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    O movimento Slow Food e as escolhas de consumo: as possibilidadesde atuação individual e coletiva através de uma tribo pós-moderna 1

    Raquel Duarte Hadler 2

    Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo, SP

    Resumo

    Partindo da análise de contextos socioculturais contemporâneos, este artigo traz para adiscussão as implicações éticas entre as escolhas individuais e as instituições sociais,mediadas pelos processos de consumo. Neste cenário, destaca-se a formação de tribos pós-modernas como uma forma de atuação política dos sujeitos frente a ausência de instituiçõessociais que desenvolvam direcionamentos coletivos para a vida em sociedade. Desta forma,volta-se a atenção para o movimentoSlow Food como exemplo de uma tribo pós-moderna dedestaque internacional, a qual desenvolve atuações estratégicas em prol da visibilidade doconsumo crítico.

    Palavras-chave: Comunicação; Consumo; Ética;Slow Food ; Escolhas.

    Ponto de partida: considerações iniciais

    Ao voltarmos os olhos aos contextos socioculturais que demarcam acontemporaneidade, nos deparamos com a publicização do poder de escolha do

    sujeito. São inúmeros os exemplos de produtos da indústria cultural, comotelenovelas, series de televisão, filmes e campanhas publicitárias que enunciam sobreo que deve ser feito para ser feliz ou para se ter uma vida boa segundo os cânones dasociedade de consumo ocidental.

    É a partir das escolhas feitas que o sujeito contemporâneo passa a ser avaliado por sua capacidade de participar desta cultura global, visto que o consumo representa

    1 Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo e Institucionalidades, do 4º

    Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014.2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM(PPGCOM-ESPM), bolsista CAPES/PROSUP, e-mail: [email protected]

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    em toda modernidade um modo de reprodução cultural dominante que subordinaamplamente todas as outras culturas (SLATER, 2002). A adesão à vida boa depende,aparentemente, da escolha do consumidor.

    Deste modo, dentro desta discussão é importante pontuar que ao mesmo tempoque o consumo tem um alcance prático visível, apresenta uma profundidadeideológica (SLATER, 2002). Ele pode ser apontado como um dos mais efetivos

    indicadores do imaginário e das práticas socioculturais de uma sociedade,transformando-se em um dos mais poderosos discursos que estruturam a comunicaçãosocial (BACCEGA, 2011; 2008).

    De acordo com a antropóloga Mary Douglas (2009), os bens de consumofornecem visibilidade à cultura, pois comunicam as convenções, valores, comotambém os sentidos que são produzidos e incorporados nas relações sociais. Isso postula a inserção da ética, como atribuição de sentido à vida (CHAUÍ, 2000), na

    intrínseca relação entre comunicação, consumo e cultura.Portanto, pode-se dizer que através das ações do sujeito mediadas pelo

    consumo ocorre um processo de atribuições de sentidos ao mundo, demarcando aadesão a determinados valores, costumes, etc. Esse processo evidencia a ética dosujeito, como também a sua atuação política na medida em que interage com o seucontexto. Como coloca Sassatelli (2010), toda compra, que é resultado de umaescolha do consumidor, é um ato político.

    Segundo Sassatelli (2010), percebe-se um movimento de investimento emresponsabilidades políticas através do consumo que, de diferentes maneiras,expressam visões de mundo dos sujeitos que consomem. Esse investimento emresponsabilidades políticas através do consumo pode ser explicado pela presença cadavez mais enxuta dos Estados nacionais em prol de acordos comerciais e integraçõeseconômicas estimulados globalização, deslocando a responsabilidade do Estado emformar cidadãos para propiciar possibilidades de consumo (CANCLINI, 2003).

    Com a menor visibilidade às estruturas macrossociais, aliada a glamorizaçãoda escolha do consumidor como instrumento político disponível ao cidadão, observa-

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    se mobilizações sociais fragmentadas em processos cada vez mais difíceis de totalizar(CANCLINI, 2003). São múltiplas as interações que despontam, reflexo dahibridização cultural e dos conflitos, os quais compõe os contextos socioculturaiscontemporâneos e os próprios sujeitos como fruto de sua época.

    De acordo com o antropólogo Adrian Peace (2006), à medida que essesmovimentos enaltecem o compartilhamento de um sentido comum, podem ser

    classificados como tribos pós-modernas. Essas tribos, que Canclini (2008) denominacomo movimentos sociais fragmentados, são o resultado de buscas do sujeito em atuarno seu contexto, o que provoca um processo de negociação que repercute nasconstruções das subjetividades que afloram.

