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2. O Mulato [1881] Alusio Azevedo [1857-1913] Verso para eBook eBooksBrasil.com Fonte Digital Ministrio da Cultura Fundao BIBLIOTECA NACIONAL Departamento Nacional do Livro www.bn.br [http://www.bn.br/bibvirtual/acervo/] Capa: Mercado de Escravos Rugendas Copyright: Domnio Pblico 3. ndice Nota Informativa Maria Cristina Gioseffi O Autor O MULATO Captulo 1 Captulo 2 Captulo 3 Captulo 4 Captulo 5 Captulo 6 Captulo 7 Captulo 8 Captulo 9 Captulo 10 Captulo 11 Captulo 12 Captulo 13 Captulo 14 Captulo 15 Captulo 16 Captulo 17 Captulo 18 Captulo 19 4. O MULATO Alusio de Azevedo Nota Informativa Alusio Tancredo Gonalves de Azevedo nasceu no Maranho a 14 de abril de 1857, vindo a demonstrar muito cedo a vocao para as letras. Ainda jovem, l muito, colabora nos jornais com versos e desenhos, ensina portugus. Aos 19 anos transfere-se para o Rio de Janeiro, onde seu irmo, Artur Azeve- do, encontrava-se j cercado de grande xito. Alusio Azevedo chega ao Rio com o propsito de se aper- feioar em desenho e pintura; trabalha como caricaturista para vrios jornais; estuda durante um ano na Escola de Belas-Artes e luta com grande dificuldade na corte. Em 1879, com o faleci- mento do pai, retorna ao Maranho. Entre 1880 e 1881, milita contra o clero e os jornais catlicos na imprensa de So Lus principalmente nos peridicos A Pacotilha e O Pensador. Esta militncia de certa forma influenciar a escritura da obra O mu- lato. Em O mulato, publicado no ano de 1881, Alusio Azevedo deixa marcado, pela ambincia e cenrio da obra, o preconceito racial maranhense, alm de demonstrar os abusos eclesisticos que se escondiam, como por salvo-conduto, na batina e na su- posta santidade de um homem por ter-se tornado um padre. O fato de retratar as contradies e intolerncias maranhenses ex- plica por que a obra foi recebida de maneira entusistica pela crtica literria na corte e nas provncias e renegada no Maranho. O mulato consagra tambm a escrita naturalista de Alusio Azevedo, situando o autor como o maior representante deste es- tilo no Brasil. Pode-se dizer que a escrita naturalista impressa na obra inaugura uma nova fase para a literatura brasileira, libertan- do-a, como soluo, dos impasses trazidos pelo Romantismo. 5. Ao ler o livro de Azevedo, exuberante pela crueza natura- lista, pode-se sentir a dor desesperada de um homem cujo nico desvio de carter foi ter nascido mulato. Raimundo, homem cul- to e rico, formado na Europa e acostumado s liberdades e refi- namentos que somente a vida instruda pode trazer, descobre, ao retornar ptria, a impossibilidade de realizar uma paixo pelas amarras irremediveis que as correntes sociais criaram diante da comprovao de sua ascendncia negra: ele era filho de uma es- crava! Raimundo tem, ento, que suportar o peso da intolerncia de uma sociedade em que o valor maior do ser humano era nas- cer branco... E nada do que fizesse ou alegasse faria mudar o preconceito entranhado naquelas pessoas. Diante de to irreme- divel destino, resta ao autor entregar seu protagonista aos de- sgnios deterministas da marca naturalista... O cotejo desta obra baseou-se nas edies de 1973, publicada pela Ediouro (Clssicos brasileiros) e de 1975, edita- da pela Livraria Martins Editora S. A., INL (Instituto Nacional do Livro). Maria Cristina Gioseffi 6. O Autor Alusio Azevedo NOME LITERRIO: AZEVEDO, Alusio NOME COMPLETO: AZEVEDO, A. Tancredo Gonal- ves de PSEUDNIMO: Pitribi; Luinho; Gerofle; Semicpio dos Lampies; Acropolio; Vitor Leal (assinava este junto com Olavo Bilac, Coelho Neto e Pardal Mallet); Rui Vaz; Aliz-Alaz; Asmodeu. NASCIMENTO: So Luiz, MA, 14 de abril de 1857. FALECIMENTO: Buenos Aires, Argentina, 21 de janeiro de 1913. BIOGRAFIA: Em 1875, trabalha como caixeiro. Nesta poca colabora em jornais com versos e desenhos e ensina portugus. A convite do irmo, o comedigrafo Artur Azevedo, embarca para o Rio de Janeiro, trabalhando como caricaturista nas redaes de jornais polticos e humorsticos. L, cursa a Imperial Academia de Be- las Artes. Com o falecimento do pai em 1878, retorna ao Maranho, onde colabora na imprensa. Foi um dos fundadores do jornal O Pensador. Volta ao Rio de Janeiro em 1882, militan- do ativamente na imprensa. Em 1891, nomeado Oficial-Maior da Secretaria de Negcios do Governo do Estado do Rio. Em 1895, fez concursos na Secretaria do Exterior para cnsul, sendo nomeado vice-cnsul, em Vigo, em 1895. Desde ento, no mais publicou um livro, vendendo sua propriedade literria a H. Garnier. Em 1910, foi promovido a cnsul de primeira classe. Em 1911, sem prejuzo das funes consulares foi transferido para o posto de Adido Comercial junto s legaes do Brasil na Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai. 7. O Mulato Alusio Azevedo 1 Era um dia abafadio e aborrecido. A pobre cidade de So Lus do Maranho parecia entorpecida pelo calor. Quase que se no podia sair rua: as pedras escaldavam; as vidraas e os lam- pies faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes ti- nham reverberaes de prata polida; as folhas das rvores nem se mexiam; as carroas dgua passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prdios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaadas, invadiam sem-cerimnia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos no se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adorme- cido; s os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho. A Praa da Alegria apresentava um ar fnebre. De um ca- sebre miservel, de porta e janela, ouviam-se gemer os armado- res enferrujados de uma rede e uma voz tsica e aflautada, de mulher, cantar em falsete a gentil Carolina era bela; do outro lado da praa, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e melanclico: Fgado, rins e corao!. Era uma vendedeira de fatos de boi. As crianas nuas, com as perninhas tortas pelo costume de cavalgar as ilhargas maternas, as cabeas avermelhadas pelo sol, a pele 8. crestada os ventrezinhos amarelentos e crescidos, corriam e guin- chavam, empinando papagaios de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair, atravessava a rua, suado, verme- lho, afogueado, sombra de um enorme chapu-de-sol. Os ces, estendidos pelas caladas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos, movimentos irascveis, mordiam o ar querendo mor- der os mosquitos. Ao longe, para as bandas de So Pantaleo, ouvia-se apregoar: Arroz de Veneza! Mangas! Mocajubas! s esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabo da terra e aguardente. O quitandeiro, assentado sobre o balco, cochilava a sua preguia morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado p descalo. Da Praia de Santo Antnio en- chiam toda a cidade os sons invariveis e montonos de uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do mar; para l convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabea, rebolando os grossos quadris trmulos e as tetas opulentas. A Praia Grande e a Rua da Estrela contrastavam todavia com o resto da cidade, porque era aquela hora justamente a de maior movimento comercial. Em todas as direes cruzavam-se homens esbofados e rubros; cruzavam-se os negros no carreto e os caixeiros que estavam em servio na rua; avultavam os pale- ts-sacos, de brim pardo, mosqueados nas espduas e nos sova- cos por grandes manchas de suor. Os corretores de escravos exa- minavam, plena luz do sol, os negros e moleques que ali esta- vam para ser vendidos; revistavam-lhes os dentes, os ps e as virilhas; faziam-lhes perguntas sobre perguntas, batiam-lhes com a biqueira do chapu nos ombros e nas coxas, experimentando- lhes o vigor da musculatura, como se estivessem a comprar ca- valos. Na Casa da Praa, debaixo das amendoeiras, nas portadas dos armazns, entre pilhas de caixes de cebolas e batatas portu- guesas, discutiam-se o cmbio, o preo do algodo, a taxa do acar, a tarifa dos gneros nacionais; volumosos comendadores resolviam negcios, faziam transaes, perdiam, ganhavam, tra- tavam de embarrilar uns aos outros, com muita manha de gente de negcios, falando numa gria s deles trocando chalaas pe- sadas, mas em plena confiana de amizade. Os leiloeiros canta- 9. vam em voz alta o preo das mercadorias, com um abrimento afetado de vogais; diziam: Mal-rais em vez de mil-ris. porta dos leiles aglomeravam-se os que queriam comprar e os sim- ples curiosos. Corria um quente e grosseiro zunzum de feira. O leiloeiro tinha piscos de olhos significativos; de martelo em punho, entusiasmado, o ar trgico, mostrava com o brao erguido um clice de cachaa, ou, comicamente acocorado, esbrocava com o furador os paneiros de farinha e de milho. E, quando chegava a ocasio de ceder a fazenda, repetia o preo muitas vezes, gritando, e afinal batia o martelo com grande baru- lho, arrastando a voz em um tom cantado e estridente. Viam-se deslizar pela praa os imponentes e monstruosos abdomens dos capitalistas; viam-se cabeas escarlates e descabeladas, gotejando suor por debaixo do chapu de plo; risinhos de proteo, bocas sem bigode dilatadas pelo calor, perninhas espertas e suadas na cala de brim de Hamburgo. E toda esta atividade, posto que um tanto fingida, era geral e co- municativa; at os ricos ociosos, que iam para ali encher o dia, e os caixeiros, que faziam cera e at os prprios vadios desempre- gados, aparentavam diligncia e prontido. A varanda do sobrado de Manuel Pescada, uma varanda larga e sem forro no teto, deixando ver as ripas e os caibros que sustentavam as telhas, tinha um aspecto mais ou menos pitores- co com a sua bela vista sobre o rio Bacanga e as suas rtulas pintadas de verde-paris. Toda ela abria para o quintal, estreito e longo, onde, mingua de sol, se mirravam duas tristes pitangueiras e passeava solenemente um pavo da terra. As paredes, barradas de azulejos portugueses e, para o alto, cobertas de papel pintado, mostravam, nos seus desenhos repeti- dos de assuntos de caa, alguns lugares sem tinta, cujas manchas brancacentas traziam idia joelheiras de calas surradas. Ao lado, dominando a mesa de jantar, aprumava-se um velho arm- rio de jacarand polido, muito bem tratado, com as vidraas bem limpas, expondo as pratas e as porcelanas de gosto moderno; a um canto dormia, esquecida na sua caixa de pinho envernizado, uma mquina de costura de Wilson, das primeiras que chegaram ao Maranho; nos intervalos das portas simetrizavam-se quatro 10. estudos de Julien, representando em litografia as estaes do ano; defronte do guarda-loua um relgio de corrente embalava me- lancolicamente a sua pndula do tamanho de um prato e aponta- va para as duas horas. Duas horas da tarde. No obstante, ainda permanecia sobre a mesa a loua que servira ao almoo. Uma garrafa branca, com uns restos de vinho de Lisboa cintilava claridade reverberante que vinha do quin- tal. De uma gaiola, dependurada entre as janelas desse lado, chil- reava um sabi. Fazia preguia estar ali. A virao do Bacanga refrescava o ar da varanda e dava ao ambiente um tom morno e aprazvel. Havia a quietao dos dias inteis, uma vontade lassa de fechar os olhos e esticar as pernas. L defronte, nas margens opostas do rio, a silenciosa vegetao do Anjo da Guarda estava a