O Movimento Feminista Brasileiro

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Revista Estudos Feministas ISSN: 0104-026X [email protected] Universidade Federal de Santa Catarina Brasil Galvão Adrião, Karla; Juracy Filgueiras Toneli, Maria; Weidner Maluf, Sônia O movimento feminista brasileiro na virada do século XX: reflexões sobre sujeitos políticos na interface com as noções de democracia e autonomia Revista Estudos Feministas, vol. 19, núm. 3, septiembre-diciembre, 2011, pp. 661-681 Universidade Federal de Santa Catarina Santa Catarina, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38121390002 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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O movimento feminista brasileirona virada do século XX: reflexõessobre sujeitos políticos nainterface com as noções dedemocracia e autonomia

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  • Revista Estudos FeministasISSN: [email protected] Federal de Santa CatarinaBrasil

    Galvo Adrio, Karla; Juracy Filgueiras Toneli, Maria; Weidner Maluf, SniaO movimento feminista brasileiro na virada do sculo XX: reflexes sobre sujeitos polticos na

    interface com as noes de democracia e autonomiaRevista Estudos Feministas, vol. 19, nm. 3, septiembre-diciembre, 2011, pp. 661-681

    Universidade Federal de Santa CatarinaSanta Catarina, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=38121390002

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    Projeto acadmico sem fins lucrativos desenvolvido no mbito da iniciativa Acesso Aberto

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    Copyright 2011 by RevistaEstudos Feministas.

    Karla Galvo AdrioUniversidade Federal de Pernambuco

    Maria Juracy Filgueiras ToneliUniversidade Federal de Santa Catarina

    Snia Weidner MalufUniversidade Federal de Santa Catarina

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    democracia e autonomiademocracia e autonomiademocracia e autonomiademocracia e autonomiademocracia e autonomia

    ResumoResumoResumoResumoResumo: Este texto discute as tenses em torno da legitimidade dos sujeitos polticos feministasbrasileiros, na interface com as noes de democracia e autonomia. Para tanto, realiza suaanlise em consonncia com dados da etnografia do 10 Encontro Feminista Latino-Americanoe do Caribe, realizado em 2005, em So Paulo. Esse espao tido como importante seara deconstituio dos pensamentos e aes do movimento feminista no Brasil e na Amrica Latina.Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave: feminismo; sujeitos polticos; democracia; estudos de gnero.

    Este artigo discute o sujeito poltico do feminismo nainterface com as noes de democracia e autonomia, apartir da etnografia do 10 Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado no ano de 2005, em SoPaulo, importante seara de constituio dos pensamentos eaes do movimento feminista no Brasil e na Amrica Latina.So questes do movimento aqui trabalhadas: a) o queune e o que separa as mulheres em torno de um movimento pluralidade, diversidade e busca de uma linguagem ede uma identidade que agregue os diversos interesses; e b)

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    como se d a busca por legitimidade e incluso dentrodessa esfera.

    Nesse percurso, importantes noes podem atuarcomo pistas analticas, dentre elas, igualdade, diferena,pluralidade e diversidade. As duas primeiras acompanhamos dilemas histricos, os quais o movimento percorreu e aindapercorre rumo equidade nas relaes de gnero. As demaisfazem parte da ampliao do espao interno do movimentocom relao s identidades de sujeito poltico e agregao de outras desigualdades, como as de raa eetnia, gerao, sexualidade.

    Alguns dos argumentos aqui apresentados levam emconsiderao que os encontros feministas so importantesespaos polticos, que atuam como momentosparadigmticos das tenses que acontecem no campo.1

    Os percursos dos encontros feministasOs percursos dos encontros feministasOs percursos dos encontros feministasOs percursos dos encontros feministasOs percursos dos encontros feministascomo espao de formalizao ecomo espao de formalizao ecomo espao de formalizao ecomo espao de formalizao ecomo espao de formalizao econsolidao do movimentoconsolidao do movimentoconsolidao do movimentoconsolidao do movimentoconsolidao do movimento

    A partir da dcada de 1970 at os dias atuais, umfato que contribuiu enormemente para o desenvolvimentointerno2 do movimento feminista no Brasil foi a realizao deencontros de mulheres e feministas. Esses eventos surgem,inicialmente, a partir de grupos e organizaes de mulheres,ainda na dcada de 1970, e de ONGs nos anos 1980, evo se destacando como espaos de unificao e vivnciade um fazer feminista dos diversos grupos, no que se refereao desenvolvimento de redes e trabalhos em conjunto, emtorno de uma mesma agenda.3

    Os encontros feministas, nacionais e latino-americanos, caracterizaram-se, desde o incio, comoespaos de fortalecimento e discusso interna dos passosfeministas, agendas e formulaes. Porm, mais que isso,esses espaos se conformaram, na percepo das diversasmulheres que os compem, como lugares de exerccio deum modo de ser feminista e de fazer feminismo.4

    Estar em um encontro marca de participao, crdito, carto de iniciao e fortalecimento de uma (oumuitas) identidade(s) feminista(s). Portanto, organizar eparticipar desses momentos conformou-se como locus denecessidade e importncia para todas aquelas que fazemo(s) feminismo(s) no Brasil, na Amrica Latina e no Caribe.5

    Vale ressaltar que esses momentos tambm indicama existncia eficaz da tendncia atual em trabalhar earticular as aes e agendas atravs de redes e encontros.Os movimentos sociais contemporneos vm construindonovas narrativas para a compreenso da complexidadena sociedade globalizada e da informao, onde a

    1 Karla ADRIO, 2008.

    2 Como espao de construo econsolidao de um ethosfeminista.

    3 Ana Alice COSTA, 1981.

    4 ADRIO, 2008 (Dirios deCampo, 2004 e 2005); e COSTA,1981.

    5 Sonia ALVAREZ et alii, 2003.

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    O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SCULO XX

    transformao, por vezes, surge como resultado daarticulao discursiva e da prtica de variados atorescoletivos.6

    Atravs da anlise dos encontros possvelcompreender os caminhos que os feminismos no sul dasAmricas vm trilhando.7 Mais que isso, cada encontroenfatiza questes ou problemas especficos do pas-sedeque podem ser compreendidos na interface entreespecificidades locais e debates globais.8 Mesmo queancorados na solidariedade poltica entre mulheres, osencontros e os desencontros tm propiciado debatesprodutivos e reconfigurado alianas e coalizes entre asfeministas da regio.9

    Enquanto os feminismos na regio latino-americanasurgiram de uma grande diversidade de lutas polticas elocalidades sociais, os encontros permitiram que as militantespudessem compartilhar/confrontar suas diferentesperspectivas e construir significados polticos e culturaisalternativos. Alm disso, Os encontros provaram ser arenastransnacionais fundamentais onde identidades e estratgiasespecificamente latino-americanas tm sido constitudas econtestadas.10

    O foco da reflexo, a partir deste momento, o 10 eltimo Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe,considerado como momento paradigmtico das aes esentidos produzidos pelas feministas sobre o campo feministano Brasil, por meio de anlise do trabalho de campo deuma das autoras.

