniciativas para fora, porque a gente cansou de esperar por isso então a gente

com o nosso desejo para a coisa, para não deixar a peteca cair, a gente um pouco

está aqui se mobilizando para conseguir coisas de uma outra maneira, pela via da

doação, pela via de, de sei lá, de projeto, de mandar o projeto para lá e para cá, e vê

o que é aprovado para ver se a gente é aprovado e dar uma levantada porque a gente

sabe que o nosso trabalho tem muita qualidade mas a gente sabe que, mas a gente

precisa de uma estrutura mínima, umas coisas assim para trabalhar [...] (Fonte:

Entrevista).

Por isso, se torna importante um processo de desterritorialização dos trabalhadores e

usuários do SUS para que se tenha tais mudanças no serviço, como nos aponta:

Mudar o modo de produção do cuidado pressupõe, no nosso entendimento, além de

mudança do processo de trabalho, um processo de desterritorialização dos

trabalhadores e usuários do SUS. Tendo por referência que os trabalhadores operam

a partir de territórios existenciais, isto é, o território não é físico, mas se encontra

dentro dele, organizado pela sua subjetividade [...] (FRANCO et al. 2009, p.34).

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Nesse sentido, para que se tenha uma ‘mudança em caráter estrutural e duradoura’ no

serviço ofertado no CAPS, é preciso que se tenha a produção de uma nova subjetividade do

trabalhador, que seja capaz de romper com os modelos estruturados até então.

7.8 Relações Trabalhistas

As reclamações nesse sentido evidenciam uma falta de sintonia com a rede de Saúde

Mental de Niterói e também com os princípios da Reforma Psiquiátrica (na medida em que

não está valorizando a mão-de-obra que irá de fato executar a reforma dentro dos serviços)

Os trabalhadores denunciam a precarização do trabalho em saúde mental, marcada

pela falta de regulação e vínculo empregatício e também pela falta de atenção quanto aos seus

direitos trabalhistas por parte do poder público desde o local às instâncias federais.

E09: As relações de trabalho são outra precariedade, assim, a gente percebe que na

rede de Saúde Mental de Niterói, é a gente tem a sensação, eu tenho a sensação

muito clara assim, cada dia mais de que a rede de Saúde Mental de Niterói se

sustenta a partir do desejo das pessoas [...] então assim, porque, é, condições de

trabalho muito ruins, é salários muito ruins, sem vínculo nenhum, uma precarização

gera [...].

E12: A gente trabalha com, com recursos muito escassos, e isso é reflete para os

pacientes né, quando a gente perde profissionais muito qualificados porque não

recebem salário digno, então isso faz muita diferença no serviço [...]. (Fonte:

Entrevista).

O processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, como cita Amarante, passou por

quatro dimensões: a epistemológica – campo teórico-conceitual; a técnico-assistencial – a

partir do questionamento do isolamento do paciente; a jurídica-política - redefine as relações

sociais e civis em termos de cidadania e direitos humanos e por fim, a dimensão cultural –

transformar o lugar social da loucura. (AMARANTE, 2009).

Apesar dessas dimensões, considero ser preciso adicionar mais uma dimensão – a

valorização dos profissionais em Saúde Mental. A questão: como cuidar bem de quem não é

bem cuidado? Ora se o profissional não é valorizado, não possui os direitos mínimos de um

trabalhador, não tem respaldo nenhum pelo poder governamental, como exigir dele um

atendimento condizente com os ideais da Reforma?

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7.9 Rotatividade dos profissionais

A grande rotatividade de profissionais dentro da instituição, na maioria dos casos, está

ligada à questão econômica e aos problemas oriundos do vínculo trabalhista; mas também

podem ocorrer pelo simples término de um estágio. É o que acontece com os residentes que

depois de um ano na instituição, precisam sair da mesma para completar sua formação

acadêmica em outra instituição. Independente do motivo da saída do profissional, essa é uma

questão que precisa ser discutida, devido ao impacto provocado dentro da instituição.

A alta rotatividade dos trabalhadores em um serviço de saúde mental é um sério

problema que implica diretamente no bom funcionamento da instituição, pois com o

desligamento do profissional tem-se um rompimento entre as relações sociais que foram

construídas entre usuários e membros da equipe, mesmo porque o estabelecimento destas

relações de vínculo, confiança e proximidade, que se firmam no cotidiano dentro do CAPS,

não necessariamente ocorre de maneira rápida e fácil com os usuários do serviço, é preciso

um tempo para que essas relações sejam construídas.

O comprometimento da relação social de proximidade estabelecida entre o paciente e

o profissional fica evidente na fala de um profissional, o qual demonstra que não a adaptação

de uma nova referência não é tão simples como se pensa:

Entrevistador: Aí vai ter que arrumar uma outra Referência para ele?

E04: Uma outra referência para ele. E aí justamente o que acontece, ele pode sair do

serviço também, ele pode dar uma desestabilizada.(Fonte: Entrevista).

Nesse CAPS, esse problema pode ser evidenciado de perto, pois enquanto estávamos

realizando o trabalho de campo, em 2011, cinco profissionais se desligaram do serviço.

Dos cinco que saíram, 03 profissionais eram referências institucionais para os

pacientes (duas eram Psicólogas e uma Terapeuta Ocupacional), um era Acompanhante

Domiciliar e outro trabalhava como oficineiro.

OP – Não tem como eu continuar. Aqui está meu coração, mas lá está o meu ganha

pão. (Fonte: Diário de campo).

Na fala acima, fica claro que o profissional apesar da questão afetiva, de se sentir

afetada pelo serviço, não teve condições de continuar no trabalho (mesmo gostando) devido

às condições econômicas (ganha pão). Essa questão não retrata um panorama isolado, mas

que se repete sempre no cotidiano da instituição.

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Tal questão tem que ser repensada pelos gestores da saúde mental, ao priorizarem a

realização de concursos públicos para os trabalhadores da área da saúde, permitindo-lhes

obter certa estabilidade e condições mínimas para realizar o trabalho, no lugar de contratações

temporárias e vínculos frágeis do ponto de vista trabalhista.

A princípio a Reforma esteve voltada para a implantação e implementação dos CAPS,

entretanto, agora se faz mais que necessário que os órgãos públicos levem a Reforma para

dentro do estabelecimento. Se de um lado, espera-se que essa proposta anti-manicomial,

segue aos trabalhadores, tratando com mais respeito e dignidade as questões trabalhistas dos

profissionais que se dedicam á assistência da saúde mental; por outro, espera-se que esses

mesmos trabalhadores vivenciem a Reforma em seus cotidianos de trabalho.

Essas saídas dos trabalhadores afetam, no sentido espinosiano, diretamente o cotidiano

da instituição, e em consequência a vida dos usuários e dos outros trabalhadores que

permanecem na instituição. Irei apontar a seguir esses afetamentos.

O tempo todo, os trabalhadores estão se afetando mutuamente, afetamento esse que

reflete diretamente nas práticas que se constituem dentro do CAPS.

E12: Então o paciente que está aqui mesmo que não é minha referência, ele é meu

paciente enquanto eu estiver aqui, porque eu sou responsável pelo plantão,

entendeu? E, é isso, quando o paciente passa por um discurso, todos estão a par do

caso e tal, eu posso tratá-lo, tratar do paciente, como eu já fiz algumas vezes e outros

profissionais fazem de intervir em momentos de crise, né, mesmo não sendo meu

paciente, não sendo minha referência, mesmo sendo o paciente não minha referência

[...] você está vendo que o paciente não está bem, você intervém, você liga para a

família, você liga para a referência para você saber mais do caso, para você estar

intervindo. (Fonte: Entrevista).

Tanto a mudança como a saída de algum profissional, principalmente se este for uma

referência para o usuário, produzem uma tensão no CAPS. Iremos ver a seguir de que forma

essas mudanças e saídas afetam o cotidiano da instituição.

1) Em alguns casos troca-se a referência, como resposta à algum trabalho ‘mal-sucedido’,

ou seja, produziu um ‘mau encontro’:

E01: Às vezes o técnico entende que ele já investiu tudo o que ele já apostou

naquele paciente, que ele já tentou várias coisas e que o trabalho já está um pouco

desgastado por ele ou pelo paciente, [...] pela clínica e muitas pessoas [...] cambiam

de paciente. Agora vou assistir, vou te passar o paciente, o caso [...].