provocar boas sestas sobre o capim, debaixo das mangueiras; as rvores pareciam abrir de longe os braos, chamando a gente para a cal- ma tepidez das suas sombras. Ento, Ana Rosa, que me respondes?... disse Manuel, esticando-se mais na cadeira em que se achava assentado, ca- beceira da mesa, em frente da filha. Bem sabes que te no con- trario... desejo este casamento, desejo... mas, em primeiro lugar, convm saber se ele do teu gosto... Vamos... fala! Ana Rosa no respondeu e continuou muito embebida, como estava, a rolar sob a ponta cor-de-rosa dos seus dedos as migalhas de po que ia encontrando sobre a toalha. Manuel Pedro da Silva, mais conhecido por Manuel Pes- cada, era um portugus de uns cinqenta anos, forte, vermelho e trabalhador. Diziam-no atilado para o comrcio e amigo do Bra- sil. Gostava da sua leitura nas horas de descanso, assinava res- peitosamente os jornais srios da provncia e recebia alguns de Lisboa. Em pequeno meteram-lhe na cabea vrios trechos do Cames e no lhe esconderam de todo o nome de outros poetas. Prezava com fanatismo o Marqus de Pombal, de quem sabia muitas anedotas e tinha uma assinatura no Gabinete Portugus, a qual lhe aproveitava menos a ele do que filha, que era perdida pelo romance. Manuel Pedro fora casado com uma senhora de Alcntara, 11. chamada Mariana, muito virtuosa e, como a melhor parte das maranhenses, extremada em pontos de religio; quando morreu, deixou em legado seis escravos a Nossa Senhora do Carmo. Bem triste foi essa poca, tanto para o vivo como para a filha, orfanada; coitadinha, justamente quando mais precisava do amparo maternal. Nesse tempo moravam no Caminho Gran- de, numa casinha trrea, para onde a molstia de Mariana os le- vara em busca de ares mais benignos; Manuel, porm, que era j ento negociante e tinha o seu armazm na Praia Grande, mu- dou-se logo com a pequena para o sobrado da Rua da Estrela, em cujas lojas prosperava, havia dez anos, no comrcio de fazendas por atacado. Para no ficar s com a filha que se fazia uma mulher con- vidou a sogra, D. Maria Brbara, a abandonar o stio em que vivia e ir morar com ele e mais a neta. A menina precisava de algum que a guiasse, que a conduzisse! Um homem nunca po- dia servir para essas coisas! E, se fosse a meter em casa uma preceptora Meu bom Jesus! que no diriam por ai?... No Maranho falava-se de tudo! D. Maria Brbara que se decidisse a deixar o mato e fosse de muda para a Rua da Estrela! No teria que se arrepender... havia de estar como em sua prpria casa bom quarto, boa mesa, e plena liberdade! A velha aceitou e l foi, arrastando os seus cinqenta e tantos anos, alojar-se em casa do genro, com um batalho de moleques, suas crias, e com os cacarus ainda do tempo do de- funto marido. Em breve, porm, o bom portugus estava arre- pendido do passo que dera: D. Maria Brbara, apesar de muito piedosa; apesar de no sair do quarto sem vir bem penteada, sem lhe faltar nenhum dos cachinhos de seda preta, com que ela emol- durava disparatadamente o rosto enrugado e macilento; apesar do seu grande fervor pela igreja e apesar das missas que papava por dia, D. Maria Brbara, apesar de tudo isso, sara-lhe m dona de casa. Era uma fria! Uma vbora! Dava nos escravos por hbito e por gosto; s falava a gritar e, quando se punha a ralhar Deus nos acuda! , incomodava toda a vizinhana! Insuportvel! Maria Brbara tinha o verdadeiro tipo das velhas 12. maranhenses criadas na fazenda. Tratava muito dos avs, quase todos portugueses; muito orgulhosa; muito cheia de escrpulos de sangue. Quando falava nos pretos, dizia Os sujos e, quando se referia a um mulato dizia O cabra. Sempre fora assim e, como devota, no havia outra: Em Alcntara, tivera uma capela de Santa Brbara e obrigava a sua escravatura a rezar a todas as noites, em coro, de braos abertos, s vezes algemados. Lembrava-se com grandes suspiros do marido do seu Joo Hiplito um portu- gus fino, de olhos azuis e cabelos louros. Este Joo Hiplito foi brasileiro adotivo e chegou a fazer alguma posio oficial na secretaria do governo da provncia. Morreu com o posto de coronel. Maria Brbara tinha grande admirao pelos portugueses, dedicava-lhes um entusiasmo sem limites, preferia-os em tudo aos brasileiros. Quando a filha foi pedida por Manuel Pedroso, ento principiante no comrcio da capital, ela dissera: Bem! Ao menos tenho a certeza de que branco! Mas o Pescada no compreendeu a esposa, nem foi amado por ela; a virtude, ou talvez simplesmente a maternidade, apenas conseguiu fazer de Mariana uma companheira fiel; viveu exclu- sivamente para a filha. que a desgraada, desde os quinze anos, ainda no irresponsvel arrebatamento do primeiro amor, havia eleito j o homem a quem sua alma teria de pertencer por toda a vida. Esse homem existe hoje na histria do Maranho, era o agitador Jos Cndido de Moraes e Silva conhecido popularmente pelo Farol. Fez todo o possvel para casar com ele, mas foram baldados os seus esforos, nem s em virtude das perseguies polticas que, to cedo, atribularam a curta existncia daquela fenomenal criatura, como tambm pela inflexvel oposio que tal idia encontrou na prpria famlia da rapariga. Entretanto, o destino dela se havia prendido sorte do des- venturado maranhense. Quem diria que aquela pobre moa, nas- cida e criada nos sertes do Norte, sentiria, como qualquer filha das grandes capitais, a mgica influncia que os homens superi- ores exercem sobre o esprito feminino? Amou-o, sem saber por qu. Sentira-lhe a fora dominadora do olhar, os mpetos revolu- 13. cionrios do seu carter americano, o herosmo patritico da sua individualidade to superior ao meio em que floresceu; decora- ra-lhe as frases apaixonadas e vibrantes de indignao, com que ele fulminava os exploradores da sua ptria estremecida e os ini- migos da integridade nacional; e tudo isso, sem que ela soubesse explicar, arrebatou-a para o belo e destemido moo com todo o ardor do seu primeiro desejo de mulher. Quando, na Rua dos Remdios, que nesse tempo era ainda um arrabalde, o desditoso heri, apenas com pouco mais de vin- te e cinco anos de idade sucumbiu ao jugo do seu prprio talento e da sua honra poltica, oculto, foragido, cheio de misria, odia- do por uns como um assassino e adorado por outros como um deus, a pobre senhora deixou-se possuir de uma grande tristeza e foi enfraquecendo, e ficando doente, e ficando feia e cada vez mais triste, at morrer silenciosamente poucos anos depois do seu amado. Ana Rosa no chegou a conhecer o Farol; a me porm, muito em segredo, ensinara-lhe a compreender e respeitar a me- mria do talentoso revolucionrio, cujo nome de guerra desper- tava ainda, entre os portugueses, a raiva antiga do motim de 7 de agosto de 1831. Minha filha, disse-lhe a infeliz j nas vsperas da morte, no consintas nunca que te casem, sem que ames deve- ras o homem a ti destinado para marido. No te cases no ar! Lembra-te que o casamento deve ser sempre a conseqncia de duas inclinaes irresistveis. A gente deve casar porque ama, e no ter de amar porque casou. Se fizeres o que te digo, sers feliz! Concluiu pedindo-lhe que prometesse, caso algum dia vi- essem a constrang-la a aceitar marido contra seu gosto, arrostar tudo, tudo, para evitar semelhante desgraa, principalmente se ento Ana Rosa j gostasse de outro; e por este, sim, fosse quem fosse, cometesse os maiores sacrifcios, arriscasse a prpria vida, porque era nisso que consistia a verdadeira honestidade de uma moa. E mais no foram os conselhos que Mariana deu filha. Ana Rosa era criana, no os compreendeu logo, nem to cedo procurou compreend-los; mas, to ligados estavam eles mor- te da me, que a idia desta no lhe acudia memria sem as 14. palavras da moribunda. Manuel Pedro, apesar de bom, era um desses homens mais que alheados s sutilezas do sentimento; para outra mulher daria talvez um excelente esposo, no para aquela, cuja sensibilidade romntica, longe de o comover, havia muita vez de importun- lo. Quando se achou vivo, no sentiu, a despeito da sua natural bondade, mais do que certo desgosto pela ausncia de uma com- panheira com que j se tinha habituado; contudo, no pensou em tornar a casar, convencido de que o afeto da filha lhe chegaria de sobra para amenizar as canseiras do trabalho, e que o auxlio imediato da sogra bastaria para garantir a decncia da sua casa e a boa regra das suas despesas domsticas. Ana Rosa cresceu pois, como se v, entre os desvelos insu- ficientes do pai e o mau gnio da av. Ainda assim aprendera de cor a gramtica do Sotero dos Reis; lera alguma coisa; sabia ru- dimentos de francs e tocava modinhas sentimentais ao violo e ao piano. No era estpida; tinha a intuio perfeita da virtude, um modo bonito, e por vezes lamentara no ser mais instruda. Conhecia muitos trabalhos de agulha; bordava como poucas, e dispunha de uma gargantazinha de contralto que fazia gosto ou- vir. Tanto assim que, em pequena, servira vrias vezes de anjo da vernica nas procisses da quaresma. E os cnegos da S ga- bavam-lhe o metal da voz e davam-lhe grandes cartuchos de amndoas de mendubim, muito enfeitados nas suas pinturas, tos- cas e caractersticas, feitas a goma-arbica e tintas de botica. Nessas ocasies ela sentia-se radiante, com as faces carminadas, a cabea coberta de cachos artificiais, grande roda no vestido curto, a jeito de danarina. E, muito concha, ufana dos seus ga- les de prata e ouro e das suas trmulas asas de papelo e escumillha, caminhava triunfante e feliz no meio do cordo das irmandades religiosas, segurando a extremidade de um leno, do qual o pai segurava a outra. Isto eram promessas feitas pela me ou pela av em dias de grande enfermidade na famlia. E crescera sempre bonita de formas. Tinha os olhos pretos e os cabelos castanhos de Mariana, e puxara ao pai as rijezas de corpo e os dentes fortes. Com a aproximao da puberdade apa- 15. receram-lhe caprichos romnticos e fantasias poticas: gostava dos passeios ao luar, das serenatas; arranjou ao lado do seu quar- to um gabinete de estudo, uma bibliotecazinha de poetas e ro- mancistas; tinha um Paulo e Virgnia de biscuit sobre a estante e, escondido por detrs de um espelho, o retrato do Farol, que her- dara de Mariana. Lera com entusiasmo a Graziela de Lamartine. Chorou muito com essa leitura e, desde a, todas as noites, antes de ador- mecer, procurava instintivamente imitar o sorriso de inocncia que a procitana oferecia ao seu amante. Praticava bem com os pobres, adorava os passarinhos e no podia ver matar perto de si uma borboleta. Era um bocadinho supersticiosa: no queria as chinelas emborcadas debaixo da rede e s aparava os cabelos durante o quarto crescente da lua. No que acreditasse nessas coisas, justificava-se ela, mas fazia porque os outros faziam. Sobre a cmoda, havia muito tempo, tinha uma estampa litogrfica e colorida de Nossa Senhora dos Remdios e rezava-lhe todas as noites, antes de dormir. Nada conhecia melhor e mais agradvel do que um passeio ao Cutim, e, quando soube que se projetava uma linha de bondes at l, teve uma satisfao violenta e nervo- sa. Feitos os quinze anos, ela comeou pouco a pouco a desco- brir em si estranhas mudanas; percebeu, sentiu que uma trans- formao importante se operava no seu esprito e no seu