O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

23

Click here to load reader

Transcript of O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

Page 1: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

“Symphonia de Cantiga 160”, Cantigas de Sta. María de Alfonso X El Sabio, Códice de El Escorial. (1221-1284). Imagem recolhida em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Trovadorismo Literatura Portuguesa Medieval Prof. Drª Ana Sofia Figueiras Henriques Laranjinha Trabalho realizado por: António Manuel dos Santos Barros, Aluno nº 060730001 Porto, 8 de Dezembro de 2009

Page 2: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

1

O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

1. Introdução

A motivação para o tema escolhido para este trabalho surgiu quando, consultando a Lírica Profana Galego-Portugesa. Corpus completo das cantigas medievais, con estudio biográfico, análise retórica e bibliografía específica (a partir daqui designada por LPGP) – extenso trabalho coordenado por Mercedes Brea e publicado em dois volumes pelo Centro de Investigacións Linguísticas e Literárias RAMÓN PIÑEIRO, em Santiago de Compostela, 1996 –, deparámos com a classificação de alguns cantares que, para além do género em que se enquadram (Amor, Amigo, Escárnio), da modalidade compositiva (cant. de mestria, cant. de refrão), das relações interestróficas, do esquema métrico e da distribuição das rimas, e de outras informações importantes, faziam referência ao motivo ou modalidade temática da mala cansó, entre outros já familiares tais como, o mot. do comjat, ou o mot. da chanson de change. O mot. da mala cansó era algo de raro, pois, nas várias leituras que fizemos ao longo do semestre, apenas deparámos com tal designação uma vez, no livro do Prof. José Carlos Miranda (Aurs mesclatz ab

argen – Sobre a primeira geração de trovadores galego-portugueses, Porto, Edições Guarecer, 2004, p. 123). Assim, decidimos investigar o assunto no sentido de descobrir alguma informação que justificasse aquela classificação. Dos passos por nós dados e das conclusões retiradas é este trabalho o fruto. 2. A classificação da LPGP A LPGP “é um compêndio das cantigas registradas nos manuscritos dos cancioneiros da Ajuda, da Biblioteca Nacional e da Vaticana, na Távola colocciana, nos pergaminhos Sharrer e Vindel, Lais da Bretanha, no fólio 25r do volume MS 9249 da Biblioteca Nacional de Madrid, e nas páginas 9-11 do volume MS 419 da Biblioteca Pública Municipal do Porto. Exceptuam-se portanto os textos conservados no cancioneiro da Brancoft Library de Berkeley, que os editores prometem incorporar na futura edição electrónica.” 1 A questão da organização da lírica galego-portuguesa é abordada na Introdução, e propõe-se a divisão em três grandes géneros: amor, amigo, e escárnio e maldizer. Contudo, reconhece-se a existência de modalidades diferenciadas, e daí a necessidade de uma subclassificação atendendo à temática da composição, como podemos ver no quadro síntese, abaixo:

pastorela mot. da pastorela escondit mot. do escondit mot. da chanson de change mot. da mala cansó mot. do comjat malmonxada marinha

Géneros amorosos Amor

mot. da cant. moral Nota: negritos nossos.

_________________________________ 1 Filologia e Lingüística Portuguesa, n. 3, p. 215-220, 1999. (http://fflch.usp.br/dlcv/lport/site/images/arquivos/FLP3/ResenhaGamboa1999.pdf).

Page 3: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

2

escondit mot. do escondit mot. da alba mot. da chanson de change malmaridada cant. de tear romaria mot. da cant. de romaria marinha

Géneros amorosos Amigo

mot. da cant. moral Escármio de amor / de amigo Escárnio pessoal Escárnio pessoal (mot. da mala cansó) Escárnio pessoal (mot. da cant. moral) Escárnio social Escárnio literário Escárnio político Cantiga moral Escárnio moral

Escárnio e outros géneros não amorosos

Escárnio político-moral Descordo Lai Pranto Cantiga de seguir Cantiga encomiástica Bailada

“Géneros menores”

Cantiga epigramática tensós Géneros dialogados partimens Canção de amor Cobras jocosas Lauda mariana

Géneros tardios

Pergunta Nota: negritos nossos.

Para cada um dos tipos listados é dada uma definição, mas para efeitos do nosso estudo apenas convirá reter, para posterior comparação, aquelas acima relevadas em negrito:

• “Amor / amigo (mot. da chanson de change): Alguns textos presentam, dende a perspectiva masculina ou dende a feminina, o motivo do cambio de senhor por parte do trobador, un cambio que pode deberse a factores diversos: cansancio, ante a indiferencia, despeito,...” (vid., p. ex.., 46,5 ou 111.4, de amor, e 70,36 ou 85,17, de amigo) 2

• “Amor (mot. da mala cansó): Modalidade temática da cantiga de amor na que o poeta se queixa amargamente do desdén da dama ou bem culpa a Deus ou a Amor da sua desventura amorosa (p. ex., 25,124 ou 120,46). Às veces, estas composicións chegan a ser verdadeiros escarnios (contra Deus, principalmente), como, p. ex., 56.1 ou 125,30, que serían mais bem escarnios persoais (mot. da mala cansó).” 2

• “Amor (mot. do comjat): Composicións de amor nas que o trobador se despide da sua dama. É fundamental a presença do verbo espedir ou a existencia de “palabras de despedida”. Vid. P. ex., 114,13 e 63,64.” 2

_________________________________ 2 LPGP, p. 27.

Page 4: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

3

Na LPGP não se fazem quaisquer outros tipos de referências à mala cansó, daí a necessidade de investigar outras fontes que trouxessem mais alguma luz, nomeadamente quanto a eventuais raízes na Lírica Provençal. Encontrámos informações valiosas no artigo La Mala Cansó provenzal, fuente del Maldit catalán, 3 de Isabel Riquer, da Universidade de Barcelona. 3. A mala cansó provençal. Parecerá evidente que se existe uma mala cansó também deverá existir uma bona cansó. Assim é, e esta não é mais do que a cansó, ou seja, a cantiga de amor, género cortês por excelência, através da qual o trovador, pela voz de um sujeito masculino e utilizando uma linguagem conotadamente do foro feudo-vassálico, se declara vassalo de uma senhor a quem, e dum modo geral, louva os atributos de beleza, de quem se diz prisioneiro desde que a viu, e a quem solicita a concessão de um benefício (ben) como recompensa pelo seu serviço. Segundo Isabel Riquer, que aqui seguimos de perto, a expressão bona cansó aparece frequentemente nas Vidas de muitos trovadores – como em Raimbaut de Vaqueiras4 ou Raimon de Miraval5 – ou em algumas cantigas, como a de Gaulcelm Faidit, e nos cantares de gesta, como Le charroi de Nîmes,6 de autor anónimo (o manuscrito mais antigo que restou data da primeira metade do séc. XIII): Mon cor e mi e mas bonas chanssos e tot qan sai d’ avinen dir e far, conosc q’ieu teing, bona dompna, de vos. (Gaulcelm Faidit: Mon cor e mi, vv. 1-3) Oez, segnor, Dex vos croisse bonté, Li gloríeus, li rois de maiesté! Bone chançom plest vous a escouter Del meillor heme qui ainz creüst en Dé? C'est de Guillelme, le marchis au cort nes, {Le charroi de Nimes, vv. 1-5)

Meu coração e eu mesmo, e minhas boas cantigas e tudo quanto sei dizer e fazer, reconheço, boa senhora, que me vêm de vós. Ouvi senhores, que Deus glorioso, O rei de majestade os faça melhores! Vós gostaríeis de escutar uma boa cantiga Sobre o melhor homem que jamais acreditou em Deus? É de Guilherme o marquês do nariz curto. (Tradução para português a partir da tradução em castelhano, de Isabel Riquer)

Nota: negritos nossos. É possível também encontrar a expressão oposta, mala cansó, nos cantares de gesta, como na Chanson de Roland, embora aqui num contexto diferente, o militar, e no sentido de prevenir o efeito de denegrir o comportamento dos guerreiros [(que malvaise se cançun de nus chantet ne seit! (que não se cante de nós canção má!, v. 1014)]. Na lírica provençal, o domínio que aqui mais nos preocupa, a expressão mala cansó, citando Isabel Riquer, é utilizada nos cantares em que “o trovador proclama aos quatro ventos o seu desamor, a sua rejeição por uma dama particular, com uma linguagem dura e com acusações graves e concretas; e ao abandoná-la, avisa-a, algumas vezes, que encontrou outra dama melhor”. 6 _________________________________ 3 RIQUER, Isabel - La Mala Cansó provenzal, fuente del Maldit catalán, Barcelona, 1997. (http://e-spacio.uned.es/fez/eserv.php?pid=bibliuned:Llcgv-12CAFAA7-A8DD-B95E-9D33-397559F5D36E&dsID=La_Mala.pdf) – consultado em 2010-02-08. 4 ibidem, p. 110, (Et enamoret se de la seror del marques… E trobava de leis bonas cansos). (negritos nossos). 5 ibidem, p. 110, (En mantas domnas s’ entendet et en fez mantas bonas cansos). (negritos nossos). 6 ibidem, p. 111.