Se esse vínculo ele não existe entre referência e, por falta de investimento da

referência, é uma situação. Se esse vínculo que ele tem com a referência dele é um

vínculo frágil, mas não é por falta de investimento, é por alguma questão da psicose,

alguma coisa que se deu na transferência ali, que dificultou o vínculo e aí é o

momento que vão entrar outras pessoas, que não são referências dele que vai se

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referenciar de alguma outra forma, né, e a gente vai decidir se a gente vai preservar

o lugar daquela referência ou se vai mudar.[...]E aí, às vezes acontece, tem que

trocar o técnico de referência, porque alguma coisa que acontece ali impossibilita

daquela pessoa trabalhar com o paciente. É muito no caso a caso, não dá para você

fechar e dizer. (Fonte: Entrevista).

Interessante pensar, que nesse sentido, o serviço tem uma postura ativa e de

dominação, deixando o paciente, por outro lado, como um sujeito passivo e sem autonomia

para implicar diretamente nesse processo de escolha de mudança de referência, restando-lhe

ser receptivo à essa imposição, mais uma vez.

A mudança de referência de um paciente por outro profissional, há de ser obrigatória,

face à saída do profissional do CAPS ou à decisão da equipe pela mudança, pois o paciente

não pode ficar sem esse acompanhamento.

A reunião de equipe é importante ferramenta para resolver os impasses que surgem no

serviço, na medida em que são feitas revisões periódica dos casos, seja para falar do paciente,

da adesão ou não do paciente ao tratamento ou sobre o andamento do caso de uma forma

geral.

O termo referência não é aleatório, tal como a própria palavra diz, ele será a

referência, ou seja, a figura que deverá se direcionar ao paciente, à família e a comunidade,

quando necessário. Nesse sentido, tanto quanto desejável, espera-se que a referência conheça

o caso do paciente, e que esteja mais atento ao caso em que é referência do que os outros que

não o são. Assim, para obter maiores informações sobre qualquer coisa vinculada àquele

paciente, o outro profissional da instituição deverá se reportar a referência, porque

teoricamente está mais a par do caso, ou até mesmo porque o paciente por algum motivo se

abriu com esse outro profissional, compartilhando suas angústias, desejos e anseios em

alguma ocasião cotidiana.

E03: Funciona por causa disso, porque assim a referência é uma pessoa tipo assim,

você, quando tem alguma coisa para falar daquele paciente, por exemplo, eu que sou

[...] sou acompanhante e eu estou na rua com o paciente, e o paciente às vezes me

fala alguma coisa, né, uma determinada coisa que não falaria para ninguém mas

falou para mim, se abriu de alguma forma, eu vou chegar diretamente à essa

referência[...]. (Fonte: Entrevista).

Por conta disso, para separarmos essa relação referência e usuário, definimos por

‘referência institucionalizada ou formal’ – a que é oficialmente a responsável por um

acompanhamento mais próximo do caso do paciente e de ‘referência não-institucionalizada ou

informal’, para aqueles profissionais que mesmo não sendo a referência oficial, criam

vínculos com os pacientes.

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A relação paciente-referência nem sempre se dá na numa mesma sintonia. Nem

sempre a referência institucionalizada pelo serviço é de fato a referência aos olhos do

paciente. Apesar do paciente não poder tomar essa decisão de forma direta, mostrando sua

autonomia enquanto sujeito constituinte de desejo, ele à faz de forma sutil, ao eleger a sua

própria referência. Isso mostra como o modo de produção de cuidado se territorializa e se

desterritorializa, mostrando que há um engendramento invisível, mas que denotam na prática

toda uma lógica de cuidado e que afeta diretamente no serviço.

E07:Alguns pacientes escolhem as pessoas que eles vão falar, e nem é sempre são as

referências assim, né, de fato, o técnico, às vezes pode ser um AD, que aí o cara vai

ser atendido junto com o AD, que aí com o AD ele vai conseguir falar das

maluquices. Que ele não falaria para outra pessoa. A referência tem que saber dizer

assim do caso, e dá uma certa direção, mas não necessariamente o cara vai falar da

maluquice dele total para a referência, entendeu? (Fonte: Entrevista).

Apesar de possuir aspectos favoráveis, a referência, possui também aspectos

contraditórios e que foram apontados pelos entrevistados como inevitáveis, já que para evitá-

los teria que se mudar o arranjo no que tange à organização do serviço ofertado no CAPS.

Esse é, pois, o paradoxo que envolve a referência, e que não pode passar despercebido pelos

profissionais que de alguma forma, afetam ou são afetados por esses usuários, quando:

Saída do profissional

E12 [...] então essa referência que os pacientes fazem a determinadas pessoas é

muito importante. Eu acho que sustenta muitos pacientes. Tanto que a saída é uma

coisa que acontece sempre assim, a saída dos profissionais acarreta uma, a piora de

alguns pacientes, então os pacientes são acompanhados quatro, cinco anos pelo

profissional, aí o profissional sai, o paciente perde uma referência, perde alguém que

dá lugar ele na Instituição.

Entrevistador: E a referência pode sair também do serviço, né?

E04: Isso.

Entrevistador: Aí vai ter que arrumar uma outra Referência para ele?

E04: Uma outra referência para ele. E aí justamente o que acontece, ele pode sair do

serviço também, ele pode dar uma desestabilizada. (Fonte: Entrevista).

O paciente está restrito à referência

E01: Muitas vezes o paciente cola na referência, é paciente, do fulano, da fulana, e

aí se perde a dimensão plural do CAPS, porque é isso, nós estamos ai disponível

para a convivência que é o dispositivo chave do CAPS, que é a gente apostar na

convivência.

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Falta de vínculo entre referência e paciente

E03: Isso, não depende às vezes o paciente ele faz o vínculo com o acompanhante e,

mas não faz o vínculo com a referência. Entendeu? Então assim, às vezes isso

dificulta o trabalho, porque nós como acompanhantes, a gente, não pode tomar

nenhuma decisão daquele paciente, que a gente está se metendo na vida daquele

paciente. Então assim, a gente está acompanhando, está dando suporte de alguma

forma, está dando orientação, está dando, mas assim é, tudo o que for definido é

definido ... é pela referência e pelo médico. (Fonte: Entrevista).

Falta de vínculo entre o serviço e o paciente.

E04: Muitas vezes o paciente, ele acaba fazendo vínculo com a Referência e não

necessariamente com a Instituição. O que a gente tenta é que isso não aconteça, mas

na psicose [...] Então assim, o mais difícil, é quando o paciente está muito mais

vinculado à referência do que ao serviço, a gente tenta o tempo todo que ele esteja

vinculado ao serviço.

E12: Eu acho que não, eu acho que o único problema que pode acontecer é

justamente esse, quando é o paciente fica, a referência o paciente não fica referido

aos outros entendeu? O paciente fica muito colado na referência... E aí o resto da

equipe não sabe do caso. Isso não é uma coisa que acontece aqui no CAPS,

geralmente os casos são discutidos em reunião de equipe, e a equipe toda fica a par

dos casos, e vê qual o melhor jeito de se fazer um vínculo com o paciente. (Fonte:

Entrevista).

Esse ponto merece destaque, e precisa ser re-considerado pela instituição, já que com a

saída dos trabalhadores, o usuário é o primeiro a ser afetado, pois ele fica sem sua referência.

Se a articulação com o Poder Público, com o SAMU, com a Rede de Saúde Mental,

com as questões trabalhistas e por conseguinte, os problemas originados pela grande

rotatividade dos profissionais, são problemas – exógenos - que afetam negativamente o modo

de produção do cuidado no CAPS e que precisam ser vistos pelos sujeitos (coletivos e

individuais). Entretanto, existem fatores endógenos no CAPS, que precisam ser revistos por

esses mesmos sujeitos, pois como aqueles, também causam relações de tristeza a partir dos

encontros entre os corpos dos usuários com os trabalhadores. Se os fatores exógenos, são

apontados com mais facilidade pelos trabalhadores, os endógenos (que se relacionam

diretamente com a práxis do trabalhador) já não o são, pois eles refletem as práticas que esses

mesmos profissionais vão agenciando em seu cotidiano; se tornando por isso, muitas vezes,

invisíveis e até mesmo imperceptíveis. Irei a partir de agora, evidenciar justamente esses

fatores.