corpo: sobressaltavam-na terrores infundados; acometiam-na tristezas sem motivo justificvel. Um dia, afinal, acordou mais preocupa- da; assentou-se na rede, a cismar. E, com surpresa, reparou que seus membros ultimamente se tinham arredondado; notou que em todo seu corpo a linha curva suplantara a reta e que as suas formas eram j completamente de mulher. Veio-lhe ento um sobressalto de contentamento mas logo depois caiu a entristecer: sentia-se muito s; no lhe bastava o amor do pai e da velha Barbara; queria uma afeio mais exclu- siva, mais dela. Lembrou-se dos seus namoros. Riu-se coisas de criana!... Aos doze anos namorara um estudante do Liceu. Haviam 16. conversado trs ou quatro vezes na sala do pai e supunham-se deveras apaixonados um pelo outro; o estudante seguiu para a Escola Central da Corte, e ela nunca mais pensou nele. Depois foi um oficial de marinha; Como lhe ficava bem a farda!... Que moo engraado! bonito! e como sabia vestir-se!... Ana Rosa chegou a principiar a bordar um par de chinelas para lho ofere- cer; antes porm de terminado o primeiro p, j o bandoleiro havia desaparecido com a corveta Baiana. Seguiu-se um empre- gado do comrcio. Muito bom rapaz! muito cuidadoso da roupa e das unhas!... Parecia-lhe que ainda estava a v-lo, todo metdi- co, escolhendo palavras para lhe pedir a subida honra de danar com ela uma quadrilha. Ah tempos! tempos!.. E no queria pensar ainda em semelhantes tolices. Coisas de criana! Coisas de criana!... Agora, s o que lhe convinha era um marido! O seu, o verdadeiro, o lega!! O homem da sua casa, o dono do seu corpo, a quem ela pudesse amar abertamente como amante e obedecer em segredo como escrava. Precisava de dar-se e dedicar-se a algum; sentia absoluta necessidade de pr em ao a competncia, que ela em si reconhecia, para tomar conta de uma casa e educar muitos filhos. Com estes devaneios, acudia-lhe sempre um arrepiozinho de febre; ficava excitada, idealizando um homem forte, corajo- so, com um bonito talento, e capaz de matar-se por ela. E, nos seus sonhos agitados, debuxava-se um vulto confuso, mas en- cantador, que galgava precipcios, para chegar onde ela estava e merecer-lhe a ventura de um sorriso, uma doce esperana de ca- samento. E sonhava o noivado: um banquete esplndido! e junto dela, ao alcance de seus lbios, um mancebo apaixonado e for- moso, um conjunto de fora, graa e ternura, que a seus ps ardia de impacincia e devorava-a com o olhar em fogo. Depois via-se dona de casa; pensando muito nos filhos; sonhava-se feliz, muito dependente na priso do ninho e no do- mnio carinhoso do marido. E sonhava umas criancinhas louras, ternas, balbuciando tolices engraadas e comovedoras, chaman- do-lhe mam! Oh! Como devia ser bom!... E pensar que havia por a 17. mulheres que eram contra o casamento!... No! Ela no podia admitir o celibato, principalmente para a mulher!... Para o homem ainda passava... viveria triste, s; mas em todo o caso era um homem... teria outras distraes! Mas uma pobre mulher, que melhor futuro poderia ambicionar que o casamento?... que mais legtimo prazer do que a materni- dade; que companhia mais alegre do que a dos filhos, esses dia- binhos to feiticeiros?.. Alm de que, sempre gostara muito de crianas: muita vez pedira a quem as tinha que lhas mandasse a fazer-lhe companhia, e, enquanto as pilhava em casa, no con- sentia que mais ningum se incomodasse com elas; queria ser a prpria a dar-lhes a comida, a lav-las, a vesti-las, e acalent-las E estava constantemente a talhar camisinhas e fraldas, a fazer toucas e sapatinhos de l, e tudo com muita pacincia, com mui- to amor, justamente como, em pequenina, ela fazia com as suas bonecas. Quando alguma de suas amigas se casava, Ana Rosa exigia dela sempre um cravo do ramalhete ou um boto das flo- res de laranjeira da grinalda; este ou aquele, pregava-os religio- samente no seio com um dos alfinetes dourados da noiva, e quedava-se a fit-los, cismando, at que dos lbios lhe partia um suspiro longo, muito longo, como o do viajante que em meio do caminho j se sente cansado e ainda no avista o lar. Mas o noivo por onde andava que no vinha? Esse belo mancebo, to ardente e to apaixonado, por que se no apresen- tava logo? Dos homens que Ana Rosa conhecia na provncia nenhum decerto podia ser!... E, no entanto, ela amava... A quem? No sabia diz-lo, mas amava. Sim! Fosse a quem fosse, ela amava; porque sentia vibrar-lhe todo o corpo, fibra por fibra, pensando nesse Algum ntimo e desconhecido para ela; esse Algum que no vinha e no lhe saa do pensamento; esse Al- gum cuja ausncia a fazia infeliz e lhe enchia a existncia de lgrimas. Passaram-se meses nada! Correram trs anos. Ana Rosa principiou a emagrecer visivelmente. Agora dormia menos; es- tava plida; mesa mal tocava nos pratos. 18. pai, j incomodado com aquele ar doentio da filha. No me pareces a mesma! Que isso, Anica? No era nada!... E Ana Rosa sobressaltava-se, como se tivera cometido uma falta. Cansao! Nervos! No era coisa que valesse a pena!... Mas chorava. Olha! A temos! Agora o choro! Nada! preciso cha- mar o mdico! Chamar o mdico?... Ora papai, no vale a pena!... E tossia. Que a deixassem em paz! Que no a estivessem apoquentando com perguntas!... E tossia mais, sufocada. Vs?! Ests achacada! Levas nesse Chrum, chrum! chrum chrum! E s: No vale a pena! No precisa chamar o mdico!... No senhora! com molstias no se brinca! O mdico receitou banhos de mar na Ponta dAreia. Foi um tempo delicioso para ela os trs meses que a pas- sou. Os ares da costa, os banhos de choque, os longos passeios a p, restituram-lhe o apetite e enriqueceram-lhe o sangue. Ficou mais forte; chegou a engordar. Na Ponta dAreia travara uma nova amizade D. Eufrasinha. Viva de um oficial do quinto de infantaria, batalho que morreu todo na Guerra do Paraguai. Muito romntica: falava do marido requebrando-se, e poetizava-lhe a curta histria: Dez dias depois de casados, seguira ele para o campo de batalha e, no denodo da sua coragem, fora atravessado por uma bala de artilharia, mor- rendo logo a balbuciar com o lbio ensangentado o nome da esposa estremecida. E com um suspiro, feito de desejos mal satisfeitos, a viva conclua pesarosa que prazeres nesta vida, conhecera apenas dez dias e dez noites... Ana Rosa compadecia-se da amiga e escutava-lhe de boa- f as frioleiras. Na sua ingnua e comovida sinceridade facil- mente se identificava com a histria singular daquele casamento to infeliz e to simptico. Por mais de uma vez chegou a chorar pela morte do pobre moo oficial de infantaria. D. Eufrasinha instruiu a sua nova amiga em muitas coisas 19. que esta mal sonhava; ensinou-lhe certos mistrios da vida con- jugal; pode dizer-se que lhe deu lies de amor: falou muito nos homens, disse-lhe como a mulher esperta devia lidar com eles; quais eram as manhas e os fracos dos maridos ou dos namora- dos; quais eram os tipos preferveis; o que significava ter olhos mortos, beios grossos, nariz comprido. A outra ria-se. No tomava a srio aquelas bobagens da Eufrasinha! Mas intimamente ia, sem dar por isso, reconstruindo o seu ideal pelas instrues da viva. F-lo menos espiritual, mais hu- mano, mais verossmil, mais suscetvel de ser descoberto; e, desde ento, o tipo, apenas debuxado ao fundo dos seus sonhos, veio para a frente, acentuou-se como uma figura que recebesse os l- timos toques do pintor; e, depois de v-lo bem correto, bem emen- dado e pronto, amou-o ainda mais, muito mais, tanto quanto o amaria se ele fora com efeito uma realidade. A partir da, era esse ideal, correto e emendado, a base das suas deliberaes a respeito de casamento; era a bitola, por onde ela aferia todo aquele que a requestasse. Se o pretendente no tivesse o nariz, o olhar, o gesto, o conjunto enfim de que consta- va o padro, podia, desde logo, perder a esperana de cair nas graas da filha de Manuel Pedro. Eufrasinha mudou-se para a cidade; Ana Rosa j l estava. Visitaram-se. E estas visitas, que se tornaram muito ntimas e repetidas, serviram mutuamente de consolo, ao afincado celibato de uma e a precoce viuvez da outra. Havia, empregado no armazm do pai de Ana Rosa, um rapaz portugus, de nome Lus Dias; muito ativo, econmico, discreto, trabalhador, com uma bonita letra, e muito estimado na Praa. Contavam a seu favor invejveis partidas de tino comer- cial, e ningum seria capaz de dizer mal de to excelente moo. Ao contrrio, quase sempre que falavam dele, diziam Coi- tado! e este coitado era inteiramente sem razo de ser, porque ao Dias, graas a Deus, nada faltava: tinha casa, comida, roupa lavada e engomada, e, ainda por cima, os cobres do emprego. Mas a coisa era que o diabo do homem, apesar das suas prspe- 20. ras circunstncias, impunha certa lstima, impressionava com o seu eterno ar de piedade, de splica, de resignao e humildade. Fazia pena, incutia d em quem o visse, to submisso, to passi- vo, to pobre rapaz to besta de carga. Ningum, em caso al- gum, levantaria a mo sobre ele, sem experimentar a repugnn- cia da covardia. Elogiavam-no entretanto: Que no fossem atrs daquele ar modesto, porque ali estava um empregado de truz! Vrios negociantes ofereceram-lhe boas vantagens para tom-lo ao seu servio; mas o Dias, sempre humilde e de cabea baixa, resistia-lhes a p firme. E, tal constncia ops as repetidas propostas, que todo o comrcio, dando como certo o seu casa- mento com a filha do patro, elogiou a escolha de Manuel Pedro e profetizou aos nubentes um futuro muito bonito e muito rico. Foi acertado, foi! diziam com olhar fito. Manuel Pedro via, com efeito, naquela criatura, trabalha- dora e passiva como um boi de carga e econmico como um usurrio, o homem mais no caso de fazer a felicidade da filha. Queria-o para genro e para scio; dizia a todos os colegas que o seu Dias apenas retirava por ano, para as suas despesas, a quarta parte do ordenado. Tem j o seu peclio, tem! considerava ele. A mulher que o quisesse, levava um bom marido! Aquele vir a possuir alguma coisa... moo de muito futuro! E, pouco a pouco foi-se habituando a julg-lo j da famlia e a estim-lo e distingi-lo como tal; s faltava que a pequena se decidisse... Mas qual! ela nem queria v-lo! Tinha-lhe birra; no podia sofrer aquele cabelo escovinha, aquele cavanhaque sem bigode, aqueles dentes sujos, aquela economia torpe e aqueles movimentos de homem sem vontade prpria. Um somtico! classificava Ana Rosa, franzindo o nariz. Uma ocasio, o pai tocou-lhe no casamento. Com o Dias?... perguntou espantada. Sim. Ora, papai! E soltou uma risada. Manuel no se animou a dizer mais palavra; noite, po- 21. rm, contou tudo em particular ao compadre, um amigo velho, ntimo da casa o cnego Diogo. Optima soep despecta! sentenciou este. preciso dar tempo ao tempo, seu compadre! A coisa h de ser... deixe correr o barco! No entanto, o Dias no se alterara; esperava calado, pacifi- camente, sem erguer os olhos, cheio sempre de humildade e re- signao. 22. 