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1 O Morro É Nosso: a vitória de um movimento em luta por justiça social e ambiental Autoria: Clarice Misoczky, Maria Ceci Misoczky Este artigo teve origem no acompanhamento das mobilizações em defesa do Morro Santa Tereza, uma área que se localiza a cerca de 10min do centro de Porto Alegre e na vizinhança do Estádio Beiro-Rio, que deve sediar jogos da Copa do Mundo de 2014. As informações aqui apresentadas foram coletadas a partir de entrevistas, observação, documentos e sites na internet. Para compreender o contexto em que se situa o caso do Morro Santa Tereza é preciso localizar a relação entre cidades e mega-eventos, o que será feito no primeiro item, tomando como base a definição de cidades empreendedoras e sua relação com as disputas e acolhimentos destes eventos. Ainda como parte do contexto, é feita uma apresentação das transformações ocorridas no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre, de modo a viabilizar as obras dos dois clubes de futebol – a construção da nova arena do Grêmio e a reforma do estádio do Internacional. Feita esta contextualização podemos então introduzir o caso do Morro, que é feito explicitando a sua proximidade com o Estádio Beira-Rio e a nova atratividade que a área adquire para a especulação imobiliária. A maior parte da área do Morro Santa Tereza pertence ao Governo do Estado, e nela estão instaladas seis sedes da extinta FEBEM, atual Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE). Parte do terreno é de Preservação Permanente e parte é de Preservação Ambiental, sendo que mais da metade do espaço ainda está bastante conservado, mantendo as características de mata e campo nativos. A área é uma das últimas a possuir resquícios da vegetação original e característica dos morros de Porto Alegre. Além disto, há mais de 50 anos, cerca de 4.000 famílias ocupam partes do Morro, vivendo em cinco comunidades. A partir desta introdução apresentamos a disputa que envolveu, por um lado, o Governo do Estado e seu projeto de permutar a área com alguma empresa que construiria as sedes de unidades descentralizadas da FASE; por outro, trabalhadores da FASE, ambientalistas e moradores das comunidades, em uma articulação que se amplia ao longo do processo e defende a preservação do Morro e a garantia do direito à habitação das comunidades, sob a consigna O Morro É Nosso. O objetivo deste artigo era, inicialmente, evidenciar as contradições que ocorrem no espaço urbano, potencializadas pelo contexto do acolhimento de um mega-evento. No entanto, os rápidos desdobramentos e a derrota imposta pelo movimento O Morro É Nosso ao Governo do Estado, nos conduziram a uma reflexão final tomando como referência o tema dos conflitos sócio-ambientais e das lutas por justiça ambiental.

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O Morro É Nosso: a vitória de um movimento em luta por justiça social e ambiental

Autoria: Clarice Misoczky, Maria Ceci Misoczky

Este artigo teve origem no acompanhamento das mobilizações em defesa do Morro Santa Tereza, uma área que se localiza a cerca de 10min do centro de Porto Alegre e na vizinhança do Estádio Beiro-Rio, que deve sediar jogos da Copa do Mundo de 2014. As informações aqui apresentadas foram coletadas a partir de entrevistas, observação, documentos e sites na internet. Para compreender o contexto em que se situa o caso do Morro Santa Tereza é preciso localizar a relação entre cidades e mega-eventos, o que será feito no primeiro item, tomando como base a definição de cidades empreendedoras e sua relação com as disputas e acolhimentos destes eventos. Ainda como parte do contexto, é feita uma apresentação das transformações ocorridas no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre, de modo a viabilizar as obras dos dois clubes de futebol – a construção da nova arena do Grêmio e a reforma do estádio do Internacional. Feita esta contextualização podemos então introduzir o caso do Morro, que é feito explicitando a sua proximidade com o Estádio Beira-Rio e a nova atratividade que a área adquire para a especulação imobiliária. A maior parte da área do Morro Santa Tereza pertence ao Governo do Estado, e nela estão instaladas seis sedes da extinta FEBEM, atual Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE). Parte do terreno é de Preservação Permanente e parte é de Preservação Ambiental, sendo que mais da metade do espaço ainda está bastante conservado, mantendo as características de mata e campo nativos. A área é uma das últimas a possuir resquícios da vegetação original e característica dos morros de Porto Alegre. Além disto, há mais de 50 anos, cerca de 4.000 famílias ocupam partes do Morro, vivendo em cinco comunidades. A partir desta introdução apresentamos a disputa que envolveu, por um lado, o Governo do Estado e seu projeto de permutar a área com alguma empresa que construiria as sedes de unidades descentralizadas da FASE; por outro, trabalhadores da FASE, ambientalistas e moradores das comunidades, em uma articulação que se amplia ao longo do processo e defende a preservação do Morro e a garantia do direito à habitação das comunidades, sob a consigna O Morro É Nosso. O objetivo deste artigo era, inicialmente, evidenciar as contradições que ocorrem no espaço urbano, potencializadas pelo contexto do acolhimento de um mega-evento. No entanto, os rápidos desdobramentos e a derrota imposta pelo movimento O Morro É Nosso ao Governo do Estado, nos conduziram a uma reflexão final tomando como referência o tema dos conflitos sócio-ambientais e das lutas por justiça ambiental.

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O Morro É Nosso: a vitória de um movimento em luta por justiça social e

ambiental Introdução

Este artigo teve origem no acompanhamento das mobilizações em defesa do Morro Santa Tereza, uma área que se localiza a cerca de 10min do centro de Porto Alegre e na vizinhança do Estádio Beiro-Rio, que deve sediar jogos da Copa do Mundo de 2014.

Para compreender o contexto em que se situa o caso do Morro Santa Tereza é preciso localizar a relação entre cidades e mega-eventos, o que será feito no primeiro item, tomando como base a definição de cidades empreendedoras e sua relação com as disputas e acolhimentos destes eventos. Ainda como parte do contexto, é feita uma apresentação das transformações ocorridas no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre, de modo a viabilizar as obras dos dois clubes de futebol – a construção da nova arena do Grêmio e a reforma do estádio do Internacional.