Page 5: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

4

Nas Vidas de alguns trovadores é possível também encontrar a expressão mala cansó: Peire Vidal avia fait una mala cansó “Estat ai en gran sazo” en la cal el dis en una cobla; 7 Donc Gui d’ Ussel fetz la mala chanson, pois que ac facha la tenson, e la mala chanson qe fetz poiz ditz ; « Si be.m partetz, mala domna, de vos ».7

“Peire Vidal fez uma canção mordaz sobre ela ‘Esteve durante muito tempo’ na qual diz numa cobla...” “Assim Gui d’ Ussel fez a canção mordaz depois de ter feito a tenção; e a canção mordaz que fez depois diz: ‘Se bem me apartais, dama má, de vós’” (Tradução para português a partir da tradução em castelhano, de Isabel Riquer)

Nota: negritos nossos.

Na opinião de Isabel Riquer a mala cansó trouxe várias novidades à ideologia da lírica cortês, podendo-se destacar, entre elas, “a possibilidade por parte do trovador, de romper com a dama ou de trocá-la por outra, devido ao cansaço da fastidiosa e longa espera em receber o ben ou por tê-lo enganado com outro homem.”7 Traída a fidelidade amorosa, ou seja, quebradas as relações feudo-vassálicas que orientavam as relações entre os vários elementos da nobreza na Europa Ocidental do século XII, o trovador, tal como o vassalo, desligava-se da relação amorosa, expondo publicamente os seus motivos. José Carlos Miranda e António Resende de Oliveira, já em 1995, se tinham referido aos “motivos da insuficiência da dama em questões amorosas, que ocorre em João Soares Somesso e em Osoiro Anes, e sobretudo ao motivo do abandono do serviço amoroso em proveito de outra dama, que se encontra de novo em Somesso e Osoiro Anes, mas também em Fernão Pais de Tamalancos”.8 Parece, assim, evidente a sobrevivência daqueles motivos na lírica galego-portuguesa. Antes de avançarmos convirá deixar claras as definições de chanson de change e comjat, segundo Isabel Riquer, que por sua vez segue o estudioso alemão E. Köhler, e compará-las com as da LPGP, acima referidas:

LPGP Isabel Riquer (E. Köhler8A) mot. da chanson de change: O motivo do cambio de senhor por parte do trobador, un cambio que pode deberse a factores diversos: cansancio, ante a indiferencia, despeito,...” mot. do comjat: Composicións de amor nas que o trobador se despide da sua dama. É fundamental a presença do verbo espedir ou a existencia de “palabras de despedida”.

mot. da chanson de change: Los temas son dos, casi nunca tratados de forma equilibrada: la despedida de una dama ingrata y el comienzo de la relación con otra, que a su vez generará nuevas bonas cansós en un círculo poético e ideológico perfectamente cerrado. mot. do comjat: El único tema es el de la despedida, por parte del trovador, de la que hasta aquel momento había sido su dama.

Nota: negritos nossos.

Como se pode verificar as definições aproximam-se, mas são mais precisas em Isabel Riquer (E. Köhler). _____________________________ 7 ibidem, p. 111. 8 MIRANDA, José Carlos / OLIVEIRA, António Resende de – “A segunda geração de trovadores galego-portugueses: temas, formas e realidades”, In: Medioevo Y Literatura. Actas del V Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, vol. III, Granada, 1995, p. 10. 8A KóHLER, Erich [1987], "Vers und Kanzone", in Grundriss der romanischen Litteratur, vol. II, Les genres lyriques, tome I, fase. 3, Heidelberg, pp. 162-176.

Page 6: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

5

Quanto ao número de cantares do tipo mala cansó não é possível, segundo Isabel Riquer,9 dar um número exacto de quantas os trovadores compuseram. Certo é que, se atendermos apenas às que assim são classificadas nas Vidas, são muito poucas. Por outro lado, as razós dos cancioneiros apenas qualificam como mala cansó os seguintes cantares:

• Si be.m partetz, de Gui d’ Ussel, considerada o paradigma desta modalidade poética; • Estat aí en gran sazo, de Peire Vidal; • Si anc nuls hom per aver fin coratge, de Gaucelm Faidit.

Se compararmos este reduzido número (3) de cantares do tipo mala cansó, com as vinte e quatro (24), em mil seiscentos e noventa e uma (1691) cantigas de amor classificadas do mesmo modo na LPGP, não podemos de deixar de estranhar a diferença. Poder-se-á concluir talvez da dificuldade dos críticos em estabelecerem claramente os parâmetros para aquela classificação dos cantares provençais. No entanto, Isabel Riquer10 deixa bem explícitos os seus:

I. La acusación a una dama determinada por una mala acción concreta: no un discurso misógino. II. El insulto y el lenguaje duro. III. El vituperio público: si en la cansó se insistía en que el amor debía de llevarse en secreto, la

ruptura se proclama a voz en grito. IV. La despedida y abandono del servicio amoroso. En algunos casos el trovador dice que ya ha

encontrado una dama mejor. De posse destes dados, pensamos ser o momento de cotejarmos a paradigmática mala cansó Si be.m partetz, de Gui d’ Ussel: Si bem partetz, mala dompna, de vos, non es razos q'ieu me parta de chan ni de solatz, car faria semblan que fos iratz de so don sui joios Ben fui iratz, mas eras m'en repen, car apres ai del vostr'enseignamen cum puosca leu camjar ma voluntat; per q'eras chan don so don ai plorat. Plorat n'ai ieu, e l majer ochaizos ven mi d'aital que no's n'ira chantan c'a mi non es, sitot s'en vai gabán, onta ni dans, ni leis honors ni pros. Si bem camjet per lui nesciamen, li camjara ben leu plus follamen, per q'ieu noil sai d'aqest camje mal grat; qu'ill camjara tro c'ajal cor camjat. Mala dompna, ja non cujei que fos que, sius perdes, no m'o tengues a dan, que l'acuillirs, don vos sabiatz tan, e-1 gens parlars, e l'avinen respos vos fazian sobre totas plazen; mas eraus tol foldatz l'aculimen, e-1 gen parlar es tomat en barat, et en breu temps vos perdretz la beltat.

Si bien me apartáis, mala dama, de vos, no es razón para que me aparte de canto ni de solaz, pues daría a entender estar triste de lo que estoy contento. Estuve triste, pero ahora me arrepiento, pues he aprendido con vuestro ejemplo cómo puedo cambiar fácilmente mi voluntad; por lo que ahora canto de lo que he llorado. Yo he llorado, y el mayor motivo me viene de tal que no se irá cantando porque, aunque va presumiendo de ello, no es para mi vergüenza ni daño ni para ella honor ni provecho. Si me cambió neciamente por él, bien pronto lo cambiará a él más locamente, por lo que le guardo rencor por este cambio, pues ella cambiará hasta que haya cambiado el corazón. Mala dama, nunca imaginé que, si os perdía, no lo tuviera como un mal, pues la acogida, de la que tanto sabíais, la gentil conversación y la amable respuesta os hacían agradable por encima de las demás; pero ahora la locura os quita la acogida, la gentil conversación se ha convertido en engaño y en breve tiempo perderéis la belleza.

_____________________________ 9 RIQUER, Isabel - La Mala Cansó provenzal, fuente del Maldit catalán, Barcelona, 1997, p. 112. 10 ibidem, p. 113.