2 Assim era, quando Manuel Pedro, na varanda de sua casa, pedia filha uma resposta definitiva a respeito do casamento. J l se iam trs meses depois da estada na Ponta dAreia. Ana Rosa continuou muda no seu lugar, a fitar a toalha da mesa, como se procurasse a uma resoluo. O sabi cantava na gaiola. Ento, minha filha, no ds sequer uma esperana?... Pode ser... E ela ergueu-se... Bom. Assim que te quero ver... O negociante passou o brao em volta da cintura da rapari- ga, disposto a conversar ainda, mas foi interrompido por umas passadas no corredor. D licena? disse o cnego, j na porta da varanda. V entrando, compadre! O cnego entrou, devagar, com o seu sorriso discreto e amvel. Era um velho bonito; teria quando menos sessenta anos, porm estava ainda forte e bem conservado; o olhar vivo, o cor- po teso, mas ungido de brandura santarrona. Calava-se com es- mero, de polimento; mandava buscar da Europa, para seu uso, meias e colarinhos especiais, e, quando ria, mostrava dentes lim- pos, todos chumbados a ouro. Tinha os movimentos distintos; mos brancas e cabelos alvos que fazia gosto. Diogo era o confidente e o conselheiro do bom e pesado Manuel; este no dava um passo sem consultar o compadre. For- mara-se em Coimbra, donde contava maravilhas; um bocadinho rico, e no relaxava o seu passeio a Lisboa, de vez em quando, para descarregar anos da costa... explicava ele, a rir. Logo que entrou, deu a beijar a Ana Rosa o seu grande e trabalhado anel de ametista, obra do Porto, feita de encomenda. E batendo-lhe na face com a mo fina e impregnada de sabonete 23. ingls: Ento, minha afilhada, como vai essa bizarria? Ia bem, agradecida. Sorriu. Dindinho est bom? Como sempre. Que notcias de D. Babita? Estava de passeio. Pois no v a casa sossegada? interrogou Manuel. Foi missa e naturalmente almoou por a com alguma amiga. Deus a conserve por l! Mas que milagre o trouxe a estas horas c por casa, seu compadre? Um negcio que lhe quero comunicar; particular, um bocado particular. Ana Rosa fez logo meno de afastar-se. Deixa-te ficar, disse-lhe o pai. Ns vamos aqui para o escritrio. E os dois compadres, conversando em voz baixa, encami- nharam-se para uma saleta que havia na frente da casa. A saleta era pequenina, com duas janelas para a Rua da Estrela. Cho esteirado paredes forradas de papel e o teto de travessinhas de paparaba pintadas de branco. Havia uma cartei- ra de escrita, muito alta, com o seu mocho inclinado, um cofre de ferro, uma pilha de livros de escriturao mercantil, uma prensa, o copiador ao lado e mais um copo sujo de p, em cujas bordas descansava um pincel chato de cabo largo; uma cadeira de palhinha, um caixo de papis inteis, um bico de gs e duas escarradeiras. Ah! ainda havia na parede, sobre a secretria, um calend- rio do ano e outro da semana, ambos com as algibeiras pejadas de notas e recibos. Era isto que Manuel Pedro chamava pamposamente o seu escritrio e onde fazia a correspondncia comercial. A, quando ele de corpo e alma se entregava aos interesses da sua vida, s suas especulaes, ao seu trabalho enfim, podiam l fora at morrer, que o bom homem no dava por isso. Amava deveras o trabalho e seria uma santa criatura se no fora certa maniazinha de querer especular com tudo, o que s vezes lhe desvirtuava as melhores intenes. 24. Quando os dois entraram, ele foi logo fechando a porta, discretamente, enquanto o outro se esparralhava na cadeira, com um suspiro de cansao, levantando at ao meio da canela a sua batina lustrosa e de bom talho. Manuel havia tomado um cigarro de papel amarelo de cima da carteira e acendia-o sofregamente; o cnego esperava por ele, com uma notcia suspensa dos lbios, como espantado; a boca meio aberta; o tronco inclinado para a frente, as mos espalmadas nos joelhos, a cabea erguida e um olhar de sobrancelhas arregaadas atravs do cristal dos culos. Sabe quem est a chegar por a?... perguntou afinal, quan- do viu Manuel j instalado no mocho da secretria. Quem? O Raimundo! E o cnego sorveu uma pitada. Que Raimundo? O Mundico! o filho do Jos, homem! teu sobrinho! aque- la criana, que teu mano teve da Domingas... Sim, sim, j sei, mas ento?... Est a chegar por dias... Ora espera... O padre tirou papis da algibeira e rebuscou entre eles uma carta, que passou ao negociante. do Peixoto, o Peixoto de Lisboa. De Lisboa, como? Sim, homem! Do Peixoto de Lisboa, que est h trs anos no Rio. Ah!... isso sim, porque tinha idia de que o pequeno deveria estar agora na Corte. Ah! chegou o vapor do Sul... Pois . L! Manuel armou os culos no nariz e leu para si a seguinte carta datada do Rio de Janeiro: Revmo. amigo e Sr. Cnego Diogo de Melo. Folgamos que esta v encontrar V. Revma. no gozo da mais perfeita sade. Temos por fim comunicar a V. Reverendssima que, no paquete de 15 do corrente, segue para essa capital o Dr. Raimundo Jos da Silva, de quem nos encarre- gou V. Revma. e o Sr. Manuel Pedro da Silva quando ainda nos achvamos estabelecidos em Lisboa. Temos tambm a declarar, se bem que j em tempo competente o houvssemos feito, que 25. envidamos ento os melhores esforos para conseguir do nosso recomendado ficasse empregado em nossa casa comercial e que, visto no o conseguirmos, tomamos logo a resoluo de remet- lo para Coimbra com o fim de formar-se ele em Teologia, o que igualmente no se realizou, porque, feito o curso preparatrio, escolheu o nosso recomendado a carreira de Direito, na qual se acha formado com distines e bonitas notas. Cumpre-nos ainda declarar com prazer a V. Revma. que o Dr. Raimundo foi sempre apreciado pelos seus lentes e condiscpulos e que tem feito boa figura, tanto em Portugal, como depois na Alemanha e na Sua, e como ultimamente nesta Cor- te, onde, segundo diz ele, tencionava fundar uma empresa muito importante. Mas, antes de estabelecer-se aqui, deseja o Dr. Raimundo efetuar nessa provncia a venda de terras e outras pro- priedades de que a dispe, e com esse fim segue. Por esta mesma via escrevemos ao Sr. Manuel Pedro da Silva, a quem novamente prestamos contas das despesas que fi- zemos com o sobrinho. Seguiam-se os cumprimentos do estilo. Manuel, terminada a leitura, chamou o Benedito, um mo- leque da casa, e ordenou-lhe que fosse ao armazm saber se ha- via j chegado a correspondncia do Sul. O moleque voltou pou- co depois, dizendo que ainda no senhor, mas que seu Dias a fora buscar ao correio. Homem! ele isso!... exclamou Pescada. O rapaz est bem encaminhado, quer liquidar o que tem por c e estabelecer- se no Rio. No! Sempre outro futuro!. Ora! ora! ora! soprou o cnego em trs tempos. Nem falemos nisso! O Rio de Janeiro o Brasil! Ele faria uma grandssima asneira se ficasse aqui. Se faria... At lhe digo mais.. nem precisava c vir, porque... con- tinuou Diogo, abaixando a voz, ningum aqui lhe ignora a bio- grafia; todos sabem de quem ele saiu! Que no viesse, no digo, porque enfim.. quem quer vai e quem no quer manda, como l diz o outro; mas chegar, aviar o que tem a fazer e levantar de novo o ferro! 26. Ai, ai! E demais, que diabo ficava ele fazendo aqui? Enchendo as ruas de pernas e gastando o pouco que tem... Sim! que ele tem alguma coisinha para roer... tem aquelas moradas de casa em So Pantaleo; tem o seu punhado de aes; tem o jimbo c na casa, onde por bem dizer scio comanditrio, e tem as fazendas do Rosrio, isto a fazenda, porque uma tapera... Essa que ningum a quer!... observou o cnego, e fer- rou o olhar num ponto, deixando perceber que alguma triste re- miniscncia o dominava. Acreditam nas almas doutro mundo... prosseguiu Ma- nuel. O caso que nunca mais consegui dar-lhe destino. Pois olhe, seu compadre, aquelas terras so bem boas para a cana. O cnego permanecia preocupado pela lembrana da tapera. Agora... acrescentou o outro, o melhor seria que ele se tivesse feito padre. O cnego despertou. Padre?! Era a vontade do Jos... Ora, deixe-se disso! retrucou Diogo, levantando-se com mpeto. Ns j temos por a muito padre de cor! Mas, compadre, venha c, no isso... Ora o qu, homem de Deus! s ser padre! s ser padre! E no fim de contas esto se vendo, as duas por trs, supe- riores mais negros que as nossas cozinheiras! Ento isto tem jei- to?... O governo e o cnego inchava as palavras o governo de- via at tomar uma medida sria a este respeito! devia proibir aos cabras certos misteres! Mas, compadre... Que conheam seu lugar! E o cnego transformava-se ao calor daquela indignao. E ento, parece j de pirraa, bradou, nascer um mole- que nas condies deste... E mostrava a carta, esmurrando-a pode contar-se logo com um homem inteligente! Deviam ser burros! burros! que s pres- tassem mesmo para nos servir! Malditos! Mas, compadre, voc desta vez no tem razo... 27. Ora o qu, homem de Deus. No diga asneiras! Pois voc queria ver sua filha confessada, casada, por um negro? voc queria seu Manuel que a Dona Anica beijasse a mo de um filho da Domingas? Se voc viesse a ter netos queria que eles apa- nhassem palmatoadas de um professor mais negro que esta bati- na? Ora, seu compadre, voc s vezes at me parece tolo! Manuel abaixou a cabea, derrotado. Ora, ora, ora! respingava o sacerdote, como as ltimas gotas de um aguaceiro. E passeava vivamente em toda a exten- so da saleta, atirando de uma para a outra mo o seu leno fino de seda da ndia.- Ora! ora, deixe-se disso, seu compadre! Stultorum honor inglorius!... Nisto bateram porta. Era o Dias com a correspondncia do Sul. D c. A carta de Manuel pouco adiantava da outra. Mas, afinal que acha voc, compadre?... disse ele, pas- sando a carta ao cnego, depois de a ler. Que diabo posso achar?... A coisa est feita por si.. Dei- xe correr o barco! Voc no disse uma vez que queria entrar em negcio com a fazenda do Cancela? No h melhor ocasio tra- te-a com o prprio dono... mesmo as casas de So Pantaleo con- vinham-lhe... olhe se ele as desse em conta, eu talvez ficasse com alguma. Mas o que eu digo, compadre, se devo receb-lo na qualidade de meu sobrinho. Sobrinho bastardo, est claro! Que diabo tem voc com as cabeadas de seu mano Jos?... Homessa! Mas, compadre, voc acha que no me fica mal? . Mal por qu, homem de Deus? Isso nada tem que ver com voc... L isso verdade. Ah! outra coisa! devo hosped-lo aqui em casa? !... por um lado, devia ser assim... Todos sabem as obrigaes que voc deve ao defunto Jos e poderiam boquejar por a, no caso que no lhe hospedasse o filho... mas, por outro lado, meu amigo, no sei o que lhe diga!... 28. E depois de uma pausa em que o outro no falou: Homem, seu compadre, isto de meter rapazes em casa... o diabo! De sorte que... Omnem aditum malis prejudica! Manuel no compreendeu, porm acrescentou: Mas eu hospedo constantemente os meus fregueses do interior... Isso muito diferente! E meus caixeiros? no moram aqui comigo?... Sim! disse o cnego, impacientando-se, mas os pobres dos caixeiros so todos uns moscas-mortas, e ns no sabemos a que nos saiu o tal doutor de Coimbra!... Homem, compadre, o melro vem de Paris, deve estar mitrado!... Talvez no... Sim, mas mais natural que esteja! E o cnego intumescia a papada com certo ar experimenta- do. Em todo caso... arriscou Manuel, por pouco tempo... Talvez coisa de um ms... E, sopeando a voz, discretamente, com medo: Alm dis- so... no me convinha desagradar o rapaz... Sim! tenho de entrar em negcio com ele, e... isto c para ns... seria uma fineza, que me ficava a dever... porque enfim... voc sabe que... Ah! interrompeu o cnego, tomando uma nova atitude. Isso outro cantar!... Por ai que voc devia ter