O Museu da Inocência -...

397

Transcript of O Museu da Inocência -...

Page 1: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme
Page 2: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

ORHANPAMUK

OMuseudaInocência

Tradução

SergioFlaksman

Page 3: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

ARüya

Page 4: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Erampessoasinocentes,tãoinocentesqueachavamapobrezaumcrimequeariquezalhespermitiriaesquecer.DoscadernosdeCelâlSalik

SeumhomempudessepassarpeloParaísonumSonho,e recebesseuma florcomoprovadequesuaAlmarealmenteestiveralá,eencontrasseafloremsuamãoquandodespertasse—Sim?Eentão?

DoscadernosdeSamuelTaylorColeridgePrimeiropasseiemrevistatodososobjetosemcimadamesa,suasloçõeseperfumes.Peguei-oseosexamineiumaum.Revirei seu reloginho em minha mão. E então olhei em seu guarda-roupa. Todos aqueles vestidos e acessóriosempilhadosumemcimadooutro.Essascoisasquetodamulherusaparasecompletarinduziramemmimumasolidãodolorosaedesesperada;sentiqueeradela,sódesejavaserdela.

DoscadernosdeAhmetHamdiTanpınar

Page 5: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Sumário

Mapa1.Omomentomaisfelizdaminhavida2.Aboutiqueşanzelize3.Parentesdistantes4.Amornoescritório5.OFuaye6.AslágrimasdeFüsun7.OedifícioMerhamet8.OprimeirorefrigerantedaTurquiaàbasedefrutas9.F10.Asluzesdacidadeeafelicidade11.AFestadoSacrifício12.Beijandooslábios13.Oamor,acoragem,amodernidade14.Asruas,aspontes,asladeiraseaspraçasdeIstambul15.Algumasverdadesantropológicasimpalatáveis16.Ociúme17.Todaaminhavidadependeagoradevocê18.AhistóriadeBelkıs19.Nofuneral20.AsduascondiçõesdeFüsun21.Ahistóriadomeupai:osbrincosdepérola22.AmãodeRahmiEfendi23.Osilêncio24.Afestadenoivado25.Aagoniadaespera26.Omapaanatômicodasdoresdeamor27.Nãoseinclinetantoassimparatrás,vocêpodecair

Page 6: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

28.Oconsolodosobjetos29.Aessaalturamalhaviaummomentoemqueeunãopensassenela30.Füsunnãomoramaisaqui31.Asruasquemefazemlembrardela32.AssombrasefantasmasqueeuconfundiacomFüsun33.Exaltaçõesvulgares34.Comoumcãonoespaçosideral35.Asprimeirassementesdaminhacoleção36.Paracultivarumapequenaesperançaquepudesseatenuaraminhador37.Acasavazia38.Afestadofimdoverão39.Aconfissão40.Ascompensaçõesdavidanumayalı41.Nadandodecostas42.Amelancoliadooutono43.Osdiasfriosesolitáriosdenovembro44.OhotelFatih45.UmferiadoemUludağ46.Énormallargarassimasuanoiva?47.Amortedomeupai48.Acoisamaisimportantenavidaéserfeliz49.Eupretendiapediraelaquesecasassecomigo50.Eraaúltimavezemqueeuaveria51.Afelicidadeéestarpertodequemvocêama,emaisnada52.Umfilmesobreavidaeaagoniaprecisasersincero53.Umcoraçãoindignadoepartidonãoservedenadaparaninguém54.Otempo55.Volteamanhã,epodemossentarjuntosdenovo56.ALimonFilmesLtda57.Sobreaincapacidadedemelevantareirembora58.Atômbola59.Passandopelacensura60.NoitesàbeiradoBósforo,norestauranteHuzur61.Oolhar62.Paraajudarapassarotempo63.Acolunasocial64.OincêndionoBósforo65.Oscachorros66.Oqueéisso?67.Aágua-de-colônia

Page 7: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

68.4213pontasdecigarro69.Àsvezes70.Vidaspartidas71.Osenhorquasenãovemmaisaqui,KemalBey72.Avidatambéméexatamenteigualaoamor73.AcarteirademotoristadeFüsun74.TarıkBey75.Aconfeitariaİnci76.OscinemasdeBeyoğlu77.OhotelGrandSemiramis78.Chuvadeverão79.Viagemparaumoutromundo80.Depoisdoacidente81.OMuseudaInocência82.Oscolecionadores83.AfelicidadeAgradecimentos

Page 8: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme
Page 9: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

1.Omomentomaisfelizdaminhavida

Eraomomentomaisfelizdaminhavida,maseunãosabia.Sesoubesse,setivessedadoodevidovaloraessadádiva, tudo teriaacontecidodeoutramaneira?Sim, seeu tivesse reconhecidoaquelemomentodefelicidadeperfeita,teriaagarradocomforçaenuncadeixariaquemeescapasse.Levoualgunssegundos,talvez,paraaqueleestadoluminosotomarcontademim,mergulhando-menapazmaisprofunda,maselemepareceuterduradohoras,atémesmoanos.Naquelemomento,natardede segunda-feira, 26demaiode 1975,em tornodequinzeparaas três, assimcomonos sentíamosalém do pecado e da culpa, o mundo todo parecia ter sido liberado da gravidade e do tempo.Beijando o ombro de Füsun, já úmido com o aquecimento do nosso amor, eu a penetreidelicadamenteportrás,eenquantomordiadelevesuaorelha,seubrincodevetersesoltadoe,peloque nos pareceu, pairado em pleno ar antes de cair por vontade própria. Nosso prazer era tãoprofundoquecontinuamos anosbeijar, ignorando aquedadobrinco, cuja formaeunem sequertinhapercebido.Doladodefora,océurefulgiacomosóocorreemIstambulnaprimavera.Nasruas,aspessoasque

ainda envergavam suas roupas de inverno transpiravam, mas dentro das lojas e dos prédios, e àsombra das tílias e das castanheiras, fazia frio. Sentíamos o mesmo frio erguer-se do colchãoemboloradonoqualfazíamosamor,damaneiracomoascriançasbrincam,ignorandoalegrementetudomais.Umabrisaentravapela janeladavaranda,aromatizadapelomarepelas folhasde tília;erguiaascortinasdetule,edepoiselasdesinflavamemcâmeralenta,arrepiandonossoscorposnus.Da camado quarto dos fundos do apartamento do segundo andar, víamosumgrupodemeninosjogandofutebolnojardim,aoníveldarua,gritandofuriosospalavrõesnocalordapartida,e,quandonos ocorreu que estávamos encenando, palavra por palavra, exatamente aquelas indecências,paramosdefazeramorparanosolharmosnosolhosesorrir.Mastãograndeeranossaexaltaçãoqueagraçadoquenosenvolviavindadopátiodosfundosfoiesquecidatãodepressaquantoobrinco.Quandonosencontramosnodiaseguinte,Füsunmedissequetinhaperdidoumdosbrincos.Na

verdade,pouco tempodepoisqueela foraemborana tardeanterior, euo localizara aninhadonoslençóis azuis, com sua inicial pendendo da ponta da joia, e já me preparava para pô-lo de ladoquando, por uma estranha compulsão, guardei-o no bolso. E então eu disse: “Está aqui comigo,querida”,enquantoenfiavaamãonobolsodireitodopaletópenduradonascostasdeumacadeira.“Ah, sumiu!” Por ummomento, tive ummau presságio, uma sugestão de desígniomaléfico,masentão lembrei que tinha vestido um paletó diferente naquela manhã por causa do tempo mais

Page 10: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

quente.“Deveestarnobolsodomeuoutropaletó.”“Traga amanhã, por favor. Não se esqueça”, disse Füsun, arregalando os olhosmuito grandes.

“Gostomuitodele.”“Estábem.”Füsuntinhadezoitoanos,eraumaparentedistanteemaispobre,eatédepararporacasocomela

ummês antes eupraticamentemeesquecerade sua existência.Estava com trinta anos eprestes aficarnoivodeSibel,que,segundotodosdiziam,eraamulherperfeitaparamim.

2.AboutiqueŞanzelize

Asériedeacontecimentosecoincidênciasqueestavaapontodemudarminhavidainteiratinhacomeçado um mês antes, no dia 27 de abril de 1975, quando Sibel por acaso viu uma bolsadesenhadapelafamosaJennyColonnumavitrineenquantocaminhávamospelaavenidaValikonağı,aproveitandoo frescorda tardedeprimavera.Nossacerimôniadenoivadonão tardaria; estávamosanimadoseumpoucoembriagados.AcabávamosdesairdoFuaye,umnovorestaurantechiquedeNişantaşı; jantando commeus pais, tínhamos conversado longamente sobre os preparativos para afestadenoivado,marcadaparameadosdejunho,demodoqueNurcihan,amigadeSibeldesdeostemposdoLiceuNotre-DamedeSion,etambémdeseustemposemParis,pudessevirdaFrançaeestarpresente.SibeljáencomendarafaziatemposeuvestidodenoivadoaİsmetSedosa,naépocaacostureiramaiscaraesolicitadadeIstambul,enaquelatardeSibeleminhamãediscutiramdequemaneiradeviamserbordadasaspérolasqueminhamãelhederaparaovestido.Eravontadeexpressade meu futuro sogro que a festa de noivado de sua única filha fosse extravagante como umcasamento,eminhamãe ficaraencantadacomapossibilidadedeajudaracumpriressedesejodamelhormaneirapossível.Quantoaomeupai, jáestavaencantadocomaperspectivadeumanoraque “estudara na Sorbonne”, como se dizia naquele tempo entre a burguesia de Istambul dequalquermoçaquetivessepassadoumperíodoemParisenvolvidaemqualquertipodeestudo.Foi quando levava Sibel para casa caminhando aquela noite, meu braço envolvendo

carinhosamenteseusombroslargos,refletindoorgulhosooquantoeutinhasorteeerafeliz,queSibeldisse:“Ah,quebolsalinda!”.Emborameuespíritoestivesseumpoucoenevoadopelovinho,presteiatençãonabolsaenonomedaloja,enahoradoalmoçododiaseguintefuiatélá.Naverdadeeununca tinha sido um desses playboys escolados e cavalheirescos sempre à procura de qualquerpretexto para comprar presentes ou mandar flores para as mulheres, embora talvez quisesse ser.Naquele tempo, as entediadas donas de casa ocidentalizadas dos bairros mais ricos, como şişli,NişantaşıeBebek,nãoabriam“galeriasdearte”,masboutiquescujosestoqueseramformadosporcomplementoseconjuntoscontrabandeadosnabagagempessoalquetraziamdeParisouMilão,ouporcópiasdosvestidosda“últimamoda”queapareciamnasrevistasimportadascomoElleeVogue,vendendoessasmercadorias apreços ridiculamente inflados a outrasdonasde casa tão entediadasquanto elas.Como ela haveria deme lembrar quando a procurei anosmais tarde, ŞenayHanım,entãoproprietáriadaşanzelize(nomequeeraumatransliteraçãodalendáriaavenidaparisiensedos

Page 11: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Champs-Elysées),era,comoFüsun,parenteminhamuitodistanteporpartedemãe.Ofatodetermedadooletreiroquenaépocapendiadaportadaloja,bemcomoqualqueroutroobjetoligadoaFüsun, semmeperguntar omotivo de tamanho interesse pelo estabelecimentohavia tanto tempofechado, levou-meaentenderquealgunsdosdetalhesmaisnotáveisdanossahistóriaeramdoseuconhecimento,edefatotiveramumacirculaçãomuitomaisampladoqueeusupunha.Quandoentreinaşanzelizeemtornodemeio-diaemeiadodiaseguinte,apequenacampainhade

bronzenaformadeumcameloemitiuduasnotasqueaindafazemmeucoraçãodisparar.Eraumdiaquentedeprimavera,eointeriordalojaestavafrescoepoucoiluminado.Numprimeiromomentoacheiquenãohavianinguém,enquantomeusolhosaindaseajustavamàsombradepoisdosolfortedomeio-dia.Entãosentimeucoraçãosubiràgarganta,comaforçadeumaondaimensaapontodequebrar-senaareia.“Queriacomprarabolsadomanequimdavitrine”,conseguidizer,desequilibradopelavisão.“EstáfalandodaJennyColondecourocreme?”Quandotrocamosumolhar,lembrei-meimediatamentedela.“Abolsadomanequimdavitrine”,repetiemtomsonhador.“Ah, está bem”, disse ela e caminhou até a vitrine.Num instante tinha descalçado seus sapatos

amarelosdesaltoalto,apoiandoopédescalço,cujasunhaspintaracuidadosamentedevermelho,nopisodavitrine,eestendiaobraçoparaomanequim.Meusolhosviajaramdosapatovazioaté suascompridaspernasnuas.Aindanemeramaio,eelasjáestavambronzeadas.Ocomprimentodaquelas pernas fazia sua saia amarela rendadaparecer aindamais curta.Após

pescarabolsa,elavoltouatéobalcãoecomseusdedos longosehabilidosos removeuasbolasdepapeldesedadecorcremeamassado,mostrando-meointeriordocompartimentocomfechoecler,os dois compartimentos menores (ambos vazios), bem como o compartimento secreto de ondeextraiuumcartãoquediziaJENNYCOLON,comgestosquesugeriammistérioeseriedade,comosememostrassealgomuitopessoal.“Olá,Füsun.Comovocêcresceu!Talveznãotenhamereconhecido.”“Demaneiranenhuma, primoKemal, reconheci vocênamesmahora,mas quando vi quenão

tinhamereconhecidoacheiqueeramelhornãoincomodar.”Fez-seumsilêncio.Torneiaolharnumdoscompartimentosqueelaacabarademeindicardentro

dabolsa.Suabeleza,ousuasaia,queeradefatocurtademais,oualgumaoutracoisaqualquer,meperturbara,eeunãoconseguiamecomportarcomnaturalidade.“Bem…eoquevocêandafazendoultimamente?”“Estou estudando para o vestibular. E também venho aqui todo dia. Aqui na loja, estou

conhecendogentedetodotipo.”“Maravilhoso.Mas,mediga,quantocustaessabolsa?”Franzindo as sobrancelhas, ela examinou a etiqueta escrita à mão no fundo da bolsa: “Mil e

quinhentas liras”. (Na época, o equivalente a seis meses de salário de um funcionário públicoiniciante.)“MastenhocertezadequeŞenayHanımgostariadelheoferecerumpreçoespecial.Elafoialmoçaremcasaeagoradeveestarfazendoasesta,eentãonãopossoligarparaela.Massepuderpassaraquimaistarde…”

Page 12: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Nãofazdiferença”,disseeu,epuxandominhacarteira—umgestodesajeitadoque,maistarde,nolocaldenossosencontrossecretos,Füsunmuitasvezesimitaria—conteiasnotasúmidas.Füsunembrulhouabolsaempapel,tomandocuidadomascomevidenteinexperiência,eentãoguardouoembrulhonumasacoladeplástico.Ao longode todoesse silêncio,ela sabiaqueeuadmirava seusbraçoscordemeleseusmovimentosrápidoseelegantes.Quandomeentregouasacoladecomprascomumgestocortês,agradeci.“PorfavordêlembrançasminhasatiaNesibeeaseupai”,disseeu(nãotendoconseguidolembrar-meatempodonomedeTarıkBey).Poruminstante,fizumapausa.Meufantasmadeixoumeucorpoenaquelemomento,emalgumaesquinadocéu,abraçavaebeijavaFüsun.Dirigi-medepressapara aporta.Quedevaneioabsurdo, especialmenteporqueFüsunnemeratãolindaassim.Acampainhadaportatilintou,ouviumcanáriogorjearesaíparaarua,felizdesentircalor.Estavasatisfeitocomaminhacompra;amavamuitoSibel.Decidiesquecer-medaquelaloja,edeFüsun.

3.Parentesdistantes

Aindaassim,no jantardaquelanoitemencioneiparaminhamãeque tinhameencontradocomnossaparentedistanteFüsunquandofuicomprarumabolsaparaSibel.“Ah, sim, a filha deNesibe está trabalhandonaquela loja deŞenay, e é realmente uma pena!”,

disseminhamãe. “Nem nos feriados elas nos visitammais. Aquele concurso de beleza as deixounumaposiçãotãoembaraçosa.Eupassoporaquelalojatododia,masnãoconsigomeconvenceraentrarecumprimentarapobremenina—naverdade,nemmepassapelacabeça.Masquandoelaera pequena, sabe, eu gostavamuito dela.QuandoNesibe vinha costurar paramim, ela às vezesvinha junto. Eu tirava os seus brinquedos do armário e enquanto a mãe costurava ela ficavabrincando quietinha. A mãe de Nesibe, tia Mihriver, que descanse em paz— era uma pessoamaravilhosa.”“Equaléexatamenteonossoparentescocomelas?”Como meu pai estava vendo televisão sem prestar atenção em nossa conversa, minha mãe

entregou-seaumahistóriacomplexasobreopaidela,quenasceranomesmoanoqueAtatürkemaistarde frequentaraaEscola şemsiEfendi, assimcomoo fundadordaRepública, como sepode vernessa fotode turmaqueencontrei vários anosmais tarde.Parecequemuito antesqueele (EthemKemal,meu avô) se casasse comminha avó, tiveraumprimeiro casamento travado às pressas aosvinte e três anos de idade. A bisavó de Füsun, que era de origem bósnia,morrera por ocasião daGuerradosBálcãs,duranteaevacuaçãodeEdirna.EmboraainfelizmulhernãotenhadadofilhosaEthemKemal,játinhaumafilhachamadaMihriverdeumxequepobre,comquemsecasara“aindacriança”.EentãoatiaMihriver(aavódeFüsun,queacabousendocriadaporváriaspessoas)esuafilha tia Nesibe (a mãe de Füsun) não eram nossos parentes no sentido estrito; erammais comoparentes por afinidade, e, emboraminhamãe viesse enfatizando isso havia anos, ainda assim nosinstruía a chamar de “tias” asmulheres daquele ramo familiar distante. Durante suas visitasmaisrecentes nos feriados,minhamãe dedicara àquelas parentes empobrecidas (que viviam numa rua

Page 13: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

transversal deTeşvikiye) uma recepção especialmente fria que provocaramuitamágoa, pois doisanos antes tiaNesibe, semdizer umapalavra, permitira que sua filha de dezesseis anos, na épocaalunadoLiceuparaMoçasdeNişantaşı,entrassenumconcursodebeleza;eaosaberdepoisquetiaNesibenaverdadeestimularaafilha,orgulhando-seinclusivedaquelesfatosquesódeviamcausar-lhevergonha,minhamãeendureceraocoraçãocontratiaNesibe,queantestantoamavaeprotegia.Porsuavez,tiaNesibesempreestimaraminhamãe,queeravinteanosmaisvelha,esemprelhe

dera apoio quando era uma jovem que andava de casa em casa pelos bairros mais prósperos deIstambul,oferecendo-separatrabalhosdecostura.“Elas eram desesperadamente pobres”, disse minha mãe. E, para mostrar que não exagerava,

acrescentou:“Emboranãofossemasúnicas,meufilho—todaaTurquiaerapobrenaqueletempo”.Naocasião,minhamãetinharecomendadotiaNesibepara todasasamigascomo“ótimapessoa,eótimacostureira”,eumavezporano(àsvezesduas)elaprópriachamavatiaNesibeànossacasaelheencomendavaumvestidoparaumafestaouumcasamento.Comoeraquasesemprenohorárioescolar,eununcaaviaduranteessasvisitasparacosturar.Mas

em 1957, no final de agosto, precisando urgentemente de um vestido para uma festa,minhamãeconvocaraNesibeparanossacasadeveraneioemSuadiye.Refugiando-senoquartodos fundosdosegundo andar, com vista para omar, instalaram-se perto da janela da qual, olhando através dasfrondesdaspalmeiras,podiamverosbotesaremoeaslanchas,eosmeninosmergulhandodocais.DepoisdeNesibedisporaseualcanceoconteúdodacaixadecosturacujatampamostravaumavistadeIstambul,sentaram-secercadasporsuastesouras,alfinetes,fitamétrica,dedaiserolosdetecidoerendas,queixando-sedocalor,dosmosquitosedapressãodecosturarnaquelascondições,trocandogracejoscomoduas irmãs,e ficandoacordadasatéomeiodanoitepara seesfalfarnamáquinadecosturaSingerdaminhamãe.Lembro-medeBekri,ocozinheiro, trazendoumcopode limonadaatrásdooutroparaaquelequarto(oarquentetomadopelopódeveludo),porqueNesibe,grávidaaos vinte anos, tinha desejos; quando todos nos sentamos para almoçar, minha mãe disse aocozinheiro,meiobrincando,que“oqueumamulhergrávidadeseja,vocêprecisadaraela,ouentãoacriançanascefeia!”e,tendoissoemmente,lembro-medetercontempladoapequenabarrigadeNesibecomcertointeresse.DevetersidominhaprimeirapercepçãodaexistênciadeFüsun,emboraninguémaindasoubesseseiriaserumameninaouummenino.“Nesibenãoinformounemaomarido;simplesmentementiusobreaidadedafilhaeainscreveu

noconcursodebeleza”,disseminhamãe,furiosacomahistória.“GraçasaDeuselanãoganhou,eassimeles forampoupadosda vergonhapública.Se a escola tivesse sabidodahistória,podiam terexpulsadoagarota…Poragoraeladeveterterminadooliceu.Achoquenãovaiestudarmais,masnãoestouinformada,porqueelesnãovêmmaisnosvisitarnosferiados…Seráquealguémnestepaísnão sabe que tipo de garota, que tipo de mulher, entra em concursos de beleza? Como ela secomportoucomvocê?”Era amaneira deminhamãe sugerir queFüsun começara a dormir comhomens.Eu ouvira a

mesma coisa dosmeus amigos playboys deNişantaşı quando Füsun apareceu numa foto com asoutras finalistasno jornalMilliyet,mas comoeuachava aquilo tudomuitoembaraçoso tenteinãodemonstrarnenhuminteresse.Depoisquenósdoisnoscalamos,minhamãebalançouodedopara

Page 14: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

mimem ameaça e disse: “Cuidado!Você está ficandonoivo de umamoçamuito especial,muitoencantadora,muitobonita!Porquevocênãomemostraessabolsaquecomprouparaela?Mümtaz!”—eraonomedomeupai—“Olhesó,KemalcomprouumabolsaparaSibel!”.“Émesmo?”,perguntoumeupai,cujorostomanifestavaodevidocontentamentoparasugerirque

tinha visto e aprovado a bolsa, um sinal do quanto seu filho e a namorada eram felizes,mas semdescolaremmomentoalgumosolhosdatela.

4.Amornoescritório

Meu pai assistia a um comercialmuito extravagante quemeu amigo Zaim tinha criado para oMeltem,“oprimeirorefrigerantedaTurquiaàbasedefrutas”,agoravendidoemtodoopaís.Assisticomatençãoegostei.OpaideZaim,comoomeu,tinhaacumuladoumaverdadeirafortunanosdezanos anteriores, e agoraZaimusava aquele dinheiro para seus próprios empreendimentos. Eu lhedavaconselhosocasionais,demodoqueestavaansiosoparavê-lofazersucesso.Depois queme formei na faculdade de administração nos EstadosUnidos e terminei o serviço

militar,meupaiexigiuqueeuseguisseospassosdomeuirmãoemetornassegerentenasuaempresa,quecresciaaossaltos,eassim,aindamuitojovem,fuinomeadogerentegeraldaSatsat,suafirmadedistribuição e exportação cuja base ficava emHarbiye. A Satsat tinha um orçamento operacionalexcessivoeproduzialucrossubstanciais,graçasnãoamimmasaváriostruquescontábeispelosquaisos lucrosde suasoutras fábricaseempresaseramcanalizadosparaaSatsat (nomequepoderia sertraduzidocomo“Vende-Vende”).Eupassavaosdiasaprendendoosaspectosmaissutisdonegóciocomcontadoresveteranosvinteoutrintaanosmaisvelhosdoqueeueescrituráriasdeseiosfartosdaidadedaminhamãee,conscientedequenãoestarianoseucomandocasonãofossefilhododono,tentavasempredemonstraralgumahumildade.Nahorada saída, enquantoônibus ebondes tão velhosquantoos funcionáriosdaSatsatque já

tinham ido embora roncavam avenida abaixo, sacudindo o prédio até as fundações, Sibel,minhaprometida,vinhavisitar-me,efazíamosamoremminhasaladegerentegeral.Apesardetodaasuapaginaçãomoderna e de todas as noções feministas que trouxera consigo daEuropa, as ideias deSibel sobre as secretárias não diferiam das de minha mãe: “Aqui não! Fico me sentindo umasecretária!”,diziaelaàsvezes.Mas,enquantocaminhávamosnadireçãododivãdecourodaminhasala,overdadeiromotivodesuareserva—queasmoças turcas,naquele tempo, tinhammedodosexoantesdocasamento—ficavaóbvio.Poucoapouco,asmoçasmaissofisticadasdasfamíliasricaseocidentalizadasquetinhampassado

algum tempo na Europa começavam a romper o tabu e a dormir com os namorados antes docasamento. Sibel, que ocasionalmente se gabava de ser uma dessas moças “corajosas”, dormiracomigopelaprimeiravezonzemesesantes.Masjulgavaqueessearranjoduravahaviatempodemais,equejáestavanahoradenoscasarmos.Hoje,mesento tantosanosdepoisemededicodecorpoealmaacontarminhahistória,porém

não quero exagerar a ousadia de minha noiva nem tratar com ligeireza a opressão sexual das

Page 15: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

mulheres,porquefoisóquandoSibelviuqueminhas“intençõeseramsérias”,quandoacreditouqueeuera“alguémemquemsepodeconfiar”—noutraspalavras,quandotevecertezaabsolutadequeno final haveria um casamento— que se entregou a mim. Julgando-me uma pessoa decente eresponsável, eu tinha toda intenção de casar-me com ela;mas,mesmo que não fosse esse omeudesejo,eunão tinhamaisescolhaagoraqueelame“entregara suavirgindade”.Empouco tempo,essapesadaresponsabilidadeespalhouumasombrasobreoterritóriocomumquetínhamosedoqualnos orgulhávamos tanto— a ilusão de que éramos “livres e modernos” (embora, é claro, nuncausássemos essas palavras em relação a nósmesmos) pelo fato de termos dormido juntos antes docasamento,equedealgumaformaissotambémnosaproximava.Umasombra semelhantecaía sobrenós todavezqueSibel sugeria,ansiosa,quenoscasássemos

logo, mas havia momentos, também, em que Sibel e eu éramos muito felizes fazendo amor noescritório,equandoeuaenvolviaemmeusbraçosnoescuro,comobarulhodotráfegoedosônibusruidososchegandoaténósdaavenidaHalaskârgazi,eudiziaamimmesmooquantoeraumhomemdesorte,oquantohaviadevivercontentepelorestodavida.Certavez,depoisdenossosexercícios,enquantoeuapagavameucigarronumcinzeirocomosímbolodaSatsat,Sibel,sentadaseminuanacadeirademinha secretáriaZeynepHanım,começouabatucarnamáquinadeescrever, rindodesuamelhorimitaçãodalouraburraquefiguravaemtantaspiadaserevistasdehumordaépoca.

5.OFuaye

Hoje,anosmais tarde,edepoisdemuitoprocurar,exiboaquiummenuilustrado,umanúncio,umacaixadefósforoseumguardanapodoFuaye,umdosrestaurantesdeestiloeuropeu(imitandoosfranceses)maisapreciadospeloreduzidocírculodegentericaqueviviaembairroscomoBeyoğlu,şişli e Nişantaşı (fôssemos afetar aqui o tom forçado dos colunistas sociais da época, poderíamoschamar essas pessoas de “a sociedade de Istambul”). Como queriam produzir em seus clientes ailusão sutil de se encontraremnumacidade europeia, evitavamnomes ocidentais pomposos comoAmbassador,MajesticouRoyal,preferindooutroscomoKulis(“bastidores”),Merdiven(“escadaria”)ou Fuaye (“saguão”), nomes que lembravam à clientela que estávamos no limiar da Europa, emIstambul. A geração seguinte de nouveaux riches iria preferir restaurantes espalhafatosos queofereciam amesma comida que suas avós faziam, combinando tradição e ostentação comnomescomoHanedan (“dinastia”),Hünkar (“soberano”),Pasha,Vezir (“vizir”) eSultan— e pressionadopelaspretensõesdessafreguesiaoFuayeacaboumergulhandonoesquecimento.NojantardoFuaye,nanoitedodiaemquecompreiabolsa,pergunteiaSibel:“Nãoseriamelhor

se de hoje emdiante nos encontrássemos naquele apartamento queminhamãe possui no edifícioMerhamet?Temvistaparaumjardimtãobonito”.“Você está imaginando que vai haver algum atraso em nossa mudança para uma casa própria

depoisdocasamento?”,perguntouela.“Não,querida,nãoéisso.”“Nãoqueromaisficarmeescondendoemapartamentossecretos,comosefossesuaamante.”

Page 16: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Temrazão.”“Deondeveioessaideiadenosencontrarmosnoapartamento?”“Nãofazdiferença”,respondi.Olheiparaaspessoasemtornodenósquandopegueiabolsa,ainda

nasacoladeplástico.“Oqueéisso?”,perguntouSibel,pressentindoumpresente.“Umasurpresa!Abraparaver.”“Émesmo?”Quandoelaabriuasacoladeplásticoeviuabolsa,aalegriainfantilemseurostodeu

lugarprimeiroaumolharintrigado,edepoisaumadecepçãoquetentoudisfarçar.“Vocênãose lembra?”,arrisquei.“Quandoaestava levandoparacasaontemànoite,vocêviua

bolsanavitrineedissequeachoubonita.”“Ah,claro.Vocêémuitoatencioso.”“Aindabemquegostou.Vocêvaificartãoelegantecomelananossafestadenoivado.”“Eunemdeviadizer,masabolsaquevouusarnanossafestadenoivadojáfoiescolhidahámuito

tempo”,disseSibel.“Ah,nãofiquetãodecepcionado!Foitãogentildasuaparte,sedaratodoessetrabalhoparamecomprarestelindopresente…Estábem,sóparavocênãoacharqueestousendoingrata,eujamaispoderiausaressabolsananossafestadenoivado,porqueelaéfalsa!”“Oquê?”“EstabolsanãoéumaJennyColonautêntica,Kemalquerido.Éumaimitação.”“Comoéquevocêsabe?”“Só de olhar para ela. Está vendo como a etiqueta está costurada ao couro? Agora olhe para a

etiquetadestaJennyColonautênticaqueeucompreiemParis.NãoéàtoaqueamarcaéexclusivanaFrançaenomundotodo.Paracomeçodeconversa,elajamaisusariaumalinhatãoordinária!”Houveummomento,enquantoeuexaminavaacosturagenuína,emquemepergunteiporque

minha futura noiva estaria assumindo um tom tão triunfal. Sibel era filha de um embaixadoraposentadoquemuito antes vendera asúltimas terrasde seuavôpaxáe agora ficara semnenhumtostão; tecnicamente, isso a tornava a filha de um funcionário público, e essa posição às vezes adeixava desconfortável e insegura. Sempreque se via às voltas com suas ansiedades, falava da avópaterna,quetocavapiano,ousobreoavôpaterno,quelutaranaGuerradaIndependência,oumecontavacomoseuavômaternoerapróximodosultãoAbdülhamit;massuatimidezmecomovia,oquesómefaziaamá-laaindamais.Comaexpansãodaindústriatêxtiledasexportaçõesduranteoiníciodosanos1970,eaconsequentetriplicaçãodapopulaçãodeIstambul,opreçodaterratinhasubido astronomicamente em toda a cidade, e mais particularmente em bairros como o nosso.Embora,comisso,afortunademeupaitenhatidoumcrescimentoextravagantenaúltimadécada,multiplicando-se por cinco, nosso sobrenome (Basmacı, “estampador de tecidos”) não deixavadúvida de que devíamos nossa riqueza a três gerações de fabricantes de tecido. Deixava-meconstrangido ver-me às voltas com o problema de uma bolsa “falsificada” apesar daquelas trêsgeraçõesdeprogressoacumulado.Quandomeviudesanimar,Sibelacariciouminhamão.“Quantovocêpagoupelabolsa?”“Milequinhentasliras”,respondi.“Sevocênãoquiser,amanhãvoulátrocar.”“Não troque por nada, querido, peça o seu dinheiro de volta, porque na verdade você foi

Page 17: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

enganado.”“AdonadalojaéŞenayHanım,esomosparentesdistantes!”,disseeu,erguendoassobrancelhas

dedesespero.Sibel tornou a pegar a bolsa, cujo interior eu vinha explorando em silêncio. “Você sabe tantas

coisas,querido,étãocultoeinteligente”,disseela,comumsorrisocarinhoso,“masnãotemamenorideiadecomoéfácilserenganadoporumamulher.”

Page 18: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

6.AslágrimasdeFüsun

Nahoradoalmoçododiaseguintevolteiàboutiqueşanzelize,levandonasmãosamesmasacoladeplástico.Acampainhatocouquandoentrei,masnovamentealojaestavatãopoucoiluminadaquenum primeiro momento julguei que estivesse vazia. No estranho silêncio da loja dominada pelasombraocanáriocantavapiu,piu,piu.EntãodistinguiasilhuetadeFüsunatravésdeumbiomboeem meio às folhas de um imenso vaso de ciclâmen. Ela atendia uma senhora gorda queexperimentava uma roupa no provador. Dessa vez usava uma blusa encantadora que a favoreciamuito, um estampado de jacintos entrelaçados com folhas e flores silvestres.Quando elame viu,dirigiu-meumsorrisodoce.“Achoqueestáocupada”,disseeu,indicandooprovadorcomosolhos.“Jáquaseacabamosaqui”,respondeu,comosequisessedizerqueàquelaalturaelaesuafreguesa

estavamsóconversando.Meus olhos passaram pelo canário que esvoaçava na gaiola, pelas revistas demoda empilhadas

num canto e pela variedade de acessórios importados da Europa, e nada conseguia deter minhaatenção.Pormaisquequisessemeconvencerdequeessesentimentoeraperfeitamentecomum,nãotinhacomonegaraverdadeevidentedeque,todavezqueolhavaparaFüsun,viaalguémfamiliar,alguémqueeusentiaconhecerintimamente.Elasepareciacomigo.Omesmotipodecabelo,quecrescia escuro e ondulado na infânciamas tornava-se liso com a idade. Agora tinha ummatiz decastanho-claroque, como suapele clara, era complementadopor suablusa estampada.Eu sentiaquepoderia facilmentemepôr em seu lugar, que seria capazde compreendê-ladamaneiramaisprofunda.Umalembrançadolorosameocorreu:meusamigos,referindo-seaelacomo“agarotadaPlayboy”. Teria dormido com algum deles? “Devolva a bolsa, pegue o dinheiro e saia correndo”,penseicomigomesmo.“Vocêestáquasenoivodeumagarotaespetacular.”Virei-meparaolharparafora,nadireçãodapraçadeNişantaşı,maslogooreflexodeFüsunassomoucomoumfantasmanovidrofumêdavitrine.Depoisqueamulherdoprovadorconseguiu livrar-seofegantedeuma saiae saiu semcomprar

nada,Füsundobrouosartigosdescartadoseguardoucadaumemseulugar.“Euvivocêpassarpelarua ontem à noite”, disse ela, levantando seus lindos lábios.Estava usandoumbatom cor-de-rosaclaro,vendidosobonomecomercialdeMisslyn,e,embora fosseumproduto turcocomum,nelapareciaexóticoeirresistível.“Quandovocêmeviu?”,perguntei.“Nocomeçodanoite.VocêestavacomSibelHanım.Passeipelacalçadadooutro ladoda rua.

Estavamsaindoparajantar?”“É.”“Vocêsformamumbelocasal!”,disseela,damaneiracomofalamosmaisvelhosquandolhesdá

prazeravisãodejovensfelizes.NãolhepergunteideondeelaconheciaSibel.“Euquerialhepedirumpequenofavor.”Quando

tireiabolsadasacola,sentiavergonhaepânico.“Queríamosdevolverabolsa.”

Page 19: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Claro.Trocoparavocêcomomaiorprazer.Talvezvocêgostedessasluvasnovas,muitochiques,etambémtemosestechapéu,queacaboudechegardeParis.SibelHanımnãogostoudabolsa?”“Eupreferianãotrocar”,disse,envergonhado.“Queriapediradevoluçãodomeudinheiro.”Vioespantonorostodela,atémesmoumpoucodemedo.“Porquê?”,perguntou.“ParecequeabolsanãoéumaJennyColonautêntica”,murmurei.“Parecequeéfalsa.”“Oquê?”“Eunãoentendomuitodessascoisas”,disse,desamparado.“Essetipodecoisanuncaaconteceuaqui!”,disseelacomumavozáspera.“Vocêquerodinheiro

devoltajá?”“Quero!”,conseguiresponder.Elafezumarprofundamentemagoado.Deusdocéu,pensei,porqueeunãotinhasimplesmente

jogadoabolsaforaedepoisditoaSibelquerecuperaraodinheiro?“Escute,issonãotemnadaavercom você ou com Şenay Hanım. Nós, turcos, louvado seja Deus, conseguimos produzir boasimitaçõesde todamodacriadanaEuropa”, disse, esforçando-mepara sorrir. “Paramim— ou eudeviadizerparanós—bastaqueumabolsacumpraasuafunção,adeficarbonitanamãodeumamulher.Nãofazdiferençadequemarcaseja,ouquemafabricou,ouseéoriginal.”Masela,comoeu,nãoacreditounumapalavradoqueeudizia.“Não,eulhedevolvooseudinheiro”,disseelacomamesmavozáspera.Baixeiosolhosefiquei

emsilêncio,preparadoparaenfrentaromeudestinoeenvergonhadodeminhabrutalidade.Pormaisdeterminadaqueelasoasse,sentiqueFüsunnãopodiafazeroquepretendia;houvealgo

estranhonaquelemomentointensamenteembaraçoso.Elaolhavaparaacaixaregistradoracomosealguémtivesse lançadoumfeitiçoemseumecanismoouestivessepossuídapordemônios,oqueaimpediadetocarnela.Quandoviseurostorubroefranzido,seusolhosrasosdelágrimas,entreiempânicoedeidoispassosemsuadireção.Elacomeçouachorarbaixinho.Nuncadescobriexatamentecomoaconteceu,maseuaabracei,e

ela, chorando, encostou a cabeça nomeu peito. “Füsun,me desculpe”,murmurei. Acariciei seuscabelosmaciosesuatesta.“Porfavor,esqueçaqueissoaconteceu.Ésóumabolsafalsificada,nadamais.”Comoumacriançaelarespiroumuitofundo,soluçouumaouduasvezes,etornouaprorromper

emlágrimas.Tocarseucorpoeseuslindosbraços,sentirseusseiospressionandomeupeito,abraçá-laassim,aindaqueporummomento,fezminhacabeçarodar:talveztenhasidocomopartedemeuesforçoparareprimirodesejo,maisintensoacadavezqueeuatocava,queconjureiessailusãodeque nos conhecíamos havia anos, de que éramos pessoas próximas. Ela era minha irmã, doce,inconsolável, linda e tomada pela dor! Por um momento— e talvez porque eu soubesse quetínhamosalgumparentesco,pormaisligeiroquefosse—seucorpo,comsuaspernaseseusbraçoscompridos, sua bela ossatura e seus ombros frágeis, lembrou-me domeu próprio. Fosse eu umagarota, tivesse eu menos doze anos, era assim que seria meu corpo. “Não há motivo para sepreocupar”,disseeuenquantoacariciavaseuscabelosclaros.“Nãotenhocomoabriracaixaparalhedevolverodinheiro”,explicouela.“PorquequandoŞenay

Hanımvaialmoçaremcasaelatrancaagavetaelevaachave.Éumavergonha,eusei.”Apoiandoa

Page 20: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

cabeça em meu peito ela recomeçou a chorar, enquanto eu continuava minhas cuidadosas ecompassivascaríciasemseuscabelos: “Eusó trabalhoaquiparaconhecergenteepassaro tempo.Nãoépelodinheiro”,soluçouela.“Trabalhar por dinheiro não é motivo de vergonha para ninguém”, disse eu, como um idiota

insensível.“Eusei”,disseela,notomdeumacriançadesconsolada.“Meupaiéprofessoraposentado…Fiz

dezoitoanosduassemanasatrás,enãoqueriaserumfardoparaele.”Commedodaferasexualqueagoraameaçavaempinaracabeça,tireiamãodosseuscabelos.Ela

entendeunamesmahoraecontrolou-se;cadaumdenósdeuumpassoparatrás.“Porfavor,nãoconteaninguémqueeucomeceiachorar”,disseela,depoisdeenxugarosolhos.“Estáprometido”,disseeu.“Umapromessasoleneentreamigos,Füsun.Podemosconfiarnossos

segredosumaooutro…”Vi o sorriso dela. “Vou deixar a bolsa aqui”, disse eu. “Posso voltar mais tarde para pegar o

dinheiro.”“Deixeabolsa, sequiser,masémelhornãovoltaraquiparapegarodinheiro.ŞenayHanımvai

querer convencê-lo de que não é falsificada e você vai acabar se arrependendo de ter dito ocontrário.”“Entãovamostrocá-laporalgumaoutracoisa”,propus.“Agoranãopossomaisfazerisso”,disseela,soandocomoumameninaorgulhosaemal-humorada.“Podedeixar,nãotemimportância”,ofereci.“Paramim,tem”,disseelacomfirmeza.“QuandoŞenayHanımvoltaràloja,voupedirodinheiro

dabolsa.”“Nãoqueroqueessamulherlhecausemaisproblemas”,respondi.“Nãosepreocupe,jáseicomovoufazer”,disseelacomomaisligeirodossorrisos.“Voudizerque

Sibel Hanım já tem exatamente a mesma bolsa, e que é por isso que quis devolvê-la. Está bemassim?”“Umaideiamaravilhosa”,disseeu.“MasporqueeumesmonãodigoissoaŞenayHanım?”“Não,nãodiganadaaela”,respondeuFüsunemtomenfático.“Porqueelasóvaitentarenganá-lo,

eextrairinformaçõespessoaisdevocê.Nemmesmovenhaatéaloja.PossodeixarodinheirocomtiaVecihe.”“Ah,porfavor,nãoenvolvaaminhamãenisso.Elaémaisenxeridaainda.”“Entãoondepossodeixarodinheiro?”,perguntouFüsun,erguendoassobrancelhas.“No edifício Merhamet, na avenida Teşvikiye 131, onde minha mãe tem um apartamento”,

respondi. “Antes de ir para osEstadosUnidos, era o lugar que euusava como refúgio— onde iaestudareouvirmúsica.Éumlugarlindo,quedáparaumjardimnosfundos…Aindavoulátododianahoradoalmoço,entreduasequatro,parapôromeutrabalhoemdiasossegado.”“Claro.Possodeixarodinheirolá.Qualéoapartamento?”“Quatro”, sussurrei. E quase não consegui emitir as quatro palavras seguintes, que pareceram

morreremminhagarganta.“Segundoandar.Atélogo.”Meu coração descobrira tudo e batia loucamente. Antes de sair correndo, juntei toda aminha

Page 21: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

corageme,fingindoquenadatinhaacontecido,lancei- lheumúltimoolhar.Devoltaàrua,minhavergonhaeminhaculpasemisturaramcomtantasimagensdeprazeremmeioaocalorforadeépocadaquela tardedemaioque as calçadasdeNişantaşı pareciam ter umbrilho amarelo emisterioso.Meuspésescolheramocaminhodasombra,conduzindo-meporbaixodasmarquisesdosedifíciosedostoldoslistradosdebrancoeazuldasvitrinesdaslojas,equandonumadessasvitrinesviumajarraamarelasenti-mecompelidoaentrarecomprá-la.Àdiferençadequalqueroutroobjetocompradodemaneiraassimcasual,essajarraamarelanuncasuscitouqualquercomentáriodeninguémduranteosvinteanosquepassounamesaondeminhamãeemeupai,edepoisminhamãeeeu, fazíamosnossasrefeições.Cadavezqueeutocavaaalçadajarra,lembrava-medessesdiasemquecomeceiame dar conta da desgraça que me faria virar-me completamente para dentro de mim mesmo,deixandominhamãeaobservar-meemsilêncioduranteojantar,seusolhostomadospelatristezaepelacensura.Chegandoemcasa,cumprimenteiminhamãecomumbeijo;emborasatisfeitademeverchegar

nomeio da tarde, ainda assim ficou surpresa. Contei- lhe que eu comprara a jarra num impulso,acrescentando: “Podemedar a chavedo apartamentodoedifícioMerhamet?Às vezeso escritóriofica tão barulhento que não consigo me concentrar. E pensei se nessas horas não seria melhortrabalharnoapartamento.Sempredeucertoquandoeueramaisnovo”.Minhamãe respondeu: “Deveestarcomumacamadadedoisdedosdepoeira”,mas foi até seu

quartopegarachavedoportãodoedifício,queficavaligadaàchavedoapartamentoporumafitavermelha. “Você se lembradaquelevasoKütahyacomas floresvermelhas?”,perguntou-meelaaoentregaraschaves.“Nãoconseguiencontrá-loemlugarnenhumdacasa,seráquepodeverseporacasoleveiparalá?Enãotrabalhealémdaconta…Seupaipassouavidainteiratrabalhandoduroparaquevocês,osfilhosdele,possamsedivertirumpouconavida.Vocêmereceserfeliz.SaiacomSibel,aproveiteoardaprimavera.”Eentão,pondoaschavesnaminhamão,lançou-meumolhardiferente e disse: “Tome cuidado!”. Era o mesmo olhar com que ela nos fitava quando éramoscrianças, para nos advertir de que a vida tinha armadilhas inesperadas muito mais profundas etraiçoeirasque,porexemplo,qualquerconsequênciaquepudesseadvirdodescuidoocasionalcomumachave.

7.OedifícioMerhamet

MinhamãetinhacompradoaqueleapartamentonoedifícioMerhamethaviavinteanos,empartecomoinvestimentoeempartecomoumlugarondepudesseserecolherocasionalmenteparagozarde alguma tranquilidade;mas empouco tempo ela começara a usá-lo comodepósito dosmóveisantigosqueaseuvertinhamsaídodemodaedasnovasaquisiçõesdequelogosecansava.Quandomeninoeugostavadojardimdosfundos,ondeascriançasdasredondezascostumavamjogarfutebolàsombradasárvoresgigantescas,esempreadoreiahistóriaqueminhamãegostavadecontarsobreonomedoprédio.DepoisqueAtatürkinstruiuopovoturcoaadotarsobrenomesem1934,tornou-semodaatribuiro

Page 22: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

novonomedafamíliaaosedifíciosdeapartamentosrecém-construídos.Comonessesdiasnãoexistiauma organização sistemática dos nomes das ruas e da respectiva numeração, e as famílias maisprósperas e numerosas tendiam a viver coletivamente sob o mesmo teto, como nos tempos doImpérioOtomano,para facilitaranavegaçãopelacidade fazia sentidoqueessesnovosedifíciosdeapartamentosficassemconhecidospelonomedosrespectivosproprietários.(Muitasdasfamíliasricasquemencionarei aqui são proprietárias de edifícios epônimos.)Outramoda era os edifícios serembatizadoscomosnomesdeprincípioselevados;masminhamãecostumavadizerqueaspessoasquedavam a seus edifícios nomes como Hürriyet (“liberdade”), İnayet (“benevolência”) ou Fazilet(“caridade”)eramgeralmenteasmesmasquetinhampassadoavidadecostasparaessasvirtudes.Oedifício Merhamet (“misericórdia”) tinha sido construído por um velho rico que controlava omercado negro de açúcar durante a Primeira Guerra Mundial e depois se sentira compelido àfilantropia. Seus dois filhos (a filha de um deles foi minha colega de turma na escola primária),quandodescobriramqueopaiplanejavadoaroedifícioparafinsdecaridade,distribuindoentreospobresqualquerrendaqueproduzisse,conseguiramdeclará-loincapazeointernaramnumasilodeindigentes,tomandopossedoedifícioemseguida,masnemsederamaotrabalhodemudaronomequeeu,quandocriança,achavatãopeculiar.Nodia seguinte,quarta- feira, 30deabrilde 1975,passeiduashoras sentadonoapartamentodo

edifícioMerhamet,entreduasequatroda tarde,àesperadeFüsun,quenãoapareceu.Fiqueiumpoucodesconsoladoeconfuso;voltandoaoescritório,sentiaumaperturbação.Nodiaseguintevolteiaoapartamento,comoqueparaacalmarminha inquietação,masnovamenteFüsunnãoapareceu.Sentadonaquelesaposentosabafados,cercadoporvasosevestidosantigosepelamobíliaempoeiradadescartada por minhamãe, percorrendo uma a uma as fotos instantâneas amadoras demeu pai,relembreimomentosdeminhainfânciaeminhajuventudequenemsequerperceberateresquecido,e aqueles artefatos me davam a impressão de me acalmar os nervos. No dia seguinte, enquantoalmoçavaemBeyoğlunorestaurantedeHacıArifcomAbdülkerim,ovendedordaSatsatemKayseri(emeuamigodostemposdeExército),lembreienvergonhadoquepassaraduastardesconsecutivasàesperadeFüsunnumapartamentovazio.Fiqueitãoenvergonhadoquedecidiesquecer-medela,dabolsa falsificada e de tudo o mais. Vinte minutos mais tarde, porém, quando olhei meu relógio,ocorreu-me que Füsun poderia estar chegando naquele instante ao edifício Merhamet, para medevolverodinheirodabolsa;inventandoalgumamentiraparaAbdülkerim,devoreioquesobravadaminhacomidaefuiemboraàspressas.Vinteminutosdepoisquecheguei,Füsuntocouacampainha.Oumelhor,apessoaquesópoderia

serFüsuntocouacampainha.Enquantocorriaparaaporta,lembreiquenanoiteanterioreuabriraaportaparaelanumsonho.Namão ela trazia um guarda-chuva. Seus cabelos estavam encharcados. Ela usava um vestido

amarelopontilhado.“Ora,ora,ora,acheiquevocêtinhaseesquecidodemim.Entre.”“Nãoqueroatrapalharnada.Sóvimentregarodinheiroedepoisvouembora.”Emsuamão,trazia

umenvelopeusadoemqueapareciamimpressasaspalavras“CursodeRealizaçõesNotáveis”,masquenãopeguei.Segurando-apeloombro,puxei-aparadentroefecheiaporta.

Page 23: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Estáchovendomuito”,disseeu,emboraantesnãotivessepercebidoachuva.“Fiqueumpouco,sente-se.Nãohámotivoparavocêsaircorrendoesemolhartodadenovo.Voufazerumchá.Pelomenosenquantovocêseesquenta.”Fuiparaacozinha.Quandovoltei,Füsunexaminavaosmóveisvelhosdaminhamãe,suasantiguidades,seusrelógios

empoeirados,suascaixasdechapéueoutrosacessórios.Paradeixá-lamaisàvontadeeencetarumaconversa, contei- lhe comominhamãe tinha comprado todas aquelas coisas por impulsonas lojasmaiselegantesdeBeyoğlueNişantaşı,nasmansõesdepaxáscujamobíliafoitodavendida,nasyalısdasmargensdoBósforomeiodestruídaspelofogo,emantiquárioseatéemmosteirosdesocupadospelosdervixes,paranãofalardetodasaslojasqueelavisitavaemsuasviagenseuropeias;noentanto,depoisdeusaraquelascoisasporpoucotempo,elaasmandavaparaláeasesqueciacompletamente.Aomesmotempo,euiamostrandoasarcasrepletasderoupasrecendendoanaftalina,ovelocípedeque nós dois tínhamos usado na infância (minhamãe tinha o costume de dar nossos brinquedosvelhos aos parentes mais pobres), um penico e, finalmente, o vaso Kütahya que minha mãe mepediraqueprocurasseparaela;emseguida,mostrei- lheoschapéus,caixaacaixa.Um jarro de cristal, para doces, nos lembrou das festas dos feriados a que ela costumava

comparecer.Todavezquechegavacomospaisparasuavisitafestiva,ofereciam-lhesumavariedadedebalasdeaçúcareamêndoa,marzipã, tabletesdedocedecococobertodeaçúcar,e lokum, ou“delíciasturcas”.“Umavez,quandochegamosparaaFestadoSacrifício, lembroquevocêeeu saímosparaum

passeiodecarro”,disseFüsun,comosolhosbrilhantes.Eumelembravadaquelepasseio.“Vocêerasóumacriançanaépoca”,disseeu.“Agoravirouuma

mulherlindaeencantadora.”“Obrigada.Precisoirembora.”“Você nem tomou seu chá. E a chuva ainda nem passou.” Eu a puxei até a porta da varanda,

afastandodeleveascortinasdetule.Elaolhoupelajanela,eemseusolhoshaviaaluzquesósevêemcriançasquechegamaum lugarnovo, ounos jovens ainda abertos anovas influências, aindacuriosos quanto ao mundo porque ainda não foram calejados pela vida. Por um momentocontempleicomdesejoseupescoço,suanuca,alindapeledoseurosto,quedeixavasuasfacestãolindas,eas incontáveissardasemsuapele, invisíveisdecertadistância(minhaavónãoteriasardascomoaquelas?).Minhamão,como sepertencesseaoutrapessoa,estendeu-see tocoua fivelanosseuscabelos.Eraenfeitadacomodesenhodequatroramosdeverbena.“Seucabeloestámuitomolhado.”“Vocêcontouparaalguémqueeuchoreinaloja?”“Não.Masqueriamuitosaberoquefezvocêchorar.”“Porquê?”“Tenho pensado muito em você”, disse eu. “Você é linda, muito diferente de todo mundo.

Lembrobemcomo você eraumameninamorena e bonita.Masnunca imaginei que fosse virar abeldadequeé.”Ela deuo sorriso comedidodas beldades bem-educadas acostumadas a elogios,mas aomesmo

tempoergueuassobrancelhas,desconfiada.Deuumpassoparatrás.

Page 24: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Eentão,oquedisseŞenayHanım?”,perguntei,mudandodeassunto.“Chegouareconhecerqueabolsaeramesmofalsa?”“Ficoumuitoaborrecidaquandopercebeuquevocêtinhapedidoseudinheirodevolta,masnão

quis fazerumdramaporcausadisso.Edissequeeraparaeuesquecerahistória toda.Sabiaqueabolsaera falsa, imagino.Masnãosabequeeuvimaqui.Eudisseaelaquevocêpassariapor lánahoradoalmoçoparapegarodinheiro.Agoraprecisomesmoir.”“Masnãotomouoseuchá!”Fuibuscarochánacozinha,efiqueiolhandoenquantoelasopravadeleveasuperfícieparaesfriá-

lo, antes de sorvê-lo em goles cuidadosos e apressados. Fiquei indeciso entre a admiração e avergonha, a ternura e a alegria…Novamente respondendo a uma vontade própria,minhamão seestendeuparaacariciarseucabelo.Aproximeimeurostododela;vendoqueelanãorecuava,dei- lheumbeijorápidoedelicadonocantodoslábios.Elacorou.Comoestavasegurandoaxícaracomasduasmãos,nãotevecomosedefender.Ficouirritadaeconfusa.Oquetambémpercebi.“Eugostodebeijar”,disseela,emtomorgulhoso.“Masagora,comvocê,estáforadequestão.”“Evocêjábeijoumuito?”,perguntei,naimitaçãocanhestradeumacriança.“Jábeijei,éclaro.Massóisso.”Comumolharsugestivodequeoshomens,infelizmente,eramtodosiguais,elapercorreuasala

comos olhosumaúltima vez, avaliandoosmóveis e a camacom lençóis azuis aumcanto, que,tomado por más intenções, eu arquitetara deixar semidesfeita. Ela avaliou a situação, mas eu—talvezporvergonha—nãoconseguiimaginarnenhummododelevarmeusplanosemfrente.Quandoeuchegara,tinhaencontradoemcimadeumaarcaumfezdotipoqueproduzemparaos

turistas, eopuseraemcimadeumamesinhadecentrocomoumaespéciededeclaração irônica.Agoravique,enquantoeu forabuscarochá,eladeixaraoenvelopecomodinheiroencostadonobarrete.Viuqueeuperceberaoenvelope,masmesmoassimdisse:“Deixeiodinheiroali”.“Vocênãopodeiremboraantesdeacabarseuchá.”“Estáficandotarde”,disseelaemtomumpoucomaisdecidido,masaindaassimnãofoiembora.Enquantotomávamosochá,conversamossobrenossosparentes,osanosdanossainfânciaenossas

memóriascomuns,semfalarmaldeninguém.Todostinhammedodaminhamãe,porquemamãedelasentiaumimensorespeitoeque,quandoFüsuneracriança,semprelhedavatantaatenção;todavezquesuamãevinhacosturaremnossacasa,minhamãepunhanossosbrinquedosàsuadisposição— nossos bichinhos de corda, o cachorro e a galinha, que Füsun adorava mas tinha medo dequebrar.Todoano,atéoconcursodebeleza,minhamãesempremandavaonossomotoristaÇetinEfendientregar- lheumpresenteemseuaniversário.Umdelestinhasidoumcaleidoscópio,queelaaindapossuía…Quandominhamãemandavaumvestido,erasemprealgunsnúmerosmaior,paraquedurassemaistempo.Casotambémdeumasaiaxadrezplissada,fechadacomumimensoalfinetedefralda,queFüsunnempuderausarporumanotodo.Gostavatantodelaquemesmomaistarde,quandojásaírademoda,elaausavacomominissaia.ConteiqueumavezaviraemNişantaşıusandoaquelasaia.Mudamosdeassuntoparaevitarfalardesuacinturafinaedesuaslindaspernas.HaviaumtioSüreyyaquenãoeramuitobomdacabeça.TodavezquevoltavadaAlemanha,faziavisitasdecerimôniaa todosos ramosda família,namaioriahojeespalhadose semcontatoentre si,mas,

Page 25: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

graçasaele,todossemantinhamapardoqueosoutrosvinhamfazendo.“Daquela vezque viemos visitar vocêsnaFestadoSacrifício e você e eu saímosde carro...Tio

Süreyyatambémestavanacasa”,disseFüsunemtomexcitado.Vestiuacapadechuvaecomeçouaprocurarseuguarda-chuva.Nãoconseguiuencontrá-lo,porquenumadasminhasidasatéacozinhaeuoenfiaraatrásdocabideirodeespelhonohalldeentradadoapartamento.“Nãoselembradeondedeixouoguarda-chuva?”,pergunteienquantoaajudavaaconduziruma

buscasistemática.“Achoquedeixeiaqui”,disseelainocentemente,apontandoparaocabideiro.Enquanto revirávamos o apartamento, procurando até nos lugares mais improváveis, eu lhe

pergunteioqueelafaziaemsuas“horasdelazer”—comodiziamasrevistasdecelebridades.Noanoanterior, ela não alcançara a média suficiente no exame de entrada para a universidade paramatricular-senocursoquepretendia fazer.Assim,agora, todo tempoque lhesobravadaboutiqueşanzelize,elapassavanoCursodeRealizaçõesNotáveis.Sólherestavamquarentaecincodiasantesdoexamedaqueleano,demaneiraquevinhaestudandomuito.“Quecursovocêquerfazer?”“Não sei”, respondeuela,umpoucoencabulada. “Oqueeu realmentequeria era entrarparao

conservatórioemeformaratriz.”“Masessescursospreparatóriosnãoservemparanada;todossópensamemganhardinheiro,sem

exceção”,disseeu.“Sevocêestásentindodificuldade,especialmenteemmatemática,porquenãovemestudarcomigo,jáqueestoutrabalhandoaquitodatarde?Possoensinarbemdepressa.”“Evocêajudaoutrasmoçasaestudarmatemática?”,perguntouelaemtommalicioso,erguendo

novamenteassobrancelhasdaquelejeito.“Nãoexistemoutrasmoças.”“SibelHanımvemànossa loja.Elaémuitobonitae tambéméumencantodepessoa.Quando

vocêsdoisvãosecasar?”“Afestadenoivadovaiserdaquiaummêsemeio.Esteguarda-chuvaserveparavocê?”,disseeu,

oferecendo-lhe uma sombrinha queminhamãe trouxera de Nice. Ela disse que obviamente nãopodiavoltarparaalojacomumartigotãoexótico.Queriairemborajá,eestavadispostaaabandonarseuguarda-chuva.“Achuvaparou”,disseFüsunemtomalegre.Quandoelaabriuaporta,entreiempânico,achandoquepoderianuncamaistornaravê-la.“Porfavor,volte,evamossótomarumchá”,disseeu.“Nãofiqueaborrecido,Kemal,masnãoquerovoltaraqui.Evocêsabequenãovouvoltar.Nãose

preocupe,nãovoucontaraninguémquevocêmebeijou.”“Eoguarda-chuva?”“Oguarda-chuvaédeŞenayHanım,maspodeficaraqui”,disseela,dando-menorostoumbeijo

apressadomasnãodesprovidodesentimento.

8.OprimeirorefrigerantedaTurquiaàbasedefrutas

Page 26: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Aquiexponhoosanúnciosnosjornais,oscomerciaiseasgarrafasdossaboresmorango,pêssego,laranjaecerejadoprimeirorefrigeranteàbasedefrutascriadoeproduzidonaTurquia,Meltem,emmemóriadonossootimismoedoespíritoalegreeconfiantedaépoca.Naquelanoite,Zaimestavacomemorandoolançamentodeseunovoprodutocomumafestaextravaganteemseuapartamentode localização perfeita, em Ayaspaşa, com uma vista panorâmica do Bósforo. Todo nosso grupoestariareunidomaisumavez.Sibelestavacontentedeseveremmeioaosmeusamigosricos—elagostavadospasseiosde iatepeloBósforo,das festas-surpresadeaniversárioedasnoitesnosclubesnoturnos, que terminavam com todos se amontoando em nossos carros para percorrer as ruas deIstambul— mas não gostava de Zaim. Achava que ele era exibido, playboy demais e um tantocafajeste;eascoisasqueaconteciamnassuasfestas—comoadançarinadoventrequeaparecia“desurpresa” no final da noite ou seu costume de acender os cigarros das moças com um isqueirodecoradocomologotipodaPlayboy—,elaachava“banais”.SibelreprovavaaindamaisoscasosdeZaimcomatrizesmenores emodelos (estasum fenômeno recentenaTurquia, e ainda encaradascommuitadesconfiança),comquemele sabiaqueevidentementenunca iria secasar,poiseradoconhecimento público que todas faziam sexo; e tampouco suportava seu costume de enganar asmoçascomquemsaíasemamenorintençãodedeixarqueumarelaçãoseestabelecesse.Eéporissoque, quando telefonei a ela para dizer que nãome sentia bem e que não poderia ir à festa, e naverdadenemsairdecasa,fiqueisurpresoaoverqueSibelficaradecepcionada.“DizemqueamodeloalemãdacampanhadoMeltemvaiàfesta!”,disseSibel.“MaspenseiquevocêachasseZaimmáinfluênciaparamim…”“SevocênemconsegueiraumadasfestasdeZaim,deveestarmuitodoentemesmo.Agorafiquei

preocupada.Querqueeuváatéaí?”“Nãoprecisa.MinhamãeeFatmaHanımestãocuidandodemim.Amanhãeujádevoestarbem.”Quandomeestendinaminhacama,totalmentevestido,pensavaemFüsun;edecidimaisumavez

esquecer-medela;naverdade,decidinuncamaistornaravê-laatéofimdosmeusdias.

9.F

Nodiaseguinte,3demaiode1975,FüsunchegouaoedifícioMerhametàsduasemeiadatardeepelaprimeiraveznavidaconheceuoamorfísico.Nãofuiaoapartamentonaqueledianaesperançadevê-la.Equandocontoahistória, tantosanosdepois,pergunto-mecomopodeserverdade,masnaquelediahonestamentenãomeocorreraqueelapudesseaparecer…Euvinhapensandoemnossaconversadodiaanterior,eemnossospertencescomunsdainfância,asantiguidadesdaminhamãe,os velhos relógios, o velocípede, a luz estranha no apartamento escuro, o cheiro de poeira edecadência, e desejava ficar só, olhando para o jardim dos fundos… Devem ter sido esses ospensamentosquemeconduziramatélá.Éverdadequeeuqueriarefletirsobreonossoencontrodavéspera, revivê-lo, pegar as xícaras de Füsun e lavá-las, arrumar os pertences da minha mãe eesquecerminhatransgressão.Enquantoarrumavaasala,encontreiumafotoquemeupaitinhatiradodoquartodosfundos,mostrandoacama,ajanelaeojardim,efiqueiimpressionadoaovercomoo

Page 27: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

lugarmudarapoucoemtodosessesanos.Quandoacampainhatocou,meuprimeiropensamentofoi“Mamãe!”.“Vimbuscarmeuguarda-chuva”,disseFüsun.Mas se recusou a entrar. “Por que você não entra?”, perguntei. Por ummomento, ela hesitou.

Talvezconcluindoqueseriagrosseiroficaraliparadajuntoàporta,acabouentrando.Fecheiaportaatrás dela. Este é o vestido fúcsia que ela apareceu usando naquele dia e que tinha um efeitohipnótico,comseusbotõesbrancoseocintotambémbrancodefivelagrande,quefaziasuacinturapareceraindamaisfina.Naminhajuventude,eu,comotantosoutroshomens,ficavanervosocomasgarotas que achava lindas emisteriosas;meumodo de enfrentar esse desconforto era a franquezabrusca, e, embora eu achasse que tinha superado essa inocência, estava enganado: “Seu guarda-chuvaestáaqui”,disseeu.Enfiandoamãoportrásdocabideirodeespelho,nemmepergunteiporquenãootinhatiradodaliantes.“Ecomoelefoipararaí?”“Naverdade,euoescondiontem,paravocênãopoderiremboralogo.”Porummomentoelanãosoubeaocertosedeviasorrirourosnar.Tomando-apelamão,conduzi-

a até a cozinha, com o pretexto de fazer um chá. A cozinha estava escura e cheirava a poeira eumidade.Tudoseaceleroudepoisquechegamoslá;incapazesdenoscontrolar,começamosanosbeijar.Osbeijos foram ficandomais longos e apaixonados.Ela se entregava tantonaqueles beijos,envolvendomeupescoçocomosbraçosefechandoosolhoscomforça,quesentiapossibilidadede“iratéofim”,comosedizianaépoca.Comoelaeravirgem, issonãopodiaacontecer,éclaro.Embora,àmedidaquenossosbeijos se

prolongavam,tenhahavidoummomentoemquemeocorreuqueFüsuntalveztivessetomadoumadasdecisõesmaisimportantesdasuavidaaoviratéali.Logomelembrei,porém,queessascoisassóaconteciam nos filmes estrangeiros. Pareciamuito estranho que uma garota resolvesse de repenteentregar-seamim,quantomaisnaqueleapartamento.Porisso,penseiqueelatalvezrealmentenãofossemaisvirgem…Aindanosbeijando,deixamosacozinhaenossentamosàbeiradacamae,quasesemnenhuma

timidez, embora emnenhummomento tenhamos trocadoum sóolhar, tiramos amaiorpartedasroupasenosenfiamosdebaixodascobertas.Ocobertoreramuitopesadoefaziacócegasnaminhapele,comoocorriaquandoeueracriança,demodoquedepoisdealgumtempoeuoarranquei,eláficamososdois,seminus.Ambostranspirávamos,eporalgummotivoissonosrelaxou.Aluzdosolfiltrada pelas cortinas fechadas era de um amarelo alaranjado, e aquilo dava à sua pele umaaparênciaaindamaisbronzeadadoquejátinha.QueFüsunpudessecontemplarmeucorpocomoeu contemplava o dela, que pudesse olhar parameus órgãos genitais tão de perto sem entrar empânico,que,longedeachá-loestranho,elapudesseatéolharparaomeusexocomumdesejocalmo,algosemelhanteàternura—pareceu-meprovasuficientedequeelajáviraoutroshomensnusemoutrascamas,emdivãsebancosdecarro,oquemedeixoucheiodeciúmes.Logo os olhares preocupados que começamos a trocar revelaram o quanto nos sentíamos

intimidados comadifícil tarefa aquenospropúnhamos.Füsun tirouosbrincos (umdosquais setornouagoraaprimeirapeçadonossomuseu)eosarrumounamesadecabeceira.Exibiaocuidado

Page 28: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

de umameninamíope que tirasse os óculos antes demergulhar na água, e novamente senti suadeterminação.Naqueletempo,oestilodasjovenserausarpulseiras,colareseanéiscomseusnomesouiniciais,masnaquelatardenãopercebiseseusbrincoseramdessetipo.Depoiselatirouasroupaspeçaporpeça,tiroutambémacalcinhacomgestosigualmentedecididos,eviaprovaindiscutíveldoqueelasedispunhaafazer.Naqueletempo,asmoçasquenãoqueriamir“atéofim”tinhamocostumedeficarpelomenosdecalcinha,comoasmoçasocidentaisquandoqueriampegarsol.Eubeijei seusombros,quecheiravamaamêndoa,ecomminhalínguaprovei suapeleúmidae

aveludada,e,quandoviquemesmoaindasendomaioseusseiosapresentavamumtommaisclaroquesuasubstancialpelemediterrânea,estremeci.Seosprofessoresdeliceuqueestudamestelivrocomseusalunosestiveremcomeçandoa ficarnervosos,podemrecomendaraos jovensquepulemesta página. Se houver visitantes do meu museu que queiram saber mais, sugiro que tenham agentilezadeolharpara osmóveis; a cena jábastarápara fazê-los compreenderque aquiloque eupreciseifazerfiz,primeiro,porFüsun,quemeolhavacomolhostãoassustadosesofridos;segundo,paraonossobemcomum;esóemseguida,depoisdesatisfazeraessesimperativos,umpoucoparaomeu prazer. Era como se precisássemos ultrapassar um obstáculo que a vida pusera em nossocaminho. Assim, quando seus olhos fitaram os meus e eu fiz pressão contra ela, murmurandopalavras carinhosas, perguntando: “Está doendo, meu amor?”, seu silêncio não me alarmou. Nomomentoemquechegamosaomáximodaproximidade,sentitãoprofundamenteafragilidadequesemanifestavaemseutremor(imaginemgirassóisestremecendoaumabrisaleve),quefoicomoseasuadorsetornasseminha.Aoverseusolhosbaixaremparaexaminaraparteinferiordoseucorpocomaobjetividadedeum

médico, compreendi que desejava vivenciar aquilo sozinha, e decidi terminar logo o que estavafazendo, concentrando-me emminha própria satisfação para poder emergir daquela árdua provasentindo algum alívio. Àquela altura, ambos sabíamos intuitivamente que saborear plenamente osprazeresquehaveriamdenosunir tambémsignificava saboreá-los cadaumpor seu lado;naqueleabraçoimpiedoso,vorazeimplacável,cadaumusavaooutroparaseupróprioprazer.HaviaalgonamaneiracomoFüsunapertavaosdedoscontraasminhascostas; lembravaaquelameninamíopeeinocenteaprendendoanadarnomar,comtantomedoqueseagarravaaopaiquecorreraparasalvá-laquandoelasentiumedodeseafogar.Dezdiasmaistarde,enquantoelameabraçavacomosolhosfechados,eu lhepergunteiaque filmeelaassistianamente.“Estavacontemplandoumcampodegirassóis”,respondeu-me.Osmeninoscujosgritosdealegria,xingamentoseberrosacompanhavamnossoamornosdiasque

se seguiram também estavam presentes nesse primeiro dia, jogando futebol no antigo jardim damansão abandonada de Hayrettin Paxá, xingando e berrando enquanto no apartamento nosentregávamosaoamor.Quandointerrompiamporuminstanteseuvozerio,umsilênciomaravilhosoenvolviaoquarto,quebradoapenaspelosarquejosocasionaisdeFüsuneumoudoisgemidosfelizesquemeescapavam.ÀdistânciaouvíamosoapitodopolicialnapraçadeNişantaşı, asbuzinasdoscarros,eummartelogolpeandoacabeçadeumprego.Umacriançachutouumalata,umagaivotagritou,umaxícarasepartiu,asfolhasdosplátanosfarfalharamaosabordabrisa.Estávamosdeitadosnoquartosilenciosocomosbraçosemvoltaumdooutro,tentandonãopensar

Page 29: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

noslençóisensanguentados,nasroupasdescartadas,emnossanudezaindasurpreendente— todosessesrituaissociaisprimitivosetodosessesdetalhesembaraçososqueosantropólogosgostamtantodeanalisar e classificar. Füsun por algum tempo chorou em silêncio.Deu pouca atenção àsminhaspalavras de consolo, dizendo apenas que se lembraria daquele dia até o fim da vida, antes decomeçarachorardenovoe,depois,recairmaisalgumasvezesnosilêncio.Tendometornado—comopassardotempo—oantropólogodaminhaprópriaexperiência,não

sintoomenorimpulsodedepreciaressasalmasobsessivasquerecolhemcacosdecerâmica,artefatose utensílios em terras distantes e os organizam a fim de expô-los a nós, para podermos entendermelhor as vidas dos outros e a nossa própria. Ainda assim, não aconselharia prestar uma atençãoexcessiva aos objetos e relíquias do “primeiro amor”, pois podem desviar quem os contempla dasprofundezas de compaixão e gratidão que agora se criavam entre nós dois. Assim, é precisamentepara ilustrar a solicitude das carícias deminha amante de dezoito anos emminha pele de trinta,enquantopermanecíamosdeitadosemsilêncionaquelequarto,nosbraçosumdooutro,quedecidiexibireste lençofloraldecambraia,quenaquelediaeladobroucomtantocuidadoeguardouemsuabolsa,masnuncamaistiroudela.Queesteconjuntodecanetaetinteirodecristal,pertencenteàminhamãe,comqueFüsunbrincounaquelatardedepoisdetê- lovistoemcimadamesaenquantofumavaum cigarro, sirva como relíquia do refinamento e da frágil ternura que sentimos umpelooutro.Queestecinto,cujafivelagrandedemaisagarreieajusteicomumaarrogânciamasculinadeque mais tarde me arrependeria tanto, sirva como testemunho da melancolia que senti quandocobrimosnossanudezevoltamosnovamenteosolhosparaaimundíciedomundo.Antesde irembora,eudisseaFüsunque, seelaquisesseconquistarumavaganauniversidade,

precisavaestudarmuitoduranteaqueleúltimomêsemeio.“Nãoquerqueeupasseorestodavidacomovendedoradeloja?”,perguntouelasorrindo.“Claroquenãoéisso…Masqueriaajudá-laaestudarparaosexames…Podeseraquimesmo.Que

livrosvocêestáusando?Estáestudandomatemáticatradicionaloumoderna?”“No liceu, estudamos matemática tradicional. Mas no curso estudamos as duas. Porque as

respostasvêmumadepoisdaoutranafolhaderespostas.Tudoissomedeixatonta.”Concordamosemnosencontrarnodiaseguintenomesmolocal,paraestudarmatemática.Assim

queelasaiu,compreioslivrosqueeramadotadosnoliceuenocursonumalivrariadeNişantaşı;devoltaaoescritório,folheeiosdoisenquantofumavaumcigarro,eviquepoderiamesmoajudá-lanoestudo.A ideiadequeeu fossecapazdeensinarmatemáticaaFüsun tornavamais levemeufardoemocional,provocando-meumasensaçãodealegriaeumestranhotipodeorgulho.Meupescoço,meunariz,minhapele,tudodoíadefelicidade,umaexultaçãoqueeunãopoderiaesconderdemimmesmo. Num canto domeu espírito, eu continuava a pensar que Füsun e eu tornaríamos a nosencontrarmuitasoutrasvezesnoapartamentodoedifícioMerhametparanosamarmos.Masentendiaqueoúnicomododeconsegui- loeraagircomosenadaforadocomumestivesseacontecendo.