Feita esta contextualização podemos então introduzir o caso do Morro, que é feito explicitando a sua proximidade com o Estádio Beira-Rio e a nova atratividade que a área adquire para a especulação imobiliária. A maior parte da área do Morro Santa Tereza pertence ao Governo do Estado, e nela estão instaladas seis sedes da extinta FEBEM, atual Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE). Parte do terreno é de Preservação Permanente e parte é de Preservação Ambiental, sendo que mais da metade do espaço ainda está bastante conservado, mantendo as características de mata e campo nativos. A área é uma das últimas a possuir resquícios da vegetação original e característica dos morros de Porto Alegre. Além disto, há mais de 50 anos, cerca de 4.000 famílias ocupam partes do Morro, vivendo em cinco comunidades.

A partir desta introdução podemos, então, apresentar a disputa que envolveu, por um lado, o Governo do Estado e seu projeto de permutar a área com alguma empresa que construiria as sedes de unidades descentralizadas da FASE; por outro, trabalhadores da FASE, ambientalistas e moradores das comunidades, em uma articulação que se amplia ao longo do processo e defende a preservação do Morro e a garantia do direito à habitação das comunidades, sob a consigna O Morro É Nosso.

O objetivo deste artigo era, inicialmente, evidenciar as contradições que ocorrem no espaço urbano, potencializadas pelo contexto do acolhimento de um mega-evento. No entanto, os rápidos desdobramentos e a derrota imposta pelo movimento O Morro É Nosso ao Governo do Estado, nos conduziram a uma reflexão final tomando como referência o tema dos conflitos sócio-ambientais e das lutas por justiça ambiental.

As informações aqui apresentadas foram coletadas a partir de entrevistas, observação, documentos e sites na internet. 1 O contexto 1.1 Cidades empreendedoras e o acolhimento de mega eventos

As disputas entre cidades por sediar mega eventos se vincula ao consenso das

últimas décadas, segundo o qual são enfatizados os benefícios positivos que seriam obtidos por cidades que adotam uma postura empreendedora em relação ao desenvolvimento econômico (HARVEY, 2005). O empreendedorismo, na governança urbana se refere, por exemplo, ao apoio às novas empresas e ao estabelecimento de

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vínculos mais estreitos entre o público e o privado. Na medida em que a realização dos mega eventos é usualmente justificada pelos seus efeitos positivos para a qualificação da infra-estrutura urbana e para o desenvolvimento de vários setores econômicos, como os de turismo e construção civil, pode-se também incluir este fenômeno sob a rubrica do empreendedorismo urbano.

Sediar um mega evento é um fator de transformação do espaço urbano, como acontecia, historicamente, com relação a grandes feiras internacionais, festivais e exposições. Nas últimas décadas, a realização de eventos esportivos, como as Olimpíadas e a Copa do Mundo, tem produzido o reconhecimento e o prestígio mundial dos países e cidades sedes. Como estes eventos não se realizam em áreas delimitadas, como os anteriores, as repercussões sobre o espaço urbano são ainda mais importantes, sendo propaladas como eminentemente positivas. São bastante usuais, por exemplo, afirmações de urbanistas e políticos sobre a grande oportunidade de investimentos em infra-estrutura e desenvolvimento urbano que acompanha a decisão de acolher um mega evento esportivo.

Os investimentos em infra-estrutura costumam incluir a construção e/ou ampliação de aeroportos, do sistema hoteleiro, do transporte público e dos sistemas viários, além de impactar na distribuição e tratamento de água, coleta de lixo e desenho do espaço urbano. Estes aspectos fazem parte dos requerimentos básicos para que uma cidade possa sediar um evento deste tipo. Os investimentos são, na sua maioria, de recursos públicos justificados com a afirmação de que gerariam desenvolvimento econômico: empregos na fase preparatória e durante o evento; crescimento no setor de turismo e difusão mundial da imagem da cidade.

Não há consenso quanto aos impactos de mega eventos. Alguns autores, como é o caso de Chalkley e Essex (1999), tendem a ver resultados positivos; outros, como é o caso de Rolnik (2009), destacam os resultados negativos. Acredita-se que não é possível fazer afirmações genéricas sobre estes impactos. Como acontece com todos os fenômenos urbanos e econômicos, diferentes grupos sociais são desigualmente afetados.

As transformações no espaço urbano variam de cidade-sede para cidade-sede, já que dependem de fatores como sua história, cultura, economia, desenvolvimento tecnológico, geografia, etc. A legitimidade dos investimentos e das transformações variam também de contexto para contexto. Por exemplo, segundo Chalkley e Essex (1999), para que Roma sediasse as Olimpíadas de 1960, foram realizados investimentos em um novo sistema de fornecimento de água, na ampliação do aeroporto e da rede de transporte público, na iluminação de vias e monumentos. Tókio, para sediar os jogos de 1964, promoveu transformações na sua estrutura urbana, que atendiam não somente às necessidades em curto prazo para a realização do evento, mas também contribuíram para a vida cotidiana após os jogos. Já para a realização das Olimpíadas de 1968, na Cidade do México, foram realizados grandes investimentos do poder público para adequação de infra-estrutura. Estes investimentos foram considerados pela população como desnecessários, já que o país enfrentava graves problemas sociais, como a pobreza e o déficit habitacional. Um marco deste conflito foi o assassinato de cerca de 250 estudantes durante manifestações de oposição.

Seul, em 1988, aproveitou o evento para transformar radicalmente a cidade. Investiu em planejamento de trânsito, aperfeiçoamento de equipamentos culturais e no embelezamento do espaço urbano. Esse último item compreendeu a limpeza e reparação de monumentos, retirada de poluição visual das ruas. Foram realizados projetos de paisagismo, decoração e iluminação urbana. No entanto, o que o mundo não viu durante as transmissões do evento foi divulgado por um jornalista após sua conclusão: a

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construção de um muro para esconder uma favela da cidade que ficava na rota da maratona (CHALKLEY e ESSEX, 1999).