    O objetivo aqui realizar uma reflexo, a partir daetnografia do evento na qual focamos sobretudo as pautaspolticas e perspectivas internas e externas, sobre o(s) sujeito(s)poltico(s) do feminismo na interface com noes dedemocracia e autonomia, incluso e expanso domovimento.

    Em sua dcima verso, em 2005, esse encontro contoucom a participao de mais de 700 brasileiras e deaproximadamente 700 mulheres da Amrica Latina e doCaribe. Alm dessas, algumas mulheres espanholas, norte-americanas, inglesas e belgas tambm compareceram,justificando-se pela importncia de se estar presente emum momento de anlise e fortalecimento do movimento apartir de uma reflexo sobre suas prticas e teorias.11 Amaioria das mulheres presentes fazia parte de alguma ONG,grupo de mulheres, frum de mulheres ou redes feministasnacionais e latino-americanas. Alm delas, poucasparticipantes identificaram-se como integrantes de redes encleos de pesquisa acadmica e ainda de rgos gestoresdos governos federal, estadual e municipal (principalmentecoordenadorias ou secretarias da mulher).

    11 ADRIO, 2008 (Dirios deCampo, 2004 e 2005).

    6 Chantal MOUFFE, 1996.

    7 ALVAREZ et alii, 2003, p. 543.

    8 Apoiadas nesse fato quetratamos dos dois encontrosocorridos no Brasil como campode anlise. O 3 Encontro, de1985, por meio de relatos e fontessecundrias oficiais do evento; eo 10 Encontro, de 2005, pormeio de pesquisa etnogrfica.9 ALVAREZ et alii, 2003, p. 543.

    10 At a presente data, ocorreramdez encontros, sendo que, dentreeles, apenas o Brasil sediou pormais de uma vez os EncontrosFeministas Latino-Americanos.

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    Para ingressar no encontro feminista, segundo suapgina na Internet,12 foi preciso preencher uma ficha deinscrio que tinha duas perguntas de acesso. Eranecessrio 1) ser mulher, e 2) ser feminista, enquantoautodefinio, para que se pudesse estar nesse espao dediscusso, assim como nos encontros anteriores. Portanto,uma verdadeira cidade das mulheres foi recriada a cadaverso do encontro. Cidade onde mulheres dos movimentoslsbico, negro, indgena, de partidos polticos, de gestopblica, de redes feministas nacionais e internacionais, definanciadoras, de ncleos acadmicos, de movimentospopulares e, agora, de jovens feministas encontraram-se ebuscaram discutir agendas de aproximao ou no. Tensese reconfiguraes so construdas e reconstrudas nessesespaos concretos.

    Os espaos dos encontros e das confernciascolocam-se como lugares de tensionamento e recriao doque vem sendo agendado como pauta poltica dofeminismo contemporneo. Compreender esses espaos ecomo eles se configuram trata-se de algo da ordem do dia,visto que neles os processos do campo ganham visibilidade,formam-se e se conformam. Isso se faz a partir de umaagenda largamente negociada pelos diversos segmentosde mulheres feministas e por correntes polticas dentro dofeminismo.

    As temticas feministas colocam-se em torno de umabusca de transformao social no sentido amplo do termo alm de procurarem erradicar as desigualdades sofridaspelas mulheres, acarretadas por sua condio desubordinao. Essas chamadas so conhecidas de todase todos aqueles que estudam ou militam em torno dasquestes de gnero e feminismo. Alm dessa perspectivageral, negociaes internas vm sendo feitas no sentido dedefinir o que especfico da agenda feminista, no Brasilps-dcada de 1990, seja nos fruns polticos, seja nos frunsacadmicos. As I Conferncias (Governamentais) Estaduaise a Nacional de Polticas para as Mulheres,13 que ocorreramem 2004, traziam propostas que, por sua vez, tambm jrefletiam as discusses iniciadas no processo deorganizao da plataforma poltica feminista (encontroorganizado pela rede do movimento feminista nacionalAMB), em 2002.14

    A seguir, destacamos momentos do 10 Encontro queserviro como frames15 para algumas das questes quepretendemos discutir aqui. Classificamos os momentosanalisados em a) o sujeito poltico em um campo analtico-terico e emprico; e b) as relaes entre democracia,autonomia e sujeitos polticos.

    13 As Conferncias de Polticaspara Mulheres Brasileiras (organi-zadas pelo governo federal,atravs da Secretaria Especial dePolticas para as Mulheres) surgema partir da constituio dos novoscampos de ao feminista,resultantes da compreenso doscontextos histricos, envolvendoas dcadas de 1970, 1980 e1990.14 A primeira Plataforma PolticaFeminista foi organizada por umgrupo de entidades do movimen-to de mulheres nacional, tendo aArticulao de Mulheres Brasileiras(AMB) como a grande impulsio-nadora nos estados brasileiros. Em2002, ano de eleies presiden-ciais, essa articulao promoveuconferncias municipais e esta-duais em todo o territrio nacio-nal, com o intuito de construir umaplataforma norteadora das aesque as mulheres deseja-vamimplementar via governos(COMISSO ORGANIZADORA...,2003).15 A noo de frames empres-tada da Lingustica de Textos e daLingustica Cognitiva, ambasreas terico-conceituais dosestudos macrolingusticos, queconsideram a lngua em suainterao com o contexto socio-cultural. Dessa forma, os frames,ou enquadramentos, so mo-mentos recortados da realidadesociocultural que se apresentacomo um todo, para efeitos deanlise de um momento discursivoou sociolingustico. Tomamos osframes para configurar momen-tos emblemticos dentro docontexto geral do 10 Encontro,de forma a discutir sobre arealidade macro a partir de umaanlise de momentos especficos,ou micro. Fontes: Gil lesFAUCONNIER, 1997; e RobertBEAUGRAND, 1997.

    12 Pgina na Internet:. ltimavisita em 7 de janeiro de 2008.

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    O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SCULO XX

    a) O sujeito polticoa) O sujeito polticoa) O sujeito polticoa) O sujeito polticoa) O sujeito poltico

    A perspectiva de constituio de um sujeito polticoorienta e unifica os movimentos sociais, dando-lhes umacara prpria que, por sua vez, indica quais so asdesigualdades sofridas e quais as reivindicaesalmejadas.16 Por muitos anos, pelo menos desde o sculoXVIII, as aes do movimento feminista orientaram-se a partirda unidade de todas as mulheres em torno do significantemulher. As aes galgadas, entretanto, oscilavam, emdiferentes momentos histricos, entre estratgias que seutilizavam de argumentos pautados na noo de igualdadeou na de diferena.17

    Alm disso, essas estratgias tinham em comum oponto de partida de que havia uma diferena sexual paraa qual se colocavam distines, a saber, entre os homens que possuam o acesso ao mundo pblico e cidadania e aos demais sujeitos que se encontravam margem dosprocessos decisrios.18 s feministas restava utilizar-se desseargumento o da diferena sexual como portal dechegada e de partida. Essa escolha chamada por JoanScott19 de paradoxal, j que as feministas usam da nooque as restringe a de que h uma diferena entre homense mulheres como possibilidade de alcance de cidadania.