Logo que comecei a fazer a pesquisa, uma das coisas que mais me impressionaram foi

ver que alguns usuários pareciam que estavam simplesmente compondo o CAPS, como

qualquer outro objeto que lá se encontrava: um banco, uma cadeira, e tantos outros objetos

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que configuram outros cenários só por configurar um cenário. A primeira impressão que tive

é que os pacientes, naquelas situações estavam sem nenhuma, ou por vezes, possuíam uma

mínima funcionalidade dentro do serviço, era como se eles já fizessem - de uma forma tão

naturalmente - parte do cenário social que chegavam a passar despercebidos por outros

usuários e pelos trabalhadores também.

Isso se tornava muito evidente, quando vi que alguns pacientes simplesmente

passavam o dia todo dentro CAPS sem fazerem nada; uns simplesmente sentados sem realizar

nenhuma atividade, e outros deitados e até dormindo, sem se comunicarem com nenhum

outro usuário e nenhum trabalhador, esperando em alguns casos tão somente a hora das

refeições ou a hora de irem embora. Inevitavelmente tão logo me lembrei de outra paisagem

social parecida com essa - um Hospital Psiquiátrico no qual fiz minha especialização em

Saúde Mental.

Essa lembrança imediata me tomou de pronto, e logo me questionei: o quê tem nesse

CAPS, que me fez retornar tão imediatamente à algumas situações com que me deparei no

meu trabalho de campo no Hospital Psiquiátrico de outrora?

Na tentativa de fazer frente à esse meu questionamento, logo percebi que se tratava de

um ‘ruído’, de uma tensão que existia nesse serviço e que eu precisava mergulhar melhor na

questão, principalmente por impactarem os processos sociais da produção do cuidado.

Qual a vantagem de atuar sobre esses ruídos e processos? Na medida em que, nas

práticas de saúde, individual e coletiva, o que buscamos é a produção da

responsabilização clínica e sanitária e da intervenção resolutiva, tendo em vista as

pessoas, como caminho para defender a vida, reconhecemos que, sem acolher e

vincular, não há produção desta responsabilização e nem otimização tecnológica das

resolutividades que efetivamente impactam os processos sociais de produção da

saúde e da doença. (FRANCO et al., 2009, p.346).

Saber que ruído era esse, que barulho era esse que soava para mim e me incomodava,

era tentar compreender ao mesmo tempo, de que forma o cotidiano do usuário do Hospital

Psiquiátrico se tornou diferente do cotidiano do usuário do CAPS. Isso se tornou muito

importante, porque se em nada mudou, onde foi parar a Reforma Psiquiátrica e o atendimento

psicossocial nesses estabelecimentos? Percebi então, que eu não poderia me abster dessa

questão de modo algum, quando estivesse fazendo meu trabalho de campo. E foi assim, com

essas considerações que comecei a pesquisa, propriamente dita.

A partir de então, o Hospital Psiquiátrico, se tornou por tabela uma referência para

meu entendimento da produção do cuidado no CAPS, já que as redes extra-hospitalares

preconizam justamente um distanciamento com as práticas de cunho manicomial. Me

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questionei então: em que medida há uma diferenciação no perfil assistencial no CAPS em

relação ao Hospital Psiquiátrico?

Para resolver essa questão, busquei novamente os estudos de Goffman, sobre as

características desse tipo de instituição social e encontrei algumas convergências nas práticas

dos hospitais que se repetem no CAPS estudado. Essas convergências, entretanto, não

permitem por isso, que enquadremos o CAPS como uma Instituição Total, esse não é o

propósito; mas apenas sublinhar elementos semelhantes em ambas instituições. São elas:

Apesar de não ser nos mínimos detalhes, a instituição regulamenta e controla as

atividades dos usuários, sem levar em conta suas questões particulares e seus desejos.

(caso usuária Z)

Existem dois universos sociais antagônicos: o dos profissionais que elaboram o

Projeto terapêutico Individual, e o dos usuários que o seguem sem nenhuma

participação nesse processo.

Há certa desfiguração pessoal do internado, quando ele se torna invisível na Instituição

sendo apenas mais um a compor o cenário da instituição. (caso da Usuária Y e Usuário

X).

Pude constatar essas convergências no cotidiano da Instituição, por exemplo, quando

uma usuária veio até a mim e me disse que estava triste porque a tiraram do trabalho que

realizava no CAPS, e que ela gostava muito. O diálogo com a usuária Z foi o seguinte:

Usuária Y: Eu só venho na terça-feira, venho e volto sozinha, mas às vezes fico

perdida, me perco.

Eu: E quem te guia?

Usuária Y: Deus!

Eu: E por que você vem só na terça?

Usuária Y: Porque me tiraram da louça. Eu adoro lavar louça. Mas eles me tiraram e

agora eu só venho uma vez aqui.

Eu: E quem está lá agora?

Usuária Y: Outras pessoas, mas outras foram mandadas embora também. E é por

isso, que eu só venho na terça-feira.

Eu: E por que tiraram você de lavar louça?

Usuária Y: Porque eu já tenho dinheiro e não posso ter o negócio de lavar a louça.

Essa fala trouxe para a questão, que nesse caso não houve na instituição nenhum tipo

de valorização em relação ao sentimento da paciente, nenhuma consulta à ela em relação a sua

vontade ou não de ficar no trabalho, ou seja, ela não teve voz, não foi escutada pela equipe,

que a retirou da atividade sem que esse processo fosse feito.

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Pode-se dizer com esse exemplo, que o CAPS não representou de fato ser um espaço

acolhedor. Isso porque, segundo Silva Junior e Mascarenhas, os conceitos de acolhimento,

vínculo-responsabilização e qualidade da atenção à saúde, estão interligados, diretamente á

capacidade da instituição em dar ouvido aos desejos dos pacientes.

Acolhimento incluiria as noções de acesso, referência, capacidade de escuta e

percepção das demandas e seus contextos biopsicossociais, a discriminação de riscos

e a coordenação de um trabalho de equipes multiprofissionais, numa perspectiva

interdisciplinar, e um dispositivo de gestão para ordenamento dos serviços

oferecidos. (SILVA JUNIOR, et al., 2008, p.02).

Pude perceber também nas falas que o acolhimento é concebido como simplesmente

um local que está ali para receber os usuários, e não como um local potencialmente

importante para a efetivação de um processo de cuidado que valorize a capacidade de escuta e

a percepção das demandas específicas de cada paciente.

E02 [...]é um lugar onde eles é passam, alguns né, a maior parte do tempo, [...] no

caso a maioria são moradores de rua, então o CAPS meio que acolhe esse pessoal

também. [...] no caso a maioria são moradores de rua, então o CAPS meio que

acolhe esse pessoal também.

E10: Eu posso dizer desse CAPS aqui, pela lógica de trabalho que a gente tem aqui,

uma coisa que não dá para perder de vista, aqui nesse CAPS, é o acolhimento. Sabe,

a forma como a gente acolhe os pacientes, a forma como a gente acolhe a família, a

forma como a gente acolhe a comunidade, sabe, como a gente acolhe a produção

científica, os estagiários, sabe, isso não pode se perder aqui no CAPS. Esse clima

quase que familiar, com todas as aspas nessa palavra.E10

Entrevistador: Entendi.

E10: Mas esse clima quase que familiar que a gente constrói aqui e que possibilita

tanta coisa, tanta troca, possibilita tanta coisa com os pacientes. (Fonte: Entrevista).