10.Asluzesdacidadeeafelicidade

Page 30: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Naquela noite, uma antiga colega de turma de Sibel, Yeşim, ficaria noiva no Pera Palas; todomundoiriacompareceràfesta,demaneiraquetambémfui.Emseuvestidoprateadobrilhante,porcimadoqualjogaraumxaledetricô,Sibelpareciaencantada,comoseaquelafestafosseumensaiodonossonoivado,eseinteressavaporcadadetalhe,conversandocomtodososconvidados,sorrindootempotodo.NomomentoemqueofilhodotioSüreyya(cujonomeeusempreesqueço)meapresentouInge,a

modeloalemãquefizeraoanúnciodoMeltem,eujátomaradoiscoposderakıemesentiamuitoàvontade.“OquevocêestáachandodaTurquia?”,pergunteieminglêsaela.“SóestiveemIstambul”,disseInge.“Fiqueimuitosurpresa.Nãoimaginavanadaassim.”“Equetipodecoisavocêimaginava?”Por um momento de desconcerto, ficamos nos olhando em silêncio. Aquela mulher era

inteligente.Tendoevidentementeaprendidooquantoerafácildeixarumturcoarrasadopordizer-lheacoisaerrada,Ingesorriue,emturcoprecário,repetiuoslogandoMeltemquecativaraopaísinteiro:“Vocêmerecetudo!”.“Toda Turquia ficou conhecendo você no espaço de uma semana. Como é que você está se

sentindo?”“Ospoliciaismereconhecem,osmotoristasdetáxiemaistodomundonarua”,disseela,jubilosa

como uma criança. “Um vendedor de balões chegou a me parar e me dar um balão de graça,dizendo:‘Vocêmerecetudo’.Éfácilficarfamosanumpaísquesótemumcanaldetelevisão.”Será que ela sabia o quanto estava sendo grosseira, apesar de todo seu esforço para semostrar

humilde? “Quantos canais existem na Alemanha?”, perguntei. Percebendo que dissera uma coisaerrada, ela corou. Pensei que, no fim das contas, eu não tinha amenor necessidade de lhe fazeraquelapergunta. “Tododiademanhã, acaminhodo trabalho, euvejo sua foto tãoampliadaquecobretodaalateraldeumedifíciodeapartamentos,eficoulinda”,disseeu,atítuloderetratação.“Ah,sim,vocês,osturcos,estãobemmaisadiantadosqueaEuropaemmatériadepropaganda.”Essaspalavrasmeagradaramtantoqueporuminstanteesqueciquedeviaestarapenastentando

serdelicada.ProcureiporZaimentreosconvidadosalegreseruidosos.Eleestavadooutroladodosalão,conversandocomSibel.Fiquei satisfeitodeverqueeles aindapodiam ficar amigos.Mesmotantotempodepois,lembrodavagadeeuforiaquemeenvolveu.Sibelcunharaumapelidosecretopara ele: “Zaim-Merece-Tudo”; ela achava o slogan promocional doMeltem egoísta e insensível.NumpaíspobreeproblemáticocomoaTurquia,comjovensesquerdistasedireitistasempenhadosemmatarem-seunsaosoutros,aquelafrase,achavaela,soavamal.Umaadorávelbrisadeprimaveraentravapelasgrandesportasdavaranda,trazendooaromadas

tílias.Asluzesdacidaderefletiam-senoChifredeOuro,abaixodenós.AtéasfavelaseocasariomaispobredeKasımpaşa pareciam lindos. Pensei em como eu era feliz, sentindo inclusive que aquelemomentoeraoprelúdiodeumafelicidadeaindamaior.AgravidadedoqueocorreraentremimeFüsundeixava-meconfuso,maseumediziaquetodomundotemláosseussegredos,seusmedoseseusmomentosdepreocupação.Ninguémpodia adivinharquantosdaqueles elegantes convidadossentiriamumdesconfortosemelhanteoucarregariamsuasferidasespirituaissecretas,maseraquando

Page 31: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

nosmisturávamosaumgrupoassim,quandonoscercávamosdeamigos— depoisdeumoudoiscoposderakı—,quepodíamosveroquantoessessentimentoseramtransitóriosetriviais.“Estávendoaquelehomemnervosoali?”,perguntouSibel.“ÉofamosoSufiFrio.Elecatacada

caixadefósforosquelhecainasmãoseguardatodas.Parecequetemsalasemaissalasrepletasdecaixas de fósforo.Dizemque ficou assimdepois de ter sido abandonadopelamulher.Não vamosquerer garçons usando roupas diferentes na nossa festa de noivado, está bem? Por que você estábebendotanto?Escute,precisolhedizerumacoisa.”“Oquê?”,perguntei.“Mehmetestátotalmenteencantadocomamodeloalemã—nãoquersairdoladodela—eZaim

estáficandocomciúmes.Ah,aqueleali,aquelequeéfilhodoseutioSüreyya…TambéméparentedeYeşim.Algumacoisaestáincomodandovocê,algumacoisadequeeuprecisesaber?”“Não,demaneiranenhuma,nãohánadaerrado.Naverdadeestoumuitocontente.”Mesmo depois de tantos anos, lembro-me do quanto Sibel era carinhosa comigo. Sibel era

divertida, inteligente e simpática, e eu sabiaquecomela ameu lado ficariabem,não sónaquelemomento mas pelo resto da vida. Mais tarde naquela mesma noite, depois de deixá-la em casa,caminheipormuitotempopelasruasescurasevazias,pensandoemFüsun.Oquenãomesaíadacabeça,oquemeperturbava,nãoerasóqueFüsunmetivesseentregadosuavirgindade;eraqueelasemostrassetãodeterminada.Nãoderanenhumsinaldetimidezouindecisão,nemmesmoquandotiroutodaaroupa.Emcasa,encontreinossasaladevisitasvazia;àsvezeseuchegavaemcasaedescobriaquemeu

pai, tendo acordadonomeiodanoite, estava lá sentadodepijama, e eugostavade conversarumpouco com ele antes de ir para a cama;mas naquela noite tanto ele quantominhamãe estavamdormindo—pelaportadoquartodosdois,ouviosroncosdeleeossuspirosdela.Antesdeirparaacamaservi-medemaisumadosederakıefumeimaisumcigarro.Masmesmoassimnãocaínosono.Minhacabeçaaindarodavacomimagensdonossoamor,quecomeçaramasemisturaraosdetalhesdafestadenoivadodaquelanoite.

Page 32: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

11.AFestadoSacrifício

Enquantoeumergulhavano sono,penseiemmeuparentedistante tioSüreyya,eno filhodele,queeuviranafestadeYeşimecujonomesempreesquecia.TioSüreyyatambémestiveraemminhacasanumadasvisitasdeFüsunnumferiadoreligioso—avezquetínhamossaídoparaumpasseiodecarro.Aindadeitado, tentando ferrarnosono,algumas imagensdaquelamanhã friaecinzentameretornaram. Enquanto desfilavam diante dos meus olhos, pareciam ao mesmo tempo muitofamiliares e muito diferentes, como ocorre com as memórias quando se infiltram nos sonhos.Lembrei-medovelocípede,elembrei-medahoraemquesaícomFüsun,equeficamosobservandoumcarneirosersacrificado;depois,demosumpasseiodecarro.“Nessedia,trouxemosovelocípedeparalhesdevolver”,contouFüsun,queselembravadetudo

muitomelhorqueeu,emnossoencontrododiaseguintenoedifícioMerhamet.“Depoisquevocêeseu irmãocresceramdemaisparaandarnele, suamãemedeuovelocípede.Masàquelaalturaeutambémtinhacrescidodemaisparaelee jánãousava,e,quandofomosvisitarvocêsnaqueleano,minhamãelevou-odevolta.”“Eentãominhamãedevetermandadotrazerparacá”,disseeu.“Agoraestoulembrandoquetio

Süreyyatambémestavalánessedia.”“Porquefoielequepediuolicor”,disseFüsun.AlembrançaqueFüsuntinhadaqueleinesperadopasseiodecarrotambémerabemmaisexatado

queaminha.Eaquieugostariadefazerumapausapararelatarahistória,dequemelembreiassimqueelamecontou.Füsuntinhadozeanoseeu,vinteequatro.Eraodia27defevereirode1969,oprimeirodiadaFestadoSacrifício.Naquelamanhã,comoocorriaemtodososferiados,nossacasaem Nişantaşı se enchera de parentes próximos e distantes, todos muito felizes de terem sidoconvidadosparaalmoçar, todosdeternoegravataouusandoseusmelhoresvestidos.Acampainhanãoparavadetocare todahorachegavamaisalguém,porexemplo,minhatiamaisnovacomseumaridocarecaesuascriançasenxeridasmaslindamentetrajadas,etodosselevantavamparasaudaros recém-chegados com apertos demão e beijos nas duas faces. FatmaHanım e eu servíamos osdocesquandomeupaichamoumeuirmãoeeudelado.“TioSüreyyaestáreclamandodenovoquenãotemoslicor.Escutem,meninos,algumdevocês

podedesceratéalojadeAlaaddinecomprarumagarrafadelicordementaeoutrademorango?”Minhamãetinhabanidoocostumedeservirlicoresdementaemorangoemjarrasdecristalnuma

bandejadeprata,porqueàs vezesmeupaibebiademais.Resolvera assimem favorda saúdedele.Masdois anos antes,numaoutramanhãde feriado comoaquela, quandoo tioSüreyya fizera suaqueixa habitual sobre a falta de licor, minha mãe, esperando matar a questão no nascedouro,indagara:“Eporquealguémhaveriadeservirbebidasalcoólicasnumferiadoreligioso?”.Perguntaqueabriracaminhoparaumadiscussãoinfindávelsobrereligião,civilização,aEuropaeaRepública,entreminhamãeemeutio,fervorososecularistaepartidáriodeAtatürk.“Qualdevocêsvai?”,perguntoumeupai,separandoumanotanovadedezlirasdeumapilhaque

tiraradobancoparadistribuir entreosporteiros, os guardas e todas as criançasquebeijassem sua

Page 33: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

mão.“Kemalpodeir!”,dissemeuirmão.“Não,Osmanéquevai”,disseeu.“Porquevocênãovai,meurapaz?”,disse-memeupai.“Enãodiganadaàsuamãe…”Quandoeusaíadecasa,depareicomFüsun.“Venhaatéalojacomigo.”Ela era uma menina magrela de doze anos com as pernas muito finas, filha de uma parente

distante, e nadamais. Além de suas roupas imaculadas e dos laços brancos de fita reluzente queprendiamsuasbrilhantestrançaspretas,nãohavianelanadadeespecialmentenotável.Tantosanosdepois,Füsunlembrouasperguntaspoucoinspiradasqueeufizeraàgarotanoelevador:“Emqueano você está?” (O primeiro do curso secundário.), “Em qual escola?” (O Liceu paraMoças deNişantaşı.),“Oquevocêquerserquandocrescer?”(Silêncio!).Tínhamosacabadodedeixaroedifícioededarpoucospassosnofrioquandoviumgrupogrande

depessoasreunidoemtornodotroncodeumapequenatíliaaoladodeumterrenobaldiocobertodelama,preparando-separasacrificarumcordeiro.Semeuníveldecompreensãofosseentãooqueéhoje,euteriameperguntadosenãopodiaserperturbadordemaisparaumagarotadaquelaidadeveralguémabriropescoçodeumcordeiro,enãoteriadeixadoFüsunaproximar-semais.Maseueracuriosoeinsensível,eseguiemfrente.Eramonossocozinheiro,BekriEfendi,enosso

porteiro, Saim Efendi, que tinham arregaçado as mangas e seguravam um cordeiro cujas patasestavamamarradasecujapelagemestavavermelha,tingidadehena.Aoladodocordeirohaviaumhomemdeavental,tendonasmãosumaimensafacadeaçougueiro,masocordeirosedebatiacomtantaviolênciaqueelenãoconseguia terminarsua tarefa.Depoisdealgumaluta,ocozinheiroeoporteiroconseguiram imobilizaroanimal,deixandoatrásde siumrastrodeexalaçõescongeladas.Segurandoocordeiropelabocaepelofocinhomacio,oaçougueiroafastoubruscamenteacabeçadoanimalparaoladoeapoiouafacaemsuagarganta.Seguiu-seumbrevesilêncio.“AllahAkbar,AllahAkbar”,repetiuoaçougueiro.Comgestosrápidos,fezalâminadeslizarparaumladoeparaooutro, abrindo o pescoço do cordeiro.Quando o açougueiro retirou a faca, produziu-se um jorroescurodesanguevermelho.Ocordeiroestremecia,eerapossívelversuavidaseesvaindo.Tudoseimobilizou.Derepente,umarajadadeventosacudiuosramosnusdatília.Oaçougueiroarrastouocordeiropelochão,puxando-opelacabeça,afimdefazerseusangueescorrerparaumburacoquetinhamcavadoantes.Emmeioàspessoasreunidas,vicriançasderostocontraídoeonossomotorista,ÇetinEfendi,ao

ladodeumvelhoquerezava.Füsun,emsilêncio,seguravaamangadomeupaletó.Detemposemtemposocordeiroestremecia,maseramseusúltimosestertores.Oaçougueiroqueagoralimpavaafaca no avental era Kazım, cujo açougue ficava ao lado da delegacia de polícia— eu não oreconhecera até então. Encontrando os olhos de Bekri, o cozinheiro, percebi que o cordeiro eranosso; naquele tempo, comprávamos cordeiros para o sacrifício, e este era o que tinha passado aúltimasemanaamarradoporumacordanojardimdosfundos.“Venha,vamosembora”,disseeuaFüsun.Sem dizer nada, caminhamos rua acima. Será que fiquei perturbado por minha indiferença

Page 34: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

peranteo fatodeumamenina ter testemunhadoaquilo?Lembroqueme sentiaculpado,masnãosabiaaocertoporquê.Nemminhamãenemmeupaieramreligiosos.Nuncavinenhumdosdoisrezarouobservarum

jejum.ComotantoscasaisquetinhamcrescidonosprimeirosanosdaRepública,nãodesrespeitavamareligião;eramsimplesmenteindiferentes,ecomotantosdeseusamigoseconhecidos,explicavamqueaquela faltade interessesedeviaaseuapegoaAtatürkeasua fénumarepública laica.Aindaassim, nossa família, como amaioria das famílias burguesas secularistas que viviam emNişantaşı,sacrificavaumcordeironaFestadoSacrifícioedistribuíaacarneeapeleaospobres,deacordocomocostume.Masmeupai jamaisquisqualquer intimidadecomosacrifíciopropriamentedito,nemenvolver qualquer outromembroda família: deixávamos a caridade por conta do cozinheiro e doporteiro. Como meus parentes, eu sempre mantivera distância do sacrifício ritual que ocorriaanualmentenoterrenobaldioaoladodeminhacasa.Enquanto Füsun e eu, ainda calados, caminhamos até a loja de Alaaddin, um vento frio nos

atingiu vindo da mesquita de Teşvikiye, e quase tive a impressão de que minha inquietação mecausavatremores.“Vocêficoucommedo?”,perguntei.“Nãodevíamosterolhado…”“Coitadodocarneirinho”,disseela.“Vocêsabeporqueelessacrificamocordeiro,nãosabe?”“Umdia,quandoformosparaocéu,éessecordeiroquevainoslevarparaooutroladodaponte

Sırat,queéfinacomoumfiodecabeloeaguçadacomoumaespada…”Eraaversãoparacriançasepessoasseminstrução.“Ahistóriavaialém”,disseeu,comumarprofessoral.“Vocêsabecomocomeçou?”“Não.”“OprofetaAbraãonãotinhafilhos.ErezouparaDeus,dizendo:‘ÓSenhor,semederesumfilho,

farei tudo queme pedires’. Depois disso suas preces foram atendidas, e um dia nasceu seu filhoIsmael.O profeta Abraão ficou cheio de alegria. Adorava seu filho, que beijava e acariciava o diainteiro;sentia-seexultante,etododiaagradeciaaDeus.UmdiaDeuslheapareceuemsonhoedisse:‘Agoraprecisascortaropescoçodoteufilhoesacrificá-lo’.”“Porqueeledisseisso?”“Escute o resto… O profeta Abraão obedeceu às instruções de Deus. Pegou sua faca e, no

momentoemqueiaabriropescoçodofilho…bemnessemomento,umcordeiroapareceu.”“Porquê?”“DeustevemisericórdiadeAbraãoemandou-lheocordeiroparaqueelepudessesacrificá-lono

lugardeseufilho.DeusviuqueAbraãotinhasidoobediente.”“EseDeusnãotivessemandadoocordeiro,oprofetaAbraãoteriarealmentecortadoopescoçodo

própriofilho?”,perguntouFüsun.“Sim”, respondi com desconforto. “Mas Deus, quando teve certeza de que Abraão cortaria a

gargantadofilho,amou-omuitoemandouocordeiroparapoupá-lodessadorterrível.”Davaparaverqueeunãotinhacontadoahistóriademodocompreensívelparaumameninade

doze anos: como um pai amoroso podia aceitarmatar o próprio filho?Meu desconforto agora se

Page 35: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

transformavaemaborrecimentodiantedaminhaincapacidadedeexplicaressesacrifício.“Ah,não,alojadeAlaaddinestáfechada!”,disseeu.“Vamosatéalojadapraça.”CaminhamosatéapraçadeNişantaşı.Chegandoaocruzamento,vimosqueabancadeNurettin,

quevendia jornais e cigarros, tambémestava fechada.Fizemosmeia-volta e, enquantoandávamosemsilênciopelarua,conseguiformularumainterpretaçãodahistóriadoprofetaAbraãoquepoderiaagradaraFüsun.“Nocomeço,éclaro,oprofetaAbraãonão tinha ideiadequeumcordeiro ia tomaro lugardo

filhodele”,disseeu.“MaseleacreditavatantoemDeus,amavatantoaDeus,quenofimdascontastinhacertezadequenenhummalpodiavird’Ele…Seamamosmuitoalguém,sabemosque,mesmoentregando a essa pessoa a coisa mais preciosa que temos, ela jamais nos fará mal. E é isso, osacrifício.Quemvocêmaisamanomundo?”“Minhamãe,meupai…”EncontramosomotoristaÇetinnacalçada.“ÇetinEfendi,meupaiquerumasgarrafasdelicor”,disseeu.“TodasaslojasdeNişantaşıestão

fechadas,osenhorpodenoslevaratéTaksim?Edepoisdissotalvezpossamosdarumpasseio.”“Euvoutambém,nãoé?”,perguntouFüsun.Füsun e eu nos instalamos no banco traseiro do Chevrolet 56 do meu pai, que era de um

vermelho-cereja bem escuro. Çetin Efendi nos conduziu para cima e para baixo pelas ladeirasesburacadas e calçadas de pedra enquanto Füsun olhava pela janela. Passando por Maçka,continuamosdescendoatéDolmabahçe.Alémdepoucaspessoasquevestiamsuasmelhoresroupasporcausadoferiado,asruasestavamdesertas.Mas,quandopassamospeloestádiodeDolmabahçe,vimosmaisumgruporealizandoumsacrifício.“Ah,porfavor,ÇetinEfendi,osenhorpoderiadizerparaestacriançaporquefazemossacrifícios?

Eunãosoubeexplicardireito.”“Ora,KemalBey,tenhocertezadequeexplicoulindamente”,respondeuomotorista.Masainda

assim ficou satisfeito por ser reconhecido como pessoa mais escolada em questões religiosas.“Fazemos o sacrifício paramostrar que somos tão leais aDeusquanto oprofetaAbraão…Comosacrifício,mostramosqueestamosdispostosatéaperderacoisaaquemaisdamosvalor.AmamostantoaDeus,mocinha,queporEleatéabrimosmãodacoisaquemaisamamos.Esemesperarnadaemtroca.”“Masnofinalnãovamosparaocéu?”,pergunteiemtommalicioso.“ComoDeusescreveu…IstosóvaificarclaronoDiadoJuízoFinal.Nãofazemososacrifíciopara

garantirnossaidaparaocéu.FazemososacrifícioporqueamamosaDeus,esemesperarnadaemtroca.”“Osenhorentendemuitodereligião,ÇetinEfendi.”“KemalBey,estámedeixandoencabulado.Osenhorestudoutanto,sabetãomaisdoqueeu.De

qualquermaneira,ninguémprecisadareligiãooufrequentaramesquitaparasaberessascoisas.Seexisteumacoisaaquedamosmuitovalor,umacoisadequetratamoscomgrandecarinho,edamosessacoisaaalguémporamorverdadeiro,ésempresemesperarnadaemtroca.”“Masapessoaaquemfazemosessadoaçãodesapegadanãoficaperturbadacomisso?”,perguntei.

Page 36: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Podepensarquequeremosalgumacoisadela.”“Deuségrande”,disseÇetinEfendi.“Eletudovêetudoentende…Eentendequenãoesperamos

nadaemtrocadonossoamor.NinguémpodeenganaraDeus.”“Temumalojaabertaali”,disseeu.“ÇetinEfendi,osenhorpoderiapararaqui?Euseiqueeles

vendemlicor.”DaliaumminutoFüsuneeutínhamoscompradoduasgarrafasdosfamososlicoresdomonopólio

estatal,umdementaeooutrodemorango,eentramosdevoltanocarro.“ÇetinEfendi,aindatemostempo,podenoslevarparaumpasseio?”Tantosanosmais tarde,Füsunconseguia lembrardequase tudodeque falamosnaquele longo

passeio pela cidade. Emminha memória, uma única imagem permanecia daquela manhã fria ecinzenta de feriado: Istambul lembrava um matadouro. E não só nas áreas mais pobres, ou nosterrenosbaldiosdasruassecundáriasmaisescuraseestreitas,ouemmeioàsruínasouaosescombrosdosincêndios—mesmonasavenidasenosbairrosmaisricos,cordeiroseramsacrificados,dezenasde milhares deles, desde as primeiras horas da manhã. Em alguns lugares, as calçadas e osparalelepípedos ficavam cobertos de sangue. Enquanto nosso carro descia ladeiras e atravessavapontes,percorrendoosmeandrosdasruassecundárias,vimoscordeirosquetinhamacabadodesersacrificados,cordeirossendoesquartejados,cordeirossendoesfolados.PegamosaponteGalataparaatravessar o Chifre deOuro. Apesar do feriado e das bandeiras e das pessoas com suasmelhoresroupas, a cidade parecia triste e cansada. Depois do aqueduto de Valens, viramos na direção deFatih.Lávimoscordeiroslambuzadosdehenaàvendanumterrenobaldio.“Estestambémvãosermortos?”,perguntouFüsun.“Talvez nem todos,mocinha”, respondeuÇetinEfendi. “Já é quasemeio-dia, e eles ainda não

foram vendidos…Talvez, se não forem comprados até o fim do feriado, esses pobres animais sesalvem.Maiscedooumaistarde,porém,acabamsendovendidosparaosaçougues.”“Vamoschegar láantesdosaçougueiros,comprar todose salvá-los”,disseFüsun.Elausavaum

casaco vermelho muito elegante e, quando sorriu, piscou-me corajosamente. “Podemos salvar oscarneirinhosdessehomemquequermatarosfilhos,nãoé?”“Claroquesim”,disseeu.“A senhorita émuito esperta,mocinha”, disseÇetinEfendi. “Na verdade, o profetaAbraãonão

querianemumpoucomatarofilhodele.MasaordemtinhavindodeDeus.SenãoobedecermosatodasasordensdeDeus,entãoomundoviradepernasparaoar,eoDiadoJuízoFinalchegalogo…Abasedomundoéoamor.EabasedetodoamoréoamorquetemosporDeus.”“Mascomoissopodeserentendidoporumacriançacujopaiquermatá-la?”,perguntei.Porummomento,cruzeimeuolharcomodeÇetinEfendinoretrovisor.“KemalBey, sei que está dizendo essas coisas só parame provocar e depois poder rir demim,

exatamentecomofazseupai”,disseele.“Seupaigostamuitodenósenósorespeitamosmuito,porissonuncanosaborrecemoscomsuaspiadas.Eassuastambémnãomeaborrecem.Vouresponderasuaperguntacomumexemplo.OsenhorviuumfilmechamadoOprofetaAbraão?”“Não.”“Não,claroquenão—nuncairiaverumfilmecomessenome.Masdeviaveressefilme,elevar

Page 37: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

esta mocinha consigo. Não vai achar tedioso… EkremGüçlü faz o papel de Abraão. Fui com afamíliainteira—minhamulher,minhasograemeusfilhos—etodosnosacabamosdetantochorar.QuandoAbraãopegouafacaeolhouparaofilho,todoschoramostambémnessahora…EquandoIsmaeldisse:‘QueridoPai,façaoqueDeusmandou!’,exatamentecomoestánogloriosoAlcorão…choramosnovamente.Eentão,quandoocordeirodosacrifícioapareceunolugardofilhoquedeviaser sacrificado, choramosdealegria, com todomundonocinema.Seentregamoso tesouroaquedamosmaisvaloraoSerqueamamosdetodocoração,seformoscapazesdissosemesperarnadaemtroca,omundosetransformanumlugarlindo,eéporisso,mocinha,quechoramostanto.”Lembro-medeteridodeFatihaEdirnekapı,edelátermosviradoàdireitaparaacompanharas

muralhasdacidadeatéoChifredeOuro.Enquantopassávamospelosbairrosmaispobres,enquantoavançávamosemmeioàsruínasdasmuralhasdacidade,nóstrêsnoscalamos,eficamosemsilênciopormuitotempo.Enquantocontemplávamosospomaresemmeioàsmuralhasdosantigoscastelos,eosterrenosbaldioscheiosdelixoamontoado,barrisdescartadosematerialdedemolição,alémdasfábricas e oficinas arruinadas, vimos aqui e ali algum cordeiro sacrifical, e peles que tinham sidodeixadasdelado,juntamentecomasentranhaseoschifres,masnosbairrospobres,comsuascasasde madeira sem pintura, havia menos sacrifícios e mais festividades. Lembro como Füsun e euficamos encantados vendo os terrenos onde carrosséis e balanços tinham sido armados para osfestejos,eascriançasquecompravambalasdegomacomodinheirodoferiado,easbandeirasturcasdispostas como pequenos pares de chifres no alto dos ônibus, e todas as cenas quemais tarde euhaveriadereencontraremfotografiasecartões-postais,ecolecionarcomtantofervor.Enquantosubíamosdecarroa ladeiradeşişhane,umamultidão se formavanomeioda ruaeo

tráfegotinhasidointerrompido.Numprimeiromomentoacheiquefossemaisumgrupocelebrandooferiado,masquandoamultidãoseabriuànossafrentenosvimosbemaoladodedoisveículosquetinham se chocadomuito pouco antes, e das vítimas agonizantes. Os freios do caminhão tinhamfalhado;omotoristadesviaraparaamãodesubidae,impiedosamente,esmagouumcarroparticular.“Deuségrande!”,disseÇetinEfendi.“Porfavor,mocinha,façaopossívelparanãoolhar.”Tivemosovislumbredealguémaindapresodentrodocarro,cujadianteiraforacompletamente

esmagada,sacudindoacabeçaenquantolutavapelavida.Nuncaheidemeesquecerdoruídodoscacosde vidrodebaixodospneusdonossocarroenquantoavançávamosemmeioao trechovazioqueveioemseguida.Subimosa ladeiraàspressas,e,enquantopercorríamosas ruasdesertasentreTaksimeNişantaşı,eracomosefugíssemosdamortepropriamentedita.“Ondevocêsestiveramessetempotodo?”,perguntoumeupai.“Jáestávamosficandopreocupados.

Vocêtrouxeolicor?”“Está na cozinha!”, respondi. A sala de estar cheirava a perfume, colônia e tapete.Quandome

mistureiatodososparentes,esqueci-mecompletamentedapequenaFüsun.

12.Beijandooslábios

Na tarde seguinte, Füsun e eu trocamos mais reminiscências sobre nosso passeio pela cidade

Page 38: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

naquelamanhãdeferiadohaviaseisanos,antesdenosentregarmosaosbeijoseaoamor.Enquantoabrisaperfumadadetíliaseesgueiravaentreascortinasdetuleparalambersuapelecordemel,euera levadoà loucurapelomodocomo se agarrava amimcom todaa força, como seeu fosseumsalva-vidas, os olhos muito fechados, o que me impedia de perceber direito o significado maisprofundodaminhaexperiência,ourefletir sobreela.Aindaassim,concluíque, sepretendiaevitarperder-menasperigosasprofundezasondeaculpaeadesconfiançasólevamaodesamparodoamor,precisavaprocuraracompanhiadeoutroshomens.Na manhã de sábado, depois de ter estado mais três vezes com Füsun, meu irmão ligou me

convidando para o jogo que o Fenerbahçe ia disputar naquela tarde contra o Giresunspor; se oFenerbahçeganhasse—comoimaginavamasbancasdeapostas—,conquistariaocampeonato.Demaneira que partimos para o estádio İnönü, antes conhecido como estádio Dolmabahçe. Fora onometrocado,fiqueisatisfeitodenotarquecontinuavaigualavinteanosantes.Aúnicadiferençadefatoeraque,adotandoaconvençãoeuropeia,tinhamtentadoplantargramanocampodejogo.Mas,comoassementessótinhamformadoraízesnosquatrocantos,ocampolembravaacabeçadeumcarecaaquemsó restam tufosdecabelonas têmporasenanuca.Osespectadoresmais ricos,nascadeiras numeradas, continuavam com os mesmos hábitos da década de 1950: sempre que osjogadoresexaustosseaproximavamdalinhalateral,especialmenteosdefensoresmenosglorificados,eram alvo de uma verdadeira chuva de insultos, da mesma forma que os patrícios romanoscostumavaminvectivarosgladiadoresdastribunas(“Corram,seusveadosfrouxos!”),enquanto,dasarquibancadas, os pobres, os desempregados e os estudantes ecoavam as mesmas ofensas emuníssono,esperando ter suasvozes igualmenteouvidas.Comoaspáginasdeesportesconfirmariamnodiaseguinte,oconfrontoeramuitodesigual,e,quandooFenerbahçemarcouoprimeirogol,melevantei de um salto, como o restante da plateia. Nessa atmosfera festiva, em que os homens nocampoenasarquibancadastrocavamabraçosecongratulaçõesrituais,nessacomunidaderepentina,sentiminha culpa ceder,meumedo transformar-se em orgulho.Mas durante osmomentosmaiscalmosdapartida,quandotodosostrintamilpresentesconseguiamouvirosomdopédeumjogadoratingindoabola,virei-meparacontemplaropaláciodeDolmabahçeeoBósforo,quecintilavaalémdasarquibancadasabertas,eenquantoobservavaumnaviosoviéticopassarportrásdopaláciopenseiemFüsun.Fiqueiprofundamentecomovidoporqueela,emboramalmeconhecesse,aindaassimmeescolheraedecidirademaneiratãodeliberadaentregar-seamim.Seupescoçolongo,osulcoemseuventre quenão tinha igual, amescla de sinceridade e desconfiança em seus olhos, amelancólicahonestidadequeexibiamao fitardiretamenteosmeusenquantocontinuávamosdeitadosnacama,tudoaquilosesucediaemminhamente.“Vocêestácomumjeitopreocupado.Deveseronoivado”,dissemeuirmão.“É.”“Vocêestámuitoapaixonado?”“Claroquesim.”Comum sorriso compassivo e aomesmo tempo conhecedor das coisas domundo,meu irmão

virou-separacontinuaracompanhandoadisputapelabolanomeiodecampo.EmsuamãotraziaumcharutoturcodeMármara—adotaraessehábitodoisanosantes,“sóparaseroriginal”,diziaele.

Page 39: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

O vento leve que soprava da torre de Leandro, agitando tanto as bandeiras das equipes como asbandeirinhas vermelhas nos quatro cantos do campo, levava a fumaça direto para osmeus olhos,fazendo-oslacrimejar,comooscigarrosdomeupaiquandoeueracriança.“Ocasamentovailhefazerbem”,dissemeuirmão,semprecomosolhosnabola.“Vocêspodem

terfilhoslogo.Sevocêsnãoperderemtempo,elesaindapodemficaramigosdosnossos.Sibeléumamulhermuitosensata;temospésnochão.Jávocêdevezemquandosedeixalevarpelasideias,elavailhedarumbomequilíbrio.EsperoquevocênãoesgoteapaciênciadeSibel,comoesgotouadasoutrasmoças.Ei,qualéoproblemadessejuiz?Foifalta!”Quando o Fenerbahçe fez o segundo gol, todos começamos a pular— “Goooool!”— e nos

abraçamos e nos beijamos.Quando o jogo acabou, encontramosKadri, oCrivo, companheiro domeupainoExército,emuitosadvogadosehomensdenegóciosaficionadosdofutebol.Subimosaladeira a pé comamultidãoque gritava e cantava, e fomos até ohotelDivan, onde conversamossobrefutebolepolíticaemtornodecoposderakı.Emeuspensamentosvoltaram-senovamenteparaFüsun.“Vocêestápensandoemalgumaoutracoisa,Kemal”,disseKadriBey.“Imaginoquenãogostede

futeboltantoquantoseuirmão.”“Gosto,masultimamente…”“Kemal gosta muito de futebol, Kadri Bey”, disse meu irmão em tom de zombaria. “Só não

conseguedominarabolatodavezquerecebeumpasse.”“Na verdade, sei de cor a escalação doFenerbahçe em 1959”, disse eu. “Özcan,Nedim,Basri,

Akgün,Naci,Avni,MikroMustafa,Can,Yuksel,LeftereErgun.”“Seracettintambémfaziapartedessetime”,disseKadri,oCrivo.“Vocêseesqueceudele.”“Não,elenuncajogounessetime.”Adiscussãocontinuoue,comosemprenessas situações, levouaumaaposta.KadriBeyapostou

queSeracettintinhajogadonotimede1959,eeuaposteiquenão.OperdedorpagariaumjantarparatodoogruporeunidonoDivanemtornodeseuscoposderakı.Enquanto caminhávamos de volta para Nişantaşı, separei-me dos outros. Em algum lugar do

apartamento do edifício Merhamet havia uma caixa em que eu guardava todas as figurinhas dejogadoresdefutebolquevinhamnasantigasembalagensdechicleteeeucolecionava.Eraotipodecoisa que minha mãe sempre mandava para o apartamento. E eu sabia que, caso conseguisseencontraraquelacaixa,comtodasasfigurinhasdejogadoresdefuteboleastrosdocinemaqueeuemeuirmãocolecionávamos,KadriBeyacabariapagandoojantarparatodomundo.Assim que entrei no apartamento, porém, entendi quemeu verdadeiromotivo para estar lá era

reviver as horas passadas com Füsun. Por ummomento fiquei olhando para a cama desfeita, oscinzeiros ainda cheios junto à cabeceira e as xícaras de chá sujas.Amobília antiga acumuladademinhamãe, as caixas, os relógios parados, as panelas e caçarolas, o linóleoque forrava o chão, ocheiro de poeira e ferrugem já tinham semisturado às sombras do quarto para criar umpequenoparaísodoespíritonoqualminhaalmapodiavagar.Estavaescurecendodepressado ladode fora,masaindaseouviamosgritoseasofensasdosmeninosquejogavamfutebolnojardim.Nessa visita ao edifício Merhamet, no dia 10 de maio de 1975, encontrei de fato a lata onde

Page 40: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

costumava guardar as figurinhas dos artistas de cinemados chicletesZambo,mas estava vazia.AsfigurinhasqueovisitantedomuseuiráversãoasquecompreimuitosanosmaistardedeHıfzıBey,duranteosdiaspassadosemconversascomcolecionadores trêmulosemiseráveis, emvários locaissufocantes.Emais:aoreverminhacoleçãoanosmaistarde,percebique,notempoemqueíamosaosbares frequentadosporgentedecinema—entreelesEkremGüçlü(que fizeraopapeldoprofetaAbraão)—,acabamosconhecendoumaboaquantidadedessesatores.Minhahistória,assimcomoaexposição,revisitarátodosessesepisódios.Ejánaquelaépocaeusentiaqueaquelequartomisterioso,repleto de objetos velhos e da alegria dos nossos beijos, haveria de ocupar o centro de minhaimaginaçãopelorestodosmeusdias.Comoocorreucomamaioriadaspessoasdomundonaquelaépoca,minhaprimeiravisãodeduas

pessoasbeijando-senoslábiosfoinocinema,edeixou-meabismado.Nãotivedúvidadequegostariamuitodefazeromesmocomalgumabelajovempelorestodavida.Aostrintaanosdeidade,excetoporumaouduasocasiõesnosEstadosUnidos,eununca tinhavistocasais trocandobeijos foradastelas.Ocinemapareciaserolocalaqueseiaparaveroutraspessoassebeijando,enãosóquandoeuera criança, ainda que já então.Quando Füsunme beijou, ela parecia imitar as pessoas que viratrocandobeijosnosfilmes.Gostariaagoradedizeralgumascoisassobrenossosbeijos,emboratenhaalgunspruridosqueme

levamaevitaratrivialidadeeasconfissõesmaisvulgares.Querocontarminhahistóriadeummodoquefaçajustiçaaseusaspectosmaissériosrelacionadosaosexoeaodesejo:abocadeFüsuntinhaosabordeaçúcardeconfeiteiro,devido,acho,aoschicletesZambodequeela tantogostava.BeijarFüsunnãoeramaisumapreliminardestinadaaatiçaremanifestarnossaatraçãorecíproca;eraumacoisaque fazíamospeloprazerde fazer, e quandonos amávamos ficávamos ambos espantadosdedescobriraverdadeiraessênciadoamor.Nãoeramapenasnossasbocasmolhadasenossas línguasqueseentrelaçavam,masnossasrespectivasmemórias.Assim,todavezquenosbeijávamos,primeiroeu abeijavadamaneira como se encontrava àminha frente, edepoisdamaneira comoexistianaminha memória. Em seguida, abria os olhos por um segundo para beijar sua imagem de ummomentoantes e,depois,uma imagemdamemóriamaisdistante, atéquea lembrançadeoutrasmoçasparecidascomelasecombinassemcomessasmemóriaseeuasbeijassetambém,sentindo-memaisvirilaindaporbeijartantasgarotasaomesmotempo;apartirdaí,ficavafácilbeijá- lacomoseeufosseoutrapessoa,enquantooprazerqueextraíadesuabocadecriança,deseuslábioscarnudosede sua língua travessa aumentava minha confusão e alimentava pensamentos que até então euignorava (“Ela é uma criança”, era um desses pensamentos— “Sim, mas bastante mulher”, eraoutro),eoprazeriacrescendoatéabarcarasváriaspersonasqueeuadotavaquandoabeijava,etodasasFüsunsrememoradasqueevocavaacadabeijoseu.Foiduranteessesprimeirosbeijosdemorados,aolongodolentoacúmulodeparticularidadeserituaisemnossosencontrosamorosos,quetiveasprimeiras intimaçõesdeumoutromododeconhecimento,outro tipode felicidadequeabriaumaestreita frestanumportão,deixandoentreverumparaísoquepoucosconhecemnestavida.Nossosbeijosnos transportavamparamaisadiantedosprazeresdacarneedasatisfaçãosexual,poisoquepercebíamosalémdaquelesmomentosdatardedeprimaveraeratãovastoedifusoquantoopróprioTempo.

Page 41: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Podia estar apaixonadopor ela?Aprofunda felicidadeque sentiamedeixava ansioso.Eu estavaconfuso,minha alma oscilava entre o perigo de encarar essa alegria com uma seriedade além daconta e a estupidezde encará-la comumexcessode leveza.Naquelanoite,Osman veio com suamulher,Berrin,eosfilhosjantarnacasadosmeuspais.Lembroque,enquantocomíamos,eunãoparavadepensaremFüsun,eemnossosbeijos.Nodiaseguintefuisozinhoaocinemanahoradoalmoço.Nãotinhaodesejoespecialdeverfilme

algum,mas não podia suportar a ideia de almoçar no lugarzinho de sempre emPangaltı com oscontadores envelhecidos da Satsat e as secretárias generosas e gorduchas que gostavam tanto delembrar o quanto eu era bonitinho quando menino. Queria estar sozinho. Entregar-me a meuspensamentossobreFüsunenossosbeijos,ansiandopelachegadadasduasdatarde,aomesmotempoemquealmoçavafazendograçacommeusempregados,nopapelde“patrãoamigoehumilde”,teriasidodemaisparaaquelemomento.EnquantoeuvagavaporOsmanbey,descendopelaavenidaCumhuriyet,olhandoparaasvitrines,

fuiatraídoparaumcinemaporumcartazqueanunciavaumFestivalHitchcock.OfilmequeexibiatambémtinhaumacenadebeijocomGraceKelly.Apontadocigarroquefumeiduranteointervalode cinco minutos, a lanterna que era usada pelo lanterninha e este sorvete Alaska Frigo (cujaembalagem exponho aqui como homenagem a todas as donas de casa e todos os desocupados emandriõesquejáforamaumasessãovespertinadecinema)devemevocarodesejoeasolidãoqueeusentia na juventude. Saboreei a baixa temperatura do cinema depois do calor daquele dia deprimavera, sua atmosfera estagnada e impregnada demofo, o punhado de cinéfilos que trocavamsussurrosexcitados,eadoreideixarqueminhamentevagasseenquantoespiavanoscantosescuroseacompanhavaoscontornosdaspesadascortinasdeveludo;aideiadequedaliapoucoeuestariacomFüsunemitiaondaapósondadedeleiteportodomeucorpo.Depoisdedeixarocinema,caminheipelabalbúrdiadasruassecundáriasdeOsmanbey,passandoporalgumaslojasdetecidos,cafés,lojasde ferragense lavanderiasondeengomavamepassavamcamisas, atéchegaràavenidaTeşvikiye elembrar,enquantomedirigiaaolocaldosnossosencontros,queaquelaprecisariasernossaúltimavez.Primeiroeufaziaumesforçohonestoparalheensinarmatemática.Amaneiracomoseuscabelos

sederramavamsobreopapel,amaneiracomosuamãosedeslocavapelamesa,amaneiracomoelamordia a ponta da lapiseira, para depois passar a borracha entre os lábios como quem acaricia apontadeummamilo,amaneiracomoseubraçonuroçavanomeudevezemquando—tudoissofaziaminha cabeça girar, mas eu conseguia controlar-me. Cada vez que conseguia resolver umaequação,orostodeFüsunseenchiadeorgulho,eentãoelaseesqueciadosbonsmodosesopravaafumaçadeseucigarrodiretonolivro(àsvezesdiretonomeurosto)e,lançando-meumolharcomocanto do olho, como se dissesse: “Reparou como eu resolvi esta depressa?”, ela conseguia errar asoluçãodevidoaumsimpleserrodesoma.Incapazdeencontrarsuarespostaema,b,c,doue,elaficavatriste,depoisseaborreciaedavadesculpascomo:“Nãofoiburrice;foidescuido!”.E,paraquenãovoltasseacometeromesmoerro,eulhedizia,emtomdeautoridade,queocuidadosistemáticoerapartedeumcomportamentointeligente,eobservavaapontadalapiseirabaternopapelcomoobico de uma andorinha enquanto ela refletia sobre a questão seguinte; puxava o cabelo, nervosa,

Page 42: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

enquanto simplificava uma equação com alguma facilidade, e eu acompanhava ansioso seuraciocínio, com alguma impaciência, uma agitação crescente.Então, de repente, começávamos anosbeijar,beijosqueseprolongavampormuito tempoantesdoamore,enquantonosamávamos,sentíamos todoopesodavirgindadeperdida,davergonhaedaculpa—quepercebíamosumemcadamovimentodooutro.MaseuviatambémnosolhosdeFüsunoprazerqueelasentianosexo,seu espanto cada vez maior ao descobrir deleites sobre os quais já vinha pensando havia algumtempo. Lembrava um aventureiro dos velhos tempos que, ao final de anos sonhando com umcontinente lendário distante, parte para além-mar e, depois de atravessar oceanos, sofrer milprovaçõesederramaralgumsangue,finalmentepisaemsuasterrasesaúdacadaárvore,cadapedra,cadacriatura,comadmiraçãoeencantamento,sentindoamesmaexaltaçãonoperfumedecadaflore em cada fruto que leva à boca, explorando cada uma dessas novidades com uma curiosidadeprudenteedeslumbrada.Alémdaferramentadohomem,oquemaisinteressavaFüsunnãoerameucorpo,nemo“corpo

masculino” em geral. O que mais a absorvia eram sua própria forma e seu próprio prazer. Elaprecisavadomeucorpo,dosmeusbraços,dosmeusdedos,daminhaboca,paraencontrarospontosdoprazereospotenciaisdeseucorpo,desuapelemacia.Carecendodeexperiência,Füsunàsvezesse espantava com as possibilidades do que eu lhe ensinava enquanto seus olhos se voltavam paradentrocomumaadorávelexpressãovaga,enquantooprazerseespalhavaporsuasveiasatéchegaràsua nuca e à sua cabeça, como um tremor cada vez mais intenso, uma onda de prazer que elaacompanhavacomsurpresa,emitindoàsvezesumgritosatisfeito,eemseguidapondo-sedenovoàesperadaminhaassistência.“Podefazerissodenovo,porfavor?Façaassimdenovo!”,murmuravaeladevezemquando.Eumesentiamuitofeliz.Masnãoeraumafelicidadequepudessecompreenderouaquilatarcom

amente.Eraumacoisaqueeu sentiananucaquandoatendiaao telefone,ounapontademinhaespinhaquandocorriaescadaacima,ouemmeusmamilosquandopediacomidanorestaurantedeTaksimcomSibel,comquemmeunoivadoformalestavamarcadoparadaliaquatrosemanas.Eeraumsentimentoquepermaneciacomigoodiainteiro,comoumaromaimpregnadonaminhapele,eàsvezeseuesqueciaqueeraFüsunquemotransferiraparamim,comonasváriasocasiõesemquefiqueinoescritóriodepoisdo fimdoexpedienteparaumarelaçãoapressadacomSibel:eu tinhaaimpressãodeviveragraçadeumagrandebeatitudequeabarcavatudo.

13.Oamor,acoragem,amodernidade

Numanoite,enquantojantávamosnoFuaye,Sibeldeu-meumafragrânciachamadaSpleenquetinhacompradoparamimemParis;eisofrascoaquiexposto.Emboraeunaverdadenãogostassedeusarperfume,salpiqueiumpouconopescoçoumdiapelamanhã,sóporcuriosidade,e,depoisquenosamamos,Füsunreparounoaroma.“FoiSibelHanımquecomprouestacolôniaparavocê?”“Não,fuieumesmo.”

Page 43: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“EcomprouporqueachouqueSibeliriagostar?”“Não,querida,compreiporqueacheiquevocêfossegostar.”“VocêcontinuaaterrelaçõescomSibelHanım,nãocontinua?”“Não.”“Por favor, nãominta paramim”, disse Füsun.Uma expressão de ansiedade revelou-se em seu

rostosuado.“Euachonormal.Claroquevocêestáfazendosexocomela,nãoé?”Fixouseusolhosnosmeus,comoumamãequedesviagentilmenteofilhodamentira.“Não.”“Podeacreditarquementindovocêmemagoaaindamais.Conteaverdade,porfavor.Eporque

vocêsnãoestãotendorelações?”“SibeleeunosconhecemosnoverãopassadoemSuadiye”,disseeu,envolvendoFüsuncomos

braços. “Nossa casa de inverno estava fechada para o verão, então vínhamos até Nişantaşı. Dequalquermaneira, no outono ela foi para Paris. E eu fui até lá visitá- la algumas vezes durante oinverno.”“Deavião?”“Foi.Dezembro passado, depois que Sibel terminou a universidade e voltou da França para se

casarcomigo,nósusávamosacasadeverãoparanossosencontrosduranteoinverno.MasacasaemSuadiyeeratãofriaquedepoisdealgumtempoofriotiroutodoprazerdosexo”,continuei.“Eaívocêsresolveramesperaratéencontraremumacasaaquecida?”“Nocomeçodemarço,doismesesatrás,voltamosatéacasadeSuadiyeumanoite.Faziamuito

frio. Quando tentamos acender a lareira, a casa se encheu de fumaça e acabamos tendo umadiscussão. Depois disso, Sibel pegou uma gripe forte. Teve febre, precisou ficar uma semana decamaenuncamaisquisemosvoltarlá.”“Qualdevocêsresolveupararcomasrelações?”,perguntouFüsun.“Elaouvocê?”Derrotadapela

curiosidade,acompaixãodeulugaraodesespero,esuaexpressão,queummomentoantesdizia“Porfavorconteaverdade”,agorasuplicava“Porfavormintaparamim.Nãomemagoe”.“AchoqueSibelacreditaque,setivermosmenosrelaçõesantesdocasamento,eudareimaisvalor

aonossonoivado,aocasamentoeatéaelaprópria”,disseeu.“Masvocêestádizendoqueantesdissovocêstinhamrelações.”“Vocênãoestáentendendo.Nãoestamosfalandodeumaprimeirarelaçãosexual.”“Temrazão,nãoédissoqueestamosfalando”,disseFüsun,baixandoavoz.“Sibeldemonstrouoquantomeamava,eoquantoconfiavaemmim”,disseeu.“Masaideiade

relaçõessexuaisantesdocasamentoaindaédesconfortávelparaela…Eeuentendo.ElaestudounaEuropa,masnãoétãomodernaecorajosaquantovocê…”Fez-seumlonguíssimosilêncio.Depoisdeanosrefletindosobreosignificadodessesilêncio,acho

quehojepossoresumi-lodemaneiraequilibrada.AúltimacoisaqueeudisseraaFüsuntinhaumaimplicação.SugeriaqueaquiloqueSibelresolverafazerantesdocasamentoporamoreconfiança,Füsun tinha feitoporque eramais corajosa e tinhauma visãomaismoderna.Sofrimuitos anosderemorsoporterrotuladoFüsunde“modernaecorajosa”,poisesseelogiotambémdavaaentenderqueeunãomesentiaobrigadoanenhumaretribuiçãoespecialsóporelaterdormidocomigo.Seela

Page 44: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

era“moderna”,nãoviaosexoantesdocasamentocomoumcompromisso,nemsepreocupavacomo fato de não conservar a virgindade até o casamento, como as mulheres europeias das nossasfantasias,oucertasmulheres lendáriasquediziamvagarpelas ruasde Istambul.ComopudedizeressaspalavrasjulgandoquefossemsoarbemaosouvidosdeFüsun?Embora eu possa não ter atingido essa clareza durante o nosso silêncio, ainda assim esses

pensamentos me ocorreram enquanto eu contemplava as árvores do jardim dos fundos, quesacudiamlentamenteasfolhasaovento.Depoisquenosamávamos,deitadosnacama,conversando,semprecontemplávamosessasárvores,osedifíciosalémdelas,ovooaleatóriodoscorvosemmeioàsuaramagem.“Naverdade,nãosoumodernanemcorajosa!”,disseFüsun,depoisdeumlongointervalo.Naquele momento, entendi suas palavras como uma declaração do desconforto, e até certa

humilhação, que ela sentia conversando sobre aquele assunto tão sério, e não lhes dei a devidaatenção.“Hámulheresquepodemamarloucamenteumhomempormuitosanossemnuncaterrelações

comele”,acrescentoucautelosamenteFüsun.“Claro”,disseeu.Fez-seoutrosilêncio.“Vocêestámedizendoqueagoravocêsnãoestãomaistendorelações?PorquenuncatrouxeSibel

paracá?”“Nunca nos ocorreu”, disse eu, espantado ao constatar que isso de fato nuncame passara pela

cabeçaantesdomeuencontrocomFüsunnaboutique.“Aquieraolugaraondeeuvinhaestudareouvirmúsicacomosamigos—dequalquermaneira,foiporsuacausaquemelembreidaqui.”“Atéacreditoquenuncatenhapassadopelasuacabeça”,disseFüsuncomceticismo.“Masoque

vocêmedissedevesermentira.Nãoé?Nãoqueroquevocêmintaparamim.Nãopossoacreditarquevocênãoestejatendorelaçõescomeladurantetodoessetempo.Jure,porfavor.”“Juroquenãoestoutendorelaçõescomela”,disseeu.“Então,quandoéquevão recomeçar?Quandoseuspais foremparaSuadiyenoverão?Quedia

elesviajam?Digaaverdade.Depoisnãolheperguntomaisnada.”“ElesvãoparaSuadiyedepoisdafestadenoivado”,murmureiencabulado.“Vocêmecontoualgumamentira?”“Não.”“Porquevocênãopensaumpoucomelhor?”Deium jeitodeparecerconcentrado, epenseide fatopor algum tempo.Enquanto isso,Füsun

pegouminhacarteirademotoristanobolsodemeupaletóecomeçouabrincarcomela.“EthemBey,tambémtenhoumnomedomeio”,disseela.“Masnãointeressa.Jápensoubem?”“Pensei.Nãomentiparavocê.”“Agora,ounopassadorecente?”“Nunca”,respondi.“Nanossasituação,nãohánecessidadedementirmosumparaooutro.”“Eporquê?”Expliquei que não tínhamos planos conjuntos nem estávamos ligados pelo trabalho. Embora

escondêssemos do mundo nossos encontros, estávamos ligados pelas emoções mais puras e

Page 45: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

elementares,eporumahonestidadeapaixonadaquenãoadmitiaadissimulação.“Masvocêmentiuparamim—comtodaacerteza”,disseFüsun.“Vocênãoprecisoudemuitotempoparaperderorespeitopormim.”“Naverdade,euatéprefiroquevocêtenhamentido…porqueaspessoassómentemquandotêm

medodeperderalgumacoisa.”“Claro, estoumentindopor você…Mas não estoumentindopara você. Se você preferir, posso

mentirparavocêtambém.Vamosnosencontrardenovoamanhã.Podeser?”“Ótimo!”,disseFüsun.Dei-lheumabraçocomtodaa forçaeaspireioaromade seupescoço.Erauma fragrânciaque

combinavaalgas,mar,carameloqueimadoebiscoitosdecriança,ecadavezqueeuinalavaaqueleperfumesentia-metomadoporumaondadeotimismo,masaindaassimashorasqueeupassavacomFüsun não afetavam em nada o rumo traçado para aminha vida. Talvez porque eu não desse odevidovaloraoquesentia.Aindaassim,nãoeraporqueeutivesse(comotodososhomensturcos)aconvicção ilusóriadequeestivesse semprecerto,oumesmoporqueme imaginassecontinuamenteenganadopelosoutros;naverdade,eraporqueaindanãotinhaconsciênciadoqueestavavivendo.Foinessesdiasquecomeceiasentirqueasprimeirasfissurasseabriamemminhaalma,feridasdo

tipoquemergulhamcertoshomensnumasolidãoprofundaesombriaquenãotemcuraeduraavidainteira.Todanoite,antesdemedeitar,eujápegavaorakınageladeiraeficavaolhandopelajanelaenquanto tomavaumcopoemsilêncio.Nossoapartamento ficavanoúltimoandardeumedifícioaltovoltadoparaamesquitadeTeşvikiye,easjanelasdosquartosdavamparaosquartosdeoutrasfamíliasparecidascomanossa;desdeainfância,euencontravaumestranhoconsoloemmerefugiaremmeuquartoescuroeficarolhandoosapartamentosdosoutros.EnquantoeucontemplavaasruasdeNişantaşı,àsvezesmeocorriaque,sepretendialevaradiante

minhavidabelaefelizdamaneiracomoestavaacostumado,eraessencialquenãomeapaixonasseporFüsun.Poressemotivo,achavaimportantenãoficaramigodelanemmeinteressardemaisporseusproblemas,suaspiadasesuahumanidade.Eissonemeramuitodifícil,poissemprenosrestavamuitopoucotempodepoisdasaulasdematemáticaedenossosembatesamorosos.Quando,depoisdehorasdeamor,vestíamo-nosàspressasedeixávamosoapartamento,àsvezeseuachavaqueFüsuntambémtomavaocuidadodenão“sedeixarlevar”peloquesentiapormim.Adevidacompreensãodaminhahistóriadepende,ameuver,deumplenoentendimentodoprazerqueextraíamosdessesdocesmomentosemcomum.Tenhocertezadequeachamaquealimentaomeurelatoéodesejodereviveressesinstantesdeamor,eoquantoeuadoravaessesprazeres.Pormuitosanos,semprequerememoravaessesmomentos,tentandoentenderolaçoqueaindameuniaaela,eramimagensqueseformavamdiantedemeusolhos,bloqueandoarazão;porexemplo,Füsunsentadaemmeucolo,eeucomseu seioesquerdonaboca…Ouasgotasde suorquecaíamdomeuqueixoemsuanucaenquantoeucontemplavaadmirado suascostasmagníficas…Ou,depoisdechorarperdidamente,elaabrindoosolhosporapenasumsegundo…Ou,nasculminânciasdonossoprazer,aexpressãonorostodeFüsun…Entretanto,comomaistardeacabeiporcompreender,essasimagensnãoeramomotivodomeu

entusiasmo,esimmerasrepresentaçõesprovocantesdoqueeusentia.Anosmaistarde,enquantome

Page 46: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

esforçava por entender por que ela era tão valiosa paramim, tentei evocar não só nossos embatesamorosos,masoquartoemquenosamávamos,ascoisasquenoscercavam,osobjetoscomuns.Àsvezes,umdosgrandescorvosqueviviamnojardimdosfundosseempoleiravanavarandaepunha-seanosobservaremsilêncio.Eeraidênticoàimagemdeumcorvoquecostumavapousarnavarandadenossacasaquandoeueracriança.Nessasocasiões,minhamãedizia“Vamos,venhadormir.Vejasó,ocorvoestáolhandoparavocê”,oquesemprememetiamedo.Füsuntambémtinhaumcorvonainfânciaquelhedavaomesmomedo.Emalgunsdias,eramapoeiraeofrionoquarto;noutroseramnossoslençóisclaros,manchados,

espectrais,nossos corpos eosmuitos sonsque se infiltravamda vidaexterior,do tráfego,do ruídointermináveldasconstruçõesedospregõesdosvendedoresderua,quenosfaziamsentirquenossoamornãopertencia aomundodos sonhos,mas aomundo real.Às vezes ouvíamos o apito deumnavio ao longe, emDolmabahçeouemBeşiktaş, e juntos tentávamos adivinharque tipodenavioseria, como faziam as crianças. Enquanto continuávamos a nos encontrar, nos amando com umabandonoquenuncaparavadecrescer,acabeilocalizandoafontedeminhafelicidadenãosónessemundorealquehaviadoladodefora,mastambémnasminúsculasimperfeiçõesdocorpodeFüsun,asespinhas,asbolhas,ospelosesuaspintasescuraseadoráveis.Alémdenosso amor físico, semmedidas emarcadoporumabandono infantil, o quemaisme

ligavaaela?Ou,então,porqueeuconseguiafazeramorcomelacomtantapaixão?Terásidonossodesejosemprerenovadoquedeuorigemaoamor,outerásidoessesentimentogerado,ealimentado,também por outras coisas? Durante aquela época despreocupada em que Füsun e eu nosencontrávamossecretamentetodososdias,nuncamefizessasperguntas,agindoapenascomoumacriançavorazquedevoraumdoceatrásdooutro.

14.Asruas,aspontes,asladeiraseaspraçasdeIstambul

Certa vez, enquanto conversávamos a esmo, Füsun mencionou de passagem um professor dequemgostavanoliceu,dizendo:“Eleeradiferentedosoutroshomens!”.Quandolhepergunteioquequis dizer com isso, não respondeu nada. Dois dias mais tarde, voltei a lhe perguntar o quesignificavaser“diferentedosoutroshomens”.“Seiquea suaperguntaé séria”,disseFüsun. “Egostariade lhedaruma resposta séria.Preciso

mesmo?”“Claro…Masporqueestáselevantando?”“Porquenãoqueroestarnuaenquantodigooqueprecisolhedizer.”“Tambémprecisomevestir?”,perguntei,e,quandoelanãorespondeu,vesti-metambém.Os maços de cigarro que exponho aqui, ao lado deste cinzeiro de Kütahya, recuperado num

armárioqueficavanoutrolocaldoapartamentoetrazidoparaoquarto,estão—comoaxícaradechá (de Füsun), o copo e a conchamarinha que Füsun remexia nervosamente namão enquantocontava suas histórias— reunidos aqui para evocar a atmosfera pesada, exaustiva e asfixiante doquarto naquele momento. A fivela infantil que Füsun usava nos cabelos tem a intenção de nos

Page 47: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

lembrarqueashistóriasqueelacontoutinhamacontecidocomumacriança.A primeira história de Füsun falava do dono de uma lojinha na ruaKuyuluBostan que vendia

charutosecigarros,brinquedoseartigosdepapelaria.EsseTioIndecenteeraamigodopaidelaedevez em quando ele e esse tio jogavam gamão. Quando Füsun tinha entre oito e doze anos, eespecialmentenoverão,seupaiamandavasempreatéalojadessehomemparabuscarrefrigerantes,cigarros ou cerveja; e toda vez que ela chegava esse tio lhe dizia: “Não tenho troco. Espere umpouquinho.Voulhedarumrefrigerante”,e,usandopretextosassimparamantê-lanaloja,quandonãohavianinguémporpertoeleencontravaalgumaoutradesculpa (“Oh,veja só,minhamenina,vocêestátãosuada”)paraapalpá-la.Emalgummomento,entreosdezeosdozeanos,surgiuoCara-de-Bosta-de-Bigode,umvizinho

quevinhavisitá- losumaouduasvezesporsemanaacompanhadodaesposagorda.Opaidelagostavamuito daquele sujeito, e enquanto os dois ouviam rádio e conversavam, tomando chá e comendobiscoitos,ohomemaabraçavapelacintura,oupassavaobraçoporcimadeseuombro,ouencostavadoladodesuasnádegas,ouemsuacoxa,ondedeixavaamão,comosetivesseesquecidoqueestavaali, e tudo de um jeito que ninguémmais podia ver, demodo que a própria Füsun teve algumadificuldadeparaentenderexatamenteoqueestavaacontecendo.Eàsvezesamãodohomemcaía“acidentalmente”nocolodela,damesmaformaqueumafrutaardilosapoderiadarumjeitodecairdaárvorediretodentroda fruteira,eali ficava trêmula,úmidaequente,procurandoumcaminhocomosdedos,comFüsuntãoimóvelquantosehouvesseumcaranguejocaminhandoentreassuasnádegaseas suaspernas, aomesmo tempoemqueaquele sujeitocomaoutramão tomavacháeparticipavadaconversadasala.Quandoelatinhadezanos,umdiaFüsunperguntouaopaisepodiasentarnocolodeleenquanto

elejogavacartas,e,quandoeledissequenão(“Pare,minhafilha,estouocupado,nãoestávendo?”),umdosseuscompanheirosdemesa(osr.Feioso)convidou-aasubirnocolodele,dizendo:“Venhasentar-se aqui e me trazer sorte”, e em seguida acariciou-a de um modo que, mais tarde, elaentenderiatersidomuitolongedeinocente.As ruas,aspontes,as ladeiras,oscinemas,osônibus,aspraças lotadaseasesquinas isoladasde

Istambulerampovoadosporessestios,vizinhosecompanheirosdejogo;osquais,emborafigurassemem seus sonhos como espectros sinistros, ela não conseguia convencer-se a odiar individualmente(“Talvez porque nenhum deles tenhame abaladomuito profundamente”). O que Füsun achavadifícildeentendereraque,emborapraticamenteametadedosvisitantessetransformasseempoucotemponumdessestiosouvizinhos,seupainuncapercebessequandoaapalpavamouagarravamnoscorredores ou na cozinha.Quando tinha treze anos, ela se convenceu de que, para ser uma boamenina,nãopodiasequeixardaqueleshomensdissimulados,sórdidosedetestáveis,comsuaspatasforadecontrole.Aolongodessesmesmosanos,quandoum“rapaz”doliceuapaixonadoporela(doqueFüsunnãosequeixavanemumpouco)escreveu“euteamo”narua,bememfrenteàsuacasa,seupaiapuxouatéajanelapelaorelhaparaapontarapichação,edeu-lheumabofetada.Já que tantos Tios Indecentes tendiam a exibir-se nos parques, nos terrenos baldios e nas ruas

secundáriasdacidade,ela,comotodasasmoçasapresentáveisdeIstambul,aprendeuaevitaresseslugares.Aindaassim,haviaasexceçõesinevitáveis.Ummotivodeessasviolaçõesnãoteremabalado

Page 48: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

seuotimismofoique,emboratodosrepetissemorefrãodamesmacançãosinistra,aomesmotempoos malfeitores não conseguiam deixar de revelar suas vulnerabilidades. Houve uma legião deperseguidores—homensqueaviamnarua,queavislumbravampeloportãodaescola,emfrenteaocinemaounoônibus;algunsaseguiampormesesafio,eelafingianãoosternotado,masjamaisseapiedavadenenhumdeles (fui euqueperguntei se às vezesnão lhedavampena).Algunsde seusperseguidoresnãoeramtãoestúpidos,nempacientes,nembem-educados:nofimdecertointervalo,começavamaimportuná-la(“Vocêémuitobonita.Possoandardoseulado?Euquerialheperguntarumacoisa.Desculpe, vocêé surda?”), equandonão tinham resposta se enfureciam,dirigindo-lhegrosseriasemaldições.Algunsandavamemduplas;outrostraziamamigosparalhesmostraramoçaque vinham seguindo nos últimos dias e saber o que achavam; outros trocavam risadas lúbricasenquanto a seguiam; outros tentavam entregar- lhe cartas ou presentes; outros chegavam a chorar.Depoisqueumdeseusperseguidoresconseguiupressioná-lacontraummuro,tentandoroubar-lheumbeijoàforça,elaparoudedesafiá- loscomoàsvezesfazia.Emtornodoscatorzeanos,jáconheciatodosos truquesdoshomens e conseguia antever suas intenções;nãoconseguiammaispegá-ladesurpresa e tocá-la, beliscá-la, apalpá-la ou esfregar-se nela por trás.Os homens que estendiamosbraçosparaforadajaneladoscarrosparabolinarasmeninasqueandavampelarua,oshomensquefingiamtropeçarnasescadasparacairemcimadelas,oshomensquederepentetentavambeijá- lasnoelevador,oshomensquelhesentregavamotrococomumtoqueilícitoemseusdedos—jáfaziatempoquenenhumdelesconseguiasurpreendê-la.Todohomemquemantémumarelaçãosecretacomumalindamulheréobrigadoaouvir,roído

deciúmes,váriashistóriassobreosmuitoshomensqueseapaixonaramporsuaamadaoutentaramaproveitar-sedela, relatosqueprecisa receber com sorrisos,umaabundânciade compaixão e, emúltima instância, desprezo. No Curso de Grandes Realizações havia um rapaz gentil, afetuoso ebonito,damesmaidadedela,quesempreaconvidavaparairaocinemaousentar-senumbancodojardim da esquina, e toda vez que via Füsun ficava tão nervoso que passava algunsminutos semconseguir falar. Um dia, quando ela disse que não tinha um lápis, ele lhe deu uma canetaesferográfica,eficouextasiadoaovê-lausaracanetaparatomarnotasduranteaaula.Nomesmocurso,haviaum“administrador”—homemdetrintaepoucosanos,ocabelosempre

luzidio de brilhantina, mordaz, irritante e taciturno. Sempre encontrava algum pretexto paraconvocarFüsunaoseugabinete,como“Seuspapéisdeidentificaçãonãoestãocompletos”,ou“Faltaumadassuasfolhasderespostas”e,assimqueelaentrava,começavaafalarsobreosentidodavida,abelezadeIstambuleospoemasquetinhapublicadoatéomomentoemque,vendoqueFüsunnãolhedirigianenhumapalavradeencorajamento,dava-lheas costas,olhandopela janela, e sibilava:“Podesairagora”.Eelanemchegouafalardasverdadeirashordas—numdoscasos,umamulher—queentravam

naboutiqueşanzelizeeseapaixonavamporelaàprimeiravista,eemseguidasepunhamacomprarpilhasdevestidos,acessórioseartigosvariadosdeŞenayHanım.Naturalmentepedimaisdetalhes,esóparaaplacarminhacuriosidade,queeutentavamascarardepreocupação,concordouemcontarocasomais ridículo de todos, um homem demais de cinquenta anos, baixinho, gordo como umajarra, comumbigode escovinha,mas rico e bem-vestido.Ficava conversando comŞenayHanım,

Page 49: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

proferindodevezemquandolongas frasesemfrancêscomabocamiúda,equandosaíada lojaanuvemdeperfumequedeixavaparatrásaindacontinuavaapairarporalgumtempo,perturbandoocanárioLimon!Quantoaospretendentesquesuamãelocalizavaatravésdeumacasamenteira(supostamentesem

queFüsunsoubesse),haviaumhomemdequemelagostara,eestavamaisinteressadonelaqueemsecasar;saíracomelealgumasvezes,gostoudeleeobeijou.Noanopassado,duranteumfestivaldemúsica disputado entre várias escolas na Arena de Esportes, ela conhecera um rapaz do RobertCollege que se apaixonara perdidamente por ela. Ele ia buscá-la no portão da escola, e todo diasaíam juntos, e beijaram-se duas ou três vezes. Hilmi, o Bastardo, contudo, apesar de muitosencontros, ela nunca sequer o beijou, pois a únicameta que ele parecia ter na vida era levar asgarotaspara a cama.Sentira simpatiaporHakanSerinkan,o apresentadordoconcursodebeleza,nãoporquefossefamoso,masporque,naquelelugarondetodomundoconspiravanosbastidoreseatratavacomevidenteinjustiça,eleseesforçaraparasergentilegeneroso;eporque,quandochegouahoradasperguntasdeculturaeinteligênciaquedeixavamasoutrasmoçastãonervosas,eleassoprouantesparaelanosbastidores,comasrespostas.Maistarde,porém,quandoessecroonerdosvelhostemposcomeçouatelefonarcominsistênciaparasuacasa,elaserecusouaatendere,dequalquermaneira,suamãenãoaprovaria.Inferindocorretamentemeuciúme—emborajulgassequesedeviaà fama do cantor—, ela me contou com carinho (mas com um prazer evidente) que não seapaixonavaporninguémdesdeosdezesseisanos,eentãofezumadeclaraçãoqueatéhojemedeixachocado. Embora ela, como amaioria dasmoças, apreciasse a celebração perpétua do amor nasrevistas, na televisão e nas canções, não considerava o tema adequado a conversas fúteis, e estavaconvencidadequetodomundotendeaexagerarseussentimentossóparaadquirirumaaparênciadesuperioridade.Paraela,oamoreraumacoisaaqueprecisamosnosdevotarinteiros,arriscandotudo.Masquesóaconteceumaveznavidadecadapessoa.“Evocêjásentiualgumacoisaparecida?”,perguntei,deitadoaseuladonacama.“Nãoexatamente”,respondeuela,masentãopensoumaisumpoucoe,comumareservaquese

deviaaoescrúpuloeàcautela,contou-meumahistória.Haviaumhomemque seapaixonaraporelademaneira tão loucaeobsessivaqueelachegoua

pensarquepoderiaamá-lotambém—eraumempresáriorico,bem-apessoado,e“casado,claro”.Ànoite,quandoelasaíadaloja,ele iabuscá-laemseuMustangnaesquinadaruaAkkavak.IamatéaquelelugarpertodaTorredoRelógiodeDolmabahçeondeaspessoasestacionavam,tomavamcháeficavamolhandoparaaságuasdoBósforo,ouparavamnoestacionamentovazioemfrenteàArenadosEsportes,esentadosalinoescuro,àsvezesdebaixodechuva,passavammuitotempotrocandobeijos, e nummomento desses, esquecendo-se de suas circunstâncias, aquele homem de trinta ecincoanos apediuemcasamento.Dasprovaçõesdessehomemeupodia sorrir, controlandomeuciúme, como Füsun preferia, embora elame tenha revelado amarca de carro que ele dirigia, otrabalhoque fazia e como eram lindos seus grandes olhos verdes;mas, quandoFüsunmedisse onomedele, senti-me tomadoporuma torrentede ciúmequemeperturbou.Essehomemqueelachamava intimamente de Turgay, que fizera fortuna na indústria têxtil, era um “parceiro denegócios”eamigodafamília,tantodomeupaiquantomeuedemeuirmão.Euviacomfrequência

Page 50: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

essehomemforteesaudávelcaminhandoporNişantaşıcomamulhereosfilhos,umpaidefamíliasatisfeito. Seria meu respeito por ele— como pai de família dedicado, empresário honesto etrabalhador— o causador daquele gigantescomaremoto de ciúme? Füsunme contou como essehomem frequentara a şanzelize pormeses a fio até “conquistá- la”, e que, depois deŞenayHanımpercebersuasintenções,sentira-seobrigadoacomprarquasetodaaloja.ŞenayHanımapressionara,dizendo“Nãovámagoarocoraçãodomeuótimocliente”,demaneira

queFüsunpassouaaceitarseuspresentesemais tarde,quandosesentiumaisseguradoseuafeto,começou a encontrar-se com ele “por curiosidade”, desenvolvendo mesmo uma “simpatiainesperada” por ele. Num dia demuita neve, por insistência de Şenay Hanım, ela fora com essehomem“ajudar”umamigoqueabriraumaboutiqueemBebek;nocaminhodevolta,tinhamparadoemOrtaköyparacomeralgumacoisae,depoisqueeletomoualgunsrakısalémdaconta,“TurgayBey,oindustrialplayboy”,começouapressioná-laparaacompanhá-loatésuagarçonnièrenumaruatransversal de şişli, para “tomar um café”. Quando Füsun recusou, aquele “homem sensível eelegante”, perdendo totalmente a noção das coisas, disse: “Eu lhe compro o que você quiser!”.Mesmo assim rejeitado, em seguida ele começou a conduzir o Mustang na direção de terrenosbaldios e ruas secundárias, tentandobeijá- la novamente como antes, até que, diante da recusa deFüsunatodososseusavanços,tentou“possuí- la”àforça.“Ediziaotempotodoquequeriamedardinheiro”, contouFüsun. “Nanoite seguinte,quandoa loja fechou,não fui encontrá-lo.Nooutrodia,eleveioàloja,etinhaseesquecidodoquefez,ouresolvidodeixardeselembrar.DiscutiumuitocomigoechegouadeixarumMustangemminiaturaparamimcomŞenayHanım.Masnuncamaisentrei no carro dele. Pensandomelhor agora, eu devia ter sido dura e dito a ele que nuncamaisaparecesse.Masestavatãoapaixonadopormimquepareciaumacriança,dispostoaaceitarqualquerrejeiçãonaesperançadeverseuamorcorrespondido,oquemecomoveuenãomedeixoudizeroquedevia.Elevinhaàlojatododia,compravamuitascoisasedeixavaŞenayHanımmuitosatisfeita,e seme encontrava sozinha por ummomento em alguma esquina, com os grandes olhos verdesquasemolhados, implorava,dizendo: ‘Nãopodemosvoltar a sercomoantes?Possovirpegar vocêtoda noite. Podemos passear de carro. Não quero nada além disso’. Depois que encontrei você,comecei ame esconder na sala dos fundos sempre que ele chegava à loja. Agora ele quase nemaparecemais.”“Enoinvernopassado,nasvezesemquevocêobeijounocarro,porquenãofoimaislonge?”“Aindanemtinha feitodezoitoanos”, respondeuFüsun, franzindoas sobrancelhascomar sério.