Page 7: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

6

Mala dompna, faich m'avetz enojos, e mal dizen, don non agrá talan, q'ieu conosc ben c'a mal m'o tomaran e qe meins n'er prezada ma chanssos. Mas ieu aurai volqut tan longamen vostre voler, don aras mi repen, c'aissi m'era de cor en us tomat: no sai dir sen que vos fassatz foldat. Tant cum hom fai so que deu, es hom pros, et tant leials cum se garda d'engan; per mi-US o dic que vos lauzav'antan, qand era-1 digz vertadiers e-1 faitz bos. Ges per aisso nom devet dir q'ieu men sitot eras non os tenc per valen, car qui laissa so q'a gen comenssat non a bon pretz per acó q'es passat. Adreich fora, sitot non es razos, que si dompna fezes ren malestan, c'om lan celes, e l ben traisses enan, mas jes eras non es aital sazos! Per qe-us devetz gardar de faillimen, a vos o dic, de totas o enten, que si faitz mal, ja non sera celat, anz en vol hom plus diré de vertat. Mala dompna, lo cors mi part em fen qan mi membra del bell acuilhimen, qan vos diest lo baissar car comprat per q'ieus rendiei lo fals anels veirat. Reis d'Aragon, domnejan e meten, e conqueren, conqueretz pretz valen, e tenetz o si com es comensat; si non o faitz, perdut n'auretz lo grat.

Mala dama, me habéis hecho enojoso y maldiciente, de lo que no tenía intención, porque conozco bien que me lo tomarán a mal y que mi canción será menos celebrada. Pero durante tanto tiempo quise [hacer] vuestra voluntad, de lo que ahora me arrepiento, que gustosamente se me había convertido en costumbre: no sé decir nada sensato que vos no volváis en locura. Mientras uno hace lo que debe es hombre digno, y es leal mientras se guarda de engaño; por mí os lo digo, que antaño os alababa, cuando la palabra era veraz y el hecho bueno. No pof ello me debéis decir que miento Aunque ahora no os tengo por valiosa, pues quien abandona lo que ha empezado bien no adquiere buen mérito de lo que ya ha pasado. Sería justo, aunque no razonable, que si una dama hiciera algo inconveniente, ello fuera ocultado y se ostentara lo bueno, pero ahora esto no es oportuno. Os debéis guardar de [cometer] falta; a vos lo digo y lo entiendo para todas, pues si obráis mal, ahora no será ocultado, pues hay el propósito de decir la verdad. Mala dama, se me parte y se me hiende el corazón al acordarme de la buena acogida, cuando diste el beso comprado caro por el que os devolví el falso anillo de cristal. Rey de Aragón, cortejando, gastando y conquistando conquistaréis valioso mérito, y seguid como habéis comenzado. Si no lo hacéis, perderéis la gratitud.

Tradução para Castelhano por Isabel de Riquer: http://e-spacio.uned.es/fez/eserv.php?pid=bibliuned:Llcgv-12CAFAA7-A8DD-B95E-9D33-397559F5D36E&dsID=La_Mala.pdf Nota: negritos e sublinhados nossos.

Verifiquemos se o poema de Gui d’ Ussel responde afirmativamente aos parâmetros exigidos por Isabel Riquer. Logo no primeiro verso, a dama é acusada de se ter afastado do sujeito poético, ao mesmo tempo que é utilizado “o insulto mais frequente nos escritores misóginos latinos e no vocabulário jurídico-feudal”,11 a expressão mala dompna (Si bem partetz, mala dompna, de vos); contudo não se expõem os motivos da mudança dos sentimentos da dama. Assim, pode-se dizer que se cumprem os dois primeiros parâmetros, embora a linguagem utilizada não se possa qualificar de dura, se estabelecermos a comparação com outros cantares, como, por exemplo, os de Raimon de Miraval, a seguir apresentados: _____________________________ 11 ibidem, p. 113.

Page 8: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

7

avol soudad'a midons resseubuda, quar per aver s'es de bon pretz moguda, que, s'ieu saupes per aver fos venguda, ma sondada ne pogr'aver avuda. (Raimon de Miraval, Chansonetafarai.Vencut, 406, 21 vv. 21-24). Chansoneta farai, Vencut, Pus vos m'a rendut Rossilhos, E sapchatz que nos em cregut, Pus no vim vostres companhos, D'un drut novelh, don tota gens ressona Que midons es a semblan de leona! Ar sai que-s tocan las peiras d'Alzona, Pus premiers pot intrar selh que mais dona. (Raimon de Miraval, Chansonetafarai.Vencut, 406, 21 vv. 1-8).

Vil soldada ha recibido mi dama, pues por dinero se ha apartado de buen mérito, y si yo hubiese sabido que se vendía por dinero, ella podría haber conseguido mi soldada. 13 Haré una cancionita, Vencut, pues el Rosellón os ha devuelto a mi, y sabed que desde que no vemos a vuestros compañeros, nos hemos acrecido con un nuevo amante, del que toda la gente habla, pues mi dama es parecida a una leona. Ahora sé que se tocan las piedras de Alzona, pues qien más da puede entrar el primero. 14

Nota: negritos nossos.

A censura pública (parâmetro III) também é visível logo a seguir (vv. 2-3), e na sexta cobla (vv. 47-48) do cantar de Gui d’ Ussel. O sujeito poético não vê qualquer razão para deixar de cantar e obter com isso consolo, e por outro lado, já que a senhora procedeu mal, não poderá deixar de dizer a verdade (non es razos q'ieu me parta de chan ni de solatz, que si faitz mal, ja non sera celat,/anz en vol hom plus diré de vertat.). Quanto ao abandono do serviço amoroso (parâmetro IV) – que completa o conjunto de parâmetros exigidos por Isabel Riquer para a classificação de um cantar como mala cansó –, os versos 13 e 14 são disso testemunho. O sujeito poético censura a senhora e alegra-se em dizê-lo cantando publicamente e avisa-a: Si bem camjet per lui nesciamen,/li camjara ben leu plus follamen. E não deixa de aproveitar para, duma forma um pouco cruel, lhe deixar um mau agoiro, a perda da beleza: et en breu temps vos perdretz la beltat. (v. 24). Concluindo, parece poder afirmar-se que o cantar Si be-m partetz, de Gui d'Ussel, pode classificar-se como mala cansó, se considerarmos os requisitos de Isabel Riquer. No entanto, a linguagem utilizada não é tão directa e não adquire a dureza que é visível em cantares de outros trovadores, como os de Raimon de Miraval, acima referidos, ou o de Gaucelm Faidit, a seguir apresentado: Q'ieun sai una q'es de tant franc usatge c'anc non gardet honor sotz sa centura -sieus es lo tortz s'ieu en dic vilanatge!- qe, senes geing e senes cobertura, fai a totz vezer cum poing en se deschazer- E dompna q'ab tans s'essaia non cuich ja que m'alezer, que ja de liéis ben retraia, ni-m vuoill qe-m deia eschazer. (Gaucelm Faidit, Si anc nuills hom per aver fin coratge, 167, 54, estrofa VI).

Pues sé de una que es de costumbres tan liberales que no preservó el honor por debajo de su cinturón, -suya es la culpa si digo esta vileza- pues sin ingenio ni secreto hace ver a todos como se esfuerza en su rebajamiento. Y de una dama que lo prueba con tantos no creo que me guste decir nada bueno de ella ni creo que me convenga. 15

_____________________________ 13 ibidem, p. 113. 14 RIQUER, Martín – Los trovadores-Historia literaria y textos – Tomo II, 1ª ed., Coléccion Letras e Ideas, Editorial Ariel, 1983 (1ªed., 1975), p. 988, 989. 15 RIQUER, Isabel - La Mala Cansó provenzal, fuente del Maldit catalán, Barcelona, 1997, p. 117.