Uma questão deve ser sublinhada: o CAPS não é um serviço direcionado ao

acolhimento à moradores de rua (conforme apontado na entrevista - E02), este não é o seu

objetivo. Ele é um equipamento direcionado a pacientes com transtornos mentais severos e

persistentes e sua função é de prestar atendimento clínico em regime de atenção diária,

promovendo a inserção social das pessoas com transtornos mentais através de ações

intersetoriais, regulando assim a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental na

sua área de atuação e dar suporte à atenção à saúde mental na rede básica. (BRASIL, 2007)

De fato, incluir a dimensão do acolhimento nos serviços, é essencial para que se tenha

a integralidade como uma bandeira política capaz de materializar, no cotidiano da instituição,

práticas que venham a potencializar a vida dos usuários. Será nesse sentido, que o cuidado

deve ser uma ação integral, voltado para a compreensão do sujeito a partir de relações nas

quais o sujeito é compreendido em sua totalidade.

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Outro momento que me chamou muito a atenção e que vai ao encontro dessas

convergências, foi a constatação da existência de pacientes que ficam marginalizados no

serviço, devido a falta de uma interação social, seja com outros usuários e principalmente com

os profissionais do CAPS. Situação essa, que configuram assim em ‘linhas de morte’, já que

não promovem o acolhimento, o vínculo, a autonomia e a satisfação do usuário.

En el caso específico de la salud, las conexiones entre los diversos processos de

trabajo que se realizan entre trabajadores-trabajadores y trabajadores-usuarios

pueden formar un campo energético, invisible, que funciona em flujos circulantes

que envuelven al cuidado em acto y configuran "líneas de vida" o "líneas de

muerte", según si el encuentro trabajador-usuario produce acogimiento, vínculo,

autonomía, satisfacción, o un modo de actuar que se manifieste de forma acotada,

burocrática, produciendo heteronomía, insatisfacción. Dependiendo de la situación

existente habrá un aumento o reducciónde la potencia de actuar. (FRANCO;

MERHY, 2011, p.12).

A título de exemplificação, irei apontar aqui o comportamento de um usuário que

evidencia de que modo essa ‘linha de morte’ é produzida no CAPS, reduzindo assim a

potência desse usuário. Não se trata aqui de um episódio ou situação que ocorreu de maneira

esporádica, mas sim um episódio constante no CAPS. Este usuário (caso usuário X), costuma

passar toda a tarde simplesmente deitado no CAPS, imóvel, estático, ou seja, sem fazer nada.

Ele ficou sem interagir, não porque estava sem ninguém por perto, pois em vários momentos,

presenciei trabalhadores ao seu lado, na sua frente, sem que nenhum contato à ele fosse

dirigido, nem para lhe perguntar se ele estava bem, se precisava de algo ou até mesmo se

queria participar de alguma atividade.

Em certa ocasião, perguntei a um trabalhador porque isso acontecia, e ele me

respondeu:

Trabalhador: Ele é assim mesmo. Cada paciente tem seu momento, e outra ele fica

assim por causa da sua loucura mesmo. (Fonte: Diário de campo).

Esse é um posicionamento complicado por que permite um viés, na medida em que,

reifica a própria condição do paciente psiquiátrico, de tal modo que tudo e qualquer

comportamento possa a ser justificado devido a sua condição de ‘louco’. Ademais, acaba por

encobrir determinadas atitudes dos profissionais, que se utilizam desse tipo de argumento para

justificarem determinadas práticas.

Essa situação em especial, me chamou muito minha atenção, porque se de um lado eu

via esse paciente deitado o dia todo, por outro, sempre ouvia discursos que apontavam a

grande importância das oficinas para os usuários. Por que esse paciente, então não foi

convidado para participar da oficina que estava acontecendo naquelas tardes em que ele ficava

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simplesmente deitado? Ao colocar essa questão para alguns trabalhadores, a resposta quase

que imediata era a de que o convite para as oficinas depende muito do Projeto Terapêutico

Individual (PTI) de cada paciente e que, portanto, uns teriam indicação e outros não.

Entrevistador: E como que é feito o convite para quem vai participar?

E06: É aberto. Na hora da oficina eu divulgo, eu falo para todo mundo que vai

começar, falo eu costumava até a falar meninas, e aí eu me peguei nisso e não, e

meninos.

Entrevistador: Que está ali, homens para convidar também. E aí a gente acaba

caindo nisso, chamando os pacientes que já ...

Entrevistador: Frequentam...

E06: Frequentam toda a semana, aí semana passada um paciente veio “você nunca

me chamou para a oficina de beleza”. Eu falei aquilo é o máximo, é verdade, eu

nunca te chamei.

Entrevistador: É, às vezes não participa por causa disso né?

E06: É.

Entrevistador: E você acha que tipo de atitude poderia ser tomada para aumentar o

número de pacientes, já que é tão importante assim?

E06: Não sei, não sei se deveria aumentar, sabe, por aumentar só. Se for só um

interesse nosso, eu acho que não. Tem que ser um interesse deles mesmo, da fazer.

Por exemplo, na oficina de jardinagem tem paciente que falta, pacientes que só

dorme mas que acorda para aquilo, sabe. (Fonte: Entrevista).

Novamente surge outra contradição: se no discurso há uma forte evidência de

valorização das oficinas, na prática já não a temos. Vejamos as falas:

E01: As oficinas. As oficinas terapêuticas são indispensáveis. A oficina de música

porque é arte integradora [...] ela tem efeitos sobre pacientes que a gente não atinge

de outra maneira, a gente não atinge pela fala, a gente não atinge é, pelo trabalho

protegido, por uma coisa mais corporal, porque o toque para a psicose é uma coisa

muito delicada pro paciente, não é todo paciente que aceita ser tocado e a música

tem essa coisa de, é mais diluída na cultura [...].

E05: Eu acho as oficinas muito importante para eles, né, muita coisa, né.

E09: Olha, é, a gente tem sucesso, eu acho que em algumas oficinas [...].

E12: [...] é muito importante as oficinas, é muito importante é a

multidisciplinaridade [...].

E09: [...] assim, por exemplo, a oficina de beleza, que inclusive eu acho que super

tem a ver com essa coisa, essa proposta que você está trazendo, é, ela não só é

sucesso, como ela foi uma das primeiras a ser, assim instituídas, se perpetua até hoje

e para além disso, foi aberto mais um dia para a oficina de beleza. Então ela agora

funciona não só na quarta, não só quarta como na terça-feira também. Um outro,

com uma proposta um pouquinho diferente, do cuidado um pouco mais com as

mulheres, eu acho que a oficina de beleza é um, é um, eu acho que é um instrumento

potente também de, que eu acho que super deu certo. (Fonte: Entrevista).

As narrativas acima ressaltam as oficinas como importantes para a construção do

cuidado dentro do CAPS, como pode-se verificar a partir das adjetivações: indispensável,

importante, integradora e como um instrumento potente na instituição. Não procuro

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questionar a eficácia das oficinas enquanto projetos terapêuticos, e nem relativizar as

adjetivações apontadas pelos trabalhos, mas evidenciar uma lacuna entre o que é dito e o

acontece de fato na prática.

Primeira constatação: o número de participantes por oficina é extremamente baixo. De

que modo verifiquei esse dado? Fazendo uma pesquisa no livro das oficinas. Nesse livro, que

fica na sala dos técnicos, os trabalhadores devem – obrigatoriamente – anotar: a data em que a

mesma ocorreu, os nomes dos usuários participantes, e responsáveis pela oficina e também os

acontecimentos que transcorreram nelas.

Como no CAPS existem muitas oficinas, escolhi a oficina de beleza para fazer essa

investigação. Essa escolha se deve ao fato de que nas entrevistas, ela ter sido apontada como

uma das oficinas mais importantes do CAPS, principalmente por resgatar o cuidado com a

imagem, com a aparência e com o corpo.

E07: Eu acho que cuidar do corpo é essencial para mim assim, sabe, eu acho que é

isso, cuidar é eu acho que é isso, a gente precisa é estar ali, é, sei lá, para mim essa

coisa do cuidado tem tudo a ver com o cuidar do seu corpo, cuidar da sua aparência,

né, da, das minhas experiências é isso.

E02: Assim a melhora é visível né, um bem-estar que eles sentem, essa coisa de se

tornar uma pessoa, entendeu?

Eu: Aham.