“Sófizdezoitoanosduassemanasantesdenosencontrarmosnaloja—nodia12deabril.”Seaprova intrínsecadoamorépensaro tempo todonaamadaounoobjetode suaafeição,eu

estavarealmenteàbeirademeapaixonarporFüsun.Masdentrodemimhaviaumracionalistafriodizendo que eu só não conseguia parar de pensar em Füsun por causa daqueles outros homens.Quandomeocorreuqueociúmepodiaserumsinalaindamaisdefinitivodoamor,minharazão(pormaisalteradaqueestivesse)concluiuqueaquelamanifestaçãoeraapenastransitória.Defato,depoisde um ou dois dias, assimilei o catálogo dos “outros homens” que tinham saboreado os beijos deFüsun,votando-lhesatécertodesprezopornãoteremconseguidofazê-lairmaisalém.Noentanto,quandonosamamosnaqueledia,emvezderecairnacostumeirabem-aventurançainfantilemquea

Page 51: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

curiosidadealegresemesclavaàexuberância,descobri-metomadopeloqueosjornaischamamdeimpulsode“sujeitá- la”e,manifestandomeusdesejoscomumaforçaaindamaisbrutal,surpreendi-mecommeuprópriocomportamento.

Page 52: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

15.Algumasverdadesantropológicasimpalatáveis

Tendotocadonaquestãoda“sujeição”,gostariaderetornaraumtemaqueseencontranabasedomeu relato. Muitos leitores e visitantes já terão entendido perfeitamente do que se trata, mas,imaginando que geraçõesmuito posteriores— como, por exemplo, as que visitarão nossomuseudepois de 2100— possam julgar o termo obscuro, deixo agora de lado o medo de me repetir eenuncioaquiumasériedeverdadescruéis:nopassado,apalavrapreferidateriasido“impalatáveis”.Mil novecentos e setenta e cinco anos solares depois do nascimento de Cristo, nos Bálcãs, no

OrienteMédioenasmargensocidentaisemeridionaisdoMediterrâneo,assimcomoemIstambul,acidadequeeraacapitaldetodaessaregião,avirgindadeaindaeraconsideradaumtesouroqueasmoçasdeviamproteger atéodiadocasamento.Obedecendoaum impulsode terumavidamaisocidental e moderna, e (mais significativamente ainda) cada vez mais urbana, tornou-se práticacomumentreasjovensadiarocasamentoatéumaidademaisavançada,ecomissoovalorpráticodesse tesouro começou a declinar em certas áreas de Istambul. Os habitantes favoráveis àocidentalizaçãoesperavamque,àmedidaqueaTurquiasemodernizasse (e,a seuver, se tornassemais civilizada), o códigomoral que cercava a virgindade acabasse esquecido, juntamente com aprópria.Naquelesdias, porém,mesmonos círculosmaisprósperos eocidentalizadosde Istambul,uma jovem que abrisse mão da castidade antes do casamento ainda podia ter certeza de serseveramentejulgadaedeenfrentarasseguintesconsequências:a) As consequênciasmenos graves afetavam os jovens que, como naminha história, já tinham

decidido se casar.Nos círculos ricos e ocidentalizados, comonomeu caso e deSibel, havia umatolerânciageneralizadaaosjovenscasaisquedormiamjuntosantesdocasamentoquandojátinhamdemonstrado suas intenções “sérias”, fosse por meio de um noivado formal ou de alguma outramanifestaçãodequeestavam“destinadosaocasamento”.Aindaassim,asmoçasbem-nascidasebemformadasquetinhamdormidocomseusprováveisfuturosmaridosantesdocasamentotendiamanãoadmitirqueotivessemfeitoporconfiaremnesseshomenseemsuasintenções,preferindoalegarquetinhamdecididoignoraratradiçãoporseremlivresemodernas.b)Noscasosemqueessaconfiançaaindanãoseestabelecera,ouacondiçãodecasalaindanão

fosse socialmente reconhecida, sempre que uma jovem não conseguia “conter-se”, perdendo suavirgindade com um homem que talvez a tivesse forçado a tanto, ou por quem talvez estivesseapaixonada, ou aindapor ter sucumbido aumde vários outros inimigos daprudência— como oálcool,atemeridadeouameraestupidez—,ocódigotradicionalrequeriaqueohomem,obrigadoaproteger ahonrada jovem, se casasse comela.Foi depois deumacidente desse tipoqueAhmet,irmãodemeuamigodeinfânciaMehmet,acabaracasadocomsuamulher,Sevda;e,apesardeagoraestarmuitofeliz,auniãosederapormedodoremorso.c)Quandoohomem tentava seesquivardocasamentocoma jovem,eamoçaemquestãoera

menordedezoitoanos,opaifuriosopodialevarotransgressoraostribunaiseforçá-loaocasamento

Page 53: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

com ela. Alguns desses casos atraíam a atenção da imprensa, e naquele tempo era costumeiro osjornaispublicaremfotografiascomtarjaspretascobrindoosolhosdasmoças“violadas”,paraimpedirquefossemidentificadasnaquelasituaçãovergonhosa.Comoaimprensausavaomesmorecursoparamostrarmulheres adúlteras, vítimas de estupro ouprostitutas, havia tantas fotografias demulherescom tarjaspretascobrindoosolhosqueaspáginasdos jornais turcosdaquelaépocapareciamumbaile de máscaras. No fim das contas, eram poucas as fotos sem tarja que os jornais turcospublicavam demulheres— cantoras, atrizes ou participantes de concursos de beleza (ocupaçõesque,porsuavez,sugeriamumavirtudemaisflexível),enquantonosanúncioshaviaumapreferênciapormulherescomfisionomiasevidentementeestrangeirasenãomuçulmanas.d)Como ninguém conseguia imaginar uma jovem sensata que entregasse sua virgindade a um

homem que não cogitasse casar-se com ela, era crença amplamente difundida que as jovens queagiamassimnãopodiamestaremseujuízoperfeito.Entreosfilmesturcosmaispopularesdaépocahavia muitas histórias exemplares em torno do tema, dolorosos melodramas sobre mulheres quecompareciam a festas “inocentes” onde a limonada tinha sido “batizada” com poções soníferas,depoisdoquesuahonraera“manchada”e lhesarrebatavamseu“maior tesouro”;nesses filmes,asjovensdebomcoraçãosempremorriam,etodasasmoçasmásviravamputas.e)Quealgumasmoçaspudessemserdesencaminhadaspelodesejosexualeraaceito,claro.Mas

uma jovem tão incapaz de cálculo, tão infantil e dominada pelas paixões que não conseguissecontrolarseusdesejos,preferindoignoraras tradiçõesquerecomendavamacertaressascontascomderramamentodesangue,eraconsideradaumacriatura surreal,quedavamedoatéa seuprovávelfuturo marido — o qual ficava autorizado a imaginar que o mesmo apetite sexual pudessetransformá-loemcornodepoisdocasamento.QuandoumamigoultraconservadordosmeustemposdeExércitocontou-mequeeleeanamoradasesepararamporquetiveram“relaçõesexcessivasantesdocasamento”(emboraexclusivamenteumcomooutro),haviaumanotadevergonhaemsuavoz,eumconsiderávelremorso.f)Apesardarigidezdessasregras,edetodasaspenalidadesprevistasparaquemasdesrespeitasse

—queiamdosimplesostracismoaoassassinatoritual—,muitosrapazesdacidadeacreditavamnaexistência de inúmeras jovens dispostas a dormir com os homens só por diversão. Essas crenças,definidas pelos cientistas sociais como “lendas urbanas”, tinham tal prevalência entre os pobres, apequenaburguesia e os imigrantes recentesdo interior— que se aferravamà ideia comomesmofervor com que as crianças ocidentais se apegam à existência de Papai Noel, aceitando-a comextremafacilidadeeraríssimacontestação—quemesmoosrapazesmodernoseocidentalizadosdosbairros mais ricos de Taksim, Beyoğlu, şişli, Nişantaşı e Bebek mostravam-se suscetíveis a elas(especialmente em circunstâncias de privação sexual). Parecia universalmente aceito que essasmulheres—quejamaiscobriamacabeça,andavamsempredeminissaiaeaceitavamentregar-seaoshomens por prazer (“como asmulheres da Europa”)— viviam todas em lugares comoNişantaşı(ondesepassanossahistória).RapazescomomeuamigoHilmi,oBastardo, imaginavamqueessasmulheres lendárias fossem criaturas vorazes tão ansiosas por conhecer um rapaz rico como ele eentraremsuaMercedesqueestariamdispostasaqualquercoisa;enasnoitesdesábado,famintosdesexo,depoisdetomaralgumascervejaseseembebedar,osjovenscomoelepercorriamIstambulde

Page 54: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

carro,ruaporrua,avenidaporavenida,calçadaporcalçada,àcaçadeumadelas.Dezanosantes,quandoeutinhavinteanos,tínhamospassadoumanoitedeinvernopercorrendoasruasnaMercedesdopaideHilmi,oBastardo(oapelidoeraafetuoso,enãoumaalusãotécnicaàsuaorigem);comonãoencontramosmulhernenhuma,desaia longaoucurta, fomosatéumhoteldeluxodeBebek,ondehaviaduasjovensquegostavamdesedivertirecostumavamexecutaradançadoventreparaosturistaseosresidentesricosdemeia-idade,eque,depoisdepagarmosregiamenteseusproxenetas,dispuseram-seanosrecebernumdosquartosdohotel.Gostariadedeixarclarodesdejáquenãomesentireiofendidocasoosleitoresdeséculosvindourosemaisfelizesnãoaprovaremminhaconduta.MasqueriadefendermeuamigoHilmi:apesardagrosseriadeseucomportamentomachista,elenãoachava que toda jovem de minissaia fosse uma dessas ninfas mitológicas dispostas a dormir comqualquer homempelamera busca do prazer; ao contrário, quando via uma jovem ser perseguidapelo simples motivo de ter oxigenado o cabelo ou usar minissaia e maquiagem, ele costumavadefendê-la das hordas de malfeitores, distribuindo socos e bofetões na intenção de ensinar aosmaltrapilhosedesempregadoscomodeviamtratarasmulhereseoquesignificavaacivilização.Os leitoresmaisastutos terãopercebidoquesitueiaquiesta liçãodeantropologiaparamedaro

tempodemerecobrardociúmeardentequeashistóriasamorosasdeFüsunmeprovocavam,ciúmecujo objeto principal era Turgay Bey. Pensei que deviame sentir assim porque se tratava de umindustrialmeuconhecido,morador,comoeu,deNişantaşı— equeaquelemeuciúme,pormaisincontrolávelqueparecesse,eraumacoisanaturaleacabariapassando.

16.Ociúme

Aquelanoite, depoisde ter ouvidoFüsungabar-sedo amorobsessivodeTurgayBey, fui jantarcomSibeleospaisdelaemAnadoluhisarı,naantigamansãodoBósforoqueelesusavamcomocasadeveraneio,edepoisdojantarfuisentar-meaoladodeSibelporalgumtempo.“Querido, você bebeu muito hoje à noite”, disse Sibel. “Está contrariado com algum dos

preparativos?”“Naverdade,estoucontentedefazermosafestadenoivadonoHilton”,disse.“Comovocêsabe,a

pessoaquemaisqueriaessafestaéaminhamãe.Elaestátãofelizque…”“Entãoqualéoseuproblema?”“Nenhum…Possodarumaolhadanalistadeconvidados?”“Suamãejáentregouparaaminha”,disseSibel.Levantei-me e dei três passos, submetendo a tensão, pelo que parecia, a toda aquela casa

dilapidadaemquecadatábuadopisoemitiaumrangidodiferente,efuimesentaraoladodeminhafuturasogra.“Asenhoraseincomodariaseeudesseumaolhadanalistadeconvidados?”“Claroquenão,meufilho…”Embora eu já estivesse com a visão duplicada pelo rakı, encontrei imediatamente o nome de

Turgay Bey, que risquei com uma caneta esferográfica e, em seguida, impelido por um doce e

Page 55: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

repentinoimpulso,acrescenteiàlistaosnomesdeFüsuneseuspais,aoladodeseuendereçonaruaKuyulu Bostan, e em voz baixa disse: “Minha mãe não sabe disso, mas o cavalheiro cujo nomerisquei, embora seja um amigo apreciado pela família, recentemente exagerou em seu empenhonumavendadelinhas.Esintodizerquecausoudeliberadamenteumprejuízoconsiderávelàminhafamília”.“Nomundodehoje,aamizadeperdeuovalor,KemalBey,assimcomoahumanidade.Oslaços

antigosnãovalemmaisnada”,disseminhafuturasogra,piscandooolhocomsabedoria.“Eesperoque as pessoas cujos nomes você acrescentou nunca lhe tragam problemas semelhantes.Quantossão?”“Umprofessordehistória,amulherdele,queéparentedistantedaminhamãeedurantemuito

tempofoisuacostureira,eaadorávelfilhadeles,dedezoitoanos.”“Ah, ótimo”, disse minha futura sogra. “Convidamos tantos rapazes que começamos a ficar

preocupadascomafaltadebelasmoçascomquemelespossamdançar.”Enquanto Çetin Efendi nos conduzia para casa no Chevrolet 56 de meu pai, eu cochilei um

pouco, abrindo os olhos de vez em quando para contemplar o caos nas avenidas principais, queestavam escuras como sempre; e a beleza das antigas muralhas cobertas de rachaduras, sloganspolíticos, mofo e musgo; os holofotes das balsas da Linha da Cidade iluminando as estações deparada; e os galhos altos dos plátanos centenários que recuavamno retrovisor; e o tempo todo euescutavameupai,quetinhasidoembaladoatéadormecerpelossolavancosdocarronocalçamentodepedra,eagoraroncavabaixinho.Minha mãe irradiava satisfação ao ver que seus desejos se tornavam realidade. Como sempre,

quandovoltávamosparacasadepoisdeumasaídaànoite,nãoperdeutempoemcompartilharsuasopiniõessobreolugarquetinhaacabadodedeixareosdemaispresentes.“Sim,correutudomuitobem;elessãoótimaspessoas,corretosmassemperderahumildadenem

aelegância.Mascomoa lindamansãodelesestáemmauestado!Seráquenão têmrecursosparareformá-la?Nãopode ser isso.Masnãomeentendamal,meu filho, duvidoque você encontrasseoutrajovemtãoencantadora,graciosaesensataemtodaIstambul.”Depois dedeixarmeuspais em frente ao apartamento, tive vontadede sair andando, o queme

levouatédepoisda lojadeAlaaddin.Era láqueminhamãe levavaamimeameu irmãoquandoéramospequenos,paracomprarbrinquedosbaratosdefabricaçãoturca,chocolates,bolas,pistolasd’água,bolasdegude,cartasdebaralho,chicletesZamboquevinhamcomfigurinhas,revistasemquadrinhosetantasoutrascoisas.Alojaestavaaberta.Alaaddintinharecolhidoosjornaisqueprendiaabertos ao tronco da castanheira em frente à loja, e estava a ponto de desligar a luz. Com umasimpatiainesperada,convidou-meaentrare,enquantoempilhavaosúltimosjornaisencalhadosquetrocariapelosnovosàscincodamanhã,deixouqueeu remexesseasprateleirasatéencontrarumabonecabarata.Calculeiqueainda faltavamquinzehorasparaqueeupudessedá-ladepresenteaFüsun,edepoisenvolvê-laemmeusbraçosedeixarparatrástodosospensamentosqueociúmemetrazia;epelaprimeiravezsofripornãopoderligarparaela.Eraumadorardida,quevinhadedentroelembravaoremorso.Oqueelaestariafazendoagora?

Meus pés não me levaram para casa, mas para a direção oposta. Quando cheguei à rua Kuyulu

Page 56: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Bostan,passeiporumcaféondemeusamigoscostumavamjogarcartaseouvirrádioquandoéramosmais moços, e depois pela escola onde jogávamos futebol. Meu racionalista interior, emboraenfraquecidopelasmuitasdosesderakıqueeutomara,aindanãoestavaforadecombate,eagorameavisavaqueeupodiaprovocarumescândalo,poisquemviriaabriraportaseriacertamenteopaideFüsun.Caminheiosuficienteparaenxergaracasadelesàdistância,easluzesnasjanelas.Sódeverasjanelasdosegundoandar,alcançadaspelosramosdacastanheira,meucoraçãodisparou.Encomendeiestequadroparaexporemnossomuseu,comunicandoaoartista todososdetalhes

necessários,eeleproduziuumabelaimpressãodaluzalaranjadadolampiãoainfiltrar-senointeriordoapartamentodeFüsun,dacastanheiraquecintilavaaoluaredaprofundidadedocéuazul-escuropara além da linha dos telhados e chaminés de Nişantaşı. Mas será que também transmite aovisitante,eumepergunto,osciúmesqueeusentiaaocontemplaressepanorama?Pormaisembriagadoqueestivesse,agoraeuviaascoisascomclareza— sim,eu só fora até ali

naquela noite de lua para ter algum vislumbre deFüsun, quem sabe beijá- la, falar com ela,mastambémparamecertificardequenãoestariapassandoanoitecommaisninguém.Porqueagora,tendoido“atéofim”comumhomem,elapodiaterficadocuriosaquantoàexperiênciadosexocomalgumdosoutrosadmiradoresquetinhaenumerado.Ociúmequeinfeccionavadentrodemimeraalimentado pelo entusiasmo com que Füsun recebia os prazeres do amor físico, lembrando umacriança que tivesse ganhado um brinquedo novo; cada vez que nos amávamos, ela se entregavatotalmenteaoprazer,deummodoqueeuraramenteviranumamulher.Nãoseiquantotempofiqueialiolhandoparaasjanelas.Oqueseiéquejáerabemtardequandochegueiemcasa,comabonecaaindanamão,efuiparaacama.Namanhã seguinte, acaminhodo trabalho, rememoreioque fizerananoiteanterior, tentando

analisarociúmequeeuforaincapazdeexpulsardocoração.Nessahora,fuitomadopelomedodequepudesseestaragindocomoumidiota.BebendoumagarrafadeMeltemdogargalo,amodeloalemãIngemefitavacomarprovocantedalateraldeumedifíciodeapartamentos,aconselhando-mecautela.Penseiemdiscutirmeusegredo,emtomdebrincadeira,comamigoscomoZaim,MehmeteHilmi, demaneira a expulsar aquela obsessão daminhamente, onde só tendia a tornar-semaisintensa. Mas, como meus amigos todos pareciam gostar muito de Sibel— na verdade, eles meinvejavameaachavammuitoatraente—,duvideidequepudessemmeouvircomsimpatiaousentiralgumapenademim.Sabiaque,nomomentoemqueeuabordasseoassunto,minhazombariafalsaecalculadahaveriadedesabaraopesodaminhapaixão,atéumpontoemquemeudesejodefalarsinceramentedeFüsunnãopoderiamaissernegado,oquelevariameusamigosaconcluirqueeuestavade fato emmaus lençóis.Eassim, enquantoosônibusMaçkaeLevent (osmesmosqueeupegavacomminhamãeemeuirmãonocaminhodevoltadeTünel)passavamroncandoporbaixodasjanelasdaminhasala,concluíque,porenquanto,haviamuitopoucoqueeupudessefazerparacontrolar meu desejo por Füsun sem destruir as possibilidades do casamento feliz que eu aindaansiavamuito; e que, em vez disso, eu devia deixar as coisas como estavam, evitando o pânico eextraindoomáximodetudoqueavidameconcediacomtamanhagenerosidade.

Page 57: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

17.Todaaminhavidadependeagoradevocê

Mas, quandoFüsun se atrasou dezminutos emnosso encontro seguinte no edifícioMerhamet,esquecinamesmahoraminhasresoluções.Nãotiravaoolhodorelógio,umpresentedeSibel,edodespertadormarcaNacarqueFüsunadoravasacudiraté fazê-lo tilintar,eolhava todahoraatravésdas cortinas para a avenida Teşvikiye, andando de um lado para o outro pelo piso de tacos querangiam,incapazdedesviarospensamentosdeTurgayBey.Logotranqueioapartamentoesaíparaarua.Olhava cuidadosamente para os dois lados, tentando me certificar de que não deixaria de ver

Füsun se ela viesse naminha direção, e caminhei até a boutique şanzelize.Mas Füsun tampoucoestavanaloja.“KemalBey!Oquepossofazerpelosenhor?”,perguntouŞenayHanım.“Decidimos que eu devia comprar aquela bolsa Jenny Colon para Sibel Hanım, no final das

contas.”“Entãoosenhormudoudeideia”,disseŞenayHanım.Pudeverumasugestãodezombariaemseus

lábios franzidos, mas não por muito tempo. Se eu estava encabulado por causa de Füsun, elatambémdeviaestarsentindoalgumavergonhapormevenderconscientementeumartigofalsificado.Ambos ficamos em silêncio.Comuma lentidão tortuosa, recuperou a bolsa que fora restituída aobraçodomanequimdavitrine,limpandoapoeiraqueacobriacomocuidadoritualdeumalojistaexperimentada.DirigiminhaatençãoparaocanárioLimon,queestavanumdiapéssimo.Depoisquepaguei emepus a caminhocomminhacompra,ŞenayHanımdisse: “Agora que o

senhor confia emnós, talvez venhamais vezeshonrar anossa loja”.Eextraiuumprazeróbviododuplosentidodesuaspalavras.“Claro.”SeeunãofizessecomprassuficientescomŞenayHanım,seráqueelapoderiaplantara

sementedasuspeitaemSibel,quefrequentavasualojadetemposemtempos?Imaginar-mecaindolentamentena armadilhadaquelamulherme incomodavamenosdoqueme surpreender fazendoessescálculosmesquinhos.PenseiqueFüsunpodiaterchegadoaoedifícioMerhametdepoisqueeusaírae,nãomeencontrando,foraembora.Nodiaclarodeprimavera,ascalçadasestavamrepletasdedonasdecasafazendocompras,jovensqueseequilibravamacustonossapatosdeplataformadamodamaisrecente,somadosaminissaiasmalcortadas,ealunossaindoembandosdasescolasondeasaulasacabarampoucoantes.AindaàprocuradeFüsun,corriosolhospela floristacigana,pelovendedordecigarrosamericanoscontrabandeados(quetodomundodiziaserumpolicialàpaisana)epelosoutrosfrequentadoreshabituaisdeNişantaşı.Umcaminhão-tanquecomaspalavrasVIDA—ÁGUALIMPAna lateralpassoupelaavenida,e

Füsunemergiudetrásdele.“Onde você estava?”, perguntamos os dois em uníssono, com sorrisos de alegria surgindo nos

lábios.“Abruxaficounalojaduranteahoradoalmoçoememandouparaalojadeumaamiga.Então

chegueiatrasadaaoapartamento,evocêjátinhasaído.”

Page 58: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Fiqueipreocupado,entãofuiatéaloja.Olhe,compreiabolsacomolembrança.”Füsunestavausandoosbrincosdosquaisumestáexpostonaentradadenossomuseu.Descemosa

rua juntos. Deixamos a avenida Valikonağı e pegamos a avenida Emlak, que estava menosmovimentada.Tínhamosacabadodepassarpeloedifícioondeficavaodentistaaoqualminhamãemelevavaquandocriança(bemcomoomédicoemcujoconsultórioeusentirapelaprimeiravezadureza inesquecível do frio abaixador de língua enfiado emminha boca) quando vimos que umamultidãoseformavaaopédaladeira;algumaspessoascorriamparajuntar-seaela,enquantooutrasvinhamemnossadireção,orostocontorcidopeloquetinhampresenciado.Umacidenteacontecera;aruaestavafechada.Poucosminutosantes,ocaminhão-tanqueda“Vida

—ÁguaLimpa”enveredarapelapistadaesquerdaenquantodesciaaladeiraeatingiraumdolmus¸.Omotoristadalotaçãoestavaencolhidonumcanto,asmãostrêmulasenquantofumavaumcigarro.Opesodocaminhão-tanquetinhaesmagadoafrentecompridadoPlymouthdosanos1940quefaziaalinhaTaksim-Teşvikiye.Sósobraraotaxímetro.Portrásdamultidãocadavezmaiordecuriosos,emmeio a fragmentosde vidro epeçasquebradas, vi o corpodeumamulherpresonobancodafrente, e a reconheci comoamulherdecabelos escurosporquemeupassara ao sairdaboutiqueşanzelize.Aruaestavacobertadedestroços.PegandoFüsunpelobraço,eudisse:“Vamosembora”.Maselanãomeatendeu.Ficoualiparadaemsilêncio,olhandoparaamulherpresaaosdestroçosdocarro,atésefartar.A essa altura a multidão crescera consideravelmente, e eu estava começando a me sentir

intranquilo,menospor causadamulhermortadentrodocarro (sim, eladevia estarmorta àquelaaltura)doquepormedodeservistoporalguémconhecido,quandofinalmentesurgiuumcarrodepolícia; semdizer nada, afastamo-nos do local do acidente.Enquanto caminhávamos em silênciosubindo a rua onde ficava a delegacia, direto para o edifícioMerhamet, estávamos cada vezmaispróximosdo“momentomaisfelizdaminhavida”mencionadonoiníciodestelivro.NoarfrescodasescadasdoedifícioMerhamet,euapegueinosbraçoseabeijei.Torneiabeijá- la

quandoentramosnoapartamento,mashaviaumacanhamentoemseuslábiossempredispostos,umareservaemseusmodos.“Tenhoumacoisaparalhedizer.”“Entãodiga.”“Mas estou commedo de que você não leve a sério, ou que possa reagir exatamente domodo

errado.”“Podeconfiaremmim.”“Bom, não sei se posso,mas vou falar de qualquermodo”, disse ela. Dava a impressão de ter

tomadoumadecisão,comoseaflechajátivessedeixadooarcoenãohouvessemaismeiodecontê-la.“Sevocêreagirdomodoerrado,possoatémorrer.”“Esqueçaoacidente,minhaquerida,e,porfavor,meconte.”Elacomeçouachoraremsilêncio,comofizeranaquelatardenaboutiqueşanzelize,quandonão

podiarestituirmeudinheiro.Seussoluçoseramquaseemburrados,comoosdeumacriançafuriosaportersidoenganada.“Eumeapaixoneiporvocê.Estouloucamenteapaixonadaporvocê!”

Page 59: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Suas palavras soavam como uma acusação, mas eram ao mesmo tempo inesperadamentedelicadas.“Passoodiainteiropensandoemvocê.Pensoemvocêdamanhãànoite.”Cobriuorostocomasmãosecomeçouachorar.Devoconfessarquemeuprimeiroimpulsofoisorrircomoumidiota.Masnãosorri.Franziorosto,

assumindoumaexpressãocarinhosadepreocupação,atéfinalmenteconseguirsobrepujaràforçaosmeusprópriossentimentos.Aqui,numdosmomentosmaisprofundosesignificativosdaminhavida,haviaalgodecalculadoemmeucomportamento.“Eutambémamomuitovocê.”Emboraeuestivessesendoabsolutamentesincero,minhaspalavrasnãotinhamnemaforçanema

verdadedasdela.Füsunfoiaprimeirafalar.E,comosófaleidepoisdela,minhadeclaraçãosinceradeamorsoouapenascomoumconsolo,umadelicadeza,umeco.Agoranãofaziamaisdiferençasena verdade meus sentimentos eram mais fortes, pois ela foi a primeira a confessar a dimensãoassustadora de seus sentimentos, e assim perdeu o jogo. O “entendido em amor” dentro demim(formadocomsabe-seláqualegrégiaexperiência)exultavacomopassoemfalsodeFüsun:aofalarcom sinceridade tão excessiva, ela foi a perdedora.E, dessa reação, deduzi que a inquietação dosmeusciúmeseobsessõeslogohaveriadeceder.Quandoelacomeçouachorardenovo, tiroudobolsoumlencinhoamassadodecriança.Eua

abraceie,enquantoacariciavaapeleadoráveleaveludadadeseupescoçoedeseusombros,disseque não havia nada mais ridículo que a ideia de uma jovem linda como ela, que todo mundoadorava,emprantosporqueresolveuadmitirqueseapaixonara.Aindachorando,eladisse:“Oquevocêquerdizer—quejovenslindasnuncaseapaixonam?Se

vocêsabetantosobretudo,entãomedigaumacoisa…”.“Oquê?”“Oquevaiaconteceragora?”Essa era a verdadeira questão, e agora elame fitava com um olhar que parecia dizer que não

aceitariaumarespostavaga,docesgeneralizaçõessobreoamoreabeleza,equeeradamaisabsolutaimportânciaqueeurespondessecomclareza.Eeunão tinharespostaa lhedar.Massó fui saberdissoagora, tantosanosmais tarde.Sentindo

que aquela questão podia nos separar, experimentei uma inquietação pela qual eu a culpava emsegredo,ecomeceiabeijá- la.Impelidos pelo desejo e pelo desamparo, nossos beijos foram ficando mais apaixonados. Ela

perguntousea respostaeraaquela.“É”,disseeu.Satisfeita,elameperguntou:“Não íamosestudarmatemática?”.Quandolhedeimaisumbeijoàguisaderesposta,elaretrucoumebeijandomaisumavez. Abraçar, beijar— parecia tão mais cabível que qualquer contemplação do impasse a quetínhamoschegado,anteopoder irresistíveldomomentopresente.Enquanto tiravaa roupa,Füsuntransformou-sedemeninaassustadaeentristecidaporumapaixãosemfuturonumamulhersaudáveleexuberanteprontaaentregar-seaoamoreaoprazersexual.Eassimingressamosnoquechameidemomentomaisfelizdaminhavida.Naverdade,ninguémreconheceomomentomaisfelizdasuavidanoinstanteemqueovive.Pode

serque,nummomentodegrandealegria,alguémpossaacreditarsinceramentequeestávivendoesse

Page 60: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

instantedeouro“agora”,mesmojátendovividoantesummomentoigual,mas,penseoquepensar,numa parte de seu coração ainda acreditará na possibilidade de ummomento futuro mais feliz.Porque ninguém, especialmente alguém que ainda seja jovem, consegue seguir em frente com aconvicçãodequeascoisassópodempiorar:seumapessoasenteumafelicidadequealeveapensarqueseencontranomomentomaisfelizdasuavida,terásempreaesperançadequeseufuturovenhaaserigualmentelindo,ouaindamais.Mas quando chegamos ao ponto em que nossas vidas assumem sua forma final, como um

romance, somosperfeitamentecapazesde identificarnossomomentomais feliz,que selecionamosemretrospecto,comofaçoagora.Paraexplicarporqueescolhiessemomentoentretodososoutros,tambéménatural, enecessário, recontarnossashistórias desdeo começo, exatamente comonumromance.Masdesignaressemomentocomoomaisfelizdaminhavidaéreconhecerqueseencontranumpassadodistante,quenuncamaishádevoltar,equeapercepçãodessemomento,portanto,édolorosa.Sópodemossuportaressadorpossuindoalgumacoisaquepertençaàqueleinstante.Essaslembrançaspreservamascores,astexturas,asimagenseosprazeresdamaneiracomoforam,commaisfidelidade,nofundo,quealguémcomquemtenhamosdivididoessesmomentos.Nósnosamamospormuitíssimotempo,chegandoemalgummomentointermediárioaumponto

emqueficamososdoissemfôlego;euacabaradebeijarosombrosmolhadosdeFüsunepenetrá-laportrás,mordendoprimeiroseupescoçoedepoissuaorelhaesquerda,efoientão,nomomentomaisfeliz daminha vida, que o brinco, cuja forma eu deixara de perceber, desprendeu-se da adorávelorelhadeFüsunecaiunolençolazul.Qualquerpessoaremotamenteinteressadanapolíticadacivilizaçãosaberáqueosmuseussãoos

repositóriosdosartigosdosquaisaCivilizaçãoOcidentalderivaariquezadoseuconhecimento,quelhe permite dominar o mundo. Da mesma forma, quando um colecionador autêntico, de cujosesforçosdependemessesmuseus,reúneseusprimeirosobjetos,quasenuncaseperguntaqualseráodestino final de seu tesouro. Quando os primeiros objetos coletados chegaram às suas mãos, osprimeiros colecionadores genuínos— que mais tarde viriam a expor, organizar e catalogar suascoleções (nosprimeiroscatálogos,que foramasprimeirasenciclopédias)—nunca reconheciamovalorrealdessesartigos.Depoisquepassouoquechamodeomomentomaisfelizdaminhavida,chegandoahoradenos

separarmos,obrincoperdido, semque soubéssemos, ainda seaninhavaentreasdobrasdo lençol.Füsunolhou-menosolhos.“Todaaminhavidadependeagoradevocê”,disseelaemvozbaixa.Oquemedeixoucontenteeaomesmotempoalarmado.Nodia seguinte fezmuitomais calor.Quandonos encontramosno edifícioMerhamet, tanto vi

medoquantoesperançanosolhosdeFüsun.“Perdiumdosbrincosqueestavausando”,disseeladepoisquenosbeijamos.E então eu disse: “Está aqui, querida”, enquanto enfiava a mão no bolso direito do paletó

penduradonascostasdeumacadeira.“Ah,sumiu!”Porummomento,tiveummaupresságio,umasugestão de desígnio maléfico, mas então lembrei que tinha vestido um paletó diferente naquelamanhã,porcausadotempomaisquente.“Deveestarnobolsodomeuoutropaletó.”

Page 61: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Traga amanhã, por favor. Não se esqueça”, disse Füsun, arregalando os olhos. “Gosto muitodele.”

Page 62: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

18.AhistóriadeBelkıs

Oacidentesaiucomdestaqueemtodososjornais.Füsunnãotinhalido,masŞenayHanımpassouamanhãinteirafalandodamulhermorta—atépareceraFüsunquetodomundoqueentravanalojasótinhavindofalardoacidente.“ŞenayHanımvaifecharalojaamanhãnahoradoalmoço,paraeutambém poder ir ao enterro”, disse Füsun. “Ela está se comportando como se todas adorássemosaquelamulher.Masneméverdade…”“Equaléaverdade?”“Elavinhasempreàloja,éfato.Pegavaosvestidosmaiscaros—osquetinhamacabadodechegar

deRomaoudeParis—edizia:‘Vouexperimentaresseaquiparavercomofica’,masdepoisdeusá-loemalgumagrandefestatraziadevolta,dizendo:‘Nãoficoubom’.ŞenayHanımficavafuriosa—depoisdetodomundotervistoaquelevestidousadonumafesta, ficavamaisdifícilvendê-lo.Eelatambémcostumavapechincharmuito,demaneiraqueŞenayHanımestavasemprefalandodelaportrás,masnãotinhacoragemdecontrariá- la,porqueeraligadaagenteimportante.Vocêaconhecia?”“Não.Masporalgumtempoelanamorouumamigomeu”,respondi,parandonessepontoporque

achei que preferiria contar os detalhes sórdidos dos antecedentes a Sibel, mas me espantei aoconstatarqueessecálculomefaziasentircomoummentiroso,poismenosdeumasemanaantesnãome causaria nenhum desconforto esconder alguma coisa de Füsun ou mesmo contar- lhe umamentira—asmentiras,achavaeu,eramumaconsequênciainevitável,eatéagradável,davidadeumplayboy.Penseisedeveriaresumirahistóriaalimesmo,adaptando-aparaseuconsumo,maspercebiqueistoseriaimpossível.Vendoqueelanotaraqueeuocultavaalgumacoisa,eulhedisseoseguinte:“Éumahistóriamuitotriste.Comoessamulhertinhadormidocomvárioshomens,eramalfalada”.O que não correspondia à minha verdadeira impressão. Foi só minha maneira descuidada de

responder.Fez-seumsilêncio.“Não se preocupe”, disse Füsun, quase sussurrando. “Eununca irei dormir commais ninguém

pelorestodaminhavida.”De volta à minha sala na Satsat, sentia-me em paz comigo mesmo, e pela primeira vez em

muitíssimo tempomedediqueiao trabalho, sentindoprazeremganhardinheiro.ComKenan,umnovoescriturárioqueeraumpoucomaisjovemeousadodoqueeu,percorrialistadenossoscentoetantosdevedores,parandodevezemquandoparafazeralgumgracejo.“E o que vamos fazer comCömert Eliaçık, Kemal Bey?”, perguntou ele, com um sorriso e as

sobrancelhaserguidas,jáqueonomedohomemsignificava“generosomão-aberta”.“Vamos precisar abrir amão dele um poucomais.Não podemos fazer nada se o nome dele o

condenaaperderdinheiro.”Aoanoitecer, a caminhodecasa,passeipelos jardinsda antigamansãodopaxá,queaindanão

tinhapegadofogo,easpireia fragrânciadas tílias,procurandoasombradosplátanosdeNişantaşı,agora totalmente floridos. Enquanto contemplava os motoristas que buzinavam furiosamente noengarrafamento, estava satisfeito, a tempestade amorosa passara, nãome sentiamais assolado pelociúme e tudo voltara aos trilhos. Chegando em casa, tomei uma ducha. Quando fui pegar uma

Page 63: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

camisalimpaepassadanoguarda-roupa,lembrei-medobrinco;nãootendoencontradonobolsodopaletóondejulgavatê- lodeixado,vasculheimeuguarda-roupaecadaumadasgavetas,verifiqueioreceptáculoondeFatmaHanımguardavabotõescaídos,barbatanasdecolarinhoequaisquermoedasouisqueirosqueencontrasseemmeusbolsos,mastampoucoestavalá.“FatmaHanım”,pergunteibaixinho,“vocêviualgumbrincoporaqui?”Oquartoclaroaolado,ondemeuirmãotinhamoradoatésecasar,exalavaumaromadevapore

lavanda. Fatma Hanım tinha passado roupa a tarde inteira, e agora, enquanto arrumava nossoslenços, camisas e toalhas, disse que não tinha visto “nem brinco nem nada”. Da pilha de meiasdesemparelhadasdacesta,elapuxouparaforaumpé,comosefosseumgatinhodesobediente.“Escuteaqui,UnhasdeGarra”,disseela,usandoumdosapelidosquemepôsquandocriança,“se

você não cortar essas unhas, não vai termaismeia nenhuma sem furo.Não voumais cerzir essasmeiasparavocê—epontofinal.”“Estábem,FatmaHanım.”Na sala de estar, no canto que dava para amesquita de Teşvikiye,meu pai, coberto com um

alvíssimo avental, estava sentado numa cadeira, enquantoBasri, o barbeiro, cortava seu cabelo, eminhamãe,comosempre,ficavasentadaàsuafrente,dando-lheasnotíciasmaisrecentes.“Venhaatéaqui”,disseelaquandomeviu.“Estoucontandoasúltimasnovidades.”Basrifingiaconcentraçãoemseutrabalho,masparoudecortare,comumsorrisoqueexibiaseus

dentesimensos,deixouclaroquevinhaescutandoatentamenteotempotodo.“Quaissãoasnovas?”“VocêsabequeofilhomaisnovodeLerzanqueriavirarpilotodecarrodecorrida.Poisopaidele

nãodeixou,eele…”“Eusei.BateuaMercedesdopai.Depoisligouparaapolíciadizendoquetinhasidoroubada.”“Issomesmo.Masvocêouviufalardoqueşazimentfezparacasarsuafilhacomofilhodafamília

Karahan?Aondevocêvai?”“Nãovoujantaremcasa.VoupegarSibel.Fomosconvidadosparajantarfora.”“Então vá dizer a Bekri para ele não fritar à toa a tainha vermelha hoje à noite. Ele foi até o

mercadodepeixedeBeyoğlumaiscedosóporsuacausa.Prometaqueamanhãvocêvemalmoçarparapodermoscomeropeixe.”“Estáprometido!”O canto do tapete fora enrolado para protegê-lo dos cabelos finos e brancos do meu pai que

caíam,mechaamecha,nopisodemadeira.Tirei o carro da garagem e, enquanto sacolejava pelas ruas calçadas de pedra, liguei o rádio e

acompanheioritmodamúsicabatucandocomosdedosnovolante.Numdeterminadomomento,cruzeiapontedoBósforoechegueiaAnadoluhisarı.Sibelmeouviuecorreuparaocarrosegundosdepoisdeeubuzinar.Aprimeiracoisaqueeudissefoiqueamulherquetinhamorridonabatidadavéspera tinha sido amante de Zaim (“Você quer dizer ‘Zaim-Merece-Tudo’”, disse ela com umsorriso);eentãoeulheconteitodaahistória.“OnomedelaeraBelkıs;eraumpoucomaisvelhaqueeu,trintaedoisoutrintaetrêsanos,acho.

Eradefamíliapobre.Depoisqueentrouparaasociedade,seusinimigoscomeçaramafalarsobreo

Page 64: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

xale que sua mãe usava na cabeça. No final dos anos 1950, quando Belkıs estudava no liceu,conheceuumrapaznasfestividadesdecomemoraçãodoDezenovedeMaio,eelesseapaixonaram.Esserapaz,Faris,eradaidadedela,ofilhocaçuladafamíliaKaptanoğlu,queàquelaalturatinha,comovocêsabe, feito fortunacomanavegação, transformando-senumadas famíliasmaisricasdeIstambul.Oromanceentreo rapaz ricoeamoçapobreparecia ter saídodealgumfilme turco,edurou vários anos. A paixão entre eles era tão grande, ou eles foram tão estúpidos, que esses doisadolescentesdormiamjuntoseaindasegabavamdisso.Semdúvidadeveriamter secasado,masafamíliadorapazseconvenceudequeapobremoçasótinhadesistidodasuavirtudecomoumardilparaforçá-loasecasar,equetodossabiamdisso,motivopeloqualseopuseramaonoivado.Ficouclaroquefaltaramaorapazaforça,adisposiçãomentalearendapessoalparaenfrentarafamília,pegaramoçapelamãoecasar-secomela.Assim,asoluçãoda família foidespacharorapazparaPariscomamoça,ondepoderiamviver foradasvistascomoumcasalnãocasado.Trêsanosmaistarde,devidoàsdrogasouaodesespero,orapazdealgummodomorreuemParis.EmvezdefugircomumfrancêsenuncamaisvoltaràTurquia,comosepodiaesperarnessasituação,BelkısvoltouaIstambulecomeçouuma sériedecasoscomváriosoutroshomens ricos, tendoumavidaamorosamuitoanimadaeatraindoainvejasilenciosadeoutrasmulheresdasociedade.Seusegundoamantefoi Sabih, o Urso; quando ela o deixou, teve uma aventura com o filho mais velho da famíliaDemirbağ,quenaépocatinhaacabadoderomperoutroromance.Comoseupróximoamante,Rıfkı,estavaemsituaçãosemelhante,oshomensdasociedadecomeçaramareferir-seaelacomo‘AnjodaConsolação’,etodossonhavamterumcasocomela.Quantoatodasasmulheresricasecasadasquenuncadormiramcommaisninguémnavidaalémdomarido,ounomáximotinhamtidoumúnicoamanteemmeioamuitavergonhaemuitosegredo,masnuncacomsatisfação,quandoviramBelkıscortejar abertamente os solteirosmais cobiçados, para não falar de seus amantes secretos casados,ficaramtãoenciumadasqueteriamsidocapazesdequalquercoisasetivessemaoportunidade.Masnem foi necessário. Como a vida difícil já lhe custara parte da beleza e seus recursos vinham seesgotando,manter-seapresentáveleraumalutaparaela.Demodoqueseufimestavacadavezmaispróximo.Pode-sedizerqueoacidentepoupouessamulherdemuitosofrimento.”“Fico espantada por nenhumdesses homens ter se casado com ela”, disse Sibel. “Significa que

ninguémaamouosuficienteparacorrerorisco.”“Naverdade,oshomensseapaixonamloucamentepormulherescomoela.Mascasar—aí jáé

outrahistória.SeelativesseconseguidosecasarcomorapazdafamíliaKaptanoğlu,Faris,elogonocomeço,semterdormidocomele,aspessoaslogoseesqueceriamdequeafamíliadelaerapobre.Ou, seBelkıs fossede família rica, teriam ignoradoque jádeixarade servirgemantesde secasar.Mas,comoelavirouascostasparaas regrasda sociedadeemergulhounavida sexual, todasessasmulheres,poucoantestãoenciumadas,começaramachamá-lade ‘ProstitutadaConsolação’.Masjustamente por isso, por ela ter se entregado ao primeiro rapaz que amou, por se entregar a seusamantessemesconderofatodeninguém,Belkıstalvezmereçatambémonossorespeito.”“Vocêsenterespeitoporela?”,perguntouSibel.“Não,parafalaraverdade,eutinhacertaantipatiapelafalecida.”A festa— esqueci a ocasião— erano vastopátio cimentadodeumacasana costadeSuadiye.

Page 65: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Sessenta ou setenta pessoas se misturavam ali de pé, com seus copos de bebida nas mãos,conversando quase aos sussurros enquanto olhavam para ver quem estava presente e quemmaisacabara de chegar.Quase todas asmulheres pareciam preocupadas com o comprimento de suassaias,asdesaiascurtasdemonstrandoumdesconfortoextremo,imaginandoquesuaspernasfossemcurtasougrossasdemais.Talvezsejaporissoque,àprimeiravista,todasparecessemgarotasdebardesajeitadasecarrancudas.Bemaoladodopátio,numcais,umalargabocadeesgotodespejavaseuconteúdo no mar e exalava um odor característico, enquanto garçons de luvas brancasziguezagueavamemmeioaosconvidados.Depoisdecircularumpouco,encontreium“psiquiatra”queacabaradevoltardosEstadosUnidos

e tinha aberto um consultório; ele me entregou seu novo cartão no momento em que nosencontramos e, incitado por uma senhora animada de meia-idade, apresentou uma definição doamoraogrupodeconvidadosempenhadosemconhecê-lo:quandoalguémabriamãode todasasoutras oportunidades, decidindo persistir em relações íntimas com uma única pessoa, essesentimento, que segundo ele conduzia à felicidade, era “o amor”. Depois desse discurso sobre oamor, certamãe, aome apresentar sua linda filhadedezoito anos, pediumeuconselhoquanto àcidadeparaondedeviamandarafilhaterminarosestudos,comosequisessepoupá-ladasseguidasgreves políticas das universidades turcas. A conversa começou com comentários sobre umareportagempublicadanosjornaisdaqueledia,querelatavaque,afimdeevitaroroubodasprovasdovestibular,osimpressorescontratadostinhamsidosubmetidosaumlongoisolamento.Muitomaistarde,Zaimapareceunopátio.Faziaumabelafiguracomsuaspernascompridas,seu

queixobem formado e seus belos olhos, e sobretudopor chegar acompanhadodamodelo alemã,Inge,igualmentealtaeelegante.OquemaisincomodavaemInge,comseusolhosazuis,suaspernascompridaseesguias,suapeleclaraeseuscabelosnaturalmentelouros,eraamensagemimpiedosapara asmulheres da sociedade de Istambul: pormais que descolorissem os cabelos, afinassem assobrancelhasevasculhassemaslojasàprocuraderoupasqueasfizessemsentir-semaiseuropeias,apelemaisescuraeasilhuetamaischeianuncaeramplenamentecontrabalançadasporessesesforços.Masaaparêncianórdicadessamulhermeimpressionavamenosqueseusorrisotãofamiliar,queeuapreciava ver todo dia nos anúncios de jornal e nas laterais de alguns edifícios residenciais emHarbiye— era como se reencontrasse uma velha amiga. Em pouco tempo, um grande grupo seformarainevitavelmenteaseuredor.Na volta para casa, Sibel rompeu o silêncio. “Esse Zaim-Merece-Tudo, ele sim, eu acho uma

pessoadecente.Masessamodeloalemãdequinta, comoardequemestádisposta adormircomqualquer xeque árabe que lhe fizer alguma proposta… Já não bastava usá-la numa propaganda?Aindaprecisadesfilarcomelaporaí,paraquetodomundosaibaquesedeitoucomela?”“DoucréditoaZaimpelaideiadecriaressenovorefrigerante.Lembroqueumavezelemedisse

queos turcos iriamgostarmuitomaisdeumprodutomoderno turco se vissemqueumocidentaltambémgostava…Sabe,ébemprovávelque,aomodosimpáticodela,essamodelonãovejaamenordiferençaentrenóseosxequesárabes.”“Quando fui ao cabeleireiro, vi uma foto dela com Zaim noHafta Sonu, nadamenos que na

páginacentral,comumaentrevistaeumafotomuitoprovocanteemqueelaapareceseminua.”

Page 66: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

O silêncio voltou e permaneceu por algum tempo. Finalmente eu sorri e disse: “Sabe aquelesujeitoqueestavatagarelandoemmaualemão,elogiando-apelosanúncioseolhandoparaoscabelosdela sóparaevitarolharparaos seus seiosquequasepulavampara foradovestido?Aquele sujeitoaltoeacanhado,Sabih,oUrso…PoiselefoiosegundoamantedeBelkıs”.NoentantoquandopassamosporbaixodapontedoBósforo,quaseocultapelonevoeiro,vique

Sibeltinhaadormecido.

Page 67: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

19.Nofuneral

Nodiaseguinteaomeio-dia,deixeiaSatsatefuiparacasacomertainhavermelhafritacomminhamãe,comoprometera.Quando removemosapele rosadadopeixe,deliciosae reluzente,ecomocuidado de um cirurgião extraímos a espinha fina e translúcida, conversamos sobre o estado dospreparativosparaafestadenoivadoeasmaisrecentesnovidades(apalavrapreferidadaminhamãeparamexericos).Contandocomaspessoasquetinhamfeitoopossívelparaseremconvidadasemaisalguns conhecidos afoitos cujas expectativas ela não tinha coragem de frustrar, a lista chegava aduzentosetrinta,atéaquelemomento;omaîtredoHiltonjáforaobrigadoatomarmedidasespeciaisparaassegurar-sedequehaveria“bebidaestrangeira”—otermofaziasoarcomoumfetiche—emquantidadesuficiente.Paratanto,entraraemcontatocomcolegasdeoutroshotéisimportantes,alémdebajularosimportadoresdebebidacomquemcostumavafazernegócio.QuantoaİsmetSedosa,şaziye,şermin, aCanhota,MadameMualla e todas as outras costureiras que trabalhavam para assenhorasdasociedade,quetinhamsidoamigaseconcorrentesdamãedeFüsun,seuscadernosdeencomendasestavamtomadosesuasaprendizescosturavamtodanoiteatéoamanhecerparatrajarnossasconvidadascomosrequintadosvestidosquetinhamescolhidoparaafestadenoivado.Minhamãepareciaterocontroledetudooqueserelacionasseaonossomundo,excetopormeupai,quevinhasequeixandodecansaçoeagoracochilavanoquarto.Nãoeraumproblemadesaúde,achavaela,maseleandavamelancólico,emboranãopudesseimaginaroquepodiaaborrecê-lotantocomofilhopertodenoivar,e veiome sondarpara saber seporacasoeu sabiadealgumacoisa.QuandoBekri,comofaziadesdeaminhainfância,trouxeopilafqueinvariavelmenteserviadepoisdopeixeparaajudaradigestão—oqueeraumaregrainflexívelnanossacasa—,quasetiveaimpressãodequeopeixetinhasidoaúnicafontedaboadisposiçãodeminhamãe,poisassimquefoiretiradodamesaelaassumiuumtomdelamúria.“Estoucomtantapenadessamulher”,disseela,comumadorgenuína.“Elasofreutanto,etantas

pessoastinhaminvejadela.Naverdadeelaeraboapessoa.Muitoboapessoa.”SemjamaissereferiraBelkıspelonome,minhamãecontoucomo,muitosanosantes,quandoo

filhomais velhoda famíliaDemirbağ,Demir, fora amantedela,meuspais tinhampassadoalgumtempocomosdoisemUludağ;e,semprequemeupaieDemirsaíamparajogarpôquer,minhamãeeBelkısficavamacordadasatébemdepoisdameia-noite,tomandochá,fazendotricôeconversandono“barrústico”dohotel.“Ela sofria tanto, coitada, primeiro por ser tão pobre e depois por causa dos homens. Tanto

sofrimento”,disseminhamãe,antesdesevirarparaFatmaHanımedizer:“Leveomeucaféparaavaranda.Vamosassistiràpassagemdocortejo”.Com a exceção de meus anos nos Estados Unidos, passei toda minha vida nesse grande

apartamento,cujasaladeestareamplavarandadavamparaamesquitadeTeşvikiye,ondeumoudoisfuneraisocorriamtododiae,quandoeueracriança,essesespetáculosnosiniciaramnomistérioassustador da morte. Não só os ricos de Istambul, mas também políticos, generais, jornalistas,cantoreseartistasfamosostinhamsuasprecesfúnebresrecitadasnamesquita,consideradaumponto

Page 68: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

departidadeprestígioparaa“jornadafinal”,deondeocaixãoeracarregadolentamentenosombrosatéapraçadeNişantaşı—numcortejoacompanhado,dependendodaposiçãodofalecido,porumabanda militar ou um conjunto do conselho da cidade tocando a “Marcha fúnebre” de Chopin.Quandomeuirmãoeeuéramospequenos,púnhamosnosombrosgrandesepesadasalmofadasdodivã, e Bekri Efendi, Fatma Hanım, Çetin, o motorista, e outros nos acompanhavam enquantocantarolávamosocantochãofúnebre,oscilandoumpouco,exatamentecomofaziamoscarregadoresdosmortos,emnossocaminhocorredorafora.Poucoantesdeumfuneraldeamplointeressepúblico— se o falecido eraumprimeiro-ministro,umempresário famosoouumcantor—, a campainhatocava,evisitasinesperadasapareciam,dizendo:“Estavasópassandoporaqui,epenseiemdarumpulo”, e, emboraminhamãenunca sepermitisse abrirmãode suasboasmaneiras,mais tardeelacomentava: “Não vieram nos ver,mas assistir ao funeral”. E assim começamos a pensar naquelesfuneraisnãocomoumaformadeconsolodiantedadordamorteouumaoportunidadedeprestaraúltimahomenagemaofalecido,mascomoumadivertidadistração.“Venhaparaesselado,daquivocêvêmelhor”,disseminhamãequandofuimesentarpertodela

namesinhadavaranda.Masquandoelameviuempalidecerderepente,semacharamenorgraçaem observar a multidão de acompanhantes, chegou à conclusão errada: “Sabe, não é seu paicochilando ládentroqueme impededecomparecerao funeraldessamulherdequemeugostavamuito.Sãooshomensqueestãolá,comoRıfkı,comoSamim,queestãodeóculosescurosnãoparaprotegerosolhosvermelhos,masparaesconderquenãoderramaramumalágrimasequer.Bom,dequalquermaneira,daquisevêmuitomelhor.Oqueestáhavendocomvocê?”.“Nada.Estoubem.”Além do portão que dava para o pátio da mesquita de Teşvikiye, na área sombreada onde as

mulheres se aglomeravam como que por instinto, eu tinha visto Füsun emmeio às mulheres decabeçacobertaeàsmulheresdasociedadeque,paraaocasião,tinhamamarradolençoschiquesedaúltimamodanacabeça,e,naquelemomento,meucoraçãodisparou.Elacobriraacabeçacomumlençocordelaranja.Emlinhareta,haveriaunssetentaouoitentametrosentrenósdois.Elarespiravaefranziaorosto,suapelemaciatranspiravaumpoucosobocalordomeio-dia;incomodadacomamassademulheresdecabeçacobertaquea sufocavam,elamordiao lábio inferior, transferindoopesodeseucorpoesguiodeumpéparaooutro—claro,nãomelimiteiavertodasessascoisas,massenti cada uma delas dentro de mim. Tive o impulso de gritar seu nome e acenar para ela davaranda,mascomonumsonhoeunãotinhavoz,emeucoraçãocontinuavaabatermuitoforte.“Mamãe,precisoir.”“Ah!Oquedeuemvocê?Seurostoestátotalmentebranco.”Na rua, fiquei olhando para Füsun de longe. Şenay Hanım estava ao lado dela. Enquanto ela

escutavaaconversaentresuapatroaeumaclientepotencial,oucostumeira,mulhercorpulentamaselegante, ela passava os dedos pelas pontas do lenço que amarrara com um nó canhestro sob oqueixo.Olençolheconferiaumabelezasantaeorgulhosa.Osermãodesexta- feiraeraemitidoemaltosbradospelosalto-falantesdopátio,masosomeratãoruimqueninguémconseguiaentenderoqueopregadordizia,aforaumaspoucaspalavrasafirmandoqueamorteeraaúltimaestaçãoesuarepetiçãorudeeinsistentedapalavra“Alá”,comumintuitocalculadodeintimidação,penseieu.De

Page 69: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tempos em tempos, alguém semisturava correndo àmultidão, como se chegasse atrasado a umafesta,e,quando todasascabeças seviravam,umapequena fotografiapretoebrancodeBelkıseraafixada à gola do recém-chegado. Füsun examinava com cuidado todos à sua volta, enquanto secumprimentavamcomumaondaqueseespalhavapelamultidão,braçosabertosparaumabraço,umgestodeconsoloepreocupaçãomútua.Como todomundo,Füsun tambémtraziaa fotografiadeBelkısnagola.Tinha se transformado

emcostumenosfuneraisdevítimasdeassassinatospolíticos(tãofrequentesnaquelesdias),elogoseespalhara entre a burguesia de Istambul. Muitos anos mais tarde, consegui reunir uma pequenacoleçãodessesobjetos,queexponhoaqui.Quandomultidõesdemembrosda sociedadedeóculosescuros exibiam esses símbolos, como faziam os militantes de direita e de esquerda, as fotosconferiamaumfuneralcomumdasociedadeintimaçõesdeumidealpeloqualvaliaapenamorrer,a sugestão de um objetivo comum e certa gravitas. Imitando o estilo ocidental, a fotografia vinhasempre cercadadeumamoldura preta, e por isso flagrantes antes felizes enada apropriados paracomunicadosdefalecimentoassumiamaestampadoluto,eosretratosmaisfrívolospodiamobternamorteadignidadesombriageralmentereservadaàsvítimasdeassassinatospolíticos.Sem encarar ninguém, segui apressado para o edifícioMerhamet, onde esperei impaciente por

Füsun.Devezemquandoespiavaorelógio.Muitomaistarde,esemperceber,mepegueiafastandoas cortinas empoeiradas para olhar através da janela sempre fechada que dava para a avenidaTeşvikiye,eviocarrofúnebrecomocaixãodeBelkıspassarlentamente.Algumaspessoaspassamavidainteiramergulhadasnador,devidoaoinfortúniodeteremnascido

pobres, estúpidasou seremexcluídasda sociedade— pensamentoquedesfilouporminha cabeçacomomesmoritmolentoecomedidodocaixão,depoisdesapareceu.Desdeosvinteanosdeidade,eusentiaqueumaarmadurainvisívelmeprotegiadetodotipodeproblemasedesgraças.Edecorriadisso que pensar muito no sofrimento alheio podia deixar-me também infeliz e, assim, perfurarminhaarmadura.

20.AsduascondiçõesdeFüsun

Füsun chegou atrasada. Issome deixou aborrecido,mas ela estavamais perturbada do que eu.Explicou que tinha se encontrado com sua amigaCeyda,mas suas palavras soarammenos comodesculpaque comoumaacusação.OperfumedeCeyda transferira-seumpoucopara ela.Füsunconhecera Ceyda durante o concurso de beleza. E a amiga tampouco fora bem-sucedida, tendoacabadoemterceirolugar.MasagoraestavamuitofelizporqueestavasaindocomofilhodafamíliaSedirci,eorapazerasério;estavampensandoemcasamento.“Éótimo,nãoacha?”,disseFüsun,equandoolhouemmeusolhossuasinceridadeerairresistível.Euestavaapontodeacenarminhaconcordânciaquandoelamedissequeumproblemahavia

surgido.ComoorapazdafamíliaSedircieramuito“sério”,nãoqueriaqueCeydatrabalhassecomomodelo.“Por exemplo, agora que é verão, ela foi contratada para fazer um anúncio de um balanço de

Page 70: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

jardim.Masonamoradodela émuito rígido,muitoconservador.Epor isso aproibiudeaparecernumcomercialdeumbalançocobertoparadois—enempensaremusarminissaia,elenãoquerqueelafaçaoanúncionemseusarumvestidocobrindoocorpotodo.ECeydaacabadecompletarum curso de modelo profissional. A foto dela já está aparecendo nos jornais. O fabricante dosbalançoscobertosquerusarmodelosturcas,masorapaznãoaceitadejeitonenhum.”“Vocêdeviaavisá- ladequeessehomempodeacabardeixando-atrancadaàchave.”“FazmuitotempoqueCeydaquersecasarevirardonadecasa”,disseFüsun,aborrecidaporeu

não ter entendido o que ela queria dizer. “Mas o medo é que esse rapaz tão sério possa não terintençõessériasarespeitodela.Euprometimeencontrarcomelaeconversarsobreisso.Oquevocêacha,dequemodoelapodesaberseumhomemtemintençõessérias?”“Ecomoeuhaveriadesaber?”“Vocêconheceexatamenteessetipodehomem…”“Nãoseinadasobreesses sujeitos ricoseconservadoresdo interior”,disse.“Venha,vamosveros

seusdeveresdematemática.”“Nãofiznenhumdeverdecasa.Estábem?”,disseela.“Vocêencontroumeubrinco?”Meu primeiro impulso foi simular que procurava, comoummotorista embriagado parado pela

políciaquesabeperfeitamenteterdeixadoacarteiraemcasa,masfazamímicadequemprocuraemcada bolso e no porta- luvas, em sua pasta, numa paródia de boa-fé. Mas consegui conter-me atempo.“Não,querida.Procureiseubrincomasnãoencontrei”,disse.“Nãosepreocupe—elevaiacabar

aparecendo,maiscedooumaistarde.”“Chega!Vouemboraenuncamaisvoltoaqui!”Pelo sofrimento em seu rosto, compreendi, enquanto ela corria os olhos ao redor para recolher

suascoisas,mesmoquandohesitavasemsaberondepunhaosbraços,queaqueleseurepentenãoerapuro teatro. Plantei-me em frente à porta como um leão de chácara e supliquei que não fosseembora, adulando-a com declarações de como estava profundamente apaixonado por ela (todasverdadeiras)atéverporumasombradesorrisonoscantosdesuabocaepeloesforçoqueela faziapara esconder sua compaixão— erguendo ligeiramente as sobrancelhas— que ela começava aceder.“Estábem,nãovoumais”,disseela.“Mastenhoduascondições.Primeiro,vocêprecisamedizer

quemvocêmaisamanestemundo.”Elaviunamesmahoraquemedeixaraatrapalhado,equeeunãopoderiarespondernemcomo

nomedeSibelnemcomodela.“Digaonomedeumhomem…”,disseela.“Meupai.”“Muitobem.Minhaprimeiracondiçãoéesta:juresobreacabeçadoseupaiquenuncavaimentir

paramim.”“Juro.”“Assimnão.Afrasecompleta.”“Juropelacabeçademeupaiquenuncavoumentirparavocê.”“Foifácildemais…”

Page 71: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Equaléasegundacondição?”Mas, antes que ela pudesse anunciar a segunda condição, já estávamos aos beijos e logo nos

amávamoscomalegria.Dessaveznosexcitamostanto,enossoamornosintoxicouatalpontoquenossentimostransportadosparaumlocalimaginário,numoutroplaneta.Naminhaimaginação,eraumasuperfícieestranha,umailhasilenciosa,desertaerochosa,asprimeirasfotografiasdaLua.MaistardeFüsunmecontariaasuavisão:umjardimescurocomumadensacoberturadeárvores,umajaneladandoparaopanoramae,àdistância,omareumacolinaamarelaondegirassóisbalançavamao vento. Cenas assim nos ocorriam nos momentos em que nosso amor nos surpreendia— porexemplo, quando eu punha o seio de Füsun e seumamilomaduro emminha boca, ou quandoFüsunmergulhavaonariznopontoemquemeupescoçoencontravameusombrosemeapertavaemseusbraçoscomtodaforça,ouquandolíamosnosolhosumdooutroumaintimidadeespantosaquenenhumdosdoisjamaissentiraantes.“O.k., agora, minha segunda condição”, disse Füsun, depois que acabamos, com a vozmuito

animada.“Umdiavocêvirá jantarnaminhacasacomminhamãeemeupai,evai trazermeubrincoeo

velocípedeemqueeuandavaquandoeracriança.”“Claroquesim”,disseeu,comaprestezaquesemprevemdepoisdoamor.“Sóque…oquevocê

vaidizerparaeles?”“Sevocêencontrasseumaprimadistantenarua,nãoiriaperguntarpelopaiepelamãedela?Eela

nãoiriaconvidá-loparajantar?Ou,nodiaemquevocêentrounalojaemeviu,nãopodiatermeditoquegostariadeverminhamãeemeupai?Será tãopoucoprovávelqueumparenteofereçaaumamoçaumaajudazinhaemmatemáticaantesdoexameparaauniversidade?”“Claroqueireivisitá- laumanoitedessas,elevareiobrinco,prometo.Masnãovamosfalarcom

ninguémsobreasaulasdematemática.”“Porquenão?”“Vocêémuitobonita.Vãosabernamesmahoraquesomosamantes.”“Noutraspalavras,vocêestádizendoquenãoestamosnaEuropa,demodoqueumhomemnão

podeestarsozinhocomumamoçanumasalasemqueissoleveaalgumaoutracoisa?”“Pelocontrário,pode.SóestoudizendoissoporqueaquiéaTurquia,etodomundovaiimaginar

queosdoisnãoestãoaliparaestudarmatemática,masparaoutracoisa.E,sabendoquetodomundopensa assim, eles próprios vão começar a pensar no assunto. Preocupada em nãomanchar a suahonra, a garota vai começar a dizer coisas como: ‘Vamosdeixar a porta aberta’.Ainda assim, se amoça ficar sozinha comele pormuito tempo, ohomemvai achar que ela está propondo algumacoisae,mesmoqueaindanãotenhafeitonadacomela,vaiacabartendodefazer,porquedeoutromodosuamasculinidadepoderiaserpostaemdúvida.Empoucotempo,asmentesdosdoisestariamconspurcadasde tantopensarnascoisasque todomundoachaque jáestão fazendo,ea ideia lhesseráirresistível.Mesmoqueelesnãocheguemaosexo,vãocomeçarasesentirculpadoseaperderaconfiançadepoderemficarasóspormuitotemposemsucumbiràstentações.”Fez-seumsilêncio.Deondeestávamos,deitados,víamosoaquecedor,areentrânciaforradapara

receberachaminé,asanefadacortinadajanela,acortina,aslinhaseoscantosemqueasparedes

Page 72: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

encontramoteto,asrachadurasnaparede,atintadescascadaeagrossacamadadepoeira.Eécomafinalidade de evocar esse prolongado silêncio para o visitante do museu que, anos mais tarde,recriamosessavisãoemseusmínimospormenores.

21.Ahistóriadomeupai:osbrincosdepérola

Numaquinta-feiraensolaradadoiníciodejunho—novediasantesdafestadenoivado—,meupai e eu tivemos um longo almoço juntos no restaurante de Abdullah Efendi em Emirgân, e alimesmoeupercebiquejamaismeesqueceriadesseencontro.Meupai,cujamelancoliarecenteeratãoperturbadoraparaminhamãe,meconvidara,dizendo:“Antesdonoivado,vamossairsónósdois,para eu lhe dar alguns conselhos”. Sentado no Chevrolet 56, com Çetin Efendi ao volante, queocupava aquele lugar desde aminha infância, ouvi respeitosamente os conselhos demeupai (porexemplo,quenãodeviaconfundirmeusparceirosdenegócioscommeusamigos),poissupusquesetratasse de mais um ritual anterior ao noivado; e, enquanto ouvia, contemplava o panorama doBósforoquedeslizavapela janela, a belezadasbalsas daLinhadaCidadenavegandoemmeio àscorrentes,eas sombrasdos jardinscommuitasárvoresdasyalısàsmargensdoBósforo:mesmoaomeio-dia, eramquase tão escuros quanto à noite.Em vez de repetir os sermões que talvez tivesseouvidoquandoeramenino—querodizer,emvezdemeadvertircontraapreguiça,afrivolidadeeodevaneio, em vez deme conclamar a assumirmeus deveres e responsabilidades—, ele lembrou,enquanto a fragrância do mar e dos pinheiros entrava pelas janelas abertas, que eu precisavaaproveitaravidaaomáximo,porqueosdonsdeDeussãopassageiros.AquiexponhoobustoemgessodeSomtaşYontunç(foiopróprioAtatürkquemlhedeuseunome,quesignifica“EscultoremPedraMaciça”) criado dez anos antes, quando, graças ao grande impulso das exportações têxteis e aoaumento de nossa fortuna, meu pai, a conselho de um amigo, concordara em posar para esseescultor,quetinhaalgumaligaçãocomaAcademia.Acrescenteiobigodedeplásticopordesprezoaoacadêmico,querepresentouassuíçasdemeupaimuitomaisralasdoqueeramnarealidade,paralhedarumarmaisocidental.Quandoeuerapequenoemeupairalhavacomigoporeunãofazernada,eu ficavaolhandoobigodedele tremerenquantoele falava.Quandomedisseque trabalhardemaispodiamefazerperderasmaioresbelezasdavida,acheiquemeupaiestavasatisfeitocomasinovaçõesqueeuimplementaranaSatsatenasoutrasempresas.Quandomepediuquenofuturomeenvolvessetambémnosnegóciosemquemeuirmãomaisvelhovinhamanifestandocertointeressenos últimos tempos, e eu concordei de imediato, acrescentando que todos pagávamosmuito caropelasmeiasmedidasprofundamenteconservadorasdemeuirmãoemtodososinteressesdafamíliaem que punha asmãos, não foi sómeu pai que respondeu comum sorriso satisfeito—Çetin, omotorista,tambémsorriu.OrestaurantedeAbdullahEfendioriginalmenteficavaemBeyoğlu,naavenidaprincipal,aolado

damesquitaAğa.Naquele tempo, era lá que os ricos e famosos iam almoçar quando passavam acaminho do cinema, mas havia vários anos, depois que a maioria de seus clientes adquiriraautomóveis,ele semudaraparaascolinasacimadeEmirgân,paraumapequenapropriedadeque

Page 73: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

davaparaoBósforo.Quandoentramosnorestaurante,meupaiassumiuumsorrisojovial,trocandoapertosdemãocomosgarçonsqueconheciahaviamuitosanosdoantigorestaurantedeAbdullahede outros restaurantes. Em seguida correu os olhos pelo grande salão, à procura de alguém queconhecesse entre os fregueses. Enquanto o chefe dos garçons nos conduzia até a mesa, meu paiparavaparatrocarumapalavracomumgrupo,dandoumacenonadireçãodeoutroeflertandocomumarengraçadocomumasenhora idosasentadaaumaterceiramesacomsua filha;essa senhoraobservou como eu tinha crescido depressa, quanto eu era parecido commeu pai, e como eu erabonito.Depoisquefomosinstaladosàmesapelochefedosgarçons(quemetratavacomo“ojovemcavalheiro”durantetodaainfânciae,emalgummomento,semqueninguémpercebesse,começaraamechamarde“KemalBey”),meupaipediualgumasentradasparadividirmos—folheados,peixedefumadoecoisasparecidas—etambémrakı.“Vocêquerumpouco,nãoquer?”,perguntou-me,acrescentando: “Você sabequepode fumar,

também, se quiser”, como se não tivéssemos chegado a um acordo sobre eu não fumar na suapresençadepoisqueeuvoltaradosEstadosUnidos.“TragaumcinzeiroparaKemalBey”,disseeleaumdosgarçons.Elepegou algunsdos tomates cereja que vinhamda estufa dopróprio restaurante e cheirou-os;

enquantobatianamesacomseucopoderakı,pareciahaveralgumacoisaespecíficaemsuamente,embora ainda não tivesse decidido de quemaneira abordar o assunto. Por ummomento, ficamosambos olhando pela janela na direção de Çetin Efendi que, ao longe, conversava com outrosmotoristasqueesperavamdoladodefora.“NuncaseesqueçadoquantovaleÇetinEfendi”,dissemeupai,soandocomosemeditasseseu

testamento.“Euseibemoquantoelevale.”“Nãoseidireitosesabe…Seiqueelevivecontandohistóriasreligiosas,masvocênuncadeviarir

delas.Eleéumhomemhonesto,Çetin,eéumcavalheiro,umserhumanodamaiordecência.Eéassimfazvinteanos.Sealgumacoisaacontecercomigo,nãoomandeembora.Nãotroquedecarroacadadoisminutoscomoessesnouveauxrichesarrivistas.OChevroletéumótimocarro…AquiéaTurquia, entende…QuandooEstadoproibiu a importaçãode carros estrangeirosnovosdez anosatrás, transformouIstambulnummuseudecarrosamericanosantigos,masnãoimporta;acabamostendoasmelhoresoficinasdomundo.”“Crescicomessecarro,papai,entãonãotemcomquesepreocupar”,disseeu.“Aindabem”,dissemeupai,numtomsugestivodequetinhachegadoaseuverdadeiroassunto.

