O municipio e a transferencia constitucional de ICMS

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O MUNICÍPIO E A TRANSFERÊNCIA CONSTITUCIONAL DE ICMS1

Estudo sobre a constitucionalidade de cláusula para pagamento de dívida municipal

através de débito automático na conta-corrente destinada ao recebimento do

repasse constitucional de ICMS

Rogério Roberto Gonçalves de Abreu2

A Constituição Federal, em sua nobre missão de instituir e organizar a

República Federativa do Brasil, logo no seu primeiro artigo, traça a peculiar

roupagem do Estado brasileiro quanto à forma federativa de Estado, estabelecendo-

a o legislador constituinte originário em três diferentes níveis, alçando os municípios

à categoria de entes federativos autônomos com todos os respectivos consectários

jurídicos e políticos.

No desempenho de suas competências constitucionais, objetivando a

consagração do interesse público, está o município autorizado a celebrar as mais

diversas formas de contratos civis e administrativos, sempre tendo as Constituições

Federal e Estadual, bem como a respectiva Lei Orgânica, a orientar-lhe a condução

e o desenvolvimento de sua ação administrativa.

Tal atuação administrativa, entretanto, nem sempre se desenvolve livre de

percalços, e o município se vê, em certos momentos, premido pelas circunstâncias

a celebrar negócios jurídicos cuja compatibilidade em relação ao ordenamento

jurídico nem sempre remanesce inatingida. Entretanto, deve o administrador

público, nos limites conferidos pelo Direito positivo, gerir o patrimônio público da

forma mais eficiente possível, exigindo-se-lhe prontas decisões as mais relevantes,

1 Última atualização: setembro/2005.

2 Mestre em direito econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em direito

fiscal e tributário pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Juiz federal na Paraíba. Professor do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ/PB).

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donde aparecem, de forma inevitável, choques recíprocos entre normas e

princípios, a serem dissipados pela atividade conciliadora do Poder Judiciário.

O presente trabalho tem como objetivo a análise de um destes contratos

celebrados pelos diversos municípios brasileiros, onde vemos, de forma premente,

a necessidade de deter-se o intérprete um segundo a mais na ponderação que faz

quando conflitam relevantes interesses públicos. Embora tratemos aqui de um caso

concreto, é inegável que o posicionamento defendido tem aplicação universal, dado

que tais problemas soem acontecer nos mais variados recantos do Estado

brasileiro. Neste aspecto está, segundo cremos, a importância do tratamento do

tema que se ora principia por debater.

Feita a preleção acima, esclarecemos destinar-se o presente trabalho a

trazer a lume, de uma forma didática, o pensamento por nós esposado nos autos de

uma Ação Cautelar Inominada, onde questionava o município de São João do

Cariri/PB a licitude de um contrato celebrado, em gestão anterior, com a SAELPA –

Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba, cujo objeto era a confissão de

dívidas passadas, além do estabelecimento de uma peculiar forma de pagamento: o

desconto da prestação mensal diretamente na conta-corrente destinada ao

recebimento dos valores repassados ao município como cota-parte do ICMS

arrecadado no Estado da Paraíba. Visava a Ação Cautelar em questão, assim, a

sustação dos pagamentos para que fosse, posteriormente, em ação própria,

anulado o contrato celebrado. Passemos, pois, à análise do caso concreto.

Como dito acima, tratava-se de Ação Cautelar Inominada (segundo dizia a

inicial, preparatória a uma Ação de Anulação de Cláusula Contratual ou Rescisão

de Contrato de Confissão de Dívida) proposta pelo município de São João do

Cariri/PB em face da Sociedade Anônima de Eletrificação da Paraíba – SAELPA,

com fito de sustar o pagamento, por parte da requerente à requerida, dos valores

concernentes a Termo (Contrato) de Confissão de Dívida (TCD), uma vez estarem

sendo feitos através de desconto automático diretamente à conta do repasse

constitucional da cota municipal sobre a arrecadação de ICMS pelo Estado.