Barcelona, em 1992, é um bom exemplo de como sediar um mega evento pode transformar positivamente a cidade no longo prazo, ainda que incorrendo em prejuízos para grupos sociais específicos, como se verá na Tabela 1. O projeto contemplou a criação de espaços públicos de cultura e lazer, renovou áreas degradadas e trabalhou com um plano de larga escala, uma vez que as transformações de infra-estrutura alteraram e ditaram a forma de crescimento da cidade.

Para a realização da Olimpíada de Sydney, em 2000, o Comitê Olímpico Internacional (COI) expressou o desejo de que os projetos de engenharia, arquitetura e urbanismo fossem ambientalmente sustentáveis, incluindo a reciclagem de lixo, uso de energias renováveis, renovação de solos degradados e proteção a áreas de preservação ambiental e de espécies em extinção. A Vila Olímpica serviu como modelo de um projeto ecológica e economicamente auto-sustentável, desenvolvido em parceria com o Greenpeace e contemplando o uso de energia solar, aproveitamento de água da chuva, tratamento de efluentes, reaproveitamento de materiais de construção, entre outros (CHALKLEY e ESSEX, 1999).

Os exemplos mencionados mostram como um mega evento pode interferir no ambiente urbano, porém não mostram o impacto que tais transformações geram para determinadas grupos sociais como os de mais baixa renda, geralmente os mais afetados negativamente.

Em 2009, a Organização das Nações Unidas divulgou um Relatório Especial evidenciando que o impacto negativo de megaeventos esportivos sobre a vida dos habitantes das cidades que os sediam. Segundo Rolnik (2009) - relatora especial das Nações Unidas para o Direito à Moradia –, experiências passadas mostram que projetos de reurbanização adotados para a preparação de eventos resultaram em violações extensivas de direitos humanos, em especial do direito à moradia.

O estudo afirma que expulsões, encarecimento de moradia, falta de alternativas e pressão sobre os mais pobres, que acabam sendo removidos para zonas periféricas da cidade, ocorrem em consequência da realização das obras de adequações de infra estrutura e embelezamento das cidades para sediar os eventos. Além disto, as mudanças impulsionam a especulação imobiliária, já que os valores dos imóveis localizados no entorno dos estádios aumentam. Na Tabela 1 se encontra uma síntese das informações contidas no Relatório da ONU sobre os impactos de megaeventos esportivos sobre a habitação em cidades-sedes.

Tabela 1 – Impactos da realização de mega eventos na habitação

Ano Evento Remoções e/ou expulsões Especulação imobiliária

1988 Olimpíada de Seul

15% da população foi violentamente expulsa e 48 mil edifícios foram demolidos.

Aumentou em mais de 20% o valor dos apartamentos e em mais de 27% o de terrenos.

1992 Olimpíada de Barcelona

200 famílias foram despejadas para abrir caminho para a construção de novas rotatórias e outras adaptações urbanísticas

Aumento de 131% no preço dos imóveis.

1994 Copa do Mundo dos

Em Dallas, cerca de 300 pessoas foram expulsas de suas

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Estados Unidos residências. 1996 Olimpíada de

Atlanta 15 mil residentes de baixa renda foram expulsos da cidade. Cerca de 1.200 unidades de habitação para os pobres foram destruídas.

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2000 Olimpíada de Sydney

6 mil pessoas foram desalojadas. Elevou em 50% o preço dos imóveis

2008 Olimpíada de Pequim

Realocação de moradores em larga escala. Foram relatadas denúncias sobre despejos em massa, por vezes conduzidos por homens não identificados. Cerca de 1,5 milhão de pessoas foram deslocadas.

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2010 Copa da África do Sul

Mais de 20 mil moradores foram removidos e transferidos para áreas empobrecidas da cidade. O Ministro da Habitação observou que os planos de construir milhares de casas de baixo custo poderiam ser afetados por mudanças nas demandas do orçamento na preparação para a Copa de 2010

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2010 Jogos da Commonwelth de Nova Deli

35 mil famílias foram expulsas das terras públicas na preparação para os Jogos

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2012 Olimpíada de Londres

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O preço médio dos imóveis no entorno olímpico aumentou mais de 3%, enquanto no restante da cidade os valores caíram aproximadamente 0,2 %.

2016 Olimpíada do Rio de Janeiro

Diversos assentamentos informais estão sob ameaça de despejo por causa da construção de instalações esportivas

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Fonte: Rolnik (2010). Os exemplos e as informações acima mostram que as decisões sobre como

preparar a cidade para receber um mega evento esportivo podem ter impacto positivo ou negativo, não sendo atributo diretamente relacionado ao evento, mas aos decisores locais e à correlação de forças definidora da tendência das transformações que são, sempre, inevitáveis. Feita esta contextualização com relação ao tema se pode tratar do caso da cidade de Porto Alegre e, ao final, especificamente do caso da defesa do Morro Santa Tereza que teve sucesso em redirecionar, ainda que localmente, uma tendência que inicialmente era favorável à especulação imobiliária, ao dano ambiental e à remoção de cerca de 4.000 famílias. 1.2 O cenário do conflito: Porto Alegre - cidade empreendedora em transformação

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Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul (RS), é conhecida

internacionalmente pela experiência pioneira do Orçamento Participativo e por ter sido sede de várias edições do Fórum Social Mundial.

No que se refere ao espaço urbano, pode-se afirmar que estão emergindo traços de governança empreendedora. No período recente, a cidade tem sofrido importantes alterações, sendo as mais evidentes a construção de avenidas perimetrais e a verticalização das edificações nas áreas próximas a elas. Além disto, Porto Alegre ganhou destaque com a obra do Museu Iberê Camargo, concluída em 2008. O projeto, do arquiteto português Álvaro Siza ganhou o Leão de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2002, e se constitui em uma edificação-ícone no skyline da cidade. Na sua proximidade foi inaugurado, também no final de 2008, o Barra Shopping Sul.