“Sibelémuitoespecial,umajovemmuitoencantadora”,disseele,masnão,nãoerasobreissoqueelemetrouxeraatéaliparaconversar.“Vocênãoencontraumapessoaassimtododia,nãoé?Umamulher,uma flor raracomoela— eprecisa tomarcuidadoparanuncamagoá-la.Precisa sempretomar conta dela e tratá- la com a máxima ternura.” De repente, uma expressão diferente eenvergonhadaassomouemseurosto.Elecomeçouafalarcomimpaciência,comosealgumacoisaotivesseirritado:“Vocêselembradaquelamoçabonita?…Sabe,aquelaqueviucomigoumavezemBeşiktaş.Quandovocêaviupelaprimeiravez,oquefoiquepensou?”.“Quemoça?”

Page 74: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Meupaificouaindamaiscontrariado.“Ora,deixedisso,estoufalandodaquelamoçamuitobonitacomquemvocêmeviuemBeşiktaş,noParqueBarbaros,dezanosatrás.”“Não,meupai,nãotenhonenhumalembrançadisso.”“Meu filho, como você pode não se lembrar? Trocamos um olhar. E havia umamoça muito

bonitasentadaaomeulado.”“Eoqueaconteceudepois?”“Semquererconstrangeroseupai,vocêdesvioueducadamenteosolhos.Lembrou-seagora?”“Não.”“Masvocênosviu!”Eeraverdadequeeunãotinhaessamemória,masnãohouvemeiodeconvencermeupai.Depois

deumaconversa longa edesconfortável, concordamosque eudevia ter resolvido esquecer, e queconseguira.Ou talvezeleeamoça tivessemsimplesmenteentradoempânico,achandoqueeuosvira.Efoiassimquechegamosaoverdadeiroassunto.“Aquelamoçafoiminhaamanteduranteonzeanos,eeramuitolinda”,dissemeupai,orgulhoso

decombinarosdoisfatosmaisimportantesnumaúnicafrase.Ficouclaroquehaviamuitomeupaisonhavaconversarcomigosobreabelezadaquelamulher,e

aideiadequeeupudessenãoatervistocommeusprópriosolhosou,pior,quepudessetê- lavistomas esquecido de como era linda— aquilo o decepcionara um pouco. Tirou uma pequenafotografiapretoebrancodobolso.Eradeumamoçamorenaetristonha—emuitojovem—depénoconvésdapopadeumabalsadaLinhadaCidade,emKaraköy.“Éela”,dissemeupai.“Foitiradanoanoemquenosconhecemos.Éumapenaqueelaestejatão

tristenestafoto;nãodáparaveroquantoeralinda.Eelaélinda,nãoé?Agoravocêselembrou?”Não respondinada.Estava aborrecidopor ouvirmeupai falandodeumcaso amoroso seu, por

maisquepertencesseàhistóriaantiga.Embora,naquelemomento,nãoentendesseexatamenteoquemeincomodava.“Escute,nãoqueroquevocêcontenadadissoparaoseuirmão”,dissemeupai,enfiandodenovo

a fotonobolso.“Eleéseverodemais,nunca iriaentender.VocêviveunosEstadosUnidos,eachoquenãovaificarmuitochocado.Estábem?”“Claro,meupai.”“Entãoescuteahistória”,dissemeupai,enquantotomavapequenosgoles.Fora“dezesseteanosemeioatrás,numdiademuitaneveemjaneirode1958”,queeleconhecera

aquela moça e ficara instantaneamente impressionado por sua beleza pura e inocente. A moçatrabalhavanaSatsat,quemeupaiacabaradecriar.Numprimeiromomentoeraapenasumarelaçãodetrabalho,mas,apesardadiferençadevinteeseteanosentreosdois,aopoucosaquilofoificandomais “sério e emocional”.Umanodepoisque amoçacomeçarauma relaçãocom seubelo chefe(meupai, segundomeuscálculos instantâneos,devia terquarentae seteanosàquelaaltura),eleaobrigouadeixaraSatsat.Novamentepordecisãodomeupai,elanão saiuàprocuradeumnovoemprego;emvezdisso,foimorardiscretamentenumapartamentoemBeşiktaşquemeupaimontouparaela,sonhandoqueumdiapudessemsecasar.“Elaeramuitobondosa,muitosensíveleinteligente—umapessoaespecial”,dissemeupai.“Não

Page 75: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

parecia em nada com as outras mulheres. Tive algumas aventuras na vida, mas nunca senti porninguémoquesentiaporela.Meufilho,penseimuitoemmecasarcomela…Masoqueteriasidodasuamãe?Oqueteriasidodevocêedoseuirmão?…”Poralgumtempoficamoscalados.“Nãomeentendamal,meufilho,nãoestoudizendoquemesacrifiqueipelafelicidadedevocês.

Naverdade,claro,eraelaquemrealmentequeriasecasar.Eeuamantiveàminhaesperaporváriosanos. Era simplesmente incapaz de imaginar a vida sem ela, e quando não podia vê-la sofriahorrivelmente.Masnãopodia compartilharminhador comninguém.Entãoumdia elamedisse:‘Resolva-se já!’.Ou eu deixava suamãe eme casava com ela, ou elame deixava. Sirva-se de umpoucoderakı.”Fez-se um silêncio. “Quando eume recusei ame separar de vocês dois e da suamãe, elame

abandonou”,dissemeupai.Admitiraquiloodeixaraexausto,mastambémmaiscalmo.Quandoeleolhouparaomeurostoeviuquepodiacontinuaramefazerconfidências,ficouaindamaisrelaxado.“Sofri,sofrimuito.Seuirmãotinhasecasado,evocêtinhaidoestudarnosEstadosUnidos.Masé

claro que tentei esconder minha angústia da sua mãe. Enfiar-me num canto, como um ladrãofugido, e sofrer em segredo foioutra agonia.Suamãe tinhapressentidoaexistênciadessa amante,comoemtodososoutroscasos;entendendoquehaviaalgumacoisasériaacontecendo,elanãodissenada.Suamãe,BekrieFatmaHanım—vivíamosnamesmacasacomoumgrupodepersonagensimitando uma família feliz num quarto de hotel. Pude ver que jamais encontraria alívio, que secontinuassedaquelemodoacabarialouco,masnãoconseguimeobrigarafazeroqueeranecessário.Aomesmotempo,ela”—meupainuncamerevelouseunome—“sofriatantoquantoeu.Contou-me que um engenheiro tinha lhe proposto casamento e que, se eu não decidisse logo, estavapensandoemaceitar.Masnãoaleveiasério…Eueraoprimeirohomemcomquemelatinhaestado.Acheiquenãoerapossívelelaquerermaisninguém,quesópodiaestarblefando.Mesmoquandoeuduvidava do meu raciocínio e começava a entrar em pânico, ainda assim continuava paralisado.Entãotenteisimplesmentenãopensarnoassunto.VocêselembradaqueleverãoemqueÇetinnoslevoudecarroatéEsmirna,paraafeira…?Quandovoltamos,fiqueisabendoqueelasecasara,masnãopudeacreditar.Imagineiqueelasóhaviaespalhadoanotíciaparachamarminhaatençãoemefazersofrer.Elarecusoutodasasminhastentativasdeencontrar-mecomela,mesmodefalarcomela;erecusava-seaatenderaotelefone.Inclusivevendeuacasaqueeucompraraparaelaemudou-separaumlugarondeeunãotinhacomoencontrá-la.Casou-sedeverdade?Quemseriaessemaridoengenheiro?Teve filhos?Oqueestava fazendo?Porquatro anosnãopude fazer essasperguntas aninguém. Tinha medo das respostas que podia ouvir, mas não saber de nada também era umaagonia. Imaginá-la vivendo em outra parte de Istambul, abrindo os jornais para ler as mesmasnotícias, assistindo aosmesmos programas deTV, mas ainda assim não a ver nunca, deixava-medesesperado.Comeceiaacharqueaprópriavidanãotinhasentido.Porfavornãomeentendamal,meu filho, sentia muito orgulho de vocês, das fábricas e da sua mãe. Mas esse sofrimento erainimaginável.”Como ele vinha usando o pretérito, senti que aquela história tinha chegado a algum tipo de

conclusão e quemeu pai encontrava algum alívio naquelas confidências,mas por algummotivo

Page 76: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

aquilomedesagradava.“No final, acabeivencidopelacuriosidade,euma tarde ligueiparaamãedela.Amulherdevia

saberdetudoameurespeito,masclaroquenãoconheciaaminhavoz.Mentiparaela,passando-mepelomaridodeumadascolegasdeliceudesuafilha.‘Minhamulherestádoenteeficariamuitofelizse sua filha pudesse ir visitá- la no hospital’, disse eu. E amãe dela disse: ‘Minha filhamorreu’, ecomeçouachorar.Tinhamorridodecâncer!Desligueinamesmahoraparanãocomeçarachorartambém.Nãoesperavaporisso,masvinamesmahoraquesópodiaserverdade.Elajamaissecasaracomengenheironenhum…Comoavidapodeserterrível,comotudoévazio!”Quandoviaslágrimasqueseformavamnosolhosdemeupai,poruminstantefiqueitotalmente

desamparado.Aomesmo tempoemque sentia raiva,euentendiaa suador,equantomais refletiasobreahistóriaquemecontara,maisminhamenteseturvavaeeumecomportavacomoomembrode uma tribo que um antropólogo das antigas poderia descrever como “primitiva” e incapaz derefletirsobreosprópriostabus.“Dequalquermaneira”,dissemeupai,controlando-sedepoisdeumbrevesilêncio,“eunãotrouxe

vocêaquisóparaperturbá-locomorelatodeantigosdesgostos.Vocêjáestáquasenoivo,eéumaboahoraparaconhecermelhorseupai.Masháoutracoisaqueeuqueroquevocêsaiba.Vocêvaientender?”“Oqueé?”“Oquesintohojeésóremorso”,dissemeupai.“Nuncadisseaelaascoisasquedevia,edariatudo

para poder lhe dizer mil vezes como ela era uma pessoa encantadora e sem preço. Ela tinharealmenteumgrandecoração,eraumajovemadorável,modesta,totalmenteencantadora.Nãoeracomo outras beldades que eu conheci. Nunca ostentava sua beleza, como se fosse criação delaprópria; nunca exigia nada, nunca esperava presentes nem elogios. Entenda, não é só por tê- laperdido,maspornuncaterlhedadootratamentoqueelamerecia—éporissoqueaindasofro.Meufilho,vocêprecisasabercomoéimportantetratarbemasmulheres—masagora,enãonofuturo,quandojáfortardedemais.”Havia algodecerimonialnesseúltimopronunciamento, enquantoeleenfiava amãonobolsoe

tirava de lá uma caixinha de joias de veludo desbotado. “Daquela vez que fomos todos à feira deEsmirna, eu comprei isso para ela, para que não se aborrecesse comigo e me perdoasse, mas odestino não permitiu que eu lhe entregasse.” Meu pai abriu a caixa. “Ela ficava muito bem debrincos.Sãopérolas,demuitoboaqualidade.Escondiessesbrincospormuitosanos.Mas,quandoeuforembora,nãoqueroquesuamãeosencontre.Fiquevocêcomeles.Penseibem,vãoficarmuitobonitosemSibel.”“Meuqueridopai,Sibelnãoéminhaamante;elavaiserminhamulher”,disseeu,olhandoparaa

caixaqueelemeentregava.“Ora,deixedisso”,dissemeupai.“VocênãoprecisacontaraSibelahistóriaportrásdosbrincos;

elanãoprecisa saberdenada.Mas,quandovocêa virusandoosbrincos, vai se lembrardemim.Nuncavaiesquecerospensamentosquelhe transmitihoje.Trateessamoçademaneiraperfeita…Algunshomenssempre tratamasmulheresmal,eaindaseorgulhamdisso.Nuncasejacomoeles.QueminhaspalavrasfiquemnassuasorelhascomoosbrincosestarãonasdeSibel.”

Page 77: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Fechouacaixa,ecomumgestoàmodaantigapressionou-aemminhamãocomasua,comoumpaxá otomano teria pressionado uma gorjeta na mão de um inferior. “Meu rapaz”, disse ele aogarçom, “por que não trazmais rakı e um pouco de gelo? Está fazendo um lindo dia, você nãoacha?”,perguntou-me.“Comoébonitoojardimqueelestêmaqui.Temcheirodeprimavera,comtodasessastílias.”Preciseidemaisumahoraparaconvencê-lodequetinhaumencontroinadiável,eque,não,não

adiantavaodonoligarparaaSatsatedesmarcarocompromissodofilho.“EntãofoiissoquevocêaprendeunosEstadosUnidos”,disseele.“Estoumuitoimpressionado.”Nãoquisrecusarameupaisuafelicidade,demaneiraquetomeimaisumcopoderakı,emborao

tempo todoolhasseparao relógio,preocupadoemnãomeatrasarparameuencontrocomFüsunlogonaquelatarde.“Não vamos sair correndo, meu filho, vamos ficar sentados aqui mais um pouco. Veja como

estamos à vontade um com o outro, uma ótima conversa entre pai e filho. Só quero mais ummomentoantesdevocêsecasareseesquecerdenós!”,dissemeupai.“Meu querido pai”, disse eu, enquanto saíamos, “posso ver o quanto você sofreu, e nunca vou

esquecerospreciososconselhosquevocêmedeuhoje.”Àmedidaqueenvelhecia,semprequeeratomadoporumagrandeemoção,oslábiosdemeupai

tremiamnoscantos.Elepegouminhamãoeaapertoucomtodaaforça.Quandoaperteiasuaemresposta, também com força, era como se eu tivesse espremido uma esponja escondida em suasbochechas,porquederepenteseusolhosficaramcheiosd’água.Elelogoserecompôs,pediuaconta,enocaminhodecasa,enquantoÇetindirigiacomtamanho

cuidadoqueocarromaltrepidavanocalçamentodepedra,acaboucochilando.Uma vez no edifício Merhamet, não fiquei muito tempo indeciso. Depois de Füsun chegar,

beijamo-nospormuitotempo,eentãotireiacaixadeveludodobolso,explicandoqueeucheiravaaálcoolporquetinhaalmoçadocommeupai.“Abraacaixa”,disseeu.Eelaabriu,commuitocuidado.“Nãosãoosmeusbrincos”,disseela.“Estesaquisãodepérola.”“Vocêgostou?”“Ondeestáomeubrinco?”“Desapareceuemplenoar,eumbelodiaeuolheinaminhamesinhaeláestavaele,aoladodo

seupar.Pusosdoisnessacaixinhadeveludoparatrazê-losdevoltaparaalindadona.”“Nãosoucriança”,disseFüsun.“Estesnãosãoosmeusbrincos.”“Sãoemespírito,meuamor—pelomenosdamaneiracomoeuvejo.”“Queroomeubrincodevolta.”“Estoulhedandoessesbrincosdepresente”,disseeu.“Não posso usar estes brincos… São caros demais. Todo mundo ia querer saber de onde eles

surgiram…”“Entãonãouse.Masnãorecuseomeupresente.”“Maséumacoisaquevocêestámedandonolugardomeubrinco…Sevocênãotivesseperdidoo

Page 78: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

brincoquedeixeiaqui,nuncateriametrazidoestepar.Nãotenhocomosaberoquevocêrealmentefezcomele,seperdeudeverdade.”“Tenhocertezadequealgumdiaaindavaiaparecer,emalgumagavetadaminhacasa.”“Um dia…”, disse Füsun. “Com quanta facilidade você diz isso. Como você é irresponsável.

Quandoexatamentevocêesperaqueeleváaparecer?Quantotempoprecisoesperar?”“Nãomuito”,disseeu,esforçando-meparasalvaraquelemomento.“Vaiserodiaemqueeupegar

ovelocípedeparalevaràsuacasaeirjantarcomosseuspais.”“Vouficaresperandonotíciassuas,então”,disseFüsun.Depoisnosbeijamos.“Vocêestáfedendoa

bebida.”Mas continuei a beijá- la, e assim que começamos a nos amar esquecemos todos os nossos

problemas. Quanto aos brincos que meu pai tinha comprado para sua amante, deixei-os noapartamento.

22.AmãodeRahmiEfendi

Àmedida que o dia da festa se aproximava, fiquei tão absorvido nos preparativos que nãomesobravatempoparapensarnascoisasdocoração.Lembro-medetersondadomeusamigosnoclube,queeuconheciadesdeainfânciaecujospaiseramamigosdomeu,tendolongasconversassobreasmaneiras de obter champanhe e outras bebidas “europeias” que pretendíamos servir a nossosconvidados noHilton.Quero lembrar aos visitantes que entrarem emmeumuseu no futuro que,naquelesdias,a importaçãodebebidasalcoólicasestrangeirasera limitadapeloEstadodemaneiraestrita, e pode-se até dizer ciumenta, e que o Estado nem sequer possuía reservas suficientes emmoeda estrangeira para pagar aos importadores a quantidade permitida pelo sistema de cotas, e oresultado era que muito pouco champanhe, uísque ou na verdade qualquer bebida estrangeiraentravalegalmentenopaís.Masnuncahaviaescassezdechampanhe,uísqueoucigarrosamericanos,pois as lojas de comestíveis finos dos bairros ricos mantinham grandes estoques de mercadoriascontrabandeadas, alémdos bares dos hotéismais elegantes da cidade, assim comoosmilhares devendedoresqueandavampelasruascomsacolascheiasdebilhetesderifadebenscontrabandeados.Qualquer pessoa que organizasse um evento sofisticado via-se obrigada a oferecer bebidas“europeias”,ecabiaaodonoda festa responsabilizar-sepelasprovisõesparaohotel.Amaioriadoschefesdebardosestabelecimentosdemaiorporte seconheciame, emsituaçõesassim, recorriamuns aos outros para encaminhar algumas garrafas a mais, garantindo que as grandes ocasiõesconseguissemchegarao fimsempassarporumaescassezconstrangedora.Aindaassim,eraprecisocuidado, pois as colunas sociais gostavam de noticiar, no dia seguinte ao acontecimento, aquantidade de bebida alcoólica “estrangeira autêntica” que tinha sido servida, e quanto tinha sidoapenasAnkaraViski.Semprequeeutinhaummomentodefolganomeiodissotudo,Sibelmeligavaesaíamosparaver

umacasacomumavistainvejável,ounascolinasacimadeBebekeArnavutköy,ounooutrobairroquenaépocaentravanamoda,Etiler.Comoela,acabeiporgostardepercorreressesapartamentos

Page 79: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

inacabadosaindacheirandoagessoecimento,imaginandooquartoeasala,tentandocalcularondeo longo divã que tínhamos visto numa loja de móveis em Nişantaşı poderia ser colocado paraproporcionar a vista mais bonita do Bósforo. Nas festas, à noite, Sibel não descansava dos seuscálculosdiurnos,eseentregavaalegrementearegalarasamigascomsuasimpressõessobreosbairrosnovos, discutindo nossos planos, a localização dos apartamentos, suas vantagens ou desvantagens;enquantoeu,sentindo-meestranhamenteembaraçado,mudavadeassunto,conversandocomZaimsobre futebol,o sucessodo refrigeranteMeltem,ouosnovosbares,clubesnoturnose restaurantesquetinhamacabadodeserinauguradosparaoverão.MinhafelicidadesecretacomFüsundeixava-memaiscontidonacompanhiadosamigos,ecadavezmaiseupreferiaficardefora,sóobservandoamovimentação. O sofrimento me consumia aos poucos, embora naquele momento eu nãoconseguissepercebê-locomclareza,reconhecendo-oapenasagora,tantosanosmaistarde,enquantoconto esta história. Na época, sabia apenas que ficara mais “calado”, como os outros tambémpercebiam.“Vocêandamuitopensativoultimamente”,disseSibelnofinaldeumanoite,quandoeualevava

paracasadecarro.“Émesmo?”“Fazmaisdemeiahoraquenãotrocamosumapalavra.”“Oalmoçoquetivecommeupaiunsdiasatrás…nãomesaidacabeça.Eleatépodenegar,mas

paramimsooucomoumhomemquesepreparaparaamorte.”Na sexta- feira6de junho, oitodias antesda festadenoivadoenovedias antesdo vestibularde

Füsun, meu pai, meu irmão e eu fomos com Çetin no Chevrolet a uma casa entre Beyoğlu eTophane,logoabaixodoHamamdeÇukurcuma,paraapresentarnossascondolências.Ofalecido,antigo empregado da Malatya, trabalhava com meu pai desde que ele começara seus negócios.Aquele homem gentil e corpulento fazia parte da família da empresa, e vinha cumprindo tarefasvariadasparaeladesdequeeumeentendiaporgente.Usavaumamãomecânica,poisaverdadeirafora esmagada por uma máquina na fábrica. Meu pai, que gostava muito daquele homemtrabalhador, decidira transferi- lo para o escritório, e foi lá que o conhecemos. No começo, meuirmãoeeu ficávamosaterrorizadoscomamãoartificial,mas,graçasaograndesorrisoeà infalívelgentilezadeRahmiEfendiparaconosco,comotempoeletransformouaquelamãoembrinquedoparanós.Certavez,lembro-medeRahmiEfendientrandonumasalavazia,tirandoamãoartificial,eestendendoseutapetedeoração;emseguidaseajoelhouparafazersuaspreces.RahmiEfenditinhadoisfilhosaltosefortestãobondososquantoele.Ambosvierambeijaramão

demeupai.Suamulheraindaviçosa,rosadamasumtantocansada,começouachorarquandoviumeupai,enxugandoas lágrimascomaspontasdo lençoque lhecobriaacabeça.Enquantoeleaconsolavacomumasinceridadequenemmeuirmãonemeujamaispoderíamosigualar,abraçandoosdoisfilhosebeijando-osnorosto,eleconseguiu,empoucotempo,fazercomquetodososdemaispresentes se sentissem como se compartilhassem uma única alma, omesmo coração. Aomesmotempo, entretanto,meu irmãoe eu fomos tomadosporumacrisede culpa, ele falandonum tomdidáticoeeuincapazdecontrolarminhaslembranças.Em momentos como esse, o que importa não são nossas palavras, mas nossa postura, não a

Page 80: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

magnitude ou a elegância da nossa dor,mas o ponto a que conseguimos chegar na expressão donossocompanheirismocomaquelesquenoscercam.Àsvezesachoquenossoapegoaocigarronãosedevenaverdadeànicotina,esimàcapacidadequeeletemdepreencherumvaziosemsentidoeproporcionar-nos ummodo fácil de nos sentirmos como se alguma coisa que fazemos tivesse umpropósito.Meupai,meuirmãoeeutiramosumcigarrocadaumdomaçodeMaltepesquenosfoiestendidopelofilhomaisvelhodofalecido,e,depoisquetodosforamacesoscomomesmofósforoqueoadolescentenosapresentoucomumgestohabilidoso,seguiu-seumestranhomomentoemquenóstrêscruzamosaspernasenosdedicamosabaforadassincronizadas,comoseparticipássemosdeumritualdesupremaimportância.Umtapetekilimestavapresoàparede,damaneiracomooseuropeuspenduramquadros.Deveter

sido o sabor pouco familiar do Maltepes que me fez ter a ilusão de que cultivava pensamentosprofundos.Acoisamais importantedavidaéa felicidade.Algumaspessoas são felizes,outrasnão.Claroqueamaioriadaspessoasficaemalgumpontointermediário.Euprópriomesentiamuitofeliznaquelesdias,masnãoqueriaadmitir.Agora,tantosanosmaistarde,achoqueamelhormaneiradepreservar a felicidadepode serdeixardeadmiti- la.Enaquelemomentoeua ignoravanãoporquequisesseprotegê-la,mas antespormedodogrande sofrimentoque já se aproximavaagalope,pormedodeperderFüsun.Eraissoquemedeixavatãosensívelecalado?Enquanto corria os olhos por aquela sala pequena, despojadamas imaculada (havia um lindo

barômetrodotipotãoemmodanadécadade1950,eumaobradecaligrafialindamenteexecutadaeemolduradacomosdizeresBismallah),houveummomentoemqueacheiqueiasomarmeuprantoaodamulherdeRahmiEfendi.Emcimadatelevisãoficavaumpanobordado,eemcimadesteumcachorro de louça.O cachorro tambémparecia à beira das lágrimas.Ainda assim, lembro-medoconsoloquesentiaoveraquelecachorro,edeFüsun.

23.Osilêncio

Àmedida que se aproximava o dia daminha festa de noivado, os silêncios entremim eFüsuntornavam-semais longosemaisprofundos,eemboranosencontrássemostododiaporpelomenosduashoras,amando-noscomumapaixãocadavezmaior,essessilênciosinfiltraram-seemnóscomoumveneno.“Minhamãe recebeuumconviteparaa festadenoivado”,contouela. “Ficoumuito satisfeita,e

meu pai disse que precisamos ir, e querem que eu também vá. Graças a Deus o exame dauniversidadeénodiaseguinte,enãoprecisofingirqueadoeciparaficaremcasa.”“Foiminhamãequemandouoconvite”,disseeu.“Masvocênãopodevirdemaneiranenhuma.

Nemeumesmoestouquerendoir.”Eu esperava que Füsun me respondesse dizendo “Então não vá!”, mas ela não disse nada. À

medida que se aproximava o dia da festa denoivado, nósnos abraçávamos commais força, e atésuávamos mais profusamente, enlaçando os braços e pernas, à maneira de antigos amantes que,quandosereencontram,sentemaânsiadenãodeixarsequeromínimoespaçoentreosdois;eentão

Page 81: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

ficávamos deitados ali, imóveis e em silêncio, enquanto víamos as cortinas de tule entrando pelaporta,agitadaspelabrisa.Atéodiadafestadenoivado,encontramo-nostodososdiasàmesmahoranoedifícioMerhamet.

Nunca falávamos da nossa difícil situação, do noivado, do que aconteceria depois, evitandoinstintivamente qualquer assunto que pudesse evocar esses problemas.Mas nosso esforço às vezesprovocavaimensossilêncios.Ficávamosescutandoosgritoseospalavrõesdosmeninosquejogavamfutebol do lado de fora.Emboranos primeiros dias não conversássemos sobre o que seria denós,aindaassimtagarelávamosalegrementesobrenossosparentesemcomum,oshomensperversoseosmexericosdodiaadiadeNişantaşı.Agoraestávamos tristesaoverquenossosdiasdespreocupadostinham terminado tãodepressa.Sentíamos aperda,umaespéciede sofrimentomudo.Mas aqueladortãodesagradávelnãonosafastavaumdooutro—estranhamente,aproximava-nosaindamais.Às vezes eu me surpreendia pensando que poderia continuar a ver Füsun depois do noivado.

Aqueleparaíso,emquetudocontinuariacomoantes,foisedesenvolvendopoucoapoucoapartirdeumafantasia(digamosumsonho),acabandoporsetransformarnumahipóteserazoável.Seelaeeuconseguíamos ser tãoapaixonadose tãogenerososquandonosamávamos,nãoerapossívelqueelamedeixasse,oupelomenoseraoqueeuachava.Naverdade,quemfalavaassimeraomeucoração,enãoaminharazão.Erampensamentosqueeuocultavaatédemimmesmo.MascomumapartedaminhamenteprestavamuitaatençãoacadapalavraougestodeFüsun,esperavaquealgumdelespudesserevelar-meoqueestavapensando.ComoFüsunpercebiaperfeitamenteesseescrutínio,nãodavanenhumsinalexterno,demaneiraqueosilênciocresciaaindamais.Aomesmotempoelameobservavaotempotodo, fazendoseuspróprioscálculosdesesperados.Àsvezesnosentreolhávamoscomoespiões, tentandodesvendarossegredosumdooutro.AquiexponhoascalcinhasbrancasdeFüsuncomsuasmeiasbrancasdemeninae seus tênisbrancos sujos, semcomentário,paraevocarnossosmomentosdesilênciotristonho.O dia da festa de noivado chegou depressa, e nenhuma das conjecturas se confirmou.No dia,

surgiu uma crise relacionada ao fornecimento de champanhe e uísque (um dos fornecedores serecusouaentregarasgarrafassemreceberadiantadoemdinheiro),eapósasolucionarfuiatéTaksimpara comer um hambúrguer com ayran na Atlantic, minha lanchonete favorita desde menino.Depois entrei no barbeiro queme atendia na infância,Cevat, oTagarela.No fim dos anos 1960,CevattransferirasuabarbeariadeNişantaşıparaBeyoğlu,oquefezcomquemeupaietodosnósnostransferíssemosparaoutrobarbeirodeNişantaşıchamadoBasri,mas, semprequeeupassavapelasredondezasequeriamedivertir, iaàbarbeariadeCevat,umpoucoabaixodamesquitaAğa, parafazerabarba.Cevatficoufelicíssimodesaberqueeraodiadomeunoivadoedecidiuquedariao“tratamentodonoivo”,sempouparnenhumluxo,usandoespumadebarbearimportadaeumaloçãoquemegarantiuquenão tinhaperfume, aplicadas comamaior atençãoemcadapeloe folículo.VolteiapéatéNişantaşı,diretoparaoedifícioMerhamet.Füsunchegouàhoradesempre.Algunsdiasantes,eutinhamurmuradoqueseriamelhornãonos

encontrarmosnosábado,poisseuexameeranodiaseguinte,masdepoisdeestudartantoelaqueriadarumdescansoàsuacabeça.Afinal,faltaradoisdiasaotrabalhonaboutiqueşanzelizeapretextodo estudo para o seu exame. A primeira coisa que ela fez depois de entrar foi sentar-se àmesa e

Page 82: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

acenderumcigarro.“Pensotantoemvocêquenãosobraespaçoparaamatemáticanaminhacabeça”,disseela,rindo

desimesma,comoseoquetinhaditonãosignificassenada,comosefossealgumafrasefeitatiradadeumfilme,masdepoisficoumuitovermelha.Senão tivesseenrubescido tãoprofundamente, revelandoassim tanto sofrimento,eu teriaaceito

seucomentáriocomoumabrincadeira.Teríamosagidocomosenãotivesseocorridoanenhumdosdois que estávamosnodiadaminha festa denoivado.Masnão foi assim.Umador avassaladora eintolerávelabateu-secomtamanhopesosobrenósdoisquenãohaviaquantidadederisoouconversaque pudesse nos distrair e trazer algum alívio; entendemos que nem compartilhado aquelesofrimento ficariamais leve, e que aúnica saída era o amor.Mas amelancolia inibiunosso amorfísico e finalmenteo interrompeu.EmcertopontoFüsun ficouestendidana cama, como se fosseumapacienteprestandoatençãoàsuadoença,observandoasnuvenslastimosasqueatravessavamocéu.Estendi-meaoladodelaetambémfiqueiolhandoparaoteto.Osmeninosquejogavamfuteboldoladodeforaestavamquietos,esóouvíamosabolasendochutada.Entãoospassarinhospararamdecantar, atéquenão restoumaisnadaaouvir.Eaí, àdistância,umnavioapitou,edepoismaisoutro.DividimosumuísquenumcopoquenopassadopertenceraaEthemKemal—meuavô,quefora

o segundomaridode suabisavó— ecomeçamosanosbeijar.Nomomentoemqueescrevoestaspalavras, devia tomar o cuidado de não perturbar indevidamente as almas preocupadas que seinteressarampelaminhahistória, poisum romancenãoprecisa transbordardedor sóporque seusheróis estão sofrendo. Como sempre, ficamos remexendo nas coisas reunidas naquele quarto—vestidosechapéusdescartadosdaminhamãe,eantigosbibelôs.Comosempre,beijávamo-noscomelegância, tendonos aperfeiçoadobastantenessa arte.Emvezdeprovocar amelancoliado leitor,prefiro dizer que a boca deFüsunme parecia dissolver-se naminha. Àmedida que nossos beijosganhavammaiorduração,umapoçadocedesalivaquenteacumulava-senagrandecavernaformadapela soma das nossas bocas, e às vezes um pouco escapava e nos corria pelos queixos, enquantodiante de nossos olhos começava a tomar forma o tipo de paisagemde sonho que é privilégio daesperança infantil— e tínhamos a impressão de contemplá-la através de um caleidoscópio. Detemposemtempos,umdenós,comoumaavefamintaquepegasseumfigonobico,sugavaolábiosuperiorou inferiordooutro, como sequisesseengoli- lo,mordiscandoo lábiocapturadocomo sedissesse: “Agora você está emmeupoder!” e, depois dessa aventura dos lábios, e do frisson de terestado àmercê do outro, e de despertar, naquelemomento, para a possibilidade de uma entregacompleta, não só dos lábiosmas de todo o corpo ao outro, reconhecíamos que o abismo entre acompaixãoeaentregaéaregiãomaisobscuraeprofundadoamor.Depoisdoamor,nósdoisadormecemos.Quandoumabrisadoceentroupelavaranda,levantando

ascortinasdetuleedeixando-ascaircomoumvéudesedasobrenossosrostos,ambosdespertamossobressaltados.“Sonheiqueestavanumcampodegirassóis”,disseFüsun.“Eosgirassóisbalançavamaoventode

ummodoestranho.Poralgummotivo,fiqueicommedo.Queriagritar,masnãoconsegui.”“Nãotenhamedo”,disseeu.“Estouaqui.”

Page 83: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Não vou contar como foi nossa despedida, de que maneira nos vestimos e saímos pela porta.Depoisdedizeraelaquemantivesseacalmaduranteoexame,delembrar- lhequenãoesquecesseseucartãodeinscriçãoedegarantirquetudohaveriadedarcerto,equesemdúvidaelaconseguiriaanotadequeprecisava, eu lhedisse oque vinha repetindo emminhamentehavia já vários dias,milharesdevezes,tentandodar- lheaexpressãomaisnaturalpossível.“Vamosnosencontraramanhãnamesmahora,estábem?”E,desviandoosolhos,Füsundisse:“Certo”.Fiqueiolhandoamorosamenteparaelaenquantoseafastava,enamesmahorativecertezadeque

afestadenoivadoseriaumgrandesucesso.

24.Afestadenoivado

Estes cartões-postais do Hilton de Istambul foram adquiridos uns vinte anos depois dosacontecimentos que descrevo; alguns deles consegui percorrendo pequenos museus e lojas debricabraquenacidadeeempontosdaEuropa,outrosnegocieicomosprincipaiscolecionadoresdeIstambul no processo de criação do Museu da Inocência. Quando, depois de uma prolongadatransaçãocomonotoriamenteneuróticocolecionadorHalitBey,o Inválido,conseguiadquirirumdestes cartões-postais mostrando a fachada modernista do hotel em estilo internacional, e obtivepermissãoparatocá-lo,lembrei-menãosódanoitedeminhafestadenoivadocomodetodaaminhainfância.Quandotinhadezanos,meuspaiscompareceramàinauguraçãodohotel,acontecimentomuitoimportanteparaeleseparatodaasociedadedeIstambul,etambémparaumatordecinemaamericanohámuitoesquecido,TerryMoore.Erapossívelverohotelnovodanossacasa,e,emboranumprimeiromomentoparecesse estranhodemais contra a silhueta velhae cansadade Istambul,duranteos anosque se seguirammeuspais se acostumaram,e iamaté lá semprequepodiam.Osrepresentantes das empresas estrangeiras para as quais meu pai vendia— todos, sem exceção,interessavam-sepelasdanças“orientais”—hospedavam-seinvariavelmentenoHilton.Nasnoitesdedomingo, quando podíamos sair em família para comer aquela invenção extraordinária chamadahambúrguer, iguarianaépoca servidapornenhumoutro restaurantedaTurquia,meu irmãoeeuficávamoshipnotizadospelosuniformescorderomãcomcordõesdouradosedragonasreluzentesdoporteiro,comseuimensobigodetorcido.Naquelesanos,tantasinovaçõesocidentaismanifestavam-sepelaprimeiraveznaquelehotel,ondeosmaioresjornaismantinhamrepórteresdeplantão.Seumdosconjuntosfavoritosdaminhamãesemanchasse,elamandavaparaserlavadoaseconoHilton,egostavadetomarchácomsuasamigasnaconfeitariadosaguãodohotel.Váriosdemeusamigoseparentesrealizaramseuscasamentosno imensosalãodebailedo térreo.QuandoficouclaroqueacasadilapidadademeusfuturossogrosemAnadoluhisarınãoeraadequadaparaafestadenoivado,oHilton foi a primeira escolha de todos. E com mais uma distinção: o Hilton, desde que foiinaugurado, era um dos poucos estabelecimentos civilizados da Turquia onde um cavalheiroabonado e uma senhora corajosa podiam obter um quarto sem que lhes pedissem certidão decasamento.

Page 84: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Ainda havia muito tempo de sobra quando Çetin Efendi deixou a mim e a meus pais junto àentradadaportagiratória,encimadaporumacúpulanaformadeumtapetevoador.“Aindatemosmeiahora”,dissemeupai,quesempreficavaanimadonomomentoemquepunha

ospésnaquelehotel.“Vamosatéalitomaralgumacoisa.”Depois que escolhemos um canto do saguão com uma boa visão da entrada, meu pai

cumprimentouogarçomidoso,queoreconheceu,epediu“rakısrápidos”paraoshomenseumcháparaminhamãe.Ficamosobservandoosgruposdepessoase—àmedidaqueseaproximavaahoramarcada — a chegada dos nossos convidados, e trocando lembranças dos velhos tempos.Conhecidos,parentescuriososeoutrosconvidadosdafestadesfilavambemànossafrenteumaumemsuas roupaselegantes,masa folhagemdensadeumciclâmennumvasonosprotegiadas suasvistas.“Aaah,olhecomoafilhadeRezzancresceu,étãobonitinha”,disseminhamãe.“Deviamproibira

minissaiaparaaspessoasquenãotêmaspernascertas”,disseela,franzindoocenhodiantedeoutraconvidada.Depois:“NãofomosnósqueinstalamosafamíliaPamuktãonofundo!”,disseemrespostaaumaperguntadomeupai,aoqueapontououtrosconvidados:“OlheoqueaconteceucomFazılaHanım.Era tãobonita,masnão sobrounadada antigabeleza.Ah,deviam tê-ladeixadoemcasa,preferianão ter visto a pobremulhernesse estado…Essasmulheres de cabeça coberta devem serparentesdamãedeSibel…EunãoqueriaconvidarHicabiBeydepoisqueeledeixouaquelaflordeesposa e as crianças para se casar com aquelamulher grossa.Vou dar uma bronca emNevzat, ocabeleireiro— o sem-vergonha fez emZümrüt exatamente omesmo penteado que fez emmim.Quem são essas pessoas? Olhe só o nariz daqueles dois— meu Deus, parecem raposas!… Vocêtrouxealgumdinheiro,meufilho?”“Paraquê?”,perguntoumeupai.“Dojeitoqueelechegoucorrendoemcasa,mudandoderoupacomoseestivessesimplesmente

saindoparaoclube,enãovindoparaafestadonoivadodele...Kemal,meuquerido,verifique,vocêselembroudetrazeracarteira?”“Lembrei.”“Ótimo.Fiquecomascostasretasquandoandar,estábem?Todomundovaiestarolhandopara

você…Vamos,chegounossahoradeir.”Meupaifezumgestoparaogarçompedindoquelhetrouxessesómaisumrakı,edepoisdeme

olharnosolhosedeavaliarminhanecessidaderepetiuogesto,dessavezapontandoparamim.“Ora, você não está exagerando?”, perguntou minha mãe ao meu pai. “Achei que tinha se

recuperadodessatristezaemqueandavaenroladocomosefosseumvelhocasaco.”“Nãopossobeberemedivertirnafestadenoivadodomeufilho?”“Ah, como ela está linda!”, disseminhamãe quando viu Sibel. “E o vestido émaravilhoso; as

pérolas ficaramperfeitas.Mas essamoça éumacriatura tão esplêndidaquequalquer coisa ficariamaravilhosanela.Quevisãoencantadora,comoovestidoficouelegantenela,vocêsnãoacham?Meufilho,vocêfazalgumaideiadasortequetem?”Sibelcumprimentavaduasamigasquetinhampassadopornósminutosantes.Asmoçastomavam

omaisescrupulosocuidadocomoscigarrosfinosdefiltroquetinhamacabadodeacender,fazendo

Page 85: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

umesforçoexageradoparanãoprejudicaropenteado,amaquiagemouosvestidosumasdasoutras;seusadoráveis lábiosmuitovermelhosnãoencostavamemnadaquando trocavambeijinhos, rindoenquantoseexaminavammutuamenteemostravamoscolaresepulseirasquerarasvezessaíamdascaixas.“Qualquerpessoainteligentesabequeavidaélindaequetemporfinalidadeafelicidade”,disse

meupaienquantoobservavaas trêsbeldades.“Masparecequesóos idiotasconseguemser felizes.Comoéqueseexplicaumacoisadessas?”“Aqui estamosnós,numdosmelhoresdiasda vidado rapaz, eporque você ficadizendoessas

bobagens,Mümtaz?”,perguntouminhamãe.Virou-separamim:“Vá logo,meufilho,oquevocêestáesperando?VáseencontrarcomSibel.Passeomaiortempopossívelaoladodela,dividindosuaalegria!”.Pouseimeucopoe,assimquesaídetrásdaplantaemeencaminheinadireçãodeSibel,viseu

rostoiluminar-se.“Ondevocêestava?”,pergunteienquantoabeijava.DepoisqueSibelmeapresentouàssuasamigas,ambosnosviramosparaolharnadireçãodaporta

giratória.“Vocêestátãolinda,meuamor”,murmureiemseuouvido.“Ninguémnemchegaperto.”“Evocêestámuitobonito…Masnãovamosficarparadosaqui.”Aindaassimfoiláqueficamos,enãoporinsistênciaminha.Àmedidaquemaisgentechegavaao

hotel—amigosedesconhecidos,convidadoseumpunhadodeturistasbem-vestidos—,ascabeçassempreseviravamparaolharparanós,eSibelgostavadeserocentrodaatençãoedaadmiraçãodetodos.É sóagora, tantosanosdepois,quandome lembrodecadapessoaquepassouporaquelaporta

giratória,quepercebocomoerainsulareíntimoaquelecírculodasfamíliasricaseocidentalizadas,ecomo todos conhecíamos bem as vidas de todos os outros. Havia o filho da família Halis, queconhecíamosdesdeosdiasemquenossamãenoslevavaaoparqueMaçkaparabrincarcombaldesepás, e cuja fortuna da família em azeite e sabão deAyvalık não o impedira de se casar comumamulher com o mesmo queixo proeminente de todas as pessoas de seu clã (“cruzamentos emfamília!”,insinuavaminhamãe).LáestavaKadri,oCrivo,amigodomeupaidostemposdoExército,emeudosjogosdefutebol,antigogoleiroehojevendedordeautomóveis,chegandocomsuasfilhas,todas resplandecentes com seus brincos, pulseiras, colares e anéis…O filhodeumex-presidente,com o pescoço grosso, que entrara para os negócios emanchara o bomnome com a corrupção,acompanhadodaeleganteesposa…Eodr.Barbut,queextraíraasamígdalasde todomembrodasociedadedeIstambulnaépocaemqueaoperaçãoestevenamoda—nãofuisóeu,mascentenasdeoutrascriançastambém,queentravamempânicoàmeravisãodesuamaletaedeseusobretudodepelodecamelo…“Sibelaindatemasamígdalas”,disseeu,quandoomédicomedeuumabraçocaloroso.“Bem,nosdiasdehojeamedicinamodernatemmeiosmaismodernosdeproduzircicatrizesnas

moçasbonitasereduzi- lasàsubmissão”,disseomédico,repetindoumadasmaisantigaspiadasdoseurepertórioenquantomepiscavaumolho.QuandoHarunBey,obem-apessoadorepresentantedaSiemensnaTurquia,passoupornós,temi

Page 86: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

queminhamãe ficasse aborrecida ao vê-lo.Ela considerava aquelehomem serenoemaduro “umpalerma,umavergonha”,pois,indiferenteatodagritariade“Escândalo!Desastre!”,elesecasarapelaterceira vez coma filhade sua segundamulher (noutras palavras, sua enteada).Com seusmodostranquilos e seu sorriso gentil, acabara sendo aceito denovono rebanho, embora aindaprecisassesuportarumououtroolharmaisduro.DepoisvinhamCüneytBeycomsuamulher,Feyzan.CüneytBeycompraraporquasenadaasfábricaseoutraspropriedadesdosgregosejudeusquetinhamsidomandadosparaoscamposdetrabalhosforçadosquandonãopodiampagara“taxasobreariqueza”impostaàsminoriasduranteaSegundaGuerraMundial.Emboraessatransformaçãodanoiteparaodia de agiota em industrial ofendessemeu pai, eramais pormotivo de inveja que por sentido dejustiça, e ele era um amigo apreciado. Seu filhomais velho, Alptekin, tinha sidomeu colega deturmanaescolaprimária,e,quandodescobrimosquesuafilhamaisnova,Asena,tinhasidocolegade turmadeSibel, ficamos todos tão satisfeitosqueconcordamosqueprecisávamosnos encontrarmuitoembreve.“Vocênãoachaqueagoradeveríamosdescer?”,perguntei.“Vocêestámuitobonito,masprecisaaprenderaficarcomascostasretas”,disseSibel,semsaber

quecopiavaaspalavrasdaminhamãe.Nosso cozinheiro, Bekri Efendi, FatmaHanım, Saim Efendi, o porteiro, e suamulher e filhos

entrarampelaportagiratória,umatrásdooutro, todosmuitoretraídosemsuasmelhoresroupas,ecadaumpor sua vezapertouamãodeSibel.FatmaHanımeamulherdeSaimEfendi,Macide,tinhampegadoos lençosde sedaelegantesqueminhamãe lhes trouxeradeParis eusavamcomolençosdecabeçatradicionais.Seusfilhosgorduchosestavamtodosdeternoegravatae,emboranãoficassemolhandoparaelaotempotodo,nãotinhamcomoescondersuaadmiraçãoporSibel.Depoisdisso,vimosoamigodemeupai,FasihFahir,comsuamulher,Zarife.Meupaificavacontrariadopor seu querido amigo pertencer àmaçonaria, e em casa reclamava daquela rede clandestina de“influênciaeprivilégio”que se infiltravanomundodosnegócios,estalandoa línguacadavezquepercorriaalistademaçonsturcospublicadapelaseditorasantissemitas;mas,semprequeFasiheraesperadoemnossacasa,meupaiescondiatodososlivroscomnomescomoDentrodamaçonariaeFuiummaçom,quetantoodeixavamfascinado.Logo atrás dele estava uma mulher conhecida por todos na sociedade, que à primeira vista

confundicomumadenossasconvidadas:şerminDeluxe,aúnicacafetinadeIstambul(etalvezdetodoomundoislâmico).Emtornodeseupescoçovia-seolençoroxoqueerasuamarcaregistrada(pois escondia a cicatriz de um ferimento à faca, e jamais podia tirá- lo) e a seu lado, em saltosimpossivelmente altos, vinha uma das suas lindas “meninas”. Entrando no hotel como se fossemhóspedes,rumaramdiretamenteparaaconfeitaria.EláestavacomseusóculosoestranhoFaruk,oRato (quandocrianças costumávamos frequentar os aniversáriosumdooutro, porquenossasmãeseramamigas),emaisalém,atrásdele,osirmãosMaruf,antigoscompanheirosmeusdebrincadeiras,poisnossasbabáseramamigas.Afamíliadeles,queSibelconheciabemdoclubeCercled’Orient,fizerafortunacomotabaco.Oidosoerotundoex-ministrodoExterior,Melikhan,queapresentarianossasalianças,entroupela

porta giratória commeu futuro sogro e, como conhecia Sibel desde criança, envolveu-a com os

Page 87: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

braçosedeu-lheumbeijo.Examinou-meevirou-sedevoltaparaela.“Estoumuitofelizporvocê!”,disseele.“Eeleébonitão!Parabéns,meurapaz”,disse,edeu-me

umapertodemão.As amigas de Sibel, todas sorrisos, aproximaram-se de nós. O ex-ministro assumiu um ar de

playboy,cobrindo-asdeelogiosextravagantesporseusvestidos, suas joiaseseuscabelospenteadosparacima,comoardeironiaqueeraprivilégiodosvelhosfavorecidos,edepoisdebeijarcadaumadelasnorostodirigiu-separaosalão,comosenuncativesseestadotãosatisfeitoconsigomesmo.“Jamaisgosteidessedesgraçado”,dissemeupai,descendoasescadas.“PeloamordeDeus,parecomisso!”,disseminhamãe.“Ecuidadocomosdegraus.”“Estouenxergandoperfeitamente”,dissemeupai.“Aindanãofiqueicego,graçasaDeus.”Quando

elevislumbrouavistaquesetinhadojardim—opaláciodeDolmabahçee,portrásdele,oBósforo,Üsküdarea torredeLeandro— alémdamultidãodealegresconvidados,animou-semuito.Euopeguei pelo braço e, enquanto andávamos emmeio aos garçons que serviam canapés coloridos,começamosolongoprocessodecumprimentarnossosconvidados,oferecendoacadaumbeijosnorostoeumtempoadequadodeconversasemmaiorseriedade.“Comoosenhordeveestarorgulhosodoseufilho,MümtazBey.Eleéidênticoaosenhornaidade

dele…Atéparecequeestouolhandoparaosenhorquandoerajovem.”“Ainda sou jovem, minha senhora”, respondeu meu pai. “Mas infelizmente não a estou

reconhecendo…” Então virou-se para mim: “Você se importaria de me soltar?”, murmurougentilmente.“Estásegurandomeubraçocomforçademais,enãoestoumanco”.Afastei-medalidiscretamente.Ojardimcintilavadebelasjovens.Amaioriausavaossapatosaltos

damoda,comobicoaberto,eimagineiocuidadoalegreeexpectantecomquedeviamterpintadoasunhasdospésde vermelho-bombeiro.Emborausassemvestidos semmangasoudecostasnuascom decotes profundos, alegrei-me ao ver como pareciammais à vontade naqueles trajes do quecomsuasminissaiashabituais.ComoSibel,cadaumatraziaumapequenabolsabrilhantecomfechodemetal.Emalgummomento,maistarde,Sibelmepegoupelamãoeapresentou-meaumgrandenúmero

deparentes,amigosdeinfância,colegasdeturmaeoutrosconhecidosdequeeujamaisouvirafalar.“Kemal,queriaapresentá-loaumqueridoamigo”ou“aumaqueridaamiga”,diziaelaacadavez,

com o rosto radiante, e em seguida elogiava aquela pessoa num tom que, apesar de toda asinceridadefeliz,aindaassimdenunciavaopesodaobrigação.Afelicidadeeraporqueavidatomaraorumoqueelaalmejava,exatamentecomotinhaplanejado.Empregaratantoesforçonacolocaçãoperfeitadecadapéroladeseuvestido,certificara-sedequecadapregaecadaondulaçãoestavaemharmonia impecável com cada curva de seu corpo e, agora que a noite se desdobrava tãosuavemente,supunhaquepoderiaingressarcomamesmasuavidadenumfuturofeliz.EraporissoqueSibeltratavacadamomentoquepassava,cadanovorosto,comoumacausarenovadadejúbilo.De tempos em tempos encostava-se emmim, e com uma atençãomaternal usava o polegar e oindicadorpararemoverumfiodecabeloouumciscoimagináriodemeusombros.Semprequehaviaumapausanoscumprimentosenosgracejos,eulevantavaacabeçaparapassar

em revista os convidados e os garçons que circulavam entre eles com as bandejas de canapés, e

Page 88: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

percebiapelonívelderisoepelovolumedaconversaqueasbebidasestavamcomeçandoadeixá-losrelaxados.Todasasmulheresestavamlindamentemaquiadaseextravagantementevestidas.Emseusvestidos finos, acinturados e sem mangas, parecia que dali a pouco começariam a sentir frio,enquantooshomenspareciamamarradosemseuselegantesternosbrancos,abotoadosatéoalto—comomeninosemsuasmelhoresroupasdefestaquejátinhamficadopequenas—egravatasmuitocoloridas para os padrões turcos,macaqueando as gravatas largas, gritantes e estampadas àmoda“hippie” que tanto estiveramemmoda três ouquatro anos antes.Ficou claro quemuitoshomensricosdemeia-idadenuncatinhamouvidofalar,ourecusavam-seacrer,queosucessodascosteletasgrandes,dossaltoscarrapetaedoscabeloscompridosjátinhapassado.Oefeitodaquelascosteletas,agoraultrapassadasmasconservadasemdeferênciaàmoda,comosbigodesnegrosmaistradicionais,escureciamuitoorostodoshomens.Enquantoosaromasdeloçãopós-barbaebrilhantina(aplicadacomespecial farturanoscabelos jáescassosdoshomensdemaisdequarentaanos),dosperfumesfortes dasmulheres, das nuvens de fumaça de cigarro para as quais todos contribuíam,mais porhábitoqueporprazer,doóleodefrituravindodascozinhas,enquantoessaconfluênciadecheirosvoluteavanabrisadaprimavera, lembrei-medas festasdosmeuspaisdaminha infância.MesmoamúsicadeelevadorqueaorquestraFolhasdePratatocava,meioironicamente,paracriaraatmosferadafesta,sussurravaparamimqueeuerafeliz.Aessaalturaosconvidados,especialmenteosmaisidosos,tinhamsecansadodeficardepé,eos

maisesfaimadosjásaíamàprocuradesuasmesas,comascriançasabrindocaminhoàfrente(“Vovó!Acheinosso lugar!”, “Onde?Espere,não corra tanto, você vai cair”).Nesse exatomomento, o ex-ministrosurgiuportrásdemimemepegoupelobraço.Comseuconsumadotalentodiplomático,puxou-mede ladopara lembrarqueconheciaSibeldesdequeera criança, eparameconvencer,comumlongodiscurso,doquantoelaerarequintadaeeleganteedecomoospaisdelaerampessoasencantadorasecultas, ilustrandocadaumadessasafirmaçõescomexemplosquebuscavaemsuasmaispreciosasmemórias.“Famíliasantigasesofisticadascomoadelesestãoescasseandonosdiasdehoje,KemalBey”,disse

ele. “Você está nomundo dos negócios, demaneira que sabemelhor do que eu que vêm sendosubstituídaspornouveauxriches semmodos,eprovincianoscomasmulhereseas filhasdecabeçacoberta.Outrodiamesmoviumhomemquecaminhavacomduasmulheresatrásdele,vestidasdenegro da cabeça aos pés, como árabes.Ele as levara para tomar sorvete emBeyoğlu…Entãomediga,estápreparadoparasecasarcomessajovemefazê-lafelizpelorestodavida?”“Sim,senhor”,disseeu.Nãopudedeixardeperceberqueoex-ministroficoudecepcionadoantea

ausênciademaioranimaçãonaminhavoz.“Compromissosnãosequebram.Oquesignificaqueonomedessajovemestaráligadoaoseuaté

ofimdassuasvidas.Jápensouseriamentenisso?”Osconvidadosacorriameformavamumcírculoemtornodenósdois.“Pensei.”“Poismuitobem,entãovamoscuidardessenoivadoparapodermoscomer.Sequiser tomar seu

lugar…”Percebi que ele não simpatizara comigo, mas isso não afetou minha animação. O ex-ministro

Page 89: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

começou a cerimônia contandopara os convidadosumahistória do seu tempode soldado.Ele, aexemplodaprópriaTurquia,eramuitopobrequarentaanosantes,econtou,comemoçãogenuína,como ele e sua saudosa esposa tinham ficado noivos sem fanfarras nem cerimônia. Declarou seuextremo respeito por Sibel e sua família. Não havia muito humor no que disse, mas mesmo osgarçonsque se retirarampara os lados com suas bandejas sorriamcomo se ouvissemumahistóriadivertida. Quando Hülya, a doce e dentuça menina de dez anos que Sibel amava (e que eratotalmente fascinada por ela), avançou trazendo a bandeja de prata comas alianças que exponhoaqui, todos fizeram silêncio. Sibel e eu estávamos tão nervosos, e o ex-ministro, tão confuso, quetivemoscertadificuldadeparaconcluirqualaliançaeradequem.Masaessaalturaosconvidadosestavampreparadospararir,eassim,quandoalguémgritou“Nãonessededo,énaoutramão”,umagargalhadageralcirculouentreospresentes,atéasaliançasfinalmenteencontraremseulugarcertoe,então,oex-ministrodoExteriorcortoufinalmenteafitaqueasunia,sobumaondaespontâneadeaplausos que soou como um bando de pombos levantando voo. Muito embora eu tivesse mepreparadoparaisso,avisãodetantagentequeeuconheceraavidainteirabatendopalmasesorrindocalorosamenteparanósdeixou-metontocomoumacriança.Masnãofoiissoquefezmeucoraçãodisparar.Nasúltimasfilasdosconvidados,depéaoladodesuamãeedoseupai,euviFüsun.Umaondade

felicidaderebentouemmim.Quandobeijeio rostodeSibel,quandominhamãeaproximou-sedenóseeuaabracei,edepoismeupaiemeuirmão,percebiquetinhasidoaquiloquemedeixaratãoalegre,emboraeuaindameconsiderassecapazdeescondê-lo,nãosódosconvidadoscomoaindademimmesmo.Nossamesa ficava bem à beira da pista de dança. Pouco antes de nos sentarmos viFüsunsentadacomseuspaisbemaofundo,aoladodamesadestinadaaosempregadosdaSatsat.“Vocêsdoisestãocomumartãofeliz”,disseBerrin,amulherdomeuirmão.“Masnóstambémestamosmuitocansados”,disseSibel.“Seissoéoqueacontecenumafestade

noivado,imaginecomoestaremoscansadosnafestadecasamento.”“Masvocêestarámuitofeliznessedia”,disseBerrin.“Ecomovocêdefineafelicidade,Berrin?”,perguntei.“MeuDeus,quepergunta”,respondeuela,ereagiucomoserefletissesobresuaprópriafelicidade,

mas, como até mesmo uma brincadeira sobre aquilo lhe provocava algum desconforto, sorriuencabulada. Emmeio à balbúrdia das conversas simultâneas, das vozes dos convidados, de gritosocasionaisedotinidodefacasegarfos,alémdetrechosdemúsica,ambosouvimosavozaltaeagudademeuirmãoregalandoalguémcomumahistória.“Família,filhoseboacompanhia”,disseBerrin.“Mesmoquevocênãosejamuitofeliz”—eaqui

indicoumeuirmãocomosolhos—,“mesmoqueestejatendoopiordetodososseusdias,vocêvivecomoseestivessefeliz.Todoosofrimentodesaparecequandovocêestácercadopelafamília.Vocêsdeviamterfilhoslogo.Tenhammuitosfilhos,comooscamponeses.”“Oqueestáacontecendoaqui?”,perguntoumeuirmão,juntando-seanós.“Contemsobreoque

vocêsestãofalando.”“Estoudizendoaelesparateremfilhos”,disseBerrin.“Quantoselesdeviamter?”Ninguémestavaolhando,entãovireimeumeiocopoderakıdeumtrago.

Page 90: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Um poucomais tarde, Berrin sussurrou nomeu ouvido: “Aquele homem na ponta da mesa eaquelalindamoçaaoladodele,quemsão?”.“ÉNurcihan,grandeamigadeSibeldesdeostemposdoliceu—elasforamjuntasparaaFrança.

SibelreservouumlugarparaelaaoladodomeuamigoMehmet,naesperançadeprovocaralgumacoisa.”“Atéagoranãoparecemuitopromissor!”,disseBerrin.SibelsentiaumamescladeadmiraçãoepiedadeporsuaamigaNurcihan.Quandoestudavamem

Paris,Nurcihanpassouporvárioscasosamorosos,queteveacoragemdeconsumar,chegandoatéamorarcomalgunsdesseshomens(Sibelmecontaraessashistóriasemtomdeinveja),econseguindomanter sua vida em segredo de seus pais ricos em Istambul;mas com o tempo essas aventuras adeixaram triste e esgotada, demaneiraque agora, sob a influênciadeSibel, vinhaplanejandoumretorno a Istambul. “Mas por motivos óbvios”, acrescentei, depois de contar tudo isso a Berrin,“precisaseapaixonarporalguémcapazdelhedarvalor,alguémquesejadoníveldelaenãofiqueabaladocomseupassadofrancês,comseusantigosamantes.”“Bom, se você quer a minha opinião, isso não vai acontecer hoje à noite”, sussurrou ela em

resposta.“QuetipodenegóciotemafamíliadeMehmet?”“Elestêmdinheiro.Opaideleéumconhecidoconstrutor.”EnquantoBerrinerguiacommalíciaumasobrancelha,emsinalesnobededesconfiança,eulhe

disse que, embora a família dele fossemuito religiosa e conservadora,Mehmet era um amigo deconfiançadotempodoRobertCollege,homemhonestoedecentequepormuitosanosnãodeixavasuamãemuitodevotaarranjarumcasamentoparaelecomumamoçabem-educadadeIstambul,porque queria casar-se com alguém da sua própria escolha, uma jovem com quem pudesse sair.“Masatéagoranãoconseguiunadacomasmoçasmodernasqueencontrouporaí.”“Enemvaiconseguirnada”,disseBerrincomumardediscordância.“Eporquenão?”“Olhesóparaele.Éumtipoquesereconheceaquilômetrosdedistância”,disseBerrin.“Homens

comoele,docentrodaAnatólia…Asmoçaspreferemsecasarcomhomensassimatravésdeumacasamenteira, porque sabem que, se começarem a andar muito com ele pela cidade, ele podecomeçarapensarquesãoprostitutas.”“Mehmetnãotemessamentalidade.”“Masvemdessemolde.Afamíliadeleéassim,édaíqueelevem.Asmoçasajuizadasnãojulgam

um homem pela maneira como ele pensa. Levam em conta a família, a maneira como ele secomporta.”“Nissovocêtemrazão”,disseeu.“Jávimoçasdejuízo—nãoprecisodizeronome—queevitam

Mehmetmesmoquando as intenções dele são claramente sérias;mas quando se veemao lado deoutroshomens,aindaquenão tenhamcertezadequevãosecasarcomelas,comportam-semuitomaisàvontade,emuitomaisinclinadasamanterabolaemjogo.”“Exatamente”,disseBerrincomumtomorgulhoso.“Nãoseilhedizerquantoshomensnestepaís

continuamatratarasmulherescomdesrespeito,atéanosmaistarde,sóporquepermitiramalgumaintimidadeantesdocasamento.Evoulhedizerumacoisa:oseuamigoMehmetnuncaseapaixonou

Page 91: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

de verdade por nenhuma dessas moças que não deixaram que se aproximasse delas. Se ele seapaixonasse,elasteriampercebido,eotratariamdeoutromodo.Nãovoudizerqueteriamdormidocomele,claro,maspermitiriamqueeleseaproximasseapontodetornarumcasamentopossível.”“MasomotivoparaMehmetnãoseapaixonarporelaséqueelasnãodeixamqueeleseaproxime,

porquesãoconservadoraseficamcommedo.”“Não é assim que funciona”, disse Berrin. “Você não precisa dormir com alguém para estar

apaixonado.Osexonãoéoqueconta.OamoréLeylaeMecnun.”Eudissealgocomo“Hummmm”.“Oqueestáacontecendoaqui?”,gritoumeuirmãodaoutrapontadamesa.“Contem,porfavor!

Quemestádormindocomquem?”Berrin lançou-lheumolharquedizia: “Ascriançasestãoescutando!”.Depois sussurrounomeu

ouvido: “E é aqui que está a questão”, disse ela. “Por que esse seu Mehmet, aparentemente tãohumilde,nãoconsegueseapaixonarpornenhumadessasmoçasqueelequerconhecer,oucomeçaralgumacoisasériacomelas?”Respeitandoa inteligênciadeBerrin, tiveporuminstantea tentaçãode lhecontarqueMehmet

era um frequentador incorrigível de prostíbulos. Tinha “meninas” que visitava regularmente emquatrooucincoestabelecimentosdeSıraselviler,Cihangir,BebekeNişantaşı.Aomesmotempoquese esforçava em vão para criar alguma ligação mais profunda com mulheres que conhecia notrabalho—virgensdevinteepoucosanoscomumdiplomasecundário—,continuavaafrequentaros bordéis de alta classe abertos a noite inteira commeninas que se arrumavam como estrelas docinema ocidental, embora sempre que bebesse muito ficasse óbvio como lhe era difícil manteraquele ritmo, ou mesmo pensar direito. Ainda assim, sempre que saíamos de alguma festa já demadrugada,emvezdevoltarparacasaondeseupaiviviacomorosárionamãoparaacalmar-seesuamãe cismava ansiosa com a cabeça coberta, e todos, inclusive suas irmãs, respeitavam o jejumdurante oRamadã, ele se despedia de nós e tomava o rumo de algum dos bordéismais caros deCihangirouBebek.“Vocêestábebendobastantehojeànoite”,disseBerrin. “Váumpoucomaisdevagar.Hámuita

genteaqui,etodosestãoobservandoafamília.”“Estácerto”,disseeu,levantandomeucopocomumsorriso.“OlhesóparaOsman,comoéresponsável”,disseBerrin.“Edepoisvejasócomovocêsecomporta

malnopróprionoivado…Comoéquedoisirmãospodemsertãodiferentes?”“Naverdade”,disseeu,“somosmuitoparecidos.E,dequalquermaneira,apartirdeagoravouser

aindamaissérioeresponsávelqueOsman.”“Tambémnãoprecisaexagerar.Aspessoaspodemficarmuitochatasquandosãosériasdemais”,

começouBerrin,econtinuounessemesmo tommeiodiscordanteaté,muitomais tarde,euouvir:“Vocênemestáprestandoatençãoaoqueeudigo”.“Oquê?Claroqueestou.”“Estábem,entãomedigaoqueacabeidefalar!”“Vocêdisse:‘Oamorprecisasercomonasantigaslendas.ComoLeylaeMecnun’.”“Eu sabiaque vocênãoestavaprestando atenção”, disseBerrin comummeio sorriso, peloque

Page 92: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

pudeverqueelaestavapreocupadacomigo.Virou-separaSibel,paraverseelaperceberaemquecondiçãoeuestava.MasSibelconversavacomMehmeteNurcihan.Que eunão tivesse conseguido tirarFüsunda cabeça todo esse tempo, que ao longode toda a

conversacomBerrineutivessesentidosuapresençaportrásdemim,emsuamesadosfundos,queeumeperguntasse o tempo todo como ela estaria e o que estaria pensando— eu vinha tentandoescondertudoissodemim,assimcomovenhoescondendodosmeusleitores.Masjáchega!Vocêssabemquenãoconsegui.Entãodaquipordiantevoufalarcomtodaafranqueza.Encontreiumadesculpaparamelevantardamesa.Nãolembroqualfoiopretextoqueinventei.

Corrimeusolhospelos fundosdo jardim,masnão viFüsun.O lugar estavamuito cheioe, comosempre,comtodomundofalandoaomesmotempo,gritandoparaserouvido,ecriançasberrandoenquantobrincavamdeesconde-escondeemmeioàsmesas,otinidodostalheresporcimadesuascabeças—umacacofoniaqueaorquestrasóexacerbava—,tudocontribuíaparaumaforteconfusãosonora.Caminheiemmeioaessebarulhoinfernalatéofundodosalão,naesperançadeverFüsun.“Parabéns,meucaroKemal”,ouvialguémdizer.“Quantoaindafaltaatéadançadoventre?”EraSelim,oEsnobe,sentadoàmesadeZaim.Euri,comoseeletivesseditoumacoisahilariante.“Vocêfezumaótimaescolha,KemalBey”,disse-meumamatronagentil.“Nãodevelembrar-sede

mim.Euesuamãe…”Mas,antesqueelaconseguissecompletaraconexão,umgarçomcomumabandejaempurrou-me

de lado para abrir caminho entre nós dois. Quando finalmente consegui recobrar o equilíbrio, amulherquemecumprimentavaforaarrastadapelofluxodosconvidados.“Deixe-meveroaneldenoivado!”,disseumacriança,torcendominhamão.“Pare,nãosejagrosseiro!”,disseamãegordadomenino,segurando-ocomforçapelobraço.Ela

deuumbote,comoparaesbofeteá-lo,masomeninoaconheciabemeescapuliuatempo.“Venhaaquiesente-seumpouco!”,disseamãedomenino.“Desculpe…emeusparabéns!”Umasenhorademeia-idadequeeujamaistinhavistoriatantoqueseurostoficaratodovermelho,

masquandonossosolhosseencontraramelaficousériaderepente.Seumaridoapresentou-se—eraparentedeSibel,masaparentementenósdoistínhamosfeitooserviçomilitaraomesmotempo,emAmasya—econvidou-measentar-mecomeles.Corriosolhospelasmesasdojardim,esperandoverFüsun,maselapareciaterdesaparecidoemplenoar.Osofrimentoespalhou-sepelomeucorpo.“Estáprocurandoalguém?”“Minha noiva estáme esperando,mas claro que eu adoraria sentar um pouco e tomar alguma

coisacomvocês…”Ficarammuito satisfeitos, e namesmahora juntaram suas cadeiras para criar espaço paramais

uma.Não,eunãoqueriaumprato,sóumpoucomaisderakı.“Kemal, meu amigo, você já foi apresentado ao almirante Erçetin?”, perguntou o homem,

apontandoparaumcavalheirodooutroladodamesa.“Sim,éclaro”,respondi.Naverdade,nãotinhaamenorlembrançadele.“Meujovem,soumaridodairmãdatiadopaideSibel!”,disse-meoalmiranteemtomhumilde.

“Meusparabéns.”“Porfavormedesculpe,almirante.Nãooreconhecisemouniforme.Sibeltemosenhoremalta

Page 93: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

conta.”Na verdade, Sibel me contara que uma prima distante tinha passado anos atrás o verão em

Heybeliada,eapaixonara-seporumbelooficialdaMarinha;achandoqueaquelealmirantepodiaserumdessesmilitaresimportantesqueasfamíliasricastratamtãobemdemaneiraapodercontarcomumpistolão sempreque lidavamcomoEstado,ouquandoprecisavamconseguiro adiamentodoserviçomilitardeumfilho,nãoprestaramuitaatençãoàsuahistória.Sentiumestranhoimpulsodemeinsinuardizendo:“EquandooExércitovaiintervir,almirante?Porquantotempovamosaguentarserpressionadospeloscomunistasdeumladoepelosreacionáriosdooutro?”,masaindaconservavao bom senso de saber que, caso dissesse aquelas coisas em meu estado atual de confusão, seriaconsideradoumbêbadodesrespeitoso.Derepente,algomefezpôr-medepée,àdistância,avisteiFüsun.“Achoqueestoudescuidandodosoutrosconvidados.Precisoirembora,cavalheiros!”Comosempredepoisdebebermuito,eutinhaaimpressãodequemeufantasmatentavadarseus

primeirospassosforadomeucorpo.Füsunretornaraàsuamesanofundo.Numvestidocomalcinhasfinas,seusombrosnusexibiam

um brilho de saúde. E fora ao cabeleireiro. Estava tão linda que mesmo daquela distância meucoraçãoficavacheiodealegriaeemoçãoaovislumbrá-la.Ela fez de conta que não tinha me visto. Quatro mesas mais perto estava a irrequieta família

Pamuk,eassim,paradiminuiradistânciaentremimeFüsun, fuicumprimentarAydıneGündüzPamuk, que em algummomento fizera algunsnegócios commeupai.E o tempo todomantinhaminhas antenas sintonizadas na mesa de Füsun, cuja proximidade à mesa da Satsat criara aoportunidade parameu jovem e ambicioso empregadoKenan, que não tirava os olhos de Füsun,começarumaconversacomela.Como tantas famílias antes ricas que tinham desbaratado suas fortunas, os Pamuk tinham se

isoladoeachavamdesconcertanteencontrarem-sefrenteafrentecomodinheironovo.Sentadocomsualindamãe,seuirmãomaisvelho,seutioeseusprimoseprimasestavaojovemOrhan,devinteetrêsanos, fumandoumcigarroatrásdooutro,comnadadeespecialalémde suapropensãoaumcomportamentonervosoeimpaciente,afetandoumsorrisozombeteiro.Levantando-medatediosamesadosPamuk,caminheidiretamenteatéFüsun.Comodescrevera

expressãonorostodelaquandopercebeuquenãopodiamaismeignorar—queeutiveraaousadiademe aproximar dela com o amor nos olhos?Namesma hora ela corou, sua pelemuito rosadabrilhandodevida.PelamaneiracomotiaNesibemeolhava,imagineiqueFüsunlhecontaratudo.Primeiro apertei suamão, que estava seca, e depois amão do pai dela, que tinha dedos longos epulsosfinoscomoosdafilha,eelenãodeusinaldesaberdenada.Quandochegouavezdaminhaamada, peguei sua mão e, com ternura e modos perfeitos, beijei-a nas duas faces, inalandofurtivamenteospontosdelicadosemseupescoçoeatrásdesuasorelhasquetantoprazermetinhamproporcionadopoucashorasantes.Aperguntaqueeunãoconseguiaafastardacabeça— “Porquevocêveio?”—agoraassumiuaformade“Quebomvocêsteremvindo!”.Elapassarasóumpoucodedelineadoredebatomcor-de-rosa.Somando-seaseuperfume,aquelamaquiagemlhedavaumarde mulher exótica. Mas seus olhos estavam vermelhos e inchados como os de uma criança, de

Page 94: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

maneira que eu soube que depois de termos nos separado naquele dia ela passara o fim da tardechorandoemcasa;mas,assimqueimagineiesseencadeamentodosfatos,elaassumiuosmodosdeumajovemconfianteebem-educadaquesabiaoquepensava.“KemalBey,conheçoSibelHanım.Vocêfezumaótimaescolha”,disseelacomgrandecoragem.