    Portanto, percebe-se que a formação de tribos começa a criar odesenvolvimento de estâncias politizadas, gerando formas renovadas de sensibilizaçãodo consumidor. Isso pode ser observado em setores que oferecem uma quantidade

    significativa de possibilidades de escolhas aos consumidores, como é o caso de setoragroalimentar segundo Bush (2014).

    Essas formas renovadas de sensibilização do consumidor muitas vezesocorrem por uma busca pelo posicionamento de oposição ou de resistência, o que porum viés antropológico (PEACE, 2006), podem ser vistas como uma consequência quese expressa de modo natural frente a hegemonia. Isso ajuda a clarear a compreensão,de acordo com Sassatelli (2010), de como a atuação de corporações globais na difusãoda comida rápida, padronizada e de baixo custo, chamarem a atenção para produtosnaturais, locais e tradicionais como fonte de uma sustentável prática agrícola que produz relações de trabalho mais justas.

    Este apontamento tem relação direta, como destaca Sassatelli (2010), com ofato de que com o aumento da invisibilidade da origem e qualidade do alimento -através globalização dos sistemas de alimento industrial -, o discurso em torno daqualidade do alimento tem se tornado crucial. A questão levantada pela autora é que aescolha de um alimento também pode funcionar como uma forma de protesto.

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    Dentro desta discussão, coloca-se como importante problematizar o fato daescolha do consumidor ser divulgada pelas pesquisas de mercado como uma decisãoindividual praticamente “pura”, sem lastros socioculturais, apoiada apenas nosrecursos disponibilizados no mercado (BUSH, 2014). Desta forma, parece-nosinteressante questionar as relações entre as escolhas individuais e asinstitucionalidades que estruturam a sociedade, tendo como pano de fundo o setor

    agroalimentar pela riqueza de elementos que dispõe para serem analisados.Bush (2014) destaca a proliferação de redes alternativas que trabalham a

    agricultura e a comercialização do alimento, o que chama de Alternative Agri-food Networks ( AAFNs ), como uma forma de atuação política do sujeito. Dentre as AAFNs ,o autor destaca o movimentoSlow Food por sua relevância frente aos demaismovimentos.

    Como um ator da cena global, oSlow Food é composto por diferentes

    associações nacionais ao redor do mundo, cada qual entrelaçada pelo convívio local.Desta forma, sua vocação compartilhada globalmente o classifica como uma tribo pós-moderna como pontua Peace (2006). A questão é que devido a sua composiçãohíbrida, multicultural, esta tribo é permeada por uma diversidade de iniciativas, o quea torna um objeto social intrigante e ambíguo como destaca Sassatelli (2010).

    Portanto, coloca-se como objeto da presente discussão as implicações éticas e,consequentemente políticas, entre as escolhas individuais e as instituições sociaisatravessadas por movimentos como oSlow Food , que postulam atuações estratégicasem prol da visibilidade do consumo crítico.

    A problemática da escolha como um ato performático

    A problemática em torno da escolha como uma atividade praticamente pura,racional, atribuída única e exclusivamente ao indivíduo que a exerce, está inseridadentro da exacerbada atenção à performances individuais (BUSH, 2014). Observa-seuma extrapolação do padrão de funcionamento empresarial à medida que a retórica

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    macro das corporações começa a afetar as relações micro-sociais, individuais,espaciais e temporais.

    Como destaca João Freire Filho (2011), instaura-se um culto à performanceatravés do enfoque na construção de um imaginário sedutor que prioriza odesenvolvimento de potencialidades humanas. Isso faz com que se instaure uma busca pelo desenvolvimento de determinadas formas de ser e de agir que agreguem ao

    sujeito um valor social, ou seja, instaura-se uma existência programada parametrizada por uma racionalidade econômica.

    Como João Freire argumenta, “O desejo de ser mais – desafiando e superando,sem trégua, os próprios limites – cativa o imaginário contemporâneo, mobilizandoenergias psíquicas, anseios narcísicos de reconhecimento e fantasias de onipotência”(FREIRE FILHO, 2011, p.37).

    A questão é que esta busca por “ser mais” requer exercitação constante, não

    contemplando algo que é eminentemente humano, que é o processo de aprendizado,que traz consigo o erro, a falha e a necessidade de descanso. Esses aspectos sãocolocados como algo a ser evitado e superado, ou seja, incita-se uma busca desuperação da própria humanidade dentro de cada um, tanto em seus aspectos físicosquanto psíquicos.