Page 9: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

8

4. A mala cansó na LPGP. Como acima referimos, na LPGP existem 24 cantigas de amor, num total de 1691 cantares, classificadas, atendendo à temática da composição, contendo o motivo da mala cansó. 16 Dentro destes, e no sentido de avaliarmos a existência de características afins às malas cansós provençais, escolhemos as cantigas de amor de três trovadores, Airas Moniz d’Asme, representante da 1ª geração de trovadores, e João Soares Somesso e Fernão Pais de Tamalancos, da 2ª geração. 17 A cantiga deste último, Con vossa graça, mia senhor, tem a particularidade de ser classificada como “cantiga de amor (mot. da mala cansó, do comjat e da chanson de change)”.18

Airas Moniz d’Asme João Soares Somesso Fernão Pais de Tamalancos Pois mi non val d'eu muit'amar a mia senhor, nen a servir, nen quan apost'eu sei negar o amor, que lh'hei, e a'ncobrir a ela que me fez perder, que mi o non poden entender, ja eu chus non a negarei; vel saberán de quen tort'hei: Da que ha melhor semelhar de quantas no mund'home vir, e máis manso sabe falar das que home falar oír; non vo-la hei chus a dizer... quen-quer x'a pode entender; ja chus seu nome non direi; ca a feito ja mi a nomeei! E quen ben quiser trastornar per todo o mundo, e ferir, mui festinho xi a pod'achar; ca, por vos home non mentir, non ha ela tal parecer con que s'assí possa asconder. Per como a eu dessinei, achá-la-an, cousa que sei! Os que me soían coitar foi-lhes mia senhor descobrir. Ja mi ora leixarán folgar, ca lhis non podía guarir, ca ben lhe-la fiz conhocer, porque me non quis ben fazer! E tenho que ben me vinguei, pois-la en concelho averiguei! LPGP-13,2 (B 6).

Agora m'ei eu a partir de mia senhor, e d'aver ben me partirei poi-la non vir'. Mais per quen m'aqueste mal ven en tamanha cuita será por én migo que morrerá, e non se pode guardar én. E pois me d'ela faz partir, non Ihe quero ja soffirer ren, nen quer' eu ela consentir quanto mal me faz. E por én un vassalo soo que á, de pran, de morte perdé-l’-á por esta cuita en que me ten. Pero sei eu ca ren non dá ela por est' ome perder, mais per sa morte saberá! E se Ih'eu podess(e) al fazer, por aqueste mal que me faz, al Ihe faria; mais non praz a Deus de m'én dar o poder. E pois me Deus poder non dá De me per al-ren defender, Est’ averei a fazer já; E ela bem pod’ entender Que esta morte bem me jaz, Ca non poss’ eu viver en paz Enquanto lh’ est’ ome viver’! LPGP-78,1 (A 18, B 111)

Con vossa graça, mia senhor fremosa, ca me quer'eu ir e venho-me vos espedir, porque mi fostes traedor: ca, havendo-mi vós desamor, u vos amei, sempr'a servir, des que vos vi, e des entón, m'houvestes mal no coraçón. Pero de vós é a min peor, porque vos vej'assí falir: que eu ben poderei guarir oimais sen vós, ca mui milhor dona ca vós hei por senhor e que non sabe assí mentir; que fara adur tal traĩçón sobre seu home, sen razón. E veeredes qual amor vos eu fazía, pois partir me vin de vós; e descobrir- -vos-hei dun voss'entendedor vilão, de quen vós sabor havedes, e a quen pedir foste-la cinta; por én non vos amarei nulha sazón. LPGP-46,1 (B 74)

_____________________________ 16 Ver Anexo I. 17 MIRANDA, José Carlos / OLIVEIRA, António Resende de – “A segunda geração de trovadores galego-portugueses: temas, formas e realidades”, In: Medioevo Y Literatura. Actas del V Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, vol. III, Granada, 1995. 18 LPGP, p. 310.

Page 10: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

9

A primeira diferença, evidente a olho nu, entre estes cantares da LPGP e o cantar provençal de Gui d’ Ussel é a extensão dos respectivos cantares. Este último, é constituído por seis coblas unissonans de oito versos e duas tornadas de quatro versos cada uma, num total de 56 versos com a estrutura rimática a10 b10 b10 a10 c10 c10 d10 d10. Em comparação, os cantares da LPGP são bastante mais modestos:

Airas Moniz d’Asme João Soares Somesso Fernão Pais de Tamalancos LPGP-13,2 (B 6). • Cantiga de mestria; • 4 coblas unissonans; • Estrutura rimática:

o a8 b8 a8 b8 c8 c8 d8 d8

LPGP-78,1 (A 18, B 111) • Cantiga de mestria; • 4 coblas dobles; • Estrutura rimática:

o a8 b8 a8 b8 c8 c8 b8

LPGP-46,1 (B 74) • Cantiga de mestria; • 3 coblas unissonans; • Estrutura rimática:

o a8 b8 b8 a8 a8 b8 c8 c8 Para além deste aspecto formal, não muito importante para este nosso estudo, há outra diferença igualmente evidente, mas agora de relevar, pois do âmbito da linguagem utilizada: a ausência do insulto directo, mala dompna, um dos parâmetros, (o segundo), exigidos por Isabel Riquer para a sua classificação da mala cansó (ver pag. 5). De facto, a linguagem destes cantares galego-portugeses está bem longe da dureza daqueles outros provençais. Uma consulta rápida ao Cancioneiro da Ajuda (edição crítica e comentada por Carolina de Vasconcelos, 1904) mostra que o lexema mala não aparece uma única vez, e o lexema maa, só ocorre duas vezes: a primeira em nota ao cantar de amigo Amigu’, e non vos nembrades (B 702, V 303) e uma outra no verso 13 do cantar de escárnio, de autor anónimo, O Marot aja mal-grado (B 2, L 2). Por outro lado, lexemas das famílias de vingar ou trair contam com muito poucas ocorrências. Passemos agora a analisar de perto cada um dos cantares galego-portugueses. Convém, contudo, que recordemos a definição de mala cansó proposta na LPGP:

• “Amor (mot. da mala cansó): Modalidade temática da cantiga de amor na que o poeta se queixa amargamente do desdén da dama ou bem culpa a Deus ou a Amor da sua desventura amorosa (p. ex., 25,124 ou 120,46). Às veces, estas composicións chegan a ser verdadeiros escarnios (contra Deus, principalmente), como, p. ex., 56.1 ou 125,30, que serían mais bem escarnios persoais (mot. da mala cansó).” 18

O cantar Pois mi non val d'eu muit'amar, de Airas Moniz d’Asme, parece, segundo José Carlos Miranda, levantar alguns incómodos problemas de fixação crítica.19 Daqui a necessidade de ter algum cuidado na sua classificação. Por outro lado, atendendo aos parâmetros de Isabel Riquer, não se pode dizer que existe uma acusação directa à senhora ou um insulto, muito menos uma linguagem dura. Bem pelo contrário, o cantar surge como um panegírico à beleza da senhora (Da que ha melhor semelhar / de quantas no mund'home vir,/ e máis manso sabe falar / das que home falar oír, vv. 9-12), de tal forma que o sujeito poético nem precisaria de dizer o nome dela, pois qualquer um conseguiria, pelo desenho feito (Per como a eu dessinei, / achá-la-an, cousa que sei!, vv. 23-24), facilmente identificá-la. E a quebra do segredo da relação amorosa, pela mesma razão não é concretizada (vv. 31-32). Apenas parece haver a queixa por agravos da senhora (saberán de quen tort'hei, v. 8), mas não são especificados, e o abandono do serviço amoroso (vv. 25-28), mas o poeta não diz que encontrou uma senhora melhor. Assim, atendendo ao exposto e considerando os vários parâmetros de qualificação, dificilmente se poderá classificar este cantar como mala cansó. Os cantares de João Soares Somesso e de Fernão Pais de Tamalancos apresentam diferenças substanciais relativamente ao de Airas Moniz d’Asme. Não será por acaso, pois aqueles dois trovadores pertencem a gerações diferentes e com diferentes condicionamentos político-sociais. _________________________________ 18 LPGP, p. 27. 19 MIRANDA, José Carlos – Aurs mesclatz ab argen – Sobre a primeira geração de trovadores galego-portugueses, Porto, Edições Guarecer, 2004, p. 82.