A valorização deste entorno induziu projetos que alteraram o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA) e definiram um novo regime urbanístico para uma área de aproximadamente 60 mil metros quadrados, conhecida como Pontal do Estaleiroi, localizada às margens do Rio Guaíbaii e na vizinhança dos terrenos aos quais este estudo se refere. O projeto aprovado, apesar de muitas manifestações contrárias da população e movimentos sociais, autorizou a construção de prédios onde antes não era permitido.

Nas proximidades também se localiza o Estádio Beira Rio, do Esporte Clube Internacional. Com a inclusão de Porto Alegre como sede de jogos da Copa do Mundo de 2014, novas alterações do espaço urbano estão planejadas para esta região da cidade.

A candidatura de Porto Alegre incluía o compromisso com a construção de novos centros esportivos pelos dois principais clubes de futebol: Grêmio e Internacional. Os clubes apresentaram projetos - um de construção (Arena do Grêmio), outro de adequação (Gigante para Sempre - Inter) – que incluíram negociações com empresas de construção não apenas para viabilizar suas obras, mas também para maximizar suas margens de lucro.

O projeto da Arena do Grêmio prevê a construção de um novo estádio de futebol com capacidade para 52,5 mil espectadores, numa área de 27 hectares no Bairro Humaitá, Zona Norte. O projeto conta ainda com empreendimentos associados ao estádio: shopping, hotel internacional com 300 apartamentos, centro de eventos, centro empresarial, conjunto residencial e estacionamento com 12 mil vagas.

No caso do projeto Gigante para Sempre – Inter (Figura 1), que nos interessa particularmente, as instalações atuais do Complexo Beira Rio serão aproveitadas, sofrendo reformas para se adequar às normas da FIFA, incluindo uma nova cobertura.

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Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=547512&page=49 Figura 1 – Projeto Gigante para Sempre – Inter

O Complexo Beira Rio se localiza em uma posição estratégica: junto à Orla do

Rio Guaíba e próximo do centro da cidade, nas proximidades do Museu Iberê Camargo e do Pontal do Estaleiro. Esta área apresenta importante potencial turístico para lazer. Os empreendimentos associados visam explorar tais potenciais e incluem uma marina; três torres - duas para hotéis de 700 apartamentos cada e outra para um centro de medicina esportiva; o agrupamento das escolas de Samba que hoje ocupam galpões na área no Centro Cultural do Samba; centro de eventos; e estacionamento para 2.000 veículos. Além disto, haverá a ampliação das vias de acesso, com a duplicação das atuais – esta obra se iniciou em julho de 2010, com recursos públicos.

Para assegurar a implementação dos projetos propostos, e consequentemente, a escolha de Porto Alegre como cidade-sede, foram aprovadas em janeiro de 2009, pela Câmara de Vereadores, diversas alterações no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA). Foram criadas novas Macrozonas e novas áreas de interesse cultural e institucional. Para viabilizar o projeto Arena do Grêmio foi aumentada a altura das edificações para 72 metros – vinte metros acima da altura máxima até então permitida na cidade - na área do Estádio Olímpico, próxima ao centro da cidade, que será re-urbanizada, e no bairro Humaitá, aliás, região de banhados protegida por lei federal.

Para a área do Gigante para Sempre – Inter foram aprovadas importantes alterações de zoneamento e de índices para viabilizar a modernização e readequação do Estádio Beira Rio. A Prefeitura concedeu permissão para a construção de edificações mais altas e com índices construtivos superiores: o índice construtivo passou de 1,3 para 1,9 e a altura permitida de 18 para 33 metros. No que diz respeito ao zoneamento, é considera Área de Preservação Permanente (APP) uma faixa de pelo menos 500m a partir dos cursos das águas; para o projeto do Gigante para Sempre a faixa foi reduzida para 255 metros da Orla.

Estas alterações foram impulsionadas pelas organizações que controlam os dois times de futebol – Grêmio e Inter – que, tradicionalmente, polarizam os torcedores. Segundo Maennig (2009), associa-se à realização de grandes eventos esportivos o feel-good factor, que consiste em um sentimento coletivo de bem estar, esperança e otimismo sobre o futuro. Os clubes de Futebol, os agentes da especulação imobiliária e os Vereadores favoráveis a estes projetos souberam aproveitar muito bem este

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fenômeno para aprovar as alterações do PDDUA. Contribuiu também para esta aprovação a histórica rivalidades entre os torcedores dos dois times, já que ambos precisavam ser aprovados para não descontentar um ou outro. Em decorrência, os movimentos de defesa do direito à cidade e do meio ambiente que problematizaram as suas conseqüências foram calados pelo massivo apoio da população e da grande imprensa. 2 O caso: a defesa do Morro Santa Tereza

Fonte: http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2010_05_01_archive.html Figura 2 – Vista aérea do Morro Santa Tereza, incluindo, à esquerda, o Gigante Beira-Rio

2.1 O entorno do Complexo Beira Rio e o Morro Santa Tereza

Esta área, de 74 hecatares, se localiza a cerca de 10min do centro da cidade. As partes mais elevadas do Morro propiciam vistas do skyline da cidade, do Rio Guaíba e do próprio Estádio.

Fonte: http://nandaetges.wordpress.com/ Figura 3 – Vista do Rio Guaíba e do Estádio Beiro-Rio a partir da Vila Gaúcha

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A maior parte da área do Morro Santa Tereza pertence ao Governo do Estado e nela estão instalados seis sedes da extinta FEBEM, atual Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE). Um dos prédios é de interesse histórico cultural, tendo sido construído no século XIX por Dom Pedro II para abrigar uma escola, cujo nome, Santa Thereza, em homenagem à esposa do imperador, batizou o morro e o bairro em que está localizado. O projeto original do prédio é do arquiteto Frances Granjean de Montingny, um dos introdutores do estilo neoclássico no Brasil (RODRIGUES, 2010).