principiado! Sim, tornou Manuel, com mais nimo. Voc bem sabe que no tenho obrigao de estar a moer-me com o nhonh Mundico... e, se bem que... Pchio!... fez o padre, cortando a conversa, e disse: Hos- pede o homem! E saiu da saleta, revestindo logo o seu pachorrento e estu- dado ar de santarro. Ao chegarem varanda Ana Rosa, j em trajes de passeio, os esperava para sair toda debruada no parapeito da janela e derramando sobre o Bacanga um olhar mole e cheio de incerte- zas. 29. Ento, sempre te resolveste, minha caprichosa?... disse o pai. E contemplava a filha, com um risinho de orgulho. Ela es- tava realmente boa com o seu vestido muito alvo de fusto, ale- gre, todo cheirando aos jasmins da gaveta; com o seu chapu de palhinha de Itlia, emoldurando o rosto oval, fresco e bem feito; com o seu cabelo castanho, farto e sedoso, que aparecia em bands no alto da cabea e reaparecia no pescoo enrodilhado despre- tensiosamente. Tinhas dito que no ias... V se vestir, papai. E assentou-se. L vou! L vou! Manuel bateu no ombro do cnego: Meto-lhe inveja, hein, compadre?... Olhe como o diacho da pequena est faceira, no ? Ne insultes miseris! Qu?... interjeicionou o negociante, olhando para o re- lgio da varanda. Quatro e meia! E eu que ainda tinha de ir hoje tratar do despacho de um acar!... E foi entrando apressado no quarto, a gritar para o Benedi- to que lhe levasse gua morna para banhar o rosto. O cnego assentou-se defronte de Ana Rosa. Ento onde hoje o passeio minha rica afilhada? casa do Freitas. No se lembra? Lindoca faz anos hoje. Cspite! Temos ento peru de forno!.. Papai fica para o jantar... vossemec no vai, dindinho? Talvez aparea noite... Com certeza h dana... Hum-hum... mas creio que o Freitas conta com uma sur- presa da Filarmnica.. disse Ana Rosa, entretida a endireitar os folhos do seu vestido com a biqueira da sombrinha. Nisto, ouviram-se bater embaixo as portas do armazm, que se fechavam com grande rudo de fechaduras, e logo em seguida o som pesado de passos repetidos na escada. Eram os caixeiros que subiam para jantar. Entrou primeiro na varanda o Bento Cordeiro. Portugus 30. dos seus trinta e tantos anos arruivado, feio, de bigode e barba e cavanhaque. Gabava-se de grande prtica de balco chamavam- lhe Um alho. Para aviar encomendas do interior no havia outro! Cordeiro metia no bolso o capurreiro mais sabido. Dos empregados da casa era o mais antigo; nunca, porm lograra ter interesse na sociedade; continuava sempre de fora e tinha por isso um dio surdo ao patro; dio, que o patife disfar- ava por um constante sorriso de boa vontade. Mas o seu maior defeito o que deveras depunha contra ele aos olhos das raposas do comrcio; o que explicava na Praa a sua no entrada na soci- edade da casa em que trabalhava havia tanto tempo, era sem d- vida a sua queda para o vinho. Aos domingos metia-se na tiorga e ficava de todo insuportvel. Bento atravessou silencioso a varanda cortejando com afe- tada humildade o cnego e Ana Rosa, e seguiu logo para o mi- rante, onde moravam todos os caixeiros da casa. O segundo a passar foi Gustavo de Vila Rica; simptico e bonito moceto de dezesseis anos, com as suas soberbas cores portuguesas, que o clima do Maranho ainda no tinha conse- guido destruir. Estava sempre de bom humor; lisonjeava-se de um apetite inquebrantvel e de nunca haver ficado de cama no Brasil. Em casa todavia ganhara fama de extravagante; que mandava fazer fatos de casimira moda, para passear aos do- mingos e para ir aos bailes familiares de contribuio, e queima- va charutos de dois vintns. O grande defeito deste era uma assi- natura no Gabinete Portugus, o que levava a boa gente do co- mrcio a dizer que ele era um grande biltre, um peralta, que esta- va sempre procurando o que ler! O Bento Cordeiro bradava-lhe s vezes, furioso: Com os diabos! o patro j lhe tem dado a entender que no gosta de caixeiros amigos de gazeta?.. Se voc quer ser le- trado, v pra Coimbra, seu burro! Gustavo ouvia constantemente destas e doutras amabilida- des, mas, que fazer? precisava ganhar a vida!... O outro era cai- xeiro mais antigo na casa... Conformava-se, sem respingar, e em certas ocasies at satisfeito, graas ao seu bom humor. Ao passar pela varanda foi menos brusco no seu cumpri- 31. mento filha do patro; chegou mesmo a parar, sorrir, e dizer, inclinando a cabea: Minha senhora!... O cnego teve uma risota. Que mitra!... julgou com os seus botes. Em seguida, atravessou a varanda, muito apressado, com as mos escondidas nas enormes mangas de um jaqueto, cuja gola lhe subia ate nuca, uma criana de uns dez anos de idade. Tinha o cabelo escovinha; os sapatos grandemente despropor- cionados; calas de zuarte dobradas na bainha; olhos espanta- dos; gestos desconfiados, e um certo movimento rpido de es- conder a cabea nos ombros, que lhe traa o hbito de levar pescoes. Este era em tudo mais novo que os outros em idade, na casa, e no Brasil. Chegara havia coisa de seis meses da sua al- deia no Porto; dizia chamar-se Manuelzinho e tinha sempre os olhos vermelhos de chorar noite com saudades da me e da terra. Por ser o mais novo na casa varria o armazm limpava as balanas e burnia os pesos de lato. Todos lhe batiam sem res- ponsabilidade, no tinha a quem se queixar. Divertiam-se custa dele; riam-se com repugnncia das suas orelhas cheias de cera escura. Desfeava-lhe a testa uma grande cicatriz; foi um trambo- lho que levou na primeira noite em que lhe deram uma rede para dormir. O pobre desterradozinho, que no sabia haver-se com semelhante engenhoca, caiu na asneira de meter primeiro os ps, e zs! l foi por cima de uma caixa de pinho de um dos companheiros. Desde esse dia ficou conhecido em casa pela al- cunha de Salta-cho. Punham-lhe nomes feios e chamavam-lhe bisca! tudo servia para o chamarem, menos o seu verdadeiro nome. Ia atravessando a varanda, como um bicho assustado, qua- se a correr. O cnego gritou por ele: Manuelzinho voltou, confuso, coando a nuca, muito con- trariado sem levantar os olhos. Ana Rosa teve um olhar de piedade. 32. Ento que e isso? disse o cnego. Pareces-me um bicho do mato! Fala direito com a gente, rapaz! Levanta essa cachimnia! E, com a sua mo branca e fina, suspendeu-lhe pelo queixo a cabea, que Manuelzinho insistia em ter baixa. Este ainda est muito peludo!... acrescentou. E pergun- tou-lhe depois uma poro de coisas: Se tinha vontade de enri- quecer, se no sonhava j com uma comenda; se tinha visto o pssaro guariba, se encontrara a rvore das patacas. O pequeno mastigava respostas inarticuladas, com um sorriso aflito. Como te chamas? Ele no respondeu. Ento no respondes?... Com certeza s Manuel! O portuguesinho meneou a cabea afirmativamente, e aper- tou a boca, para conter o riso que procurava uma vlvula. Ento com a cabea que se responde? Tu no sabes falar, mariola? E, voltando-se para Ana Rosa: Isto um sonso, minha afilhada! olhe em que estado ele traz as orelhas! Se tens a alma como tens o corpo, podes d-la ao diabo! Tu j te confessaste aqui, maroto? Manuelzinho, no podendo j suster os beios, abriu a boca e, com a fora de uma caldeira, soprou o riso que a tanto custo refreava. Olha que ests a cuspir-me, patife! gritou o cnego. Bom, bom! vai-te! vai-te! Repeliu-o e limpou a batina com o leno. Ana Rosa ento correu os dedos pela cabea do menino e puxou-o para si. Arregaou-lhe as mangas da jaqueta e revistou- lhe as unhas. Estavam crescidas e sujas. Ah! censurou ela, voc tambm no to pequeno, que se desculpe isto!... E, tirando do seu indispensvel uma tesourinha, comeou, com grande surpresa do caixeiro e at do cnego, a limpar as unhas da criana, dizendo ao outro, baixinho: No sei como h mes que se separam de filhos desta idade... Tambm, coitados! devem amargar muito!... 33. A sua voz tinha j completa solicitude de amor materno. O cnego levantou-se e foi encostar-se ao parapeito da va- randa, enquanto Ana Rosa, que continuava a cortar as unhas do menino, ia em segredo perguntando a este se no tinha saudades da sua terra e se no chorava ao lembrar-se da me. Manuelzinho estava pasmado. Era a primeira vez que no Brasil lhe falavam com aquela ternura. Levantou a cabea e en- carou Ana Rosa; ele, que tinha sempre o olhar baixo e terrestre, procurou, sem vacilar, os olhos da rapariga e fitou-os, cheio de confiana, sentindo por ela um sbito respeito, uma espcie de adorao inesperada. Afigurava-se extraordinrio ao pobrezito desprezado de todos, que aquela senhora brasileira, to limpa, to bem vestida, to perfumada e com as mos to macias, esti- vesse ali a cortar-lhe e assear-lhe as unhas. A princpio foi isto para ele um sacrifcio horrvel, um su- plcio insuportvel. Desejava, de si para si, ver terminada aquela cena incmoda; queria fugir daquela posio difcil; resfolega- va, sem ousar mexer com a cabea, olhando para os lados, de esguelha, como a procura de uma sada, de algum lugar onde se escondesse ou de qualquer pretexto que o arrancasse dali. Sentia-se mal com aquilo, que dvida! No se animava a respirar livremente, receoso de fazer notar o seu hlito pela se- nhora; j lhe doam as juntas do corpo, tal era a sua imobilidade contrafeita; no mexia sequer com um dedo. Depois do primeiro minuto de sacrifcio, o suor comeou logo a correr-lhe em bagas da cabea pela gola do jaqueto, e o pequeno teve verdadeiros calafrios; mas quando Ana Rosa lhe falou da ptria e da me, com aquela penetrante meiguice que s as prprias mes sabem fazer, as lgrimas rebentaram-lhe dos olhos e desceram-lhe em silncio pela cara. Pois se era a primeira vez que no Brasil lhe falavam dessas coisas!... O cnego assistia a tudo isto, calado, rufando sobre a sua tabaqueira de ouro as unhas burnidas a cinza de charuto e a sorrir como um bom velho. E, enquanto Ana Rosa, de cabea baixa, toda desvelos, tratava do desgraadinho, provocando-lhe as l- grimas e contendo as prprias, sabe Deus como! passava o Dias 34. pelo fundo da varanda, sem ser sentido, o andar de gato, levando no corao uma grande raiva, s pelo fato de ver a filha do patro acarinhando o outro. Ralava-o aquela caridade. Ele nunca tivera quem lhe cor- tasse as unhas!... Amofinava-o ver a Sra. D. Ana Rosa s voltas com semelhante bisca. Punha a perder de todo a peste do peque- no! Ora para que lhe havia de dar!... embonecar o scio! Queria- o com certeza para seu chichisbu! Contava j com ele para le- var-lhe as cartas do desaforo e trazer-lhe os presentinhos de flo- res e os recados dos pelintras!... Ah! mas ele, o Dias, ali estava para lhes cortar as vazas! O Dias, que completava o pessoal da casa de Manuel Pes- cada, era um tipo fechado como um ovo, um ovo choco que mal denuncia na casca a podrido interior. Todavia, nas cores bilio- sas do rosto, no desprezo do prprio corpo, na taciturnidade paci- ente daquela exagerada economia, adivinhava-se-lhe uma idia fixa, um alvo, para o qual caminhava o acrobata, sem olhar dos lados, preocupado, nem que se equilibrasse sobre um corda tesa. No desdenhava qualquer meio para chegar mais depressa aos fins; aceitava, sem examinar, qualquer caminho, desde que lhe parecesse mais curto; tudo servia, tudo era bom, contanto que o levasse mais rapidamente ao ponto desejado. Lama ou brasa havia de passar por cima; havia