Na exordial, alegava o município que o citado Contrato de Confissão de

Dívida teria sido celebrado entre si e a SAELPA em razão do exercício de manifesta

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coação, concretizada na ameaça de corte do fornecimento de energia elétrica, caso

não anuísse aos termos do acordo firmado. A concordância abrangia, inclusive, que

a forma de pagamento adotada fosse o saque direto da conta-corrente que recebia

os recursos constitucionalmente transferidos como cota ao município do ICMS

arrecadado no Estado.

Em seguida, afirmava que tal contrato, desprovido de um histórico do débito,

além de outros documentos fundamentadores e descritivos da dívida em todas as

suas nuances, ou seja, o principal, juros, multas, encargos, acréscimos etc., sem

haver passado pelo crivo do Poder Judiciário, configuraria, assim originado, um

contrato sem validade jurídica.

Alegava, ainda, que a forma pela qual se estariam a efetuar os pagamentos

inviabilizava completamente a atividade administrativa municipal, com franca lesão

aos cofres públicos, vinculada que se acharia a receita do repasse de ICMS ao

pagamento de uma questionável dívida perante uma sociedade de economia mista,

aumentando a agonia de um município que, sabidamente, encontrava-se em estado

de calamidade pública, sem recursos suficientes para a prestação de serviços

públicos e, sequer, para pagamento de sua folha de pessoal.

Acrescentava, finalmente, em seu extenso rol de alegações, considerações

quanto à inconstitucionalidade da avença, com a celebração do contrato em

suposta ofensa a diversos princípios e normas de caráter constitucional e legal,

concluindo pela inegável necessidade de elisão da agressão ao patrimônio público,

e pugnando pela suspensão do pagamento das parcelas pela forma pactuada, bem

como pela garantia contra quaisquer atos de retaliação, a exemplo do que seria o

corte de energia elétrica.

Na ocasião, considerando os argumentos expendidos na exordial, deferiu o

Judiciário a liminar pleiteada, abrindo, ato contínuo, vistas à parte contrária para

contestar a pretensão formulada.

Em sua peça de defesa, impugnara a SAELPA – Sociedade Anônima de

Eletrificação da Paraíba todas as alegações da parte autora, contestando a

existência de coação quando da celebração do Termo de Confissão de Dívida

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(TCD), a inconstitucionalidade da forma de pagamento assumida, a verificação de

vinculação vedada de receita, e a natureza tributária da receita de ICMS repassada

pelo Estado ao município, reafirmando a legitimidade do pacto.

Descreveu, em sua contestação, a situação que culminara na lavratura do

acordo firmado, ou seja, o fato de encontrar-se o município devedor em dificuldades

no pagamento de suas dívidas perante a entidade credora, motivando ambos à

celebração de um Termo de Confissão de Dívida, oferecendo-se o próprio município

para efetuar os pagamentos através de desconto automático na conta-corrente

destinada aos depósitos referentes ao repasse constitucional da receita de ICMS

arrecadada.

Salientou a SAELPA, finalmente, a possibilidade jurídica da questionada

forma de pagamento, através do desconto automático, sem que se fizesse

necessária qualquer autorização por parte do Poder Público Municipal, citando

dispositivos constitucionais e escólio doutrinário como fundamento a suas

afirmações.

Destacado em suas nuances o caso concreto acima narrado, urge esclarecer

que as questões referentes aos potenciais vícios do contrato celebrado, como

sutilmente asseverou o município devedor, não poderiam ser analisadas, em seu

mérito, nos autos da Ação Cautelar Inominada onde o objetivo se cingia apenas à

suspensão dos pagamentos e não à anulação do contrato firmado. Entretanto, o

exame de tais vícios, inevitavelmente, haverá de servir como embasamento ao

entendimento que sustentamos no presente trabalho, exatamente como veremos a

partir de agora.