Parte do terreno do Morro Santa Tereza é de Preservação Permanente e parte é de Preservação Ambiental. Um relatório realizado pela Fundação Zoobotânica afirma que mais da metade do espaço ainda está bastante conservado, mantendo as características de mata e campo nativos, e que a área é uma das últimas a possuir resquícios de vegetação original e característica dos morros de Porto Alegre. O terreno abriga 17 espécies vegetais com status de conservação em ambiente natural, algumas ameaçadas de extinção, nascentes e cursos d’água (RODRIGUES, 2010).

Além disto, há mais de 50 anos, cerca de 4.000 famílias ocupam partes do Morro, vivendo de maneira precária e sem acesso a infra-estrutura urbana. Estas famílias têm sido historicamente negligenciadas pelo poder público, localizando-se em cinco comunidades: Vilas Gaucha, Figueira, Ecológica, Padre Cacique e Grande Cruzeiro.

2.2 O conflito: projetos em disputas com relação ao Morro Santa Tereza

Fonte: http://omorroenosso.com.br/ Figura 4 – Material da campanha O Morro É Nosso

Um ano após as alterações do PDDUA para esta região, o Governo do Estado

iniciou negociações para trocar suas terras no Morro pela construção de nove unidades, em outras áreas, para atender os cerca de 800 jovens que estão hoje na FASE. Para efetivar esta permuta com o setor privado, o Governo do Estado apresentou Projeto à Assembléia. Naquele momento duas construtoras de grande porte já estavam interessadas e planejavam a privatização das áreas naturais transformando-as em condomínios de luxo, aproveitando a valorização de mercado decorrente dos empreendimentos já mencionados e dos novos, decorrentes do acolhimento da Copa do Mundo de 2014.

Esta iniciativa pode ser compreendida como sendo uma expressão do novo empreendedorismo urbano, que se apóia na parceria público-privado e foca no investimento e desenvolvimento econômico por meio da construção especulativa do lugar, em vez de em melhorias das condições de um território específico, ou seja, o objetivo é o ganho econômico imediato - ainda que não exclusivo (HARVEY, 2001)

Em oposição a estas negociações e em defesa do Morro constitui-se uma frente de lutas composta por diferentes organizações. O Sindicato dos Trabalhadores da FASE demandavam que a proposta de descentralização fosse debatida, opondo-se tanto à

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especulação imobiliária quanto ao que afirmavam ser um desejo do governo de esconder um grupo social – jovens infratores – que incomoda a sociedade. Os moradores do Morro defendiam seu direito à moradia, uma vez que não havia menção alguma a seu respeito. O movimento ambientalista defendia a preservação da última área da cidade onde se encontra a vegetação original característica de seus morros.

Outra frente de lutas foi a da informação. A mídia gaúcha é dominada pelo Grupo RBS, afiliado à Rede Globo e pertencente a um grupo empresarial familiar que também possui uma empresa de construção, que já havia manifestado interesse pela área. A escassez de informações nos veículos da RBS sobre o Projeto e as disputas que o envolvem foi denunciada pela mídia alternativa e pelas organizações que lutaram contra o Projeto.

O texto do Projeto de Lei 388/2009 (PL) autorizava a Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Estado do Rio Grande do Sul – FASE a alienar ou permutar imóvel situado no Município de Porto Alegre. O Art. 1 o Projeto descrevia os limites que circunscrevem a área incluída na autorização; o Art. 2 afirmava que “fica resguardado, por ocasião da permuta ou alienação a preservação de espaços de preservação ambiental e histórica, se houver”; o Art. 3 previa que os recursos obtidos seriam destinados “exclusivamente à construção de unidades descentralizadas em Porto Alegre, Região Metropolitana, Osório e Santa Cruz do Sul, para a execução de medidas sócio-educativas de internação, num prazo de cinco anos”. A mobilização contra o projeto se iniciou com os moradores das comunidades que seriam atingidas. No dia 25 de fevereiro de 2010 uma comissão de moradores foi à Assembléia Legislativa (AL) pressionar os deputados para que se posicionassem contra o PL. Em decorrência, uma comissão de deputados, acompanhados de moradores das Vilas Ecológica, Prisma, Gaúcha e União, mais representantes dos trabalhadores da FASE, fizerem uma visita a estas quatro localidades no dia 3 de março. Os moradores seguiram sua agenda de protestos, incluindo bloqueios da Av. Padre Cacique, exigindo a retirada do PL com o argumento de que este não mencionava, em nenhum momento, qual seria o destino das famílias que ali residem. Simultaneamente, várias organizações, incluindo o Sindicato dos Engenheiros do Rio Grande do Sul, levantaram informações sobre a discrepância entre o preço de mercado que aquelas terras teriam e o valor que seria necessário para a construção das novas unidades da FASE. Segundo estas informações, a área valeria pelo menos R$ 160 milhões e a construção das unidades custaria cerca de R$ 70 milhões. Como se trataria de mera permuta, sem envolver valores em dinheiro, o negócio seria extremamente vantajoso para a empresa envolvida. Foram também feitas comparações com o valor de venda do antigo estádio do Internacional, próximo a este local: uma área de 2 hectares foi vendida por R$ 20 milhões. A um valor equivalente os mais de 73 hectares do terreno da FASE valeria R$ 730 milhões (OLIVEIRA, 2010a).

