O Mundo é Dos Jovens

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 Até a televisão tem a mesma opinião e por isso passa tantos flmes de pancadaria e miúdas descascadas que irritam os velhinhos. O MUNDO É DOS JOVENS - O mundo é dos jovens! – diz o pai. Acha que é nosso, porque tem de desemolsar a minha semanada, de me comprar telemvel. " est# $arto de passar $érias no Al%arve, para eu não amuar.  - O mundo é dos joven s! – concorda a mãe, por que as lojas estão cheias de roupas %ir&ssimas que os adultos não se atrevem a usar, porque a or i%o a carre%ar 'oca-'ola do sup er mercado, porque na escada s se ouve a música dos '()s mais loucos. - O mundo é dos jovens! – insiste a *set+ra de portu%us e, claro, ap roveita pa ra $alar das mara vi lhas da escolaridade ori%atria e dos milhares de pro$essores que dedicam a vida a $azer de ns os cidadãos que irão decidir o $uturo do planeta. O mundo ser# nosso, mas os *cotas ainda mandam al%uma coisa e l# me ori%aram a levar ao sapateiro um par de sapatos com um uraco na sola. Auso! o%o hoje que tenho de $azer um traalho de %rupo sore a cidadania. /# uma ofcina r#pida de cal0ado no 'entro 'omercial e eu em podia ao menos ir até l# com a malta da turma e ver os jo%os novos da  playstation . 1as não2  /aver# maior des%r a0a que a de ter um sapa teiro na $am&li a3 4apateiro remend ão, ainda por cima2 5ão é pessoa que se apresente aos ami%os.  Assim, pus-me a caminho, a pé, sozinho pela rua $ora, levando o pindér ico saco de pl#stico na mão, a alan0ar. 6assei diante do 6al#cio de 7elém, com os seus %uardas perflados, desemaciei os olhos f8ando o rilho do rio e o padrão ranco dos (escorimentos. O meu airro é um museu de histria, com monumentos em honra de %randes $eitos e nomes de nave%adores af8ados nas esquinas. 9s vezes, antes de adormecer, sonho com as suas via%ens, as %randes aventuras por que devem ter passado, e penso como seria om emarcar em usca do desconhecido. (antes a %ente da minha idade  j# nave%ava nas naus 2  1as l# $ui eu ao sapateiro, sem %lria nem aventuras.  O tio Al$r edo :irmão do meu av+; tem uma lojec a tão anti %a e $anada como ele prprio. 4apatos, mais sapatos a monte, pelo chão, pelas prateleiras, al%uns de certeza malcheirosos, tão %astos que nem mereciam conserto. /# mesmo %ente $or reta! Ao lon%o da parede pendurou uma pele pintal%ada de cora a$ricana, que ca0ou em An%ola, nos tempos da tropa.  - "ntão, rapaz, como vai a vidinha3  - < udo na maior2 – disse eu, atalhando depressa para não lhe dar muita conversa, porque os velhos solit#rios parecem ter corda. – =enho por causa dum uraco num sapato.  - Ora vamos l# ver2  6e%ou na pe0a, revirou-a. (epois, de cho$re, per%untou-me>  - O que é que queres ser3  ? iquei um ocado encaulado, porq ue t m todos a mesma curiosidade e eu sei que, com as minhas notas, é di $&c il che%ar @quelas profsses que considero o m#8imo> en%enheiro in$orm#tico, %estor de uma multinacional, director de um anco. 6or isso passei ao ataque.  - Ainda estou a pensar . " o senhor, quis ir para sapateiro 3 'om certeza que não2

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  Até a televisão tem a mesma opinião e por isso passa tantosflmes de pancadaria e miúdas descascadas que irritam os velhinhos.

O MUNDO É DOS JOVENS

- O mundo é dos jovens! – diz o pai. Acha que é nosso, porquetem de desemolsar a minha semanada, de me comprar telemvel." est# $arto de passar $érias no Al%arve, para eu não amuar.

  - O mundo é dos jovens! – concorda a mãe, porque as lojasestão cheias de roupas %ir&ssimas que os adultos não se atrevem ausar, porque a ori%o a carre%ar 'oca-'ola do supermercado,porque na escada s se ouve a música dos '()s mais loucos.