    Percebe-se aqui que a diferena sexual apoiaestratgias paradoxais de igualdade e de diferena emrelao ao outro sujeito poltico que tem livre acesso aosdiretos do Estado-nao. Uma segunda forma de uso dessemesmo significante mulher descrito por Judith Butler.20

    Aqui, a autora problematiza a igualdade e a diferena emrelao ao que une e o que separa todas as mulheres emtorno do movimento feminista e de mulheres. ressaltada aimportncia do sujeito mulher como unidade do todo asmulheres do movimento. Entretanto, ao se deparar com achegada das mulheres situadas em segmentos especficos,percebe-se que esse sujeito mulher sofre rupturas quantoao seu contedo uno. Argumentaremos que essas duasperspectivas so usadas, sendo uma voltada para fora, narelao do movimento de busca de igualdade de direitos,enquanto a outra utilizada internamente, na tenso entrediferena de segmentos e unidade do movimento.

    Scott21 discute sobre a relao da igualdadealmejada por segmentos marginais, atravs de doiscaminhos: o dos grupos e o do indivduo. Na sociedademoderna contempornea as leis se organizam em torno dosdireitos dos indivduos, entretanto, os movimentos sociaisbuscam agregar a noo de grupo para acessar diferenasque aparecem como da ordem cultural e, portanto, queultrapassam os direitos individuais. A autora coloca que h

    21 SCOTT, 2005.

    20 BUTLER, 2003.

    19 SCOTT, 2002.

    18 SCOTT, 2005.

    16 Nancy FRASER, 2007; e IlseSCHERER-WARREN, 1987.

    17 Joan SCOTT, 2002.

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    uma tenso presente na constituio de uma identidadede grupo sobre a qual a discriminao est baseada. Nessesentido, as demandas por igualdade evocam e repudiamas diferenas que, em um primeiro momento, no permitirama igualdade.

    Em outras palavras, a visibilidade do sujeito mulher acionada atravs de uma identidade de grupo22 sem,no entanto, agregar todas as diferenas no interior dessesignificante. H uma busca por igualdade do grupo e dosindivduos baseada na diferena que exclui. E essaidentidade unifica-se em torno de um termo: a mulher.

    Importa-nos, neste momento, compreender essasrelaes internas e externas das quais o movimento feministalana mo, tendo como foco a relao entre constituiode sujeitos polticos feministas e estratgias de igualdade ediferena, a partir dessas vises tericas confrontadas coma realidade do 10 Encontro.

    As estratgias que pretendemos discutir forampercebidas em dois segmentos que buscavam legitimar seusdiscursos e serem vistos como mais um grupo dentro docampo feminista. Um deles, o das jovens feministas,23 apontapara as relaes no interior do movimento, enquanto o outro,o das transgneros, deflagra externamente as tenses dofeminismo, em dois movimentos distintos, um centrpeto e ooutro centrfugo, tal qual apontado por Snia Maluf.24

    O discurso oficial do movimento feminista no 10Encontro traz a pluralidade como termo agregador daspolticas internas e das estratgias externas e internas deconstituio de pautas, de diferentes segmentos. Dessaforma, pretende assegurar direitos para cada um dos distintosgrupos e, ao mesmo tempo, deflagra as dificuldadesinerentes a essa proposio, porque convivem no mesmoespao os segmentos j existentes, que buscam consolidar-se internamente, e, concomitantemente, novos segmentoscom novas demandas.

    Apresentamos informaes da plenria final do 10Encontro, onde em torno de 1.400 mulheres reuniram-se paraleitura de moes e debate de pontos polticos, demarcandoo encerramento do evento. Dessa reunio, trazemos duasimagens: a leitura da moo das jovens feministas e adiscusso que culminou em votao sobre aparticipao de transgneros no prximo encontro. A essesmomentos ser dado destaque, na medida em quecondensam e do visibilidade s tenses em torno de quaisso os sujeitos polticos reconhecidos e legitimados pelomovimento feminista. Acompanhemos:

    No primeiro destes, a plenria aplaudiu sem parar adesobedincia das jovens feministas (categoria pela

    22 SCOTT, 2005.

    23 As jovens feministasorganizaram, a partir de suasaes durante o 10 EncontroFeminista Latino-Americano e doCaribe, em 2005, umaarticulao nacional. No ano de2007, durante a II ConfernciaNacional de Polticas para asMulheres, fortaleceram a rede econstruram o I Encontro Nacionalde Jovens Feministas que ocorreuna cidade de Fortaleza, Cear. Oencontro tinha como objetivoprincipal consolidar a criao daArticulao Brasileira de JovensFeministas, e fortalecer a agendapoltica para as mulheres jovens.24 MALUF, 2006.

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    O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SCULO XX

    qual se autodefinem) que tomaram a rea central daplenria, onde se situava a mesa de coordenaodos trabalhos, e iniciaram em conjunto a leitura desua carta de reivindicaes. A regra a ser cumpridaera a de que apenas uma representante de cadasegmento iria ao centro e leria sua carta moo. Emsua maioria, as cartas moes tinham uma pgina nomximo, onde se reivindicava maior visibilidade e/ouparticipao daquele segmento ali representado(foram lidas cartas das deficientes, das lsbicas, dasindgenas e das jovens feministas). Voltando leiturada carta das jovens feministas, rapidamente fez-seuma meia lua, composta por mais de 30 jovensmulheres da Amrica Latina e do Caribe. Ovacionadaspor sua iniciativa em desobedecer, as jovens feministasiniciaram a leitura de uma carta que trazia para ofoco as especificidades destas enquanto feministas.Ao meu lado, nas cadeiras ao redor, ouvia as mulheresfeministas comentando, com entusiasmo, quegostariam de saber mesmo quais eram asespecificidades das jovens e o que elas queriam. Oclima era de festa e de receptividade quelas novasque vinham trazer gs e fora s lutas das mulheres,conforme comentado a minha volta. Pela primeiravez na Histria do Feminismo Latino ouve-se falar, deforma consolidada, em um grupo de jovens quereivindicam especificidades.

    O segundo momento da plenria final tratava dealgo que vinha sendo comentado arduamente por vriasmulheres, nos espaos informais do encontro, e antes destese iniciar, atravs de cartas do movimento de transexuais,veiculadas na internet. A questo se colocava da seguintemaneira: poderiam participar do encontro as transgnerosque se autodefiniam como mulheres feministas? A plenriafoi aberta atravs da possibilidade de fala e exposio deargumentos pr e contra a entrada destas. Depois de muitosembates, ouvia-se um grande burburinho e finalmente osargumentos foram se consolidando em torno das seguintesafirmaes: quem se posicionava a favor, colocava quetransgneros j participavam dos encontros feministas desdesempre e que no se podia medir o tamanho das convicesfeministas e sim, acreditar umas nas outras. Ou seja, se ocritrio para ida ao encontro era de autodefinio (deveriase marcar, como j exposto, um questionrio onde duasperguntas eram feitas mulher? e feminista?), entodeveramos respeitar estas companheiras que se definiamcomo mulheres, embora no tivessem nascido com o corpobiolgico feminino.