Também começaram a aparecer informações sobre a dimensão ambiental: a proposta ignorava laudos do próprio órgão ambiental do Governo do Estado – a Fundação Estadual de Proteção Ambienta (FEPAM) – segundo os quais se encontram na área 16 espécies vegetais em perigo de extinção, além de três nascentes que alimentam o Rio Guaíba. Com relação à descentralização da FASE, trabalhadores desta organização e deputados se manifestaram favoravelmente. No entanto, reclamam a ausência de detalhamento a este respeito: onde seriam construídas as unidades; se existe garantia de pessoal qualificado para atendimento aos internos; quanto custará o processo de descentralização (OLIVEIRA, 2010a); se existe projeto arquitetônico e pedagógico; se

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haverá concurso público para prover pessoal nos novos locais ou transferência dos hoje lotados em Porto Alegre (HAMMES, 2010). Segundo declarações dos dirigentes do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do RS (SEMAPI), sindicato ao qual os trabalhadores da FASE são vinculados, sua oposição se deveu a “não existir de fato um Projeto de Reestruturação, que deveria ser o principal objeto a ser apreciado pelo Legislativo; há uma inversão de lógica no PL 388, que só contempla a autorização de permutar ou alienar a área”. O SEMAPI defendeu a retirada do PL 388 e uma ampla discussão da sociedade, com a elaboração de um projeto que contemple as necessidades do atendimento sócioeducativo, respeitando as orientações do Sistema Nacional de Atendimento Sócioeducativo (SINASE), do Estatuto da Criança e do Adolescente e a opinião dos trabalhadores, que são executores das políticas de atendimento e historicamente não são partícipes na sua construção. Segundo a diretora Nara Maia, “os trabalhadores têm elaborado um projeto, à luz das necessidades estruturais, de rotina institucional, pedagógico, de saúde, de segurança e de profissionalização, visando a interlocução com a rede. “Também temos sugestões para buscar recursos públicos que financiem o projeto e nos colocamos à disposição para interlocução junto aos Governos Federal, Estadual e Municipal, não necessitando, portanto, a alienação ou permuta da área” (MARKO, 2010).

Manifestando-se favorável à descentralização, um deputado de oposição – Raul Pont – chamou atenção para a falácia do discurso do Governo, segundo o qual para que se efetivasse a descentralização e fosse cumprido o previsto no SINASE seria imprescindível a permuta. Pont sugeriu a utilização de recursos do Fundo de Previdência Orçamentária, gerado em parte pela venda de ações do Banco do Estado do Rio Grande do Sul: "Quase 1 bilhão de reais (R$ 984 milhões) foi sacado do Fundo, que estava destinado a complementar a folha de pagamento da Previdência do Estado, num cálculo aprovado pela Assembleia de 1/84 avos, sendo retirada uma parcela a cada mês". Segundo ele, "com cerca de 7% desse valor se constroem todas as unidades previstas" (MOREIRA, 2010).

A posição dos ambientalistas pode ser representada pela manifestação do Prof. Rualdo Menegat, do Instituto de Geociências da UFRGS e doutor na área de Ecologia da Paisagem, em declarações durante entrevista sobre o tema (RODRIGUES, 2010b):

Assim como a megacidade tem seus ícones arquitetônicos, urbanísticos – por exemplo, as torres do World Trade Center eram os ícones urbanos de Nova York –, da mesma maneira nós precisamos dos nossos ícones ambientais. Não é que não pode existir cidade, não é mais essa a nossa visão. O que nós não podemos mais admitir é uma cidade como se ela fosse uma cápsula fechada, que exclui, que varre de si a natureza, mas como um ambiente capaz de interagir com a natureza. E esse ambiente é ao mesmo tempo ambiental e cultural. [...] Entendendo esse sítio como parte de uma megacidade, ou seja, que sofre uma pressão imensa. Então nós temos que ter uma estratégia ambiental e cultural, senão ela soçobra. Se for só ambiental, vão ficar meia dúzia de ecologistas se desesperando para defender o impossível. Temos que entender a margem do Guaíba como um corredor ecológico, ambiental e também cultural, porque o Guaíba pode ser um local de fruição, de prazer. E com isso nós culturalmente sinalizamos que a água do Guaíba é importante. Essa é a primeira conectividade. A segunda é a dos morros. Essas manchas dos morros podem se comunicar entre si e com o corredor da margem. O Morro Santa Teresa tem importância ecológica e ambiental em termos de sustentação das outras manchas. Hoje a cidade vê como ameaça a defesa dos nossos estoques ambientais. Mas nós é que estamos ameaçados por essa cidade, as pessoas sentem que ela está violenta, parada, desleixada, caótica, e as pessoas

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tendem a se perguntar por quê. [...]Eu vejo como muito importantes essas discussões das nossas manchas urbanas. Se a civilização não consegue olhar uma pequena mancha de árvores e achar que isso é importante, num espaço que já está todo concretado, realmente, o que nos resta é a barbárie. Não é a natureza que eu estou expulsando apenas, é a natureza e as culturas que não me pertencem. Porque a maneira com que tu te relacionas com a natureza é a maneira com que tu te relacionas com o outro. Então essa é a importância cultural de uma mancha da natureza dentro da cidade: ela representa o outro, a aceitação da diversidade cultural.

As manifestações dispersas de moradores, trabalhadores e ambientalistas começaram a se articular em uma campanha unificada sob a rubrica O Morro é Nosso. Uma ação inicial foi a realização de um abaixo-assinado.

Nós, abaixo-assinados, somos contra a venda do Morro Santa Teresa e defendemos: 1) A retirada imediata do PL 388 da Assembleia Legislativa; 2) A preservação do patrimônio público; 3) Maior debate com a sociedade; 4) Um projeto de reestruturação da FASE; 5) Regularização fundiária e urbanização das comunidades do Morro

Santa Tereza; 6) Projeto para preservação das áreas verdes.

Junto com a coleta de assinaturas foi iniciado também um processo de

divulgação para o conjunto da cidade, com manifestações e distribuição de material informativo em pontos chave, como a Esquina Democrática (localizada no centro e área de grande movimentação de pedestres) e o Brique da Redenção (localizado junto ao Parque e com grande afluência de público nos domingos). O SEMAPI produziu spots de rádio com inserção diária na Rádio Gaúcha, veículo do Grupo RBS. Além de explicar o que estava ocorrendo faziam chamadas para os próximos atos a serem realizados. A Assembleia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente (Apedema/RS) realizou uma ação via internet (ciberativismo), promovendo o envio de e-mails aos deputados pela não aprovação do PL, nos quais repudiavam "a iniciativa articulada do capital especulativo imobiliário que está sitiando a Orla do Guaíba, privatizando os espaços públicos e restringindo o livre acesso à população, mercantilizando a paisagem, degradando o ambiente" (RODRIGUES, 2010c).