de chegar ao alvo enriquecer. Quanto figura, repugnante: magro e macilento, um tanto baixo, um tanto curvado, pouca barba, testa curta e olhos fundos. O uso constante dos chinelos de trana fizera-lhe os ps mons- truosos e chatos; quando ele andava, lanava-os desairosamente para os lados, como o movimento dos palmpedes nadando. Abor- recia-o o charuto, o passeio, o teatro e as reunies em que fosse necessrio despender alguma coisa; quando estava perto da gen- te sentia-se logo um cheiro azedo de roupas sujas. Ana Rosa no podia conceber como uma mulher de certa ordem pudesse suportar semelhante porco. Enfim, resumia ela, quando, conversando com amigas, queria dar-lhes uma idia justa do que era o Dias sempre h um homem que no tem coragem de comprar uma escova de dentes! As amigas respondiam Iche! mas em geral tinham-no na conta de moo benfazejo e de condu- 35. ta exemplar. noite s deixava a porta do patro nos sbados, para ir ao peixe frito em casa de uma mulata gorda, que morava com duas filhas l para os confins da Rua das Crioulas. Ia sempre sozinho. Nada de troas! No tenho amigos... dizia ele constantemente, tenho apenas alguns conhecidos... Nesses passeios levava s vezes uma garrafa de vinho do Porto ou uma lata de marmelada, e chamava a isso fazer as suas extravagncias. A mulata votava-lhe grande admirao e punha nele muita confiana: dava-lhe a guardar os seus ouros e as suas economias. Alm desta, ningum lhe conhecia outra relao par- ticular; uma bela manh, porm, o exemplar moo aparecera in- comodado e pedira ao patro que lhe deixasse ficar aquele dia no quarto. Manuel, todo solcito pelo seu bom empregado, man- dou-lhe l o mdico. Ento, que tinha o rapaz? Aquilo mais porcaria que outra coisa, respondeu o facultativo, franzindo o nariz; mas receitou, recomendando ba- nhos mornos. Banhos! de banhos principalmente que ele preci- sava! E, quando viu o doente pela segunda vez, no se pde ter, que lhe no dissesse: Olhe l, meu amigo, que o asseio tambm faz parte do tratamento! E acabou provando que a limpeza no era menos necess- ria ao corpo do que a alimentao, principalmente em um clima daqueles em que um homem est sempre a transpirar. Manuel foi noite ao quarto do caixeiro. Falou-lhe com brandura paternal; lamentou-o com palavras amigveis, e desa- tou um protesto, em forma de sermo, contra o clima e os costu- mes do Brasil. Uma terrinha com que preciso cuidado! Perigosa! Pe- rigosa! dizia ele. Aqui a gente tem a vida por um fio de cabelo! Tratou depois, com entusiasmo, de Portugal; lembrou as boas comezainas portuguesas: As caldeiradas deirozes, a orelheira de porco com feijo branco, a aorda, o caldo gordo, o famoso 36. bacalhau do Algarve! Ai! o pescado! suspirou o Dias, saudoso pela terra. Que rico pitu! E os nossos figos de comadre, e as nossas castanhas assadas, e o vinho verde? Dias escutava com gua na boca. Ai! a terra!... O patro falou-lhe tambm das comodidades, dos ares, das frutas e por fim dos divertimentos de Lisboa, terminando por contar fatos de molstia; casos idnticos ao do Dias; transpor- tou-se rindo ao seu tempo de rapaz, e, j de p, pronto para sair, bateu-lhe no ombro, carinhosamente: Voc, homem, o que devia era casar!... E jurou-lhe que o casamento lhe estava mesmo calhando. O Dias, com aquele gnio e com aquele mtodo, dava por fora um bom marido!... Que se casasse, e havia de ver se no teria outra importncia!... Olhe! concluiu, digo-lhe agora como o doutor Banhos! banhos, meu amigo mas que sejam de igreja, compreende? E, rindo com a prpria pilhria e todo cheio de sorrisos de boa inteno, saiu do quarto na ponta dos ps, cautelosamente, para que os outros caixeiros, a quem ele no dava a honra de uma visita daquelas, no lhe ouvissem as pisadas. Quando Ana Rosa acabou de cortar as unhas de Manuelzinho deu-lhe de conselho que estudasse alguma coisa; prometeu que arranjaria com o pai met-lo em uma aula noturna de primeiras letras, e recomendou-lhe que todos os dias de ma- nh tomasse o seu banho debaixo da bomba do poo. Faa isso, que serei por voc, rematou a moa, afastan- do-o com uma ligeira palmada na cabea. O menino retirou-se, muito comovido, para o andar de cima, mas o Dias, de p, no tope da escada, esperava por ele, furioso. Que estava fazendo, seu traste? Nada, respondeu a criana, a tremer. Fora a senhora que o chamara!... Dias, com um murro, explicou que o maroto no podia pr- se de palestra na varanda, em vez de cuidar das obrigaes. 37. E se me constar, acrescentou, cada vez mais zangado, que voc me torna a ir com lamrias para o lado de D. Anica, comigo se tem de haver, seu mariola! Vai tudo aos ouvidos do patro! Manuelzinho arredou-se dali, convencido de que havia pra- ticado uma tremenda falta; no ntimo, porm, ia muito satisfeito com a idia de que j no estava to desamparado, e sentindo renascer-lhe, na obscura mgoa do seu desterro, um desejo ale- gre de continuar a viver. A reunio em casa do Freitas esteve animada. Houve vio- lo, cantoria, muita dana. Chegaram a deitar chorado da Bahia. Mas, pela volta da meia-noite, Ana Rosa, depois de uma valsa, fora acometida de um ataque de nervos. Era o terceiro que lhe dava assim, sem mais nem menos. Felizmente o mdico, chamado a toda a pressa afianou que aquilo no valia nada. Distraes e bom passadio! receitou ele, e, ao despedir-se de Manuel, segredou-lhe sorrindo: Se quiser dar sade sua filha, trate de cas-la... Mas o que tem ela, doutor?... Ora o que tem! Tem vinte anos! Est na idade de fazer o ninho! mas, enquanto no chega o casamento, ela que v dando os seus passeios a p. Banhos frios, exerccios, bom passadio e distraes! Percebe? Manuel, na sua ignorncia, imaginou que a filha alimenta- va ocultamente algum amor mal correspondido. Sacudiu os om- bros. No era ento coisa de cuidado. E, em cumprimento as ordens do mdico, inaugurou com a enferma longos passeios pela fresca da madrugada. Da a dias, o cnego Diogo, contra todos os seus hbitos, procurava o compadre s sete horas da manh. Atravessou o armazm, apressado como quem traz grande novidade, e, mal chegou ao negociante, foi lhe dizendo em tom misterioso: Sabe? Faz sinal de aparecer, e o Cruzeiro... Manuel largou logo de mo o servio que fazia, subiu varanda, deu as suas providncias para receber um hspede, e em seguida ganhou a rua com o amigo. 38. Eles a sarem de casa e a fortaleza de So Marcos a salvar, anunciando com um tiro, a entrada de paquete brasileiro. Os dois tomaram um escaler e foram a bordo. 39. 3 Da a pouco, entre as vistas interrogadoras dos curiosos, atravessou a Praa do Comrcio um rapaz bem parecido, que ia acompanhado pelo cnego Diogo e por Manuel. A novidade foi logo comentada. Os portugueses vinham, com as suas grandes barrigas, s portas dos armazns de secos e molhados; os barraqueiros espiavam por cima dos culos de tar- taruga; os pretos cangueiros paravam para mirar o cara-nova. O Perua-gorda, em mangas de camisa, como quase todos os outros, acudiu logo rua: Quem ser esse gajo, coisa? perguntou ele ruidosa- mente a um scio que passava na ocasio. Algum parente ou recomendado do Manuel Pescada. Veio do Sul. ada? No sei, homem, mas um rapago! Manuel apresentou o sobrinho a vrios grupos. Houve sor- risos de delicadezas e grandes apertos de mo. o filho de um mano do Pescada... diziam depois. Co- nhecemos-lhe muito a vida! Chama-se Raimundo. Estava nos estudos. Vem estabelecer-se aqui? indagou o Jos Buxo. No, creio que vem montar uma companhia... Outros afianavam que Raimundo era scio capitalista da casa de Manuel. Discutiam-lhe a roupa, o modo de andar, a cor e os cabelos. O Luisinho Lngua de Prata afirmava que ele tinha casta. Entretanto os trs subiam a Rua da Estrela. Chegados a casa, onde j havia pronto um quarto para o Sr. Dr. Raimundo Jos da Silva, o cnego e Manuel desfizeram-se em delicadezas com o rapaz. Benedito! v cerveja! Ou prefere conhaque, doutor?... Olha moleque, prepara guaran! Doutor, venha antes para este 40. lado que est mais fresco... no faa cerimnias! V entrando! v entrando para a varanda! O senhor est em sua casa!... Raimundo queixava-se do calor. Est horrvel! dizia ele, a limpar o rosto com o leno. Nunca suei tanto! O melhor ento recolher-se um pouco e ficar vonta- de. Pode mudar de roupa, arejar-se. A bagagem no tarda a. Olhe, doutor, entre, entre e veja se fica bem aqui! Os trs penetraram no quarto destinado ao hspede. O senhor, disse Manuel, tem aqui janelas para a rua e para o quintal. Ponha-se a gosto. Se precisar qualquer coisa, s chamar pelo Benedito. Nada de cerimnias! Raimundo agradeceu muito penhorado. Mandei dar-lhe cama, acrescentou o negociante, porque o senhor naturalmente no est afeito rede, no entanto se qui- ser... No, no, muito obrigado. Est tudo muito bom. O que desejo repousar um pouco justamente. Ainda tenho a cabea a andar roda. Pois ento descanse, descanse, para depois almoar com mais apetite At logo. E Manuel e mais o compadre afastaram-se, cheios de cor- tesia e sorrisos de afabilidade. Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro se no foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoo largo, nariz direito e fronte espaosa. A parte mais caracterstica da sua fisionomia era os olhos grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pes- tanas eriadas e negras, plpebras de um roxo vaporoso e mido; as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquare- la sobre papel de arroz. Tinha os gestos bem educados, sbrios, despidos de pre- tenso, falava em voz baixa, distintamente sem armar ao efeito; 41. vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as cinci- as, a literatura e, um pouco menos, a poltica. Em toda a sua vida, sempre longe da ptria, entre povos diversos, cheia de impresses diferentes, tomada de preocupa- es de estudos, jamais conseguira chegar a uma deduo lgica e satisfatria a respeito da sua procedncia. No sabia ao certo quais eram as circunstncias em que viera ao mundo; no sabia a quem devia agradecer a vida e os bens de que dispunha. Lembra- va-se, no entanto, de haver sado em pequeno do Brasil e podia jurar que nunca lhe faltara o necessrio e at o suprfluo. Em Lisboa tinha ordem franca. Mas quem vinha a ser essa pessoa encarregada de acompanh-lo de to longe?... Seu tutor, com certeza, ou coisa que o valha, ou talvez seu prprio tio, pois, quanto ao pai, sabia Raimundo que j o no tinha quando foi para Lisboa. No por- que chegasse a conhec-lo, nem porque se recordasse de ter ou- vido de algum o doce nome de filho, mas sabia-o por interm- dio do seu correspondente e pelo que deduzia de algumas vagas reminiscncias da meninice. Sua me, porm, quem seria?... Talvez alguma senhora culpada e receosa de patentear a sua vergonha!... Seria boa? Se- ria virtuosa?... Raimundo perdia-se em conjeturas e, malgrado o seu des- prendimento pelo passado, sentia alguma coisa atra-lo irresisti- velmente para a ptria. Quem sabia se a no descobriria a ponta do enigma?... Ele, que sempre vivera rfo de afeies legtimas e duradouras, como ento seria feliz!... Ah, se chegasse a saber quem era sua me, perdoar-lhe-ia tudo, tudo! O quinho de ternura, que a ela pertencia, estava intacto no corao do filho. Era preciso entreg-lo a algum! Era preciso