    A posio contrria era defendida em sua maioriapor mulheres feministas lsbicas radicais

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    (autodefinio) e feministas da Unio Brasileira deMulheres (UBM), as quais diziam que isto significava umretorno ao patriarcado e uma entrega dos espaosde poder, mais uma vez, aos homens. Ao final, amaioria presente ergueu os braos e votou a favor.Entretanto, nos espaos informais, na sada doencontro, comentrios continuaram sendo feitos.Deixo aqui um destes: os homens agora devem estarrindo de ns, aps esta votao.25

    Dois segmentos distintos evocam a mesma estratgiade utilizao do espao da plenria final para colocaremsuas reivindicaes. A plenria final dos encontros feministastem o carter de agregar o fechamento dos trabalhosproduzidos durante o processo, ao mesmo tempo que secoloca como espao para apresentao de moes oucartas que tragam comentrios, propostas, moes ourepdios a situaes especficas. Ao ocuparem esse espao,tanto as jovens quanto aquelas que trouxeram areivindicao das transgneros26 sabiam que dispunhamda possibilidade de serem ouvidas por todas, podendo,dessa forma, lanar alguma proposta de seu segmento.Entretanto, o espao da plenria no comporta votaes;apenas a aclamao do que lido pode ser tida comoaprovada por todas e alocada nas atas oficiais dosencontros.

    As jovens leram sua carta que foi aclamada por todasas participantes do 10 Encontro. As transgneros, emcontrapartida, no estavam presentes (por no poderemparticipar do evento), mas, apesar disso, sua reivindicaofoi colocada em votao pela mesa coordenadora, nohavendo consenso,27 mas sendo tomada a deciso do quefoi acatado pela maioria.

    Alm disso, outras caractersticas distinguem eaproximam esses dois segmentos que buscavamvisibilidade. A eles nos detemos adiante.

    a.1) Incurses em torno de um novoa.1) Incurses em torno de um novoa.1) Incurses em torno de um novoa.1) Incurses em torno de um novoa.1) Incurses em torno de um novo2828282828lugar no feminismo: as jovens feministaslugar no feminismo: as jovens feministaslugar no feminismo: as jovens feministaslugar no feminismo: as jovens feministaslugar no feminismo: as jovens feministas

    O encontro entre Ana e uma das autoras29 deste artigose deu numa manh de segunda-feira, em So Paulo, nasede da Unio de Mulheres, cinco dias aps o 10 EncontroFeminista. Ana uma das lideranas jovens do movimentofeminista no Brasil, embora ela mesma no tenha se referidoa si prpria dessa forma. Branca, de estatura mdia, com 25anos e formada em Letras, Ana atua no movimento desde1996, quando iniciou um curso de jovens lideranas naONG Unio de Mulheres, em So Paulo. Desde ento, vemmilitando e se identificando como feminista. Porm, como

    25 ADRIO, 2008 (citaesretiradas do Dirio de Campo).26 A definio de transgnero, deacordo com nossas interlocutorasfeministas, era o de que este eraum termo genrico para designarhomens que agem socialmentecomo se fossem mulheres. Algunsdestes chegam a realizar cirurgiasexual, mudando de sexobiolgico, outros no. O que maisimporta que estes se sentemcomo mulheres e, portanto,querem ser identificados comotal (ADRIO, 2008 Dirio deCampo, 2005, e dilogos pelaInternet, anteriores realizaodo 10 Encontro, sobre apolmica da participao ou nodas trans).27 O consenso uma estratgialargamente almejada pelasfeministas, nos momentos deembate poltico interno, emreunies dos fruns de mulherese em outras redes do mesmo tipo.Busca-se chegar a uma ideiahomognea, se no unitria, queconduza s aes. Isso se fazatravs de larga negociao, emdebates acirrados. A deciso derealizar uma votao, maiscaracterstica de outro tipo defrum ou encontro, como asconferncias de polticas pblicas as quais necessitam de umadeciso sobre uma diretriz comteor futuro de lei , foi tomada,pela primeira vez, em umaplenria final, na histria dosEncontros Feministas Latino-Americanos (ADRIO, 2008 Dirios de Campo, 2004 e 2005).28 ALVAREZ et alii, 2003, trazemcomentrios histricos sobre oprimeiro aparecimento das jovensfeministas, no final da dcada de1990, em Juan Dolio, naRepblica Dominicana (1999), no8 Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe. Naquelemomento, as questes eram asmesmas que as atuais,evidenciando que esse segmentocontinua causandoestranhamento nas demaisfeministas participantes desseseventos.29 Karla Galvo Adrio.

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    O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SCULO XX

    feminista jovem, ou jovem feminista, quando esta jornadase iniciou?

    H alguns anos mulheres jovens feministasparticiparam de um curso de capacitao em feminismo ejuventude, organizado pela Rede Latino-Americana eCaribenha de Jovens pelos Direitos Sexuais e Reprodutivos(REDLAC). Aps essa capacitao, formou-se o grupo JovensFeministas de So Paulo, do qual Ana faz parte. Desseprocesso, ela e mais algumas jovens de seu grupoparticiparam ativamente traduzindo e adaptando o manualdesse curso, em espanhol,30 para a realidade brasileira.Outros grupos, em todo o Brasil, apropriaram-se dessametodologia, atravs da participao em instnciasfeministas como fruns de mulheres estaduais e ONGsfeministas, ao mesmo tempo que novos grupos de jovensfeministas iam se formando e/ou se consolidando. Ana citajovens dos estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte,Bahia e Acre.

    Quais especificidades as jovens feministas trazem emseus discursos? Para alm da discusso sobre hierarquiadentro do movimento, onde feministas mais experientesteriam mais poder e visibilidade, essas jovens se preocupamem se colocar em espaos de discusso no apenas comoobservadoras ou coadjuvantes dos processos. Antes, elasquerem discutir e ter acesso aos debates, assim como outrasparcelas e segmentos dentro dos movimentos. Mas ser queh uma especificidade ou vrias especificidades quecoloquem as jovens feministas como mais um segmentodentro do movimento feminista?

    Ana diz que no tem clareza quanto a isso. Ao serquestionada se existiam especificidades na carta de moona tomada do centro da plenria, no ltimo dia do 10Encontro, quando mais de 30 jovens a leram, Ana diz queesse momento retrata algo de novo, sim, mas que este novono produto final, constituindo um processo. Ela direcionaento a discusso sobre os dois nomes/conceitos queidentificam esse segmento: jovens e feministas. Por quejovens antes de feministas? As jovens com quemdialogaram nos dias do encontro, vindas, principalmente,da Nicargua, do Chile e do Peru, autodenominavam-sefeministas jovens, porque eram feministas, em primeirolugar. Mas Ana, assim como as demais jovens brasileiras,tambm feminista em primeiro lugar. Entretanto, diz maisuma vez Ana que colocar o nome jovem antes do nomefeminista revela uma demarcao de visibilidade. Ou seja,somos jovens feministas, sim, e, mesmo com toda aambiguidade que esse discurso traz em si, colocamo-nosenquanto segmento dentro do movimento feminista maisamplo.