E02: Para a sociedade, entendeu? Essa coisa é até bom para eles, essa parte, essa

visão que eles tem, depois que ele passa a ter essa rotina com o cuidado, eles vão

percebendo que esse cuidado é fundamental para que a pessoa possa, entendeu,

circular pela cidade sem ser discriminado. (Fonte: Entrevista).

Pesquisei, então, no Livro de Oficinas os registros referentes às oficinas de beleza.

Isso deu bastante trabalho, porque os registros de todas as oficinas estão no mesmo livro,

todos juntos. Esses registros são anotados um após o outro, assim, o trabalhador de uma

determinada oficina faz o seu registro e logo depois, vem outro trabalhador responsável por

outra oficina e faz também as suas anotações até que se esgotem as folhas do livro passando

para um novo.

Comecei pelo primeiro registro que se tem nesses livros sobre a primeira Oficina de

Beleza, que é datado de 08/04/2009 até a centésima oficina datada de 25/05/2011, número que

me permitiu ter uma idéia do que acontecia nas oficinas.

Destas 100 oficinas consultadas, foram registradas o cancelamento de 10 oficinas, por

motivos diversos: por causa de seminário, do carnaval, da copa do mundo, de preparativos da

festa junina, para reformulação do projeto da oficina, de reunião da coordenação, à um

compromisso particular da técnica responsável pela oficina, falta de água no CAPS e também

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porque a técnica disse que os pacientes estavam muito agitados, não tendo nesse dia ninguém

para auxiliá-la.

A média de usuários participantes das oficinas, que estão registrados é de 8,86

usuários por oficina, um número baixo de participantes, principalmente se levarmos em conta

que o número médio de usuários que frequentam o CAPS por dia é de 80 pacientes.

A menor participação registrada foi de 02 usuários (data de 01/06/2010), justificada

pela técnica responsável da seguinte maneira: “Avalio que a chuva tenha contribuído para o

esvaziamento da oficina, pois poucos pacientes circulavam ao lado de fora da casa”. A maior

participação registrada foi a de 21 usuários (a técnica esqueceu de anotar a data dessa oficina

no Livro, mas pela ordem dos registros, a mesma aconteceu entre os dias 04/05/2011 e

19/05/2011. Esse número de participantes, não ficou despercebido para a técnica, que

registrou no livro “Todos tiveram grande participação. Tivemos hoje um número grande de

usuários, foi muito bom, fizemos um bom trabalho”.(Fonte: Livro das Oficinas).

Como dito anteriormente, os responsáveis pela oficina devem anotar os

acontecimentos referentes às oficinas; o que me levou a pressupor que os nomes dos

participantes sejam imprescindíveis nesses registros já que esses irão nortear as referências e

consequentemente o projeto terapêutico individual. Entretanto, em duas oficinas (datada de

25/01/2011 e 01/02/2011), a técnica anotou somente os nomes de alguns pacientes que

participaram e depois, acrescentou “entre outros”. Como as referências irão conseguir, por

meio de registros como esses, acompanhar a participação dos usuários que frequentam as

oficinas? Por conseguinte, o livro de registros dentro desse contexto, perde o seu potencial.

Ademais a nominação no livro de “entre outros”, pode ser entendida de forma

negativa, na medida em que o usuário não poderá ser identificado, ou seja, será só “mais um

na multidão”. Expressões como essas, que constam no livro de registros demonstram que se

faz necessário que os trabalhadores reconsiderem o objetivo proposto pelo livro, caso

contrário, essas anotações perderiam o sentido, e seriam assim, um trabalho desnecessário

para a equipe.

Outro registro se tornou também interessante, no que tange às considerações acerca

das oficinas de beleza na data de 27/07/2010 não houve oficina no CAPS por conta de uma

reformulação da oficina. Na semana subsequente à essa reformulação do projeto, foi

registrado no livro o seguinte:

Hoje começamos a fazer a oficina em um formato diferente, auxiliamos as pacientes

a passarem a maquiagem nelas mesmas e a lixarem suas unhas. Notamos uma certa

resistência a esse novo formato, como se elas preferissem quando fazemos essas

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coisas nelas, por elas. Porém mantive minha posição dizendo que se o objetivo da

oficina é as ajudarem a ter cuidado com seus próprios corpos, elas deveriam

aprender a fazer essas atividades, pois não estarei com elas o tempo todo.[...]

(Fonte:Livro de Oficinas).

Veja que essa reformulação se deu no mês de Julho de 2010 e foi a única vez que

encontrei considerações em torno de se pensar e avaliar o propósito das oficinas; depois dessa

data, não foi registrado nada a esse respeito no Livro das Oficinas. Não vi também, nenhum

estudo ou pesquisa por parte da Instituição acerca de uma avaliação mais efetiva das oficinas,

ou seja, nada encontrei que pudesse confirmar que esta ou aquela oficina conseguiu atingir

este ou aquele objetivo; ou mesmo o contrário, que isto ou aquilo não teve repercussão

positiva no cotidiano do usuário e que por isso deveria acabar. Simplesmente as oficinas

acontecem.

Faz-se necessário uma reflexão por parte da equipe, em torno dessas questões,

principalmente quando entendemos as oficinas, enquanto projetos terapêuticos fundamentais

nos arranjos constitutivos do CAPS, são potencialmente produtoras de subjetividades, por

isso, podem afetar positivamente os sujeitos, quando para além de uma atividade se apropria,

de esferas como cuidados pessoais, valorização da higiene e de atividades físicas.

E01: A gente pode se apropriar desse corpo também, né, no cuidado. Eu acho que,

por exemplo, quando a gente topa fazer uma oficina de esporte na praia, a gente está

falando de corpo, a gente está falando tanto desse encontro no social quanto esse

encontro é social, mas a gente está trabalhando coisas que não é a terapêutica da fala

apenas. A gente está fazendo um, está lembrando que ali existe um sujeito que ele

mais que a doença falada dele, né, que a gente entende que é uma terapêutica forte e

potente mais que o corpo dele também precisa se exercer né.

E02: Eu acho muito tipo assim que, mexe muito com a identidade do paciente né,

assim essa coisa visível, dele se tornar como se fosse um cidadão, se sentir um

cidadão, é eu acho que o modo como se veste, a higiene, a própria higiene, diz um

pouco sobre isso, sobre o que ele é e tal [...] O corpo com o cuidado, eu acho que,

possa se dizer que esse cuidado passa por esse negócio da higiene mesmo da

orientação que eles tem sobre o cuidado muitas vezes se perde. Ou então esse

cuidado com o corpo, ele realmente ele some.

E06: Porque é isso né, a doença mental. Mas não tem como não afetar e aí na oficina

de beleza a gente vê muito isso né, quanto que uma coisa prejudica a outra da

doença mental, da psique de seu corpo, de largar o seu corpo, deixar de qualquer

jeito e aí eu tento resgatar lá. (Fonte: Entrevista).

A melhora da aparência antes de ser uma simples questão estética, ela imprime esse

social corporificado que todo indivíduo traz consigo, e nesse sentido, promove nesse mesmo

social uma nova marca, uma nova impressão, e assim, transforma as relações que são

marcadas pelo estigma social.

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Perceber esse corpo que circula dentro do CAPS, que circula na sociedade, sob a

perspectiva de um cuidado otimizador da potência individual, deve ser condição essencial

para os trabalhadores, gestores, familiares e sociedade que com ele lidam em suas rotinas

diárias. É preciso compreender esse corpo, mais que um simples corpo, mas como um sujeito

desejante.

E04: Quando é um cuidado que anda junto com a produção desse corpo. Não o

cuidado que subestima, não o cuidado que segrega, não o cuidado que disciplina

esse corpo, mas o cuidado que anda junto com a produção desse corpo.

E10: Mas eu acho que a maneira como pode potencializar é considerar que aquele

corpo ali é mais que um corpo. É um sujeito. Entende? (Fonte: Entrevista).

Entender o corpo do paciente a partir de sua produção no social permite ao trabalhador

entender as peculiaridades desse usuário, não o subestimando, segregando ou disciplinando

esse corpo, mas dando-lhes condição de desenvolver sua autonomia enquanto sujeito

desejante. Entendemos com esse estudo que a produção do cuidado a partir do olhar do

trabalhador, afeta essa mesma produção quando vista sob a ótica da corporalidade, pois

inevitavelmente o cuidado passa por esse corpo, refletindo nos encontros desses corpos dentro

e fora do CAPS.