- O mundo é dos jovens! – insiste a *set+ra de portu%us e,claro, aproveita para $alar das maravilhas da escolaridadeori%atria e dos milhares de pro$essores que dedicam a vida a$azer de ns os cidadãos que irão decidir o $uturo do planeta.

O mundo ser# nosso, mas os *cotas ainda mandam al%umacoisa e l# me ori%aram a levar ao sapateiro um par de sapatos comum uraco na sola. Auso! o%o hoje que tenho de $azer um traalhode %rupo sore a cidadania. /# uma ofcina r#pida de cal0ado no'entro 'omercial e eu em podia ao menos ir até l# com a malta daturma e ver os jo%os novos da  playstation. 1as não2  /aver# maior des%ra0a que a de ter um sapateiro na $am&lia34apateiro remendão, ainda por cima2 5ão é pessoa que se apresenteaos ami%os.  Assim, pus-me a caminho, a pé, sozinho pela rua $ora, levando opindérico saco de pl#stico na mão, a alan0ar. 6assei diante do6al#cio de 7elém, com os seus %uardas perflados, desemaciei osolhos f8ando o rilho do rio e o padrão ranco dos (escorimentos.O meu airro é um museu de histria, com monumentos em honra de%randes $eitos e nomes de nave%adores af8ados nas esquinas. 9svezes, antes de adormecer, sonho com as suas via%ens, as %randesaventuras por que devem ter passado, e penso como seria omemarcar em usca do desconhecido. (antes a %ente da minha idade j# nave%ava nas naus2  1as l# $ui eu ao sapateiro, sem %lria nem aventuras.  O tio Al$redo :irmão do meu av+; tem uma lojeca tão anti%a e$anada como ele prprio. 4apatos, mais sapatos a monte, pelo chão,pelas prateleiras, al%uns de certeza malcheirosos, tão %astos quenem mereciam conserto. /# mesmo %ente $orreta! Ao lon%o daparede pendurou uma pele pintal%ada de cora a$ricana, que ca0ou

em An%ola, nos tempos da tropa.  - "ntão, rapaz, como vai a vidinha3  - <udo na maior2 – disse eu, atalhando depressa para não lhedar muita conversa, porque os velhos solit#rios parecem ter corda. –=enho por causa dum uraco num sapato.  - Ora vamos l# ver2  6e%ou na pe0a, revirou-a. (epois, de cho$re, per%untou-me>  - O que é que queres ser3  ?iquei um ocado encaulado, porque tm todos a mesmacuriosidade e eu sei que, com as minhas notas, é di$&cil che%ar@quelas profsses que considero o m#8imo> en%enheiro in$orm#tico,%estor de uma multinacional, director de um anco. 6or isso passei aoataque.  - Ainda estou a pensar. " o senhor, quis ir para sapateiro3 'omcerteza que não2

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  O tio Al$redo sorriu e convidou-me. – 4enta-te, rapaz, que voucontar-te uma histria>

  - 6araéns! "studa, que vais lon%e! – $elicitou-me o e8aminador.  ?iquei tão contente que não pensei mais nas otas. 'alcorreeicom elas o caminho de re%resso.  1al che%uei @ porta de casa, pus-me a %ritar. – 6assei, passei!

6osso ser um doutor!  A minha mãe apareceu, corri para a ara0ar, mas ela estacou.  - As otas! <ens as otas todas sujas e riscadas.  Arrancou-mas dos pés, deu-me uma sova e nunca mais memandou para a escola.  "ntão resolvi> - Buero ser sapateiro! 'he%a de andar descal0o,de ver pessoal descal0o2 na invernia da chuva, na $ornalha do =erão,pelos trilhos de urti%as, pedras e cardos. /ei-de cal0ar toda a %enteque conse%uir!  4a& de casa com dez anos para aprender o o$&cio. 'riei caelosrancos com a sovela na mão. " calos no rao de estar sempresentado num anco de pau.