“Parabéns.”“Ah,muitoobrigado.”“KemalBey”,disseamãedelaaomesmotempo.“Sópossoimaginarcomoandaocupado.Deuso

abençoepordedicarboapartedoseutempoaajudarnossafilhanoestudodematemática.”“Oexameéamanhã,nãoé?”,perguntei.“Eladeviairparacasadescansarbastante.”“Entendo que você tenha todo o direito de estar preocupado”, respondeu a mãe dela. “Mas

estudandocomvocêelaficoumuitonervosa.Deixequeelasedivirtaumpoucoestanoite.”Dirigi a Füsun um sorriso compassivo e professoral. Com todo o barulho dos convidados e da

música,pareciaqueninguémseriacapazdenosouvir.PercebinosolharesqueFüsunlançavaàsuamãe osmesmos clarões de raiva que via durante nossos desentendimentos no edifícioMerhamet;dirigiumúltimoolharaseuslindosseiossemiexpostos,aseusombrosmagníficoseaseusbraçosdemenina.Aovirar-me,sentiaafelicidademeenvolvercomoumaondagigantesca.AorquestraFolhasdePratatocava“UmanoitenoBósforo”,suaversãode“It’snowornever”.Seeu

nãoacreditassedetodocoraçãoqueafelicidadeabsolutanestemundosópodeacontecerquandosevivenopresenteenosbraçosdeumamulher,euteriaescolhidoesseinstantecomo“omomentomaisfelizdaminhavida”.Poiseu tinhaconcluído,apartirdaspalavrasdamãedeFüsunedosolharesmagoados e enfurecidos da própria Füsun, que ela não conseguira convencer-se a encerrar nossarelação,equeatésuamãepareciaresignadacomesseestadodecoisas,emboracomcertareserva.Seeuagissecommuitocuidadoeadeixassesaberoquantoaamava,Füsun,agoraeupercebia,seriaincapaz de romper sua relação comigo enquanto eu vivesse! Os prazeres masculinos externos aodomíniodamoralqueDeusconcediaapenasaalgunsdeseusservosmaisfavorecidos—afelicidadequemeupaiemeustiossótinhamvislumbrado,eraramenteantesdoscinquentaanos,nãoantesdeterem sofrido tormentos terríveis —, parecia-me agora que eu teria aquela boa sorte —compartilhandotodososdeleitesdeumavidadomésticafelizcomumamulherlinda,sensataebem-educada,eaomesmotempodesfrutandodetodososprazerescomumajovemlindaeousada—equandoaindatinhatrintaanos,maltendosofridooupagoqualquerpreçoporisso.Emboranãofossenada religioso, trago gravado em minha memória o que ainda vejo como um cartão-postal dafelicidade,enviadodiretamenteporDeus:aimagemdemeusalegresconvidados,agoradispersosatéos recantosmais distantes do jardim, e além deles, emmeio aos plátanos e às luzes coloridas, apaisagem,asluzesdoBósforoeocéudeumazulprofundo.“Ondevocêesteve?”,perguntouSibel.Elasaíraàminhaprocura.“Fiqueipreocupada.Berrinme

dissequevocêtinhabebidoumpoucodemais.Tudobem,querido?”“Tudo—realmenteexagereiumpouco,masagoraestoumelhor,querida.Meuúnicoproblemaé

queestoufelizdemais.”“Eutambémestoumuitofeliz;mastemosumproblema.”“Oquefoi?”

Page 95: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“AscoisasnãoestãodandocertoentreNurcihaneMehmet.”“Bom, senão é para ser, nãohá de ser.Oque importahoje ànoite é que eu e você estejamos

felizes.”“Não,não,osdoisestãoquerendo.Sepelomenosbaixassemumpoucoaguarda.Tenhocerteza

dequeempoucotempoestariamàsportasdocasamento.Masparecequenãoconseguemquebrarogelo.Achoquevãoacabardeixandopassaraoportunidade.”Fiquei olhando para Mehmet de longe. Ele não conseguia atrair um olhar de simpatia de

Nurcihan, equandopercebia oquanto eradesajeitado ficava furioso, oque sóo condenava aumconstrangimentoaindamaisprofundo.Pedi com um gesto a Sibel que se sentasse comigo a uma mesinha de serviço em que se

equilibravamaltaspilhasdepratos limpos.“Podeser tardedemaisparaMehmet…Talveznão lhesejamaispossívelencontrarumaboaesposa,decente.”“Porquê?”Enquanto seus olhos se arregalavam de medo e curiosidade, contei a Sibel que Mehmet só

conseguia encontrar a felicidadenosquartosmuitoperfumadosbanhadospela luz vermelha.Pediumrakıaogarçomquepassouanossoladoassimquenossentamos.“Vocêparecesaberbemcomosãoesseslugares!”,disseSibel.“Tambémiacomeleantesdeme

conhecer?”“Amovocêtanto”,disseeu,pegandosuamão,enemmeimporteiquandoogarçomlançouum

olhar inquisitivoàsnossasaliançasdenoivado.“MasMehmetdeveestar seperguntandoseumdiaserá capaz de se apaixonar profundamente por umamulher decente. Na verdade, deve estar empânico.”“Ah,masquepena!”,disseSibel.“Etudoporcausadessasmoçasqueoevitavam…”“Bem,elenãodeviatê- lasespantado.Asmoçastêmrazãodetomarcuidado.Oquevaiacontecer

comelas se dormiremcomumhomeme elenão se casar comelas?Se anotícia correr e ela forlargadanessasituação,oquepoderáfazer?”“Éumacoisaqueelasimplesmentepercebe”,disseSibelemtomcuidadoso.“Oquê?”“Sepodeounãoconfiarnumhomem.”“Nãoétãosimplesassim.Muitasmoçassofremmuitoenãoconseguemchegaraumadecisão.Ou

entãoacabamcedendoaodesejo,mas ficamcom tantomedoquenão sentemomenorprazernacoisa…Nemseiseexistealgumajovemcapazdeaproveitaroqueforpossívelsemseincomodarcomas consequências. EMehmet, se não tivesse escutado todas essas histórias de liberdade sexual naEuropacomabocacheiad’água,podianão terenfiadonacabeçaqueprecisava fazer sexocomamoça antes de se casar com ela, só para ser moderno ou civilizado; o provável é que tivesseconseguidoumcasamento feliz comumamoça decente e apaixonada por ele.Mas agora olhe sócomoestá,todonervosonaquelacadeiraaoladodeNurcihan.”“ElesabequeNurcihandormiucomoutroshomensnaEuropa…Euseiqueissoodeixaintrigado,

mastambémlhedámedo”,disseSibel.“Venha,vamosdar- lheumaajuda.”AorquestraFolhasdePratatocava“Felicidade”,umnúmeroadocicadodesuapróprialavra.Mas

Page 96: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

euestavanomesmoespírito,efiqueiemocionado.EnquantosentiameuamorporFüsuncorrerporminhasveias—tantadoretantafelicidade—,conseguiaindaassimassumirumarpaternal,dizendoaSibel que era provável que aTurquia se tornasse tãomodernaquanto aEuropadali auns cemanos,equequandoaquelediachegassetodosselivrariamdesuaspreocupaçõescomavirgindadeecomoqueosoutrospensavam,livresparaamareserfelizescomolhesforaprometidonocéu.Masatéentãoamaioriadaspessoascontinuariaasofrerasagoniasdoamoreasdoresdosexo.“Não,não”,disseminha lindaebondosanoiva. “Senósdoisconseguimos ser felizesassimhoje,

elestambémpodem.PorquesemdúvidavamoscasarNurcihaneMehmet.”“Muitobem,então,qualéseuplano?”“Que bela visão— noivos hámenos de uma hora e já enfiados sozinhos num canto?” Era um

cavalheirocorpulentoquenenhumdenósdoisconhecia.“Possosentar-mecomvocês,KemalBey?”Semesperarresposta,pegouumacadeiraesentou-seaonossolado.Erarelativamentejovem,teriatalvezquarentaepoucosanos,paraostentarumcravobranconalapelaeusarumenjoativoperfumefemininoadocicado,emquantidadesuficienteparadeixarqualquerumtonto.“Quandoanoivaeonoivoserefugiamnumcanto,ocasamentoperdeagraça.”“Aindanãonoscasamos”,disseeu.“Sóficamosnoivos.”“Mas todomundo está dizendoque essa linda festa denoivado está sendomais suntuosa que o

maisgrandiosodoscasamentos,KemalBey.Ondemaispodeserseucasamento,alémdoHilton?”“Desculpe,mascomquemtenhooprazerdeconversar?”“Perdão,KemalBey,o senhor temtodoodireitodeperguntar.Nós,escritores, imaginamosque

todomundosabequemsomos.MeunomeéSüreyyaSabır.Osenhortalvezmeconheçapelomeupseudônimo,‘Cravo-Branco’,noAks¸am.”“Sim, claro, nãoháninguémem Istambul quenão leia o que o senhor escreve em sua coluna

social”,disseSibel.“Massempreimagineiquefosseumamulher—osenhorentendetantodemodaederoupas.”Interrompigrosseiramenteparaperguntar:“Foiconvidadoporquem?”.“Obrigado pelo elogio, Sibel Hanım. Mas, na Europa, homens requintados que entendem de

modanãosãoincomuns.EKemalBey,asregrasdaimprensanaTurquiapermitemqueosjornalistascompareçam a qualquer reunião aberta ao público, bastandomostrar a carteira de jornalista. Pordefinição,qualquerreuniãoanunciadaporconvitesé ‘abertaaopúblico’.Aindaassim,nunca fuiauma festa para a qual não tenha sido convidado. Estou aqui nesta linda noite a convite de suaestimadamãe.Graçasàsuavisãomodernadavida,elaconheceovalordoquechamamdecolunasocial,eeuprefirochamardenotícias,demaneiraquemeconvidaparamuitasdas festasquedá.Tãograndeéaconfiançaentrenósqueàsvezes,quandonãopossocompareceradeterminadafesta,conversamospelotelefonenodiaseguinte,equandomesentoparaescrevercitooqueelamedissepalavraporpalavra.Porque—comovocê,minhaqueridajovem—elaprestamuitaatençãoatudo,enuncamedá falsasnotícias.Nuncahouveumenganonaminhacolunasocial,KemalBey,nemnuncavaihaver.”Sibelmurmuroualgumacoisacomo:“AchoqueosenhorentendeumalaperguntadeKemal.Ele

nãoquisdizernada”.

Page 97: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Agora mesmo, algumas víboras estavam dizendo que todo o estoque de uísque e champanhecontrabandeadode Istambuldeveestarneste salão.Nossopaísestá sofrendodeescassezdedivisasestrangeiras,enemtemos recursosparamanternossas fábricas funcionandoouparacompraróleodiesel!Existemcertaspessoas,KemalBey—inimigosinvejososdariqueza—,quepoderiamescreverartigos perguntando ‘Deonde vem toda essa bebida contrabandeada?’ sópara lançaruma sombrasobre esta linda noite… Mas, como eu jamais sonharia em tentar perturbá-lo, vou esquecerimediatamentesuaspalavrasimpensadas,paratodoosempre.E,comotemosumaimprensalivrenaTurquia,voulhepedirpararespondercomsinceridadeumaúnicapergunta.”“Claro,SüreyyaBey.”“Poucotempoatrásvivocêsdoisenvolvidosnumaconversaséria,efiqueicurioso.Doqueestavam

falando,tãopoucotempodepoisdonoivado?”“Estávamosdiscutindosenossosconvidadostinhamgostadodacomida”,respondi.“Sibel Hanım, tenho uma boa notícia para você”, disse o Cravo-Branco em tom alegre. “Seu

futuromaridonãosabementir!”“Kemaltemmuitobomcoração”,disseSibel.“Estávamosfalandodoseguinte:quemsabequantas

pessoasaquipresentesnãoestarãoangustiadasporsabeláqualproblemaamoroso,matrimonialouatéligadoaosexo?”“Aaah, sim”,disseo colunistademexericos aoouvi- ladizer apalavraque só recentemente fora

descoberta pela imprensa e, na verdade, transformada numa espécie de fetiche; e como não eracapazdedecidirseeramelhorparaeleagircomosetivesseacabadodeouvirumaconfissãodignadeescândalo, ou se seria mais recomendável demonstrar simpatia com a intensidade do sofrimentohumano, ficou por um momento em silêncio. “Vocês, claro, são pessoas modernas e felizes, àvontadenessesnovostempos”,disseelefinalmente.“Jádeixaramtodaessadorparatrás.”Nãofalavaemtomsardônico,mascomumasinceridadesemesforçocultivadaatravésdaexperiência,quelherecomendava sempre a bajulação em situações difíceis. Simulando compaixão por pessoasmenosafortunadas do que nós, começou a nos contar histórias sobre os nossos convidados: a jovemirremediavelmenteapaixonadapelofilhodeFulano;amoçaquevinhasendomantidanoostracismopelas boas famílias por seu comportamento excessivamente liberal, ao mesmo tempo em que oshomensadesejavam;amãequeescolheracertoplayboyricoparafuturogenro;ofilhodescuidadode outra família próspera que se apaixonara, embora já comprometido comoutra. Sibel e eu nãoconseguimos evitar de nos interessar por suas histórias, e, quando o Cravo-Branco percebeu,dedicou-seacontá-lascommaisdetalhesainda.Estavaexplicandoquetodasaquelas“calamidades”ficariam óbvias, assim que o baile começasse, quando minha mãe chegou para nos dizer queestávamossendomuitogrosseirosequetodosestavamolhandoparanós,emandouquevoltássemosparanossamesa.Assimque retomeiminhacadeiraao ladodeBerrin,a imagemdeFüsunacendeu-seemminha

mentecomtodaaforça,comoseumaparelhodetelevisãotivessesidoligado.Masdessavezoclarãodaimagememanavaalegria,enãotristeza,iluminandonãosóaquelanoitecomotodoomeufuturo.Porumbrevemomento,reconheci-mecomoumdesseshomenscujaverdadeirafontedefelicidadeéaamantesecreta,masfazemdecontaquesãoamulhereosfilhos—tambémeuprecisavafingirque

Page 98: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

eraSibelquemmedeixavafeliz,eaindanemestávamoscasados.Depois de conversar algum tempo com o colunista social,minhamãe voltou para nossamesa.

“Cuidadocomessesjornalistas,estábem?”,disseela.“Elesescrevemtodotipodementirasecausamproblemas terríveis. Depois dão telefonemas de ameaça para seu pai, dizendo que ele precisacomprarmais anúncios no jornal. Por que vocês dois não se levantam e começamo baile?Todomundoestáesperandoporvocês.”Evirou-separaSibel:“Aorquestraestáseaquecendo.Oh,comovocêestálindaeelegante”.SibeleeudançamosumtangotocadopelaorquestraFolhasdePrata.Todosnosolhavam,oque

deuumailusãodeprofundidadeànossaalegria.Sibelpassouobraçoporcimadomeuombrocomosemeabraçasse,eencostouorostonomeupeitocomoseestivéssemosdançandonocantoescurodeumadiscoteca;aintervalos,elasorriaemurmuravaalgumacoisa,edepoisdedarmosumavoltaeuolhava por cima do seu ombro para qualquer pessoa que ela tivesse assinalado pouco antes— ogarçomcujapesadabandejanãooimpediadepararparasorrirdanossafelicidade,ouamãedela,que chorava de alegria, ou uma senhora cujos cabelos lembravam um ninho de pássaros, ouNurcihanouMehmet,sentadosdecostasumparaooutroagoraqueostínhamosdeixadoasós,ouosenhor de noventa anos que fizera uma fortuna durante a Grande Guerra e não conseguia maiscomersemaajudadocriado,queusavaumagravatadecordão—masemnenhummomentoolheiparaofundodojardim,ondeFüsunestavasentada.EnquantoSibelcontinuavaafalaranimada,eramelhorqueFüsunnãonosvisse.Houveumaexplosãodeaplausos,nãoduroumuito,econtinuamosadançarcomosenadativesse

acontecido.Quandooutroscasaisselevantaramparadançar,voltamosparanossamesa.“Foiótimo.Vocêsestavamlindos,juntos”,disseBerrin.Aessaaltura,acho,Füsunaindanãoestava

napista.SibelsepreocupavatantocomafaltadeprogressoentreNurcihaneMehmetquemepediuparaconversarcomele.“DigaaMehmetparafazerumpoucomaisdeforça”,disseSibel,masnãofiznada.Berrin seenvolveuaessaaltura,enumsussurronosdisseque tentar resolveraquestãoàforçaeramáideia;vinhaobservandotudodeseuladodamesaenãoeraapenasMehmet;osdoissemostravam esquivos, ou pelomenos nervosos, e se não tinham simpatizado um com o outro nãoadiantavaquererforçá-losaficarjuntos.“Não”,disseSibel,“asfestasdecasamentotêmumaespéciedeencantamento.Énoscasamentosquemuitaspessoasconhecemofuturocônjuge.Enãosãosóasmoças que ficammais suscetíveis nos casamentos; os rapazes também.Mas precisamde ajuda…”“Doquevocêsestãofalando?Contemparamimtambém”,dissemeuirmão,juntando-seàconversaem sussurros, e assim que tomou conhecimento da situação assinalou em tom de exortação que,emboraostemposdoscasamentosarranjadostivesseficadoparatrás,aTurquianãoeraaEuropa,enãohaviamuitosmodosparaumcasalseconhecer,oquefaziacomqueboapartedofardocaíssesobre casamenteiros informais e bem-intencionados. Em seguida, esquecendo aparentemente queNurcihaneMehmet tinhamprovocadoaquelaconversa,virou-separaNurcihanedisse:“Imagino,porexemplo,quevocênuncaaceitariaosarranjosdeumcasamenteiro,nãoé?”.“Seohomemforbom,nãofazdiferençaamaneiracomoéencontrado,OsmanBey”,respondeu

Nurcihancomumrisinho.Todos rimos como se tivéssemos ouvido algo tão absurdo que só podia ser uma piada. Mas

Page 99: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Mehmetficoumuitovermelhoenosdeuascostas.“Nãoestávendo?”,sussurrouSibelnomeuouvidopoucodepois.“Elaoassustou.Eleachouque

elaestavazombandodele.”Eu não estava nem um pouco atento às pessoas na pista de dança. No entanto, quando nosso

museufoicriado,osr.OrhanPamuklembrouqueaessaalturaFüsunjá tinhadançadocomduaspessoas.Elenãosabiaquemeraounãoselembravadoprimeiropar,emboraeuimaginequetenhasidoKenan, daSatsat.O segundo, porém, foi o jovemcomquemeu trocara olhares pouco antesquando visitara a mesa da família Pamuk— o próprio Orhan Pamuk, como ele, orgulhoso, mecontariaalgunsanosmaistarde.OsinteressadosnaformacomoOrhanBeydescreveossentimentosque teve dançando com Füsun devem dirigir-se ao último capítulo deste livro, intitulado “Afelicidade”.Enquanto Orhan Bey conduzia a dança que anos mais tarde viria a descrever com extrema

franqueza,Mehmet decidiu que estava farto dos risinhos deNurcihan e de nossas observações deduplosentidosobreoamor,ocasamento,oscasamenteirosea“vidamoderna”,eabandonouamesa.Namesmahora,nossaanimaçãodiminuiu.“Foimuitagrosserianossa”,disseSibel.“Partimosocoraçãodorapaz.”“Nãoolhemparamim”,disseNurcihan.“Não fiznadaamaisquevocês.Todosvocêsbeberam

bastanteeestãosedivertindo.Mehmetéqueandafrustrado.”“SeKemalotrouxerdevoltaparaamesa,vocêirátratá- lobem,Nurcihan?”,perguntouSibel.“Eu

seiquevocêpoderiafazê-lomuitofeliz.Eeleavocê.Masvocêprecisasergentilcomele.”Pareceu agradar a Nurcihan ver Sibel tão abertamente determinada a juntá-la a Mehmet.

“Ninguémestáfalandodemarcarumcasamentoparaamanhã”,disseela.“Elemeconheceu,podiatermeditoumaouduascoisasbonitas.”“Elebemquetentou.Équenãoestáacostumadoaconversarcommoçastãosegurasdesiquanto

você”,disseSibel;rindo,sussurroumaisalgumascoisasnoouvidodeNurcihan.“Vocêssabemporqueosrapazesdestepaísnuncaaprendemaflertarcomasmoças?”,perguntou

meu irmão. Estava com a expressão encantadora que sempre usava quando bebia. “É que nãoexistemlugaresparaflertar.Enemtemospalavrananossalínguapara‘flerte’.”“Eume lembro bem da sua ideia de flerte”, disse Berrin. “Antes de ficarmos noivos, vocême

levavaaocinematodatardedesábado…Esempretraziaumrádioportátil,parasaberquantoestavaojogodoFenerbahçeacadaintervalo.”“Nadadisso,eunãolevavaorádioparaouviro jogo,maspara impressionarvocê”,rebateumeu

irmão.“EumeorgulhavadeserodonodoprimeirorádiotransistordeIstambul.”Então Nurcihan confessou que sua mãe costumava gabar-se de ter sido a primeira mulher da

Turquia a usar um liquidificador. E nos contou como, no final dos anos 1950, muito antes queexistisse suco de tomate em lata, sua mãe servia às suas amigas suco de tomate, cenoura, aipo,beterraba e rabanete quando vinham jogar bridge, e, enquanto as senhoras davam goles em seuscoposdecristal,elaaslevavatodaorgulhosaatéacozinhaparalhesmostraroprimeiroliquidificadorque chegara ao país. Enquanto ouvíamos amúsica ligeira daqueles tempos, lembramos de comocada família burguesa de Istambul disputava com as demais qual seria a primeira a possuir um

Page 100: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

barbeadorelétrico,umabridorelétricodelatas,umafacaelétricaeváriasoutrasinvençõesestranhase perigosas, que cortavam as mãos e a pele do rosto enquanto tentavam aprender a usá-las.ConversamossobreosgravadoresdefitatrazidosdaEuropaquegeralmenteenguiçavamnaprimeiravezqueeramusados,ossecadoresdecabeloquequeimavamosfusíveisdacasa,osmoedoresdecaféquedeixavamascriadasempânico,osaparelhosdefazermaioneseparaosquaisnãoseencontravampeçasdereposiçãonaTurquia,masqueninguémtinhacoragemdejogarforaeporissorelegavamaalgumcantoremotodacasa,ondeficavamjuntandopoeira.Nesseínterim,enquantoríamosdetudoisso,Zaim-Merece-Tudosentou-senacadeiraqueMehmetdeixara,edaliaquatrooucincominutosconseguiraentrarnaconversaemurmuravacomentáriosnoouvidodeNurcihan,fazendo-arir.“Oqueaconteceucomsuamodeloalemã?”,perguntouSibelaZaim.“Jásecansoudela,comofaz

comtodas?”“Ingenãoeraminhaamante.EvoltouparaaAlemanha.”Zaimfalavasemperdernadadeseubom

humor. “Éramos apenas colegas de trabalho, e eu só saía com ela para lhe mostrar a noite deIstambul.”“Estáquerendodizerentãoquevocêsdoiseramapenasbonsamigos”,disseSibel,usandoumadas

expressõesrecém-popularizadaspelasrevistasdecelebridades.“Eu vi Inge hoje mesmo, no cinema”, disse Berrin. “Ela apareceu na tela, tomando um gole

daquelerefrigerantecomosorrisoconvidativodesempre.”Virou-separaomarido:“Foinahoradoalmoço—faltouluznocabeleireiro.FuiaoSite—eramJeanGabineSophiaLoren”.Virou-separaZaim: “Eu vejo Inge em toda parte— em cada quiosque da cidade; e agora não sãomais só ascriançasquetomamMeltem,étodomundo.Vocêestádeparabéns”.“Calculamosbemomomento”,disseZaim.“Etambémtivemossorte.”Vendo o espanto nos olhos deNurcihan, e sabendo que Zaim esperava que eu lhe desse uma

explicação,informeirapidamenteaNurcihanquemeuamigoeraodonodaşektaş,aempresaquelançararecentementeorefrigeranteMeltem,equeeletambémnostinhaapresentadoInge,alindamodeloalemãquepodiaservistanoscartazesespalhadosportodaacidade.“Vocêjáteveaoportunidadedeexperimentarnossosrefrigerantesdefrutas?”“Claroquesim.Egosteiespecialmentedodemorango”,respondeuNurcihan.“Nemosfranceses

conseguiramlançarnadatãosaborosonosúltimosanos.”“VocêmoranaFrança?”,perguntouZaim.Zaimconvidou-nosatodosparavisitarsuafábricanaquelefimdesemana,prometendoaindaum

passeio de barco pelo Bósforo e um piquenique na floresta de Belgrat, logo além dos limites dacidade.TodamesaolhavaparaeleeNurcihan.Daliapoucoosdoisselevantaramparadançar.“VáprocurarMehmet”,disseSibel.“EleprecisasalvarNurcihandeZaim.”“Temcertezadequeelaquersersalva?”“Nãoqueroverminhaamigaengolidainteiraporessecasanovadesegunda,cujaúnicaambição

navidaélevarasmoçasparaacama.”“Zaimtembomcoraçãoeéhonesto.Sótemumfracopormulheres.SeráqueNurcihannãopode

sedivertirumpoucoaqui,comosedivertianaFrança?Vocêachatãonecessárioqueelasecase?”“Os francesesnãodesprezamamulherquedormecomumhomemantesdocasamento”,disse

Page 101: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Sibel.“Mas,aqui,omenordeslizepodeacabarcomareputaçãodequalqueruma.Alémdisso,nãoqueroverMehmetdecoraçãopartido.”“Nem eu. Mas também não quero que os assuntos amorosos de outras pessoas sejam mais

importantesqueonossonoivado.”“Achoquevocênãoentendeoprazerqueexisteempromoveroencontroentreaspessoas”,disse

Sibel. “SeNurcihan eMehmet se casarem, pense só, eles podem ser nossosmelhores amigos pormuitosanos.”“Duvido que Mehmet consiga arrancar Nurcihan de Zaim hoje à noite. Ele sempre evita o

confrontocomoutroshomensduranteasfestas.”“Éporissoquevocêprecisairconversarcomele,recomendarquenãotenhamedo.Eucuidode

Nurcihan,nãosepreocupe.Vá—váetragaMehmetdevoltaagoramesmo.”Quandomelevantei,elame dirigiu um sorriso carinhoso. “Você estámuito bonito”, disse ela. “Não pare para ficar deconversa.Voltelogoemetireparadançar.”Passou-mepelacabeçaqueeupodiadepararcomFüsunenquantocirculavademesaemmesaà

procuradeMehmet,emmeioaosconvidadosalegres,ruidososesemi-intoxicados.Haviatrêsamigasdaminhamãequefrequentavamminhacasatodaquarta- feiraaolongodaminhainfânciaparajogarbezique.Comamesmaespontaneidadequedeveterlevadotodasatingiroscabelosdomesmomatizdecastanho,elaseosmaridoscomeçaramaacenarjuntosparamimdesuamesa,chamando“Ke-maaaal”comoseconvocassemumacriança.Emseguida,viumjornalistaamigodomeupaiquedezanosmaistardeficariafamosoaoderrubaroministrodosImpostoseDireitosAlfandegários,oquallhe cobrouum subornoobscenamente extorsivoque ele entregoudentrodeuma imensa caixa debaklavarepletademaçosdenotas,encimadaporumafotodeAntep.Maistarde,revelouaopúblicoa transcrição fiel da conversa íntima que se seguiu entre eles, registrada pelo gravador que levavapreso debaixo do braço com esparadrapo. Ele está gravado em minha memória envergando seusmoking branco, com suas abotoaduras de ouro, suas unhas feitas banhadas no perfume quepermaneceuemminhamãopormuitotempodepoisqueeleaapertou.Comoocorriacomtantosdos semblantespresentesnas fotografiasqueminhamãerecortava tão

escrupulosamenteparaarrumaremnossosálbuns,tantosrostosentreosconvidadosmepareciamtãofamiliares e tão próximos que eu ficava muito incomodado quando não conseguia descobrir osparentescosentreeles—quemeramaridodequemouirmãdequem.“Kemal,querido”,disseumasimpáticasenhorademeia-idadenesseexatomomento.“Lembra-se

de termepedido emcasamento quando tinha seis anos?”Foi só quando vi sua belíssima filha dedezoitoanosqueeuareconheci.“Oh,tiaMeral,suafilhaéigualavocênaqueletempo!”,disseeuàprimaemsegundograudaminhamãe.Quandoamãemedissequeinfelizmenteelasprecisavamiremboramais cedo,porque a filha iriaprestar vestibularnodia seguinte, percebiqueentremimeminhajovialtiahaviaamesmadiferençadeidade—dozeanos,paraserpreciso—queexistiaentremim e sua belíssima filha, consciência queme provocou um estupor momentâneo, pois cedi aoimpulsodeolharnadireçãoexataquevinhaevitando,masFüsunnãoestavavisívelnemàmesanosfundosnemnapistadedançalotada.Foipoucodepoisdomomentoemquebateramestafotografiaemqueapareçocom“Güven,oAfundadordeNavios”,donodeumacompanhiadeseguros.Nãose

Page 102: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

vêmeurosto,sóminhamão,nafotoqueadquirianosmaistardedeumcolecionadorcujacasaerarepletadepilhasemaispilhasde fotografiasdecasamentoseoutras festasnoHilton.Noutra,queseria tirada três segundosmais tarde,obanqueiroao fundoestariaapertandominhamão, tendoseapresentadocomosóciodopaideSibel, revelaçãoquemefez lembrarcomalgumasurpresaque,toda vez—melhordizendo,nasduas vezes— que eu fora àHarrods deLondres, eu vira aquelemesmocavalheiroabsortoemseuspensamentosenquantoescolhiacomcuidadoumternoescuro.Abrindo caminho em meio aos presentes, parando sempre que me pediam uma pose em

fotografiasdelembrança,fiqueiimpressionadocomaquantidadedemulheresquetinhamtingidooscabelosdelouroeaquantidadedehomensricoseextravagantesqueexibiamgravatas,relógios,anéise sapatos de sola grossa quase idênticos, e os bigodes e costeletas aparados com a mesmaimpressionanteuniformidade,masaomesmotempolembreiqueconheciatodoselesequetínhamosmuitasboas lembrançasemcomum,oquebastouparadespertaremmimumaondadenostalgiasentimentalededeslumbramentocomavidaquetinhapelafrente,depoisdabelezasemparalelodaquelanoite de verãoperfumadademimosas.Cumprimentei a primeiraMissEuropa turca, quedepoisdosquarentaanosdeidadeedoiscasamentosfracassadosdedicava-seabailesdearrecadaçãode fundos patrocinados por associações de proteção aos pobres, inválidos ou órfãos (“Idealismonenhum,meu querido, é que ela recebe uma porcentagem”, diziaminhamãe), e que visitava oescritóriodemeupaiumavezacadadoismesesparapedirdoações.Faleidabelezadanoitecomasenhoracujomarido,magnatadostransportesmarítimos,levaraumtironoolhoemorreraduranteuma briga de família, e que, desde então, sempre chorava nas festas e reuniões. Foi com granderespeitoqueaperteiamãomaciadeCelâlSalik(eexponhoaquiumadascolunasescritasporele),naépocaocronistamaisamado,maisestranhoemaiscorajosodaTurquia.Sentei-meparatirarumafotografia comos filhos, a filha e os netos do falecidoCevdetBey, umdos primeiros empresáriosmuçulmanosdeIstambul.NoutramesadeconvidadosdeSibel,aceiteiumaapostasobreoprovávelfinaldeOfugitivo,oseriadodetelevisãoquecativaratodaaTurquiaecujoúltimoepisódioiriaaoarna quarta- feira seguinte: o dr. Richard Kimble vinha sendo perseguido por um crime que nãocometerae,incapazdeprovarsuainocência,viviasempreemfuga!NofinalencontreiMehmetconfortavelmenteempoleiradonumbanquinho,nobaradjacenteao

jardim,tomandorakıcomTayfun,nossoex-colegadeturma.“Aaaah,todososnoivosestãofinalmentereunidos”,disseTayfunquandomesenteiaoladodeles.

Maisquecontentespornosencontrar;suapiadaevocouboaslembrançasqueprovocaramosorrisodenóstrês.DurantenossoúltimoanonoRobertCollege,muitasvezesentrávamosnaMercedesdopai deTayfun no começo da tarde e rumávamos para um bordel de gosto duvidoso instalado naantigamansãodeumpaxánascolinasacimadeEmirgân,ondesempredormíamoscomasmesmasmeninas, todas lindaseencantadoras.Essasmeninas,quesaíramconoscoalgumasvezesparaumavoltadecarroeporquemsentíamosumaafeiçãoprofundaquetínhamosdificuldadedeesconder,cobravammuitomenosdenósquedosvelhosagiotaseempresáriosbêbadosqueatendiamànoite.Amadame, uma velha prostituta de alta classe, sempre nos tratava com cortesia, como se nosencontrássemosnumbailedasociedadedoclubeCercled’Orient,emBüyükada.Massemprequenos via chegar com o paletó e a gravata do uniforme colegial, evidentemente em nossa hora de

Page 103: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

almoço,nosalãoondeànoitesuasmeninasdeminissaiaseinstalavamnosdivãs, fumandoelendofotonovelas enquanto esperavam a clientela, madame prorrompia em risadas, e chamava:“Meniiiiiinas!Seusnoivosdocolégiochegaram!”.PensandoqueMehmetpoderiaalegrar-secomaslembranças desse tempo feliz, falei da ocasião em que, tendo todos adormecido depois do amornaquelesquartosaquecidospelosoldeprimaveraqueseinfiltravaatravésdaspersianas,demoscomodesculpaàprofessora idosa: “Estávamosestudandobiologia”,eapartirdeentão“estudarbiologia”transformou-seemnossocódigoparaasidasaobordel.Lembramosquehaviaumletreiroàportadamansão, onde se liaCRESCENTHOTEL-RESTAURANT, e que todas asmeninas usavam falsosnomes botânicos— Flor, Folha, Dafne, Rosa. Certa vez, numa visita de fim de tarde, tínhamosacabadodesubircomasmeninasquandoumfamosomilionáriochegoucomseussóciosalemães;batendo nas portas dos nossos quartos, madame retirou as suas meninas às pressas e as mandoudescer para executarumadançado ventrepara seus clientes estrangeiros.Comoconsolo, tivemospermissãodenossentarquietosaumamesanofundodorestaurante,deondepodíamosassistir.E,enquantoelasrodopiavamemseustrajesdemeninasdoharém,cintilantesebordadosdelantejoulas,sabíamosqueeraanós,enãoàqueles ricaçosvelhos,que tentavamhipnotizar.Conversamoscomsaudade sobre aquele dia em que as vimos dançar, sabendo que as amávamos e que jamais nosesqueceríamosdenossasvisitasàquelelugar.SemprequeeuvoltavadosEstadosUnidosparaasfériasdeverão,meusamigosMehmeteTayfun

estavam prontos a pôr-me a par dos últimos acontecimentos mais bizarros, pois a cada vez quenomeavamumnovochefedepolíciaas regrasmudavam.Porexemplo,haviaumestabelecimentoqueocupavaumprédiogregode seteandaresnaavenidaSıraselviler;duranteumtempoapolíciadera batidas diárias, mas fechava apenas um dos andares, obrigando as meninas a receber seusadmiradores num outro que, ainda assim, era decorado exatamente com os mesmos móveis eespelhos…Numadas ruas transversaisdeNişantaşı, haviauma antigamansãodaqual os leões dechácara expulsavamqualquer cliente oupessoa interessadaque considerassemmenos ricodoquedeviaser.EhaviaaindaosserviçosmóveisdeşerminDeluxe,queeuviramaiscedonaquelamesmanoite na entrada do hotel, e que era conhecida por, doze anos antes, desfilar pela cidade em seuPlymouth 1962 rabo de peixe, percorrendo o Park Hotel, o Divan e o Taksim, parandoocasionalmente quando suas duas ou três meninas eram requisitadas. Se você telefonasse comantecedência, ela fazia inclusive “entregas em domicílio”.O tom ansioso demeus amigos dava aentenderque tinhamencontradomuitomais satisfaçãonesses lugares,ecomessasmeninas,equejamaisseriapossívelobterissocomasmoças“direitas”quetremiamdepreocupaçãocomahonraeavirgindade.NãoviFüsunemsuamesa,massuamãeeseupaiaindaestavamsentadosnosmesmos lugares.

PedimaisumrakıepergunteiaMehmetsobreosnovosestabelecimentosdacidade.Tayfungabou-sedeterasinformaçõesmaisatualizadassobreosbordéismaisnovoseluxuosos,e,então,comoqueparaprovaroquedizia,recitou-meumalistadedeputadosfamosossurpreendidosduranteasbatidasdapolícia,conhecidoscasadosque,quandoeleosviana saladeespera,viravam-seabruptamentepara a janela para evitar seu olhar, e de um general famoso por suas aspirações presidenciais quetinhamorridodocoraçãonosbraçosdeumagarotacircassianadevinteanos,numacamaquedava

Page 104: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

paraoBósforo,emboraaversãooficialfalassequemorreranacama,aoladodaesposa.Enquantoamelodia doce e suave, impregnada dememórias, tocava ao fundo, pude ver queMehmet tentavaesquivar-se ao veneno de Tayfun.Mudei de assunto, lembrando-lhe queNurcihan voltara para aTurquiacoma intençãodesecasar,eacrescenteiqueelachegaraadizeraSibelquesimpatizavacomele.“ElaestádançandocomZaim,oHomemdosRefrigerantes”,disseMehmet.“Sóparalhecausarciúme”,respondi,semnemolharparaocasalnapista.Depoisdealgunsmomentosdetimidez,MehmetadmitiuquetinhaachadoNurcihanatraente,e

que, se ela “estava mesmo disposta”, então ele teria o maior prazer de sentar-se ao lado dela esussurrardocesbobagensemseusouvidos,eque,setudodessecerto,ficariagratoamimatéofimdavida.“Entãoporquevocênãoatratoubemdesdeoinício?”“Nãosei,simplesmentenãoconsegui.”“Venha,então,vamosvoltarparaamesaantesquealguémtomeoseulugar.”Acaminhodamesa,parandoaquiealiparaabraçarmuitosconvidados,eucorriaosolhospela

pistadedança,àprocuradeNurcihaneZaim,quandoviFüsundançando…comojovemebonitofuncionário novo da Satsat, Kenan… Os corpos dos dois estavam próximos demais… Uma dorespalhou-sepelomeuestômagoquandovolteiaomeulugar.“Oquehouve?”,perguntouSibel.“Nãointeressa,nãovaidarcertocomNurcihan,elaestálouca

porZaim.Olhesóparaamaneiracomoestãodançando.Ah,nãofiquetristeassim.Tenhocertezadequevocêfezoquepôde.”“Vocêestáenganada.Mehmetaceitou.”“Entãoporquevocêestácomesseartãoaborrecido?”“Nãoestou.”“Meuquerido,émuitoclaroqueaalegriaabandonouvocêcompletamente”,disseSibelcomum

sorriso.“Jáestánahoradevocêparardebeber.”Aorquestra,emendandosempausaumnúmeronooutro,agoratocavaumamelodiamaislentae

dolente.Àmesafez-seumsilêncio,muitoprolongado,eeusentiaovenenodociúmemisturar-seaospoucosemmeusangue.Masnãoqueriapensarnisso.NemMehmetnemeuolhávamosparaapistadedança,masaexpressãodorostodosdemaisrevelavaqueamudançaderitmotinhafeitocomqueos casais passassem a dançar mais próximos, para deleite de alguns dos presentes à mesa econtrariedade de outros.Meu irmão falava, e depois de tantos anos nãome recordo de nada quedisse,masme lembrode ter tentadoprestar atenção.Bemnessemomentoaorquestracomeçouatocar um número aindamais edulcorado e romântico que o anterior, e agora até Berrin e Sibel,distraídas pouco antes, exibiam suas reações à visão dos casais quedançavam, enlaçando-se aindamais.Meucoraçãoeminhamenteencontravam-seemabsolutaconfusão.“Oquevocêestavadizendo?”,pergunteiaSibel.“Oquê?Nãoestavadizendonada.Vocêestábem?”“Vamosmandarumbilheteparaaorquestra,pedindoumintervalo?”“Porquê?Ora,peloamordeDeus,deixeosconvidadosdançarem”,disseSibel.“Olhe,atéosmais

Page 105: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tímidosestãodançandocomasmoçasqueficaramolhandoanoite inteira.Podeacreditar,metadedelesvaiacabarsecasandoexatamentecomessasmoças.”Nãoolhei.NemdeixeiquemeuolharcruzassecomodeMehmet.“Pronto,lávêmeles”,disseSibel.Poruminstante,penseiquefosseFüsunqueseaproximavacomKenan,emeucoraçãodisparou.

Mas eram Nurcihan e Zaim, que voltavam para a mesa. Meu coração continuava a bater semcontrole.EumelevanteideumsaltoepegueiZaimpelobraço.“Venhaaqui,querolheapresentarumabebidamuitoespecialnobar”,disseaele,elevei-oatélá.

Enquanto atravessávamos amassa de convidados e eu enfrentava uma nova gincana de abraços ebeijos, Zaim trocou alguns gracejos com duasmoças que demonstraram algum interesse por ele.Vendo como uma delas olhava para ele desesperançada (tinha longos cabelos negros e o narizadunco otomano), lembrei-me de ter ouvido alguns rumores sobre a paixão desvairada que eladesenvolveraalgunsverõesantes,chegandoatentarosuicídio.“Todasasmoçassãoloucasporvocê”,disseeuquandonossentamos.“Qualéoseusegredo?”“Acredite,nadadeespecial.”“Nãoaconteceumesmonadadeespecialcomamodeloalemã?”Zaimexibiuumsorrisotranquiloeesquivo.“Nãoestoumuitosatisfeitocomaminhafama”,disse

ele. “Se umdia eu encontrasse uma jovem tãomaravilhosa quanto Sibel, também iria querermecasar.Tenhodelhedarmeusparabéns—deverdade.Sibeléumamoçafabulosa.Eestouvendonosseusolhosoquantovocêestáfeliz.”“Naverdade,agoranemestoutãofelizassim.Eésobreissoqueeuqueriafalarcomvocê.Preciso

deajuda.”“Façoqualquercoisaporvocê,vocêsabedisso”,disseele,olhando-menosolhos.“Podeconfiar

emmim,efalelogo.”Enquantoobarmanpreparavanossosrakıs,olheiparaapistadedança.SeráqueFüsun,embalada

pelamelodiasentimental,apoiaraacabeçanoombrodeKenan?Aquelapartedapistaestavaescurademaisparaqueeupudessever,ecadatentativadeavistá- lareavivavaminhador.“Existeumamoçaqueéparentedistantedaminhamãe”,disseeu.“OnomedelaéFüsun.”“Aquelaqueparticipoudoconcursodebeleza?Elaestádançandoali.”“Comoéquevocêsabe?”“Elaémuitolinda”,disseZaim.“EuavejoquandopassoporaquelaboutiqueemNişantaşı.Como

todomundo,semprereduzoavelocidadeeolhoparaaloja.Elatemotipodebelezaquenãosaidacabeçadagente.Todomundosabequemelaé.”PreocupadocomapossibilidadedeZaimdizeralgumacoisaquetornasseasituaçãoembaraçosa

paranósdois,eumeadiantei:“Elaéminhaamante”.Viumaondadeinvejapassarpelorostodomeuamigo.“Sóvê-ladançandocomoutrapessoaestádoendodemais.Possodizerqueestouloucamenteapaixonadoporela.Estoutentandoimaginaralgumasaída.Nãoqueroqueessasituaçãoseprolongueportempodemais.”“Poisé,agarotaélinda,masasituaçãonãopodiaserpior”,disseZaim.“Evocêtemrazão,não

podedeixarqueseprolonguepormuitotempo.”

Page 106: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Não perguntei a ele por quê. Nemme perguntei se eramesmo inveja, ou desprezo, o que eupercebiano rostodomeuamigo.Mas ficouclaroquenãopodia lhecontarde imediatooqueeuqueriadele.Senti o impulsode lhedizerprimeirooquanto eraprofundae sincera essa coisaquehaviaentreFüsunemim,tentandoinspirar- lhealgumrespeito.Mas,quandocomeceialherevelaroqueeu sentiaporFüsun, ficouclaroque aminhaembriaguez sómepermitiria exprimir aspartesmaiscomunsdahistória,equesefossemuitosinceroquantoàsminhasemoçõeseleiriameacharfracoeridículo,eaté,apesardoseuprópriocomportamentoleviano,ficarcontramim.Imaginoquenofimdascontasoqueeurealmentequeriadomeuamigoeraoseureconhecimento,nãodoquantoeuerasincero,masdecomoeraumhomemdesorteedoquantoerafeliz.Éassimquevejohoje,tantos anos depois, mas naquele momento eu não podia sequer admitir essas coisas, e então,enquantonósdoisobservávamosFüsundançar,eminhacabeçagiravadetantoálcool,conteiminhahistóriaaZaim.ConteiqueeraoprimeirohomemcomquemFüsuntinhadormido,descrevendoafelicidadequetínhamosencontradonoamorfísico,faleidosnossosdesentendimentosdeamantesedeumasériedeoutrosdetalhesquemevieramàcabeçanaquelemomento.“Emsuma”,disseeu,subitamenteinspirado,“oqueeumaisqueronavidaéficarabraçadoaessamoçaatémorrer.”“Entendi.”Quandopercebineleumaempatiamasculina,desembaraçadadecensurapelomeuegoísmoou

dejulgamentomoraldaminhafelicidade,relaxei.“OquemeperturbanestemomentoéqueelaestádançandocomKenan,ofuncionáriomaisnovo

daSatsat.Elaestápondooempregodeleemperigosóparamedeixarenciumado…Claro,tambémestoucommedodequeelapossagostardele.Porque,verdadesejadita,Kenanseriaomaridoidealparaela.”“Sei”,disseZaim.“DaquiapoucovouconvidarKenanparaamesadomeupai.Oqueeuqueriaeraquevocêfosse

diretamente até Füsun e amantivesse ocupada, acompanhando cadamovimento dela, como umbommarcadornumjogodefutebol,paraeunãomorrerdeciúmehojeànoite—eparaconseguirchegaraofinaldafestasemsucumbiranenhumafantasianemdemitirKenan.Füsuneospaisdeladevemiremboradaquiapouco,poisamanhãelavaifazerovestibular.E,dequalquermaneira,onossocasoimpossívelprecisaacabardentroempouco.”“Nãoachoque a sua garota vá se interessarmuitopormimhoje ànoite”, disseZaim. “Eexiste

aindaumaoutraquestão.”“Oquê?”“EstouvendoqueSibelquermemanterlongedeNurcihan”,disseZaim.“Quercomeçaralguma

coisa entre ela eMehmet.Mas achoqueNurcihan gostoudemim.E eu gosto dela, gostomuito.Então queria que vocême ajudasse umpouco com isso.Eu sei queMehmet é nosso amigo,masquerocompetircomeleempédeigualdade.”“Eoquequerqueeufaça?”“Eunãopossoirmuitolongehojeànoite,nãocomSibeleMehmettrabalhandocontramim,e

agora,seaindaprecisodefenderessasuagarotadotalfuncionário,voutermenostempoparapassarcom Nurcihan. Então você precisa me compensar. Prometa que levará Nurcihan com você ao

Page 107: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

piqueniquenafábricadeMeltem.”“Prometido.”“EporqueSibelquermemanterafastadodeNurcihan,aliás?”“Bom,ela temmá impressãode você, com suasmodelos alemãse suasdançarinas…Sibelnão

gostadessascoisas.Elaquercasaraamigadelacomalguémqueachadeconfiança.”“Porfavor,digaaSibelqueeunãosoumápessoa.”“Éoqueeudigootempotodo”,respondienquantomelevantava.Fez-seumsilêncio.“Agradeçoo

sacrifício que você está fazendo por mim”, disse eu. “Mas, quando for tomar conta de Füsun,cuidado,nãováseencantarcomela.Porqueelaémaravilhosa.”AexpressãodeZaim,tãocheiadecompreensão,liberou-medesentirvergonhapormeuciúme.

Trouxe-mecertapaz,aindaquebreve.Devoltaàmesadafamília,eudisseameupai,caídonumestupordetantoquebebera,quequeria

apresentar- lheumfuncionárionovomuitointeligenteeesforçadochamadoKenan,sentadoàmesadaSatsat.ParanãocontrariarosdemaisempregadosmaisambiciososdaSatsat,escreviumbilheteemnomedemeupaieoentregueiaMehmetAli,umgarçomqueeuconheciadesdeaaberturadohotel, instruindo-lhe que transmitisse o bilhete a Kenan na pausa seguinte da orquestra. Nessemomento,minhamãeestendeuamãoetentoutirarocopoderakıdamãodemeupai,dizendo“Jáchega”, e na disputa derramouumpouco em sua gravata.Tinhamcomeçado a servir sorvete emtaçasquandoaorquestraFolhasdePratafezapausaseguinte.Naqueletempo,todosfumávamosumcigarroentreumpratoeoutrodarefeição.Asmigalhasdepão,oscoposmanchadosdebatom,osguardanapos marcados, os cinzeiros transbordantes, os isqueiros, os pratos sujos e os maçosamassadosdecigarrosdesencadeavamsensaçõesdolorosasemminhamenteconfusa,dizendoqueofimdanoiteseaproximava.Acertaaltura,umgarotinho,deseisoutalvezseteanosdeidade,sentou-senomeucolo,eSibelaproveitouadesculpaparavirsentar-seameuladoebrincarcomele.Eavisãolevouminhamãeaobservar:“Comovocêéjeitosacomele”.Muitaspessoasaindadançavam.Algunsmomentosmaistarde,meujovem,bonitoegarbosofuncionáriochegouàmesae,quandooex-ministrodoExteriorpôs-sedepé,umdelicadíssimoKenandisseaeleeameupaiquantahonrasentiaemconhecê-los.Depoisqueoex-ministrodoExteriorseafastoupesadamente,expliqueicomoKenanBeytinhadedicadoconsiderávelreflexãoàexpansãopotencialdaSatsatnasprovíncias,equetinhaumconhecimentoespecialdeEsmirna.Elogiei-omuito,demodoquetodosdamesapudessemouvir.Meupaientãocomeçoua lhe fazerasperguntasque sempredirigiaaosnovos funcionários:“Que línguas estrangeiras você fala, meu filho? Gosta de ler, tem algum hobby, é casado ousolteiro?”.“Elenãoécasado”,disseminhamãe.“AgoramesmoeleestavadançandolindamentecomafilhadeNesibe,Füsun.”“Elafloresceuevirouumaverdadeirabeldade”,dissemeupai.“Nãodeixeesses dois, pai e filho, ficarem cansando o senhor com conversas de negócio, Kenan Bey”, disseminhamãe.“Deveestarquerendovoltarparajuntodosseusamigos.”“Demaneiranenhuma,minhasenhora!AhonradeconhecerMümtazBey—deconhecertodosvocês—émuitomaisimportante.”“Que rapaz fino e delicado”, sussurrouminhamãe, embora alto o suficiente para ser ouvida porKenan.“Seráqueoconvidoparairláemcasaumanoitesdessas?”Quandominhamãegostavadealguémouoaprovavademaneirageral,faziaquestãodeserouvida

Page 108: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

porelequandonosfaziaseuscomentáriosàparte,porquegostavadevernoacanhamentodapessoaelogiada a prova de sua própria autoridade. E minha mãe sorria com essa satisfação quando aorquestra Folhas de Prata recomeçou, com um número muito lento e sentimental. Eu vi Zaimacompanhando Füsun para a pista de dança. “Vamos falar das possibilidades da Satsat nasprovíncias, agora que meu pai também está aqui”, disse eu. “Meu filho, vai me dizer que estápensandoemfalardenegóciosagora,nasuafestadenoivado?”“Minhasenhora”,disseKenanparaminha mãe, “a senhora pode não saber, mas três ou quatro vezes por semana, depois que todomundojáfoiembora,seufilhoficaatébemmaistardeecontinuatrabalhando.”“ÀsvezesKenaneeu trabalhamos juntos até mais tarde”, acrescentei. “Sim, Kemal Bey e eu gostamos do nossotrabalho”,disseKenan.“Àsvezes,quandoficamuitotarde,começamosa fazerrimase trocadilhoscomosnomesdaspessoasquenosdevemdinheiro.”“Estámuitobem”,dissemeupai.“Masoquevocês fazem com os cheques sem fundos?” “Eu queria uma reunião com os distribuidores paradiscutiressaquestão,papai”,disseeu.Enquanto a orquestra tocava umamúsica lenta atrás da outra, nossa conversa foi das possíveis

inovaçõesnaSatsataoslocaisdelazerquemeupaifrequentavaemBeyoğluquandoeradaidadedeKenan,aosmétodosadotadosporİzakBey(oprimeirocontadordemeupai)—paracujamesaagoranos viramos,erguendonossoscoposnoquedeve terparecidoaocontadorum tributoenigmático.Emseguida,nosdedicamosacontemplaroquemeupai saudavacomoasbelezasda juventudeedaquela noite, e, acrescentou em tom de brincadeira, “do amor”. Apesar da pressão domeu pai,Kenanrecusou-searevelarseestavaapaixonadoounão.Oquenãoimpediuminhamãedeinterrogá-losobresuafamília,e,aosaberqueseupaitinhaumempregonoconselhomunicipaletrabalharamuitos anos como condutor de bondes, disse comum suspiro: “Oh, como erammaravilhosos, osvelhosbondes!”.Maisdemetadedosconvidados já se foraaessaaltura.Meupaimalconseguiamanterosolhos

abertos.Quandominhamãeemeupaibeijaramcadaumdenósnorosto,preparando-separairembora,

minhamãe disse: “Não fique atémuito tarde,meu filho”, olhando nos olhos de Sibel, e não nosmeus.Kenanqueria voltarpara juntodos seusamigosnamesadaSatsat,maseunãoodeixavapartir.

“VamosatéalifalarcommeuirmãosobrealojaquepodemosabriremEsmirna”,disseeu.“Nãoétodahoraqueestamosostrêsnomesmolugar.”Encarreguei-medeapresentarKenanameuirmão,emeuirmão(quejáoconheciahaviaalgum

tempo)levantouumasobrancelhadesdenhosa,declarandoqueeudeviaestarabsolutamentebêbado.Emseguida,olhouparaBerrineSibel,indicandocomacabeçaocopoemminhamão.Sim,eujátomara dois copos de rakı a essa altura, um atrás do outro, porque, cada vez que avistava Zaimdançando com Füsun, o rakı era meu único alívio de um ciúme ridículo. Enquantomeu irmãoconversavacomKenansobrea logísticadacobrançadecontasatrasadas, todasaspessoasdanossamesa, inclusive Kenan, olhavam para Zaim dançando com Füsun. Até Nurcihan, que estava decostasparaeles,sentiuqueZaimseinteressaraporalgumaoutramulhereestavaficandoinquieta.Acertaaltura,pensei:“Estoufeliz”.Pormaisembriagadoqueestivesse,aindatinhaaimpressãodeque

Page 109: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tudo corria a meu favor. No rosto de Kenan eu reconhecia uma espécie de inquietação muitofamiliar, de maneira que peguei este copo alto e estreito (ver na exposição) e servi um rakı deconsolaçãoameujovemeambiciosoamigo,que,devidoaosúbitointeressequelhededicavamseuspatrões, perdera amoça que tinha nos braços pouco antes. Nessemomento,Mehmet finalmentechamou Nurcihan para dançar, e Sibel virou-se para me dirigir uma piscadela conspiratória,acrescentandoemtomsuave:“Vocêjábebeudemais,querido.Nãobebamais”.Encantado por sua solicitude, conduzi Sibel para a pista de dança e, no momento em que

chegamos lá,percebiquecometeraumerro.AorquestraFolhasdePrata tocava“Uma lembrançadaquele verão”, queme trazia àmente o verão anterior, em que Sibel e eu fomos tão felizes, e,enquantoamúsicaevocavaessaslembrançascomumaforçairresistível—comoesperotambémsejaopoderdosobjetosexpostosnestemuseu—,Sibelmeabraçoucomosefosseaprimeiravez.Comoeu gostaria de responder com o mesmo ardor àquele abraço da minha noiva, com quem iriacompartilharorestodaminhavida.MassóconseguiapensaremFüsun.Tentavaavistá- laemmeioaos convidados e, comonãoqueriaqueme visse trocandoumabraço amoroso comSibel, eumecontive.Deixei-medistraircomosoutroscasais.Sorriamafetuosamenteparamim,comoaspessoasemgeralfazemaoveremonoivonaqueleestadodeplorávelnofinaldesuafestadenoivado.Acertaaltura,emparelhamo-noscomocolunistamaisamadodaquelaépoca,quedançavacom

umaatraentemulherdecabelosescuros: “CelâlBey,oamornão temnadaemcomumcomumacoluna de jornal, não é?”, perguntei.QuandoMehmet eNurcihan aproximaram-se de nós, eu ostrateicomosefossemamanteshaviadécadas.Fizumaderrapantetentativadeproporumgracejoemfrancês aZümrütHanım,que falava francês sempreque visitavaminhamãe,mesmoquandonãohavia ninguém por perto, supostamente para não ser entendida pelos criados. A essa altura, Sibeldesistiradeumadançadequeselembrariaparasempre,emurmuravaemmeuouvido,dizendo-mecomo eu era delicado quando bebia, desculpando-se por ter me forçado a fazer o papel decasamenteiro,aqueelaseentregara,segundomedisse,pensandosónafelicidadedosnossosamigos,eavisando-mequeovolúvelZaimafastara-sedeNurcihaneassestarasuamiranaquelamoçaqueeraminhaparentedistante.Franzindoorosto,eudisseaelaqueZaimeraótimapessoa,eumamigodetodaconfiança.AcrescenteiqueZaimestavaquerendosaberporqueelaotratavatãomal.“QuerdizerquevocêandouconversandoameurespeitocomZaim?Oqueeledisse?”,perguntou

Sibel. Durante o intervalo entre as músicas, aproximamo-nos novamente do cronista Celâl Salik.“Descobriumacoisaqueoamortememcomumcomumaboacolunadejornal,KemalBey”,disseele. “O quê?”, perguntei. “O amor, como uma coluna de jornal, precisa nos deixar felizes agora.Julgamos a beleza e o poder de ambos pela profundidade da impressão imediata que produz naalma.”“Mestre,porfavorescrevaissonasuacolunaumdia”,disseeu,maselenãomeescutavamais,dandoatençãoàsuaparceiradedançadecabeloscordecorvo.NaquelemomentopercebiZaimeFüsunaonossolado.Füsunaproximaramuitosuacabeçadopescoçodeleesussurrava-lhealgumacoisa, e Zaim sorria alegremente. Pareceu-me que eram perfeitamente capazes de nos ver, masfingiamnãorepararemnósenquantorodopiavampelapistadedança.Semperder tempo,manobreiSibelnadireçãodeleseentão,comoumnaviopirataqueaborda

umgaleãomercante,fiznossoparesbarrardeladoemFüsuneZaim.

Page 110: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Ah, desculpe”, disse eu com uma risada estúpida. “Como vai?” A alegria confusa no rosto deFüsun me devolveu o bom senso e, ao mesmo tempo, percebi em minha embriaguez uma boadesculpa para uma iniciativa ousada.Virei-me paraZaim, entregando-lhe amão de Sibel. “Possooferecer- lheahonradestadança?”ZaimretirouamãodacinturadeFüsun.“Vocêsdoisprecisamseconhecermelhor”,disseeu, “e talvez sejabomcomeçaremdesde já.”Completandomeugestodesacrifício,pusminhasmãosem suas costas e empurreiumnadireçãodooutro.EnquantoSibel eZaimcomeçavamadançar,comóbviarelutância,Füsuneeutrocamosumrapidíssimoolhar.Emseguidapusminhamãoemsuacinturae,comalgunsgirossuaves,afastei-aomaisquepude,comoqualquerpretendenteanimadoquesepreparasseparafugircomaamada.Como descrever a paz que tomou conta demim nomomento em que a tomei nos braços?O

barulhodosconvidadosquetantomeincomodava,oescarcéuqueeuperceberacomoosomatóriodo tinidodos talheres,daorquestraedobarulhodacidade— agoraeuviaqueeraapenasminhainquietaçãoporestarlongedela.Comoumbebêquesóparadechorarnosbraçosdedeterminadapessoa,sentiumaprofunda,maciaeaveludadabênçãodesilêncioaseespalharpordentrodemim.Pela sua expressão, posso dizer que Füsun sentia a mesma coisa. Tomando o silêncio que nosenvolvia por nosso reconhecimento conjunto do encantamento compartilhado, desejei que aqueladançanuncaacabasse.Maslogopercebiqueametadedaquelesilêncioquecabiaaelasignificavacoisamuitodiversadaminha.OsilênciodeFüsunremetiaàperguntaqueeunãoreceberacomadevidaatençãomaiscedo,tratando-acomoumgracejo(“Oqueserádenós?”),eagoracabiaamimdar-lheumaresposta.Concluíqueeraparaissoqueelavieraàfesta.Ointeressequeoutroshomensdemonstravam por ela naquela noite, a admiração que eu via até nos olhos das crianças— tudoaquilolhedavaconfiança,aliviavaseusofrimento.Agoraelapodiameveremperspectiva,comoum“caprichopassageiro”.Quandocomeceiaperceber,emminhaembriaguez,queanoitechegavaaofim,fuisurpreendidopelaideiaaterrorizantedeperderFüsun.“Quandoduaspessoasseamamtantoquantonós,ninguémpodesecolocarentreelas,ninguém”,

disseeu,surpresocomaspalavrasquelhediziasemnenhumareflexão.“Apaixonadoscomonós,porsaberquenadaécapazdedestruiroseuamor,mesmonospioresdias,mesmoquandosedescuidameferemumaooutrodamaneiramaiscruelementirosa,aindaassimtrazemnocoraçãoumconsoloquenuncaos abandona.Pode acreditar quedepois dehoje ànoite voudarum fima tudo isso, edeixartudoempratoslimpos.Estámeouvindo?”“Estououvindo.”Quandotivecertezadequeninguémquedançavapertodenósestavaolhando,eudisse:“Nósnos

conhecemosnummomentoinfeliz.Nosprimeirosdias,nenhumdenósdoistinhacomosabercomoerararoesseamorentrenós.Masagoravouacertartudo.Nossapreocupaçãomaisimediataéoseuexamedeamanhã.Hojeànoitevocênãodevemaisperderumminutosepreocupandoconosco”.“Entãomediga,oquevaiaconteceragora?”“Amanhã,comosempre...”(poruminstante,minhavozficoutrêmula),“àsduasdatarde,depois

quevocêacabarseuexame,vamosnosencontrarnoedifícioMerhamet.Aíeupossolhedizeroqueplanejo fazer em seguida, sem precisar me precipitar. Se você não confiar no que eu lhe disser,nuncamaisprecisarámever.”

Page 111: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Não,digaagora,eeuirei.”Comoerabomimaginar,emminhaembriaguezprofunda,queela iriaaomeuencontronodia

seguinteàsduasdatarde,quehavíamosdenosamarcomosempreequeficaríamosjuntosatéofimdosmeusdias;quandosentinasmãosseusombrosmagníficoseseusbraçoscordemel,resolviquefariatudoquepudesse,tudoquefossepreciso.“Ninguémvaiseintrometernovamenteentrenós”,disseeu.“Entãoestábem,euireiamanhãdepoisdoexame,evocê,comaajudadeDeus,nãovairecuarda

palavradada,eirámecontarcomoimaginafazeroquemedisse.”Enquantonós dois continuávamos de pé ao ritmodamúsica, perfeitamente eretos, comminha

mão amorosamente enlaçada em sua cintura, tentei trazê-la paramais perto demim.Ela resistiu,recusando-seaencostaremmim,oquemedeixouaindamaisexcitado.Mas,quandoficouclaroqueminhatentativadeenvolvê-lacomosbraçosnafrentedetodomundonãoestavasendoconsideradaumsinaldeamor,masprovademinhaembriaguez,controlei-meedesisti.“Precisamos sentar”, disse ela. “Estou sentindo os olhos de todo mundo em cima de mim.”

Começouadesembaraçar-sedosmeusbraços.“Vádiretoparacasaedurmaumpouco”,murmurei.“Duranteoexame,lembre-seapenasdoquantoeuaamo.”Quandovolteiparanossamesa,nãohaviamaisninguémemtornodela,alémdeBerrineOsman,

ambosderostofranzidoeimplicandoumcomooutro.“Vocêestábem?”,perguntouBerrin.“Perfeitamentebem”,respondi,contemplandoamesaemdesordemeascadeirasvazias.“Sibel não quis mais dançar, e Kenan levou-a com ele até a mesa da Satsat, onde estavam

disputandoalgumtipodejogo.”“Ébomque você tenhadançado comFüsun”, disseOsman. “No fimdas contas, foi erradoda

partedanossamãeterdadoumgelonela.ÉimportanteparaFüsuneparatodomundosaberqueafamília se interessa por ela, que todas aquelas bobagens em torno do concurso de beleza foramesquecidas, e que ela pode contar conosco. Eu me preocupo com ela. “She thinks she is toobeautiful”,disseeleeminglês.“Aquelevestidoéreveladordemais.Daquiaseismeseseladeixarádeserumacriançaesetornarámulher;elarealmentefloresceu.Senãosecasarlogocomotipocertode homem, primeiro vai criar reputação, e isto só pode levar à desgraça. O que ela estava lhecontando?”“Parecequeamanhãelavaifazerovestibular.”“Eaindaestáaquidançando?Jápassadameia-noite.”Eleaacompanhoucomosolhosenquanto

elaandavaaté suamesa.“GosteideverdadedoseuKenan,aliás.Achoqueeladeviacasar-secomele.”“Querqueeudigaissoaosdois?”,gritei,jámeafastandodele.Eraumacoisaqueeufaziadesdea

infância. Sempre quemeu irmão começava a falar, eu fazia o contrário do que ele pedia, e meretiravaparaocantomaisdistante,ignorandooqueeleacabaradedizer.Anosmais tarde, eu haveria de refletir sobreminha alegria eminha bem-aventurança naquele

momentodanoite,no caminhoentre aminhamesa e asmesasdo fundoondeos empregadosdaSatsat,Füsuneseuspaisestavamsentados.Euacabaradedarumjeitoemtudo,edaliatrezehorasequarenta e cincominutos tornaria ame encontrar com Füsun no edifícioMerhamet. Um futuro

Page 112: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

luminosomeesperava,eapromessadefelicidadecintilavacomooBósforoanossospés.Nomesmomomentoemqueeuriacomasbelasmoçasjácansadasdedançar,seusvestidosemencantadora(ereveladora) desordem, brincando com os últimos convidados, velhos amigos e tias afetuosas queconhecia desde que nascera, uma voz dentro demimme avisava que, se eu continuasse naquelecaminho,nãoacabariacasadocomSibel,mascomFüsun.Sibel se juntara àdesarrumadamesadaSatsat, onde realizavamuma suposta sessão espírita,na

verdadeumabrincadeiraalcoolizadasembaseemqualquerconhecimentoespecialdoespiritismo.Depoisdenãoconseguirinvocarespíritoalgum,ogrupocomeçouasedispersar.Sibeldeslocou-separaamesaao lado,queestavavazia, salvoporKenaneFüsun,comquemtravou imediatamenteumaconversaantesqueeuconseguissechegarlá.Vendoqueeumeaproximava,KenantirouFüsunpara dançar. Füsun, tendo-me visto, recusou, dizendo que os sapatos apertavam seus pés, e comorgulhojuvenilKenanreagiucomoseaquestãofossenãoFüsunmasadança,eafastou-seenquantoaorquestraFolhasdePratatocavaumdosnúmerosaceleradosdanoiteparaensaiarosúltimospassoscomalgumoutropar.Demaneiraqueagora,emtornodamesadaSatsat,aessaalturapraticamentevazia,umacadeirameesperavaentreFüsuneSibel.Emesenteientreasduas.Comoeugostariaquealguémtivessetiradoumafotodenóstrêsqueagoraeupudesseexpor!Eaomesentardescobri,comsatisfação,queFüsuneSibelconversavamsobreoespiritismocomo

duas senhorasdeNişantaşıque seconhecessemhaviaanosmasaindamantivessemcertadistância,usando uma linguagem claramente formal, quase cerimoniosa. Füsun, que eu supunha ter tidopouca formação religiosa, declarouque as almasdeviamcertamente existir, “comoafirmaanossareligião”,masqueparanósdestemundoatentativadecomunicaçãocomelaseraumpecado.Aquielaolhouparaseupainamesaaolado.Anoçãolheforacertamenteensinadaporele.“Trêsanosatrásdesobedeciameupaieestivenumasessãoespíritacomumascolegasdeturma—

só por curiosidade”, disseFüsun. “Pediramque eudesse onomede alguémeme lembrei deumamigodeinfânciadequemeugostavamuito,emborativesseperdidoocontatocomele,e,sempararparapensar,escrevionomedele,sóporquetinhampedido…Masessenomequeeutinhaescrito,semrealmenteacreditar,sópordiversão…bem,oespíritodeleapareceueeumesentitãoculpada.”“Porquê?”“Porquedavaparaver,pelamaneiracomoaxícaradecaféchocalhava,quemeuamigoperdido

Necdetsentiamuitador.Axícarachocalhavacomosetivessevidaprópria,esentiqueNecdetdeviaestar tentandodizeralgumacoisa.Então,de repente,axícaradecafé seaquietou…Todomundodissequeessapessoadeviatermorridonaqueleexatomomento…Comoéquepodiamsaber?”“Ecomoéquesabiam?”,perguntouSibel.“Naquelamesmanoite eu estava em casa, procurandouma luva perdidanasminhas gavetas, e

encontreiumlençoqueNecdetmederadepresentemuitosanosantes.Talvezfossecoincidência.Mas acho que não. E aprendi uma lição. Quando perdemos uma pessoa que amamos, nuncadevemosperturbarasuaalma,estejaelavivaoumorta.Emvezdisso,devemosprocurarconsoloemalgumobjetoquenoslembreessapessoa,algumacoisa…nãosei…atémesmoumbrinco.”“Füsun,querida,horadeirparacasa”,dissetiaNesibe.“Vocêtemoexameamanhãcedo,eoseu

paimalconsegueficaracordado.”

Page 113: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Sóumminuto,mamãe!”,disseFüsuncomvozfirme.“Tambémnãoacreditoemsessõesespíritas”,disseSibel.“Masquandosouconvidadanuncadeixo

deir,porquegostodeverascoisasqueaspessoasfazem,edeveroquelhesmetemedo.”“Mas, se você amasse alguém e sentisse uma falta terrível dessa pessoa, o que você faria?”,

perguntouFüsun. “Reuniria seus amigospara tentar invocaro espíritodela, ou sairia àprocuradealgumacoisaqueelapossuísse,comoumacigarreira?”EnquantoSibelprocuravaumarespostacortês,Füsunlevantou-sedeumsaltodesuacadeirae,

estendendoamãoparaamesaaolado,pegouumabolsa,quecolocouànossafrente.“Estabolsamelembra omeu constrangimento… aminha vergonha por ter lhes vendido uma bolsa falsificada”,disseela.QuandoviabolsanobraçodeFüsunmaiscedo,nãoreconheciqueera“aquela”bolsa.Maseua

compraranaboutiqueşanzelize logoantesdomomentomais felizdaminhavida,e,depoisde terdeparadocomFüsunnarua,alevaraconoscoparaoedifícioMerhamet.Ontemmesmoaquelabolsatalismã Jenny Colon ainda estava lá. E como podia estar ali agora? Senti-me como o espectadorconfundidocomotruquedeumilusionista,eminhacabeçagirava.“Fica muito bonita em você”, disse Sibel encabulada. “Tão linda com o laranja, com o seu

chapéu, que quando vi fiquei com inveja. Fiquei compena de ter devolvido a bolsa.Como vocêficoulinda!”Ocorreu-mequeŞenayHanımhaviadetermaisdeumadaquelasbolsasJennyColonfalsificadas

em seu estoque. Depois de vender uma para mim, talvez tenha posto outra na vitrine, e atéemprestadoumaterceiraaFüsunparaaquelanoite.“Depois que você percebeu que a bolsa era falsificada, parou de vir à şanzelize”, disse Füsun,

sorrindocomgraçaparaSibel.“Oquemeperturbou,porqueéclaroquevocêtinharazão.”Abrindoabolsa,elanosmostrouointerior.“Nossosartesãosproduzemótimascópiasdeprodutoseuropeus,benditos sejam,masnuncao suficientepara enganar alguémcom seuolho experiente.Mas agoraprecisodizerumacoisa.”Elaengoliuemsecoeficoucaladaalgumtempo,deixando-mecommedodequefossechorar.Maselaseconteve,ecomorostofranzidorecitouoquedeviaterensaiadoemcasa.“Paramim,nãofazamenordiferençaseumprodutoforeuropeuounão.Etambémnãofazamenordiferençaseumacoisaforgenuínaoufalsificada.Sevocêquersaber,aspessoasnãorejeitamasimitaçõesporalgummotivoquetenhaavercomaautenticidadeouafalsificação,maspormedode que os outros possam achar que compraram ‘mais barato’. Para mim, as pessoas não deviampensarsónamarca,esimnacoisaemsi.Vocêsabequeexistempessoasquenãolevamemcontaosprópriossentimentos,sóoqueosoutrospodempensar”—eaquielaolhounaminhadireção.“Estabolsasemprevaimelembrardanoitedehoje.Meusparabéns.Éumanoitequenuncaireiesquecer.”Pôs-sedepée,enquantonosdavaumapertodemão,minhaamadabeijoucadaumdenósnorosto.Quandoseviravaparairembora,percebeuqueZaimseaproximavadamesaevirou-senovamenteparaSibel.“ZaimBeyéumbomamigodoseunoivo,nãoé?”“É, eles sãomuito chegados”, respondeu Sibel. Enquanto Füsun dava o braço a seu pai, Sibel

virou-separamimeperguntou:“Oqueseráqueelaquisdizercomessapergunta?”.MasnãohavianenhumdesprezoporFüsunemsuaexpressão.Vi,naverdade,algoquelembravauminteresse,até

Page 114: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

certaadoração.EnquantoFüsuncaminhavalentamenteatéasescadas,ladeadapelamãeepelopai,acompanhei

seuspassoscomamoreorgulho.Zaimseaproximouesentou-seameulado.“Sabe,namesadaSatsatatrásdenós,rirammuitoà

suacustaanoiteinteira”,disseele.“Comoseuamigo,acheiquevocêdeviasaber.”“Vocêsópodeestarbrincando!Doqueexatamentepoderiamestarrindo?”“Bom,eunãosoubediretamente,claro.KenanéquecontouaFüsun.Eelamecontou…Eficou

muitoaborrecida também.Aparentemente,édoconhecimentogeralque todanoite,nahorade irembora, vocêeSibel seencontram láparauma rapidinhanodivãda sua sala.Eédissoque todomundoestavarindo.”“O que foi agora?”, perguntou Sibel quando voltou ao nosso encontro. “Ficou deprimido de

novo?”