    Deste modo, Freire Filho (2011) defende que o paradigma do modo de vidacontemporâneo está baseado no engajamento de si. Seguindo a linha destaargumentação, o autor aponta para a hipótese de que o culto da performance pode seruma resposta à falta de projetos coletivos estruturados socialmente, representandouma busca pela salvação pessoal.

    Atrelado a isso é importante destacar que a busca pela performance está baseada em uma forma de ação justa, ou seja, na ideia do esforço pessoal quedesvincula os indivíduos de desigualdades sociais, como se as mesmas possibilidadesde ação fossem facultadas à todos e, consequentemente, como se todo e qualquerresultado obtido por um sujeito fosse unicamente meritocrático. João Freire Filhocritica essa visão, colocando que no seu ponto de vista representa “um discurso de

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    honra ao mérito individual que, com seus entusiásticos aplausos aos vencedores,ofusca as díspares possibilidades de aquisição das competências estimadas pelomercado, erigido em árbitro supremo de nosso valor pessoal” (FREIRE FILHO, 2011, p.49).

    Em linha com esses apontamentos, Bush (2014) critica os estudos realizados por correntes econômicas, que geralmente não prestam a atenção na maneira como as

    escolhas são situadas. Desta forma, Bush argumenta que recursos não são alocados pelo mercado como acreditam os economistas, mas são determinados em qualquersociedade pela sua estrutura organizacional, ou seja, suas instituições.

    Portanto, Bush defende que são as instituições que situam as escolhas que produzem o desempenho formatado, desenhado e estudado pelos economistas. As pessoas não necessariamente fazem suas escolhas baseado no que é bom para elas,individualmente ou coletivamente, visto que são limitadas por conexões sociais que

    determinam, em diferentes graus de acordo com cada caso, quem e o que estaráenvolvido na escolha.

    Neste sentido, é importante a colocação de Appadurai sobre a demanda,resultado de escolhas, estar longe de ser apenas uma resposta à disponibilidade de bens e dinheiro ou às necessidades individuais e, sim, representar uma “expressãoeconômica da lógica política do consumo” (APPADURAI, 2010, p. 48). A demanda,mesmo atrelada aos desejos individuais, é colocada como “impulso gerado eregulamentado socialmente” (APPADURAI, 2010, p. 50), até porque o autor realçaque é “impossível ver o desejo por bens como algo sem fundamentos ou independenteda cultura” (APPADURAI, 2010, p. 46).

    Assim, Bush aponta que as escolhas são condicionadas a serem limitadas, até pela nossa própria condição como seres limitados e falíveis que simplesmente nãotem conhecimento ou capacidade para sempre fazer a escolha correta. O presentedirecionamento à padronização de produtos, serviços e dos estilos de vida tambémaumenta o enquadramento da escolha.

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    Desta forma, ao caracterizar as escolhas de alimento, assim como outrasrelacionadas às necessidades básicas da vida, como uma decisão estritamenteindividual, cria-se diversos problemas coletivos, como a falta de nutrição adequadaque atinge um quinto da população mundial, o crescimento global da obesidade, alémde diversos problemas ambientais em decorrência do regime agricultor vigente. Noentanto, a glorificação da performance individual simulam tais questões como prova

    de fracasso pessoal (BUSH, 2014).De acordo com o que argumenta Bauman, tais fracassados são encarados pelo

    sistema vigente como consumidores falhos por não responderam aos atrativos bens postos para serem consumidos e, portanto, são “pessoas incapazes de ser “indivíduoslivres” conforme o senso de “liberdade” definido em função do poder de escolha doconsumidor” (BAUMAN, 1998, p. 24). Bush (2014) defende que isso não pode serresolvido com a continua atenção ao sucesso ou fracasso de uma escolha realizada, é

    preciso analisar a engrenagem que torna possível tal performance.Para isso, Bush (2014) coloca que escolhas melhores requerem uma

    governança democrática. O autor pontua que é apenas pela deliberação, nãomeramente pelo voto, que é possível descobrir os valores em comum e estruturar asescolhas de maneira que produzam como resultados os desejos sociais.

    Com isso, parte-se da premissa de que é através da deliberação quedeterminamos nossas vontades coletivas como algo político. É a partir da deliberaçãoque a arquitetura da escolha, produzida para direcionar as escolhas de consumo deacordo com os interesses da rentabilidade, começa a ser enfrentada (BUSH, 2014).