  :'alos no rao2quase desatei a rir.;  - Ainda não tinhas come0ado a andar – continuou ele – quandote dei os primeiros sapatinhos, de pelica azul, lemro-me tão em."scolhi a pele mais macia, parecia veludo. ?oi com eles que deste osprimeiros passos.  /oje s usas ténis da moda. Csso $az suar2

*Buando eu andava na escola, éramos oito flhos em casa enenhum de ns usava sapatos. 6ara ir @s aulas palmilhava trsquilmetros a pé ao sol e @ chuva, e, quando voltava, ainda ia para omonte com as caras.  'he%ou a altura do e8ame e nin%uém podia apresentar-se descal0o."ntão, a minha mãe, enver%onhada, pediu ao senhor da padariaumas otas do flho, emprestadas. "ram de carneira fna, muitoclarinha, com protectores de $erro @ $rente, para não se %astarem."ntre%ou-mas, recomendando>

- 'uidado, muito cuidado, cal0a-as s quando entrares naescola. ", depois do e8ame, tira-as lo%o.  ?iz o e8ame. 'orreu-me tão em que passei com distin0ão.

Olhei pela porta escancarada. 5unca tinha reparado no ul&ciodum passeio. 6assos apressados de sapatos de sola de orracha,passos cadenciados de mocassinos, passos saltitantes de otaspontia%udas de tacão alto, passos arrastados de chancas camadas,de chinelos %astos. 'orridas de cal0ado desportivo li%eiro. 6esadamarcha de oti$arras da tropa. /esitante rodopiar de %rossassand#lias de turistas. 6ulinhos leves, leves de sarinas procurandoapenas as pedras ne%ras da cal0ada.  O mundo não era s nosso, dos jovens, dos meus ami%os. <odosaqueles pés iam para qualquer lado, em servi0o, em passeio, emnamoro, em usca dum destino. Buanto daquele cal0ado teriapassado pelas mãos an%ulosas do <io Al$redo3  Dns sapatos vermelhos, rilhantes, sensuais entraram, deimprevisto, na loja.  - 'aiu-me um salto e vou a%ora mesmo rodar uma cena para atelevisão. 4 o senhor me pode salvar.  - "ntão, menina, arranja-se j#.  evantei-me da cadeira e dei o lu%ar a uma rapari%amaravilhosamente loura que eu conhecia da telenovela do primeiro

canal.  "m cinco minutos o sapato fcou pronto. O tio Al$redo não quiscorar o servi0o.  - 6a%a-me com a ale%ria que me d# quando a vejo, @ noite.  - 4ae, o senhor merecia uma est#tua2 – disse a actrizsorrindo para ns.

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  ?itei, ao lon%e, o 6adrão dos (escorimentos com os seusheris. " lemrei-me, pela primeira vez, dos homens sem nome que$orjaram as Encoras, das mulheres que teceram as velas, doscarpinteiros que constru&ram as caravelas, dos escravos quecarre%aram os $ardos, do sapateiro que $ez os otins do Cn$ante (./enrique. (os esquecidos.

  - Bual é a tua3 5ão te che%a3 – irritou-se a 'atarina. – 5ãovives no nosso mundo3 6arece que dei8aste a cae0a no sapateiro!

 

Luísa Ducla Soares

Fumei para casa por causa do tal <6' sore a cidadania. Cdeiada *set+ra de portu%us, est# em de ver.  Buando l# che%uei, o 5uno e a 'atarina estavam @ minhaespera, pois costumamos $azer os trs juntos os traalhos de %rupo.  - "ntão, de que vamos $alar3  6useram-se os dois @ disputa, a ler as notas que tinhamraiscado numa $olha de papel, para adiantar.  - (a Associa0ão de "studantes, do jornal da escola, da equipade $uteol – disse o 5uno. – (a lierdade de e8pressão dosadolescentes, da solidariedade que cultivamos entre ns.  - 7em, tamém da tolerEncia em rela0ão aos  piercings,tatua%ens, caelos @s cores – acrescentou a 'atarina, que usa a%ora

madei8as ro8as e uma espécie de rinco no umi%o.  (izem que é muito sexy , mas eu até me arrepio. A mim é quenin%uém me $ura!  - G preciso ajudar os jovens dro%ados a dizer não @ dro%a,apoiar a malta com sida – continuou o 5uno.

- 5ão podemos esquecer os %rupos racistas, aqueles acelerasdas motos que andam em contramão a matar %ente. – $risou ela.  - Csso é tudo3 – per%untei, pensativo.