Page 11: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

10

Lembremos, a propósito, o texto de José Carlos Miranda e António Resende de Oliveira, fundamental para a melhor compreensão destes cantares:

“De facto, há algo de paradoxal na linguagem dos cantares de amor galego-portugueses. Se, por um lado, vemos a relação de amor exprimir-se em moldes claramente feudo-vassálicos, é bem verdade que os textos, uns após outros, nos vão revelando a impossibilidade de concretização dessa mesma relação, em virtude da completa incapacidade de uma das partes de cumprir os deveres que decorreriam de um contrato vassálico: referimo-nos, naturalmente, à parte feminina.” 20

O cantar de João Soares Somesso, Agora m'ei eu a partir, releva o motivo do abandono do serviço amoroso (Agora m'ei eu a partir / de mia senhor, e d'aver ben / me partirei poi-la non vir', vv. 1-3) e a linguagem usada pelo sujeito poético manifesta amargura pelo facto (vv. 7-17). O lexema morte, ou afins, aparecem uma vez em cada cobla (vv. 7, 13, 17 e 26); e o lexema mal, nas três primeiras coblas (vv. 4, 11 e 20). De facto, parece que o sujeito poético está ameaçado de morte e disso acusa a sua senhor. Este argumento, contudo, não é só por si suficiente para a classificação como mala cansó, uma vez que o motivo da morte do sujeito poético está presente em muitas dos cantares de amor. Assim, existe a acusação à senhora, existe a linguagem dura, mas não propriamente o insulto; a ruptura com a dama é proclamada em alta voz. Parece assim poder enquadrar-se este cantar na classificação de mala cansó, quer atendendo aos requisitos de Isabel Riquer, quer à definição da LPGP. O cantar Com vossa graça mia senhor, de Fernão Pais de Tamalancos, é qualificado na LPGP como mot. mala cansó, mot. do comjat e mot. da chanson de change. 21 Esta classificação tripla revela, desde logo, os problemas que surgem sempre que se aumenta o detalhe duma definição. A lupa permite ver mais detalhes, mas perde-se a visão do todo. Logo nos primeiros versos o sujeito poético anuncia a sua intenção de partir (ca me quer’eu ir / e venho-me vos espedir, vv. 2-3; pois partir / me vin de vós, vv.18-19), (mot. do comjat) e os motivos de tal atitude (mot. da chanson de change), (vv. 1-8). Assim, existe a acusação a uma dama por uma acção concreta (mi fostes traedor: / ca, havendo-mi vós desamor, vv. 4-5); a linguagem é directa, mas longe do insulto dos trovadores provençais. A censura é feita publicamente, pois expressa no cantar, e é enunciada a intenção de quebrar o segredo amoroso (e descobrir / -vos-hei dun voss'entendedor / vilão, de quen vós sabor / havedes, e a quen pedir / foste-la cinta; vv. 19-23); estes últimos versos são particularmente duros e insultuosos; daqui, a ameaça da quebra do segredo e o consequente abandono do serviço amoroso (por én non vos amarei nulha sazón, vv. 23-24). À semelhança do cantar de Somesso, atrás analisado, este cantar de Tamalancos também nos parece poder ser qualificado como mala cansó, se atendermos aos critérios de Isabel Riquer, mas a tripla classificação da LPGP deixa-nos algumas reservas. Pelo exposto podemos constatar que a argumentação utilizada para fundamentar a classificação da LPGP, apoiada pela de Isabel Riquer, não parece assentar em bases muito sólidas. No sentido de melhor fundamentar as nossas conclusões iremos estudar seguidamente mais três cantares. O primeiro, Non sei dona que podesse (B 75, B1336, V943), de Fernão Pais de Tamalancos, classificado na LPGP como cantar de amor (mot. da chanson de change) 22; o segundo, de Nuno Eanes Cerzeo, Senhor, perdud’ei por vos já o coraçon23 (B 137), classificado na LPGP como cantar de amor (mot. da mala cansó e do comjat) 22; e o terceiro, deste último autor, Toda’-las gentes mi-a mi estranhas son24, classificado na LPGP como cantar de amor. _________________________________ 20 MIRANDA, José Carlos / OLIVEIRA, António Resende de – “A segunda geração de trovadores galego-portugueses: temas, formas e realidades”, In: Medioevo Y Literatura. Actas del V Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, vol. III, Granada, 1995, p. 10. 21 LPGP, p. 310. 22 LPGP, p. 311. 23 LPGP, p. 680. 24 LPGP, p. 682.

Page 12: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

11

Fernão Pais de Tamalancos Nuno Eanes Cerzeo Nuno Eanes Cerzeo

Non sei dona que podesse valé-la que eu amei, nen que eu tanto quisesse por senhor, das que eu sei, se a cinta non presesse, de que mi lh'eu despaguei: e por esto a cambei.

Pero mi ora dar quisesse quant'eu dela desejei e mi aquel amor fezesse, por que a sempr'aguardei, cuido que lho non quisesse, tan muito me despaguei dela, poi-la cinta achei. Nen ar sei prol que m'houvesse seu ben; e al vos direi: se a por atal tevesse, quando m'a ela tornei, juro que o non fezesse, ca tenho que baratei ben, pois me dela quitei, ca muito per hei a messe con melhor senhor; e sei de mí que a servirei. LPGP-46,5 (B 75, B1336, V 943) • Amor. Cantiga de mestria; • coblas unissonans; • Estrutura rimática: a7’ b7

a7’ b7 b7 • Finda: b7 b7 b7

Senhor, perdud' ei por vos ja o coraçon e sabor do mundo que soía eu aver. Sei que contra vos nulha ren que [me] non vai, nen Deus, [nen Amor], nen cousimento, nen al, nen (a) vossa mesura, nen [vosso] conhecer: e pois (a)ssi é, praz -mi con mia morte, ca non ei (eu) ja nunca d'aver per vos d 'este mund' al. Non sei eu ja no mundo conselho prender; (e) mais de mil cuides ja no coraçon cuidei; ca, pero mia vida mais podesse durar, vergonha i á d'assi antr' as gentes andar, pero (que) de min nen d'eles nenhun sabor ei; e sequer non ei (ja) razon que lhes apõer, quando me preguntan [por] que ei tan trist'andar. Con gran coita de vos direi -vo' -lo que farei: leixar quer' 'a tenra u vos sodes, senhor, [e] u eu de vos tan muito pesar prendi, e rogar [ei\ a Deus que se nembre de mi que vos fezestes perder do mundo sabor. E se me Deus quisess' oir, (a)lá morrerei u nunca mais (ja) vos sabiádes novas de mi. LPGP-104,8 (B 137) • Amor (mot. da mala cansó e do comjat);

cant. de mestria. • coblas singulars; • Estrutura rimática: a12 b12 c12 c12 b12 a12

c12

Toda-las gentes mi a mí estranhas son, e as terras, senhor, per u eu ando sen vós; e nunca d'al i vou pensando senón no vosso fremoso parecer; e cuid'en vós, como vos soio veer e quant'hei de ben eno meu coraçón. En nen ũa hora non poss'eu achar sabor sen vós, senón u vou cuidando en vós, pero van-me muit'estorvando os que mi van falando, senhor, en al; e eles non saben, que me fazen mal en me fazeren perder tan bon cuidar.

Estranho and'eu dos que me queren ben, e dos que viven migo, toda vía; ben como se os viss'eu aquel día primeiramente, punho de lhis fogir; e moir'eu, senhor, por me deles partir por en vós cuidar, ca non por outra ren. Vós me fazedes estranhar, mia senhor, todo de quanto m'eu pagar soía; ca pois eu cuid'en qual ben havería, se eu houvess'o voss'amor, e ar sei logu'i que nunca este ben haverei, de tod'al do mund'hei eu perdudo sabor. LPGP-104,11 (B 130) • Amor. Cantiga de mestria; • coblas singulars (rima b dobla); • Estrutura rimática: a 11 b10’ b10’

c11 a11.

Estudaremos primeiramente o cantar de Fernão Pais de Tamalancos, pois, embora a linguagem e temática utilizadas se aproximem da do seu outro cantar, anteriormente estudado (Con vossa graça, mia senhor), é classificado, todavia, de modo diverso. Na LPGP, como cantiga de amor (de mestria). Diferentemente, Rodrigues Lapa não teve qualquer dúvida em inclui-la nas suas Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer (Lisboa, 1995, Edições Sá de Costa, p. 101). Porquê? Qual a razão desta diferente classificação? È certo que, e seguindo a lição de Jorge Alves Osório, muitas das cantigas escarninhas não são propriamente sátiras por não comportarem uma intenção clara de denunciar vícios e corrupções, como em regra o género implica,25 mas, a duplicidade de registos e aspectos inerentes a essa poesia, estão por um lado dependentes do código da cortesania amorosa e por outro da realidade do contexto social. 26

_________________________________ 25 OSÓRIO, Jorge Alves – “Cantiga de Escarnho” Galego-Portuguesa: Sociologia ou Poética, in Da Cítola ao Prelo, Porto, Granito, 1998, p. 16. 26 ibidem, p. 17.