    30 MANUAL..., 2002.

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    No 10 Encontro, as jovens feministas organizaramuma oficina de dilogo e compartilhamento de experinciasentre as jovens e as velhas feministas.31 A atividade, queno estava inscrita, foi impulsionada por um desejo dasmulheres jovens que estiveram no Frum de Mulheres Jovens[Feministas], no dia 10 de outubro, durante o 10 Encontro,com o objetivo de troca entre as geraes e de sereconhecer e construir aes comuns.32 Nesse momento,duas a duas, as mulheres de geraes distintas seencontravam para dividir suas experincias de militncia,sua entrada no movimento, suas demandas eespecificidades. Essa foi uma tentativa de promover odilogo entre as jovens e as velhas feministas e lanar naagenda do movimento o debate geracional.

    O Frum de Mulheres Jovens Feministas contou commais de cem jovens de toda a Amrica Latina e do Caribe.O momento, considerado de articulao, foi importanteporque ali se discutiram as demandas, especificidades eestratgias das jovens feministas. Entre as demandas, asjovens destacaram:

    Ser necessrio no construir espaos adultocntricose verticais, garantir que as mais diversas jovensexpressem suas necessidades e apreenses dentrodo processo, alm de se trabalhar conjuntamentenos movimentos de juventudes e feministas, sem deixarde pensar, considerando as inter-relaes com asdemais identidades, raa/etnia, classe social,condies scio-geogrficas, culturais e orientaessexuais.33

    Outro momento que se destaca a conversa entre asociloga feminista Sonia Alvarez e jovens feministas vindasda cidade de Natal, Rio Grande do Norte. Em p, no meiodo ptio central do 10 Encontro, antes de seguirem paramais uma oficina, conversavam sobre a especificidade deser jovem e feminista. Um dos argumentos trazidos era o doestranhamento da acadmica com relao a essacategoria, no nova, mas que se reconfigurava de forma talque pedia por discursos de especificidade enquantocategoria identitria dentro do movimento feminista comoum todo.

    importante situar a incluso dos lugares deimposio de agendas e discusses sociais, tomando aconformao de movimentos de jovens e redes dejuventudes nesse locus. Nas duas ltimas dcadas o queassistimos a conformao e segmentao de identidadespolticas e, nesses espaos, os movimentos de jovens tm setornado cada vez mais participantes no cenrio geral. Veja-se, por exemplo, o contexto dos Fruns Sociais Mundiais, em

    31 Miriam Grossi destacou arelao entre jovens e velhasfeministas em seu texto Velhas enovas feministas no Brasil(GROSSI, 1998).

    32 Fernanda Grigolin, jovemfeminista, pgina do 10 Encontrona Internet.

    33 Fernanda Grigolin, jovemfeminista, pgina do 10 Encontrona Internet.

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    O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SCULO XX

    que o acampamento da juventude um dos espaospolticos de grande impacto internamente e, tambm, junto mdia e ao que veiculado e percebido pela populaoem geral. Assim, o encontro de mais esse movimento, dejovens, vem se agregar de maneira distinta das vivnciasdas feministas jovens das dcadas de 1980 e 1990, noBrasil. Existiam, sim, feministas jovens, entretanto, nestemomento, o que parece se conformar um espao ondeser jovem tem um valor/peso de ordem semelhante a serfeminista, afirmam as jovens feministas. Questionamos essaafirmao, visto que consideramos que o debate no seconcentra no ato de medir uma dupla participao e simno peso que a imbricao de dois significantes, orientadoresde dois segmentos especficos movimento da juventude emovimento feminista , tem quando aparecem juntos.

    A importncia da participao das jovens inegvel. Trazem tona a existncia de uma hierarquiainterna do movimento, na qual quem tem mais tempo ali, ouseja, as histricas, tm mais poder (aqui esto envolvidoso estabelecimento da agenda, a distribuio dofinanciamento, o assento em rgos importantes como osConselhos etc.). A constatao dessa evidncia,aparentemente bvia, fundamenta parte das reivindicaesdas jovens e faz emergir as formas pelas quais as relaesde poder se fundamentam. Alm disso, vem questionar onvel de participao, a igualdade de participao e depoder decisrio quanto a pautas, j que leva proposiode temas de debate que nem sempre esto na ordem dodia para o movimento, como a preocupao com aconcepo e contracepo do ponto de vista da idadefrtil e do direito de ter filhos, creches e licena de gestaopara estudantes de ps-graduao, por exemplo; e aparticipao igual para jovens e histricas.34 As jovensfeministas tambm levantam a questo da participaomasculina no movimento, concordando em alguns casoscom a presena dos homens nas suas reunies.

    Elas desestruturam a ordem, ao mesmo tempo quepedem licena s mais velhas para participarem,exaltando o que j foi conquistado e levando emconsiderao as lutas travadas anteriormente. Ou seja,reconhecem o passado histrico, sem abrir mo dealteraes no presente, de maneira que no apenas sejamouvidas, mas tambm tenham acesso aos espaosdecisrios. De certa forma, isso j vem acontecendo, vistoque uma das jovens feministas estava presente na comissoorganizadora do 10 Encontro e que o debate sobre asjovens feministas fez parte da programao oficial do evento,havendo uma jovem feminista em cada mesa de debatedos dilogos complexos.

    34 Termo mico.

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    As jovens feministas utilizam estratgias de busca deigualdade dentro do movimento ressaltando suasdiferenas especficas. Ou seja, movimentam internamenteo feminismo com a insero de demandas situadas econtextualizadas como de um movimento jovem. Aomesmo tempo, percorrem caminhos que outras mulheres deoutros segmentos j percorreram, como foi o caso das negras,indgenas e lsbicas. Trazem a reflexo de volta para aquesto interna do movimento feminista acerca da suaunidade, traduzida em termos de questes da mulher.Levantam o paradoxo em dois sentidos: um deles reforandoa existncia da diferena sexual,35 a partir da afirmao deque so feministas e mulheres, unindo-se, dessa forma, aotodo do movimento; e o outro afirmando a diferena no interiordo movimento, ao trazer mais uma desigualdade que seencontrava na margem, a de gerao, portanto situada eespecfica para o todo do movimento feminista. Os percursosdesse novo segmento auxiliam a compreender asdinmicas discursivas pelas quais se produzem sujeitoslegtimos, com demandas aceitas dentro do contextofeminista.

    a.2) Abrindo frestas? A possibilidade dasa.2) Abrindo frestas? A possibilidade dasa.2) Abrindo frestas? A possibilidade dasa.2) Abrindo frestas? A possibilidade dasa.2) Abrindo frestas? A possibilidade dastransgneros participarem nos encontrostransgneros participarem nos encontrostransgneros participarem nos encontrostransgneros participarem nos encontrostransgneros participarem nos encontrosfeministasfeministasfeministasfeministasfeministas

    Na plenria inicial, durante a abertura do 10Encontro, a fala da comisso organizadora mesclou-se entredemarcar historicamente o lugar desse encontro, emdestacar os objetivos e dar as boas-vindas s participantes.Porm, uma fala a mais foi introduzida, a de uma dasorganizadoras que vinha, em pblico, justificar a tomadade posies da comisso em no aceitar que transexuais etransgneros participassem e se inscrevessem no 10Encontro. O texto argumentava, dentre outras coisas, queno era da alada da comisso deliberar por todas asmulheres feministas sobre essa questo. Portanto, seguindoo critrio democrtico que marca as decises feministas,estavam delegando o espao da plenria final para adeciso sobre a participao das trans no 11 Encontro.