25.Aagoniadaespera

Nãodorminadaaquelanoite.Naverdade,SibeleeusónosencontrávamosraramentenaSatsat,masaquilonãoatenuavanemumpoucoarevelaçãoque,eutemia,podiamevaleraperdadeFüsun.Aoamanhecer,cochileiumpouco.Assimqueacordei,fizabarbaesaíparaumpasseio.Volteipelocaminhomais longo, passandoem frentedo edifícioTaşkışla daUniversidadeTécnica, com seuscentoequinzeanosde idade,ondeFüsunestava fazendo seusexames.Nas lateraisdaporta,pelaqualsoldadosotomanos,cadaumcomseufeznacabeçaeseusbigodesemponta,antespassavamacaminho do treinamento, mães de cabeça coberta e pais fumando um cigarro atrás do outrosentavam-se em fileiras, à esperados filhos.Alguns liamo jornal; outros conversavamouolhavampara o céu com o rosto vazio de expressão. Não vi tia Nesibe nomeio deles. Entre as janelas dafachadadepedra,mesmodepoisdesessentaeseisanos,aindaseviamosburacosdebaladeixadospeloExércitodaAçãoduranteadeposiçãodosultãoAbdülhamit.Fixandomeusolhosnumadessasaltas janelas, fiz uma prece, pedindo a Deus que ajudasse Füsun a responder às questões e adevolvesseparamim,saltitantedealegria,assimqueterminasseoexame.MasFüsunnãoveioaoedifícioMerhametnaqueledia.Penseiquesuaraivairiapassar.Enquantoo

sol fortede junho infiltrava-sepelascortinaseoquarto ficavacadavezmaisquente,aindaespereimaisduashorasdepoisquepassouohoráriodonossoencontro.Ficarolhandoparaacamavaziameincomodava,demaneiraquesaíparamaisumacaminhada.Enquantoandavapeloparque,passandopor soldadosquegastavam suashorasde folgaecriançasquedavamdecomeraospombos soboolhar das famílias, além de pessoas que liam jornal nos bancos à beira-mar ou acompanhavam apassagemdosnavios,tenteiconvencer-medequeFüsunviriaàhoradesemprenodiaseguinte.Maselanãoveionodiaseguinte,nemnosquatrodiasquesesucederam.Eu iadiariamenteaoedifícioMerhametnahoramarcada, edava inícioàminhaespera.Tendo

percebidoquechegarantesdahorasóagravavaminhador,resolvinuncamaischegarantesdecincopara as duas. Eu entrava no apartamento trêmulo de impaciência, e durante os primeiros dez a

Page 115: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

quinze minutos a dor era aliviada por uma antecipação cheia de esperança, uma excitação quetomava conta de minha cabeça até a ponta do nariz, enquanto o coração doía e meu estômagoentravaemespasmo.Detemposemtemposeuabriaascortinaseolhavaparaarua,inspecionandoemdetalheasmanchasdeferrugemnolampiãoemfrenteàentrada,edepoisarrumavaumpoucooquarto.Ouviapassosnoandardebaixo,edevezemquandoouviaoestalidodesaltosaltospassandocomaquele andardecididodela.Mas sempre seguiamem frente semdiminuir a velocidade, e eupercebiasofridoqueamulherqueentraranoedifício,fechandodeleveaportaatrásdesidemaneiratãofamiliar,naverdadeeraoutrapessoa.Exponho aqui o relógio de parede, esses palitos e essas caixas de fósforo, porque eles sugerem

comoeupassavaoslentíssimosdezouquinzeminutosdeque,acadavez,precisavaparaaceitarqueFüsun não viriamais. Percorria o apartamento, olhava pelas janelas, parava de vez em quando eficava imóvel no mesmo lugar, ouvindo a dor que se acumulava dentro de mim. Enquanto osrelógiosdo apartamento tiquetaqueavam,minhamente se fixavanos segundos enosminutosparadistrair-sedaagonia.Àmedidaqueahoramarcadaseaproximava,osentimentodeque“Hojesimelavem,e jávaichegar” floresciadentrodemim,porcontaprópria,comoas floresque seabremnaprimavera.Nessesmomentoseudesejavaqueotempocorressemaisdepressa,parapoderreencontrarlogo a minha amada.Mas os minutos nunca passavam. Por um instante, num acesso de grandelucidez, eu compreendia que estavame enganando e que na verdade não desejava que o tempocorresse,porqueFüsunpodianuncamaisvoltar.Àsduasdatardeeununcasabiaaocertosedeviaficar feliz porque a hora tinha chegado ou triste porque a cadaminuto depois disso sua vinda setornava menos provável, e a distância entre mim e a minha amada aumentava como entre opassageirodeumnavioque se afastadoportoe apessoaquedeixapara trás.Assim, continuava atentar me convencer de que nem tantos minutos assim tinham passado, e para tanto inventavapequenospacotesdetempoemminhamente.Emvezdesentiraqueladoracadasegundodecadaminuto, sómepermitiasenti- laumavezacadacincominutos.Dessamaneira, reunia todadordecadaumdoscincominutosea sofriapor inteirono finaldoúltimo.Mas isso tampoucoadiantavaquandoeunãoconseguiamaisnegarqueosprimeiroscincominutosjátinhamsepassado—quandome via obrigado a admitir que ela não viria, a dor adiada cravava-se em mim como um pregoimpiedosamentemartelado.No desespero que se seguia eu repetia omesmo exercício, fazendo opossívelparameconvencerdequeFüsunmuitasvezesseatrasaradezouquinzeminutosemnossosencontros,coisadequenão tinhamuitacertezamasquemeconcediauma tréguadepelomenosquatroquintosdapróximasériedecincominutos,eaesperançaretornavaenquantoeusonhavaquedaliauminstanteelahaveriadetocaracampainha,quedaliauminstanteelaestariaalicomigo,tãoinesperadamente quanto em nosso segundo encontro. Ficava imaginando o que faria quando elatocasseacampainha— semeaborreceriaporela terpassado tantosdias semvirouseaperdoariainstantaneamente.Eesses sonhospassageiros semisturavamcomasmemóriasquandomeusolhospousavamnestaxícaraqueexponhoaqui,naqualFüsun tomouseuchánoprimeiroencontro,ouneste vasinho que ela segurou nas mãos sem motivo especial enquanto percorria impaciente oapartamento.Depoisdedesviar-meoquantopodiadaconsciênciacadavezmaisdesesperançosadequeoquartoeoquintopacotesdecincominutosjá tinhamsepassado,minharazãomeforçavaa

Page 116: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

admitir que Füsun não viria mais naquele dia, e nesses momentos a agonia dentro de mim eratamanhaqueeusóconseguiadeixar-mecairnacamacomouminválido.

26.Omapaanatômicodasdoresdeamor

EstarepresentaçãodosórgãosinternosdocorpohumanofoitiradadeumanúnciodoanalgésicoParadison,exibidonas vitrinesde todas as farmáciasde Istambulnaépoca, e aexponhoaquiparamostrar ao visitante do museu onde a agonia do amor apareceu primeiro, onde se tornou maispronunciadae,depois,atéondeseespalhou.Éprecisoexplicarparaosleitoressemacessoanossomuseu que a dormais acentuadamanifestava-se inicialmente no quadrante superior esquerdo doestômago.Àmedidaqueseintensificava,adorsedifundia,comoindicaodesenho,paraacavidadesituada entre os pulmões e o estômago. A essa altura, sua presença não se limitavamais ao ladoesquerdodoabdome, instalava-se tambémnodireito, eeu tinhaa impressãodequeenfiavamemmimapontadeumatiçador,ouumachavedefenda.Eracomosemeuestômago,edepoistodoomeu abdome, se inundasse de ácido, como se pequenas estrelas-do-mar pegajosas e em brasagrudassemnosmeusórgãosinternos.Àmedidaqueadorseespalhavaecrescia,euasentiasubirpelanuca até a testa, descendopelos ombrospara se espalharpor todoo corpo, invadindo atémesmomeussonhoseseapossandototalmentedemim.Àsvezes,comoaparecenodiagrama,umaestreladedorseformavaapartirdomeuumbigoeemitiaraiosdeácidoquechegavamàgargantaeàboca,eeutinhamedodequemesufocasse.Seeubatessecomamãonaparede,tentassealgunsexercíciosdeginásticaoudealgummodomecontraíssecomoumatleta,conseguiabloquearadorporalgumtempo,masmesmoquandoela estavamais contida eu sentia suapresençacomoumgotejamentoendovenoso pingando sempre em minha corrente sanguínea, e presente o tempo todo no meuestômago,queeraseuepicentro.Apesar de todas asmanifestações tangíveis, eu sabia que essa dor emanavadaminhamente, da

minhaalma,masmesmoassimnãoconseguiaconvencer-meaexpurgaramenteelibertar-medela.Semqualquer experiência daquele sentimento, via-me forçado, comoumorgulhoso jovemoficialemboscadonaprimeiramissão,aumadebandadamental.Easesperançasqueaindaconservava—acada novo dia, a cada novo sonho, a cada novo motivo pelo qual Füsun pudesse vir ao edifícioMerhamet— só faziampiorarascoisas,pois, tornandoaagoniasuportável,prolongavam-naaindamais.Emmeusmomentosdemaiorlucidez,euimaginavaqueelaestivessemetratandocomodevido

menosprezo,castigando-menãosópelonoivadomastambémporlheescondermeusencontroscomSibelnoescritório,entregar-meaociúmenafestadenoivadoelançarmãodetruquesparamantê-laafastada de Kenan, e também, claro, por não ter conseguido solucionar o desaparecimento dobrinco.Massentiaaomesmotempo,comgrandeintensidade,quenegarafelicidadesemigualquetínhamoscompartilhadoeraparaelaumcastigotãopesadoquantoparamim,eque,comoeu,elanãotinhacomosuportá- lopormuitotempo.Euprecisavasuportaradoreenfrentarotormentocomestoicismo,pois assim,quandonosencontrássemos,elapoderia sentir-se levadaa reconhecermeu

Page 117: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

sofrimento.Mastodosessescálculosvinhamemaranhadosemremorso—poiseudecidiracorrerorisco de convidá-la para a festa sem ter encontrado o brinco perdido, sem ter lhe ensinadomatemáticadireitooudevolvidoovelocípededasuainfância,duranteojantarprometidocomseuspais.Adordoremorsoeramaiscurtaedelimitada;manifestava-senaparteposteriordaspernasenospulmões(verodiagrama),minandomisteriosamenteminhasforças.Masnãoeramenosdebilitante,emalmedeixavaenergiasparaficardepé,ansiosopordesabarnumacama.Àsvezeseumeperguntavasetudoaquilonãoestariaacontecendoporqueelasesaíramalemseus

exames.Mais tarde, emmeus sonhos culpados, eu lhe daria aulas dematemáticamuito longas eabrangentes;minhadorseatenuava,especialmentequandoasaulasdematemáticachegavamaofimenosentregávamosaoamor.Masosonhosempreterminavademodoabruptoquandoeulembravaque ela não cumprira a promessa feita quando dançamos na festa de noivado— de vir ao meuencontroassimqueacabasseaprova—e,quandoconstatavaquenemsequersederaaotrabalhodeme apresentar alguma desculpa, sentia raiva, ressentimento alimentado ainda por seus crimesmenores— tentar despertar meu ciúme na festa, ficar ouvindo os empregados da Satsat rindo àminhacusta.Essasqueixaseuusavaparamedistanciardela,respondendocommeusilêncioaoseudesejodemecastigar.Emtornodeduasemeiadatardedesexta- feira,nomomentoemquereconheciqueelanãoviria,

malgradocadaumdosmeuspequenos ressentimentos,malgradoaesperançaqueconjurei ecadatruquequeempregueiparameenganar,desabeiderrotado.Adoragoratornara-sefatal,devorando-me comouma fera sem dó pela presa. Fiquei estendido na cama comoum cadáver, aspirando oaromaqueeladeixaranos lençóis, lembrandoa felicidadecomque tínhamosnos amadonaquelamesma cama seis dias antes, perguntando-me como conseguiria viver sem ela, enquanto o ciúmeincontrolávelsemesclavaàminharaiva.ImagineiqueFüsunnãotivesseperdidotempoparaarranjarum novo amante. Aquela fantasia humilhante que me debilitava já surgira na minha cabeça emmomentosanteriores,masnãoconseguiadesfazer-medela,imaginandoquemeurivalfosseKenan,ouTurgayBey,ouqualqueroutroadmirador,atémesmoZaim—quemtivesseaparecidoprimeiro.Umamulhercomoela,queencontravatantoprazernoamorfísico,comcertezanãohaveriadeserefrearpormuitotempo,procurandoomesmoprazercomoutros,especialmentenomomentoemquearaivademimaimpeliaàvingança.Emboraumapartedeminhamenteconseguisseveroqueeramnaverdadeessessentimentos,aindaassimeumedeixavalevar,permitindoqueessepesadelodegradante me afogasse. Concluindo que o desejo e a raiva acabariam por me enlouquecer, saícorrendodoapartamentoeseguidiretamenteparaaboutiqueşanzelize.Lembro que meu coração rebentava de uma esperança agonizante enquanto desci correndo a

avenidaTeşvikiye.Movidopelacertezadequeficariacuradosódevê-la,nemsequerpenseinoquepoderialhedizer.Nomomentoemqueeuavisseminhadordesapareceria,pelomenosporalgumtempo—dissoeutinhacerteza.Elaprecisavameescutar;haviatantascoisasqueeuprecisavadizer.Não era aquilo que tínhamos combinado na festa— seria necessário ir a uma confeitaria paraconversar.Acampainhanaportadaboutiqueşanzelizesoouemeucoraçãosecontraiu.Ocanárionãoestava

mais lá. Eu já deduzira que Füsun tampouco estava na loja, mas por medo e desamparo tentei

Page 118: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

convencer-medequepodiaestarescondidanasaladosfundos.“KemalBey,bem-vindo”,disse-meŞenayHanımcomumsorrisodiabólico.“Euqueriaverabolsabrancabordadadavitrine”,sussurrei.“Ah, sim, éumapeçabelíssima”, comentou ela. “O senhor temmuito bomgosto. Sempreque

algumacoisabonitachegaàloja,osenhoréoprimeiroaver.EstabolsaacabadechegardeParis.Vejaapedrapreciosaqueelatemnofecho.Temumabolsinhademoedasnointerior,eumespelho,tudofeitoàmão,éclaro.”Enquantoelaavançavaacustoatéavitrineparapegarabolsa,continuavaaexagerarsuasqualidades.Olheiparaasaladofundoatravésdascortinas.Füsunnãoestava lá.Quandoadonada lojame

trouxe a elegante bolsa em padrão floral, fingi examiná-la com todo o cuidado e aceitei semquestionar o preço exorbitante que elame cobrou.Enquanto a bruxa embrulhava a bolsa, passoumuitotempocomentandocomotodomundoficaraimpressionadocomminhafestadenoivado.E,só para manter a transação em andamento, pedi- lhe que embrulhasse também um par deabotoadurasquenoteidepassagem.Encorajadopeloprazerqueviemseurosto,perguntei:“Eoquefoifeitodaquelanossaprima?Elanãoveiohoje?”.“Ora,osenhornãosabe?Füsunparoudetrabalharaquideumdiaparaooutro.”“Émesmo?”Elaadivinhou imediatamentequeeuvieraàprocuradeFüsun,deduziuquenãoestávamosnos

encontrando,eagorameexaminavaatenta,tentandodescobriroquepodiateracontecido.Conseguimeconterenãolheperguntarmaisnada.Apesardador,enfieicalmamenteamãono

bolso,paraesconderquenãoestavausandoaaliançadenoivado.Quandopaguei,percebiqueelame olhava com compaixão: era como se, nós dois tendo perdidoFüsun, aquilo nos tornassemaispróximos.Noentanto,nãoconseguideixarde lançarumúltimoolhar incréduloemdireçãoàsaladosfundos.“Hoje em dia as coisas são assim”, disse a mulher. “Os jovens não querem saber de ganhar o

própriodinheiro.Queremtudodamaneiramaisfácil.”Efoiesteúltimocomentáriooquemaismeferiu.Conseguiesconder tudodeSibel.Minhanoivaregistravacadaumadasminhasexpressões,cada

um dos meus novos gestos, e por eles era afetada, mas, ainda assim, nos primeiros dias que seseguiram ao nosso noivado não me perguntava nada. No terceiro dia, porém, na hora do jantar,quandoeumeretorciacomumdesconfortoevidente,observou,comaexpressãomaisdoce,queeuestavabebendomuitodepressa, eperguntou: “Oqueestáhavendo,meuamor?”.Respondiqueosproblemascommeuirmãonotrabalhoestavamacabandocomigo.Nasexta- feiraseguinteànoite—comumdardo de dor que irradiava para cima a partir domeu estômago, e outro queimando nadireçãooposta,danucaparaaspernas,enquantoeupensavanoqueFüsunestariafazendo—,Sibelrepetiu a pergunta. Consegui inventar toda uma meada de detalhes para conferir credibilidadeàquela história do desentendimento commeu irmão. (Com uma simetria que só Deus conseguecriar,essas invençõessetornariamverdadeirasmuitosanosmais tarde.)“Deixeparalá”,disseSibelcomumsorriso.“QuerqueeulheconteostruquesqueMehmeteZaimestãoimaginandoparaseaproximardeNurcihannopiqueniquededomingo?”

Page 119: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

27.Nãoseinclinetantoassimparatrás,vocêpodecair

Para refletir a síntese das delícias e inspirações tradicionais extraídas das revistas francesas dedecoração preferidas por Sibel eNurcihan, a cesta de piquenique aqui exposta— contendo umagarrafa térmica cheia de chá, folhas de parreira recheadas numa caixa de plástico, ovos cozidos,algumas garrafas deMeltem e esta elegante toalha demesa queZaim herdou da avó— evoca aexcursãodominicalquefizemosetalvezproporcioneaovisitantealgumalíviodaopressivasucessãode cenários de interior, além daminha própria agonia.Mas nem o leitor nem o visitante devemimaginar de maneira alguma que eu tenha conseguido esquecer a minha dor nem um instantesequer.Naquelamanhãdedomingo,primeirofomosatéoBósforo,àfábricadeMeltememBüyükdere.

NaslateraisdesuasedehaviagigantescosretratosdeIngeaoladodeslogansesquerdistasrecobertosdetinta.Enquantopercorríamosaslinhasdeesterilizaçãoeengarrafamento,ondemulherescaladasdecabeçacobertaeaventalazultrabalhavamsobaorientaçãodesupervisoresruidososeanimados(eramapenassessentaequatroempregadosaotodo,emcontrastecomosincontáveiscartazesqueaMeltemespalharaportodaacidade),eaomesmotempoemqueeumanifestavaminhareprovaçãopelos cintos grossos, os jeans e as botas de couro que as outras pessoas do nosso grupo tinhamdecidido usar naquele dia — trajes que eram, tanto quanto seu comportamento relaxado,exageradamente europeus—, precisava abafar as batidas tristes do meu coração, que choravalastimosamente,Füsun,Füsun,Füsun.Empilhamo-nos emdois carros e seguimospara a florestadeBelgrat, atéumcampoverdeque

davaparaBentler e revelavaomesmopanoramaqueeste aqui,pintadocentoe setenta anos atráspeloartistaeuropeuMelling,eláabrimosnossodéjeunersurl’herbe.Lembro-medetermeestendidonagramaemtornodomeio-dia,contemplandoocéuazulmuitoclaro.SibeleZaimtentavamtrocarascordasdeumantigobalançodosjardinspersas,elembrocomofiqueiimpressionadocomagraçaeabelezadeSibel.Acertaaltura,disputeiojogoinfantildasNovePedrascomNurcihaneMehmet.Enquanto aspirava o aroma suave da grama e a brisa fresca que vinha do lago além de Bentler,recendendoapinhoerosas,penseiqueavidamaravilhosaquetinhapelafrenteeraumadádivadeDeus, que toda aquela belezame fora concedida incondicionalmente; e como era uma estupidezcolossal— e talvez um pecado— permitir que ela se envenenasse com aquelas dores que seirradiavamapartirdomeuestômagoparatodasaspartesdocorpo.SentiatambémvergonhadetersidoreduzidoàquilopeladordenãoverFüsunede,comaconfiançaemmimmesmoabalada,tersucumbido ao ciúme. EnquantoMehmet, conseguindomanter imaculada sua camisa branca e agravata que usava com calças e suspensórios, arrumava a comida, e Zaim partia comNurcihan,supostamenteàcatadeamoras,percebiqueestavafelizporeleestarali,porqueissosignificavaquenãopodiaestarnumencontrocomFüsun.MasnãotinhameiosdesuporqueelanãoestivessecomKenanou algumoutrohomem.Aoconversar commeus amigos, jogarbola, verSibel balançar-secomoumamenina,atémesmoaocortarmeudedoanularbatalhandocomumtiponovodeabridordelatas—emmomentosintensosdessaordemeumedistraíadaminhador.Nãoconseguiestancarosanguedomeudedo.Teriaoamorenvenenadomeusangue?Acertaaltura,sentei-menobalançoe

Page 120: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

comeceiamebalançarcomtodaa força.Quandoobalanço, impelidodoalto,despencoua todavelocidade,maisparecendoemquedalivre,adordomeuestômagocedeuumpouco.Nomomentoemqueascordasrangeramedescreviumgrandearconoar,estendendomeucorpobemparatrásequaseficandodecabeçaparabaixo,minhadorquasedeulugaraoalívio.“Kemal,ficoumaluco?Pare,nãoseinclinetantoassimparatrás.Vocêpodecair!”,gritouSibel.Ao sol domeio-dia, o calor era intensomesmo à sombra das árvores.Eu disse a Sibel quenão

conseguiaestancarosangramentodomeudedoequenãoestavamesentindobem,quequeriairaoHospitalAmericanoparaquedessemalgunspontos.Elaficouchocada.Arregalouosolhos.Seráqueeunãopodiaesperaratémaistarde?Amarrouomeudedobemapertado.Confessoaosmeusleitoresque abriramais o corte em segredo, para exacerbar o sangramento. “Não”, disse eu. “Não queroestragar esse adorável piquenique, e, querida, as pessoas poderiam ficar ofendidas se nós doisfôssemos embora. Você pode voltar de carona com os outros mais tarde.” Enquanto ela meacompanhavaatéocarro, linovamenteaquelaperguntahumilhantenosolhos sábioseveladosdeminhalindanoiva.“Oqueestáhavendocomvocê?”,perguntouela,sentindoquemeumaleramaissérioqueaquelecortenodedo.Comoeuquisabraçá-lanaquelemomento,dominarminhadorelivrar-medaminhaobsessão,oupelomenos lhecontaroqueestavasentindo!Emvezdisso,puleiparadentrodocarro,oscilandocomoumidiota,apavoradocomadisparadadescomedidadomeucoração, sem dizer alguma coisa carinhosa para Sibel. Nurcihan e Zaim continuavam à cata deamorasmas,sentindoquealgoestavaerrado,começaramaandarnanossadireção.SeeutivessedeolharZaimnosolhos,tenhocertezadequeeleadivinharianamesmahoraaondeeuestavaindo.Masnão voume estendermais sobre a expressão de dor e preocupação verdadeira no rosto daminhanoiva quando dei a partida no carro— para que os leitores não me considerem um homemtotalmentedesalmado.Saí dirigindo como um louco pela tarde quente e luminosa de verão, chegando a Nişantaşı

exatamente em quarenta e sete minutos, tudo porque no momento em que encostei o pé noaceleradormeucoraçãomedissequeaqueledia,finalmente,FüsuniriaaoedifícioMerhamet.Comcertezaeladecidiraesperaralgunsdiasantesdefazersuaprimeiravisita.Estacionandoocarroexatoscatorze minutos para as duas (eu cortara o dedo em bom momento), já corria para o edifícioMerhametquandofuiparadoporumamulherdemeia-idadequegritavameunome.“KemalBey,KemalBey,osenhoréumhomemdemuitasorte!”Eumevirei,perguntando“Oquê?”,enquantomeesforçavaparamelembrarquemera.“Na festa do seu noivado, o senhor veio até a nossamesa e fizemos uma aposta sobre o último

episódiodeOfugitivo…nãoselembra?Osenhortinharazão,KemalBey!Nofinal,odoutorKimbleconseguiuprovarqueerainocente!”“Émesmo?”“Quandoquerreceberodinheirodaaposta?”“Outrahora”,respondi,correndoruaabaixo.Claroqueconcluíqueofinalfelizdodr.Kimbleeraumbompresságio:aqueleeraodiaemque

Füsunhaviadevir.Acreditandoalegrementequedaliadezouquinzeminutosestaríamosentreguesaoamor,tireiachavedobolsocomosdedostrêmuloseentreinoapartamento.

Page 121: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

28.Oconsolodosobjetos

Quarenta e cincominutosmais tardeFüsun aindanão chegara, e eu estava estendidona camacomoumcadáver,emborasentissedoredelafosseinteiramenteconsciente,comoumanimalqueescutainermeseuúltimosuspiro.Adoreramaisprofundaemaisduraquequalquersensaçãoqueeutivesse experimentado até aquele dia, afetando todas as partes domeu corpo. Eu sentia que seriacapaz de levantar da cama, distrair-me, procurar algum meio de sair daquela situação, ou pelomenos daquele quarto, afastando-me daqueles lençóis e travesseiros que ainda traziam o perfumedela,masnãoconseguireunirforças.Entãocomeceiamearrependerdeterabandonadoopiquenique.Comumasemanatranscorrida

desdeaúltimavezquetínhamosnosamado,Sibeldeviateraconsciêncianebulosadequealgumacoisa estranhame acontecera,mas não devia conseguir identificar o que era ou encontrar algummododemeperguntar.EuqueriaacompaixãodeSibel,sonhavaqueminhanoivapoderiameservircomodistração.Masnãoconseguiamover-me,quantomaisentrarnocarroevoltarparajuntodela.Tamanhaeraadorquetomavameuabdome,minhascostaseminhaspernas,tãoviolentaquemecortavaarespiração—quenãomerestaramforçasparatentarqualquerformadealívio.Saberdissosó fazia exacerbar minha tristeza, provocando-me um remorso tão feroz e dilacerante quanto aprópriadordeamor.Eaomesmotempoformava-seemmimumaconvicçãoestranhaeirracional:erasómeentregandoàquelador(comoumaflorquecerrasuaspétalas),erasómerendendoàsuatotalintensidade,eraassim,esóassim,queeupoderiaaproximar-medeFüsun.Umapartedeminhamente sabia que aquilo era uma ilusão,mas não tivemeios deme opor a essa ideia bizarra. (Dequalquermaneira,seeusaísseagoradoapartamento,elapodiachegaredesencontrar-sedemim.)Enquantoeumeentregavaàdor,enquantogranadasdeácidoexplodiamemmeusangueeem

meus ossos, eu percorria meu emaranhado de memórias, uma a uma, distraindo-me, por poucotempoedemaneiraintermitente,àsvezespordezouquinzesegundos,emboraàsvezessóporumoudois,antesqueessasmesmasmemóriasmeremetessemaumpontoaindamaisprofundodovaziodaquelemomento,emqueadormedeixavaaturdidocomosemeatingissepelaprimeiravez,numaagonia demagnitude até então desconhecida.Um paliativo para essa nova onda de dor, descobrientão,eramanusearalgumobjetodenossasmemóriascomunsquecontivesseasuaessência;pô-lonabocaeprovarseugostotambémtraziaalgumalívio.Haviaunscroissantsdenozesepassasqueseencontravam naquele tempo nas confeitarias de Nişantaşı, e que eu trazia para nossos encontrosporqueFüsun gostavamuito deles.Mordendoumdeles, eume lembrei das coisas de que ríamosquando os comíamos juntos (como o fato de Hanife Hanım, a mulher do porteiro do edifícioMerhamet, ainda acreditar que Füsun fosse cliente do dentista do andar de cima), e isso mereanimou.Oudavezemqueelapegouumespelhodemãonumadasgavetasdaminhamãeeousoucomosefosseummicrofone,imitandoafamosacantoraHakanSerinkan;damaneiracomoelabrincavacommeutremdeferrodoAnkaraExpress,omesmoqueminhamãelhedavaparabrincarquandosuamãecostureiraatraziacomelaemsuasidasemdomicílio;dapistolaespacial,outrodosmeus brinquedos prediletos— atirávamos um no outro e depois saíamos alegres pelo quartoatulhado,embuscadoprojétildeplástico.Todosessesobjetos tinhamopoderdemeconsolar.O

Page 122: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

açucareiroqueexponhoaquiédodiaemqueumanuvemdemelancolia toldounossa felicidade,mergulhando-nos num de nossos silêncios ocasionais, e Füsun, pegando de repente esse mesmoaçucareiro,perguntou:“Vocêseriamais felizse tivéssemosnosencontradoantesdevocêconhecerSibelHanım?”.Ao ladodaminhacabeçaestavaamesadecabeceiraemqueeladeixava seu relógiocomtanto

cuidado nas primeiras vezes que nos amamos. Por uma semana, eu tive consciência de que nocinzeiro em cima dela havia uma ponta de cigarro que Füsun apagara. No momento em que asegurei, aspirando seu cheiro de fumaça e cinza e pondo-a entre meus lábios, estive a ponto deacendê-la (imaginando talvez por ummomento que, de tanto amá-la, eume transformaria nela),maspercebique,casoofizesse,nadamaisrestariadarelíquia.Emvezdisso,pegueiaquelapontaeesfregueiaextremidade,queantestocaraemseuslábios,nomeurosto,naminhatesta,nopescoçoenosrecessosdebaixodosmeusolhos,comadoçuraeadelicadezadeumaenfermeiraqueuntaumaferida. Continentes distantes surgiram diante dos meus olhos, cintilando com a promessa dafelicidadeecenascelestiais;lembrei-medaternuracomqueminhamãemetratavaquandocriança,edasvezesemque foraatéamesquitadeTeşvikiyenosbraçosdeFatmaHanım,antesqueadortornasseafluir,inundando-meporcompleto.Emtornodascincodatarde,aindanacama,lembrei-medecomo,depoisdamortedemeuavô,

minha avó mudara não só de cama como também de quarto, para poder suportar a sua dor.Lançandomãodetodaaminhaforça,decidiafastar-medaquelacama,daquelequartoedaquelesobjetosquetinhamenvelhecidotãolindamente,queficaramtãoimpregnadosdafragrânciadoamorfeliz—cadaumdosquaismurmurava,rangia,farfalhavaporvontadeprópria.Masnãoconseguimeimpedirde fazerocontrário,eabraçaraquelesobjetos.Oubemeuestavadescobrindoos incríveispoderesdeconsolaçãodequesãodotadososobjetos,oubemeraaindamaisfracodoqueaminhaavó. Os gritos alegres e os palavrões dos meninos que jogavam futebol no jardim dos fundosmantiveram-mepresoàquelacamaatéoentardecer.Foisóànoite,depoisquetomeitrêscoposderakıeSibeltelefonouparaperguntarsobreocorte,quepercebiquepararadesangrarmuitoantes.EassimcontinueiavisitaroedifícioMerhamettododiaàsduasdatarde,atémeadosdejulho.Já

queacadadiaficavamenosintensaadorsentidaenquantoeumeperguntavaseelaviriaounão,àsvezeseuimaginavaquemeacostumavaaospoucoscomaausênciadeFüsun,masissonãoeranemdelongeverdade.Eusimplesmenteadquiriamaiscompetênciaemdistrair-mecomafelicidadequeconseguiaencontrarnosobjetos.Umasemanadepoisdafestadenoivado,Füsunaindatomavacontadosmeuspensamentos,eemboraelesnemsemprefossemdeumaurgênciaavassaladora,emboraeuconseguisseàsvezesexpulsá-losparaofundodamente,osomatório—parafalarmatematicamente—daminhaagonianãodiminuíaemnada;contrariandotodasasesperanças,continuavaacrescer.Era quase como se eu fosse ao apartamento para não perder o costume ou a esperança de meencontrarcomela.Geralmenteeupassavaminhasduashorasnoapartamentonacama,perdidoemdevaneios,depois

deescolheralgumobjetoencantadocomailusãodeirradiarasmemóriasdenossafelicidade—porexemplo, este quebra-nozes aqui, ou este relógio de pulso com a bailarina e cuja pulseira estavaimpregnadadocheirodeFüsun,comoqualacariciavameurosto,minhatestaemeupescoçopara

Page 123: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tentar transferir- lhes suamagiaealiviarminhador— atéqueduashoras sepassavamechegavaomomentoemqueestaríamosdespertandodonossosonoaveludado induzidopeloamor.Esgotado,eutentavaretornaràminhavidadiária.Aessaaltura,aluzabandonaraaminhavida.Aindanãotendoconseguidoretomaroamorfísico

com Sibel depois do nosso noivado (apresentando como desculpa o constrangimento diante dosfuncionários daSatsat, que sabiamdenossos encontros emminha sala), percebiqueminhanoivaacabaraencarandominhamoléstiacomoalgumavariedadedepânicopré-marital,algumaformademelancoliaparaaqualamedicinaaindanãotinhadiagnósticonemcura.Elaaceitavaessemalcomumasolenidadequemefaziaadmirá-laaindamaise,jáqueseculpavaemsegredopornãoconseguirtirar-me daquilo, procurava tratar-me especialmente bem. E eu a tratava igualmente bem emresposta,indocomelaarestaurantesquenãoconhecíamoseapresentando-aaosnovosamigosqueconseguiafazer.ContinuávamosafrequentarasfestaseavisitarosrestauranteseclubesnoturnosdoBósforo onde a burguesia de Istambul se reunia no verão de 1975 para ostentar sua riqueza e suafelicidade. Emborame divertisse com ela, acompanhando os volteios da satisfeitaNurcihan entreMehmeteZaim,euriasemabandono.AfelicidadenãomepareciamaisumadádivaqueDeusmetivesse concedido no nascimento, nem um direito que eu pudesse reivindicar sem esforço;transformara-se num estado de graça que só os mais afortunados, os mais inteligentes e os maiscautelososconseguiamalcançar,àcustadocultivomaisassíduo.Umanoite,narecém-inauguradaMehtap,ondeosguarda-costasseacotovelavamnaentrada,euestavasozinhodepénobaraoladodopíerqueseestendiaBósforoadentro tomandovinhotintoGazel(Sibeleosdemais tagarelavamalegrementeemnossamesa)quandomeviolhandonosolhosdeTurgayBey:meucoraçãodisparoucomoseeutivessevistoaprópriaFüsun,efuiengolidoporumaondadeciúme.

29.Aessaalturamalhaviaummomentoemqueeunãopensassenela

QuandoTurgayBeyresolveunãomedirigirseucostumeirosorrisoneutroeafável,virando-meacabeça,fiqueimaismagoadodoquepoderiaterprevisto.Arazãomedissequetinhatodoodireitodeterficadoofendidoquandonãooconvideiparaafestadenoivado,masarazãonãoerapáreoparaminhahipóteseparanoide:dequeFüsunpudesse tervoltadoparaelecomo formade sevingardemim. Senti um impulso de correr atrás dele e perguntar por queme tratava assim. Pode ser quenaquelatardemesmoeleeFüsuntivessemseamadonagarçonnièrequeelemantinhaemşişli.Esetivesseapenasestadocomela,ou faladocomela, já erao suficienteparaacabarcomigo.EmboraminhahumilhaçãofossemitigadapeloconhecimentodequeeleseapaixonaraporFüsunantesdemim,tendojápassadoporagoniasemelhanteàminha,pelomesmomotivonuncasentitantohorrordelequantonessemomento.Tomeiváriasbebidasnobar.Mais tarde,envolviasemprepacienteecompassivaSibelnosbraços,oscilandocomelaenquantoPepinodiCapricantava“Melancolia”.Beber eraminha única defesa, ainda que temporária, contra o ciúme. Quando acordei no dia

seguinte,deressacaecommeusciúmesrenovados,percebi,comumpânicocrescente,queadornãotinhaseatenuadoeeumesentiamaisdesamparadoquenunca.EnquantocaminhavaatéaSatsat

Page 124: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

(Inge ainda sorrindo atraente paramimdo cartaz doMeltemna lateral do edifício), emais tardenaquela mesma manhã, quando tentei enterrar meus pensamentos no trabalho, fui forçado areconhecerqueadoraospoucossófaziaaumentar,eque,longedeesquecerFüsunàmedidaqueotempopassava,eupensavanelademaneiracadavezmaisobsessiva.Otemponãotinhadesbotadominhaslembranças(comoeupediraaDeus),nemcuradominhas

feridas como dizem que sempre faz. Eu começava cada dia na esperança de estar melhor, comminhas lembrançasumpoucomenosaguçadas,masacordavasempreparaamesmador,comoseumlampiãonegroardesseotempotododentrodemim,irradiandoastrevas.Comoeuansiavaporpensarnela sóumpoucomenos, e acreditarque,como tempo, viria aesquecê-la!Malhaviaummomento em que eu não pensasse nela; a verdade é que, com poucas exceções, pensava nela otempo todo.Esses raros e “felizes” interlúdios de esquecimento erammuito breves— umoudoissegundos—,eemseguidaolampiãonegrotornavaaseacender,espalhandosuaescuridãofunestapormeuestômago,minhasnarinas,meuspulmões,atéeuquasesufocar,atéosimplesfatodeestarvivotransformar-senumtormento.Por mais que eu ansiasse por escapar desse sofrimento, desejava poder confiar meus males a

alguém,encontrarFüsuneconversarcomela;mas,comoessesdesejosnuncaeramatendidos,sentiavontadedecomeçarumabrigacomqualquerpessoaaquempudesseatribuiraqueleressentimentofurioso e maldito. Apesar de todo o meu esforço de autocontrole, a simples visão de Kenan noescritóriobastavaparameprovocaracessosdeinsanidadetemporária.Emborativesseconcluídoquenãohavianadaentreeles,nãoconseguiaesquecerasedutoraatençãodeKenannafestadenoivado,quepodiateragradadoaFüsun,motivomaisquesuficienteparaeuodiá-lo.Aomeio-diaeuestariaimaginandopretextosparaliquidá-lo.Ah,eleeraumtipomuitosonso!AhoradoalmoçometraziaarelativacalmadesaberqueemseguidaeuiriaparaoedifícioMerhamet,ficaràesperadeFüsun—amenoresperançajábastavaparamemanter,mesmoquandoseconfirmavaomedodequeelanãoviria.Maseuentendiacheiodemedoque,quandoelanãovinhaeadordaesperaeralevadaaseuclímaxintolerável,aperspectivadodiaseguintenãomeprometianadaalémdamesmaesperançavã.Uma pergunta igualmente debilitante criou raízes naminhamente: se eu estava sofrendo tanto

comaquelador,comoelaconseguiasuportá- la,aindaquefosseapenasmetadedaminha?Sópodiaconcluirqueelalogotinhaencontradooutrapessoa,poisdeoutromodonãohaviacomoaguentar.Osprazeresdoamor,quelhetinhamsidoreveladosapenassetentaedoisdiasantes,Füsunosdeviaestar compartilhandocomoutrapessoa…enquantoeudesabavadiariamentedeagonia,um idiotaestendidonacama,umcadáver.Não,eunãoeraumidiota:elameenganara.Conhecemos juntosumafelicidadeimensa,e,mesmonohorríveldesconfortodafestadenoivado,aindaassimdançamosjuntos,enaquelemomentoelameprometeuqueviriameencontrarnodiaseguinte,logodepoisdeseuexame.Semeunoivadopartiraseucoração,elateriatodarazãodequererterminartudocomigo,masporqueamentira?Adordentrodemimtransmutava-senumanecessidadefuriosadeconversarcom ela e provar- lhe seu erro. Eu me preparava para uma discussão imaginária depois da qualacabaríamos reconciliados, e as acusações eram substituídas por imagens celestiais das horasindeléveisquepassamosjuntosepelopoderreconfortantedesuapresença.Aindaassim,euensaiavaumaumosargumentosquegostariadelheexpor.Elaprecisavamedizer,caraacara,queresolvera

Page 125: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

medeixar.Seoexameparaauniversidadetinhacorridomal,aculpanãoeraminha.Seelaqueriame deixar, eu tinha o direito de saber. Afinal, ela nãome dissera que continuaria a se encontrarcomigopelorestodavida?Eunãomereciaumaúltimachance—pelomenosdeencontrarobrincoelogolevarparaela?Elarealmenteacreditavaquealgumoutrohomemseriacapazdeamá-latantoquantoeu?Nesseespíritodecidido,levantei-medacamaesaíàspressasparaarua.

Page 126: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

30.Füsunnãomoramaisaqui

Corriocaminhotodoatéacasadela.Mesmoantesdepassarpelaesquinaondeficavaa lojadeAlaaddin,jáestavaeufóricosódeimaginarcomomesentiriaaovê-la.Quandosorriparaumgatoquecochilava,protegidodosoldejulho,perguntei-meporquenãomeocorreraantessimplesmenteiratéacasadela.Adornoquadrantesuperioresquerdodomeuestômagojáestavacedendo;opesonasminhaspernaseafadigaemminhascostastinhampassadodetodo.Quandomeaproximeidacasadela,contudo,omedodenãoaencontrarfezmeucoraçãodisparar:oquediriaaela,eoquediriasefosse amãequemabrisse a porta?A certa altura, pensei emvoltar para ir buscar o velocípededainfânciadela.Massabiaque,nomomentoemquenosencontrássemos,nãohaveriaanecessidadedepretextos.Comoumfantasma,entreino saguão frescodopequenoedifícioda ruaKuyuluBostan,subiosdegrausatéo segundoandare toqueiacampainha.Osvisitantesdomuseu talvezqueiramapertar o botão aqui instalado para ouvir omesmo som de gorjeio— tão na moda em Istambulnaqueletempo—queescuteienquantomeucoraçãoesvoaçavainquietocomoumpassarinho,presoentreaminhabocaeaminhagarganta.Foiamãedelaqueatendeuaporta.Ocorredorestavatãoescuroquenumprimeiromomentoela

franziu o nariz diante daquele desconhecido resfolegante, como se pudesse ser um vendedorincômodo.Entãoelamereconheceu,eseurostoseiluminou.Vendonissoumsinaldeesperança,adoremmeuestômagodiminuiuumpouco.“Oh!KemalBey!Queiraentrar!”“Euestavasódepassagemporaqui, tiaNesibe,eaípenseiementrar”,disseeu,soandocomoo

adolescenteesforçadodacasavizinhadealgumanoveladerádio.“Nooutrodia,fiqueisabendoqueFüsunnãotrabalhamaisnaloja.Eentãopenseicomigo:‘Elanuncaapareceuparamedizercomosesaiunovestibular’.”“Ah,KemalBey,meupobrerapaz,entreparaeupoderdividirnossosproblemascomvocê.”Sempararpararefletirsobreoqueelapodiaquererdizercom“dividirnossosproblemas”,entrei

naqueleapartamentoprecárioqueminhamãejamaisvisitara,adespeitodetodasaquelassessõestãoíntimasdecosturaemnossacasaedetodasasconversassobreoparentescoquenosunia.Poltronascomumforrodepanoporcimadoestofado,umamesa,umbufê tendoemcimaumatigelaparadoces, euma televisão coroadaporumcachorrode louça adormecido— achei todas essas coisasmagníficas,porque tinhamcontribuídoparaacriaçãodomilagreprodigiosoqueeraFüsun.Numcanto,viumpardetesourasdecostura,cortesdetecido,linhasdemuitascores,alfinetes,aspartesdeumvestidoquevinhasendocosturadoàmão.EntãotiaNesibeaindatrabalhavacomocostureira.Füsun estava em casa? Parecia que não, mas ali estava a mãe dela, de pé, esperando, como sepretendessenegociarcomigooumeapresentarumaconta,edissoeuextraíaalgumaesperança.“Sente-se, por favor, Kemal Bey”, disse ela. “Vou lhe fazer um café. Você está pálido. Precisa

relaxar.Querumpoucodeáguageladatambém?”“Füsunnãoestáaqui?”,perguntouopassarinhopresonaminhagargantaseca.“Nããão. Nããão”, respondeu a mulher, num tom de quem diz “você nem imagina o que

Page 127: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

aconteceu!”. “Como o senhor quer o seu café?” Dessa vez ela me tratou de “senhor”, commaiscerimônia.“Compoucoaçúcar”,respondi.Oqueperceboagora,tantosanosmaistarde,équeelafoiparaacozinhanãoparafazerocafé,

masparaprepararuma resposta.Naquelemomento,porém,mesmocommeus sentidosemalertatotal,minhacabeçarodavaporseencontrarnumacasaondeocheirodeFüsunestavaemtodaparte,eeuestavatontocomaesperançadepoderchegaravê-la.Eláestavaemsuagaiolameuamigo,ocanáriodaboutiqueşanzelize;seugorjeioimpacienteacalmavameucoraçãocomoumunguento,oquesómedeixavamaisconfuso.Namesadecentroàminhafrentehaviaumaréguademadeiradetrintacentímetros,de fabricação turca,comsuabelabordabranca.EuéqueaderadepresenteaFüsun em nosso sétimo encontro, segundo meus cálculos, para que usasse em seus estudos degeometria.EficouclaroqueagoraeraamãedeFüsunquemusavaaréguaemsuascosturas.Pegueia régua, aproximei-a do nariz e, exatamente como eu recordava o cheiro da mão de Füsun, alimesmo, diante dosmeus olhos, ela adquiriu vida.Quando tiaNesibe voltou da cozinha, enfiei aréguanobolsodopaletó.Elapousouocafénamesinhaesentou-seàminhafrente.Acendeuumcigarro,enquantoalguma

coisa em seus gestos lembravaqueera amãede sua filha, e entãodisse: “OexamedeFüsunnãocorreunadabem,KemalBey”.Aessaaltura,elajádecidiradequemaneiradeviadirigir-seamim.“Ficou tãonervosa... Saiu da prova chorando antesmesmode terminar— e nem fomos buscar oresultado. Ficou num estado terrível. Coitada da minha filha, nunca mais vai poder estudar nauniversidade. Ficou tão traumatizada que largou o emprego. Essas suas aulas de matemáticarealmente fizeram mal a ela. O senhor deve ter visto como ela estava na noite da sua festa denoivado…Foidemaisparaela.Osenhornãoéoúnicoresponsável,claro…Elaéumamoçafrágil.Acaboudefazerdezoitoanos.Masficoucomocoraçãopartido.Entãoopaidelaalevouparalonge,longedaqui.Bemlongedaqui.Osenhorprecisa seesquecerdela.Ela tambémvai seesquecerdosenhor.”VinteminutosmaistardeeuestavaestendidoemnossacamanoedifícioMerhamet,olhandopara

oteto,enquantoaslágrimasescorriamlentasesilenciosasparaotravesseiro,emelembreidarégua.Euusavaumaigualquandoeracriança,oquetalvezexpliqueporquederadepresenteaFüsunumarégua-padrão de liceu como aquela, de modo que não é nada surpreendente que tenha setransformado numa das primeiras peças significativas de nossa coleção. Era um objeto que melembravadeFüsun, oprimeiroque a angústiamemotivou a subtrair do seumundo.Pus a pontaondeapareciaonúmero“30”naboca,mantendo-aalipormuitotempo,apesardogostoamargoquedeixavadepois.Passeiduashorasdeitadonacamamanuseandoaquelarégua,tentandorecomporashorasquepassaranasmãosdela,oquemeproduziaumalívio,umafelicidadequasecomparávelàdevê-la.

31.Asruasquemefazemlembrardela

Page 128: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Eusabiaaessaalturaque,senãotivesseumplanoparaesquecê-la,nãoteriacomoretomarminhavidanormal.MesmoomenosobservadordosfuncionáriosdaSatsatjáperceberaamelancolianegraquetomaracontadeseuchefe.Minhamãe,imaginandoquehouvessealgumproblemaentremimeSibel,viviameinterrogando,eduranteasrefeiçõespoucofrequentesquefazíamosjuntosadquiriuocostumedemeaconselharanãobebertanto,exatamentecomofaziacommeupai.Quantomaioradorqueeusentia,maisansiosaesoturnaficavaSibel,enosaproximávamosdepressadeumtemívelpontodeexplosão.Sabendoqueoapoiodelaeracrucialparaqueeumesalvassedaqueleaperto,omedodeperdê-lanãoeramenorqueopânicoqueeusentiadeumcolapsototal.Proibi-mede voltar ao edifícioMerhamet e ficar à espera deFüsun, e tambémdemanusear as

coisas queme faziam pensar nela. Já tentara antes impor-me essas proibições— um regime quedemandavacadaátomodaminhaforçadevontade—,mas,depoisdeencontrarváriasmaneirasdedriblá-las (eu decidia, por exemplo, comprar flores para Sibel num florista que ficava ao lado daboutiqueşanzelize),resolviadotarmedidasmaisdrásticaseremoverdomeumapamentalumasériederuaselugaresondeeupassavaboapartedeminhavida.AquiexponhoomapamodificadodeNisantaşıquecompus,depoisdeumesforçoconsiderável,

assinalandoemvermelhoasruaselocaisdequeeuestavatotalmentebanido.Aboutiqueşanzelize,perto do cruzamento da avenida Teşvikiye com a avenida Valikonaği; o edifício Merhamet, naavenidaTeşvikiye;adelegaciadepolíciaeaesquinaondeficavaalojadeAlaaddin—nomeumapamental,todosseconverteramemáreasproibidas,devidamentemarcadasemvermelho.ExcluíaruaKuyuluBostan,ondeFüsunmoravacoma família,earuaqueàépocaaindasechamavaavenidaEmlak, enãoavenidaAbdi İpekçi ou ruaCelâlSalik, osnomesque adquiriu emanosposteriores(emboraosmoradoresdeNişantaşı continuassemachamá-lade“ruadadelegacia”).Proibi-medecircular atémesmo pelas ruas transversais que conduziam a essas viasmais importantes.Nas ruasmarcadas em laranja eu ainda podia entrar em caso de absoluta necessidade, contanto que nãotivesse bebido nada e as atravessasse correndo emmenos de umminuto, sem parar no caminho.Minha casa e a mesquita de Teşvikiye também foram marcadas em laranja, como tantas ruastransversais,poiseusabiaqueumaexposiçãoprolongadaaelaspoderiaagravarmeusofrimento.Etambém precisava tomar cuidado nas ruas quemarquei em amarelo. O caminho que costumavafazer entre a Satsat e os nossos encontros no edifícioMerhamet, o caminho que Füsun percorriadiariamenteentreaboutiqueşanzelizeesuacasa(euviviaimaginandoessedeslocamento)estavamcoalhados de minas terrestres e armadilhas da memória que poderiam me condenar à agonia.MarcadosnomapatambémvinhamoutroslocaisquefiguramemminhabrevehistóriacomFüsun,como o terreno baldio onde os devotos sacrificavam cordeiros quando éramos crianças, e até aesquinadopátiodamesquitaondeaavisteidelonge.Eutraziaessemapasempreemminhamente,respeitandosuasrestriçõesdevidoàcrençadequesóumregimeascéticoaessepontopoderiacurar,aindaqueaospoucos,adoençadequeeupadecia.

32.AssombrasefantasmasqueeuconfundiacomFüsun

Page 129: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Tristemente, embora eumebanissedas ruas ondepassei a vida inteira e guardassedistânciadetodosos objetosqueme trouxessem reminiscênciasdela,nãoconseguia esquecer-medeFüsun.Eagoracomeçavaaverseufantasmanasruascheiasdetranseuntesemesmonasfestas.Aprimeiraapariçãofoiamaischocantedetodas.Aconteceunumanoitedefimdejulho,numa

balsa de transporte de carros, quando estava indo ao encontro dos meus pais em nossa casa deveraneio em Suadiye. Era a balsa que liga Kabataş a Üsküdar e, quando nos aproximávamos dodestino,eu,comotantosoutrosmotoristasimpacientes,jáderaapartidanomeumotorquandoolheiparaaentradalateraldepedestreseviFüsun.Comoarampaparaoscarrosaindanãoforabaixada,eusópoderiachegaraelasepulasseparaforadocarroesaíssecorrendoemsuadireção,bloqueandoassimosveículosquetentavamdescerdabalsa.Puleiparaforadocarro,ejámepreparavaparagritarseunomeomaisaltoquepudessequandoabasedeseutroncoapareceue,dolorosamente,percebique era bemmais larga emal-acabada que a daminha amada, e o rosto, também, assumiu umaspecto diferente. Durante aqueles oito ou dez segundos, porém, minha dor transformou-se emeuforia, e nos dias que se seguiram revivimuitas vezes aquelemomento, convencido de que seriadessamaneiraquerealmenteacabaríamospornosencontrar.Poucosdiasdepois fui aocinemaKonak, sóparapassaro tempo,e, enquanto subiaas longase

largas escadas que levavam ao piso superior, vi Füsun dez passos àminha frente. A visão de seuscabelos longos, tingidos de tommais claro, e de seu corpo esguio provocouumchoque emmeucoração,edepoisemminhaspernas.Corrinadireçãodelaprestesagritarseunome,masquandoviquenãoeraelaperdiavoz,comonumsonho.Eupassavamais tempo emBeyoğlu, ondehaviamenos elementos quepodiam lembrarFüsun,

masumdiativeumbaqueaoversuaimagemrefletidanavitrinedeumaloja.Noutraocasião,umagarotaseesgueiravaporumacalçadacheiaemBeyoğlu,deummodoqueeuconsideravaexclusivodeFüsun.Partiatrásdela,masnãoconseguialcançá-la.Semsaberseeraoutramiragemouapessoaqueeuprocurava,volteiàmesmahoraparaaquelepontodacalçadaváriosdiasseguidos, fazendodezenasdevezesopercursoentreamesquitaAğaeocinemaPalace.Semtornaravê-la,refugiei-menumacervejariaefiqueisentadojuntoàjanela,olhandoparaospassantes.Esses momentos serenos foram muito breves. Essa fotografia da sombra branca de Füsun em

Taksimcapturaumailusãoquesóduroudoisminutos.Com o tempo, acabei percebendo quantas de nossas garotas e jovens mulheres têm a mesma

silhuetadeFüsun,equantasmoças turcasmorenas tingemocabelodelouro.AsruasdeIstambulestavam cheias de dublês de Füsun, que se mostravam por um ou dois segundos e depoisdesapareciam.Mas, toda vez que eu focalizavamelhor alguma dessas figuras fantasmagóricas, viaquenãoeranadaparecidacomaminhaFüsun.Certavez,quandojogavatêniscomZaimnoClubedeTênis,EsgrimaeMontanhismo,euaavistei juntoa trêsmeninasqueriamsemparar, tomandoMeltemnumadasmesas;minhamaiorsurpresanãofoinemmesmovê-la,masimaginarquetivessesetornadosóciadoclube.Noutraocasião,seuespectrotinhaacabadodedesembarcardeumabalsadeKadıköynaponteGalata,etentavaembarcarnumtáxicompartilhado.Preciseidealgumtempoaté acostumarmeu coração a essasmiragens, e depoisminhamente.Umdia, durante o intervaloentredoisfilmesnocinemaPalace,quatrofilasàminhafrente,euavisentadanobalcãocomsuas

Page 130: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

irmãs,tomandoumsorveteMiragedechocolate,edecidiesquecerqueelanãotinhairmãs,poisjáconcluíra que enquanto conseguisse saborear o prazer de uma dessas ilusões não fazia sentidodesfazê-la,sempreemprejuízodemeusofridocoração.Lá eu a vi, de pé à frente da Torre do Relógio de Dolmabahçe, ou caminhando através do

mercadodeBeşiktaşcomumasacolademacramênamão,comoumadonadecasa,ou,demaneiramais desconcertante, contemplando a rua da janela de um apartamento do terceiro andar emGümüşsuyu.Quandomeviuolhandoparaeladarua,ofantasmadeFüsunfitou-medevolta.Aceneie eleme acenou em resposta.Mas seu aceno bastou parame dizer que não era ela, eme afasteiacabrunhado.Aindaassim,aapariçãonajanelalevou-meaimaginarqueseupaiativesseobrigadoasecasarlogoparaevitaravergonha,outalvezparaajudá-laaseesquecerdemim.Emmeusonho,elacomeçavaumavidanovanaqueleapartamento,masaindaassimqueriamever.Descontandoum segundooudois de consoloqueos primeiros vislumbres desses fantasmasme

trouxeram,jamaisconseguiesquecerpormuitotempoquenãoeramFüsun,mascriaçõesdaminhainfelizimaginação.Aindaassim,nãosuportavaviversemaqueladocesensaçãoocasional,eportantocomeceiafrequentaroslugaresmaismovimentadosondepoderiaavistarseufantasma;comotempocomeceiamarcar tambémesses locaisemmeumapamentaldeIstambul.E logoos lugaresondeseus fantasmas me apareciam com mais regularidade eram os que eu frequentava mais amiúde.IstambulseconverteranumagaláxiadesinaisquemelembravamdeFüsun.Comoeucostumavadepararcomseu fantasmaenquantocaminhavadevagarpelas ruascomos

olhosperdidosnadistância,deideperambular,sempreolhandovagamenteparalonge.SemprequeiaaumclubenoturnoouaumafestacomSibelebebiarakıdemais,Füsunmeapareciacomtodosos tipos de roupa, e eu precisava me lembrar de que estava noivo e se mordesse a isca de umamiragempoderiapôremperigoaúnicacoisaque tinhade real.Decidiexporaquiestas vistasdaspraiasdeKilyoseşileporqueeracommaisfrequêncianastardesdeverão,quandoestavadeguardabaixadevidoaocaloreaocansaço,queeuaviaemmeioàsmultidõesdegarotasejovensmulherestãoencabuladasdeseremvistasdemaiôoubiquíni.QuarentaecincoanosdepoisdarevoluçãodeAtatürk e da fundação da República, os turcos ainda não haviam conseguido descobrir de quemaneirapodiamiràpraiadetrajedebanhosemacanhamentoe,emocasiõescomoessa,ocorria-meoquantoafragilidadedeFüsunrefletiaatimidezdopovoturco.Nessesmomentos de saudade intolerável, eu deixava Sibel jogando bola com Zaim nomar, e

caminhavaparalongeafimdemedeitarnaareia,abandonandomeucorpodesajeitado,esfomeadodeamoraopontodainsensibilidade,paratostaraosol.Observandoaareiaeabeirad’águacomocantodoolho,erainevitáveleuacabarvendoalgumagarotaquecorrianaminhadireçãoeacharquefosseela.PorqueeununcaatrouxeraàpraiadeKilyos,sabendooquantoelagostariadevir?ComoeuforacapazdenãoreconhecerovalordessadádivaqueDeusmeconcedera?Quandoconseguiriatornaravê-la?Deitadoaliaosol,sentiavontadedechorar,masnãopodiamepermitir,poisaculpaeraminha,eemvezdissoenterravaacabeçanaareiaemesentiaamaldiçoado.

33.Exaltaçõesvulgares

Page 131: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Avida recuarapara longedemim,perdendo toda cor e todo saborqueeuencontravanela atéentão.Aforçaeaautenticidadequeeuantessentianascoisas(embora,devaconfessarcomtristeza,sem percebê-las plenamente) agora tinham se perdido. Anosmais tarde, quandome refugiei noslivros,descobri,numaobradeGérarddeNerval,amelhordescriçãodainsensibilidadecruaqueeusentianaqueletempo.Depoisdeentenderqueperdeuparasempreoamordesuavida,opoeta,cujadorolevariamaistardeaosuicídioporenforcamento,escreveemalgumpontodeseuAuréliaqueavidasólhedeixouas“exaltaçõesvulgares”.Àquelaaltura,eutambémsentiaquetudoquefaziasemFüsuneravulgar,ordinárioesemsentido,epelaspessoasquemelevaramaesseestadodecruezasentia apenas raiva.Ainda assim,nuncadeixei de acreditar que fosse reencontrarFüsun, que teriaumanovaoportunidadede falarcomela,ouatéde tomá-laemmeusbraços;eera issoqueaindamantinhaminhaalma ligadaameucorpo,pormais tênueque fossea ligação,aindaque, semprequemerecordodessesdias,precisereconhecerqueessaesperançasófaziaprolongaraminhador.Num dia especialmente quente de julho, meu irmão me telefonou para dizer, com justa

indignação, queTurgayBey,nosso sócio em tantos empreendimentosde sucesso, ficaramagoadopela faltadeconviteparaa festadenoivado,eagoraameaçava se retirardeumagrandevendadelençóis em que tínhamos feito uma oferta conjunta e vencido o leilão, um problema pelo qualOsmanmeresponsabilizava(depoisdeterouvidodenossamãequeeuéqueriscaraonomedenossosócio da lista dos convidados). Acalmei-o prometendo acertar as coisas com Turgay Bey no diaseguinte.Quandoentreinocarronocalorsufocantedodiaseguinte,acaminhodesuagigantescafábrica

emBahçelievler,contempleioshorrendosbairrosvizinhoscomseusblocosdeapartamentosaindamais feios, seusarmazéns, suas fabriquetase seusdepósitosde lixo,eadordoamordeixoudemeparecerintolerável.SópodiaestarsentindoaquelealívioporqueteriaumencontrocomalguémquetalvezpudessemedarnotíciasdeFüsun,alguémcomquemtalvezpudesseconversarsobreela.Mas,emcircunstânciassemelhantes(quandoeuconversavacomKenanoutopavacomŞenayHanımemTaksim),encontroscomoessenãometrouxeramnenhumabem-vindaalegria,e tenteiconvencer-medequeasimplesdedicaçãoaos“negócios” teriaumefeitobenéfico.Naverdade, seeunãomeentregasseaumautoenganotãoextremo,essavisitaquefuifazer“sóanegócios”poderiatercorridomelhor.QueeutivessemedeslocadodeIstambulsóparalhepedirdesculpashaviaaplacadooorgulhode

TurgayBey,oquebastouparaelemetratarbem.Conduziu-meporumtouremsuatecelagem,porinstalaçõesondecentenasdemoças trabalhavamemtearesgigantescos.Equando,por trásdeumdeles,avisteiofantasmadeFüsundecostasparamim,percebiclaramenteaverdadeirafinalidadedeminha visita. Assim, enquanto admirava os escritórios modernos e os refeitórios “higiênicos”,abandoneimeusmodosdistantes, sugerindoque seriaumapenanãoconcluirmos aquelenegócio.TurgayBeymeconvidoupara almoçar com seus operários, de acordo com seushábitos,mas eu,convencidodequeissonãomepermitiriapedirdesculpasdomododevido,respondiqueumpoucodebebida—quecertamentenãoencontraríamosemsua fábrica— poderiameajudar a tratardecertas“questões importantes”.Olheiparaelecommuitaatenção— aquelaaparência tãocomum,comseubigode—enãohavianadaemsuaexpressãoaindicarquesabiaqueeuestavafalandode

Page 132: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Füsun.Finalmentemencioneiafestadenoivado,eele,aessaalturabastanteaplacado,disseemtomorgulhoso:“Sópodetersidoumesquecimento,tenhocerteza.Vamosdeixaressahistóriaparatrás”.Mascontinueiinsistindo,forçandoessehomemhonestoeindustrioso,cujamentesedesviavamuitopoucodotrabalho,aconvidar-meparaumrestaurantedepeixeemBakırköy.EntramosnomesmoMustang, nos mesmos bancos em que Füsun me contara quantas vezes tinham se beijado,lembrando como seus gestos se refletiamnosmostradores do painel e no espelho retrovisor, e noqual,lembrei-me,eleaagarraraeapalparaseucorpoantesaindaqueelacompletassedezoitoanos.Perguntei-me novamente se Füsun teria voltado para ele e, ainda assombrado por todas as suasaparições, incapazdeacreditarqueaquelehomempudessenãoternotíciasdela,continuei tensoealerta.Norestaurante,TurgayBeyeeunossentamosdeladosopostosdamesacomodoisvelhosrufiões.

Quando o vi abrir seu guardanapo no colo com as mãos peludas, vi mais de perto seu narizavantajadocomasmarcasdeacnee suabocaatrevida, tivea forte intuiçãodequeaquelealmoçonãoiriaacabarbem.Quandoelenãochamavaogarçomaosgritos,limpavaoscantosdabocacomoguardanapo,gestoeleganteimitadodealgumfilmedeHollywood.Aindaassimconseguimeconter,e atémetade do almoço permaneci sob controle.Mas as doses de rakı a que recorri para fugir àminha dor subiram de repente à superfície. Da maneira mais cortês, Turgay Bey admitiu quequalquermal-entendidoemtornodocontratodos lençóispodiaser facilmentedesfeito,equenãorestarianenhumamávontadeentrenóscomosócios.“Vamos todosganharbastante”,disseeleemtomconciliador,erespondi:“Oquerealmentecontanãosãoosbonsnegócios,massermospessoascorretas”.“KemalBey”,disseele,lançandoumrápidoolharaocopoderakıqueeutinhanamão,“eutenho

omaiorrespeitoporvocê,seupaiesuafamília.Todospassamospormausmomentos.Vivendonessepaísmaravilhosomasempobrecido,temosumaboasortequeDeussóconcedeaossúditosquemaisama;edevemosdar-Lhegraçasporisso.Nãopodemoscederaoorgulhoenãonoslembrarmosd’Eleemnossaspreces—éesteocaminhocorreto.”“Nãotinhaideiadequeosenhoreratãoreligioso”,disseeuemtomdeironia.“MeucaroKemalBey,oqueeufizdeerrado?”“TurgayBey,osenhorpartiuocoraçãodeumajovemqueporacasofazpartedaminhafamília.O

senhora tratoumuitomal.Chegouaopontodelheoferecerdinheiro.EstoufalandodeFüsun,daboutiqueşanzelize—elaéumaparentemuito,muitopróximapeloladodaminhamãe.”Seurostoempalideceueelebaixouosolhos.EfoientãoquepercebiquesentiaciúmesdeTurgay

BeynãoporeletersidoamantedeFüsunantesdemim,masporque,depoisdofimdocasoentreeles,eleconseguiraesquecer-sedelaeretomaranormalidadedesuavidaburguesa.“Eu não tinha ideia do parentesco entre vocês e ela”, disse ele com uma franqueza que me

surpreendeu. “Estou profundamente envergonhado. Se a sua família não podia tolerar me ver, osenhor tinha tododireitodenãomeconvidarparaa festadenoivado.O seupai e seu irmãomaisvelho tambémficaramofendidos?Oquepodemos fazerdehonradodiantedisso—desfazernossasociedade?”“Vamosdesfazeraparceria”,disseeu,arrependendo-medessaspalavrasnomesmomomentoem

Page 133: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

queasdizia.“Nessecaso,vamosdizerquefoiosenhorquemcancelouocontrato”,disseele,acendendoum

Marlboro.Adordoamoragora tinhasidoexacerbadapelaminhavergonhadiantedaqueleerro.Emboraa

essa altura já estivesse bastante embriagado, voltei dirigindo para a cidade. Desde que eu fizeradezoitoanos,dirigirporIstambul,especialmentepelavialitorânea,aolongodasmuralhasdacidade,sempremetraziagrandeprazer,masagora,comasensaçãodedesastreiminentequemedominava,aviagemseconverteunumaformadetortura.Eracomoseacidadetivesseperdidoabeleza,comoseeunãopudessefazeroutracoisaalémdepisarnoaceleradorparafugirdaquelelugar.AopassarporEminönü,porbaixodapassareladepedestresemfrentedamesquitanova,quaseatropeleiumapessoa.Chegandoaoescritório,concluíqueomelhora fazer seriaconvencerOsmandequepôr fimà

parceriacomTurgayBeynãoeramáideia.ConvoqueiKenan,queestavabeminformadosobreessecontrato em particular, e ele ouviumuito atentamente o que lhe expus. Resumi a situação assim:“Num assunto pessoal, Turgay Bey não está tendo o comportamento correto, e perguntou sepodemosficarsozinhoscomessecontrato”,acrescentandoquenossaúnicaopçãoeraseparar-nosdeTurgayBey.“Kemal Bey, se houver alguma possibilidade, devemos tentar evitar essa decisão”, disse Kenan.

Explicouquenãotínhamosmeiosdedarcontasozinhosdaquelecontrato,equesedeixássemosdeentregaropedidoa tempooprejuízo serianãoapenasdaSatsatmas tambémdasoutrasempresasenvolvidas,poisestaríamossujeitosaseveraspenalidadesnos tribunaisdeNovaYork.“Oseuirmãosabe disso?”, perguntou ele.Eu devia estar emitindo vapores de rakı comouma chaminé, pois deoutromodoelenãoteriaainsolênciadequestionarassimseusuperior.“Nãohácomovoltaratrás”,disseeu.“TeremosdeseguiremfrentesemTurgayBey.”EunãoprecisavaqueKenanmedissesseparasaberqueeraimpossível.Masminharazãotinhaparadototalmentedefuncionar,dandolugaraalgumdemônio encrenqueiro.Kenan ficou parado àminha frente, insistindo comigo para que euconversassecomOsman.Talveznãoprecisedizerque,nessemomento,nãoatireiogrampeadorqueexponhoaquinemo

cinzeiroaseuladocomologotipodaSatsatnacabeçadeKenan,apesardetodooimpulsodefazê-lo.Masmelembrodeternotadoquesuagravataeraridícula,elembravaocinzeirodacompanhiatantonotamanhodesproporcionalquantoemseucoloridoextravagante.“KenanBey”,gritei,“vocênãotrabalhanaempresadomeuirmão.Vocêtrabalhaparamim!”“KemalBey,por favornãoseofenda.Claroqueeuseiperfeitamentedisso”, respondeuelecom

astúcia.“Masosenhormeapresentouaoseuirmãonafestadenoivado,edesdeentãotemosmantidocontato. Se o senhornão ligar para ele agoramesmopara falar deumaquestão importante comoesta,elevaificarmuitoaborrecido.Seuirmãosabequeosenhorvempassandoporummomentoumpoucodifícile,comotodomundo,sóquerajudar.”As palavras “todomundo” quaseme fizeram explodir de raiva.Tive a tentação de demiti- lo ali

mesmo,masfiqueicommedodasuaaudácia.Sofrendocomoumanimalenjaulado,percebiquesóme sentiria melhor se pudesse pelo menos ver Füsun mais uma vez. Ao mundo eu me sentia

Page 134: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

indiferente,porqueàquelaalturatudomepareciafútilevulgar.