Analisando-se as questões por ambas as partes colocadas e sobre as quais

debatidas, facilmente observamos que se encontram em conflito princípios jurídicos

de aceitação indiscutivelmente corrente, sem que possamos falar em grau de

hierarquia ou prevalência de um sobre o outro, tomados em sua natureza absoluta.

Relativamente colocados um em face do outro é que a questão assume foros de

complexidade.

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De um lado, alegava o município estar a suportar graves lesões em suas

finanças em razão dos pagamentos efetuados pela edilidade à entidade credora,

agravando-se sua situação em razão do estado de calamidade pública decretado e

efetivamente existente na cidade.

Por seu turno, alegava a SAELPA haver celebrado tal contrato com o

município em razão de dificuldades pelas quais estava o mesmo a passar,

aparecendo o Termo de Confissão e Parcelamento de Dívida como uma opção

menos drástica, colocada ao município inadimplente para a quitação de sua dívida

pela prestação do serviço de energia elétrica, sem a interrupção do dito serviço.

Vigoraria, assim, o princípio do pacta sunt servanda, bem como o princípio da boa-

fé, uma vez estar a entidade credora, quando da celebração da avença, legitimada

a uma ação de cobrança contra o município, ação judicial que somente não fora

ajuizada em razão da crença no pacífico pagamento pela forma assumida e, a

posteriori, severamente questionada.

Dentre as grandezas jurídicas, qual acolher, dado que, no presente caso,

ambas aparecem com tendencial poder de exclusão recíproca? A análise de tais

questões haverá de partir de um acurado exame quanto à legitimidade de tal

avença frente às normas constitucionais.

Com efeito, a Constituição Federal, como lei maior de uma nação, traça o

perfil não só do Estado como ente político, mas também delineia todas as balizas

que separam a atividade administrativa lícita da atividade ilícita, arbitrária ou

abusiva.

Sem pretender criar a falsa ilusão de um corpo integrado de normas que

apresente a impossível qualidade da onisciência, a Constituição Federal, como

norma fundamental de criação e estruturação do estado federal brasileiro,

estabelecendo princípios e normas de atenção obrigatória, ora pela União Federal,

ora por todos os entes federativos, haverá de ser obedecida em todos os seus

termos, interpretando-se-lhe as normas em conformidade com os princípios, e tendo

estes como norte a orientar o entendimento assumido na interpretação das próprias

normas infraconstitucionais.

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Dois princípios constitucionais de obediência absoluta e irrestrita, segundo o

ordenamento jurídico constitucional brasileiro, são os que estabelecem a autonomia

municipal e a indisponibilidade do interesse público, sendo corolário deste o

princípio da supremacia do interesse público ao particular.

Tratando de autonomia municipal, assim se manifesta ROQUE ANTÔNIO

CARRAZA, em seu Curso de Direito Constitucional Tributário (9. ed. São Paulo:

Malheiros Editores):

O princípio da autonomia municipal vem contido,

basicamente, nos artigos 29 e 30 da Carta Magna.

Tão expressivo é o princípio insculpido nestes artigos, que lei

alguma, nenhum poder, nenhuma autoridade (inclusive

judiciária), poderá, direta ou indiretamente, às claras ou sub-

repticiamente, mediante ação ou omissão, derrogá-lo ou, de

algum modo, amesquinhá-lo.

A autonomia municipal se desdobra em pelo menos quatro outros princípios,

todos componentes do mesmo conceito principiológico estabelecido na Constituição

Federal, donde admitir-se que seguramente autônomo não será o município a que

faltar qualquer das facetas integrantes da autonomia.

Em primeiro lugar, a autonomia municipal pressupõe a autonomia

organizacional, materializada esta no poder municipal de se auto-organizar através

de Lei Orgânica votada e aprovada pelos representantes do povo em um colegiado

legislativo próprio do ente estatal em questão. Assim, o município se organiza e se

rege por Lei Orgânica votada e aprovada por vereadores do próprio município,

eleitos pelo povo.