    Essa fala se constitui em torno de um processo que seiniciou por e-mail, pelo menos um ms antes da realizaodo encontro. Nos e-mails conformou-se uma espcie defrum informal, em que se discutia sobre a possibilidade ouno da incluso das trans, impulsionada por uma cartadestas, na qual pediam que as feministas abrissem apossibilidade para sua participao no 10 Encontro. Essese-mails circularam por redes informais e foram sendorepassados de forma tal que no foi possvel ter a real

    35 SCOTT, 2002.

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    O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SCULO XX

    dimenso de quantas mulheres efetivamente tiveram acesso discusso. Porm, ao chegar cidade das mulheres, deuma forma ou de outra se recebia, nas conversas informais,informaes sobre a existncia da polmica, fato esseexplicitado na fala de abertura da organizao, conformeexposto no pargrafo anterior.

    Durante o processo do 10 Encontro, pelo menos umaoficina foi realizada com o objetivo direto de discutir a inclusodas trans. Nessa oficina, intitulada Cuerpos Feministas,36

    discutia-se, a partir da experincia vivencial, o que nosconstitui enquanto mulheres, tomando caractersticascorpreas e simblicas da ordem do discurso at chegar aoargumento de que as transexuais tambm se constituemcomo mulheres, logo, podem se autodefinir como feministas,se assim o desejarem, e, consecutivamente, participarem do10 Encontro. As participantes da oficina debateram essaquesto colocando-se a favor ou contra o argumento.

    Nos diversos espaos de discusso formais einformais quem apresentava argumentos favorveis entrada das transgneros nos encontros feministas alegava,dentre outros aspectos, que a utopia feminista de busca deigualdades teria possibilitado fissuras nos modelosheterossexuais. Ou seja, que a possibilidade de trabalharos direitos sexuais e a politizao do espao privado iriaimpulsionar novos estilos de vida. Dentre estes, apossibilidade de uma pessoa que nascesse com o sexobiolgico de um homem ter acesso a uma nova definioidentitria. Da mesma maneira, foram citadas as mulhereslsbicas como porta-vozes feministas da livre expresso deviver a sexualidade e o amor por algum do mesmo sexo.

    Nessa mesma linha argumentativa, o feminismo sedepara com as dimenses [que se abriram] a partir da utopiade uma vida sem desigualdades, de transformao socialpara todas e todos e, portanto, tambm para astransgneros.37 Ser feminista diz, portanto, de um lugar depossibilidades para pessoas que se autodefinam comopartidrias de princpios comuns a essa forma de ver epensar o mundo. Ento, o que dizer daquelas pessoas quese autodefinem como feministas e tambm como mulheres?Estariam as transgneros sendo porta-vozes de um caminhara partir de um olhar de gnero em que femininos emasculinos transitam em corpos de homens e de mulheres em contrapartida a uma viso essencializada de comodeveriam ser as mulheres e, portanto, as mulheres feministas?

    Gostaramos de resgatar mais um momento registradono Dirio de Campo de Karla Adrio, por evidenciar commais detalhes a tenso a partir das formas discursivasempregadas durante as argumentaes a favor e contra aparticipao das transgneros nos encontros subsequentes:

    36 Oficina organizada por Aireana,Grupo por los Derechos de lasLesbianas; Asociacin de Luchapor la Identidad Travesti Transexual(ALITT); Centro de Documentaciony Estudios (rea Mujer-CDE);Comision Internacional deDerechos Humanos de Gays yLesbianas (IGLHRC). Objetivosexpostos no caderno daprogramao oficial do evento:Taller participativo donde sereflexionar sobre el feminismocomo corriente de pensamientoms All de los cuerpos. Preguntasy crticas (CADERNO..., 2005).

    37 ADRIO, 2008 (Dirio deCampo, 2005).

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    As falas na plenria final indicavam quem era a favore contra a entrada de transexuais nos prximosencontros feministas. Uma partcula/artigo definido eraevidenciador do argumento contra ou a favor: artigodefinido masculino O ou artigo definido feminino A.Ou seja, a frase que se iniciava com O transexualera contrria insero destes nos encontros. Oinverso, ou seja, a definio As transexuais dava-lhesacesso ao mundo feminista. Estes argumentos eramcolocados no centro da plenria, ao microfone.Porm, mais alto que esses, vozes em coroquestionavam o artigo feminino ou masculino, ora emacordo, ora em desacordo, fato este que me chamoubastante ateno. Algumas mulheres tendiam a corrigiro termo O transexual, enfatizando que este deveriaser chamado no feminino, o que vinha a atordoar, emalguns momentos, aquelas que estavamargumentando contra a sua entrada e participaonos encontros.38

    Esses momentos apontados acima mostram que,aqui, a unidade se faz atravs do termo mulher, o qualagrega todas aquelas que so mulheres, distintamente dooutro que so os homens, ao mesmo tempo que lana aambiguidade que o termo atravessa, a partir da pergunta:mas, afinal, o que ser mulher?

    As transgneros podem participar dos Encontrosdesde que atestem que so mulheres, em relao a um dosargumentos lanados. Nestes termos, importante utilizar oartigo masculino O, de forma a evidenciar que elas noso mulheres. H tambm o receio de que transgnerosrepresentem a fala dos homens no movimento, restringindo,portanto, os direitos e as estratgias feministas.

    Ao mesmo tempo, a outra parte do movimentofeminista, favorvel presena das transgneros, vinhaorganizando encontros estaduais de debates39 atravsde parcerias locais entre fruns de mulheres, articulaesde mulheres e ONGs feministas sobre a fluidez dassubjetividades e dos corpos, na perspectiva terica dosestudos de gnero.40 Esses debates incitavam anecessidade de agregar todas aquelas que se dissessemfeministas, tendo ou no corpos prioritariamentefemininos.41

    H uma necessidade do prprio campo de aomilitante de definir caractersticas identitrias fixas, ouainda, estratgias essencialistas que aproximem as lutase as buscas por direitos legais.42 As dicotomias se do entremulheres feministas que buscam seu espao de direitos, oqual se concentra em uma unidade interna que as constituanessa luta. Ou seja, debater sobre o que une e o que separatodas as mulheres, levando em conta, ao mesmo tempo,

    38ADRIO, 2008 (Dirio deCampo, 2005).