desvendar as circunstncias que determinaram o seu nascimen- to! Mas, no fim de contas, refletia Raimundo, em um retroces- so natural de impresses, que diabo tinha ele com tudo isso, se at a, na ignorncia desses fatos, vivera estimado e feliz!... No foi decerto para semelhante coisa que viera provncia! Por con- seguinte, era liquidar os seus negcios, vender os seus bens e 42. por aqui o caminho! O Rio de Janeiro l estava a sua espera! Abriria, ao chegar l, o seu escritrio, trabalharia, e, ao lado da mulher com quem casasse e dos filhos que viesse a ter, nem sequer havia de lembrar-se do passado! Sim, que mais poderia desejar melhor?... Conclura os es- tudos, viajara muito, tinha sade, possua alguns bens de fortu- na. Era caminhar pra frente e deixar em paz o tal passado! O passado, passado! Ora adeus! E, chegando a esta concluso, sentia-se feliz, independen- te, seguro contra as misrias da vida, cheio de confiana no futu- ro. E por que no havia de fazer carreira? Ningum podia ter melhores intenes do que ele?.. No era um vadio, nem homem de maus instintos; aspirava ao casamento, estabilidade; queria, no remanso de sua casa, entregar-se ao trabalho srio, tirar parti- do do que estudara, do que aprendera na Alemanha, na Frana, na Sua e nos Estados Unidos. Faltava-lhe apenas vir ao Maranho e liquidar os seus negcios. Pois bem! c estava era aviar e pr-se de novo a caminho! Foi com estas idias que ele chegou cidade de So Lus. E agora, na restauradora liberdade do quarto, depois de um ba- nho tpido, o corpo ainda meio quebrado da viagem, o charuto entre os dedos, sentia. Se perfeitamente feliz, satisfeito com a sua sorte e com a sua conscincia. Ah! bocejou fechando os olhos. liquidar os negcios e pr-me ao fresco!... E, com um novo bocejo, deixou cair ao cho o charuto, e adormeceu tranqilamente. No entanto, a histria de Raimundo, a histria que ele ig- norava, era sabida por quantos conheceram os seus parentes no Maranho. Nasceu numa fazenda de escravos na Vila do Rosrio, muitos anos depois que seu pai, Jos Pedro da Silva a se refugi- ara, corrido do Par ao grito de Mata bicudo! nas revoltas de 1831. Jos da Silva havia enriquecido no contrabando dos negros da frica e fora sempre mais ou menos perseguido e malquisto pelo povo do Par; at que, um belo dia, se levantou contra ele a 43. prpria escravatura, que o teria exterminado, se uma das suas escravas mais moas, por nome Domingas, no o prevenisse a tempo. Logrou passar inclume ao Maranho, no sem pena de abandonar seus haveres e risco de cair em novos dios, que esta provncia, como vizinha e tributria do comrcio da outra, sus- tentava instigada pelo Farol, contra os brasileiros adotivos e contra os portugueses. Todavia, conseguiu sempre salvar algum ouro; metal que naquele bom tempo corria abundante por todo o Brasil e que mais tarde a Guerra do Paraguai tinha de transformar em condecoraes e fumaa. A fuga fizeram eles, senhor e escrava, a p, por maus cami- nhos, atravessando os sertes. Ainda no existia a companhia de vapores e os transportes martimos dependiam ento de vagaro- sas barcas, a vela e remo e, s vezes, puxadas a corda, nos igaraps. Foram dar com os ossos no Rosrio. O contrabandista arranjou- se o melhor que pde com a escrava que lhe restava, e, mais tarde, no lugar denominado So Brs, veio a comprar uma fazendola, onde cultivou caf, algodo, tabaco e arroz. Depois de vrios abortos, Domingas deu luz um filho de Jos da Silva. Chamou-se o vigrio da freguesia e, no ato do batismo da criana, esta, como a me, receberam solenemente a carta de alforria. Essa criana era Raimundo. Na capital, entretanto, acalmavam-se os nimos. Jos pros- perou rapidamente no Rosrio; cercou a amante e o filho de cui- dados; relacionou-se com a vizinhana, criou amizades, e, no fim de pouco tempo, recebia em casamento a Sra. D. Quitria Inocncia de Freitas Santiago, viva, brasileira, rica, de muita religio e escrpulos de sangue, e para quem um escravo no era um homem, e o fato de no ser branco, constitua s por si um crime. Foi uma fera! s suas mos, ou por ordem dela, vrios es- cravos sucumbiram ao relho, ao tronco, fome, sede, e ao ferro em brasa. Mas nunca deixou de ser devota, cheia de supersti- es; tinha uma capela na fazenda, onde a escravatura, todas as noites, com as mos inchadas pelos bolos, ou as costas lanhadas pelo chicote, entoava splicas Virgem Santssima, me dos in- 44. felizes. Ao lado da capela o cemitrio das suas vtimas. Casara com Jos da Silva por dois motivos simplesmente: porque precisava de um homem, e ali no havia muito onde es- colher, e porque lhe diziam que os portugueses so brancos de primeira gua. Nunca tivera filhos. Um dia reparou que o marido, a ttulo de padrinho, distinguia com certa ternura o crioulo da Domingas e declarou logo que no admitia, nem mais um instante, aquele moleque na fazenda. Seu negreiro! gritava ela ao marido, fula de raiva. Voc pensa que lhe deixarei criar, em minha companhia, os filhos que voc tem das negras?... Era s tambm o que faltava! No trate de despachar-me, quanto antes, o moleque, que serei eu quem o despacha, mas h de ser para ali, para junto da capela! Jos, que sabia perfeitamente de quanto ela era capaz, cor- reu logo vila para dar as providncias necessrias segurana do filho. Mas, ao voltar fazenda, gritos horrorosos atraram-no ao rancho dos pretos, entrou descorooado e viu o seguinte: Estendida por terra, com os ps no tronco, cabea raspada e mos amarradas para trs, permanecia Domingas, completa- mente nua e com as partes genitais queimadas a ferro em brasa. Ao lado, o filhinho de trs anos, gritava como um possesso, ten- tando abra-la, e, de cada vez que ele se aproximava da me, dois negros, ordem de Quitria, desviavam o relho das costas da escrava para dardej-lo contra a criana. A megera, de p, horrvel, bbada de clera, ria-se, praguejava obscenidades, ui- vando nos espasmos flagrantes da clera. Domingas, quase mor- ta, gemia, estorcendo-se no cho. O desarranjo de suas palavras e dos seus gestos denunciava j sintomas de loucura. O pai de Raimundo, no primeiro assomo de indignao, to furioso acometeu sobre a esposa, que a fez cair. Em seguida, ordenou que recolhessem Domingas casa dos brancos e que lhe prodigalizassem todos os cuidados. Quitria, a conselho do vigrio do lugar, um padre ainda moo, chamado Diogo, o mesmo que batizara Raimundo, fugiu essa noite para a fazenda de sua me, D. rsula Santiago, a meia 45. lgua dali. O vigrio era muito da casa das Santiago; dizia-se at apa- rentado com elas. O caso que foi na qualidade de confessor, parente e amigo, que ele acompanhou Quitria. Jos da Silva, por esse tempo, chegava cidade de So Lus com o filho. Procurou seu irmo mais moo, o Manuel Pedro, e entregou-lhe o pequeno, que ficaria sob as vistas do tio at ter idade para matricular-se num colgio de Lisboa. Feito isso, tornou de novo para a sua roa. Agora contava viver mais descansado; era natural que a mulher se deixasse fi- car em casa da me. Ao chegar l, sabendo que no o esperavam essa noite e como visse luz no quarto da esposa, apeou-se em distncia e, para no se encontrar com ela, guardou o cavalo e entrou silenciosamente na fazenda. Os ces conheceram-no pelo faro e apenas rosnaram. Mas, na ocasio em que ele passava defronte do quarto de Quitria, ouviu a sussurros de vozes que conversavam. Aproximou-se levado pela curiosidade e encostou o ouvido porta. Reconhe- ceu logo a voz da mulher. Mas, com quem, diabo, ela conversaria quela hora?... Conteve a impacincia e esperou de ouvido alerta. No havia dvida! a outra voz era de um homem!... Sem esperar mais nada, meteu ombros porta e, precipi- tou-se dentro do quarto, atirando-se com fria sobre a esposa, que perdera logo os sentidos. O padre Diogo, pois era dele a outra voz, no tivera tempo de fugir e cara, trmulo, aos ps de Jos. Quando este largou das mos a traidora, para se apossar do outro, reparou que a tinha estrangulado. Ficou perplexo e tolhido de assombro. Houve ento um silncio ansioso. Ouvia-se o resfolegar dos dois homens. A situao dificultava-se; mas o vigrio, recu- perando o sangue-frio, ergueu-se, consertou as roupas e, apon- tando para o corpo da amante, disse com firmeza: Matou-a! Voc um criminoso! Cachorro! E tu?! Tu sers porventura menos criminoso do que eu? Perante as leis, decerto! porque voc nunca poder pro- 46. var a minha suposta culpa e, se tentasse faz-lo, a vergonha do fato recairia toda sobre a sua prpria cabea, ao passo que eu, alm do crime de injria consumado na minha sagrada pessoa, sou testemunha do assassnio desta minha infeliz e inocente con- fessada, assassnio que facilmente documentarei com o corpo de delito que aqui est! E mostrava a marca das mos de Jos na garganta do cad- ver. O assassino ficou aterrado e abaixou a cabea. Vamos l!... disse o padre afinal, sorrindo e batendo no ombro do portugus. Tudo neste mundo se pode arranjar, com a divina ajuda de Deus... s para a morte no h remdio! Se qui- ser, a defunta ser sepultada com todas as formalidades civis e religiosas... E, dando voz um cunho particular de autoridade: Ape- nas, pelo meu silncio sobre o crime, exijo em troca o seu para a minha culpa... Aceita? Jos saiu do quarto, cego de clera, de vergonha e de re- morso. Que vida a sua! exclamava. Que vida, santo Deus! O padre cumpriu a promessa: o cadver enterrou-se na ca- pela de So Brs, ao lado das suas vtimas; e todos os do lugar, at mesmo os de casa, atriburam a morte de Quitria ao esprito maligno que se lhe havia metido no corpo. O vigrio confirmava esses boatos e continuava a pastorar tranqilamente o seu rebanho, sempre tido por homem de muita santidade e de grandes virtudes teologais. Os devotos continua- ram a trazer-lhe, de muitas lguas de distncia, os melhores bcoros, galinhas e perus dos seus cercados. Em breve, as coisas voltavam todas aos eixos: Jos entre- gou a fazenda a Domingas e mais trs pretos velhos, que alforriou logo, e, acompanhado pelo resto da escravatura, seguiu para a cidade de So Lus, no propsito de liquidar seus bens e reco- lher-se ptria com o filho. A me de Raimundo conseguiu enfim descansar. So Brs criou a sua lenda e foi aos poucos ganhando fama de amaldioa- da. Entretanto, o pequeno, quando chegou casa do tio na capi- 47. tal, estava, como facilmente se pode julgar, com a pele sobre os ossos. A falta de cuidados espalhara-lhe na carinha opada uma expresso triste de molstia; quase que no conseguia abrir os olhos. Todo ele era mau trato e fraqueza; tinha o estmago muito sujo, a lngua saburrenta, o corpo a finar-se de reumatismo e tosse convulsa, o sangue predisposto anemia escrofulosa. Ape- sar do instinto materno, que a tudo resiste e vence, a pobre escra- va no podia olhar nunca pelo filho: l estava Quitria para desvi- la dele, para cortar-lhe as carcias a chicote; tanto assim, que, quando Jos lhe anunciou que Raimundo ia para a casa do tio na cidade, a infeliz abenoou com lgrimas desesperadas aquela separao. Todavia, o desgraadinho foi encontrar em Mariana, cu- nhada de seu pai, a mais carinhosa e terna das protetoras. A boa senhora, como sabia que o marido o pouco que tinha devia generosidade do irmo, julgou-se logo obrigada a servir de