Em perfeita sintonia com tal vertente, e sendo não menos necessária, está a

autonomia política que se traduz na possibilidade de escolha, pelos cidadãos do

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município, de seus Representantes para o exercício do poder na resolução das

questões de interesse local. A autonomia organizacional não teria qualquer sentido

se os vereadores e o Prefeito Municipal não fossem escolhidos pelo povo em

eleições diretas.

Assomando-se às duas já citadas facetas da autonomia municipal, aponta-se

a autonomia administrativa, representada pela competência municipal para

organizar e prestar os seus serviços públicos, segundo critérios estabelecidos pela

Constituição Federal, pela Constituição Estadual (sem conflito com esta), e por sua

respectiva Lei Orgânica. Sendo a prestação de serviços públicos um dos primordiais

fins do Estado, e constituindo o município uma de suas unidades autônomas, não

se pode dizer autônomo um município que não detenha o poder de orientar a

prestação de seus próprios serviços, organizá-los por lei e prestá-los à população.

Finalmente, exsurge a autonomia financeira e tributária, consistente no poder

conferido ao município de, sem qualquer influência exercida por quaisquer dos

outros entes estatais, dispor de fontes de receita próprias e independentes, bem

como do poder de aplicar, segundo única e exclusivamente sua discrição

administrativa, obedecidas as Constituições Federal e Estadual, e a Lei Orgânica

Municipal, e através de lei orçamentária legitimamente aprovada, suas receitas.

Do estudo de tal faceta apresentada pelo princípio da autonomia municipal,

podemos chegar à inevitável ilação de que qualquer contrato ou ato administrativo

efetiva ou potencialmente tendente a atribuir a outra autoridade ou entidade

qualquer poder sobre a aplicação das rendas municipais, sem lei constitucional que

assim o preveja, agride, mortalmente, o princípio da autonomia municipal por

cercear, flagrantemente, a autonomia financeira e tributária de um município.

No caso em questão, tem-se que parte dos valores referentes ao repasse

constitucional, pelo Estado da Paraíba ao município de São João do Cariri/PB, da

arrecadação de ICMS, encontra-se com destinação e aplicação subtraídas à

vontade do próprio município, titularizada esta por seu Poder Executivo. Em outras

palavras, por força de simples contrato ou manifestação de vontades contrapostas,

o município requerente perde completamente o controle de parte significativa dos

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valores atinentes à cota do ICMS, os quais se acham, desse modo, vinculados ao

pagamento de uma dívida específica.

Inexiste, assim, atuação positiva do município no sentido de pagar as

parcelas do débito em questão. O que se encontra em tal situação, em verdade, é

um mandato em causa própria, conferido à Sociedade de Eletrificação da Paraíba,

para que esta possa se servir daquela especial fonte de receita municipal, ainda

que, em dado momento, seja mais conveniente e oportuna a utilização daqueles

recursos financeiros em determinada área crítica, como seria, v.g., defesa civil,

saúde ou educação.

No momento em que perde o município a ingerência sobre verbas

eminentemente municipais, por força de ato diverso de lei cuja constitucionalidade

não esteja em questão, a autonomia municipal estará fatalmente atingida em sua

vertente da autonomia financeira e tributária, e um tal ato ou contrato administrativo

será irremediavelmente eivado da letal chaga da inconstitucionalidade.

Não se pode sequer tentar aproximar a situação em exame no presente

trabalho aos Contratos de Empréstimos por Antecipação de Receita Orçamentária

(ARO), uma vez que tais contratos são celebrados especificamente para

financiamentos e empréstimos e, em vez de atribuir à entidade credora o poder de

se pagar através de determinada fonte de receita pública, apenas confere àquela

entidade credora uma garantia de pagamento por meio da respectiva fonte de

receita.

A principal distinção, assim, é que a entidade credora não tem poder ou

disponibilidade direta sobre os valores referentes à fonte de receita orçamentária

nos contratos de crédito por antecipação de receita. Sendo mera garantia, apenas

em juízo poderá tornar efetiva a caução, não se podendo servir de tais valores ao

arrepio do ente estatal, exatamente como parece ocorrer em relação ao caso

concreto sob exame.