A mobilização social conseguiu impedir que o PL fosse aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, etapa necessária para que fosse à votação em Plenário. Para driblar esta dificuldade, o Executivo solicitou regime de urgência, que dispensa parecer das Comissões e obriga a votação em 30 dias.

Face às resistências dos deputados, inclusive os da base de apoio do Governo (que tem maioria na AL), o Executivo enviou mensagem retificativa, incluindo algumas alterações no PL. No entanto, para o movimento de defesa do Morro e para os deputados de oposição, a retificativa não resolveu nenhuma das grandes dúvidas que o projeto original suscitava: o destino das famílias que moram no local; o valor real da área; a preservação ambiental. Segundo análise dos assessores técnicos da bancada petistas, os únicos avanços do novo projeto foram a fixação de um prazo de cinco anos para a descentralização, a especificação dos locais onde devem ser construídas as novas unidades (Porto Alegre, Região Metropolitana, Santa Cruz do Sul e Osório), e o reconhecimento de que parte da área que o governo pretendia vender, desde 1976, não pertence mais ao Estado (havia sido vendida à TV Guaíba). Além disto, no projeto original o governo dizia que a área poderia ser permutada ou alienada por outros

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imóveis a serem construídos, ou seja, pelas unidades descentralizadas, na retificativa não diz pelo quê pode o imóvel ser permutado; o projeto original ignorava as famílias que moram na área, na retificativa menciona genericamente que o direito social à moradia será respeitado, mas sem dizer o que vai acontecer com as famílias e, no caso de relocalização, para onde iriam e em que condições; no projeto original não havia menção à área preservada, no novo ao menos reconhece o fato de que na área da FASE há uma parte que é de preservação, mas, de novo, genericamente, ou seja, apenas menciona que a lei ambiental será respeitada sem, contudo, oferecer garantias ou prever ações (OLIVEIRA, 2010b).

O que se pode constatar é que o Governo do Estado, na nova versão do PL tentou responder às demandas colocadas pela articulação entre trabalhadores, ambientalistas e comunidades sem, no entanto, alterar significativamente seus termos.

O movimento O Morro é Nosso ganhou força graças à sua própria organização e representatividade, se instituindo como ator central nas negociações que passam a ocorrer na AL. Ganhou força, também, pelo apoio do Fórum dos Servidores Públicos Estaduais do RS, que lançou um panfleto: “com a desculpa de reestruturar a FASE o Governo Yeda quer vender o Morro Santa Teresa. O seu objetivo é apenas vender o Morro. Não tem projeto para a FASE. A área de 74 hectares é maior que dois Parques da Redenção e oito bairros de Porto Alegre. É um cartão postal da cidade que está ameaçado. Um patrimônio do povo gaúcho”. Acrescentou, ainda, sob o título Os obscuros interesses da RBS:

A RBS comprou a ideia de vender a área da FASE de qualquer maneira, tentando convencer os leitores que isso causaria melhorias nas condições socioeducativas dos jovens infratores, mas esquece de publicar algumas coisas importantes: 1) Para melhorar a vida do menor infrator é necessária uma política de Estado com educação de qualidade, saúde, cultura, oportunidade de empregos. Políticas de Estado decentes e dignas reduziriam e muito os jovens que necessitariam ser presos. Isto não é sequer mencionado no Projeto e na imprensa. 2) O valor de avaliação da área é vil, está a preço de banana, por que será que o jornal não divulga isso? Uma das empreiteiras interessadas em comprar essa área é sócia da RBS e se chama Maiojama. Para se ter uma ideia, o Sport Club Internacional negociou os dois hectares do Estádio dos Eucaliptos por R$ 23 milhões. O risco que se corre é de um ótimo negócio ser feito, mas para quem comprar o mais valioso filé imobiliário do Rio Grande do Sul. 3) Porto Alegre é a sede de jogos da Copa do Mundo de 2014. Este terreno é a maior área verde disponível na região central de Porto Alegre. Isso tudo está interligado com o Pontal do Estaleiro, o Parque Gigante, o Shopping Zona Sul e o Cais do Porto, projetos polêmicos que acabaram aprovados pela maioria governista da Câmara de Vereadores. “Casualmente”, tudo na orla do Guaíba. Este é mais um projeto do governo Yeda que não traz benefício algum à sociedade, somente lucro para a especulação imobiliária. O PL 388 é um cheque em branco para o governo. Você daria um cheque em branco para a governadora Yeda? Por tudo isso, o FSPE/RS defende a retirada do PL 388 da Assembleia Legislativa e um maior debate com a população gaúcha, verdadeira proprietária do Morro Santa Teresa (FSPE, 2010).

A presença interessada da RBS se manifestou pela ação editorial: ou se manteve

em silêncio ou manifestou apoio ao Projeto, veiculando, apenas na fase final do processo, esparsas informações sobre os atos ou organizações que a ele se opunham. Isto fez com que a articulação contra o PL desenvolvesse estratégias próprias de comunicação, como as acima mencionadas.

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Além dos trabalhadores, ambientalistas e comunidades, novas organizações se manifestaram contrariamente ao PL: o Ministério Público recomendou a sua retirada da AL, informando que a Promotoria de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística tem uma ação exigindo que seja realizada a regularização fundiária da região, dando direito de uso as famílias que lá já residem; a Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou moção pela retirada da urgência do PL em solidariedade às comunidades ameaçadas.