Quando dizemos que o CAPS é um espaço produtor de subjetividades, dizemos que

produz não só as subjetividades dos usuários, mas também dos trabalhadores, familiares e

também da sociedade em geral.

A importância dos olhares novos, de uma perspectiva mais fluida dos funcionários

recém-chegados, e que diferentemente dos profissionais que estão há mais tempo no serviço,

pode ser potencialmente favorável, às modificações e ações no CAPS que venham a otimizar

os serviços, na valorização de um cenário mais apropriado para cuidar desse corpo. Corpo

esse que é mais do que um meio para se chegar ao conhecimento das práticas [do CAPS], é a

própria vivencia do usuário nesse espaço social (BOURDIEU, 1987); mesmo porque é esse

mesmo corpo que permite nos revelar o social que carregamos nele (CSORDAS, 1994).

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos no capítulo sobre Reforma,

Sabe-se que por muito tempo o transtorno psiquiátrico esteve diretamente associado

ao isolamento, ao afastamento e à exclusão social. Entre os muros do internamento,

nenhuma lógica operou em favor do indivíduo contribuindo para a sua reinserção na

sociedade. (LOPES, 2009, p.12).

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Como princípio fundamental preconizou-se a prestação de uma assistência fornecida

pelo Estado que procurasse garantir um contato do indivíduo doente com a sociedade.

E02: O CAPS faz parte de um processo de desinstitucionalização de saída dos

pacientes do Hospital, né, que tinham muitos pacientes, que ficavam isolados

mesmo, fora do convívio social. (Fonte: Entrevista).

O Centro de Atenção Psicossocial, nesse sentido, é um dispositivo importantíssimo na

materialização desse princípio, pois a partir do deslocamento do usuário de sua casa até a

Instituição, ele tem esse contato – desvalorizado e completamente ignorado nas épocas de

internamento prolongado, que o permite a reconstruir suas redes de relações sociais e seu

‘estar-no-mundo’.

Ou seja, “não se trata de discutir apenas a questão da psiquiatria, das técnicas de

atendimento ao paciente psicótico fora do registro de internação. É necessário supor que o

paciente sairá desse território excludente para ocupar o espaço de liberdade da polis.”

(PEDRO apud LOPES, 2009, p.12). Pela sua dinâmica, o CAPS fundamentalmente trabalha

nesse sentido, pois sua lógica estrutural de funcionamento, caminha em função de um cuidado

extra-muros necessariamente, na medida em que o deslocamento dos usuários ao CAPS

cotidianamente se torna imprescindível.

E12: O CAPS é uma forma de, uma outra forma de tratamento de, trazer os

pacientes na comunidade né, de trazê-los para participar do social. (Fonte:

Entrevista).

O CAPS então, se torna um elo articulador entre o usuário e a sociedade, ao promover

os encontros entre os corpos, na sociedade, articulação essa antes impedida pelo internamento

dos usuários nas Instituições Totais, que ficam restritos apenas ao contato e interações sociais

impostas por essas instituições. (Goffman, 1994).

E04: Eu acho que esses corpos estão menos aprisionados, né, tem um campo maior

de atuação e um campo maior de atravessamento também. Eles podem estar em

contato com a música, com a arte, com o cinema, com o familiar, vão ter que pegar

o ônibus para ir para casa, para ir na escola,não é só aqui no CAPS, mas que esse

social se abre, né. (Fonte: Entrevista).

Na fala temos uma correlação entre a circulação dos pacientes na rua, no meio social

com a produção de afetamentos e de atravessamentos. Dentro do CAPS, esse afetamento não

é diferente.

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E04: Porque assim, o corpo está sempre atravessado nas práticas do CAPS, né, está

sempre atravessado numa oficina de beleza, numa oficina de teatro, né, numa oficina

de escrita [...] (Fonte: Entrevista).

Logo, a Reforma Psiquiátrica nesse sentido proporcionou aos pacientes um campo

maior de atuação, de afetamento. Antes, estando isolado nos grandes manicômios, o paciente

se via tolhido desses afetamentos que vão construindo as identidades dos sujeitos ao longo de

suas vidas. Apesar do estigma existente em relação aos ‘loucos’, a presença deles no social,

está forçando um pouco a sociedade a lidar com isso. Porque antes da Reforma, nos tempos

manicomiais, não se lidava com isso, já que de um lado tínhamos os Hospitais e de outro a

sociedade, como se fossem coisas que não se cruzassem.

Mediante a Reforma e com ela, a implantação e implementação dos CAPS – novas

subjetividades vão se articulando na vida dos pacientes psiquiátricos, a partir desse corpo que

não está mais aprisionado, mas que está percorrendo, interagindo e afetando outros corpos em

novos cenários sociais.

E04: Por exemplo, eles passam a ser reconhecidos, tem a padaria, aí já tem o dono

da padaria que já fornece o pãozinho para aquele, para o outro não fornece, né, então

eles mobilizam o social, então eles também transformam a maneira como as pessoas

vivenciam a loucura. [...] Agora é que ele está na sociedade e a sociedade está sendo

atravessada por ele, também está atravessando ele. Então as pessoas tem que lidar.

(Fonte: Entrevista).

Ao mesmo tempo é um corpo que interage, que atravessa, que provoca uma marca

nesse social, porque quando um psicótico entra num ônibus, por exemplo, ele provoca uma

marca e uma transformação naquele social, da mesma forma que esse social o marca e o

transforma.

Seu corpo, expressão evidente de sua existência e de sua doença - sua forma de

estar-no-mundo, não está mais preso entre os muros do internamento, está diante de

todos, está exposto, está aí, nas ruas, entre e no meio de nós. Não se trata mais de

um doente mental, mas de um doente mental entre nós [...] Ao deslocarem dos

Hospitais Psiquiátricos para os CAPs, esses corpos não passam despercebidos nesse

novo trajeto que estão realizando, são imbuídos e enrustidos de uma série de

símbolos e significados que exaltam positivamente a loucura. Ela não será

esquecida, será ainda mais lembrada; será vista, percebida, observada e criticada por

todos nós que a encontraremos em qualquer dia e em qualquer esquina [...] (LOPES,

2009, p.13).

Na medida em que o usuário tem que frequentar o CAPS, ele inevitavelmente vai

preenchendo e colorindo os espaços sociais que antes eram vazios, por conta desse

deslocamento que ele tem que fazer até à Instituição, e será por isso mesmo, que os seus

corpos não passarão despercebidos. Sendo assim, podemos entender que essa possibilidade de

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convívio social, autorizada indiretamente pelo CAPS, promove a autonomia e a cidadania

desse usuário, de modo que de ante-mão já podemos reconhecer e valorizar a importância de

tal instituição no cenário social. Se a Reforma já atua ‘por fora’ da instituição, será ‘dentro’

do CAPS que ela de fato irá se traduzir.

Como princípio fundamental preconizou-se a prestação de uma assistência fornecida

pelo Estado que procurasse garantir um contato do indivíduo doente com a sociedade.

Entretanto, o que está subjacente, é a proposta de se reformular os espaços para a ‘diferença’

da qual a chamada doença mental era a expressão. Não se trata de discutir apenas a questão da

psiquiatria, das técnicas de atendimento ao paciente psicótico fora do registro de internação. È

necessário supor que o paciente sairá desse território excludente para ocupar o espaço de

liberdade da polis. Será que de fato, no cotidiano do CAPS, os usuários saíram desse território

excludente? A título de proposição irei ilustrar abaixo o caso da Usuária Y.

8.1 O caso da Usuária Y

A usuária Y, segundo consta em seu prontuário deu entrada no serviço no dia 31 de

Setembro de 2001, ou seja, já fazem mais de 10 anos que a paciente frequenta a instituição,

tempo suficientemente grande para que alguma intervenção fosse realizada em seu caso. Ela

tem 69 anos, e seu diagnóstico aponta para um caso de ‘Esquizofrenia residual’. No seu

prontuário, na parte de ‘história clínica’ consta que a mesma foi indicada a fazer uma cirurgia

de perineoplastia, mas que até agora não foi realizada. Se formos olhar simplesmente para

esses dados, eles não irão nos revelar nada que seja tão diferente em relação a tantos outros

casos e a tantos usuários que constituem o CAPS.