34.Comoumcãonoespaçosideral

MasemvezdeFüsunfuiverSibel.Minhadoraessaalturaeratamanha,tãovoraz,quequandooescritórioficouvazioconcluíimediatamenteque,seficassealimaisalgumtempo,iriamesentirtãosó quanto aquele cão depois que os soviéticos o enviaram numa pequena cápsula para o infinitonegro do espaço sideral. Convocando Sibel para o escritório depois do expediente, criei nela ajustificadaexpectativadequepudéssemosretomarnossavidasexualanterioraonoivado.Minhabem-intencionadanoivachegouusandoSylvie,umperfumedequeeusempregostara,eaquelasmeiasdetrama aberta que, como ela sabiamuito bem,me excitavam, com sapatos de salto alto. Chegouanimada, julgando queminha “doença” estivesse cedendo, e não consegui esclarecer que,muitopelo contrário, eu a chamara parame resgatar do flagelo, ainda que por pouco tempo; e que sóqueriaficarabraçadocomela,comoabraçavaminhamãenainfância.EassimSibelrepetiuoquejánosderasatisfaçãonopassado:empurrou-medecostasatémeforçarasentarnodivã,ecomeçousuaimitaçãodeumasecretáriaburra,tirandoalegrementearoupa,camadaacamada,atéque,sorrindodocemente,sentou-senomeucolo.Nãovoudescreveroquantoocheirodeseuscabelosoudeseupescoço fezcomquemesentisse totalmenteemcasa,oucomoaquela intimidadebemconhecidame deixou relaxado, e até restaurado, porque tanto o leitor razoável quanto o visitante atento domuseu irá suporquenosamamos.E ficariadecepcionado,comoaconteceucomSibel.Mas fiqueitãosatisfeitodeabraçá-laqueempoucotempoembarqueinumsonotranquiloefeliz,esonheicomFüsun.Quandoacordei,cobertodesuor,aindaestávamosdeitadosnosbraçosumdooutro.Asalaestava

escura, enos vestimosem silêncio,Sibelperdidaem seuspensamentos e euatoladonaculpa.Osfaróis dos carros que passavam pela avenida e as faíscas arroxeadas desprendidas pelas hastes dosônibuselétricosiluminavamoescritório,comonosdiasemquenosamávamosdescuidadamente.Sem discussão, dirigimo-nos ao Fuaye, e, quando nos instalamos em nossamesa iluminada no

salão repleto e animado, ocorreu-me mais uma vez como Sibel era encantadora, linda ecompreensiva.Lembroquedepoisdetermosconversadosobreassuntosvariadosduranteumahora,rindocomváriosamigosjáanimadospelabebidaquevieramaténossamesa,soubemospelogarçomque Nurcihan e Mehmet haviam jantado lá mais cedo. Mas não tínhamos como evitarindefinidamenteaverdadeiraquestão,àmedidaquenossanoiteiasendopontuadaporsilêncioscadavezmais prolongados. Pedi uma segunda garrafa de vinhoÇankaya. A essa altura, Sibel tambémbebiabastante.Finalmenteeladisse:“Oqueestáhavendocomvocê?Estánahora…”.“Se eu pelo menos soubesse”, disse eu. “Parece haver uma parte da minha mente que não

conseguereconheceroproblemaouentenderqualseja.”“Querdizerquevocêtambémnãoestáentendendo,éisso?”“É.”

Page 135: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Sequersaberoqueacho,estáentendendomuitomelhordoqueeu”,disseSibelsorrindo.“Oquefazvocêacharqueentendomaisdoquevocê?”“Jálhepassoupelacabeçaqueeutambémpensosobreosseusproblemas?”,perguntouela.“Estouficandopreocupadoporque,seeunãoconseguirdarumfimnisso,vouacabarporperdê-

la.”“Não se preocupe”, disse ela, dando-me palmadinhas na mão. “Sou paciente e amo você de

verdade.Sevocênãoquerfalararespeito,nãoprecisa.Enãosepreocupe,nãotenhoteoriasloucassobrenadadisso.Temostempodesobra.”“Quaisteoriasloucas?”“Bom,porexemplo,nãoestoupreocupadacomapossibilidadedequevocêsejahomossexualou

coisa parecida”, disse ela, sorrindo namesma hora, paramostrar que estava tentandome alegrartambém.“Ah,muitoobrigado.Equemais?”“Nãoachoquesejaalgumproblemasexual,umtraumadeinfânciaprofundonemnadadessetipo.

Masaindaachoqueconsultarumpsicólogotalvezajudasse.Nissoeunãovejoproblemaalgum.NaEuropaenosEstadosUnidos, todomundoconsultapsicólogos…Claro, você teriadecontarparaessapessoaoquenãopodecontarparamim…Vamos,querido,conteparamim,nãotenhamedo.Podetercertezadequevouperdoá-lo.”“Masestoucommedo”,respondisorrindo.“Vamosdançar?”“Entãovocêadmitequeexisteumacoisaquevocêsabeeeunão.”“Mademoiselle,porfavornãorecusemeuconviteparadançar.”“Ah,monsieur!Éque soucomprometidacomumhomemmuitocomplicado!”,disseela,enos

pusemosdepé.Registroessesdetalhes,eexponhoaquiessesmenusecopos,paraevocaraintimidadeexcepcional,

alinguagemparticular,e—seforestaapalavracerta—oamorprofundoquehaviaentrenósdoisnaquelas noites quentes de julho em que, à procura de algum alívio, frequentávamos clubesnoturnos,festaserestaurantes,bebendoàfarta.Eraumamoralimentadonãopeloapetitesexualmasporumacompaixãoextrema,enasnoitesemque,tendoambosbebidobastante,noslevantávamosparadançar,nemsempreestávamosdistantesdaatraçãofísica.Enquantoaorquestraaofundotocava“Lábioserosas”,ouenquantoodiscjockey(grandenovidadenaTurquiadaépoca)punhaparatocarumquarentaecincoatrásdooutro,ascançõesseespalhavamporentreasfolhasdasárvoresimóveisesilenciosasnasnoitesúmidasdeverãoeeutomavaminhaqueridanoivanosbraços,abraçando-acomamesmapaixãododivãdeminhasalanoescritórioe,emboramotivadopelabuscadeproteção,considerava preciosos os laços e a camaradagem que nos uniam; inspirando o perfume de seupescoçoedeseuscabelos,euencontravaapazeviacomoeraabsurdosentir-mesócomoumcãocosmonautaemplenoespaço;e,imaginandoqueSibelsemprefosseestaraomeulado,euapuxavaaturdidoparamaisperto.Enquantodançávamossobosolharesdeoutrosparesromânticos,àsvezescambaleávamosumpouco,comoseprestesadesabarbêbadosnochão.Sibelgostavadessestransesalcoólicosemquerecaíamos,namedidaemquenostransportavamparaalémdocotidiano.Doladodefora,nasruasdeIstambul,comunistasenacionalistastrocavamtiros,roubavambancos,lançavam

Page 136: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

bombasemetralhavamcafés,mastínhamosaoportunidade,ealicença,deesqueceromundotodo,tudograçasàminhamisteriosamoléstia,quenamentedeSibelconferiacertaprofundidadeàvida.Mais tarde,quandovoltávamosànossamesa,Sibel tornavaaabordaromesmotemacomavoz

pastosa, não comoumacoisa que compreendesse,mas como algoque aceitava sementender porcompleto. Assim, graças aos esforços dela, minhas misteriosas mudanças de humor, minhamelancolia eminha incapacidadepara o amor físico comSibel representavammais queum testepré-maritalparaacompaixãoeoenvolvimentodaminhanoiva,umatragédiapassageiraquedaliapouco estaria esquecida. Era como se a nossa dor nos desse certa distinção, nos diferenciasse denossos amigos ricos mais duros e superficiais, mesmo que saíssemos a passeio a bordo das suaslanchas.NãoprecisávamosmaisnoscomportarcomoosbeberrõesdescuidadosqueseatiravamnoBósforonofinaldasfestas.Minhadoreminhaestranhezanosconferiamagraçadecertadiferença.Agradava-me ver Sibel aceitar minha dor com tamanha dignidade, e isso nos deixou ainda maisunidos.Mas,mesmoemmeioatodoessezeloalcoólico,todavezqueeuouviaumabalsadaLinhadaCidadeapitartristementeaolonge,ouquandoolhavaparaamultidãoenomenosprováveldoslugares avistava alguém que julgava ser Füsun, Sibel percebia aquela expressão estranha nomeurosto e tinha a dolorosa intuição de que o perigo de tocaia nas sombras era bem maior do queimaginava.Efoiassimque,pertodofinaldejulho,asugestãocarinhosadeSibeldequeeuprocurasseum

psiquiatraconverteu-seemexigência,ecommedodeperdersuacompaixãoesuacompanhiaacabeiconcordando.Ofamosopsicanalistaturcodequeoleitorcuidadosohádeselembrar,enunciandoumaanálisedoamor,acabaradevoltardosEstadosUnidosnaquelaépocae fazia todoopossível,comsuagravata-borboletaeseucachimbo,paraconvencerdeterminadosegmentodasociedadedeIstambuldequenãopodiamaisprescindirdosseuslabores.Anosmaistarde,quandojátentavacriarmeumuseue fiz- lheumavisitaparaperguntardoqueele se lembravadaquelaépoca (e tambémparalhepediradoaçãodomesmocachimboedamesmagravata-borboleta),descobriqueelenãoguardavaqualquerlembrançadosproblemasporqueeupassaranaqueletempo;emais,nãoouviranenhum comentário da minha penosa história, que àquela altura chegara ao conhecimentogeneralizado da sociedade de Istambul. Lembrava-se de mim como mais um paciente que oprocurara naqueles dias— indivíduos perfeitamente saudáveis que batiam à sua porta só porcuriosidade.NuncaheideesquecerquantaquestãoSibelfezdemeacompanhar,comoamãequeleva um filho enfermo aomédico, e das palavras que elame disse: “Vou ficar sentada na sala deespera,querido”.Pormim,elanãoteriaido.Sibel,comaintuiçãotãoprevalentenasburguesiasdospaísesnãoocidentais,maisespecialmentedospaísesmuçulmanos,viaapsicanálisecomouma“trocacientífica de confidências” inventada para os ocidentais desacostumados às tradições curativas dasolidariedadefamiliaredocompartilhamentodossegredos.Quando,depoisdeconversarsobreistoeaquiloepreenchercomtodaaclarezaosformuláriosrequeridos,opsicanalistameperguntouqualerameu “problema”, tive o impulso de lhe revelar que perdera amulher que amava e agoramesentia tão solitário quanto um cão enviado para o espaço. Em vez disso, contei que vinha sendoincapazdoamorfísicocomminhalindaequeridanoivadesdeonossonoivado.Eelemeperguntouqualeraacausadessa faltadedesejo— oqueme surpreendeu,pois esperava justamentequeele

Page 137: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

pudessemedar a resposta.Hoje, tantos anosmais tarde, quandome lembrodas palavras quemevieramàmentecomaajudadeDeus,aindasorrio,masvejonelasalgumaverdade:“Talvezeuestejacommedodavida,doutor!”.E esta seriaminhaúltima visita aopsicanalista, quenãopôde fazermais doque sedespedir de

mimcomaspalavras:“Nãotenhamedodavida,KemalBey!”.

35.Asprimeirassementesdaminhacoleção

Tendo evitado a armadilha do psicanalista, convenci-me de que trilhava o caminho darecuperação, julgando que estivesse forte o bastante para voltar a percorrer, pelomenos algumasvezes,asruasqueeumarcaradevermelho.Senti-metãobemnosprimeirosminutos,aopassarpelaporta da loja de Alaaddin e pelas ruas por ondeminhamãe andava comigo quando saía para ascompras,eaorespiraraatmosferadaquelaslojas,queacabeiacreditandoquenaverdadenãosentiamedo algum da vida, e a cura de minha doença estava próxima. Esses pensamentos repletos deesperançaencorajaram-meapensarqueseriacapazdepassarpelaportadaboutiqueşanzelizesemsentirnenhumador—masestavaenganado.Bastou-meavistaralojaàdistânciaparaficaragitado.Poisadorestavaapenasadormecida,esperandoporalgoqueadesencadeasse,eapartirdaísuas

trevastomaramcontadomeupeito.Ansiandodesesperadoporalgumacuraimediata,imagineiqueFüsun poderia estar na loja, o que fez meu coração disparar. Com a cabeça rodando, e minhaconfiança cada vez mais escassa, atravessei a rua e olhei pela vitrine: Füsun estava lá! Por ummomentoacheiqueeufossedesmaiar;corriparaaporta,e já tinhaquaseentradoquandopercebiquenãoeraFüsun,esimmaisumaaparição.Umajovemforacontratadaparasubstituí- la!Deumahoraparaoutra,eumalconseguiaficardepé.Avidadosclubesnoturnos,essasfestasemqueeumerefugiavacomaajudadoálcoolagoraserevelavamemtodaasuafalsidadeebanalidade.Sóhaviaumapessoanomundocomquemeupodiaviver,umaúnicapessoacujosabraçosme faltavam;ocoraçãodaminhavidaestavaalhures,e tentarenganar-mecomaquelasexaltaçõesvulgareseranaverdadeumdesrespeito tantoaelaquantoamimmesmo.Oremorsoeocaoscarregadodeculpaque me envolviam desde o meu noivado tornaram-se agora monstruosos com uma novacompreensão: eu vinha traindo Füsun! Precisava pensar apenas nela. Precisava dirigir-meimediatamenteparaolugarmaispróximodeondeelaseencontrava.OitoadezminutosmaistardeeuestavaestendidonacamadoapartamentodoedifícioMerhamet,

tentando capturar o aroma deFüsunnos lençóis, e era quase como se tentasse senti- la dentro demim,como se tentasse transformar-menela,mas seucheiro seatenuara.Com todasas forçasqueconseguireunir,abraceioslençóiseentãoestendiobraçoparapegaropesodepapeldevidroemcima da mesa, desesperado por algum vestígio do cheiro de suas mãos. Enquanto aspiravaprofundamenteo vidro, sentiumalívio imediato emmeunariz enospulmões.Fiquei ali deitado,segurando e aspirando o peso de papel por não sei quanto tempo. Segundo cálculos que fizmaistardedememória,eulhederadepresenteaquelepesodepapelnodia2dejunho,e,comoocorreucomtantosoutrospresentesquelhedei,ela,paraevitarassuspeitasdesuamãe,decidiranãoolevar

Page 138: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

paracasa.Contei a Sibel que, apesar da duração de minha consulta com o médico, eu não chegara a

confessarnadadeinteresse,eque,comoomédiconãotinhanadaameoferecer,eunãovoltariaaconsultar-mecomele,masquemesentiaumpoucomelhor.Não mencionei que minha terapia tinha consistido em ir ao edifícioMerhamet e me estender

naquelacama,acariciandoqualquerobjetoqueFüsuntivesse tocado.Masnemfezdiferença,poisdaliaumdiaemeiominhaagoniavoltouasertãointensaquantoantes.Durantetrêsdiasvolteiaoapartamentoemedeiteinaquelacama,segurandonasmãosalgumobjetoquetivessepassadopelasmãosdeFüsun,umpincelsujodetintasdemuitascores,eeuopassavanapeleeopunhanaboca,como um bebê explorando um brinquedo novo.Novamente, senti algum alívio por certo tempo.Numa parte deminhamente, sabia que eume habituara, que ficara viciado nos objetos quemetraziamalgumalívio,masqueaquelevícionãomeajudavaemnadaaesquecerFüsun.Essas visitas de duas horas que eu fazia a cada dois ou três dias ao apartamento do edifício

Merhamet,euocultavanãosódeSibel—eracomoseasescondessedemimtambém,oquepodeexplicar por que acreditava que conseguira reduzirmeu sofrimento a uma condição tolerável.Nocomeço,quandoeuolhavaparaaantigacaixadoturbantequetínhamosherdadodemeuavô,ofezqueFüsunpunhanacabeçaquandofaziasuaspalhaçadasouossapatosqueminhamãedescartara(elaostinhaexperimentadotambém;maseramtamanhotrintaeoito),nãoeracomosolhosdeumcolecionador.Eueraumpaciente,tomandoumremédiodepoisdooutro.Porumlado,ansiavaporqualquer objeto que me lembrasse de Füsun; por outro, mesmo que aquela terapia atenuasse aminha dor, o que eu queria era me afastar daquele apartamento e daqueles objetos, que tantoaliviavam quanto renovavam a lembrança do meu mal, representando uma promessa jamaiscumprida de que eu estivesse começando a me recuperar. Essa esperança me dava coragem, ecomecei a sonhar— comdor,mas com satisfação— que dali a pouco seria capaz de retornar àminha vida anterior, que conseguiria retomar minhas relações com Sibel, que nos casaríamos ecomeçaríamosumavidafamiliarnormalefeliz.Mas essas fantasias duravam pouco; antes que se passasse um dia, o velho sofrimento bem

conhecido tornava a se apossar demim, emais uma vez eu retornava ao apartamento do edifícioMerhamet em busca de um tratamento. Entrava e ia direto até a xícara de chá, o prendedor decabeloesquecido,arégua,aescovadecabelo,aborracha,acanetaesferográfica—qualquertalismãqueremontasseàquelesdiasfelizesemquenossentávamosladoalado.Ouentãoreviravaosobjetosinúteisqueminhamãerelegaraàqueleapartamento,sabendoquetodostinhampassadopelasmãosdeFüsun,quedeixaranelespartículasinfinitesimaisdoseucheiro.Encontrá-lasmefaziarevertodasasmemóriasligadasacadaobjeto,eassimminhacoleçãofoificandocadavezmaior.

36.Paracultivarumapequenaesperançaquepudesseatenuaraminhador

Foiaolongodessesdiascruciais—emquereuniosprimeirosobjetosparaomeumuseu—que

Page 139: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

escrevi a carta que exponho aqui.Ela permanece em seu envelope para impedir que a história sealonguedemais,eparamepoupararevelaçãoplenadavergonhaqueaindameprovocavavinteanosmais tarde, quando fundei o Museu da Inocência. Se os leitores e os visitantes do meu museupudessemabriracarta,encontrariamnelaas súplicasmais rastejantesaFüsun.Confessei- lhecadaum dos meus erros da maneira mais abjeta; declarei-me tomado pelo remorso e mergulhado nosofrimentomais terrível; admitindoqueoamoreraumsofrimento sagrado,prometiaaelaque, sevoltasse paramim, eu deixaria Sibel.Depois de escrever as últimas palavras, senti uma contriçãoaindamaior.SabiaquedeviadizernaverdadequeromperadefinitivamentecomSibel,masminhaúnicaesperançaparasobreviveràquelanoiteerabeberatéesqueceredepoismeaninharnosbraçosde Sibel, de maneira que não consegui convencer-me a adotar essa medida extrema, emboranecessária.QuandodescobriacartadezanosmaistardenagavetadeFüsun,seuconteúdopareceu-memenosimportantequesuaprópriaexistência;efiqueisurpresoaoveraquepontoeuconseguiame iludir àquela altura.Porum lado, tentavanegar a intensidadedemeuamorporFüsunemeudesamparo, enquanto conjurava presságios ridículos para acreditar que dali a pouco estaríamosreunidos; por outro, aferrava-me aos sonhos de uma vida feliz em família com Sibel.Deveria terrompidomeunoivadoepropostocasamentoaFüsunnessacarta?AchoqueaideianemmepassoupelacabeçaantesdomeuencontrocomCeyda,aamigapróximadeFüsundoconcursodebeleza,encarregadadeentregar- lheaminhacarta.Comoosvisitantesdomeumuseudevemestaraessaalturafartosecansadosdasminhasdoresde

amor, exponho aqui um adorável recorte de jornal. Nele se vê a fotografia oficial de Ceyda noconcursodebeleza,juntamentecomumaentrevistaemqueelaafirmaquesuametanavidaéumcasamentofelizcomo“homemdosseussonhos”.Egostariadeaproveitaraoportunidadeparafazermeus agradecimentos a Ceyda Hanım, que tinha pleno conhecimento da minha triste história,respeitouoamorqueeusentiaporsuaamigaeteveagenerosidadededoarparaomuseuessalindafotografia de sua juventude. Percebendo que eu não tinha como enviarminha carta angustiada aFüsunpelocorreio,poissuamãehaveriadeinterceptá-la,decidienviá-laporintermédiodeCeyda,quelocalizeicomaajudademinhasecretária,ZeynepHanım.Füsuncontaraàsuaamigatodososdetalhesdenossa ligaçãodesdeo início,e,quandoeu lhedissequequeriaencontrar-mecomelapara falar de um assunto de grande importância, Ceyda não se fez de rogada. Quando nosencontramosemMaçka,percebideimediatoquenãosentianenhumconstrangimentoemfalardemeusofrimentocomCeyda.Talvezporque lheatribuísseumacompreensãomadurados fatos,outalvezporquetenhavistooquantoCeydaestavafeliz,muitofeliz,nodiaemquenosencontramos.Estavagrávida,eseunamoradoricoeconservador,orapazdafamíliaSedirci,decidiracasar-secomela. Não escondeu nada disso de mim, contando ainda que seu casamento iria realizar-se dali apouco tempo. Haveria a possibilidade de eu me encontrar lá com Füsun? Onde ela estava? Asrespostas de Ceyda foram evasivas. Füsun devia ter- lhe feito alguma recomendação. EnquantocaminhávamosnadireçãodoparqueTaşlık,elamedissecoisassériaseprofundassobreoquantooamorésérioeprofundo.Enquantoouvia,eumantinhaosolhosfixosnamesquitadeDolmabahçe,quecintilavaàdistânciacomoumaimagemdesonho,transportando-medevoltaàminhainfância.Nãoconseguiconvencer-meapressionarmuitoCeyda,enemmesmoaperguntar- lheondeFüsun

Page 140: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

estava.Ceyda,eusentia,esperavaqueeurompesseonoivadocomSibelemecasassecomFüsun,oquepermitiria quenossas duas famílias se encontrassem socialmente, e foi só aoouvi- la dizer issocomtodasaspalavrasquepercebiqueosonhodelaera igualaomeu.AoentrarnoparqueTaşlıknaquela tarde,eaocontemplaropanorama,abelezadaentradadoBósforo, as amoreirasànossafrente,osnamoradossentadosàsmesasdocaférústicotomandoMeltem,asmãescomseuscarrinhosdebebê, as criançasbrincandonacaixade areiamais à frente, os estudantes conversandoe rindoenquantomastigavamgrãos-de-bicoesementesdeabóbora,ospombosbicandoascascas,aoladodeduasandorinhas—tudonaquelelocalcheiodegenterecordavaoqueeuquasechegaraaesquecer:abelezadavidacomum.Eassim,quandoCeydaarregalouosolhos,dizendoqueentregariaminhacartaaFüsun,equeesperavasinceramentequeelarespondesse,sucumbiaumagrandeesperança,àqualnuncatinhasidomaissuscetível.Masnuncarecebiumaresposta.Certa manhã, no início de agosto, fui forçado a reconhecer que, apesar de todas as medidas

paliativas, minha dor, longe de diminuir, vinha aumentando a cada dia. Quando eu estavatrabalhando no escritório ou falando ao telefone nãome ocorria nenhumpensamento novo sobreFüsun,masadoremmeuestômagoassumiaaformadeumaruminaçãoobsessivaetrespassavameucérebroemsilêncio,comoumacorrenteelétrica,atémeimpedirdepensaremoutracoisa.Asváriasmanobras a que eu recorria para cultivar asmenores esperanças, capazes demitigarminha dor edistrair-meporalgunsinstantes,nuncafuncionavampormuitotempo.Comeceiameinteressarpormensagensemcódigo,sinaismisteriososehoróscoposdejornal.Os

quemeinspiravammaiorconfiançaeramacoluna“SeuSigno,SeuDia”doSonPostaeoastrólogodarevistaHayat.Osastrólogosmaisinteligentesdiziamsempreaseusleitores,emaisespecialmenteamim:“Hojevocêreceberáumsinaldapessoaamada!”.Diziammaisoumenosamesmacoisaparaosnascidossobtodosossignos,masissoerajusto,poissempresãonecessáriasduaspessoasparaqueumeventoassimocorra;eeuficavatãoconvencidoqueliaesseshoróscoposcomomaiorcuidado,mas,comonãotinhaumacrençasistemáticanasestrelas,nãopassavahorasàsvoltascomelas,comoasdonasdecasaentediadastendemafazer.Minhanecessidadeeraurgente.Crieiumsistemaprópriodesinais;eumedizia:“Seapróximapessoaquepassarporaquelaportafordosexofeminino,voumereencontrarcomFüsun;seforumhomem,tudoestáperdido”.Omundo,avida,todaarealidadefervilhavadesinaismandadosporDeusparaquepudéssemos

distinguiranossa sorte.Eu ficava juntoà janeladaSatsat,contandooscarrosquepassavam,emedizia: “Se o primeiro carro vermelho a passar pela avenida vier da esquerda, vou ter notícias deFüsun; se vier da direita, minha espera vai continuar”. Ou então arriscava: “Se eu for a primeirapessoaadescerdabalsaquandoelaencostar,vouverFüsundentrodepoucotempo”.Epulavaparaterraantesaindaquetivessemtempodejogarasamarras.Atrásdemimosresponsáveispelasamarrasgritavam:“Oprimeiroapularemterraéumasno!”.Depoiseuouviaumapitodenavio,queentendiacomoum sinal, e imaginava que tipo denavio podia ser.Emedizia: “Se o número de passos dapassareladepedestresforímpar,vouverFüsundaquiapouco”.Seonúmeroserevelassepar,minhaagoniaaumentava,masquandooauspícioerabomeuviviaummomentodealívio.Opioreraadorquemedespertavanomeiodanoiteenãomedeixavaadormecerdenovo.Nesses

Page 141: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

casos, eu bebia rakı, e então, por desespero, tomava por cima alguns copos de uísque ou vinho,tentandosilenciarminhamentecomosebaixasseovolumedeumrádioqueberrasseimplacávelenãomedeixasseempaz.Àsvezes,comovelhobaralhodeminhamãeeumcopoderakınamão,eujogavapaciência,tentandolerminhaprópriasorte.Certasnoites,pegavaosdadoscomquemeupaijogava raramente e, dizendo-me sempre que o lance seguinte era o último, jogava-os mil vezes.Quando eu ficava completamente bêbado, começava a obter uma estranha satisfação comminhaangústia,extraindoumorgulhotolodasminhasprovações,quejulgavadignasdeumromance,deumfilmeouatédeumaópera.Certanoite,emnossacasadeveraneiodeSuadiye,desperteialgumashorasantesdoamanhecer;

quandoficouclaroqueosononãovoltaria,atravesseiaescuridãonapontadospésatéavarandaquedava para o mar; estendido numa espreguiçadeira, à brisa fragrante dos pinheiros, fiqueicontemplando as luzes que tremeluziamnas ilhas dos Príncipes e tenteime acalentar e recair nosono.“Tambémnãoestáconseguindodormir?”,murmuroumeupai.Naescuridão,eunãoopercebera

instaladonaoutraespreguiçadeira.“Tenhotidocertadificuldadeultimamente”,sussurreiemtomculpado.“Nãosepreocupe,acabapassando”,disseelebaixinho.“Vocêaindaéjovem.Aindaémuitocedo

paraperderosonoporcausadessetipodedor,nãosepreocupe.Masquandochegaràminhaidade,setiverarrependimentosnavida,vaiprecisarficaraquicontandoasestrelasatéodiaraiar.Cuidadocomascoisasdequemaistardepodesearrepender.”“Está bem, papai”, murmurei. E não demorei muito a sentir que talvez conseguisse esquecer

minhador,aindaqueporpoucotempo,eadormecer.Aquiexponhoocolarinhodopijamaquemeupaiusavanaquelanoite,eumdosseuschinelos,quemebastaverparaficarmuitotriste.Talvezpornãolhesdarimportância,outalvezporquenãoqueiraqueosleitoreseosvisitantesdo

meumuseusintamumgrandedesprezopormim,escondialgunshábitosqueadquiriduranteesseperíodo,masagora,emfavordaintegridadedeminhahistória,sinto-meobrigadoaapresentarumabreveconfissãodeumdeles.Nahoradoalmoço,quandominhasecretáriaZeynepHanımsaíacomorestodosempregados,àsvezeseudiscavaonúmerodeFüsun.Nuncaeraelaqueatendia,oquemediziaquenãodeviatervoltadodolugarparaondetinhaido,eseupaitampoucoestavaemcasa.ErasempretiaNesibe,oquesignificavaqueestavacosturandoemcasa,maseupersistia,esperandoqueumdiaFüsunatendesse.OupelomenosquetiaNesibe,esperandoqueoautordaligaçãodissessealguma coisa, deixasse escapar alguma revelação sobre Füsun. Ou que, enquanto eu esperavapacientemente,semdizernada,Füsunpudessedizeralgumacoisaaofundo.DepoisquetiaNesibeatendiaaotelefone,haviaumprimeiromomentoemquemeerafácilficaremsilêncio,mas,quantomaisexasperadamenteepormaistempoelafalasse,maisdifícilerameconter,poistiaNesibelogoperdiaacalma,sucumbindoaopânicoenquantosedebatiadeummodoqueumdessespervertidosquecostumamligarparaosoutrosiriaadorar:“Alô?Alô?Quemé?Quemestáfalando?PeloamordeDeus, quer fazer o favor de dizer alguma coisa? Alô, alô, quem fala? Por que ligou para cá?”. Ecompunha arranjos variados comos elementos dessas frases, comomedo e a raiva perceptíveis acadapalavra,masnuncalheocorriadesligarimediatamente,oupelomenosantesdemim.Como

Page 142: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tempocomeceia ficarcompena,eatédesesperado,por levaraquelaparentedistanteaagircomoumcoelhoencurralado,efinalmentemelivreidohábito.NãohaviasinaldeFüsun.

37.Acasavazia

Nofinaldeagosto,enquantobandosdecegonhaspassavamvoandoporcimadoBósforo,dacasade Suadiye e das ilhas dos Príncipes, deixando a Europa a caminho da África, decidimos, porinsistênciafirmedemeusamigos,organizarafestadefimdeverãoqueeucostumavadartodoanonoapartamentovaziodaavenidaTeşvikiye,poucoantesdemeuspaisvoltaremdesuacasadeveraneio.Sibel cuidou das compras, rearrumou os móveis, liberou os tapetes das bolas de naftalina edesenrolou-osnopisodemadeira,e,emvezdeirajudá-la,fuiligarmaisumavezparaotelefonedeFüsun,emhomenagemaosvelhos tempos. Já faziaalgunsdiasqueo telefone tocavae tocavasemque ninguém atendesse, o que me deixava preocupado. Dessa vez, quando ouvi os sinaisintermitentesqueindicavamquealinhaforacortada,adornomeuestômagoespalhou-seportodasaspartesdomeucorpoetodososrecantosdaminhamente.Dozeminutosmais tarde, tendopassadopor ruas que vinhaprocurando evitar desdeque eu as

marcaraemlaranja,descobri-mecaminhandocomoumaalmapenadaemdireçãoàcasadafamíliadeFüsun,naruaKuyuluBostan.Olhandoparaasjanelasdeumadistânciasegura,viqueascortinastinham sido removidas. Toquei a campainha; ninguém atendeu. Bati de leve na porta antes deesmurrá-la, e ainda assim ninguém veio abrir; achei que fosse morrer. “Quem é?”, perguntou amulher do porteiro de seu apartamento escuro no porão. “Aaah, osmoradores do número três semudaram.Foramembora.”Disseaelaqueeuestava interessadoemalugaroapartamento.Dando-lheumagorjetadevinte

liras, usei sua chave para entrar. SantoDeus!Comoposso descrever a solidão daqueles aposentosvazios, ouo estadoprecáriodos azulejosnaquela cozinhacansadae emdesintegração, abanheiradilapidadaemquemeuamorperdidotinhatomadobanhoavidainteira,omistériodoaquecedoragás que lhe dava tantomedo, os pregos nus na parede, e as sombras nos lugares onde quadros eespelhos viverampendurados vinte anos?OcheirodeFüsunnosquartos, a sombraquecaíanumcantodeparede,aplantadaquelacasaondeFüsuntinhapassadoavida inteira,aquelesaposentosquetinhamfeitodelaapessoaqueera,asparedeseatintadescascada—graveiamorosamentenamemória cadaumdessesdetalhes.Havia estepapeldeparede,deque rasgueiumpedaçograndeparalevarcomigo.Eamaçanetadaportadoquartomenorqueimaginei tersidodela— imagineisuamãoacionandoessamaçanetapordezoitoanos,tirei-adaportaeapusnobolso.Opuxadordeporcelanadacorrentedadescarganobanheirofoiaindamaisfácildesoltar.Da pilha de lixo e papéis abandonados numdos cantos, extraí o bracinho de uma boneca que

tinhasidodeFüsun.Enfiei-onobolso,comumaboladegudegrandedemicaealgunsgramposdecabelo que sem dúvida tinham sido dela. Imaginando o conforto que poderia vir a extrair dessesobjetos,relaxei.Porque,pergunteiàmulherdoporteiro,elestinhamresolvidoirembora,depoisde

Page 143: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tantos anos?Ela respondeu que fazia anos que vinhambrigando como proprietário por causa doaluguel. “Nãoqueos aluguéis estejammaisbaratos emoutrosbairros”,disse eu.Odinheiro vinhaperdendoovalor,eospreçosestavamsubindo.“Eparaondeelessemudaram?”“Nãosabemos”,disseamulherdoporteiro.“Estavamaborrecidos

conosco quando foram embora, e com o proprietário. Imagine, depois de vinte anos, umdesentendimento.”Senti-meapontodesufocar.Foientãoquepercebicomosempretiveraaesperançadeumdiaviratéali, tocaracampainha,

pedir queme recebessem e finalmente ver Füsun. Agora que essa possibilidade comque eu nemsabiaquecontavameforaroubada,eunãotinhaideiadoquefazeremseguida.Dezoitominutosmais tarde eu estava no apartamento do edifícioMerhamet, deitado em nossa

cama,encontrandooconsolopossívelnosnovosobjetosque trouxeradoapartamentovazio.E,defato,aquelascoisasqueFüsunhaviatocado,aquelesobjetosquetinhamfeitodelaquemelaera—quandoosacariciei,contempleietoqueicomelesmeusombros,meupeitonueminhabarriga—liberaramseuanalgésicoeaplacaramminhaalma.

38.Afestadofimdoverão

Muitomais tarde,e semantespararnoescritório, fuiatéTeşvikiyeajudarnospreparativos. “Euquerialheperguntaroquefazerparaconseguirchampanhe”,disseSibel.“Ligueialgumasvezesparaoescritório,massemprediziamquevocênãoestava.”Semlhedarqualquerexplicação,fuidiretamenteparaomeuquarto.Lembroquemeestendina

cama, pensandonoquanto era infeliz, que aquela festanão iria dar certo.Sonhando comFüsun,conjurando-acomsuascoisaseencontrandoconsolonelas,eusacrificarameurespeitopróprio,aomesmo tempo em que meus devaneios abriam as portas para outro mundo que eu gostaria deexplorarmaisplenamente.AfestaqueSibelpreparavacomtantovigorprecisavadeumhomemrico,inteligente,alegreesaudávelcomoanfitrião,alguémquesoubessecuidardosseusprazeres,maseunãoestavaemcondiçõesdefazeressepapel.Enãohaviacomosairpelatangentefazendoopapeldomeninoamuadodevinteanosqueassumeumardedesprezoedesdémdiantedeumafestaemsuaprópriacasa.Sibelpodiaestarpreparadaparatolerarosefeitosdaminhadoençasemnome,maseunãopodiaesperaramesmaindulgênciadapartedosnossosconvidados,ansiosospordivertir-senaúltimafestadoverão.Às sete daquela noite, conduzi os primeiros convidados até o bar que tínhamos arrumado— e

estocadocomtodasasbebidasestrangeirasobrigatórias,compradasclandestinamentenasmerceariasfinasdacidade—e,comobomanfitrião,ofereci- lhesbebidas.Lembro-medetercuidadodamúsicaporalgum tempo,ede ter tocadoSergeantPepper— gostavadacapa— eSimonandGarfunkel.Dancei—eri—comSibeleNurcihan.Nofinal,NurcihantinhapreferidoMehmetaZaim,masZaimnãopareciaterseincomodadomuito.QuandoSibelmecontou,franzindoatesta,queachavaque Nurcihan tinha dormido com Zaim, não entendi por que aquilo deixava minha noiva tãoabalada,masnemtenteidescobrir.Haviabelezanomundo,erasóoqueinteressava:anoitedeverão

Page 144: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

estava fresca graças à brisa que soprava do Bósforo, agitando as folhas dos plátanos do pátio damesquitadeTeşvikiyeefazendo-asmurmurarosomsuaveeadorávelqueeulembravadainfância;eao cair da noite as andorinhas chiavam enquanto voavam em torno da cúpula damesquita e dosterraçosdos edifíciosdos anos 1930.Enquantoocéuescureciamais ainda, comecei a ver as luzescambiantesdosaparelhosde televisãonascasasdaspessoasquenão tinhamdeixadoacidadeparaveranear,entreelesumajovementediadanumavarandae,poucomaisadiante,noutravaranda,umpai infeliz, olhando com ar ausente para o tráfego na avenida abaixo de seu apartamento. Mas,enquantoeucontemplavatudoissocomindiferença,tinhaaimpressãodecontemplarmeusprópriossentimentos,etivemedoquandomeocorreuqueerapossíveleujamaisconseguiresquecerFüsun.Sentadoaliemnossavaranda,apreciandoofrescordanoite,ouvindoaconversaanimadadaspessoasquevinhamaomeuencontrodetemposemtempos,bebimuito.Zaim chegou com uma linda jovem que estava bastante animada porque se saíra bem no

vestibular.SeunomeeraAyşe;converseiagradavelmentecomela.BebicomumamigodeSibel—umsujeitotímidoquetrabalhavanaexportaçãodecouroseeracapazdebebergrandesquantidadesde rakı. Muito depois que o céu adquirira um negro de veludo, Sibel disse: “Você está secomportandomal.Entreumpouco”.Abraçando-nos,apoiando-nosumnooutrocomtodaaforça,executamos uma daquelas nossas danças alcoolizadas que os outros achavam tão românticas.Tínhamosapagadoalgumasluzes,demaneiraqueasaladeestarestavaquasenapenumbra,dandoaoapartamentonoqualeu tinhapassado todaaminha infância,enaverdadequase todaaminhavida,oaspectoeocoloridodeumlugarmuitodiferente;comessa imagemocorreu-mea ideiadeummundo inteiro queme fora arrancado, e abracei Sibel com desespero aindamaior enquantocontinuávamos dançando. Como uma parte grande domeu sofrimento daquele verão contagiaraminhaadorávelnoiva—alémdosmeushábitosdeconsumoalcoólico—,elaestavatãocambaleantequantoeu.Nalinguagempreferidapeloscolunistassociaisdaépoca,“àmedidaqueanoiteavançava,sobos

efeitosdoálcool”,afestaescapouaocontrole.Coposegarrafassequebraram,discosdequarentaecincoedetrintaetrêsrotaçõesforamdestruídos,algunscasaissobainfluênciaderevistaseuropeiascomeçarama sebeijar abertamenteouprocuraramoquartodomeu irmão, supostamentepara seamarem,maspossivelmenteparacaíremdesacordados,eeracomoseaquelegrupodeamigosricosejovens tivesse sido tomado por um pânico coletivo, ante o fim próximo de sua juventude e suasaspiraçõesàmodernidade.Oitooudezanosantes,asprimeirasdessasminhasfestasdefimdeverãoerameventosanárquicos,alimentadospelaraivaquesentíamosdospais;meusamigosmexiamnoscarosaparelhoselétricosdanossacozinha,quemuitasvezesestragavam;vasculhavamasprateleirasdemeuspaisetiravamantigoschapéus,frascosdeperfumecomvaporizador,escovaselétricasparaengraxar sapatos, gravatas-borboleta e vestidos, firmemente convencidos de que sua energiadestrutivaerapolítica,entregando-seassimaelacomgostoaindamaior.Nosanosqueseseguiram,sódoismembrosdessegrandegrupoentraramparaapolíticaasério.

Umdelesseriatorturadopelapolícianosdiasqueseseguiramaogolpede1971eficarianaprisãoatéa anistia de 1974. É bem provável que vissem o restante de nós como “burgueses mimados eirresponsáveis”, mas de qualquer modo afastaram-se da nossa companhia e acabaram perdendo

Page 145: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

contato.Agora,enquantooamanhecerseaproximavaeNurcihanpercorriaasgavetasdeminhamãe,não

eramovida por uma raiva anárquica,mas por uma curiosidade feminina que semanifestava comrequinteeumgrauconsiderávelderespeito.“VamosdarummergulhoemKilyos”,disse-meelaemtomsolene.“Sóestavaolhandoparaverseencontravaummaiôdasuamãe.”TomadosubitamenteporumadoreumremorsointensospornuncaterlevadoFüsunaKilyos,aondeeladesejavatantoir,tudo que consegui fazer foi desabar na cama de meus pais. De onde fiquei deitado, podia verNurcihan,bêbada,fingindoqueprocuravaummaiôenquantocorriaosdedoscobiçosospelasmeiasbordadasqueminhamãepossuíadesdeosanos1950,oselegantesespartilhosescurosfechadosporcordõestrançados,eoschapéuselençosdesedaqueelanãomandaralevarparaoapartamentodoedifícioMerhamet.PassaramtambémpelasmãosadmiradasdeNurcihanos títulosdepropriedadedetodasascasas,apartamentoseterrenosquepossuíamos,equeminhamãeguardavanumapastaemsuagavetademeias,poisnãoconfiavanocofreparticulardobanco,epilhasepilhasdechavescorrespondendoa fechadurasdesconhecidas,apartamentosque tinhamsidovendidosoualugados.Haviatambémorecortedeumacolunasocialdetrintaeseisanosantes, falandodocasamentodemeuspais,eoutrodaspáginasdesociedadedarevistaHayat,datadadedozeanosdepois,emqueminhamãeapareciamuitochiqueeatraentenumafesta.“Comosuamãeerabonita,umamulhertãointeressante”,disseNurcihan.“Elaaindaestáviva”,disseeu,sempreestendidocomoummortonacama, e imaginando como seria maravilhoso passar o resto da minha vida com Füsun naquelequarto. Nurcihan emitiu uma risada carinhosa e alegre, e foi isso, creio, que atraiu Sibel para oquarto,seguidadepertoporMehmet.SibeleNurcihanpercorreramorestodascoisasdeminhamãecomumasolenidadealcoolizada,enquantoMehmetsentou-senacama(bemnolugarondemeupaificava sentado toda manhã, olhando com ar ausente para seus pés antes de calçar os chinelos),fitandoNurcihancomamoreadmiração.Estavatãofeliz—loucamenteapaixonado,pelaprimeiravez emmuitos anos, por umamulher com quem podia se casar— que isso parecia deixá-lo emchoque, comoqueenvergonhadode tanta felicidade.Maseunãoo invejava,porquepercebia seumedoavassaladordeserenganado—apossibilidadepermanentedequeascoisasdesembocassemnumfimruimedegradante—e,aomesmotempo,seuremorso.AquiexponhováriosdosartigosqueSibeleNurcihanextraíamcomtantocuidadodasgavetasde

minhamãe.Detemposemtemposelasriam,lembrandoumaàoutraquedeviamestaràprocuraderoupasdebanho.Aprocurademaiôseasdiscussõessobreaidaàpraiaseestenderamatéoamanhecer.Naverdade,

ninguémestavasóbrioosuficienteparadirigir.EusabiaquesefosseaKilyosacabariadesabandodetanta bebida e falta de sono, além daminha angústia por causa de Füsun, e resolvi que não iria.Prometendo que Sibel e eu iríamos logo depois, deixei o tempo passar até os outros decidirem irembora.Quandoosolnasceu,fuiatéavarandaondeminhamãetomavacaféeassistiaaosfunerais,eacenei,gritando,parameusamigosque saíam.Depéna ruaestavamZaime suanovanamorada,Nurcihan eMehmet, emais alguns outros, todos brincando alcoolizados, jogando de um para ooutroumabolinhareluzentedeplásticovermelho,correndoatrásdelasemprequeescapavaàssuasmãos,fazendobarulhosuficienteparaacordartodososresidentesdeTeşvikiye.Quandoasportasdo

Page 146: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

carrodeMehmetfinalmentesefecharam,euviaspessoasidosasquecaminhavamapassoslentosnadireçãodamesquitadeTeşvikiyeparaasprecesmatinais.Entreelesestavaoporteirodoedifíciodooutroladodarua,quesevestiadePapaiNoelnavésperadoAno-Novoevendiabilhetesdeloteria.Nessemomento, o carro deMehmet partiu, cantando os pneus, antes de frear abruptamente, darmarchaaréeparardenovo;aportaseabriu,eNurcihandesceudocarro,gritandoparanósdois,nosextoandar,quetinhaesquecidoseulençodeseda.Sibelcorreuparadentroelogovoltouàvarandatrazendoo lenço,que jogoupara a rua.Nuncaheidemeesquecerdenósdois alina varandademinhamãe,acompanhandoolentovooplanadodolençoroxoatéarua,dançandocomoumapipade papel na brisa suave, abrindo-se e fechando-se, enfunando-se e retorcendo-se. É a últimalembrançaalegrequetenhodaminhanoiva.

39.Aconfissão

Agora chegamos à cena da confissão. Erameu desejo expresso que todos os umbrais, todas asparedes,tudonestapartedemeumuseufossepintadodeumamarelofrio.PoucodepoisdenossosamigossaíremparaKilyosedeeuvoltarparaacamademeuspais,umsolgigantescosurgiuportrásdascolinasdeÜsküdar,enchendooquartoespaçosodeumaintensaluzalaranjada.Oecodoapitode um navio ergueu-se do Bósforo. “Vamos também”, disse Sibel, percebendo minha falta deentusiasmo, “não vamos ficar parados aqui. Vamos tentar nos encontrar com eles.”Mas, vendo omodocomoeumeestenderanacama,percebeuqueeunãoestavaemcondiçõesde iratéapraia(emboranãolhepassassepelacabeçaqueeupudesseestarbêbadodemaisparadirigir);enãoerasóisso:pressentiaqueminhamisteriosadoençanos levaraaumpontodoqualnãohaviamais comovoltar.Davaparaverquepreferiaevitarconversasarespeito,poisfaziaopossívelparanãomeolharnosolhos.Entretanto,damaneiracomoaspessoasàsvezesacabamenfrentandoseuspioresmedossempreparação(háquemchameissodecoragem),foielaqueabordouoassunto.“Onde é que você foi de verdade ontem à tarde?”, perguntou ela. Mas na mesma hora se

arrependeu da pergunta, acrescentando em tom carinhoso: “Se você acha que isso pode lhe criarembaraçosmaisadiante,senãoquisermecontar,nãoprecisa”.Deitou-se a meu lado na cama, acariciando-me como um gatinho carinhoso, com muita

compaixão mas também com certo nervosismo; sentindo que eu estava a ponto de lhe partir ocoração, fiquei envergonhado.Maso gêniodo amordeixara a lâmpadadeAladimeme forçava aavançar,dizendoqueeunãopodiamaisguardaraquelesegredo.“Você se lembra daquela noite do começo da primavera, querida, quando fomos ao Fuaye?”,

comeceicomessaspalavrasinofensivasecautelosas.“VocêviuaquelabolsaJennyColonnavitrinedeumaloja,equandopassamosporelamedissequeachavabonita.Paramosparaolhar.”Minhaqueridanoivapercebeuimediatamentequesetratavademaisdoqueumabolsa—queeu

ialhecontaralgumacoisaverdadeiraemuitoséria;enquantoseusolhossearregalavam,contei- lheahistóriadequeosleitoreshãodeselembrarequeosvisitantesdomuseuconhecemdesdequeviramoprimeiroobjetoaquiexposto.Aindaassim,eisaquiumasériederetratosdepequenasdimensõesde

Page 147: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

objetosdegrandeimportância;esperoquesirvacomoumaide-mémoireparaosvisitantesqueestãopercorrendoaextensacoleçãodomuseu,ouparaosfrequentadoresmaisimpetuososquepreferiramnãocomeçarpeloprincípio.ConteiahistóriaaSibelemescrupulosaordemcronológica.Enquantomeentregavaàdolorosa

narrativademeuprimeiroencontrocomFüsun,edarelaçãoquesetravouentão,meuremorsoerapalpável, assim como uma aura de expiação que conferia ameu erro a gravidade de um grandepecado.Masposso teracrescentadoessascoresàminhahistóriaparaatenuaro tomafinalbastanteordinário domeucrime e sugerir que falavade algumaocorrência dopassadodistante.Omitindonaturalmentedaminhanarrativaospormenoresdoprazersexual,procureifazercomquetudosoassecomoumaindiscriçãotola,típicadoshomensturcosàvésperadocasamento.Nãoconsegui,aoveraslágrimasdeSibel,continuarnomeutomoriginal,emearrependideterabordadoaqueleassunto.“Vocêéumapessoaasquerosa,esóagoraestouvendo”,disseSibel.Elapegouumaantigabolsade

minhamãe—comumpadrãoestampadoderosas,contendoalgumasmoedas—ejogou-aemmim.Emseguidaveioumdossapatosdeduascoresdemeupai.Nenhumdosprojéteisacertouoalvo.Asmoedasseespalharampelopisocomocacosdevidro.LágrimasjorravamdosolhosdeSibel.“Acabeicomessahistóriamuitotempoatrás”,disseeu.“Masfiqueiarrasadocomoquefiz…Um

sentimentoquenãotemnadaavercomessamoçanemcommaisninguém.”“É aquelamoça com quem nos sentamos na festa de noivado, não é?”, perguntou Sibel, com

medodepronunciarseunome.“É.”“Maselaéumavendedoradeloja!Quecoisanojenta.Evocêaindaseencontracomela?”“Claroquenão…Depoisqueficamosnoivostermineicomela,quedesapareceu.Ouvidizerque

secasoucomoutrohomem.”(Atéhojeaindaficopasmodetersidocapazdeinventaressamentira.)“Foiporissoquefiqueitãodistantedepoisdonoivado,masagoraestátudoacabado.”Sibelchoroumaisumpouco,depoislavouorostoemefezmaisperguntas.“E você não consegue esquecê-la, é isso?” Era assim que minha perceptiva noiva resumia a

verdadeemsuaspalavras.Qualhomemdotadodeumcoraçãopoderiaresponderafirmativamenteaessapergunta?“Não”,

respondi relutante. “Vocênãoentendeu.Mas ter tratadouma jovem tãomal, ter enganadovocêetraídoa suaconfiança, carregar isso tudonaminhaconsciênciadeixou-meesgotado.Tirou todaaalegriadaminhavida.”Nenhumdenósdoisacreditounasminhaspalavras.“Eondevocêfoidepoisdoalmoço,ontemàtarde?”Comoeudesejavacontaraalguém—alguémquepudesseentender,alguémquenãofosseSibel

—queeu recolhiaobjetosqueme lembravamdeFüsuneospunhanaboca,queosesfregavanapele, e que, dessemodo, conjurava imagens dela e deixava correrminhas lágrimas. Ainda assim,tinhacertezadequeacabarialoucoseSibelmedeixasse.Oqueeudeviadizerera“Vamosnoscasarlogo”.Haviamuitoscasamentossólidos—casamentosqueeramafundaçãodenossasociedade—travadosnumesforçoparasuperarcasosamorososatormentadoseinfelizes.“Quisreveralgunsdosbrinquedosdaminhainfânciaantesdenoscasarmos.Eutinhaumapistola

Page 148: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

espacial,porexemplo…Eaindafunciona.Admitoquefoiumtipoestranhodesaudade.Foiissoqueeufuifazerlá.”“Vocênuncamaisvaivoltaraesseapartamento!”,disseSibel.“Vocêseencontroucomelamuitas

vezes?”Antes que eu pudesse responder ela se pôs a soluçar de novo.Quando a tomei nos braços e a

acariciei,elacomeçouachorarcommaisforça.Enquantoabraçavaminhanoiva,sentiumagratidãoprofundaeumaamizadeporelaqueeramaisintensaqueoamor;eudavaumvalorsupremoànossaintimidade.Depois de Sibel chorar pormuito tempo e acabar adormecendo emmeus braços, eutambémdormi.Eraquasemeio-diaquandoacordei;Sibeljáselevantarahaviamuito,tomaraumbanho,maquiara

orostoeatéprepararameucafédamanhãnacozinha.“Sevocêquiser,podeircomprarpãodooutroladodarua”,disseelanumtommuitofrio.“Mas,se

nãotiverenergia,possocortaropãodeontemetorrar.”“Não,euvou”,disseeu.Tomamoscafénasaladeestar,quedepoisdafestapareciaumcampodebatalha,àmesaonde

meus pais se sentavam um diante do outro haviamais de trinta anos. Aqui exponho uma réplicaperfeita do pão que comprei namercearia do outro lado da rua. Sua função é sentimental, mastambémservecomoregistrodequefoioúnicotipodepãoquemilhõesdehabitantesdeIstambulconsumirampormeio século (embora seupesovariassebastante),e tambémdequeavidaéumasériedeocasiõesrepetidasque—semdónempiedade—depoisrelegamosaoesquecimento.Naquelamanhã,Sibelsemostravaforteedecidida,oqueatéhojemesurpreende.“Essacoisaque

vocêachouquefosseamorerasóumaobsessãopassageira”,disseela.“Voucuidardevocê.Voutirarvocêdessaloucuraemquesemeteu.”Ela tinhacobertoaspálpebras inchadascommuitopódearroz.Vê-laescolheraspalavrascom

tantocuidadoparanãomemagoar,muitoemboraelaprópriaestivessesofrendomuito—sentirsuacompaixão—, fez-meconfiar aindamaisnela, e tão convencido estavadeque sóSibel podiamelibertardaminhaagoniaquedecidialimesmoconcordarcomtudoqueeladissesse.Efoiassimque,enquanto tomávamos o café da manhã com pão fresco, queijo branco, azeitonas e geleia demorango,decidimosdeixaraquelacasaepassarumbomtempolongedeNişantaşı,daquelasruaseredondezas.Asproibiçõesdazonalaranjaedazonavermelhaentraramemplenovigor.Aessaaltura,ospaisdeSibeljátinhamretornadoàsuacasaemAnkaraparaoinverno,demaneira

que a yalı deAnadoluhisarı estava vazia.E ela tinha certezadequenãohaviamde se importar sepassássemosalgumtempolájuntos,agoraqueestávamosnoivos.Eudeviamemudarparalácomelaimediatamente,abandonandotodososhábitosqueaindameprendiamàminhaobsessão.Enquantoarrumava minhas malas, sentia-me triste mas também esperançoso de me recuperar, como umagarotadesiludidacomoamorqueospaisdespachamparaaEuropa.LembroquequandoSibelmedisse “Leve estas também”, jogando um par demeias de inverno emminhamala, ocorreu-me opensamentodolorosodequeminhacuraaindapodiademorarbastante.

Page 149: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

40.Ascompensaçõesdavidanumayalı

Sentia-me muito animado com a ideia de começar de novo, e bastante reconfortado pelascompensações da vida numa yalı, a tal ponto que, durante os primeiros dias, julguei queminharecuperaçãonaverdadeseriarápida.Qualquerquetivessesidoadiversãodavéspera,pormaistardequetivéssemoschegadoepormaisqueeutivessebebido,demanhã,assimquealuzcomeçavaaseinfiltrarpelosespaçosentreastirasdaspersianas,projetandonotetoseusestranhosreflexosdasondasdoBósforo,eumelevantavaeabriaas janelasdemadeira,deslumbrando-meacadavezdiantedabeleza que invadia o quarto pelas janelas, quase numa explosão. Havia, emminha admiração, oânimoqueacompanhaumnovodespertar,adescobertadasbelezasesquecidasdavida—oupelomenos era nisso que eu preferia acreditar. Sibel, sempre perspicaz, percebendo essa minhadisposição,aproximava-sedemimcomsuacamisoladeseda,fazendorangerbaixinhoastábuasdopisosobospésdescalços,ejuntosadmirávamosabelezadoBósforo,obarcodepescavermelhoqueoscilavanasondas,onevoeiroquesedissipavaemmeioàsárvoresnasmontanhasescurasdamargemopostaeamaneiracomoaprimeirabarcadamanhãdeslizavapelaságuasenquantoenfrentavaascorrentezas,assobiandocomoumfantasma.Sibeladeriutambémàconvicçãodequeosprazeresdavidanayalıpodiamterumpodercurativo.

Sentados à varandinha envidraçada que dava para o mar, jantando como um casal que pudessealimentar-seapenasdeamor,víamosabalsadaLinhadaCidadechamadaKalenderdeixaraestaçãodeAnadoluhisarıe,aotimão,ocapitãodebigodescomseuquepe;eleficavatãopertoquepodiaveracavalinhacrocanteemnossamesa,apastadeberingelacomtorradas,oqueijobranco,omelãoeorakı.Egritava“Bomapetite”,oqueSibelviacomomaisumritualmágicocapazdeacelerarminhacura e sempre nos deixava felizes. De manhã, assim que acordávamos, minha noiva e eumergulhávamosnaságuasfrescasdoBósforo;íamosatéoCafédaEstaçãotomarchácomsimits—roscascobertasdegergelim—e lerojornal;cuidávamosdospimentões,dostomatesdahorta;emtornodomeio-diacorríamosatéosbarcosdepescaqueacabavamdechegarcompeixefrescoparacomprar um salmonete ouumabrema-do-mar, e, nas noitesmuito quentes de setembro, quandofolha nenhuma se mexia e quando, uma a uma, as mariposas se aproximavam muito das luzes,mergulhávamos de novo no mar agora fosforescente. A convicção de Sibel de que esses rituaishaveriamdemecurar ficava claraquando, ànoitena cama, ela encostava gentilmente seu corpofragrantenomeucomose trocasseocurativodeumaferida.Quandominhasdores lancinantesdeestômagoimpossibilitavamoamorcomela,euriadesajeitado,dizendo“Aindanãoestamoscasados”,eminhaqueridanoivariacomigo,paraaliviarmeuacabrunhamento.Àsvezes,depoisdepassaranoitesozinhonumaespreguiçadeiradavaranda,oudedevoraruma

espigademilhocompradadeumvendedornumbarquinhoaremo,oudepoisdeplantardoisbeijosnas facesdeSibel comoqualquer jovemmaridoque entrasseno carropelamanhã a caminhodotrabalho,eupercebianosolhosdelacertodesprezo,umódioembotão.Umadascausassópodiaserminhaincapacidadeparaoamorfísicocomela,mashaviamotivosmaispreocupantes:estariaSibelachandoqueaquelasuaextraordináriademonstraçãodeamorecomedimento,naesperançademefazer “melhorar”, tinha dado errado— ou, pior ainda, que uma vez curado eu voltasse a me

Page 150: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

encontrarcomFüsundepoisdocasamento?Nosmeuspioresmomentos,tambémeuquisacreditarnessapossibilidade,sonhandoqueumdiamechegariamnotíciasdeFüsunepoderíamosretomaremseguida nossa feliz rotina. Os encontros diários no edifícioMerhamet, ao mesmo tempo em querepresentariamoremédiosupremoparaomeumaldeamor,iriam,éclaro,permitirtambémqueeuvoltasseaamarSibelcomoantes,condiçãodequepoderíamosaproveitarparanoscasareterfilhos,usufruindotodasasbênçãosdeumavidanormalemfamília.Maserasóquandoeualteravameuhumorparamelhor,bebendomuito,ouquandoamanhãera

especialmente linda e me inspirava esperança, que eu conseguia cultivar esses sonhos, e mesmoassimeramuitoraro.AlembrançadeFüsunexpulsavatodososoutrospensamentosdeminhamente,eaessaalturaadordoamoreracausadanãotantoporsuaausênciaquantopelaperspectivamaisabstratadeumadorsemfim.

41.Nadandodecostas

Semdúvida,essesdiasdolorososdesetembrotiveramsuabelezasombria,eàmedidaqueomêsavançavadescobriumnovomodode torná-losmais fáceisde suportar: todavezqueeunadavadecostasminhadordiminuía.Paratanto,euprecisavadobrarmeupescoçomuitoparatrás,apontodepoderavistaratéofundodoBósforo,masdecabeçaparabaixo,eficarnadandonessaposiçãoporalgumtempo,semtiraracabeçadaáguapararespirar.Enquantoeunadavadecostasatravessandoacorrentezaeasondas,abriameusolhoseviaoBósforoinvertidomudandodetom,perdendoascoresatéassumirumnegrorquemedespertavaparaumavastidãototalmentediversadailimitadadordoamor—permitindo-mevislumbrarummundosemfim.ComooBósforochegaagrandesprofundidadesjápertodasmargens,haviamomentosemqueeu

conseguiaavistarofundoeoutrosemquenão,masvislumbraraquelemundodecoresbrilhantes,emboradecabeçaparabaixo,eraenxergarumtodoimensoemisteriosoantecujavisãoapessoasópodia agradecer por estar viva, reduzida à humildade pela ideia de fazer parte de algo maior.Olhando para as latas enferrujadas, as tampas de garrafa, os mexilhões entreabertos e mesmo osfantasmasdeantigosnavios,eucontemplavaaimensidãodahistóriaedotempo,eaminhaprópriainsignificância.Emmomentosassimeupercebiaquepodiagostardemeconcentraremmeuamoreestartotalmenteabsortonele.Exposto,esofrendoaindamaisprofundamente,eupodiapurgarminhaalma.Oqueimportavanãoeraaminhador,masminhaconexãocomaquelamisteriosainfinitudeque

cintilavaabaixodemim.ÀmedidaqueaságuasdoBósforoinvadiamminhaboca,minhagarganta,meusouvidos,minhasnarinas,eupercebiaqueosdjinnsqueeutinhadentrodemim,regendomeuequilíbrioeminhafelicidade,ficavamsatisfeitos.Umaespéciedeembriaguezmarinhatomavacontademimenquantoeuavançavadecostas,braçadaabraçada,aténãorestarmaisdoralgumaemmeuestômago.EaomesmotemposentiaumaprofundacompaixãoporFüsunbrotardentrodemim,oquemelembravadequantaraivatambémsentia.Vendo-menadar de costas na direção deumpetroleiro soviético ou deumabalsa daLinha da

Page 151: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Cidadequetocavaansiosaseuapito,Sibelcomeçavaapularnamargem,chamandofreneticamentemeunome,maseuquasenuncaouviaseusgritos.Nessehábitodenadartãoperigosamentepertododesfile constante de balsas da Linha da Cidade, petroleiros internacionais, cargueiros repletos decarvão,barcosdepassageirosebarcaçasencarregadasdadistribuiçãodecervejaeMeltemparaosrestaurantes do Bósforo, quase um desafio a essas embarcaçõesmaiores emenores, Sibel via umimpulsomalsãoe,emseupeito,queriafazer-meparardenadardecostaspeloBósforoemfrentedasuacasa.Mas,sabendocomoaquilomefaziabemeexpulsavaador,nãoinsistia.Emvezdisso,àsvezes sugeria que eu fosse a algumapraia protegida, ounos dias sem vento, quandoomar estavacalmo,atéapraiadeşilenomarNegro,ouainda,comela,atéumadasenseadasdesertasalémdeBeykoz, em que, sem tirar a cabeça da água, eu podia nadar até onde me levassem meuspensamentos, semumfimàvista.Mais tarde,depoisqueeunadavadevoltaparaamargememeestendiaexaustoaosolcomosolhosfechados,pensavacomesperançaquetodososhomenssériosehonradosqueporventura se apaixonassem loucamentedeviamexperimentar asmesmas coisasqueeu.Aindaassim,haviaumadiferençadesconcertante.Amerapassagemdotemponãometraziaacura

quepareciaproporcionaratodososoutros.ApesardoestímuloincansáveldeSibelduranteasnoitessilenciosas que passávamos juntos (quando tudo que se ouvia era a tosse distante de umabarcaçapassando ao longe), fomos sendo ambos tomados pela certeza de que minha dor não iriasimplesmenteceder.Àsvezeseuprocuravasairpelatangentetentandoconvencer-medequeaquelaagoniaeraumprodutodaminhaimaginaçãoouumasimplesprovadefraquezaespiritual,masver-meaessa luz,comoumapessoa irremediavelmentedependentedamisericórdiaredentoradeumamãe-anjo-amante, era por sua vez insuportável, e assim, namaior parte do tempo, não conseguiafazernadaalémdecontrolarminhadordaúnicamaneiraqueconseguia,nadandodecostas,emborasoubesseperfeitamentequeestavaapenasmeiludindo.Aolongodomêsdesetembro,estivetrêsvezesnoedifícioMerhamet,escondendoessasvisitasde

Sibele,decertomodo,demimmesmo.Estendia-menacamaemanuseavaosobjetosqueFüsuntinha tocado, cumprindo os rituais consolatórios que meus leitores já conhecem. Não conseguiaesquecê-la.

42.Amelancoliadooutono

Nos primeiros dias do outono, depois de uma tempestade vinda do norte, as águas rápidas doBósforo ficaram friasdemaisparaosmergulhos, eempouco tempominhamelancolia adensou-sealém do ponto em que ainda conseguia disfarçá-la. A noite caía mais cedo a cada dia, eimediatamenteamargemeojardimatrásdacasaficaramcobertosdefolhascaídas;asyalıscoletivasqueserviamcomocasasdeveraneiopareciamvazias;osbarcosaremoforamrecolhidosdomare,em seguida aos primeiros dias de chuva, bicicletas postas de rodas para o ar enchiam as ruassubitamente vazias; paranós instalou-seumaprofunda tristeza outonal.Comumpânico cada vezmaior, eu sentia que Sibel dali a pouco não seria mais capaz de suportar minha apatia ou o

Page 152: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

sofrimentoquenãohaviamaiscomoesconderouconsolar,ouaconsequênciadisso:ultimamente,eubebiaotempotodo.No final de outubro, Sibel fartou-se da água ferruginosa que jorrava das velhas torneiras, da

umidadeda cozinhaprecária, das goteiras e frestas da yalı por onde entravamcorrentes de ar e ovento gelado do norte. Não havia mais os amigos que vinham nos visitar nas noites quentes desetembro,bebendoatémergulharoscilantesnomardocaisescuro,agoraquehaviamaisdiversãonacidadeduranteooutono.Eaqui exponhoaspedrasúmidas equebradasdo jardimdos fundos, ascascasdecaramujosquesearrastavamporelas juntamentecomnossoamigo,o lagartoapavorado(hojepetrificado)quedesapareceuduranteaschuvas—todosrepresentamoabandonodavidanasyalıspelosnovos-ricoscomaaproximaçãodoinverno,eamelancoliaqueassinalavaessaépocadoano.FicouclaroaessaalturaquequalquerdecisãodepermanecernayalıcomSibelduranteoinverno

dependiadeeu lheprovar sexualmentequemeesqueceradeFüsun,mas, àmedidaqueo tempoficavamaisfrioenosesforçávamosparamanteraquecidooquartodetetoalto,cadaumseretraíaedesanimava mais, e nas poucas noites em que nos abraçávamos era só por camaradagem ecompaixão.Apesardenossodesprezomanifestopelaspessoasqueusavamaquecedoreselétricosnasyalısdemadeira—osfilisteusirresponsáveisquepunhamemriscoedificaçõeshistóricasaltamentecombustíveis—, todanoite,quandocomeçávamosa ficarcomfrio,plugávamosesseaparelhodosinfernosnatomadafatal.Nocomeçodenovembro,quandolembramosqueoaquecimentojá foraligadoemnossasresidênciasdeinverno,ficamoscuriososcomasfestasdeoutonoquepodíamosestarperdendonacidadeeainauguraçãodenovosclubesnoturnoseareaberturadosantigosreformados,alémdasmultidões que se acotovelavamà porta dos cinemas, e começamos a inventar desculpasparavoltaraBeyoğlueatéaNişantaşı,àsruasquemetinhamsidointerditadas.Certanoite,quandonosencontrávamosemNişantaşısemqualquermotivoespecial,decidimosir

aoFuaye.Pedimosrakıcomgelo,quetomamosdeestômagovazio,etrocamoscumprimentoscomos garçons que conhecíamos, conversandomais longamente comHaydar e o chefe dos garçons,Sadi,ecomotodomundonosqueixamosdosbandosultranacionalistasedosmilitantesesquerdistasquepromoviamatentadosabombacontraadireita,aesquerdaeocentro,levandoopaísàbeiradacalamidade.Comosempre,osgarçonsmaisvelhoserammuitomaisreservadosdoquenósquantoàsquestõespolíticas.Aovermosalgunsconhecidosentraremnorestaurante,lançamosolharesdeboas-vindasparaeles,masninguémveio falarconosco.Em tomdezombaria,Sibelperguntouporquemeu estado de espírito tornara a ficar sombrio. Sem precisar exagerar muito, expliquei quemeuirmão tinha consertado a situação com Turgay Bey, e que tinham decidido começar um novoempreendimento,comumlugarparaKenan—comoeumearrependiaagoradenãoterencontradoummeio de demiti- lo—, e aquele novo e lucrativo negócio, somado àmaneira como eu trataraTurgayBey,podiaservirdepretextoparameexcluírem.“Kenan…éomesmoKenanquedançou tantoe tãobemnanossa festadenoivado?”Sibel, eu

sabia,usavaaexpressão“tantoe tãobem”comoumaalusãooblíquaaFüsun, semmencionar seunome.Nós dois recordávamos a festa denoivado comalgumador e, incapazes de encontrarumadesculpaparamudarmosde assunto, ficamos em silêncio.Eraumanovidade.Nosprimeiros dias,

Page 153: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

logodepoisque reveleiomotivodaminha“doença”,Sibel,mesmonospioresmomentos, sempredemonstravaumtalentoenérgicoerobustoparamudardeassunto.“EesseKenanagoravaiserdiretordanovaempresa?”,perguntouSibelcomotomsarcásticoque

começava a cultivar. Enquanto olhei tristemente para suasmãos, que tremiam, e seu rostomuitomaquiado,ocorreu-mequeSibel se transformaradeuma saudávelmoça turca comumvernizdeformaçãofrancesanumacínicamulherturcaqueagorasedavaàbebidadepoisdeficarnoivadeumhomemcomplicado.EstariamealfinetandoporquesabiaqueeuaindasentiaciúmesdeKenan?Ummêsantes,umasuspeitacomoaquelajamaispassariaporminhamente.“Vãosóusarmaisunstruquesparaganharumdinheirinhofácil”,disseeu.“Nemvaleapenafalar

disso.”“Hádeserbemmaisqueumdinheirinho…Deveserbemlucrativo,ouseuirmãonemsedariaao

trabalho. Você não devia deixar que eles o excluíssem ou lhe negassem uma parte. Você precisaenfrentá-los,desafiá- los.”“Tantofazoqueelesfizerem.”“Nãogostodessaatitude”,disseSibel.“Vocêestálargado,estádesistindodavida;pareceatéque

gostadeserprejudicado.Precisasermaisforte.”“Vamospedirmaisdois?”,disseeu,levantandomeucopocomumsorriso.Enquantoesperávamosasbebidas,ficamosemsilêncio.EntreassobrancelhasdeSibelapareceu

umarugaquesempremelembravaumpontodeinterrogação,revelandoqueestavaaborrecidaoufuriosa.“Por que você não liga para Nurcihan e os outros?”, perguntei. “Talvez eles venham nos

encontrar.”“Acabeideolhar,eotelefonepúblicodaquiestáquebrado”,disseSibelemtomirritado.“Eentão,oquevocêfezhoje?Deixe-meveroquecomprou”,eudisse.“Abraseuspacotes.Vamos

nosdivertirumpouco.”MasSibelnãoestavacomvontadedeabrirembrulhos.“Tenhocertezadequevocênãodevecontinuartãoapaixonadoassimporela”,disseSibel,com

uma ligeireza assustadora. “Seuproblemanão é estar apaixonadopor outramulher— é não estarmaisapaixonadopormim.”“Sefosseassim,porqueestousempredoseulado?”,perguntei,pegandoamãodela.“Porquenão

queropassarnemumdialongedevocê?Porqueestousempreaqui,pegandonasuamão?”Nãoeraaprimeiravezquetínhamosessaconversa.Masdessavezpercebiumbrilhoestranhonos

olhosdeSibele temiqueela fossedizer: “Porquevocê sabeque sozinhonão iaaguentaradordeperderFüsun,etemmedodemorrer!”.MasporsorteSibelaindanãosabiaqueasituaçãochegaraaesseponto.“Nãoéoamorquemantémvocêpertodemim;vocêsóficacomigoparacontinuaracreditando

quesobreviveuaumdesastre.”“Eporqueeuprecisariadisso?”“Vocêacabougostandodeserotipodehomemquevivesofrendoetorcendoonarizparatudo.

Maschegouahoradetomarjeito,querido.”