    Dentro deste contexto, Bush (2014) destaca que o movimentoSlow Food ,assim como mais tantos denominados como Alternative Agri-food Networks ( AAFNs ),formam uma rede de pessoas que desejam realizar a economia agroalimentar de umamaneira diferente, para desenvolver uma arquitetura da escolha radicalmente diferenteda que está em vigência.

    As AAFNs buscam promover o comercio justo, a solidez ambiental e outrasmaneiras de interromper e deslocar o direcionamento de mercado dominante no

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    sistema agroalimentar. De diferentes formas, a maioria dessas redes tentamreintroduzir a sociabilidade e trazer de volta a deliberação para a produção dealimento, seu processamento, marketing e consumo (BUSH, 2014).

    Observa-se nessas redes um engajamento para que as escolhas possam serreconstruídas para combater diversos problemas coletivos, como a devastaçãoambiental, a obesidade, etc. A questão que ressalta Bush (2014) é que muitas dessas

    redes apenas incitam as pessoas a mudarem seus hábitos de compra ao invés de iniciarum processo de repensar a rede global alimentar. Desta forma, reproduzem aindividualizada existência da arquitetura da escolha como oposição a formas coletivasde governança.

    Além disso, muitos varejistas tentam adaptar essas questões dentro docontexto do sistema agroalimentar dominante. Um exemplo é a rede desupermercadosWhole Foods , que prosperou incorporando muitos dos objetivos das

    AAFNs em sua missão e na arquitetura de escolhas utilizada (BUSH, 2014).Outros exemplos podem ser citados de estabelecimentos que incorporam a

    produção local e alimentos orgânicos dentro do repertório de produtos da loja,dispondo os produtos frescos de modo a imitar quitandas de um século atrás. Issomostra que o mundo corporativo rapidamente se apropria do alimento orgânico comouma estratégia de marketing (BUSH, 2014).

    Em relação ao consumidor, é importante colocar que ao comprar produtosorgânicos, ele está demonstrando preocupação com as problemáticas envolvidas emtorno do alimento, como uma forma de redenção moral pelo e no consumo, comoexplica Peres-Neto:

    quem se adéqua ao consumo consciente não só se redime de um conjunto devalores negativos como também os comunica à sociedade, como mecanismode galgar prestígio, eximir-se do fardo de certas responsabilidades e definir oseu circulo de pertencimentos junto à mesma (PERES-NETO, 2014, p. 3).

    Desta forma, fica evidente, como argumenta Bush (2014), que “as escolhasque eu faço no mercado não são necessariamente congruentes com o que eu querocomo cidadão em uma sociedade democrática” (BUSH, 2014, p. 16). Apesar de ser

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    fácil substituir as AAFNs pela implantação de políticas, o autor coloca que ao menosessas redes trazem à tona os problemas das escolhas individuais. Ao fazê-lo, cria-se o potencial de liderar uma ação coletiva que transcenda as escolhas individuais.

    O movimento Slow Food e sua atuação estratégica

    Essa discussão mostra a relevância dos movimentos sociais, mesmo que

    fragmentados, no contexto atual. Bommel e Spicer (2011) destacam que possuem umaação estratégica importante, pois compreendem desafios coletivos por pessoas com propostas em comum e a solidariedade em sustentar uma interação com as elites,adversários e autoridades.

    O Slow Food é um exemplo bem sucedido de movimentos que objetivamconstruir novas solidariedades e ir além da noção de escolha individual promovida pela indústria corporativa do alimento. Traz à tona o que ocorre nos bastidores e como

    as nossas escolhas geralmente são moldadas por arquiteturas perfeitamentedesenhadas para que aparentem ser autônomas e individuais.

    Esse movimento tem atraído grandes audiências e tem sido difundido pelacobertura midiática. Seu crescimento se destaca nos correntes debates sobre as redesde alimentos alternativos e questões morais que se apresentam no mercado. Destaforma, pode-se pontuar que sua vocação é nutrir uma discussão sobre qualidade devida na sociedade pós-moderna, além dos valores e convenções que estruturam a vidaeconômica (SASSATELLI, 2010).