Mas então o que o caso da usuária traz para essa pesquisa?

Essa mesma usuária, Y, chegava ao CAPS com a roupa seca, mas depois de certo

tempo dentro da instituição ficava com a roupa molhada de urina durante todo o tempo que

ela permanecia na instituição até na hora em que a mesma ia embora.

Como pode isso acontecer no CAPS? Será que ninguém a via mais? Como foi que ela

se tornou tão invisível para toda a equipe mesmo depois de tanto tempo na instituição,

conseguia passar por ela, sem nada fazer para converter esse quadro.

Se dentro do CAPS, a usuária Y era invisível, já na rua, ela não se tornava tão invisível

assim, pois pude por acaso, depois do meu trabalho de campo, vê-la indo embora para pegar o

ônibus para sua casa, e percebi o quanto a urina em sua roupa chamava a atenção causando a

admiração pelas pessoas ao redor, seja pelo odor ou pela aparência de molhado.

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Certa vez, perguntei a uma trabalhadora sobre a usuária que me disse:

Trabalhadora: “Coitada! Ela está com o forro do vestido levantado. Mas como eu

vou fazer? Ela está toda mixada!

Eu: Ela tem incontinência urinária?

Trabalhadora: É.

Eu: E não tem nada para fazer para resolver esse problema? Um remédio, ou sei lá

alguma coisa?

Trabalhadora? Não, porque aí depende de cirurgia e doente mental é complicado.

Precisa de hospital, de marcar, da família, de uma série de coisas. (Fonte: Diário de

Campo).

Dias depois, em outro momento, ouvi outro funcionário mencionar alguma coisa em

relação a usuária Y. Esse fato não era recorrente, sendo esta a segunda e última vez que ouvi

algum funcionário se referir ao caso da usuária Y. Na ocasião, depois de sair do banheiro, ela

estava com a calcinha na altura do joelho e com o vestido molhado, mais uma vez, de urina,

por conta de sua incontinência urinária.

OP – Gente, a K, está com a calcinha no joelho. Eu não vou botar a mão não! Tenho

que chamar alguém para arrumar ela. (Fonte: Diário de Campo).

Se em tantos outros momentos, mesmo molhada de urina a usuária Y, não se tornou

perceptível aos trabalhadores e para a equipe em geral, porque nesse dia ela se fez ver? O que

tinha em seu corpo nesse dia, que se tornou um instrumento capaz de afetar a trabalhadora do

CAPS, fazendo-a com que essa a percebesse?

Para responder essa questão, me apropriei da concepção de impuro e desordem,

preconizada por Mary Douglas. Pude perceber que a calcinha no joelho da usuária Y,

significou na cena mais que uma peça feminina, foi o símbolo de impureza, da desordem, um

instrumento capaz de romper com a estrutura adormecida até então.

Tal como a conhecemos, a impureza é essencialmente desordem. A impureza

absoluta só existe aos olhos do observador. Se nos esquivamos dela, não é por causa

de um medo cobarde nem de um receio ou de um terror sagrado que sintamos. As

idéias que temos da doença também não dão conta da variedade das nossas reacções

de purificação ou de evitamento da impureza. A impureza é uma ofensa contra a

ordem. Eliminando-a, não fazemos um gesto negativo; pelo contrário, esforçamo-

nos positivamente por organizar o nosso meio. (DOUGLAS, 1976, p.67)

Enquanto a usuária Y transitava despercebida, de um lado para outro na instituição

sem se fazer notar, não poderia tirar a ordem determinada do lugar. Ela não mexia no

imaginário dos trabalhadores, que em face a ela tinham que tomar uma atitude, realizar uma

ação, ou seja, tinham que colocar aquela situação em ordem. Entendida como símbolo, a

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calcinha foi capaz de afetar a trabalhadora, modificando toda a ordem de invisibilidade em

que a mesma se encontrava.

A reflexão sobre a impureza implica uma relação sobre a relação entre a ordem e a

desordem, o ser e o não-ser, a forma e a ausência dela, a vida e a morte. Onde quer

que as idéias de impureza estejam fortemente estruturadas, a sua análise revela que

põem em jogo estes profundos temas. (DOUGLAS, 1976, p.06).

Tendo em vista essas considerações, me apropriei da reabilitação psicossocial como

um mecanismo que visa tão somente construir a ordem, o ser, a forma e a vida. Me perguntei:

pode-se dizer que o CAPS promove de fato uma reabilitação psicossocial? É possível separar

o problema psiquiátrico de outro problema clínico qualquer?

O caso da usuária Y, nos revela que não, que não basta desospitalizar para reabilitar.

Esse caso revela que o cuidado direcionado à ela, é permeado por relações de decomposição,

como que resquícios da era manicomial, que precisam ser considerados. O acontecimento

trouxe a visibilidade, entretanto, não provocou o cuidado, ou seja, refletiu uma hegemonia do

não-cuidado.

E04: Por exemplo, eles passam a ser reconhecidos, tem a padaria, aí já tem o dono

da padaria que já fornece o pãozinho para aquele, para o outro não fornece, né, então

eles mobilizam o social, então eles também transformam a maneira como as pessoas

vivenciam a loucura. [...] Agora é que ele está na sociedade e a sociedade está sendo

atravessada por ele, também está atravessando ele. Então as pessoas tem que lidar.

(Fonte: Entrevista).

Ao mesmo tempo é um corpo que interage, que atravessa, que provoca uma marca

nesse social, porque quando um psicótico entra num ônibus ele provoca uma marca e uma

transformação naquele social, da mesma forma que esse social o marca e o transforma, ou

seja, as intensidades se correlacionam proporcionalmente.

Nesse sentido, o modo de produção do cuidado em agenciamento no CAPS a partir

dos afetos e desejos fundamentados pelos encontros entre os corpos na instituição, produz

vida em alguns, como no caso em que se estabelece vínculos afetivos e por isto mesmo,

efetivos, ou quando se mobilizam para conseguir certo artefato (toalhas) para o conforto do

usuário; mas têm produzido morte também, uma vez que os fluxos circulantes entre as

relações produzidas no CAPS, têm sido a expressão também de não cuidado, geração de

tristezas e redução da energia vital nos usuários, e também nos trabalhadores. Este espaço é

entendido como um espaço subjetivo e social. O caso da usuária Y, é similar ao caso JR,

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apresentado por Franco (2011), para evidenciar justamente o bloqueio desse fluxo de afetos

que produzem morte pelo corpo.

São efeitos provocados por um pensamento dominante na clínica que surgiu no séc.

XVIII, que se sustenta no entendimento de que o corpo é únicamente a sua

expressão anátomo-fisiológica. Quem vê o corpo reduzido à geografia dos órgãos é

incapaz de perceber a complexidade deste mesmo corpo em produzir a si mesmo,

como vida ou morte, e ao mesmo tempo, produzir o mundo social, também como

expressão do viver ou morrer. (FRANCO; GALAVOTE, 2010, p.14).

Se o caso da usuária Y, nos mostra a expressão do que Espinosa chamou de um ‘mau

encontro’, ou seja, um caso que revela a produção de “paixões tristes” uma vez que sua

capacidade de agir no mundo foi reduzida; o caso do usuário X, já nos mostra a impotência

desse usuário em se constituir de fato como um sujeito desejante.

Ambos os casos, podem ser entendidos pela ideia de morte, pois o desejo entendido

como força propulsora na produção de seus mundos, foi anulado na sua condição de ser

potencialmente construtor, já que os dois corpos, tanto o da usuária X, quanto o do usuário Y,

foram desconectados do mundo, pelo princípio da (in)visibilidade dentro do Centro de

Atenção Psicossocial.