Page 13: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

12

Fernão Pais de Tamalancos (A) Fernão Pais de Tamalancos (B) Con vossa graça, mia senhor fremosa, ca me quer'eu ir e venho-me vos espedir, porque mi fostes traedor: ca, havendo-mi vós desamor, u vos amei, sempr'a servir, des que vos vi, e des entón, m'houvestes mal no coraçón. Pero de vós é a min peor, porque vos vej'assí falir: que eu ben poderei guarir oimais sen vós, ca mui milhor dona ca vós hei por senhor e que non sabe assí mentir; que fara adur tal traĩçón sobre seu home, sen razón. E veeredes qual amor vos eu fazía, pois partir me vin de vós; e descobrir- -vos-hei dun voss'entendedor vilão, de quen vós sabor havedes, e a quen pedir foste-la cinta; por én non vos amarei nulha sazón.

Non sei dona que podesse valé-la que eu amei, nen que eu tanto quisesse por senhor, das que eu sei, se a cinta non presesse, de que mi lh'eu despaguei: e por esto a cambei.

Pero mi ora dar quisesse quant'eu dela desejei e mi aquel amor fezesse, por que a sempr'aguardei, cuido que lho non quisesse, tan muito me despaguei dela, poi-la cinta achei. Nen ar sei prol que m'houvesse seu ben; e al vos direi: se a por atal tevesse, quando m'a ela tornei, juro que o non fezesse, ca tenho que baratei ben, pois me dela quitei, ca muito per hei a messe con melhor senhor; e sei de mí que a servirei.

Analisemos então estes dois cantares de Tamalancos. Relembremos que o cantar (A), como mais acima referimos (cf. p.8), tem a particularidade de ser classificado como cantiga de amor (mot. da mala cansó, do comjat e da chanson de change), enquanto que o cantar (B) é classificado simplesmente como cantiga de amor (de mestria). No entanto, em ambos os cantares podemos ver motivos semelhantes, relevados por nós a negrito, a saber: (A) (B) • O motivo do câmbio de

senhor

“venho-me vos espedir,/ porque mi fostes traedor” (vv. 3-4) “ca mui milhor/ dona ca vós hei por senhor” (vv. 12-13) “e a quen pedir/ foste-la cinta; por én non/ vos amarei nulha sazón.” (vv. 22-24)

“se a cinta non presesse,/ de que mi lh'eu despaguei:/ e por esto a cambei..” (vv. 6-7) “ca muito per hei a messe/ con melhor senhor;” (vv. 22-23) “tan muito me despaguei/ dela, poi-la cinta achei” (vv. 13-14)

Page 14: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

13

Como podemos verificar, consultando o quadro anterior, os motivos aduzidos pelo sujeito poético para a decisão de trocar de senhor são muito semelhantes. A cinta, no cantar (A) oferecida pela senhor, no cantar (B) recebida, é o catalisador da reacção de rejeição. Devemos contudo relevar que no cantar (A) o sujeito poético demonstra uma atitude mais incisiva quer pela linguagem utilizada (traedor (v. 4), desamor (v. 5)) quer pelo anúncio, logo no segundo e terceiro versos, da sua decisão de abandonar a sua senhor, feita de um modo directo e objectivo. O sujeito poético do cantar (B) parece mostrar-se um tanto pesaroso com a decisão tomada. Até dá a sensação, na segunda cobla, que talvez se ele amasse verdadeiramente a dona lhe viesse a perdoar (cuido que lho non quisesse,/ tan muito me despaguei / dela, poi-la cinta achei. (vv. 12-14)). Uma diferença importante entre os dois cantares reside na intenção, expressa pelo sujeito poético do cantar (A), da quebra do segredo amoroso, regra de oiro do amor trovadoresco (e descobrir- / -vos-hei dun voss'entendedor / vilão, de quen vós sabor / havedes (vv. 19-22)). Exceptuando este último aspecto, parece-nos não existirem diferenças substanciais que justifiquem a classificação diferenciada atribuída quer na LPGP quer por Rodrigues Lapa. Passemos agora ao estudo dos cantares de Nuno Eanes Cerzeo, trovador galego activo na primeira metade do século XIII, contemporâneo, 27 portanto, de Fernão Pais de Tamalancos.

Nuno Eanes Cerzeo (A) Nuno Eanes Cerzeo (B)

Senhor, perdud' ei por vos ja o coraçon e sabor do mundo que soía eu aver. Sei que contra vos nulha ren que [me] non vai, nen Deus, [nen Amor], nen cousimento, nen al, nen (a) vossa mesura, nen [vosso] conhecer: e pois (a)ssi é, praz -mi con mia morte, ca non ei (eu) ja nunca d'aver per vos d 'este mund' al. Non sei eu ja no mundo conselho prender; (e) mais de mil cuides ja no coraçon cuidei; ca, pero mia vida mais podesse durar, vergonha i á d'assi antr' as gentes andar, pero (que) de min nen d'eles nenhun sabor ei; e sequer non ei (ja) razon que lhes apõer, quando me preguntan [por] que ei tan trist'andar. Con gran coita de vos direi -vo' -lo que farei: leixar quer' 'a tenra u vos sodes, senhor, [e] u eu de vos tan muito pesar prendi, e rogar [ei\ a Deus que se nembre de mi que vos fezestes perder do mundo sabor. E se me Deus quisess' oir, (a)lá morrerei u nunca mais (ja) vos sabiádes novas de mi.

Toda-las gentes mi a mí estranhas son, e as terras, senhor, per u eu ando sen vós; e nunca d'al i vou pensando senón no vosso fremoso parecer; e cuid'en vós, como vos soio veer e quant'hei de ben eno meu coraçón. En nen ũa hora non poss'eu achar sabor sen vós, senón u vou cuidando en vós, pero van-me muit'estorvando os que mi van falando, senhor, en al; e eles non saben, que me fazen mal en me fazeren perder tan bon cuidar.

Estranho and'eu dos que me queren ben, e dos que viven migo, toda vía; ben como se os viss'eu aquel día primeiramente, punho de lhis fogir; e moir'eu, senhor, por me deles partir por en vós cuidar, ca non por outra ren. Vós me fazedes estranhar, mia senhor, todo de quanto m'eu pagar soía; ca pois eu cuid'en qual ben havería, se eu houvess'o voss'amor, e ar sei logu'i que nunca este ben haverei, de tod'al do mund'hei eu perdudo sabor.

Analisemos agora estes dois cantares de Cerzeo. Relembremos que o cantar (A), como mais acima referimos (cf. p. 11), tem a particularidade de ser classificado como cantiga de amor (mot. da mala canso e do comjat), enquanto que o cantar (B) é classificado simplesmente como cantiga de amor (de mestria). Tal como acontece com os cantares de Tamalancos, também nestes cantares podemos ver motivos semelhantes (relevados por nós a negrito) bem como a proximidade da linguagem utilizada. ________________________________ 27 LPGP, p.674.

Page 15: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

14

(A) (B) • A “perda do sabor de

mundo”

“Senhor, perdud' ei por vos ja o coraçon e sabor do mundo que soía eu aver.” (vv. 1-2) “pero (que) de min nen d'eles nenhun sabor ei; “ (v. 12) “que vos fezestes perder do mundo sabor.” (v. 19)

“En nen ũa hora non poss'eu achar sabor sen vós” (vv. 7-2) “de tod'al do mund'hei eu perdudo sabor.” (vv. 24)

• O sentimento de

estranheza perante os outros e o mundo

“vergonha i á d'assi antr' as gentes andar” (v. 11)

“Toda-las gentes mi a mí estranhas son, / e as terras, senhor, per u eu ando / sen vós” (vv. 1-3) “Estranho and'eu dos que me queren ben, / e dos que viven migo” (vv. 13-14) “Vós me fazedes estranhar, mia senhor, / todo de quanto m'eu pagar soía” (vv.19-20)

• A morte como último

consolo e destino

“praz -mi con mia morte, ca non / ei (eu) ja nunca d'aver per vos d 'este mund' al.” (vv. 6-7)

“e moir'eu, senhor, por me deles partir / por en vós cuidar, ca non por outra ren.” (vv. 17-18)

Como se demonstra pelo quadro acima podemos considerar os dois cantares de Cerzeo muito aproximados quer pelos topoi tratados, quer mesmo pelo tom triste e lento que a métrica escolhida (cf. p. 11) acentua. A diferença fundamental reside no motivo do comjat (Con gran coita de vos direi -vo' -lo que farei: / leixar quer' 'a tenra u vos sodes, senhor (vv.15-16)) visível no cantar (A), que não se encontra no cantar (B). Então qual a razão de uma classificação diferenciada entre estes dois cantares? Não encontramos acusações de más acções, insultos, dureza na linguagem ou vitupério público; apenas o abandono do serviço amoroso (comjat) no cantar (A). Assim, consideramos que as diferenças assinaladas não constituem motivo suficiente para a classificação como mala cansó do primeiro cantar, quer pelos parâmetros de Isabel Riquer quer pelos da LPGP.