Sendo assim, temos que o Termo de Confissão de Dívida (TCD), na parte

em que prevê o auto-pagamento pela SAELPA, através de débito automático na

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conta-corrente do município devedor, manifesta-se inconstitucional e inválido por

afrontar o princípio da autonomia municipal.

Seria correto afirmar que, uma vez pactuada tal forma de pagamento, sob

pena de prejuízo à boa-fé da requerida e ao princípio do pacta sunt servanda, esta

deveria ser mantida, principalmente por ter havido a plena aquiescência do

município ao acordo firmado? Entendemos que não.

O princípio da autonomia da vontade jamais poderá se sobrepor ao

evidentemente superior princípio da indisponibilidade do interesse público. Não se

pode pretender manter válida e efetiva uma cláusula contratual, sob a alegação de

salvaguarda a um direito individual, quando a outra grandeza jurídica posta na

balança é o próprio interesse público, alicerçado por uma série de princípios e

normas constitucionais de caráter cogente.

A manutenção indefinida dos efeitos de tal cláusula contratual atentaria, sem

sombra de dúvida, contra o interesse público, dado que a evasão de receitas

públicas ao completo arrepio da autoridade municipal ordenadora da despesa

apresenta-se como fator de lesão à atividade-fim do município, que é a prestação

do serviço público.

Havendo, pois, potencial ou efetiva lesão à continuidade do serviço público,

haverá ofensa ao princípio da indisponibilidade do interesse público. Um contrato

como tal, assim, jamais poderia ter sido celebrado e, tendo-o sido, como afirmamos

acima, carrega consigo a mácula eterna da inconstitucionalidade.

Tais considerações salientam a inconstitucionalidade da forma de pagamento

pactuada apenas na análise de suas implicações quanto à autonomia municipal.

Urge esclarecer, neste passo, o quanto ainda infringe a dita cláusula a Constituição

Federal por preconizar, na prática, inconstitucional vinculação de receita.

Argumentava a SAELPA, em sua peça de defesa, que as normas

constitucionais proibitivas da vinculação de receita de impostos a uma determinada

despesa não teriam aplicação ao caso concreto sob comentário, uma vez que

haveriam sido excluídos da vedação constitucional os recursos financeiros

provenientes das transferências tributárias. Em alicerce a tal posição, aponta a

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disposição do artigo 167, IV, da Constituição Federal. O dispositivo citado tem o

seguinte texto:

Art. 167. São vedados:

..........

IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou

despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação

dos impostos a que se referem os artigos 158 e 159, a

destinação de recursos para as ações e serviços públicos de

saúde e para manutenção e desenvolvimento do ensino,

como determinado, respectivamente, pelos artigos 198, § 2º,

e 212, e a prestação de garantias às operações de crédito por

antecipação de receita, previstas no artigo 165, § 8º, bem

como o disposto no § 4º deste artigo; (grifado).

Apontando o dispositivo constitucional acima, objetivava a Sociedade

Anônima de Eletrificação da Paraíba fazer acreditar que, ao ressalvar a repartição

do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os artigos 158 e 159,

teria pretendido a Constituição Federal possibilitar a prática de atos tendentes à

vinculação de tais receitas a qualquer despesa, órgão ou fundo específico.

Tais argumentos não sobrevivem diante de uma análise mais cuidadosa por

parte do intérprete. Da refletida leitura dos dispositivos constitucionais em questão,

observa-se que, ao fazer a ressalva destacada no dispositivo acima, simplesmente

quis dizer a Constituição Federal que, quanto às transferências constitucionais, vige

o princípio da vinculação de receita, mas não para o ente estatal que recebe a

transferência, e sim, exatamente, para aquele que efetua, em caráter ativo, o

repasse de recursos.