Foi em meio às dificuldades dos profissionais nos momentos de tensão, e das

comensalidades dos usuários, que pude concluir que o Centro de Atenção Psicossocial, que

pretende ser alternativo ao modelo hospitalocêntrico, é caracteristicamente um espaço social

que pode ser potencializador do cuidado. Diferentemente do Hospital psiquiátrico, que

enquanto uma Instituição Total não possui essa potencialidade em se fazer um equipamento

produtor de autonomia a partir do cuidado, na produção de vida e de sentidos, dos que o

frequentam.

Se alguns elementos, precisam ser modificados na instituição, primeiro porque estão

indo na contra-mão de um atendimento psicossocial de fato, outros, precisam do mesmo

modo de serem continuamente produzidos e otimizados, é o caso da proposta de ser uma

instituição com equipe multidisciplinar, por exemplo. Como potencialmente instituinte – o

trabalho vivo em ato realizado dentro do CAPS – possui a potencialidade de questionar e

redirecionar os modos de operar os modelos que estão em agenciamentos. A dimensão

processual e transformadora do trabalho vivo em ato na saúde é atribuída à característica

desse trabalho que essencialmente se define na ação. E como tal pode permitir novas

configurações e re-arranjos a partir das linhas de fuga no já instituído, ou seja, no plano

molar.

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Afirmo que o CAPS é potencialmente um espaço social potencializador do cuidado,

porque frente às adversidades sejam elas originadas por fatores exógenos ou endógenos , ele

continua produzindo alguns encontros tristes entre os corpos, na medida em que gera relações

de decomposição, quando não proporciona a construção de uma subjetividade que seja capaz

de promover de fato a autonomia dos sujeitos. Sua potencialidade será de fato experienciada,

por esses usuários que ‘estão-no-mundo’ (MERLEAU PONTY, 1999), quando os fatores que

promovem relações de composição forem maiores que os fatores que promovem relações de

decomposição.

Nesse sentido, ‘as linhas de fuga’, os processos inventivos e criativos desenvolvidos

pelos trabalhadores no momento de tensão, evidenciam justamente essa potência latente do

CAPS enquanto um dispositivo capaz de assegurar um atendimento que venha favorecer o

exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e de suas famílias.

Entender o modo de produção de cuidado do CAPS como um acontecimento

autopoiético, é o que nos permite vislumbrar uma possível modificação nesses cenários, pois

enquanto movimento, o cuidado pode produzir a vida, quando ressignifica os encontros entre

os corpos. Se o CAPS tem um lado que interdita os fluxos dos usuários, é também

potencialmente um espaço potencializar do cuidado, o lugar que motiva a circulação e

valorização desses fluxos; pois pode preencher as lacunas da morte, pela possibilidade da

produção da vida.

O meu desejo com essa pesquisa, portanto, foi o de promover uma reflexão acerca do

cuidado produzido no CAPS, que deve ser entendido primeiramente como um lugar

potencialmente potencializador, visto que nenhum modo de produção de cuidado está

acabado. “O senhor mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas

não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.

Afinam ou desafinam, verdade maior.” (GUIMARÃES ROSA, 1986: 23). Confesso, que é

por acreditar nessa verdade maior, que essa dissertação foi idealizada.

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APÊNDICE A

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Dados de Identificação

Título do Projeto: “O Modo De Produção Do Cuidado Como Corpo Autopoiético:

Cartografias Corporais em um Centro de Atenção Psicossocial-CAPS”

Pesquisador Responsável: Cristiane Moura Lopes

Instituição a que pertence o Pesquisador Responsável: Universidade Federal Fluminense -

UFF

Telefones para contato: _________________

Nome do voluntário: _________________________________________________________

Idade: ____________anos R.G.: _______________________

Responsável legal (quando for o caso): __________________________________________

R.G. Responsável legal: ________________________________

O Sr. (ª) está sendo convidado a participar do projeto de pesquisa O Modo De

Produção Do Cuidado Como Corpo Autopoiético: Cartografias Corporais em um

Centro de Atenção Psicossocial - CAPS”; de responsabilidade da pesquisadora Cristiane

Moura Lopes.

Objetivamos fazer um estudo avaliativo sobre o modo de produção de cuidado (corpo

autopoiético) que está em agenciamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPs),

colocando em ênfase a questão da corporalidade através das relações de afecção (encontro)

dentro da Instituição. Pretendemos compreender as relações que se formam entre os

profissionais e os pacientes portadores de sofrimento mental e a partir destas, buscamos

entender o cuidado que se desenvolve na Instituição.

Para alcançarmos os objetivos propostos nessa pesquisa, escolhemos a Observação

participante – método de pesquisa que se refere à observação direta das ações, práticas,

discursos e narrativas que ocorrem, entre os trabalhadores e usuários, dentro do CAPs. Para

registrar tais observações, utilizaremos de um diário de campo (caderno para o registro escrito

dessas observações). Outra metodologia eleita é a construção dos Mapas Analíticos –

realização de entrevistas semi-estruturadas (temas relacionados ao cotidiano de trabalho)

juntamente com outros profissionais dentro do CAPs. Esse encontro será gravado para

posterior transcrição, já que seria muito difícil memorizar suas respostas. Os procedimentos

de coleta de dados supracitados, atenderão às determinações da Resolução 196 de 10 de

outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde que estabelece as diretrizes e normas

regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.

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O produto desta pesquisa, além de resultar em uma dissertação de mestrado, terá sua

publicação em periódicos científicos e apresentações em congressos e eventos no campo da

Saúde Mental. Esperamos assim que essa pesquisa, além de contribuir para o referencial

teórico desse campo científico, possa se destinar à construção de um saber que seja

compartilhado com os profissionais da área da Saúde Mental e com a sociedade, de uma

forma geral, e nesse sentido, acreditamos que esse saber possa de forma direta, beneficiar a

vida cotidiana dos profissionais, dos familiares e principalmente dos pacientes que possuem o

transtorno mental .

É importante esclarecer que os riscos de participação são mínimos, sendo os principais

as questões quanto a confidencialidade e a privacidade de todos os relatos descritos, deixando

claro que nenhum participante será identificado seja na elaboração escrita e/ou em quaisquer

publicação. Para tal, manteremos os nomes dos profissionais sob sigilo substituindo-os por

pseudônimos. Nenhum dos sujeitos convidados tem a obrigatoriedade de participação,

podendo inclusive este consentimento ser retirado a qualquer tempo, sem prejuízos à

continuidade da pesquisa. Diante das informações acima, declaro conhecer que serei

entrevistado (a), que minha participação é voluntária e é garantida a minha privacidade e

anonimato.

Eu, ___________________________________________________________________,

R.G nº ____________________ declaro ter sido informado e concordo em participar, como

voluntário, do projeto de pesquisa acima descrito.

Niterói, ____ de ______________ de 2011

______________________________________________________________________

Nome e Assinatura do Entrevistado

______________________________________________________________________

Testemunha

______________________________________________________________________

Nome e Assinatura do Responsável pela pesquisa

Cristiane Moura Lopes / Discente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – UFF

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APÊNDICE B

1) Numa abordagem preliminar, o que você entende por CAPS?

2) O que você acha que deve ser mantido no CAPS?

3) O que você acha que deve ser mudado no CAPS?

4) O que você pensa sobre o Projeto Terapêutico Individual (PTI)?

5) Como o PTI é elaborado? Quem o elabora?

6) Vocês trabalham com referência?

7) Qual o ponto positivo da referência?

8) Qual o ponto negativo da referência?

9) Existe práticas de grupo nesse CAPS?

10) Qual a função das oficinas?

11) O que vem à sua cabeça quando se fala em crise psiquiátrica?

12) Aqui tem leito psiquiátrico?

13) Em relação aos profissionais, você costuma ouvir alguma queixa?

14) Que relação você vê entre corpo e saúde?

15) Que relação você vê entre corpo e doença?

16) Qual efeito positivo da medicação no corpo do paciente?

17) Qual efeito negativo da medicação no corpo do paciente?

18) Como você o deslocamento dos corpos dos pacientes depois da Reforma Psiquiátrica?

19) Você acha que a sociedade está preparada para esse deslocamento?

20) Que relação você entre corpo e cuidado?

21) De que forma o cuidado pode potencializar o corpo?