    39 Esses encontros aconteceramem algumas cidades do pas eforam relatados por interlocutoras,depois do 10 Encontro, em suascidades, a saber, So Paulo, Recifee Joo Pessoa (ADRIO, 2008).40 BUTLER, 2003 e 2004; MarilynSTRATHERN, 1988; DonnaHARAWAY, 1995, dentre outras.41 Entrevista com participante darede de Mulheres em Articulaoda Paraba e integrante de ONGfeminista lsbica, em janeiro de2006 (ADRIO, 2008).42 Diane ELAM, 1997; e RosiBRAIDOTTI, 1989.

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    O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SCULO XX

    que as mulheres so diferentes entre si quanto a vriosaspectos: sexualidade, raa/etnia, gerao e classe social.

    Nesse exemplo de demanda por incluso de umsegmento como sujeito poltico do feminismo, o quepercebemos em termos de estratgias que a relao entreigualdade e diferena percorre um caminho mais ousadoque o anterior (das jovens feministas), no sentido de quebusca igualdade na afirmao de uma diferenaaparentemente biolgica, o sexo masculino, portanto, aidentidade masculina em oposio feminina, atravs daincluso de uma igualdade discursiva que afirma se mesinto feminista, ento posso ser uma. O paradoxo dadiferena sexual aqui utilizado ao revs, ou seja, ao invsde afirmar a diferena sexual, fortalece a possibilidade detrnsito dos lugares institudos pelos/nos corpos comomasculino e feminino. Donna Haraway comenta essacondio de fluidez, a partir da metfora do ciborgue:

    Um ciborgue um organismo ciberntico, um hbridode mquina e organismo, uma criatura de realidadesocial, bem como uma criatura de fico.Socialreality is lived social relations, our most importantpolitical construction, a world-changing fiction. Arealidade social vivida nas relaes sociais, a nossamais importante construo de um mundo emmudana ficcional e poltica.The international womensmovements have constructed womens experience,as well as uncovered or discovered this crucialcollective object. O movimento internacional demulheres tem construdo a experincia da mulher,bem como descobriu este crucial objeto coletivo.Thisexperience is a fiction and fact of the most crucial,political kind. Esta experincia uma fico erealidade das mais cruciais [...] o ciborgue umassunto de fico e experincia vivida que muda oque conta como as experincias das mulheres emfinais do sculo XX.This is a struggle over life and death,but the boundary between science fiction and socialreality is an optical illusion. Esta uma luta sobre a vidae a morte, mas a fronteira entre a fico cientfica e arealidade social uma iluso ptica [...] as reflexesdos outros a relao entre o organismo e a mquina tm sido uma guerra fronteiria na tradio utpicade imaginar um mundo sem sexo, que talvez ummundo sem gnese, mas talvez tambm um mundosem fim [The cyborg incarnation is outside salvationh...] o ciborgue uma criatura de um mundo ps-gnero.43

    A autora afirma ainda que o aprofundamento dosdualismos mente e corpo, animal e mquina, podem serrefutados atravs da imagem do ciborgue que, por sua vez,

    43 HARAWAY, 1991, p. 149, 150 e152. Traduo nossa.

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    auxilia no argumento de que a produo de um universal um erro, pois leva a uma anlise parcial da realidade. Emcontraposio, atravs da imagem do ciborgue, assim comocom a perspectiva de incluso das transgneros, a visosituada e especfica de um segmento trans reconhecidaatravs da possibilidade de fluidez de significantesmasculinos e femininos em corpos sexuados. Essaperspectiva se ancora nos estudos de gnero44 e no estatutode sujeito descentrado.45 Porm, diferentemente do ciborgue,o segmento das trans pode invocar a dualidade mais umavez, marcando tambm um retorno biologizao doscorpos e da diferena de sexo.46 Isso pode acontecer setomarmos o fato de que algumas das transgneros sosujeitos que passaram por processos de alterao de seuscorpos biolgicos atravs da tecnologia e da cincia,adaptando esse corpo sua identificao sexual subjetiva.Ou seja, as trans possuam um corpo biolgico de homemcom o qual no se adaptavam e precisaram fazer umaalterao concreta em seu rgo sexual masculino, de formaque seu sexo biolgico se adequasse sua identidadefeminina.

    Essa tenso entre utilizao de argumentos pautadosou na biologia ou na construo cultural acompanha ahistria dos movimentos LGBTTT,47 apontando polarizaes,e est longe de ter chegado a um consenso. No movimentofeminista, ao se situarem as diferenas das mulheres emcorpos sexuados femininos, h uma escolha poltica quetambm vem a reboque dessa noo e que separa homens(corpos) de mulheres (corpos), marcando a desigualdadede gnero em mulheres concretas e perpetuando a lgicabinria j to criticada pelas teorias feministas. Ao permitira participao das trans nos encontros, esse argumento sofreuma ruptura, visto que as trans desconstroem a ideia deunidade baseada na diferena sexual e aproximam asmulheres dos homens ao proporem que os corpos e abiologia e a natureza podem ser alterados.

    b) Relacionando sujeitos polt icos,b) Relacionando sujeitos polt icos,b) Relacionando sujeitos polt icos,b) Relacionando sujeitos polt icos,b) Relacionando sujeitos polt icos,autonomia e democraciaautonomia e democraciaautonomia e democraciaautonomia e democraciaautonomia e democracia

    No tocante s questes polticas centrais para asfeministas no 10 Encontro, destacamos a dos sujeitospolticos. Neste momento, buscamos relacionar tais questescom as noes de democracia e de autonomia, tendo emvista complexificar o debate em torno de sujeitos polticos edas polticas e suas estratgias de ao.

    Nancy Fraser, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe48

    apontaram a importncia das estratgias polticas deredistribuio e reconhecimento na democracia. Fraser49

    48 Nancy FRASER, 2007; e ErnestoLACLAU e Chantal MOUFFE, 1985.49 FRASER, 2007.

    44 BUTLER, 2003 e 2004; eSTRATHERN, 1988.45 Stuart HALL, 2000; Bruno LATOUR,2005; Michel FOUCAULT, 2002;Jacques DERRIDA, 2005, dentreoutros.46 Thomas LAQUEUR, 2001.

    47A visibilidade desse segmentovem a reboque dos avanos dosestudos sobre sexualidade e daorganizao dos movimentos deLsbicas, Gays, Travestis, Transe-xuais e Transgneros (LGBTTT).Regina FACCHINI, 2005, discuteo movimento homossexualorganizado, no Brasil, associando-o construo daquilo que aautora chama de identidadescoletivas. Alm disso, dentre asconquistas atuais das trans noespao das polticas pblicas, esta garantia de que no sero maisassociadas a prostitutas, alm daspropostas de diversidade sexualnas escolas e dos trabalhos dogoverno federal sobre o Brasil semhomofobia.

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    O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SCULO XX

    apresentou uma anlise de como o movimento feministalidou com essas estratgias. Segundo a autora, durante asegunda onda feminista, pode-se identificar trs momentosno tocante escolha por estratgias de ao poltica: oprimeiro, o de polticas de redistribuio; o segundo, o depolticas de identidade; e o terceiro, o atual, aquele no qualse busca uma conjuno dos dois momentos anterioresaliados a polticas de representao. Laclau e Mouffe50

    tambm defendem a unio dos dois momentos daredistribuio e do reconhecimento, como forma deradicalizar a democracia.