Page 16: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

15

5. Conclusão. Considerando tudo o que acima foi exposto, ficam-nos algumas dúvidas quanto à utilidade da subclassificação feita na LPGP. Não sabemos se estaria na mente dos investigadores a classificação de mala cansó, tal como Isabel Riquer a pensava. Parece claro, que a linguagem dos cantares galego-portugueses não se aproxima, quanto à dureza, dos trovadores provençais, embora os critérios propostos por aquela sejam de alguma forma cumpridos nos cantares de Somesso e Tamalancos (Con vossa graça, mia senhor). Se apenas se considerou a temática da composição, então não se evita a dupla ou a tripla classificação, embora se possa aceitar que, assim, se facilitará a vida do leitor. Mas se considerarmos o enquadramento do cantar Non sei dona que podesse, feito por Rogrigues Lapa, como de Escárnio ou de Mal Dizer, as interrogações, quanto às metodologias adoptadas para uma eventual classificação, acentuam-se significativamente. Neste sentido, e parecendo confirmar as nossas dúvidas, não nos parece justificável a classificação mala cansó no cantar Senhor, perdud' ei por vos ja o coraçon, de Nuno Eanes Cerzeo. A mala cansó provençal não morreu com Gui d’ Ussel, Raimon de Miraval, Gaucel Faidit, para só citar os que mais de perto aqui referenciamos. Para além dos textos, as suas melodias foram conservadas e o seu estrofismo e rimas foram utilizadas por trovadores muito posteriores. Constituiu, dum modo particular, o precedente do “maldit-comiat” catalão, género cultivado por pelos poetas catalães dos séculos XIV e XV, aqui com maior virulência que em Gui d’ Ussel 28 _________________________________ 28 RIQUER, Martín – Los trovadores-Historia literaria y textos – Tomo II, 1ª ed., Coléccion Letras e Ideas, Editorial Ariel, 1983 (1ªed., 1975), p. 1017.

Page 17: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

16

Apêndice I – Malas cansós – Airas Moniz d’Asme, João Soares Somesso e Fernão Pais de Tamalancos

Airas Moniz d’Asme Adaptação ao Português moderno Pois mi non val d'eu muit'amar a mia senhor, nen a servir, nen quan apost'eu sei negar o amor, que lh'hei, e a'ncobrir a ela que me fez perder, que mi o non poden entender, ja eu chus non a negarei; vel saberán de quen tort'hei: Da que ha melhor semelhar de quantas no mund'home vir, e máis manso sabe falar das que home falar oír; non vo-la hei chus a dizer... quen-quer x'a pode entender; ja chus seu nome non direi; ca a feito ja mi a nomeei! E quen ben quiser trastornar per todo o mundo, e ferir, mui festinho xi a pod'achar; ca, por vos home non mentir, non ha ela tal parecer con que s'assí possa asconder. Per como a eu dessinei, achá-la-an, cousa que sei! Os que me soían coitar foi-lhes mia senhor descobrir. Ja mi ora leixarán folgar, ca lhis non podía guarir, ca ben lhe-la fiz conhocer, porque me non quis ben fazer! 23 E tenho que ben me vinguei, pois-la en concelho avoguei! LPGP-13,2 (B 6).

[Já que não me vale eu muito amar a minha senhora, nem a servir, nem apropriadamente sei negar o quanto amor que lhe tenho, e a encobrir a ela que me fez perder o que não podem entender, daqui em diante não mais a ocultarei, ao menos saberão de quem tenho agravo.] [Da que tem melhor aspecto de quantas um homem no mundo vir, e das, que um homem pode ouvir falar, que sabe falar mais meigo; sobre ela não vos direi mais... se qualquer pessoa a pode conhecer; daqui em diante não direi mais o seu nome, porque, na verdade, agora a nomeei!] [E quem quiser trastornar (fazer voltar atrás ou ao antigo estado) e rebuscar o mundo inteiro, muito depressa a pode achar; porque, para vos não mentir, ela não tem um aspecto tal que assim possa esconder-se. Pela maneira como eu a desenhei, sei que acha-la-ão.] [Os que me costumavam atormentar, a minha senhora revelou-os. Daqui em diante deixar-me-ão descansar, porque não podia livrar-me deles, porque muito lhe fiz conhecer, porque não me quis recompensar! E assim muito me vinguei pois a descobri publicamente!]

_________________________________ 23 A noção de ben fazer remete ao domínio do occitânico onde o benfach era corrente.

Page 18: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

17

Apêndice I – Malas cansós – Airas Moniz d’Asme, João Soares Somesso e Fernão Pais de Tamalancos

João Soares Somesso Adaptação ao Português moderno Agora m'ei eu a partir de mia senhor, e d'aver ben me partirei poi-la non vir'. Mais per quen m'aqueste mal ven en tamanha cuita será por én migo que morrerá, e non se pode guardar én. E pois me d'ela faz partir, non Ihe quero ja soffrer ren, nen quer' eu ela consentir quanto mal me faz. E por én un vassalo soo que á, de pran, de morte perdé-l’-á por esta cuita en que me ten. Pero sei eu ca ren non dá ela por est' ome perder, mais per sa morte saberá! E se Ih'eu podess(e) al fazer, por aqueste mal que me faz, al Ihe faria; mais non praz a Deus de m'én dar o poder. E pois me Deus poder non dá De me per al-ren defender, Est’ averei a fazer já; E ela bem pod’ entender Que esta morte bem me jaz, Ca non poss’ eu viver en paz Enquanto lh’ est’ ome viver’! LPGP-78,1 (A 18, B 111)

[Agora tenho de afastar-me da minha senhora e da recompensas, pois depois de partir me afastarei e não a verei mais. Mas, de quem este mal me vem, ficará em tamanha dor que por este motivo morrerá comigo, e disso não se pode guardar.] [E pois que dela me afasta, não quero daqui em diante sofrer por ela, nem quero tolerar o mal que ela me fez. E por isso, somente um vassalo que tem, na verdade, perdê-lo-á mortalmente por esta dor em que me tem.] [Mas eu sei que ela não dá importância a perder este homem, mas terá conhecimento da sua morte! E se eu pudesse fazer-lhe outra coisa, por este mal que me faz, outra coisa lhe faria; mas não apraz a Deus de me dar o poder disso.] [E pois que Deus não me dá o poder de me proteger doutro modo, por isso farei isto; e ela bem pode compreender que esta morte bem me convém, porque eu não posso viver em paz enquanto este homem viver.]

Page 19: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

18

Apêndice I – Malas cansós – Airas Moniz d’Asme, João Soares Somesso e Fernão Pais de Tamalancos

Fernão Pais de Tamalancos Adaptação ao Português moderno Con vossa graça, mia senhor fremosa, ca me quer'eu ir e venho-me vos espedir, porque mi fostes traedor: ca, havendo-mi vós desamor, u vos amei, sempr'a servir, des que vos vi, e des entón, m'houvestes mal no coraçón. Pero de vós é a min peor, porque vos vej'assí falir: que eu ben poderei guarir oimais sen vós, ca mui milhor dona ca vós hei por senhor e que non sabe assí mentir; que fara adur tal traĩçón sobre seu home, sen razón. E veeredes qual amor vos eu fazía, pois partir me vin de vós; e descobrir- -vos-hei dun voss'entendedor vilão, de quen vós sabor havedes, e a quen pedir foste-la cinta; por én non vos amarei nulha sazón. LPGP-46,1 (B 74)

[Com vossa graça minha senhora formosa, porque me quero eu ir e venho me despedir de vós, porque me atraiçoastes; porque vós me odiais, onde vos amei, sempre a servir, desde que vos vi, e desde então, me causaste mal ao coração.] [Mas o que é para mim pior, porque vos vejo assim ser falsa: que eu bem poderei viver daqui em diante sem vós, porque muito melhor senhora que vós tenho por senhor e que não sabe assim mentir; que dificilmente fará, sem razão, tal traição ao seu homem.] [E vereis quão grande amor eu vos tinha, pois vim afastar-me de vós, e irei revelar um vosso amante vilão, a quem estimais, e a quem foste pedir o cinto; por isso não vos amarei em tempo algum.]