    Portanto, é importante destacar que o movimentoSlow Food tem desafiadodiversos dogmas desenvolvidos de forma estratégica pelas corporações de alimento(BUSH, 2014). Exemplos disso podem ser encontrados no fato do movimentoencorajar a desaceleração e a melhora na qualidade de vida, opondo-se a padronizaçãodo gosto e da cultura, como também ao poder irrestrito das empresas multinacionaisno ramo de alimento e da agricultura industrial. De modo relevante, através da rede deconexões desenvolvida pelo seu evento bianualTerra Madre , percebe-se umatentativa de dar voz aos pequenos produtores ao redor do mundo.

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    Isso tem ligação com o apontamento de Sassatelli (2010) de que oSlow Food apresenta como o seu perfil internacional o engajamento em renovar o sistemaagricultor vigente. Para isso, o movimento também apresenta a necessidade de mudaro comportamento dos consumidores e das comunidades locais, em nome da uma re-avaliação do prazer e da sociabilidade como também da paisagem, meio ambiente enatureza.

    Desta forma, Sassatelli (2010) salienta que o prazer estético e sociabilidaderecrutam a baixa escala, a interconexão global, localismo, aspectos que devem seratingidos através da reponsabilidade de consumidores conscientes do que ocorre portrás da proliferação de mercadorias baratas produzidas de forma rápida. Assim, taisconsumidores devem estar dispostos a suportar outras maneiras de articular a produção e o consumo.

    É por isso, segundo Sassatelli (2010), que oSlow Food insiste em menor

    quantidade de alimento e melhor qualidade deste, em prol da ênfase sobre a noção deque o alimento prazeroso é democrático, mesmo que isso possa ser dispendioso. Érelembrado que os padrões de consumo dependem de renda, mas não dela sozinha.Desta forma, o movimento defende que há outras maneiras de aumentar adisponibilidade do alimento de qualidade, como o provisionamento de gênerosalimentícios, a rotina de preparar e cozinhar o alimento, além de formas demanutenção e divisão.

    Assim, a qualidade do alimento é fundamental para a apreciação da comidacomo um bem cultural. O alimento pode se tornar um instrumento de educação,conscientização cultural e emancipação social. Em certo modo, o alimento e a culturado comer fazem parte da chamada pequena ética (PERES-NETO, LOPES, 2013).Desta forma, oSlow Food defende que a politização é um resultado de umquestionamento persistente sobre o conceito de qualidade do alimento(SASSATELLI, 2010).

    Dentro desta abordagem, a qualidade é colocada como uma representação da personalidade do consumidor, que demonstrando uma consciência inteligente,

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    competência e exigência. Este se mostra apto para reconhecer a qualidade e suportarisso em suas considerações, agindo com mais cautela no mercado. Em particular,Sassatelli (2010) assinala que o que qualifica a referência doSlow Food ao consumo éseu foco na materialidade como cultura. Isso implica em colocar em primeiro plano arelação sujeito objeto, com o gosto e seu refinamento através de um treinamento prático sendo o principal dispositivo para aumentar a conscientização.

    Deste modo, o que Sassatelli (2010) chama “De-fetishization”, ou ailuminação das relações de produção que são embutidas nas mercadorias, sãoatreladas ao foco primário da cultura material como uma apropriação lenta, treinada eresponsável. Treinar consumidores para consumir melhor pode ser concebido como achave de um ato político. Portanto, esta invocação do consumidor como um elementochave para a mudança é crucial para todo o campo do consumo crítico e político.

    Assim, após esses breves apontamentos que mostram a relevância do

    movimentoSlow Food , com a intenção de transformar as escolhas individuais emações coletivas que contribuam pra a construção de uma vida boa em sociedade,volta-se a atenção para o fato dele ser um exemplo bem sucedido. Aparentemente, poderia-se supor que o sucesso do movimento se deve às suas propostas deengajamento e resistências, porém, não é isso que Bommel e Spicer (2011) apontam.

    De acordo com Bommel e Spicer (2011), estudos existentes enfatizam comomovimentos criam novos campos pela mobilização de recursos, aproveitandovantagens políticas e concebendo questões de maneiras vantajosas. No entanto,muitos ignoram como que movimentos sociais constroem suas agendas através doengajamento em uma luta hegemônica.

    Portanto, para que movimentos sociais construam e estendam seu campo deatuação, precisam mobilizar novas ligações, construindo alianças entre diferentesatores que possuem geralmente distintos interesses. Ao mesmo tempo, devem criaruma linguagem envolvente e identidade coletiva, o que mantém os diversos atores juntos (BOMMEL; SPICER, 2011).