    No Brasil, as estratgias de redistribuio foramprincipalmente utilizadas no perodo de estruturao dosnovos movimentos sociais, quando as feministas atuavamjuntamente com a esquerda brasileira. Uma das tensesentre esses dois sujeitos polticos dava-se no tocante relao entre classe e gnero nas estratgias utilizadas.51

    Fraser afirma que os feminismos expuseram oandrocentrismo da sociedade capitalista, politizando opessoal, expandiram as fronteiras de contestao paraalm da redistribuio scio-econmica para incluir otrabalho domstico, a sexualidade e a reproduo.52

    Percebemos o segundo momento, das estratgias dereconhecimento no Brasil, atravs das aes, ps-dcadade 1980, de demandas de segmentos especficos, como asnegras e lsbicas. Esse momento se prolonga at os diasatuais, com a tenso entre sujeitos polticos autorizados e asdemandas de novos sujeitos como as trans e as jovensfeministas. Fraser aponta que nos Estados Unidos,principalmente, mas tambm na Europa, este segundomomento colocou sua nfase nas polticas de identidade,de sujeitos especficos, retirando a centralidade da classepara a cultura. O resultado foi uma grande mudana noimaginrio feminista: enquanto a gerao anterior buscavaum ideal de eqidade social expandido, esta investia suasenergias nas mudanas culturais.53

    Os proponentes da virada cultural esperavam que apoltica feminista de identidade e diferena criasse umasinergia com as lutas pela igualdade social. Mas o queaconteceu foi que, no contexto da virada do sculo, autilizao do reconhecimento acomodou-se confortavelmenteao neoliberalismo hegemnico que, por sua vez, esperavareprimir a memria do igualitarismo social.

    O resultado foi uma trgica ironia histrica. Ao invsde chegar a um paradigma maior e mais rico queinclusse tanto a redistribuio quanto oreconhecimento, ns efetivamente trocamos umparadigma truncado por outro, um economicismotruncado por um culturalismo truncado.54

    53 FRASER, 2007, p. 5.

    51Tatau GODINHO, 1998; SolangeJUREMA, 2005; e Amelinha TELES,1999.

    50 LACLAU e MOUFFE, 1985.

    52 FRASER, 2007, p. 4.

    54 FRASER, 2007, p. 6.

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    O debate por polticas de identidade no movimentofeminista no Brasil apresenta a dupla conformao deacionar polticas agregadoras em torno do significantemulher sem perder de vista as disputas internas dasdiversas mulheres negras, lsbicas, jovens, rurais, dentreoutras. Longe de simplificar as demandas, apresentanuances caractersticas da fragmentao e da pluralidadede sujeitos contemporneos. Acreditamos que o movimentofeminista no Brasil se encontre, sobretudo, nesta fase depolticas de reconhecimento, mas relacionada com aterceira fase mencionada por Fraser,55 caracterizada porpolticas transnacionais que indicariam alternativas simpossibilidades dos perodos anteriores.

    O feminismo brasileiro tem participado ativamentedas aes transnacionais que indicam polticas globaispara os Estados-nao, atravs dos espaos das grandesconferncias da ONU, dos Fruns Sociais Mundiais, encontroslatinos etc. Com relao a isso, Fraser56 prope que aalternativa atual para as aes feministas deve se comporde uma trade: juno de polticas de redistribuio e dereconhecimento, acopladas a uma outra estratgia, a derepresentao57 relacionada a aes globalizadas etransnacionais.

    Laclau e Mouffe58 j apontavam a importncia deno perder de vista as duas primeiras estratgias. Alm disso,os dados de campo do 10 Encontro mostraram apreocupao com a autonomia na interface com as polticasglobalizadas ou transnacionais. No gostaramos de perderde vista essa questo, j que, se por um lado h questesmacroeconmicas que desestabilizam a democracia e osdireitos das mulheres fruto das polticas neoliberais e doajuste estrutural dos Estados-nao indicando anecessidade de aes globalizadas por parte dasfeministas,59 por outro no deixa de ser necessrio cuidardas microdemandas, situadas e contextuais. A crtica autonomia, no tocante s polticas locais, tem suaimportncia, uma vez que questiona a prpria globalizao.Nesse sentido, Haraway60 prope uma interpretao daobjetividade cientfica61 em termos de conhecimentossituados, ou seja, que a perspectiva parcial deve serlegitimada cada vez mais, tendo em vista a necessidadede evidenciao dos saberes localizados.

    A democracia plural e radical, discutida pelasfeministas do 10 Encontro, e ressaltada pelos tericos ErnestoLaclau e Chantal Mouffe,62 apresenta-se em suacomplexidade e em meio a foras em choque e a tenses econflitos por hierarquias dentro do movimento, por espaosidentitrios e polticos, mas no necessariamente emoposio a sujeitos polticos, na busca por autonomia e por

    55 FRASER, 2007.56 FRASER, 2007.57 Fraser conceitua representaoda seguinte forma: como aentendo, representao no apenas uma questo de assegurarvoz poltica igual a mulheres emcomunidades polticas jconstitudas. Ao lado disso, necessrio reenquadrar asdisputas sobre justia que nopodem ser propriamente contidasnos regimes estabelecidos(FRASER, 2007, p. 11).58 LACLAU e MOUFFE, 1985.59 Atualmente as feministasbuscam conectar cada vez maisas polticas de redistribuio ereconhecimento atravs deaes transnacionalizadas, indoalm das economias nacionais.Na Europa, por exemplo,feministas atuam diante daspolticas e estruturas econmicasda Unio Europeia, unindo-se aosque protestam contra aOrganizao Mundial doComrcio (OMC), desafiando asestruturas de governabilidade naeconomia global. Alm disso,com o slogan os direitos dasmulheres so direitos humanos,feministas ao redor do mundoesto conectando as lutas contraas desigualdades de gnerolocais a campanhas parareformar o direito internacional.O espao dos Fruns SociaisMundiais tem servido, de formaanloga, ao encontro de muitosdebates, aes e campanhas(FRASER, 2007; e ALVAREZ et alii,2003).60 HARAWAY, 1995.61 A autora est desenvolvendoum dilogo com as epistemologiasfeministas e o prprio modelo decincia positiva. Esse debate apresentado aqui para discutir aespecificidade das necessidadese dos saberes locais, os quaismuitas vezes so, tanto no campoda cincia quanto no das polticas,ofuscados em funo dasnecessidades e saberes globais.Para mais detalhes, ver ADRIO(2008).62 LACLAU e MOUFFE, 1985.

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    O MOVIMENTO FEMINISTA BRASILEIRO NA VIRADA DO SCULO XX

    espaos que reflitam os anseios e demandas dos diversossegmentos. Como bem atestam Laclau e Mouffe,63 a inclusono contexto democrtico no se faz sem exclusoconcomitante. No h, portanto, consenso real, e anecessidade do conflito e da pluralidade de oposies,alm de demonstrar as dificuldades do jogo de disputas noqual se faz um movimento, fortalece o prprio conflito, comocondio sine qua non da democracia radical que asfeministas almejam.

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