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Exemplificando, quando dispõe a Constituição Federal, no artigo 158, II,

pertencer ao município cinqüenta porcento (50%) do produto da arrecadação, pela

União Federal, do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), está a

excepcionar, para a União Federal e não para o município, a vedação de vinculação

de receita tributária. Neste caso, cinqüenta porcento da receita da União Federal,

atinente à arrecadação do ITR dos imóveis situados na área do respectivo

município, estará fatalmente vinculada: repasse ao município.

A partir do exemplo acima, torna-se facilmente verificável o quão falacioso se

apresenta o argumento sustentado pela SAELPA, especialmente por tencionar a

mesma legitimar, perante o Poder Judiciário e contra a Constituição Federal, um tal

contrato que preconiza evidente vinculação de receita tributária.

Argumentando, ainda, contra a natureza tributária dos recursos em

discussão, ou seja, dos valores repassados (pelos Estados aos municípios) a título

de transferência constitucional de parte do ICMS arrecadado, citava a SAELPA

passagem da conhecida obra do professor Roque Antônio Carrazza, afirmando o

festejado mestre, em síntese, que ―a repartição das receitas tributárias não é um

tema tributário‖ (idem).

Não pretendemos contestar o eminente professor, principalmente por

entendermos assistir-lhe integral razão ao dizer que a aplicação ou destinação de

verbas públicas são questões atinentes ao estudo do Direito Administrativo,

Financeiro e Orçamentário. O Direito Tributário se preocupa, pois, com o tributo,

indo apenas até onde tal tributo se tem por extinto, em geral, pelo pagamento. Uma

vez efetuado o pagamento, o destino de tal receita tributária não mais será

estudado pelo ramo jurídico do Direito Tributário, mas pelas ciências jurídicas afins

acima citadas, especialmente o Direito Financeiro.

Entretanto, como o próprio mestre salienta em sua obra, ―a destinação do

produto da arrecadação do tributo não modifica sua natureza jurídica‖ (Id. Ibid.), de

modo a ser irrelevante para a questão da natureza jurídica da receita se aquela

quota-parte será destinada ao custeio do serviço público do ente estatal tributante,

ou se será repassada como transferência constitucional: tratar-se-á, sempre, de

receita tributária.

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O núcleo do argumento ora rebatido está na falaciosa tentativa de

descaracterizar a natureza tributária dos recursos financeiros componentes da

receita transferida por disposição constitucional. Ora, a natureza jurídica das

normas constitucionais que determinam a transferência de parte do ICMS

arrecadado pelos Estados aos municípios, além de Constitucional será, igualmente,

Financeira (não Tributária). Significa dizer que o repasse, em si, tem causa jurídica

em normas de caráter constitucional e financeiro, o que não desvirtua a natureza

dos recursos repassados, eis que permanecem como receita tributária, adquirida

pelo Estado através de seu poder de império, coativamente, na forma de tributo.

A tentativa de confundir os dois elementos acima tratados não sobrevive a

uma ponderação mais atenta, especialmente por se saber que os recursos

repassados têm a mesma origem tributária que a quota-parte não repassada.

Exemplificando, podemos afirmar, com absoluta certeza, que a natureza jurídica

tributária dos recursos financeiros que compõem os 25% (vinte e cinco porcento)

transferidos aos municípios por força do artigo 158, IV, CF/88, é a mesma dos 75%

(setenta e cinco porcento) que permanecem com o Estado respectivo. Poderia

alguém questionar que tanto a primeira quanto a segunda cota-parte foram fruto da

cobrança coativa de imposto (ICMS)? Respeitosamente, duvidamos.

Apresentando a mesma origem tributária, e não sendo a destinação um fator

de alteração de sua natureza jurídica, impossível admitir como válido o argumento

de não possuírem tais recursos financeiros a natureza de receita tributária,

provando-se, destarte, a natureza tributária da receita repassada pelos Estados aos

municípios a título de transferência constitucional.