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    Com isso, amplia-se a gama de significados flutuantes, aumentando aambiguidade dos pontos nodais, o que permite aos movimentos sociais estender suasreivindicações para além de um estreito foco e envolver um público amplo. Assim, aoestender os contatos e fomentar identificação entre atores diversos, tais movimentosse fortalecem, aumentam suas possibilidades de atuação e, consequentemente, suasdimensões políticas (BOMMEL; SPICER, 2011).

    Consequentemente, Bommel e Spicer (2011) defendem que coligaçõesimportantes dentro do movimentoSlow Food criaram este novo campo através doemprego estratégico de uma gama de protestos que combinaram autonomia eengajamento. Isso mobilizou grupos que a princípio não tinham relações entre si,como gourmets , fazendeiros e ambientalistas.

    Este aspecto também é percebido a partir da ênfase retórica na fala de muitos participantes do movimento. Neste sentido, Petrini, o fundador doSlow Food , pontua

    que comunidades que participam do movimento devem ser anárquicas e que aTerra Madre nunca deve ser estruturada, que é uma estrutura livre para seguir sua próprianatureza. Dentro deste contexto, Petrini enfatiza que todos podem explorar suasfantasias, criatividade e traduzir seus direitos em obrigações (PEACE, 2006).

    Como coloca Peace (2006), para diversos membros do movimento, esse estiloretórico enalteceu um senso de comunidade e uma nova direção de sentido para omundo e para a própria vida. Além de um sentimento de unidade, criou-se um sensode propósito para o evento como um todo.

    Desta forma, o movimento aumentou o estoque de significantes flutuantesutilizados para descrever suas atividades, tornando os pontos nodais cada vez maisabstratos, o que permitiu coerência às suas diversas atividades. Isso também ajudou afomentar um senso de identificação entre o crescimento de diferentes constituintes(BOMMEL; SPICER, 2011).

    Pelo fato de mobilizar diversos constituintes e fomentar uma ampla identidadecoletiva, o movimentoSlow Food se tornou apto a criar ligações hegemônicas entregrupos que anteriormente eram separados. Isso fez com o que oSlow Food deixasse

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    de ser um movimento de nicho, para incluir uma série de organizações, instituições de pesquisa, restaurantes, ativistas, produtores de alimento e órgãos políticos.

    Desta forma, de acordo com esta análise, Bommel e Spicer (2011) apontamque o destaque aoSlow Food como uma relevante tribo pós-moderna na arenainternacional se deve à sua forma de atuação. Portanto, as mudanças que ocorreramno Slow Food desde seu surgimento até os dias atuais são sustentadas por múltiplas

    estratégias, incremento no estoque discursivo de significados flutuantes e pontosnodais abstratos.

    Considerações em processo

    Ao discutir as possibilidades de escolha em um mundo performático, pontuando implicações em âmbito individual e coletivo, confirma-se a colocação deSassatelli (2010) de que oSlow Food apresenta-se como objeto social intrigante e

    ambíguo.Ao mesmo tempo que critica sérias questões que abalam os contextos atuais,

    buscando politizar as escolhas de consumo como uma forma de atuação coletivacarente na contemporaneidade, desenvolve estratégias para aumentar o poder de seudiscurso. Isso remete, não de forma linear, à discussão desenvolvida por Michel deCerteau (2014), que enfatiza um jogo de relações de força entre os dominantes e osdominados, que podem ser discernidos respectivamente por produtores econsumidores.

    Desta forma, Certeau (2014) trabalha a argumentação de que osconsumidores formulam suas táticas frente as estratégias que lhe são impostas,desenvolvendo assim, astúcias de negociação. Portanto, pode-se inferir que osurgimento do movimentoSlow Food ocorreu a partir do desenvolvimento de astúciasdentro do contexto global, criticando as relações hegemônicas de poder.

    No entanto, pelo o que foi apontado por Bommel e Spicer (2011), percebe-seuma apropriação da atuação hegemônica em busca de aumentar sua força política, processo que em tese critica. Isso mostra novas possibilidades de atuação do sujeito,

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    com uma ética não necessariamente dúbia, mas astuta, que se articula para sobreviverfrente as ferramentas dispostas.

    Referências APPADURAI, Arjun. “Introdução: mercadorias e a política de valor”. In:____________.Avida social das coisas : a mercadoria sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora daUniversidade Federal Fluminense, 2010.

    BACCEGA, Maria Aparecida (org.).Comunicação e culturas do consumo . São Paulo:Atlas, 2008.

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