A nova versão do PL foi a Plenário em três ocasiões, uma vez a cada semana. Na primeira ocorreu falta de quorum: os deputados da base do governo não resistiram à pressão que ocorria na frente da AL, onde centenas de manifestantes protestavam; nem à pressão que as lideranças das comunidades e dos trabalhadores fizeram nos corredores. As bancadas do PDT e do PP, ambos os partidos membros da coligação no Governo, foram os responsáveis pela falta de quorum. Como o PL estava com regime de urgência, enquanto não fosse votado ficaria obstruindo a pauta. Assim, na semana seguinte foi novamente a Plenário, os manifestantes foram novamente para a Praça, as lideranças fizeram novamente pressão junto aos parlamentares e, novamente, a votação foi adiada. Quando se esboçavam dificuldades de quorum, novamente, a sessão foi suspensa pela informação da morte de um ex-deputado.

Finalmente, no dia 22 de junho, sem votos suficientes para garantir a aprovação, o Líder do Governo, Adilson Troca (PSDB), anunciou que no dia seguinte, no início da sessão formalizaria a retirada do PL 388. Os moradores, ainda cautelosos, foram para a frente da Assembleia para acompanhar até o último voto da retirada do PL. “Tudo que teve até agora foi discurso. Então, nós nos manteremos mobilizados. Inclusive, vamos insistir na regularização da área onde moramos, que até hoje não teve atenção”, salientou o morador da Vila Ecológica Carlos da Silva. Quando, no dia 23 se concretizou a retirada do Projeto, moradores do Morro, trabalhadores da FASE, ambientalistas, diretores do SEMAPI e das demais entidades do Fórum dos Servidores, comemoraram na Praça da Matriz com muita festa e fogos de artifício. Considerações Finais: O Morro É Nosso - a vitória em um conflito sócio-ambiental

A noção de conflitos sócio-ambientais deriva da distinção elaborada por

Martínez Allier (2004) sobre as características dos movimentos ambientalistas. Ele identifica três aboradagens: (1) o culto e defesa da vida silvestre; (2) a gestão eco-eficiente ou gestão ambiental em suas várias linhas de ação – modernização ecológica, desenvolvimento sustentável, produção limpa; (3) o ambientalismo popular ou movimento por justiça ambiental. A última abordagem adota a noção de distribuição ecológica, que inclui o econômico e o político de modo a abordar o tema dos conflitos ecológicos distributivos. A ideia central é que em consequência do crescimento econômico mais recursos naturais são utilizados e mais resíduos produzidos, impactando não somente o ambiente físico, mas também as gerações atual e futuras. Entretanto, todos os grupos humanos não são igualmente afetados: alguns se beneficiam; alguns sofrem custos mais elevados que outros. Esta é a origem de conflitos sócio-ambientais e das lutas populares por justiça social e ambiental.

Este tipo de ambientalismo tende a ser mais visível em casos que envolvem projetos de grande escala, como a construção de hidroelétricas, a extração mineira ou as plantações de monoculturas, que geram óbvios riscos aos grupos mais vulneráveis da sociedade. No entanto, o caso acima relatado permite trazer este referencial para uma reflexão sobre injustiças sociais decorrentes de projetos econômicos justificados como necessários para o desenvolvimento da cidade. O contexto dos mega-eventos é extremamente favorável a esta reflexão, já que para acolhê-los as cidades

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empreendedoras realizam obras de grande porte e, em decorrência, de grande impacto sobre diferentes grupos sociais e sobre a natureza.

A utilização do conceito de conflito sócio-ambiental permitiu, também compreender a articulação cada vez mais freqüente entre organizações de tipos tão diferentes como as que aqui mencionamos, articulações onde se complementam as dimensões social e ambiental. Aqui se encontra uma aprendizagem importante: o usual é que a exploração da natureza seja defendida como uma fonte de crescimento econômico e, portanto, de benefícios para os mais pobres, sendo este argumento incorporado e legitimado por estes setores sociais. Neste caso, a articulação entre ambientalistas, trabalhadores e comunidades produziu uma compreensão compartilhada e harmonizada entre setores populares com diferentes interesses e propósitos, compreensão esta que foi se disseminando pela cidade no desenrolar do processo de luta.

Começamos este artigo com uma apresentação do referencial que articula os projetos do capital no espaço urbano – o da cidade empreendedora; concluímos com a necessidade de incluir um referencial que permitisse compreender os conflitos que nela se geram. Enfatizamos, para terminar, a qualidade da estratégia do Movimento O Morro É Nosso, capaz de colocar em primeiro plano o valor ambiental e social do Morro para a cidade e para os que nele vivem seu cotidiano, e em segundo plano as tentativas do capital especulativo de apropriar-se de uma área que ganhou nova valorização econômica no contexto da realização das obras para a Copa de 2014.

Referências CHALKLEY, Brian; ESSEX, Stephen. Urban development through hosting international events: a history of the Olympic Games. Planning Perspectives, n.14, p. 369-394, 1999. FSPE. Fórum dos Servidores repudia a venda do Morro Santa Tereza. Disponível em: http://www.omorroenosso.com.br/noticia18.html. Acesso em 24 Junho 2010. HAMMES, Daniel. Protesto cobra a retirada do PL 388 da Assembleia Legislativa Disponível em: http://www.omorroenosso.com.br/noticia1.html. Acesso em 24 Junho 2010. HARVEY, David. Espaços de esperança. São Paulo: Edições Loyola, 2004. HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume Editora, 2005. MAENNIG, Wolfgang. World Cup 2010: South African economic perspectives and policy challenges informed by the experience of Germany 2006. Hamburg: Universität Hamburg, 2009. MARKO, Katia. Deputados, entidades e moradores querem que o governo estadual retifique o projeto 388. Disponível em: http://www.omorroenosso.com.br/noticia6.html. Acesso em: 24 Junho 2010. MOREIRA, Fabiane. Parlamentares voltam a debater a questão da Fase na Assembleia Legislativa. Disponível em: http://www.omorroenosso.com.br/noticia2.html. Acesso em: 24 Junho 2010. OLIVEIRA, João Manoel. Deputado Bohn Gass pede vistas e vai apresentar lista de dúvidas sobre o projeto da FASE. Disponível em: http://www.omorroenosso.com.br/noticia4.html. Acesso em: 24 Junho 2010a.

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