Finalmente, sendo receita tributária e, mais precisamente, receita oriunda de

imposto, cai por terra o entendimento de que não se aplicaria a tal espécie de

receita municipal a norma constitucional proibitiva da vinculação de receita,

demonstrando-se, por mais um flanco, a inconstitucionalidade da cláusula definidora

da forma de pagamento preconizada pelo contrato em questão — como

constatamos —, de franca agressão ao postulado constitucional federal do artigo

167, inciso IV.

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Oportuno transcrevermos, sobre o tema, no intuito de que eventuais dúvidas

ou hesitações ainda existentes sejam afastadas, o entendimento do Superior

Tribunal de Justiça em acórdão proferido em sede de Recurso Ordinário, da lavra

do eminente Ministro Demócrito Reinaldo, publicado no Diário da Justiça do dia

13.12.1999.

ADMINISTRATIVO – FINANCEIRO – ASSUNÇÃO DE

DÍVIDA CONTRATUAL PELO ESTADO CONTRAÍDA POR

ENTIDADE DA ADMINISTRAÇÃO INDIRETA –

ROMPIMENTO UNILATERAL – IMPOSSIBILIDADE –

RECEITA TRIBUTÁRIA – TRANSFERÊNCIA DIRETA AO

CREDOR – PROCURAÇÃO EM CAUSA PRÓPRIA

OUTORGADA PELO ESTADO A SEU CREDOR –

NULIDADE – I – O Estado, legalmente autorizado para tanto,

pode assumir dívidas de entidades de sua administração

indireta, provenientes da edificação de obras públicas

revertidas ao patrimônio estatal e ao serviço público. Os atos

de que resultou tal assunção de dívida têm motivo e causa

justos. Negar pagamento às respectivas dívidas implicaria em

enriquecimento ilícito às custas do executor das obras. II – A

Súmula 473/STF não autoriza a desconstituição, por nulidade,

de contrato bilateral. Tal desconstituição pressupõe

contraditório judicial (L. 8.666/93, Arts. 58, II; 78 e 79). III – A

transferência automática de receita tributária ao credor, para

resgate de dívidas, enfrenta os preceitos contidos nos artigos

100 e 167 da Constituição Federal. IV – É nula outorga de

procuração, pelo Estado a seu credor, com o escopo de

permitir que este levante em causa própria, créditos

tributários. (STJ – Ac. 199800364323 – ROMS 9830 – BA – 1ª

T. – Rel. Min. Demócroito Reinaldo – DJU 13.12.1999 – p.

00125) – Grifado.

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Em conclusão, entendemos que argumentar — como o faz a Sociedade

Anônima de Eletrificação da Paraíba no caso concreto acima analisado — em

defesa da legalidade ou legitimidade de uma tal cláusula, a qual estabelece o

pagamento de débito assumido por município, através de desconto automático à

conta dos recursos oriundos da transferência constitucional de parte do ICMS

arrecadado pelo Estado-membro, é defender a existência, no ordenamento jurídico,

de pactos manifestamente inconstitucionais, seja em razão da infração de cogente

norma constitucional proibitiva da vinculação da receita de impostos a qualquer

despesa, seja, ainda, em face da violenta agressão à autonomia municipal, atingida

esta em sua vertente da autonomia tributária e financeira.

Como dito inicialmente, a importância do tema se concentra no fato de que a

problemática enfrentada na resolução das questões acima colocadas sói ocorrer em

todos os Estados da federação, tornando universal o problema. Embora

relativamente vasta a literatura Constitucional e Administrativa, ainda se tem um

pequeno deficit quanto à Tributária e, infelizmente, rarefeita é a literatura em Direito

Financeiro e Municipal, o que agrava a situação dos pequenos municípios

brasileiros, bem como dificulta a atuação dos profissionais que se aventuram a

trabalhar em tal importante segmento das relações jurídicas de Direito Público.

Esperamos, assim, que o presente trabalho possa servir de subsídio à elisão, em

casos similares, dos efeitos de cláusulas contratuais manifestamente

inconstitucionais, opressoras e impeditivas do bom desempenho da atividade

administrativa municipal.