me ao filho deste. Ana Rosa, nico fruto do seu casamento, ainda no era nascida nesse tempo, de sorte que as premissas da sua maternidade pertenceram ao pupilo. Dentro em pouco, no agasalho carinhoso daquelas asas de me, Raimundo, de feio que era, tornou-se uma criana forte, s e bonita. Foi ento que Ana Rosa veio ao mundo; a princpio muito fraquinha e quase sem dar acordo de si. Manuel andava aflito, com medo de perd-la. Que luta, os trs primeiros meses de sua vida! Parecia morrer a todo instante, coitadinha! Ningum dor- mia na casa; o negociante chorava como um perdido, enquanto a mulher fazia promessas aos santos da sua devoo. Era por isto que a menina, mais tarde, se recordava agrada- velmente de ter feito o anjo da vernica nas procisses da qua- resma. E ao lado de Mariana, que noite e dia velava o bero da filhinha enferma, estava o Mundico, o outro filho, que este tam- bm a chamava de me e j se no lembrava da verdadeira, da preta que o trouxera nas entranhas. A menina salvou-se, graas aos bons servios de um mdi- co, que chegara havia pouco da universidade de Montpellier, Dr. 48. Jauffret, e, a partir da Manuel no quis saber de outro facultati- vo em sua casa. Por essa poca, mais ou menos, chegava do Rosrio a not- cia de haver D. Quitria sucumbido a uma congesto cerebral. Deu-lhe de repente! explicava o correio, com o seu saco de couro s costas. Foi obra do sujo, credo! E, pouco depois, Jos Pedro da Silva, todo coberto de luto, muito encanecido e desfeito, vinha liquidar os seus negcios e partir logo para Portugal. Manuel estimava-o deveras e sentia-se de v-lo naquele estado. Aprontou-se tudo para a viagem e Jos recolheu-se a lti- ma noite em casa do irmo. Mas no pde pregar olho, estava excitado, e a lembrana dos terrveis sucessos, que ultimamente se haviam dado com ele, nunca o apoquentara tanto. Levantou- se e comeou a passear no quarto, a falar sozinho, nervoso, deli- rante, vendo surgir espectros de todos os lados. Pelas quatro horas da madrugada, Manuel, impressionado, porque, de todas as vezes que acordava, via luz no quarto do hspede e ouvia-lhe o som dos passos trpegos e vacilantes, e sentia-lhe os gemidos abafados e o vozear frouxo e doloroso, no se pde ter e levantou-se. Ter alguma coisa o Jos?... pen- sou ele, embrulhando-se no lenol e tomando aquela direo. A porta achava-se apenas no trinco, abriu-a devagar e entrou. O vivo, ao sentir algum, voltou-se assombrado e, dando com o fantasma que lhe invadia a alcova, recuou de braos erguidos, entre gritos terror. Manuel correu sobre ele; mas antes que se desse a conhecer, j o assassino de Quitria havia cado desamparadamente no cho. Fez-se logo um grande motim por toda a casa, que era nes- se tempo no Caminho Grande, e na qual os caixeiros do negoci- ante ainda no moravam com o patro. A boa Mariana acudiu pronta, cheia de zelo. Um escalda-ps! depressa! dizia, apalpan- do os contrados e volumosos ps do cunhado. Tisanas, mezi- nhas de toda a espcie, foram lembradas; ps-se em campo a medicina domstica, e, da a uma hora o desfalecido voltava a si. Mas no pde erguer-se: ficara muito prostrado. sncope sobreveio-lhe uma febre violenta, que durou at noite, quando 49. chegou afinal o Jauffret. Era uma febre gstrica, explicou este. E mais: que a mols- tia requeria certo cuidado muito sossego de esprito! Nada de bulha, principalmente! Jos, malgrado a recomendao do mdico, quis ver o fi- lho. Abraou-o soluando, disse-lhe que estava para morrer. E no outro dia ainda de cama, perfilhou-o; pediu um tabelio, fez testamento e, chorando, chamou Manuel para seu lado. Meu irmo, recomendou-lhe. Se eu for desta... o que possvel, remete-me logo o pequeno para a casa do Peixoto em Lisboa. Terminou dizendo que o queria com muito saber que o metessem num colgio de primeira sorte. Ficava a bastante di- nheiro... no tivessem pena de gastar com o seu filho; que lhe dessem do melhor e do mais fino. Estas coisas fizeram-no pio- rar; j todos os choravam como morto, e, pelos dias de mais ris- co, quando Jos delirava na sua febre, apareceu em casa do Ma- nuel o proco do Rosrio; vinha muito solcito, saber do estado do seu amigo Jos do seu irmo dizia ele com uma grande pieda- de. E da, no abandonava a casa. Prestava-se a um tudo, ser- vial, discreto, s vezes choramingando porque lhe vedavam a entrada no quarto do enfermo. Manuel e Mariana no se furta- vam de apreciar aquela solicitude do bom padre, o interesse com que ele chegava todos os dias para pedir notcias do amigo. Dis- pensavam-lhe um grande acolhimento; achavam-no meigo, jei- toso e simptico. um santo homem! dizia Manuel convencido. Mariana confirmava, acrescentando em voz baixa: Por adulao no , coitado! Todos sabem que o padre Diogo no precisa de migalhas!... remediado de fortuna, pois no! Mas, olhe, que sabe aplicar bem o que possui... Seguia-se uma longa resenha dos episdios louvveis da vida do santo vigrio; citavam-se rasgos de abnegao, boas es- molas a criaturas desamparadas, perdes de ofensas graves, pro- vas de amizade e provas de desinteresse. Um santo! Um verda- 50. deiro santo! E assim foi o padre Diogo tomando p em casa de Manuel e fazendo-se todo de l. J contavam com ele para padrinho de Ana Rosa; esperavam-no todas as tardes com caf, e noite, nos seres da famlia, marido e mulher no perdiam ocasio de con- tar as boas pilhrias do senhor vigrio, glorificar-lhe as virtudes religiosas e recomend-lo s visitas como um excelente amigo e magnfico protetor. Um dia, em que ele, como sempre, cheio de solicitude, perguntava pelo seu doente disseram-lhe que Jos estava livre de maior perigo e que o restabelecimento seria com- pleto com a viagem Europa. Diogo sorriu, aparentemente satis- feito; mas, se algum lhe pudesse ouvir o que resmungava ao descer as escadas, ter-se-ia admirado de ouvir estas e outras fra- ses: Diabo!... Querem ver que ainda no se vai desta, o mal- dito?... E eu, que j o tinha por despachado!... No dia seguinte, dizia o velhaco ao futuro compadre: Bom, agora que o nosso homem est livre de perigo, posso ir mais sossegado para a minha parquia... J no vou sem tempo!... E despediu-se, todo boas palavras e sorrisos anglicos, acompanhado pelas bnos da famlia. Senhor vigrio! gritou-lhe Mariana do patamar da esca- da. No faa agora como os mdicos, que s aparecem com as molstias!... Seja c de casa! Venha de vez em quando, padre! acrescentou Manuel. Aparea! Diogo prometeu vagamente, e nesse mesmo dia atravessou o Boqueiro em demanda da sua freguesia. Essa noite, nas salas de Manuel, s se conversou sobre as boas qualidades e os bons precedentes do estimado cura do Ro- srio. Jos, com geral contentamento dos de casa, convalescia prodigiosamente. Manuel e Mariana cercavam-no de afagos, de- sejosos por faz-lo esquecer a imprudncia da madrugada fatal, o que supunham, fosse o nico motivo da molstia; da a coisa de um ms, o convalescente resolveu tornar fazenda, a despei- to das instncias contrrias da cunhada e dos conselhos do ir- 51. mo. Que vais l fazer, homem de Deus? perguntava este. Se era por causa da Domingas, que diabo! fizesse-a vir! O melhor porm, segundo a sua fraca opinio, seria deix-la l onde esta- va. Uma preta da roa, que nunca saiu do mato!... No! no era isso! respondia o outro. Mas no iria para a terra, sem ter dado uma vista dolhos ao Rosrio! Ao menos no vai s, Jos. Eu posso acompanhar-te. Jos agradeceu. Que j estava perfeitamente bom. E, em caso de necessidade, podia contar com os canoeiros, que eram todos seus homens. E dizia as inmeras viagens que tinha feito at ali; contava episdios a respeito do Boqueiro. E que se deixassem disso! No estivessem a fazer daquela viagem um bicho de sete cabe- as!... Haviam de ver que, antes do fim do ms, estava ele de velas para Lisboa. Partiu. A viagem correu-lhe estpida, como de costume naquele tempo, em que o Maranho ainda no tinha vapores. Demais, a sua fazenda era longe, muito dentro, a cinco lguas da vila. Urgia, por conseguinte, demorar-se a algumas horas antes de internar-se no mato; comer, beber, tratar dos animais; arranjar conduo e fazer a matalotagem. Os poucos familiarizados com tais caminhos tomam sem- pre, por precauo, um pajem, este o nome que ali romantica- mente se d ao guia; e o pajem menos serve para guiar o viajante, que a estrada boa, do que para lhe afugentar o terror dos mocambos, das onas e cobras de que falam com assombro os moradores do lugar. No to infundado aquele terror: o serto da provncia est cheio de mocambeiros, onde vivem os escravos fugidos com suas mulheres e seus filhos, formando uma grande famlia de malfeitores. Esses desgraados, quando no podem ou no que- rem viver da caa, que por l muito abundante e de fcil venda na vila, lanam-se rapinagem e atacam na estrada os viajantes; travando-se, s vezes, entre uns e outros, verdadeiras guerrilhas, em que ficam por terra muitas vtimas. Jos da Silva comprou na vila o que lhe convinha e seguiu, 52. sem pajem para a fazenda. Ah! Ele conhecia perfeitamente essas paragens!... E quantas recordaes no lhe despertavam aquelas carnaubeiras solitrias, aqueles pindovais ermos e silenciosos e aqueles trmulos horizontes de verdura! Quantas vezes, perse- guindo uma paca ou um veado, no atravessou ele, a galope, aqueles barrancos perigosos que se perdiam da estrada! Pungia-lhe agora deixar tudo isso; abandonar o encanto selvagem das florestas brasileiras. O europeu sentia-se america- no, familiar s vozes misteriosas daqueles caits sempre verdejantes, habituado companhia austera daquelas rvores seculares, s sestas preguiosas da fazenda, ao viver amplo da roa, descalo, o peito nu, a rede embalada pela virao cheirosa das matas, o sono vigiado por escravos. E tinha de deixar tudo isso! Para que negar? Havia de custar-lhe muito! considerou ele, fazendo estacar o seu animal. Havia andado quatro lguas e pre- cisava comer alguma coisa. No interior do Maranho o viajante, de ordinrio, pousa e come nas fazendas que vai encontrando pelo caminho, tanto que todas elas, contando j com isso, tm sempre cmodos especi- ais, destinados exclusivamente aos hspedes adventcios; mas com Jos da Silva, que, alis muitas e muitas vezes pernoitara em diversas e conhecia de perto a hospitalidade dos seus vizi- nhos, a coisa mudava agora de figura: no queria de forma algu- ma suportar a companhia de ningum; receava que o interrogas- sem sobre a morte da mulher. Preferiu pois jantar mesmo ao re- lento, e seguir logo sua viagem. No obstante, ia j escurecendo, as cigarras estridulavam em coro; ouvia-se o lamentoso piar das rolas que se aninhavam para dormir; toda a natureza se embuava em sombras, bocejan- do. Anoitecia lentamente. Ento, Jos da Silva sentiu mais negra por dentro a sua viuvez; sentiu um grande desejo de chegar a casa, mas queria encontrar uma boa mesa, onde comesse e bebesse vontade, como dantes; queria a sua cama larga, de casados, o seu cachimbo, o 53. seu trajo de casa. Ah! Nada disso encontraria!... O quarto, em que ele, du- rante tantos anos, dormira feliz, devia ser quela hora um ermo pavoroso; a cozinha devia estar gelada, os armrios vazios, a horta murcha, os potes secos, o leito sem mulher! Que desconsolo! Apesar de tudo, sentia fundas s