Page 20: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

19

Apêndice 2 – Cantares de Fernão Pais de Tamalancos e Nuno Eanes Cerzeo

Fernão Pais de Tamalancos Adaptação ao Português moderno Non sei dona que podesse valé-la que eu amei, nen que eu tanto quisesse por senhor, das que eu sei, se a cinta non presesse, de que mi lh'eu despaguei: e por esto a cambei. Pero mi ora dar quisesse quant'eu dela desejei e mi aquel amor fezesse, por que a sempr'aguardei, cuido que lho non quisesse, tan muito me despaguei dela, poi-la cinta achei. Nen ar sei prol que m'houvesse seu ben; e al vos direi: se a por atal tevesse, quando m'a ela tornei, juro que o non fezesse, ca tenho que baratei ben, pois me dela quitei, ca muito per hei a messe con melhor senhor; e sei de mí que a servirei. LPGP-46,5 (B 75, B1336, V 943)

[Não sei de dona, que eu amei, que eu tanto pudesse merecer ou que eu tanto quisesse por senhor, das que eu conheço, se não aceitasse a cinta com o que eu fiquei descontente dela e por isto a troquei.] [Mas embora me quisesse dar quanto eu dela desejei e me tivesse aquele amor pelo qual sempre esperei, penso que lhe não queria assim tanto pois fiquei muito descontente com ela, por lhe ter descoberto a cinta1.] [Também não sei que proveito poderia tirar do seu amor; se a soubesse capaz de tal indignidade juro que não tornaria a vê-la, como tornei procedi sensatamente,] 2 [pois daqui em diante tenho muitíssima vantagem com melhor senhora; 2 e sei que a servirei.]

Page 21: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

20

Apêndice 2 – Cantares de Fernão Pais de Tamalancos e Nuno Eanes Cerzeo

Nuno Eanes Cerzeo Adaptação ao Português moderno Senhor, perdud' ei por vos ja o coraçon e sabor do mundo que soía eu aver. Sei que contra vos nulha ren que [me] non val, nen Deus, [nen Amor], nen cousimento, nen al, nen (a) vossa mesura, nen [vosso] conhecer: e pois (a)ssi é, praz -mi con mia morte, ca non ei (eu) ja nunca d'aver per vos d 'este mund' al. Non sei eu ja no mundo conselho prender; (e) mais de mil cuides ja no coraçon cuidei; ca, pêro mia vida mais podesse durar, vergonha i á d'assi antr' as gentes andar, pêro (que) de miii nen d'eles nenhun sabor ei; e sequer non ei (ja) razon que lhes apõer, quando me preguntan [por] que ei tan trist' andar. Con gran coita de vos direi -vo' -lo que farei: leixar quer' 'a tenra u vos sodes, senhor, [e] u eu de vos tan muito pesar prendi, e rogar [ei] a Deus que se nembre de mi que vos fezestes perder do mundo sabor. E se me Deus quisess' oir, (a)lá morrerei u nunca mais (ja) vos sabiádes novas de mi. LPGP-104,8 (B 137)

[Senhor, por vós perdi o coração e o prazer do mundo que eu costumava ter. Sei que contra vós nenhuma coisa me vale, nem Deus, nem Amor, nem reflexão, nem outra coisa, nem a vossa generosidade, nem o vosso conhecer: e já que assim é, contento-me com a minha morte, porque eu de vós nunca poderei haver no mundo outra coisa.] [Eu não sei já no mundo aceitar conselho; e já pensei mais de mil cuidados no coração; pois embora a minha vida pudesse durar mais, existe a vergonha de andar assim por entre as gentes; (que) todavia não tenho nenhum prazer, de mim ou deles; e nem sequer tenho já motivo para os injuriar, quando me perguntam porque ando tão triste.] [Com grande dor de vós dir-vos-ei o que farei: deixar a terra onde vós estais, senhor, e onde eu de vós tanta dor recebi, e rogar a Deus que se lembre de mim porque vós me fizestes perder o prazer do mundo. E se Deus quisesse ouvir, lá morrerei onde nunca mais vós saberíeis notícias de mim.]

Page 22: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

21

Apêndice 2 – Cantares de Fernão Pais de Tamalancos e Nuno Eanes Cerzeo

Nuno Eanes Cerzeo Adaptação ao Português moderno Toda'- las gentes mi -a mi estranhas son, e as terras, senhor, per u eu ando sen vos; e nunca d'al i vou pensando se non no vosso fremoso parecer; e cuid' en vos, como vus soyo veer e quant' ei de ben eno meu coraçon. En nenhũa ora non poss' eu achar sabor sen vos, se non u vou cuidando en vos, pêro van-me muit' estorvando os que mi van falando, senhor, en al; e eles non saben, se me fazen mal en me fazeren perder tan bon cuidar. Estranho and' eu dos que me queren ben, e dos que viven migo, todavia; ben como se os viss' eu aquel dia primeiramente, punho de Ihis fogir; e moir' eu, senhor, por me d' eles partir por en vos cuidar, ca non por outra ren. Vos me fazedes estranhar, mia senhor, todo de quanto ni' eu pagar soía; ca pois eu cuid' en qual ben averia, se eu ouvess' o voss' amor, et ar sei logu' i que nunca este ben averei, de tod' al do mund' ei (eu) perdudo sabor. LPGP-104,11 (B 130)

[Todas as pessoas me são estranhas e as terras, senhor, por onde eu ando sem vós; e nunca a respeito de outra coisa vou pensando senão na vossa beleza; e penso em vós, com vos costumava ver e de quanto tenho de bem existe no meu coração.] [Em nenhum momento posso eu achar prazer sem vós, senão onde vou pensando en vós, todavia vão-me muito estorvando os que me vão falando, senhor, em outras coisas; e eles não sabem, se me fazem mal em me fazerem perder tão bons pensamentos.] [Arredado ando eu dos que me querem bem e dos que vivem comigo, todavia; tal como se os visse aquele dia pela primeira vez, luto para lhes fugir; e eu morro, senhor, por deles me afastar para pensar em vós, pois não para outra coisa.] [Vós fazeis-me afastar, minha senhor, de tudo quanto eu me costumava contentar; pois logo depois eu penso na recompensa que teria se eu tivesse o vosso amor, e também sei logo aí que nunca haverei esta recompensa, de todas as outras coisas no mundo perdi o prazer.]

Page 23: O motivo ou modalidade temática mala cansó na Lírica Profana Galego-Portugesa

22

BIBLIOGRAFIA BREA, M. (coord.) – Lírica profana galego-portuguesa, 2 vols., Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 1996. LAPA, M. Rodrigues - Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer (Lisboa, 1995, Edições Sá de Costa. MIRANDA, José Carlos – Aurs mesclatz ab argen – Sobre a primeira geração de trovadores galego-portugueses, Porto, Edições Guarecer, 2004. RIQUER, Martín – Los trovadores-Historia literaria y textos – Tomo II, 1ª ed., Coléccion Letras e Ideas, Editorial Ariel, 1983 (1ªed., 1975). OSÓRIO, Jorge Alves – “Cantiga de Escarnho” Galego-Portuguesa: Sociologia ou Poética, in Da Cítola ao Prelo, Porto, Granito, 1998. INTERNET Filologia e Lingüística Portuguesa, n. 3, p. 215-220, 1999. (http://fflch.usp.br/dlcv/lport/site/images/arquivos/FLP3/ResenhaGamboa1999.pdf), consultado em 2010-02-08. MIRANDA, José Carlos / OLIVEIRA, António Resende de – “A segunda geração de trovadores galego-portugueses: temas, formas e realidades”, In: Medioevo Y Literatura. Actas del V Congreso de la Asociación Hispánica de Literatura Medieval, vol. III, Granada, 1995, (do ficheiro disponibilizado on-line). RIQUER, Isabel - La Mala Cansó provenzal, fuente del Maldit catalán, Barcelona, 1997. (http://e-spacio.uned.es/fez/eserv.php?pid=bibliuned:Llcgv-12CAFAA7-A8DD-B95E-9D33-397559F5D36E&dsID=La_Mala.pdf), consultado em 2010-02-08.