Page 154: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Fiz-lheminhas promessas solenes de sempre: que aqueles dias difíceis iampassar, que alémdedois filhos também queria ter três filhas iguaizinhas a ela. Íamos criar uma família grande,maravilhosaefeliz;teríamosmuitosanosderisos,semperdernenhumdosprazeresdavida.Verseurostoradioso,seralvodesuaspalavrastãosensatas,ouvi- latrabalhandonacozinha—essascoisasmetraziamumaalegriasemfimemedeixavamgratoporestarvivo.“Porfavor,nãochore”,pedi.“A essa altura, estou achando que nenhuma dessas coisas nunca vai acontecer”, disse Sibel

enquanto suas lágrimas começavam a corrermais depressa. Largouminhamão, pegou o lenço eenxugouosolhoseonariz;depoispegouoestojodepócompactoepassoumuitopódebaixodosolhos.“Porquevocêperdeuaféemmim?”,perguntei.“Talvezporquetenhaperdidoaféemmimmesma”,disseela.“Perdiatéminhabeleza—é isso

queàsvezespensoagora.”Eu apertava sua mão, repetindo que ela estava linda, quando uma voz disse: “Olá, jovens

namorados!”.EraTayfun. “Todomundo só falade vocês, sabiamdisso?Oh,meuDeus,qual éoproblema?”“Oqueaspessoasandamdizendodenós?”Tayfun vieranos visitarna yalı várias vezes em setembro.Quando viuqueSibel tinha chorado,

toda a alegria deixou seu rosto.Quis levantar-se damesa,mas, vendo a expressão de Sibel, ficouparalisado.“Afilhadeumamigopróximomorreunumacidentedetrânsito”,disseSibel.“Eentão,oqueandamdizendodenósdois?”,pergunteiemtomirônico.“Meus pêsames”, disse Tayfun, olhando para os dois lados à procura de uma saída, e depois

gritando alto demais para cumprimentar alguém que acabara de entrar. Antes de ir embora, elerespondeu:“Aspessoasandamdizendoquevocêsdoisestãotãoapaixonadosqueficaramcommedodequeocasamentopossaacabarcomessapaixão,comoacontececomtantoseuropeus,eque,porcausadisso,estãopensandoemnuncamaissecasar.E,sequeremsaberoqueeuacho,deviamsecasarlogo.Todomundoestásócominvejadevocês.Háatéquemdigaqueessayalıdevocêstrazmásorte”.Assim que ele se levantou, pedimos mais rakı. Durante todo o verão, Sibel tinha conseguido

esconderminha “doença” dos outros comdesculpas inventadas,mas aquilo não tinhamais comocontinuar.Nossa decisão demorar juntos antes do casamento tinha se transformado emmuniçãoparaosmexericos.TambémtinhamcomeçadoarepararqueSibelagoramealfinetavaefaziapiadasàminhacusta,equeeucomeçaraanadardecostasporlongasdistânciase,claro,algunsaindasedeleitavamcomoridículodaminhatristezapermanente.“VamosligarparaNurcihaneosoutrosparaviremseencontrarconosco,ouvamospedirlogoa

comida?”Sibel parecia ansiosa. “Vá encontrar um telefone em algum lugar e ligue para eles. Tem uma

ficha?”Entreosquepodemse interessarporestahistóriadaquiacinquentaoucemanos,podehavera

tentaçãodetorceronarizparaaIstambuldosidosde1975,quandoaindahaviaumaescassezdeágua

Page 155: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

encanada (obrigandomesmo osmoradores dos bairrosmais ricos a comprar água de caminhões-tanqueparticulares)eondeos telefonesraramentefuncionavam.Numesforçoparadespertarantesumreflexodeempatiaqueumareflexãodesdenhosa,exponhoaquiuma fichade telefonecomasbordasserrilhadas,quenaqueletempopodiasercompradaemqualquertabacaria.Nosanosemqueminha história começa, havia poucas cabines telefônicas nas ruas de Istambul, emesmo quandoerampoupadaspelosvândalosraramentefuncionavam.Nãomelembrodeterconseguidonemumavez fazer uma ligação de uma cabine da PTT durante todo esse período. (Façanha que sóconseguiamrealizar,aoqueparece,nos filmes turcos,cujosastros semprecopiavamoquevíamosnosfilmesocidentais.)Aindaassim,umempresáriosagaztinhaconseguidovendertelefonespagosamercearias, cafés e outros estabelecimentos; era recorrendo a esses aparelhos que conseguíamosatender a nossas necessidades. Apresento esses detalhes como explicação domotivo pelo qual fuiobrigadoa sairandandode lojaemlojapelas ruasdeNişantaşı.E finalmente,numacasa lotérica,encontrei um telefone disponível.Mas o número deNurcihan estava ocupado; o homemnãomedeixoufazerumasegundatentativadeligar,ealgumtemposepassouantesqueeuconseguisseligarparaMehmetdotelefonedeumalojadeflores.Encontrei-oemcasacomNurcihan,eeledissequeviriamnosencontrarnoFuayedaliameiahora.Andandodelojaemloja,chegueiaocoraçãodeNişantaşı.Emeocorreuque,estandotãopertodo

edifícioMerhamet,eupodiaverificarsepassarporlápoderiamefazeralgumbem.Traziaachavecomigo.Assimqueentreinoapartamento, laveiasmãoseo rostoe tireicuidadosamenteopaletó,como

um médico que se prepara para uma cirurgia. Sentado sem camisa à beira da cama onde meentregara quarenta e quatro vezes ao amor com Füsun, e cercado por todos aqueles objetos tãoimpregnadosdememórias(trêsdosquaisexponhoemseguida),passeiumahorafelizmanuseandocadaumdeles.QuandochegueidevoltaaoFuaye,Zaimestavalá,alémdeNurcihaneMehmet.Quandodeparei

comaconversaanimadasobreasociedadedeIstambul,emaistodasasgarrafas,cinzeiros,pratosecoposdistribuídospelamesa,penseiqueeramuitofelizequeamavaprofundamenteaminhavida.“Amigos,porfavor,desculpemmeuatraso.Vocêsnuncavãoadivinharoquemeaconteceu”,disse

eu,enquantotentavaimaginaralgumaboamentira.“Nãoháproblema”,disseZaimemtomcarinhoso.“Sente-se.Esqueça todaessahistória.Venha

serfelizconosco.”“Naverdadejáestoufeliz.”Quandomeusolhosencontraramosdanoivaqueeuestavaàbeiradeperder,percebideimediato

que,emboraembriagada,elasabiaexatamenteondeeutinhaandadoefinalmenteresolveraquenãohavia recuperação possível para mim. Embora furiosa, Sibel não estava em condições de tomarnenhumaprovidênciaarespeito.E,mesmoquandoficouumpoucomaissóbria,nãofezumacena—porqueaindameamava,eporqueaperspectivademeperderaindaadeixavaaterrorizada,semfalarnasdesastrosasconsequênciassociaisdorompimentodenossonoivado.Eissopodeexplicarporquemesmonessemomentoeusentiaumaligaçãotãofortecomela,emboratalvezhouvesseoutrosmotivosqueeuaindanãocompreendia.Talvez,raciocinei,apersistênciadaquelaligaçãorestaurasse

Page 156: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

suaféemmimeelavoltasseaacreditarnaminharecuperaçãofutura.Poraquelanoite,entretanto,eusentiaqueseuotimismoseesgotara.DanceialgumtempocomNurcihan.“Você partiu o coração de Sibel. Ela está furiosa com você”, disse ela enquanto dançávamos.

“Você não devia deixá-la sentada sozinha num restaurante. Ela é muito apaixonada por você. Etambémémuitosensível.”“Semespinhos,arosadoamornãotemperfume.Quandovocêsdoisvãosecasar?”“Mehmet queria casar-se logo”, respondeu Nurcihan. “Mas eu prefiro ficar noiva antes, como

vocêsdois,eteraoportunidadedeaproveitarumpoucooamorantesdecomeçaravidadecasada.”“Nãodeviaseguironossoexemplo;nãoaesseponto,pelomenos…”“Por quê? Tem alguma coisa que eu não sei?”, perguntou Nurcihan, tentando esconder sua

curiosidadeportrásdeumsorrisoforçado.Masnãorespondi.Orakıaliviavaminhaobsessão,quedeumadorforteeconstanteseconvertia

numespectro intermitente.LembroqueacertaalturadanoiteSibeleeuestávamosdançando,e,como um adolescente apaixonado, fiz com que me prometesse que nunca me deixaria, e ela,impressionadacomoardordasminhas súplicas, tentousinceramenteaplacarmeusmedos.Muitosamigoseconhecidospassarampelanossamesa,convidando-nosairencontrá-losemoutroslugaresquandonoscansássemosdoFuaye.AlgunsqueriamfazeromaisóbvioeirdecarroatéoBósforoparatomar chá; outros diziam que devíamos ir ao restaurante que servia tripas emKasımpaşa, e haviaainda os que propuseramque fôssemos todos a um clubenoturno ouvirmúsica tradicional turca.Houve ummomento em queNurcihan eMehmet se abraçaram com um abandono exagerado efizeramtodosrircomumaimitaçãoinstantaneamentereconhecíveldadançaromânticaqueSibeleeuéramosdadosapraticar.Aoromperdodia,eadespeitodainsistênciadeumamigoquesaíadoFuayeaomesmotempoquenós,fizquestãodetomarovolante.Vendooquantoeuziguezagueavapelocaminho,Sibelcomeçouagritar,eembarcamosnumabalsadecarrosparaatravessaroBósforo.Aoamanhecer,quandoabalsachegouaÜsküdar, ambosadormecemosnocarro.Ummarinheironos acordou batendo com força na janela, pois estávamos bloqueando a saída de vários ônibus ecaminhões de entrega. Saímos pela rua que acompanhava a costa, à sombra de plátanosfantasmagóricos que deixavam cair suas folhas vermelhas, chegando à yalı semmais incidentes e,como sempre fazíamos depois de nossas aventuras noturnas, abraçamo-nos com força e nosentregamosaosono.

43.Osdiasfriosesolitáriosdenovembro

Nosdiasqueseseguiram,SibelnemperguntouemquelugardeNişantaşıeutinhapassadoahoraemeiaqueestiveradesaparecido,masnãopodiahavermuitamargemparadúvida.Depoisdaquelanoite, ambos nos conformamos como fato de que eu jamais conseguiria superarminha obsessão.Ficouclaroqueregimesrigorososeinterdiçõesnãoadiantavam,emboraaindagostássemosdeviverjuntosnaquelayalıantesgrandiosaeagoraemtãomauestado.Pormaisirremediávelquefossenossa

Page 157: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

situação, contudo, havia alguma coisa naquela casa decrépita que nosmantinha juntos e tornavanossa dor mais tolerável ao conferir- lhe uma estranha beleza. A yalı adicionava seriedade eprofundidade histórica àquele nosso amor sem saída; nosso sofrimento e nossa derrota eram tãograndes que a presença residual de uma cultura otomana desaparecida nos compensava o quetínhamosperdidocomoantigosamantesecasaldenoivosrecente.Omundoevocadonosprotegiadealgummododadortrazidapornossaincapacidadeparaoamorfísico.Se, em alguma noite, púnhamos amesa perto domar e, apoiando os braços e os cotovelos na

balaustradadeferro,bebíamosjuntosYeniRakıeaindaexperimentávamoscertaanimação,eusentia,pelamaneiracomoSibelolhavaparamim,quenafaltadosexoaúnicacoisaquepoderianosmanterunidosseriaocasamento.Enãohaviatantoscasaisfelizes—nãosónageraçãodosnossospaiscomotambémnanossa— que levavamuma vidade castidade conjuntadepois do casamento, como senadahouvesseforadonormal?Depoisdenossoterceiroouquartocopo,começávamosabrincardeadivinharcomoseriaavidaemcomumdoscasais jovensevelhosqueconhecíamos—àsvezesdelonge, às vezes mais intimamente—, perguntando um ao outro “Você acha que eles ainda têmrelações?” e dedicando à pergunta uma reflexão quase séria. Essa nossa brincadeira, que hojemeparecetãodolorosa,deviamuito,semdúvida,àduvidosasuposiçãodequedaliapoucohavíamosderetomarumavidaamorosasatisfatória.Emnossaestranhacumplicidade,enaquelasconversasqueerguiam à nossa volta ummuro que nos isolava domundo exterior, havia a finalidade velada deconvencer-nosdequenossocasamentoseriapossívelnaquelascondições,equedepoispoderíamosesperarempazavoltadaquelavidasexualquenopassadonosdavatantoorgulho.PelomenoseraoqueSibel achava,mesmoemseusdiasdemaiorpessimismo;estimuladaporminhasbrincadeiras,minhasprovocaçõeseminhacompaixão,elaadquiriaesperançase ficavasatisfeita,chegandoatéasentar-seemmeucolo,comoquetentandodesencadearalgumareação.Nosmeusmomentosmaisesperançosos,tambémmeocorriaumsentimentoquejulgavaigualaodeSibel,suscitandoaideiadepropor que nos casássemos logo, mas eu não dizia nada, commedo de que ela pudesse recusarminhapropostaemtermosbruscosedefinitivos,abandonando-meemseguida.PoismepareciaqueSibel só estava à espera de uma boa oportunidade para pôr fim à nossa relação com um golperetaliatórioquetambémrestaurasseseurespeitoporsimesma.Incapazdeaceitarque,apenasquatromeses antes,perderaa vida inteirade felicidadeconjugalque seestendiaànossa frente— aquelaexistência invejável e ilibada, repleta de filhos, amigos e diversões variadas—, não conseguiaconvencer-se a tomar a iniciativa. Assim, ambos ainda extraíamos alguma utilidade emocionaldaqueleestranhoamorquenosmantinhaligadose,porenquanto,cadavezquenomeiodanoiteodesesperonosdespertavadeumsonoquesóabebidaconsegueinduzir,persistíamosnocostumedenosabraçar,ignorandoadordamelhormaneirapossível.Apartirdemeadosdenovembro,todavezqueacordávamosnomeiodeumanoitesemvento—

ardendo de dor ou de sede, por termos bebidomuito na véspera—, ouvíamos um pescador queremava seu bote, logo além das nossas persianas, deslocando-se pelas águas calmas do Bósforo erecolhendoa sua rede.Àsvezesobotepassavabemdebaixodonossoquarto.Acompanhandoessepescadorquieto,quefalavabaixo,vinhasempreummeninomagrodevozdoce,obedienteacadaordemdopai.Enquantoaluzdolampiãodeseuboteseinfiltravapornossaspersianas,lançandoum

Page 158: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

fulgoradorávelnoteto,ouvíamososomdeseusremoscortandoaságuassilenciosas,aáguacaindoemcascatasdesuaredeàmedidaqueapuxavamparaforadomar,eàsvezessóatossedomeninoenquanto os dois trabalhavam semdizer nada. Acordávamos quando eles chegavam e, abraçados,ficávamos ouvindo enquanto remavam a cinco ou seis metros da nossa cama, sem saber queestávamosaliàescuta;ouvíamososdoisjogandopedrasnomarparaespantarospeixesparadentroda rede, e em raras ocasiões eles conversavam: “Segure firme, meu filho”, dizia o pescador, ou“Pegueacesta”,ou“Agoraremeparatrás”.Muitomaistarde,nomeiodosilênciomaisprofundo,ofilhodizia,comsuavozmaissuave:“Estouvendoumali!”,eSibeleeu,deitadosnosbraçosumdooutro, nos perguntávamos o que o filho poderia estar apontando. Seria um peixe, um esteioameaçadorfincadonaareia,oualgumoutrosermarinhoquesópodíamosimaginardanossacama?Nãomelembrodejamaisterconversadocomessepescadoreseufilhodepoisdeouvi- losemsuaspescarias.Mas ànoite ficávamos, eu eSibel, pairando entre o sono e a vigília, às vezes ouvindoobarquinhodepescaseafastardepoisdeumanoitedetrabalhoeàsvezesdeixandodeouvi- lo.Aindaassim,vivíamosinvariavelmenteumintervalopreciosodeimensapaz,comosenãohouvessenadaatemerenquantofôssemosvisitadospelopescadoreporseufilho.AcadadiaquepassavaSibel ficavamais ressentidacomigo,cultivandonovasdúvidas sobre sua

beleza; a cada dia seus olhos se enchiam de lágrimas commais frequência, àmedida que nossasaltercações,nossosarrufoseescaramuçasficavammaisdesagradáveis.OmaiscomumeraqueSibelfizessealgumgestoparamedeixar feliz,assandoumbolo, talvez,ouobtendoumpreçoexcelenteparaumalindamesadecentroparanossacasa,mas,quandoeu,sentadocomumcopoderakınamão, devaneava sobreFüsun enão reagia a ela damaneira esperada, ficava furiosa, saía e batia aporta,masaindaassimeucontinuavasentadoondeelamedeixara,amaldiçoando-mepelavergonhaquemeimpediadeiratrásdelaepedirdesculpas—e,quandofinalmentemelevantavaechegavaatéela,podiaverqueseuressentimentojáalevaraparalongedemais.Seelarompessenossonoivado,asociedade,sabendoquantotempotínhamos“vividojuntos”sem

noscasarmos,podiaolhardeladoparaSibel,eelasabiaperfeitamentequepormaisqueandassedecabeçaerguida,pormais“europeias”quefossemasatitudesdosseusamigos,aquelecasonãoseriavistocomoumahistóriadeamorsenãoterminasseemcasamento.Iriasetransformarnahistóriadeumamulhercujahonraficaramanchada.Claroquenãoconversávamossobreessascoisas,maselasabiabemquecadanovodiatrabalhavacontraela.ComvisitasocasionaisaoedifícioMerhametparameestendernacamaemedistraircomascoisas

deFüsun,àsvezeseumesentiamelhoreconseguiameiludir,convencendo-medequeminhadoraindapodiapassarequeissotambémpodiarepresentaralgumaesperançaparaSibel.Continuavamtambémasnoitadas,asfestaseosencontroscomosamigos,quesempredeixavamSibel,emboranãoamim,deespíritorenovado.Masnadadaquiloconseguiarevogaraverdadeodiosadeque,tirandoashorasquepassávamosmuitoalcoolizados,ouosminutosquepassávamosescutandoopescadoreseufilho,Sibeleeuéramosmuitoinfelizes.Foiduranteesseperíodoque—desesperadoparadescobrirondeFüsunpodiaestareseestavapassandobem—supliqueiaCeyda,naépocaprestesadaràluz;chegueiaoferecer- lhesuborno,maselasórespondiaqueFüsunestavaemalgumpontodeIstambul.Seráqueeuprecisariareviraracidadeinteira,ruaarua?

Page 159: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Nocomeçodoinverno,numdenossosdiasespecialmentefriosedesoladosnayalı,SibeldissequevinhapensandonumaviagemaPariscomNurcihan.NurcihanpretendiairnaépocadoNatal,fazercompraseacertaralgumasquestõespendentesantesdeseunoivadoformalcomMehmet(edeseucasamentocomele).QuandoSibelmanifestouo interesseemir,euaestimulei,planejando,assimque ela partisse, mover céus e terras para encontrar Füsun; pretendia vasculhar cada canto deIstambul, e se não conseguisse encontrá-la desistiria daquela dor, daquele remorso que vinhadestruindominhaforçadevontadee,quandoSibelvoltasse,mecasariacomela.Sibelrecebeumeuestímulo com a devida desconfiança,mas eu lhe disse que umamudança de cenário e de ritmopoderiafazermuitobemanósdois,acrescentandoquequandoelavoltassepoderíamosrecomeçardopontoondetínhamosparadonayalı;nodecorrerdessaconversa,useiapalavra“casamento”umaouduasvezes,emborasemmuitaênfase.Naverdade,euaindaimaginavaquefossecasar-mecomSibel,queàquelaalturaestavaprontaa

apostarqueumaseparaçãotemporáriapudessenosencontrarrefeitosporocasiãodesuavolta.Fomosaté o aeroporto com Nurcihan e Mehmet, e, chegando cedo, nos sentamos a uma mesinha doterminalnovopara tomarMeltem,como recomendadopor Ingenocartazqueali se via.QuandoabraceiSibelnadespedidaevi lágrimasemseusolhos, fiqueicommedo,pensandoquenãohaviacomovoltarànossavidaantigadepoisdisso,sentindoquenãotornariaavê-lapormuito tempo,edepoismecensureiporessavisãosombriadascoisas.Nocaminhodevoltaparaacidade,nocarro,Mehmet, para quem aquela seria a primeira separação deNurcihan emmuitosmeses, quebrou osilêncioprolongado:“Avidaficatãovaziasemasmeninas,nãoémesmo?”.Naquelanoiteayalıdefatomepareceutãovaziaetristequenãoconseguificarlá.Enãoerasóo

rangidodastábuasdopiso:agoraqueficarasó,descobriqueoprópriomarvinhainvadindoavelhaestrutura,cadavezproduzindoumgemidonumtomdiferente.Asvagasquesequebravamcontraoterraçodeconcretoproduziamumsommuitodiversodasondasquesequebravamnaspedras,eascorrentezas murmurantes sibilavam ao passar pelos barcos amarrados mais abaixo. Perto doamanhecer,comoventonortepenetrandoemcadacantodacasa,enquantoeupermaneciadeitadonacamanumestuporalcoólico,ocorreu-mequefaziamuitotempoqueopescadornãosaíamaisdebarcocomseufilho.Aindahaviaumapartedeminhamentesaudávelobastanteparaverascoisascomclareza,eelamediziaqueumcapítulodaminhavidaestavachegandoaofim,masderestoeucontinuavaansiosoecommedodemaisdeficarsozinhoparaconseguiraceitaressaverdade.

44.OhotelFatih

Nodiaseguinte,encontrei-mecomCeyda.Emtrocadesuaconcordânciaemserportadoradasminhascartas,euconseguiraumempregoparaumparentedelanodepartamentodecontabilidadedaSatsat.Sabiaque,sefalassecomalgumadureza,elapodiaserintimadaamedaroendereçodeFüsun.MasCeyda reagira ameupedido assumindoumaposturamisteriosa e falandopor elipses.Sugeriu que eu não ficariamuito contente de verFüsun, pois a vida, o amor e a felicidade eramcoisasdifíceis,easpessoas faziamoqueeranecessárionessemundomortal, aproveitandoas raras

Page 160: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

oportunidadesquetinhamdeserfelizes.Eraestranho,vindodealguémque,enquantofalava,tocavaotempotodoabarriga,àquelaalturamuitogrande,equetinhaummaridoqueatendiaatodososseusdesejos.Não consegui pressionar muito Ceyda. E, como ainda não havia em Istambul escritórios de

detetives particulares do tipo que vemos nos filmes americanos (ainda levariam trinta anos parachegar),eunãotinhacomocontrataralguémparasegui- la.MaiscedoeuestiveracomRamiz,quecuidavadassituaçõesmaisdesagradáveisdosnegóciosdemeupaietambém,porumperíodo,desuasegurança (nosvelhos tempos,nósochamaríamosdeguarda-costas);dizendoaelequeestávamosfazendoumainvestigaçãodiscretasobreumroubo,mandei-oemmissãosecretaencontrarFüsun,opaidelaetiaNesibe,maselevoltoudemãosvazias.MesmonossoamigoSelamiBey,ocomissáriodepolíciaaposentadoqueajudavaaSatsatquandosurgiamproblemascomaalfândegaouoMinistériodasFinanças,nãoconseguiunada:depoisdefazeralgumasinvestigaçõesemrepartiçõesderegistro,delegaciasdepolíciaeescritóriosdosconselhos,elemedisseque,comoapessoaqueeuprocurava—opaideFüsun—nãotinhafichapolicial,eraquaseimpossívelencontrá-lo.Passando-meporumex-aluno agradecido que desejava beijar a mão de seu antigo professor, estive nos liceus Vefa eHaydarpaşa,asduasescolasondeopaideFüsunensinavahistóriaantesde seaposentar,mas semresultado.Então,tenteiencontrartiaNesibeapartirdascasasdeNişantaşıedeşişliparaasquaiselacosturava.Claroqueeunãopodiaperguntaràminhamãe.MasZaimdescobriucomamãedelequequaseninguémusavamaisaqueletipodeserviço.Elasaíraacampoparaversealguémtinhaideiadeonde encontrar Nesibe Hanım, a costureira, mas ninguém sabia. Essas decepções exacerbaramminhador.Eupassava ashorasde almoçonoedifícioMerhamet, às vezes voltandodepoisparaoescritórioeàsvezessaindodecarroparapercorreraesmoacidade,esperandoencontrarFüsunporacaso.Enquanto percorria cada bairro, cada rua da cidade, nunca me passou pela cabeça que me

recordariadessashorasgastasàprocuradelacomomomentosfelizes.QuandoofantasmadeFüsuncomeçouameaparecernosbairrospobresdacidadevelha—Vefa,Zeyrek,Fatih,Kocamustafapaşa—,concentrei-medaqueleladodoChifredeOuro.Percorriaasruelasestreitas,fumandoenquantoocarro sacolejava pelo calçamento de pedra e pelos buracos das ruas, e de repente o fantasma deFüsun surgia à minha frente, levando-me a estacionar de imediato e me entregar a uma afeiçãoprofundaporaquelebairrolindoeempobrecido.Detodocoração,euabençoavaaquelasruascomsuasmulheres cansadas de cabeça coberta, os jovens fortes que encaravam os desconhecidos quevagavampelasruasàprocuradefantasmas,osvelhosedesempregadosquepassavamotemponoscafés,lendoojornalemsuaatmosferaimpregnadadefumaçadecarvão.Quandooestudocuidadosode uma aparição ao longe revelava não se tratar de Füsun, eu não deixava o bairro de imediato;preferia continuar a vagar por suas ruas, convencido por alguma lógica irracional de que, se umduplodelaapareceraali, a verdadeiraFüsunnãopodiaestarmuito longe.Eassimchegueiaumafontequebradademármore,comduzentosevinteanosdeidade,nocentrodeumapraçainfestadadegatos,eavisãodesloganseameaçasdemorteinscritasemcadasuperfícievisível,rabiscadaspor“facções” dos vários partidos de esquerda e direita, não me deixou intranquilo. Com o coraçãoconvencidodequeFüsunestavaemalgumlugarpróximo,aquelasruasdesfiguradasmepareciam

Page 161: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

mágicas.Resolviqueprecisavapassarmaistempocaminhandoporaquelasredondezas,maistemponaquelescafés,tomandochá,olhandopelajanelaeesperandoqueelapassasse;seeupretendiaficarmaispróximodelaedesuafamília,precisavatambémvivermaiscomoeles.Poucodepois,pareidefrequentarosrestaurantesmaisnovosdeNişantaşıeBebek;perdiinteresse

nos acontecimentos sociais que antes consumiamminhas noites. Já cansara deme encontrar todanoite comMehmet, que considerava nosso destino comumpassar horas conversando sobre o que“nossasmeninas”estariamcomprandoemParis.Mesmoquandoeuconseguiaescapardele,Mehmetmelocalizavanoclubenoturnoaqueeufossemaistardee,comosolhosbrilhantes,falavasempararsobre o queNurcihan lhe disseramais cedo ao telefone. Quando Sibelme ligava eu entrava empânico,poisnãotinhanadaalhedizer.Haviaocasiões,admito,emquesentiafaltadoconsolodosbraçosdeSibel,mas sentia tamanhaculpa, estava tão esgotadoporminhamalignamendacidade,que no fim das contas sua ausência era um consolo. Dispensado da falsidade que nossa situaçãodemandava,convenci-medequevoltaraaseramesmapessoadeantes.Eenquantoissoapessoadeantes,emboraperturbada,vagavapelosbairrosdacidadevelha,àprocuradeFüsun,amaldiçoando-mepornãotercomeçadoapercorrermaiscedoaquelasruasencantadoras,aquelesbairrosantigos.ElamentavanãoterrompidocomSibelantesdenossonoivado,enãoterencontradoalgummododeromperonoivadodepois,antesquefossetardedemais.Emmeadosdejaneiro,duassemanasantesdadataprevistaparaSibelvoltardeParis,fizasmalas,

deixei a yalı eme transferi para um hotel entre Fatih e Karagümrük. Exponho aqui uma de suaschaves,naqualsepodelersuainsígnia,bemcomonopapeltimbradodomeuquartoenumaréplicadeseupequenoletreiro,queencontreimuitosanosmaistarde.Navéspera,eupassaraatardeinteiraexplorandoasáreasentreFatiheoChifredeOuro,olhandoemcadaruaeemcadaloja,espiandopelajaneladecadafamíliaquemoravanascasasdepedraabandonadasenasdesaprumadascasasdemadeirasempinturadeixadasparatráspelosgregosquetinhamfugidodacidade,atéque,fartando-medaalegria,dobarulho,dasdesgraçasedaapinhadapobrezadaquelavizinhança,entreinohotelparameabrigardachuva.Àquelaalturajátinhaanoitecido,e,decididoanãoterdeesperarportodaa travessia do Chifre de Ouro para poder tomar minha primeira dose de bebida, subi a ladeira,entrandonumacervejarianovapertodaesquinacomaruaprincipal.Complementandoavodcacomcerveja, fiquei ali sentado com outros homens vendo televisão, e em pouco tempo— ainda nemeramnovehoras—estavaparalisado.Quandosaí,nãomelembravasequerdeondeestacionarameucarro.Caminheimuito tempo na chuva, pensandomais emFüsun e naminha vida que nomeucarro, e lembro que, enquanto percorria aquelas ruas escuras e enlameadas, meus sonhos comFüsun,pormaisdolorososquefossem,aindametraziamfelicidade.EfoiassimquenomeiodanoitemedescobridevoltanohotelFatih;pediumquartoelogoadormeci.Pelaprimeiravezemmuitosmeses,dormiprofundamente.Econtinuariaadormirprofundamente

nomesmohotelnasnoitesseguintes.Oquemepegoudesurpresa.Àsvezes,pertodoamanhecer,euera visitado em meus sonhos por alguma memória ensolarada da infância ou do começo dajuventude.Acordavacomumestremecimento,comodaprimeiravezemqueouviraopescadoreseufilho, emeu único desejo era adormecer de novo naquela cama de hotel, a fim de voltar para omesmosonholuminoso.

Page 162: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Depoisdaprimeiranoiterepousante,euvoltaraàyalıparaarrumarminhasroupas,minhasmeiasdelãemeusoutrospertencese,determinadoaevitarosolharespreocupadoseasperguntasansiosasdosmeuspais,preferime instalarnohotela voltarparacasa.Eu iaparaaSatsatdemanhãcedo,comosempre,massaíacedodoescritórioafimdevoltarcorrendoparaasruasdeIstambul.Minhaprocura porFüsun erauma alegria sem fim, e ànoite eu ia contente a alguma cervejaria darumdescansoaminhaspernasexaustas.Mas,comoemtantosoutroscapítulosdaminhavida,sómuitomaistardeeuviriaaperceberquemeusdiasnohotelFatih,longedeteremsidodolorosos,comonaépocaeuimaginava,eramnaverdaderepletosdefelicidade.Tododianahoradoalmoçoeuiaatéoapartamento do edifício Merhamet, para a distração e o consolo que conseguia extrair de seusobjetos; e todo dia surgia uma novamemória, que acompanhava o encontro de um novo objetoincorporado; à noite eubebia e fazia longas caminhadas, amente enevoada pelo álcool enquantopercorria as ruelas de Fatih, Karagümrük e Balat, espiando pela fresta das cortinas o destinoafortunadodasfamíliasquejantavamreunidas,repetindo-mevezessemcontaque“Füsundeveestarnumadessascasas”,eencontrandoumconsolorenovadonessaideia.Às vezes eu sentia queminha felicidade vinha não da possibilidade de que Füsun estivesse por

perto,mas de algomenos palpável. Sentia como se a própria essência da vida estivesse naquelesbairrospobres,comseusterrenosbaldios,suasruasdepedraenlameadas,seuscarros,seuslatõesdelixoecalçadas,eascrianças jogandocomumabolade futebolmeiovaziaà luzdos lampiões.Osnegóciosemexpansãodomeupai,suasfábricas,suafortunacrescenteeaobrigaçãodecorrentedeviveraoestilo“europeuelegante”quecoadunavacomsuaprosperidade—agoraissotudopareciaterme privado de coisas mais simples e essenciais. Enquanto percorria aquelas ruas, era como seestivesseàprocuradomeuprópriocentro.Vagandoembriagado,subindoedescendoaquelas ruasestreitas, as ladeiras enlameadas e os becos em curva que se transformavam abruptamente emescadas, omundome parecia desabitado de uma hora para outra, salvo pelos cães; eu sentia umcalafrioecontemplavacomadmiraçãoaluzamareladadolampiãoquepenetravanascasasatravésdecortinascerradas,osfinosfiosdefumaçaazuladaqueseerguiamdaschaminés,obrilhorefletidodas televisões nas janelas e nas vitrines das lojas. Assim, nanoite seguinte, quandome sentei comZaimnumatavernadentrodomercadodeBeşiktaş,tomandorakıecomendopeixe,essascenasdelusco-fuscomeretornaram,acenandoparamimcomumaproteçãoquemeimpediudeserpuxadodevoltaparadentrodomundodequeZaimmefalava.Relatos de festas e bailes, histórias sobre as vidas dos frequentadores do clube e a popularidade

crescente do Meltem eram os assuntos habituais das nossas conversas, mas nenhum deles nosabsorveupormuitotempo.ElesabiaqueeudeixaraayalıequenãoestavanacasademeuspaisemNişantaşı,masparanãoprovocarminhamelancoliaevitoumefazerperguntassobreFüsunoumeucoraçãopartido,emboradevezemquandoeu tentasseencaminharaconversanessadireção,poisqueriamuitodescobriroqueelesaberiasobreopassadodela.Quandoficouclaroqueelenãotinhacomo ou não desejava alimentar minha obsessão, considerando aquela complexidade arriscadademaisousimplesmentetediosa,simuleiaexpressãodeumhomemcomedidoefizquestãodelhecontarqueiadiariamenteaoescritórioetrabalhavamuito.Nevavano finalde janeiroquandoSibel ligoudeParisparaomeuescritório;um tantoagitada,

Page 163: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

contou-mequetinhasabidoatravésdevizinhosepelojardineiroqueeudeixaraayalı.Faziamuitotempoquenãofalávamospelotelefone,oqueeracertamenteumaindicaçãodenossoafastamento,masnaquelesdiasnãoerafácilfazerligaçõesinternacionais.Alinhacrepitavacomruídosestranhos,eeraprecisogritarparaserouvido.Desanimadoanteaperspectivade terdeproclamarmeuamorporSibelaosgritos (e semamenor sombrade sinceridade)para todooescritórioouvir,euviviaàprocurademotivosparanãofalarcomela.“Vocêfoiemboradayalı,masouvidizerquenãoestánacasadosseuspais”,disseela.“Éissomesmo.”Nãolembreiaelaquetínhamosdecididodecomumacordoquevoltarparaacasademeuspais

emNişantaşıiriaexacerbarminhadoença.Nempodiaperguntarquemtinhalhecontadoqueeunãoestavadormindoemcasa.MinhasecretáriaZeynepHanımpularadesuacadeirae fecharaaportaentre nós, para que eu pudesse conversar em particular com minha noiva, mas ainda assim euprecisavagritarparaserouvidoporSibel.“Oquevocêtemfeito?Ondeestámorando?”,perguntouela.NinguémalémdeZaimsabiaqueeuestavahospedadonumhotelemFatih, lembrei-meagora.

Mastampoucoquisgritaraquelainformaçãoparaoescritóriointeiroescutar.“Vocêvoltouparaela?”,perguntouSibel.“Vocêprecisafalarclarocomigo,Kemal.”“Não!”,respondi,masnãoconseguigritaraltoobastante.“Nãoestououvindo,Kemal.”“Não!”, repeti, dessa vezmais alto.Mas ainda assimminha resposta foi abafada pelo chiado da

linhainternacional,cujosomlembravaodeumaconchapróximaaoouvido.“Kemal,Kemal,nãoestououvindo,porfavor…”,gritouSibel.“Estouaqui!”,gritavaeu,omaisaltoquepodia.“Faleclarocomigo.”“Nãotenhonadaparalhecontar!”,disseeu,gritandoaindamaisalto.“Entendi!”,disseSibel.Um estranho som oceânico tomou conta da linha, depois um estalido, antes de a ligação ser

cortadaeavozdatelefonistaentrar.“AligaçãocomParis foi interrompida,meusenhor.Querquetorneatentar?”“Não,obrigado,minhajovem”,respondi.Eraumhábitodomeupai,dirigir-seatodaatendentedo

sexofeminino,qualquerquefossesuaidade,como“minhajovem”.Fiqueichocadoaovercomoeuadquiria cedo os hábitos dele.Fiquei chocadode ouvir Sibel falando com tanta segurança…Masestavacansadodecontarmentiras.SibelnuncamaismeligoudeParis.

45.UmferiadoemUludağ

TivenotíciadavoltadeSibelemfevereiro,nocomeçodosquinzediasdefériasescolaresemqueasfamíliascostumavamiresquiaremUludağ.Zaimtambémligaraparaoescritório,sugerindoquenosencontrássemosparaoalmoço.QuandonossentamosnoFuaye,tomandosopadelentilha,Zaim

Page 164: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

mefitoucomumolharafetuoso.“Vocêestáseescondendodavida.Acadadiaeuvejovocêsetransformarnumhomemmaistristee

perturbado,eestoupreocupado.”“Nãosepreocupecomigo”,disseeu.“Estoubem…”“Poisnãomeparecenadabem”,disseele.“Vocêprecisatentarserfeliz.”“Vocêachaqueafinalidadedavidaéserfeliz”,disseeu.“Éporissoqueachaquemeescondoda

vida…Masestounolimiardeumaoutravida,quevaimetrazerapaz.”“Ótimo…Entãofaleconoscosobreessaoutravida.Estamossinceramentecuriosos.”“Quemsomos‘nós’?”“Nãofaçaisso,Kemal”,disseele.“Comoéquealgumapartedissopodeserminhaculpa?Nãosou

seumelhoramigo?”“É.”“Nós…Mehmet,Nurcihan,eueSibel…VamosparaUludağdaquiatrêsdias.Porquevocênão

vemjunto?Nurcihanestavaplanejandoirtomarcontadeumasobrinha,entãodecidimosviajaremgrupo.Vaiserdivertido.”“QuerdizerqueSibelvoltou.”“Jáfazdezdias.Elavoltounasegunda-feiradasemanapassada.Equerquevocêtambémvenha

paraUludağ.”Zaimsorriu,orostoreluzentedebondade.“Masnãoquerquevocêsaiba…Estoulhecontando tudo isso sem que ela saiba, demaneira que, resolva você o que resolver, não vá fazerbobagensemUludağ.”“Nãovou,porqueficoaquimesmo.”“Venha,vailhefazerbem.Todaessahistóriavaipassarempoucotempo,evocêvaiseesquecer

dissotudo.”“Quemsabedisso?NurcihaneMehmettambémsabem?”“Sibel sabe, claro”, disse Zaim. “Ela e eu conversamos. Ela entende perfeitamente como uma

pessoa tão dedicada como você pôde se envolver numa história assim, e quer ajudá-lo a se livrardela.”“Émesmo?”“Você tomou o caminho errado,Kemal.Todomundo às vezes se apaixona pela pessoa errada.

Todomundoseapaixona.Masnofinaltodomundoserecuperaantesdeestragaravidainteira.”“Etodasessashistóriasdeamor,etodosessesfilmes?”“Adoroos filmes românticos”,disseZaim.“Masnuncavium filmeque justificasseumahistória

comoasua.Seismesesatrás,vocêsderamaquelaimensafestadenoivado.VocêeSibel,nafrentedetodomundo,trocaramanéis.Anoitefoimaravilhosa.Vocêsforammorarjuntos,antesmesmodesecasarem.Chegaramadar festasnacasadevocês.Todospensamosqueeramuitoelegante,muitocivilizado. E, como todomundo sabia que vocês iam se casar, todomundo aceitava a novidade,ninguémseofendia.Chegueiaouvirgentedizendoqueeramuitochique,equepensavaemfazeramesmacoisa.Masagoravocêfoiemboradayalıeestámorandosozinho.DecidiudeixarSibel?Porque está evitando se encontrar com ela? Você não está se explicando. Está agindo como umacriança.”

Page 165: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Sibelsabe…”“Não,elanãosabe”,disseZaim.“Nãotemamenorideiadecomoexplicarasituação.Comque

cara ela pode olhar para as pessoas? O que ela pode dizer? ‘Meu noivo se apaixonou por umavendedora,enósnosseparamos?’Elaestámuitoabalada,decoraçãopartido.Vocêprecisaconversarcom ela. EmUludağ vocês poderiam se acertar, deixar tudo isso para trás. Eu garanto que Sibelaceitaria seguirem frente,comosenadadisso tivesseacontecido.NurcihaneSibel vãodividirumquartonoGrandHotel.Mehmeteeuconseguimosoquartodocantonosegundoandar.Eoquartotemtrêscamas.Sabe,deládáparaverotopodamontanha.Vocêpodeficarconosco.Epodemospassar a noite inteira acordados chateando os outros como fazíamos quando éramos meninos.MehmetestátãoloucoporNurcihanqueparecequeestápegandofogo.Penseemcomopodemosrirdisso.”“Na verdade, a pessoa de quem vocês iriam rir seria eu”, respondi. “E, de qualquer maneira,

MehmeteNurcihanjásãoumcasal.”“Acredite,eununcafariaumapiadaàsuacusta”,disseZaim,umtantoofendido.“Nemdeixaria

ninguémmaisfazer.”Porsuaspalavras,ficavaclaroqueasociedadedeIstambul—oupelomenosaspessoasdonosso

círculo—tinhamcomeçadoafazerpiadassobreminhaobsessão.Maseujádesconfiavadisso.FiqueicheiodeadmiraçãopeladelicadezadeZaimemorganizaressaviagemaUludağ sópara

me ajudar. Quando eu era jovem, minha família ia a Uludağ todo inverno, com a maioria dosparceirosdenegóciosdemeupai,seusamigosdoclubeetantasoutrasfamíliasricasdeNişantaşı.Euadoravatantoessasfériasdeinverno—emquetodomundoconheciaouacabavaconhecendotodomundo,eerapossívelfazernovosamigosebrincardeformarcasais,poisatéasgarotasmaistímidaspassavamasnoitesdançando—quemesmoanosmaistarde,quandodeparavacomumavelhaluvade esqui demeu pai no fundo de uma gaveta, ou os óculos de proteção quemeu irmão usava edepois passou para mim, sentia um formigamento na espinha. Durante o tempo que passei nosEstadosUnidos,semprequeeuolhavaparaoscartões-postaisqueminhamãememandavadoGrandHotelsentiaumaondafelizdesaudade.Agradeci a Zaimmas disse: “Não vou com vocês. Seria doloroso demais.Mas você tem razão.

PrecisoconversarcomSibel”.“Elanãoestánayalı.EstánacasadeNurcihan”,informou-meZaim.Virandoacabeçaparapassar

em revista os demais clientes do restaurante, que estavam todos animados — e, como ele,enriqueciamacadadia—,eleconseguiuesquecermeusproblemasporummomentoesorrir.

46.Énormallargarassimasuanoiva?

SóconseguimeconvenceraligarparaSibelnofinaldefevereiro,quandoelavoltoudeUludağ.Temia que essa conversa que me assombrava pudesse terminar em briga, lágrimas e queixas, eespereiqueela tomassea iniciativaplenamente justificadademedevolveroanel.Masumdianãoaguenteimaisatensão,pegueiotelefoneeligueiparaelanacasadeNurcihan;concordamosemnos

Page 166: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

encontrarparajantar.AcheiqueseriabomirmosaoFuaye,porquelá,cercadosdegenteconhecida,nenhumdenósdois

poderiasucumbiraosentimentalismo,àraivaouaqualquerexcesso.Ecomeçamosassim.NasmesasànossavoltaestavamHilmi,oBastardo,nacompanhiadeNeslihan,comquemacabaradesecasar,Tayfun,Güven,oAfundadordeNavios,comafamília,e(numamesamuitoconcorrida)Yeşimeomarido.Hilmieamulherchegaramavirànossamesaedisseramquetinhamgrandeprazeremnosver.ComendoentradasvariadasetomandovinhotintodeYakut,elamefaloudesuaviagemaParis,

descrevendoosamigosfrancesesdeNurcihanedizendocomoacidadeestavalindanoNatal.“Ecomovãoosseuspais?”,perguntei.“Estãobem”,respondeuela.“Aindanãosabemnadadanossasituação.”“Nãosepreocupecomisso”,disseeu.“Nãoprecisamosdizernadaparaninguém.”“Eu não me preocupo”, disse Sibel, e depois se calou, com um ar de quem perguntava: “E

agora?”.Mudandodeassunto,conteiaelaquemeupaipareciaumpoucomaisretiradodomundoacada

dia. Sibelme contou do novo hábito adquirido por suamãe de esconder roupas antigas e outrospertences.Conteiaelaqueminhamãeficaraaindamaisradicalquantoaseuhábitodebanirtudoquedescartavaparaooutroapartamento.Masesseeraumtemaarriscado,demaneiraquetornamosanoscalar.AexpressãodeSibelmediziaqueelanãoperceberaqualquermalícia,sabendoqueeusótinhaabordadooassuntoparamanter a conversaemandamento,mas tambémentendiaquemeuesforçoparaevitaroverdadeiroassuntosignificavaqueeunãotinhanadadenovoalhedizer.Demaneiraquefoielaqueabordouaquestão,dizendo:“Estouvendoquevocêresolveuaceitar

suasituação”.“Oquevocêquerdizer?”“Faz meses que esperamos sua doença passar. Mas, depois de toda essa espera, você não dá

nenhumsinaldecura—emvezdisso,parece teraceitadosuadoençadebraçosabertos.Émuitodolorosoverisso,Kemal.EmParis,rezeimuitoparavocêficarbom.”“Não estou doente”, respondi.Olhei para a clientela animada que jantava à nossa volta. “Essas

pessoaspodemacharquesim.Masvocênãodeviaacreditarnisso.”“Quandoestávamosnayalı”,disseSibel,“nãoconcordamosqueeraumadoença?”“Concordamos.”“Eoquemudouagora?Énormallargarassimasuanoiva?”“Oquê?”“Porumavendedora…”“Porquevocêestámisturandoascoisas?Asituaçãonãotemnadaavercomaslojas,nemcomo

dinheiro,nemcomapobreza.”“Temtudoavercomisso”,disseSibel,comadeterminaçãoquevemdeumaconclusãodolorosa

aquesechegadepoisdemuitorefletir.“Vocêsóconseguiucomeçaressahistóriacomelacomtantafacilidade porque ela era umamoça pobre e ambiciosa. Se ela não fosse vendedora, talvez vocêpudesse casar-se com ela sem se envergonhar. E foi por isso, no fim das contas, que você ficou

Page 167: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

doente.Porquenãopodiasecasarcomela.Nãotinhacoragem.”AcreditandoqueSibel sómediziaessascoisasparameenfurecer, fiqueimuitobravo.Mascom

issonãoquerodizerqueessaraivanãosedevesseaeutercompreendidoempartequetinharazão.“Nãoénormal,meuquerido,paraalguémcomovocê,fazertantascoisasporumavendedora,ir

morarnumhotelemFatih…Sevocêquisermelhorar,precisaadmitirquetenhocertarazão.”“Antesdemaisnada,nãoestouapaixonadoporessamoçado jeitoquevocê imagina”,disseeu.

“Mas,sóparanãomudarorumodaconversa,quermedizerqueaspessoasnãopodemseapaixonarporgentemaispobre?Ricosepobresnuncaseapaixonamunspelosoutros?”“Aartedoamoréoencontrodeumequilíbrioentreiguais”,disseSibel.“Comoexisteentremime

você.Você jáviualguma jovemrica seapaixonarporAhmetEfendi,oporteiro,ouHasanUsta,opedreiro,sóporquesãobonitos?Foradosfilmesturcos,claro.”Sadi,ochefedosgarçons,caminhavananossadireçãocomo rosto iluminadoaonosver,mas,

quandoviuoquantoestávamosabsorvidosnaconversa,interrompeusuacaminhada.IndiqueicomacabeçaqueelefizeraacoisacertaemevireidevoltaparaSibel.“Euacreditonosfilmesturcos”,disseeu.“Kemal,emtodosessesanosnuncavivocêiraocinemaparaassistiraumfilmeturco,nemuma

vez.Nemmesmocomosamigosnoscinemasaoarlivrenoverão,sóparadarrisada.”“AvidanohotelFatihéigualaumfilmeturco,acredite”,disseeu.“Ànoite,antesdeadormecer,

eucaminhoporaquelasruasdesoladaseempobrecidas.Eissomefazbem.”“No começo, achei que toda essa história com a vendedora era culpa de Zaim”, disse ela

incisivamente.“AcheiquevocêestivessemacaqueandoAdocevida.Acheiquequeriasedivertirumpoucocomalgumasdançarinas,moçasdebaremodelosalemãs,antesdesecasar.ConverseisobreissocomZaim.Masagoraconcluíquevocêestásofrendodeoutrotipodecomplexo”—apalavraacabara de entrar namoda— “o complexo de ser rico numpaís pobre.Claro, isso émuitomaisprofundoqueumapaixoniteporumavendedora.”“Vocêpodeterrazão”,disseeu.“NaEuropa,osricossãotãosofisticadosqueagemcomosenãotivessemmuitodinheiro.Éassim

queaspessoascivilizadassecomportam.Sequersaberaminhaopinião,sercultoecivilizadonãoéachar que todomundo é igual e precisa ser livre; é ter a sofisticação de agir como se fossem. Eninguémprecisasesentirculpado.”“Hummm. Estou vendo que seu tempo na Sorbonne não foi um desperdício total”, disse eu.

“Vamospediropeixeagora?”Sadi se aproximou da nossa mesa, e, depois de lhe perguntarmos como estava passando

(“Extremamente bem, louvado sejaDeus!”) e como ia omovimento do restaurante (“Somos umafamília,KemalBey.Asmesmaspessoastodanoite!”),conversamossobreasituaçãogeral(“Ah,comtodoesse terrorismoentreesquerdistasedireitistas, équase impossívelumcidadãodebemsairnarua!”)eas idasevindasdosclientes regulares (“Todomundo jávoltoudeUludağ!”).EuconheciaSadidesdeainfância.AntesdaaberturadoFuaye,eletrabalharanorestaurantedeAbdullahEfendiemBeyoğlu,ondemeupaisemprecomia.Mudara-separaIstambultrintaanosantes,aosdezenove,nuncaantestendovistoomar,elogoaprendeucomosantigosdonosgregosdastavernasecomos

Page 168: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

mais famososgarçonsgregosdacidadeacomplexaartedeescolhereprepararpeixes.Trouxe-nosumabandejacomumatainhavermelha,grande,umaenchovaoleosaeumaperca,queeleprópriocomprara nomercado de peixes pelamanhã. Cheiramos os peixes, conferimos o brilho dos seusolhoseo tomvermelhodasguelras, econfirmamosqueestavam frescos.EntãonosqueixamosdecomoomardeMármaraestavaficandopoluído.SadirespondeuqueoFuayeencomendaraaumacompanhia particular a entrega de um caminhão-tanque de água todo dia, por causa da falta deágua.Aindanãotinhamcompradoumgeradorparaenfrentaroscortesdeenergia,masosclientespareciamgostardaatmosferanasnoitesemqueprecisavamacendervelaselampiõesdegás.Depoisdeenchernossoscoposdevinho,Sadiseguiuseucaminho.“O pescador e o filho dele”, disse eu, “que ouvíamos da yalı... Pouco depois que você foi para

Paris,elestambémdesapareceram.Então,ayalıfoificandocadadiamaisfriaesolitária,atéquenãoaguenteimais.”Sibelouviuo tomdedesculpasnaminhavozquandolhedisseessascoisas,esperandodarnova

direçãoànossaconversa. (Osbrincosdepérolademeupaimepassarampelacabeça.)“Opaieofilhodeviamestar atrás dos cardumesdebonito oude enchovas.”Havia abundância desses peixesaquele ano, contei a ela;mesmonas ruelas deFatih, via esses peixes sendo vendidos em carroçaspuxadasacavalo,queosgatosseguiamportodaparte.Enquantocomíamos,Sadinoscontouqueopreço do rodovalho subira dramaticamente, porque agora prendiam os pescadores turcos queentravamemáguasrussasebúlgarasatrásdessepeixe.Enquantocomentávamosessahistória,viqueSibelestavaficandomaisnervosadoquenunca.Sabiaqueeuestavafalandodissoparanãodiscutirnossasdificuldades, sobreasquaisnão tinhade fatonadadenovoadizerenenhumaesperançaapropor.Gostariadeencontrarummodofácildeconversarcomelaarespeito,masnãomeocorrianenhum.Naquelemomento,vendoseurostotriste,sabiaquenãopodiamentirparaela,oquemedeixavafrenético.“Escute,Hilmi e amulher estão se levantandopara ir embora”, disse eu. “Vamos convidá-los a

sentar-seaqui?”AntesqueSibelpudessedizeralgumacoisa,fiz- lhesumsinal,masnãomeviram.“Nãooschameparaanossamesa”,disseSibel.“Porquê?Hilmiéumótimorapaz.Eacheiquevocêgostavadamulherdele,comoémesmoque

elasechama?”“Oquevaiacontecerconosco?”“Nãosei.”“QuandoeuestavaemParis,converseicomLeclerq.”EraoprofessordeeconomiadeSibel,que

elaadmiravamuito.“Eleachaqueeudeviaescreverumadissertaçãodemestrado.”“EntãovocêvaiparaParis?”“Nãoestoufelizaqui.”“Quer que eu vá também?”, perguntei.Estava claro que ela já se decidira quanto àquelenosso

encontro,etambémquantoaonossofuturo,maspercebiquetinhamaisalgumacoisaamedizer.“VáparaParis,então”,eudisse,cansando-medaquelaconversahesitante.“Possocuidardascoisas

aquieirmaistarde.”“Ehámais uma coisa que eu preciso lhe dizer.Desculpe-me tocar nesse assunto,mas existe a

Page 169: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

questão da virgindade,Kemal.Talvez você se sinta obrigado a alguma coisa comessa vendedora.Maseuachoqueavirgindadenãoéimportanteapontodejustificaroquevocêfez.”“Oquevocêquerdizer?”“Seéparatermosrealmenteumaatitudemoderna,sesomosrealmenteeuropeus,comoeudisse,a

purezanão tem importância.Se,poroutro lado, aindaestamos ligados à tradição, se a virgindadeimportaparavocêeéumacoisaqueesperaquetodomundorespeite,entãotodomundoprecisasertratadodamesmamaneira!”Numprimeiromomentofranziatesta,porquenãoentendiaocertooqueSibeltentavamedizer.

Entãomelembreidequetinhasidoseuprimeiroamante.“Nãoéumacoisaquetenhaomesmopesoparavocêeparaela”,penseiemdizer.“Vocêéricaemoderna!”Emvezdisso,porém,baixeiosolhosenvergonhado.“Emaisumacoisaquejamaissereicapazdeperdoar,Kemal.Sevocênãoconseguiarompercom

ela, por que ficamos noivos? Por que você não desistiu do nosso noivado?” Sua voz tremia deamargura.“Seeraparaacabarmosassim,porquefomosparaayalı?Porquedemosfestas?Porque,numpaíscomoeste,vivemosabertamentecomoumcasalsemsermoscasados?”“Acompanhiainocenteesinceraquecompartilheicomvocênayalıfoiumacoisaquenuncative

commaisninguém.”Vi como aminha resposta a deixava furiosa. Estava tão irritada e sofrida que quase começou a

chorar.“Sintomuito”,disseeu.“Realmentesintomuito.”Houveumsilêncio terrível.ParaevitarqueSibelcomeçasseachorar,paraevitarqueaquilonos

levasse aindamais longe, acenei freneticamente para Tayfun e suamulher, que ainda esperavamumamesa.Ficaramfelizesdenosver.Quandoinsisti,sentaram-seànossamesa.“Sabe,jáestoucomsaudadedayalı!”,disseTayfun.Osdoistinhamvindonosvisitarváriasvezesduranteoverão.Tayfuncaminhavapelocaiseandava

pelacasacomose lhepertencessem,abriaageladeiraparapegarbebidaspara simesmoeparaosoutros,àsvezessentia-seinspiradoapassarhorascozinhando,aomesmotempoemqueseentregavaà necessidade de discorrer sobre as particularidades dos petroleiros soviéticos e romenos quepassavamaolargo.“Vocês se lembram da noite em que desmaiei no jardim?”, perguntou ele, enternecido pela

lembrança.AoverSibelsentadaaliouvindoTayfun,quefalavasemrespostadecoisas joviais,semrevelarnemumafraçãodeseussentimentosíntimos,sópudesentiralgodaordemdaadmiração.“Eentão,quandovocêsdoisvãosecasar?”,perguntouFigen,amulherdeTayfun.Seriapossívelqueelaaindanãotivesseouvidoosrumoresanossorespeito?“Emmaio”,respondeuSibel.“NoHiltontambém.Etodosprecisamprometerquevãodebranco,

comonoGrandeGatsby. Jáviramofilme?”Derepenteelaolhouparaorelógio.“Ah,não,precisoencontrarminhamãenaesquinadeNişantaşıdaquiacincominutos.”Naverdade,seuspaisestavamemAnkara.ElaselevantoudeumsaltoebeijouTayfuneFigen,edepoisamim,nasduasfaces.Depoisde

passarmais algum tempo comTayfun e Figen, eu também fui embora do Fuaye e segui para o

Page 170: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

edifício Merhamet em busca do meu consolo costumeiro. Uma semana mais tarde, Sibel medevolveu o anel de noivado através de Zaim. Embora notícias suas me chegassem de todas asdireções,eusótornariaavê-latrintaeumanosdepois.

Page 171: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

47.Amortedomeupai

Anotíciadorompimentodomeunoivadoespalhou-sedepressa;Osmanveioaoescritórioumdiaparamerepreender;vieradispostoaintercederetentarsuavizaracontrariedadedeSibel.Enquantoisso, uma ampla variedade de rumores chegava ameus ouvidos: eu ficara demiolomole; eumetransformaranumhomemdanoite;euentraraparaumaseitasecretasufiemFatih;haviaatéquemdissessequeeumetornaracomunistae,comotantosmilitantes,foramorarnosbairrosmaispobres— mas nada dissome deixavamuito perturbado. Pelo contrário, esperava que Füsun, assim quesoubessequeeuromperaonoivado,ficasseimpressionadaememandasseumrecadodeondequerque estivesse escondida. A essa altura eu já desistira de qualquer esperança de cura; em vez deprocurar alívio, procurava extrair omáximodaminhador.Comecei a vagar sem rumopelas ruasinterditadascomsuasluzesalaranjadas,equatrooucincovezesporsemanaiaaoedifícioMerhametembuscadapazdeminhasmemóriasedoconsoloterapêuticodosobjetosquelámantinha.ComSibel fora daminha vida, eupodia ter voltadoparameu antigo quartona casa dosmeus pais emNişantaşı,masminhamãe,elaprópriaincapazdeaceitaronoivadorompido,esconderaamánotíciademeupai,queeladescreviacomo“indiferenteefraco”,e,comonãosemostravadispostaafalarabertamentesobreoperigosoassunto,havia longos silênciosàmesasemprequeeualmoçavacomeles, o que fazia com frequência, embora nunca passasse a noite lá. Na verdade, minha dor deestômagopioravasemprequeeuiaàcasadeNişantaşı.Masquandomeupaimorreu,noiníciodemarço,volteiparacasadevez.FoiOsmanquemveio

aohotelFatihmetrazeramánotícia.Pormim,elejamaissubiriaaomeuquarto,vendoosestranhosobjetosqueeucompravaduranteminhascaminhadaspelosbairrospobresdedonosdeferros-velhos,demerceeirosedonosdepapelaria,todosacumuladosemmeuquartotãodesarrumado.Contendosua repreensão habitual, dessa vez limitou-se a olhar paramim com ar triste, abraçando-me comuma sinceridade carinhosa e sem qualquer admoestação; meia hora mais tarde, eu já arrumaraminhasmalas,pagaraminhacontaedeixaraohotelFatih.ÇetinEfendi,com lágrimasnosolhos,tinhaumardesolado,elembreiquemeupaideixaratantoelequantoocarroameuscuidados.Eraumdia triste e cinzentode inverno, e enquantoÇetinEfendinos levavaparacasa, atravessandoaponteAtatürk,olheiparaoChifredeOuro,seutomgeladodeágua-marinhasalpicadodemanchasdeóleo,ofriodesuaságuasdobrandocomoumsinocomminhasolidão.Meupaimorreradeparadacardíaca,poucosminutosdepoisdassete,enquantoasprecesmatinais

eramcantadas;minhamãeacordarapensandoqueomaridodormiaaseulado;quandopercebeuoquetinhaacontecido,ficouhistérica,demaneiraquetinhamlhedadoumcomprimidodeParadisonpara acalmá-la. Sentadana sala de estar em sua poltronade sempre, em frente à domeupai, detemposetemposelacomeçavaachorar,e faziaumgestonadireçãodapoltronavazia.Alegrou-sequandomeviu.Caímosnosbraçosumdooutro;nenhumdenósdoisdissenada.Entreiparavermeupai.Eleestavadeitadodepijamanacamadenogueiraquedividiacomminha

mãe havia quase quarenta anos; embora ainda na posição de quem dormia, estava rígido, e aexpressão em seu rosto pálido não era da paz do sonho, mas de uma inquietação profunda.

Page 172: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Despertaraeviraamorteàsuafrente;seusolhosestavamarregaladosdepânico,congeladoemseurostoumardemedoeespanto,dotipoqueseesperaemalguémquesevêdesamparadonocaminhodotráfegoqueseaproxima.Suasmãosenrugadasestavamagarradasàscobertas,oaromadecolôniaque exalavam, suas linhas tortas, seus pelos e manchas; aquelas mãos tinham acariciado meuscabelos,minhascostas,meusbraçosmilharesdevezesquandoeueramenino,deixando-metãofeliz;erammãosqueeuconhecia.Masagorasuapalidezmedavamedo;enãoconseguiaconvencer-meabeijá- las.Querialevantarascobertaseverseucorpointeirovestindoopijamadesedalistradoazulebrancoqueelesempreusava,masascobertasestavampresasemalgumlugar.Enquantoeuaspuxava,seupéesquerdoemergiu.Senti-mecompelidoaolharparaosseusdedos.

Odedãodopédomeupaieraabsolutamenteidênticoaomeu,e,comosepodevernessedetalhedeumaantigafotografiaquemandeiampliar,seusdedosdopétinhamumaformasingular.DesdequeCüneyt,velhoamigodemeupai,perceberaessaestranhasemelhançadozeanosantes,quandonossentamosladoaladodecalçãodebanhonacostadeSuadiye,elenossaudavacomamesmavelhapiadatodavezquenosviajuntos:“Ecomovãopaiefilhodededosidênticos?”.Tranqueiaportadoquartoemesentei,preparando-meparaaproveitaraoportunidadeechorar

pormuito tempoporFüsun enquanto pensava emmeupai,mas as lágrimasnão vieram.Emvezdisso,percebicomnovosolhosoquartoondemeupaipassaratantosanoscomminhamãe,aquelacâmara íntimadaminha infânciaainda totalmente recendenteacolônia,poeirade tapete,ceradeassoalho, madeira velha, cortinas, o perfume deminhamãe e o óleo de nossas mãos aderido aobarômetroquemeupaimemostrava,depoisdemepegarnocolo.Eracomoseocentrodaminhavidativessesedissolvido,comoseaterrativesseengolidomeupassado.Abrindoseuarmário,tireiasgravatas e os cintos ultrapassados, e um dos pares de sapatos que ainda eram ocasionalmenteengraxadosemborahouvessemuitosanosquenãoosusava.Quandoouvipassosnocorredor,sentiamesmapontadadeculpaquesentiaaoremexeremseuarmárionainfância,efecheidepressaaportaruidosa.Namesinhadecabeceirademeupaihavia remédios,palavrascruzadas, jornaisdobrados,uma fotografia muito amada de seu tempo no Exército, tirada enquanto ele bebia rakı com osoficiais, seus óculos de leitura, e também sua dentadura postiça, dentro de um copo. Tirei adentaduradelá,embrulheiemmeulençoeguardeinobolso;emseguidafuificarcomminhamãenasaladafrente,ocupandoapoltronademeupai.“Mamãe,querida,nãosepreocupe,pegueiadentaduradopapai”,eudisse.Elaassentiucomacabeça,comosedissesse:“Estácerto,vocêéquemsabe”.Aomeio-diaacasa

estavacheiadeparentes,amigos,conhecidosevizinhos.Todosbeijaramamãodeminhamãeeaabraçaram.Aportada frente ficouaberta, eo elevadornãoparava.Empouco tempo,havia tantagentequenãopudedeixardemelembrardasfestasquecostumávamosdarnosferiados.Sentiqueamavaaquelaquantidadedegente,aquelessonsdavidafamiliareocalor;cercadoportodosessesparentes,todosessesprimoscomosmesmosnarizesdebatataetestaslargas,eumesentifeliz.FiqueialgumtemposentadocomBerrinnodivã,trocandocomentáriosamigáveissobreosprimos.GosteidesaberqueBerrinacompanhavaavidadetodosdeperto,conhecendomelhorqueeuasnovidadesda família.Como todomundo,murmurei ocasionalmente uma piadinha, falei do último jogo defutebol,aque tinhaassistidono salãodohotelFatih (Fenerbahçe2—Boluspor0), e sentei-meà

Page 173: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

mesaarrumadaporBekri,que,apesardeseusofrimento,fritavamaissalgadosdequeijo,efuiváriasvezesaoquartodosfundosdoapartamentoparaolharocorpodemeupaidepijama.Sim,eleestavaperfeitamenteimóvel.Detemposemtempos,euabriasuasgavetas,paratocarnascoisasquetraziamtantasdeminhasmemóriasmaisantigas.Amortedomeupaitransformouessesobjetosfamiliaresdainfância em tesouros de valor incalculável, cada um deles uma nau carregada de um passadoperdido. Abri a gaveta da mesa de cabeceira, e, enquanto aspirava as emanações de cedro e doaçucaradoxaropecontraatosse,contempleilongamenteasantigascontasdetelefone,ostelegramas,as aspirinas e outros remédiosdemeupai, como se contemplasseumquadro complexo.Lembro,também,queantesdesaircomÇetinparacuidardosacertosdofuneralfiqueiporumlongotempode pé na varanda, olhando para a avenidaTeşvikiye.Com amorte demeu pai, não foram só osobjetos da vida cotidiana que se transformaram; mesmo as cenas mais comuns das ruas seconverteram emmementos insubstituíveis de ummundo perdido, em que cada um dosmenoresdetalhes influíano sentidodo todo.Comovoltar para casa significavaum retorno ao centrodessemundo,haviaumafelicidadequeeunãotinhacomoesconderdemimmesmo,eminhaculpaeraainda mais profunda que a de um homem cujo pai acaba de morrer. Na geladeira, encontrei agarrafinhadeYeniRakı quemeupai tomarapelametadenaúltimanoite de sua vida; depois quetodososvisitantesforamemboraefiqueisentadoemcasacomminhamãeemeuirmãomaisvelho,tomeioquerestava.“Viram o que o pai de vocês fez comigo?”, perguntou minha mãe. “Mesmo quando estava

morrendo,nãomecontou.”Naquela tarde, o corpo demeu pai foi levado para o necrotério damesquita Sinan Pasha, em

Beşiktaş.Minhamãe, querendo adormecer imersa no cheiro dele, não quis que os lençóis ou asfronhasfossemtrocados.Eratardequandomeuirmãoeeudemosumsoníferoaelaeapusemosnacama.Minhamãecheirouasfronhaseoslençóisporalgumtempo,chorouumpoucoeadormeceu.DepoisqueOsmantambémfoiembora,fuiparaaminhacama,pensandoquenofimdascontas—como tantas vezeseudesejarae sonharaquandocriança— eu ficara sozinhonaquela casa comaminhamãe.Masnãoera issoquemedeixava tãoagitado;era(comoemmeucoraçãoeunãopodianegar)a

possibilidadedequeFüsun viesse ao funeral.Por essemotivo expresso eu incluíra todososnomesdaqueleramodistantedafamílianosanúncios fúnebresdos jornais.PensavaqueFüsuneseuspaisleriamumdaquelesanúncios,emalgumpontodeIstambul,ecompareceriamaofuneral.Quejornaleles leriam?Claro, também podiam receber a notícia de outros parentesmencionados nos avisosfúnebres. Minha mãe leu os obituários durante o café da manhã. De tempos em tempos, elamurmurava:“SıdıkaeSaffetsãoparentestantopelomeuladoquandopelodoseufalecidopai,eosnomes deles deviam ter vindo logo depois de Perran e domarido dela. As filhas de şükrü Pasha,Nigân,Türkan e şükran, também saíramna ordem errada.Não era necessário incluir o nome daprimeiramulherdotioKekeriya,Melike,aÁrabe.Afinal,elanãodeveterpassadomaisdetrêsmesescasadacomoseutio.Eopobrebebêdesuatia-avóNesime,quemorreuaosdoismesesdeidade,não sechamaGül,masAyşegül.Comquemvocêsconferiramas informaçõesquandoescreveramesseanúncio?”

Page 174: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Sãoerrosdeimpressão,queridamãe.Vocêsabecomosãoosnossosjornais”,disseOsman.Acadaminuto ela olhava pela janela para o pátio da mesquita de Teşvikiye, perguntando-se que roupadeveriausar,epercebemosque,numdiagélidoedenevecomoaquele,elanemdeveriasairdecasa.“VocênãopodeusaraquelecasacodepelescomoseestivesseindoaumafestanoHilton,emesmocomelevocêaindaficariacomfrio.”“Nãovouficaremcasanodiadofuneraldopaidevocês,mesmoquesejaaminhamorte.”Mas,quandoviuoshomensque traziamocaixãodomeupaidonecrotériodamesquitaparaa

pedra funerária,minhamãe começou a chorar tanto que percebemos imediatamente que ela nãoconseguiria descer as escadas e atravessar a rua para participar do funeral. A despeito de todos ostranquilizantes que lhe demos, quando ela foi até a varanda envolta em suas peles de astracã,apoiando-seemBekrideum ladoeemFatmaHanımdooutro,para verospresentesergueremocaixão e depositá- lo no carro funerário, ela desmaiou. Soprava um vento norte gelado; haviaredemoinhosdeflocosdenevetãopequenosqueentravamnosolhos.Quasenenhumdospresentesviuminhamãe.DepoisqueBekrieFatmaalevaramdevoltaparadentro,eutambémpresteiatençãoemquem comparecera.Eram asmesmas pessoas que foram àminha festa de noivado noHilton.ComoocorriacomtantafrequêncianasruasdeIstambulduranteoinverno,asmoçasbonitasqueeuvira durante o verão tinham desaparecido; as mulheres tinham ficado mais feias, e os homenstambém,maissombrioseameaçadores.Assimcomoeufizeranafestadenoivado,aperteiasmãosdecentenas de pessoas, abraçandomuitos, e toda vez que deparava comuma sombra nova entre ospresentes sentia uma pontada, porque estávamos enterrandomeu pai e a sombra não era Füsun.Quandomeconvencidequenemelanemseuspais tinhamvindoao funeralouaoenterro,equenão iriamaparecer, senticomoseeupróprioestivesse sendo sepultadodebaixoda terragelada,aoladodemeupai.Ofriopareceuaproximarmaisafamília,edepoisdofimdacerimôniatodosquiseramcontinuar

juntos, mas eu escapei, tomando um táxi direto para o edifício Merhamet. O próprio cheiro doapartamentometrouxepazquandooaspireidaentrada;eusabia,pelaexperiência,quealapiseiradeFüsuneraoobjetocommaiorpoderconsolatóriodetodosnoapartamento,comsuaxícaradechá,queeunãolavaradesdeseudesaparecimento;leveiessesdoisobjetosparaacamacomigo.Depoisdemanuseá-losetocarminhapelecomelesporalgumtempo,finalmenteconseguirelaxar.Aosleitoresevisitantesdomuseucuriososporsaberseadorquesofriaquelediasedeviaàmorte

domeupaiouàausênciadeFüsun,gostariadedizerqueadordoamoré indivisível.Asdoresdoverdadeiroamorresidemnocernedenossaexistência;tomamcontadenossopontomaisvulnerável,fincamraízesmaisfundasqueasdequalqueroutradoreseramificamparatodasaspartesdenossoscorpos e nossas vidas. Para os irremediavelmente apaixonados, a dor pode ser desencadeada porqualquercoisa,sejaprofundacomoamortedeumpaioutãomundanaquantoamásortedeperderuma chave, por exemplo; é uma dor elementar, que qualquer fagulha faz arder em chamas. Aspessoascujasvidas,comoaminha, foramtotalmenteviradasdoavessopeloamorpodemacreditarqueos outros problemas se resolverão assimquepasse a dor do amor,mas quando ignoramessesproblemaselessófazempiorareinfeccionar.Sentadonotáxinodiadoenterrodomeupai,conseguiformularclaramenteessespensamentos,

Page 175: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

masparaminhatristezanãoconseguiagirdeacordocomeles.Aangústiadoamormedisciplinara—trouxera-meamaturidade—,masemmatériadegovernodeminhamentedava-mepoucalatitudeparausararazãoqueamaturidademeconferia.Umhomemcomoeu,cativohaviatempodemaisdeumapaixãodestruidora,continuanorumoquesuarazãolhedizsererrado,mesmosabendoquealisó encontrarámais desgosto; com o tempo, verá com uma clareza cada vezmaior o quanto seucaminho estava errado. Em situações assim, ocorre um fenômeno interessante e raramenteassinalado:mesmoemnossospioresdias,arazãonãoparadefalarconosco;aindaquesobrepujadapelaforçadanossapaixão,continuaasussurrar,comumafranquezaimpiedosa,quenossosatossóservemparaacentuarnossapaixão,eportantonossador.DuranteosprimeirosnovemesesdepoisqueperdiFüsun,minha razão continuava ame sussurrar sempre, comumaurgência cada vezmaior,dando-me a esperança de que um dia conseguiria reassumir o controle de minha mente e meresgatar.Masoamorquesemesclavaaessaesperança(mesmoaesperançamaissimples,deumdiaconseguirviversemdor)dava-meaforçadeprosseguiremfacedaminhaagonia,aomesmotempoemqueaprolongava.Deitado no apartamento do edifício Merhamet, reconfortando-me com as coisas de Füsun (a

perdademeupaiagoramisturadaàperdadomeuamornumamálgamadesolidãoedesencanto),comeceiaentenderporqueFüsunesuafamílianãotinhamvindoaofuneral.Aindaassim,relutavaemaceitarquetiaNesibeeseumarido,quesemprederamtantaimportânciaàsrelaçõescomminhamãeeorestodafamília,tivessemdeixadodevirporminhacausa.PoisessaconclusãosignificavaqueFüsunesua famíliaestavamdeterminadosameevitarpara sempre.Apossibilidadedequeeunãovoltasse a vê-lapelo restodaminha vida era tão intolerávelqueeunãoconseguiria suportá- lapormuitotempo;precisavaencontrarummeiodecultivaresperançasdeverFüsunnofuturopróximo.

48.Acoisamaisimportantenavidaéserfeliz

“OuvidizerquevocêculpaKenanpelosproblemasdaSatsat”,sussurrouOsmanemmeuouvidocertanoite.Elesempreiavisitarminhamãenofinaldatarde,àsvezescomBerrineascrianças,masnormalmenteiasozinhoparajantarmosatrês.“Ondevocêouviuisso?”“Euouçocoisas”,disseOsman.Minhamãeestavanasalaaolado;elefezumgestoemsuadireção.

“Você caiu em desgraça na sociedade, mas pelo menos não se cubra de vergonha na empresa”,continuoueleemtomimpiedoso.(EmboraOsmandetestasseapalavra“sociedade”tantoquantoeu.)“Aculpaésuadetermostidoprejuízononegóciodoslençóis.”“Oqueestá acontecendo,doquevocês estão falando?”,perguntouminhamãe. “Por favor,não

discutamdenovo!”“Nãoestamosdiscutindo”,disseOsman. “Eu sóestava falandocomoébom terKemaldevolta.

Vocênãoconcorda,mamãe?”“Ah,sim,meufilho,émaravilhoso.Digamoquedisserem,acoisamaisimportantenavidaéser

feliz.Estacidadeestácheiademoçasbonitas;vocêaindavaiencontrarumaquesejamaisbondosa,

Page 176: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

maisbonita emais compreensiva.Afinal,umamulherquenãogostade gatosnunca vai fazerumhomemfeliz.Nenhumdenósdeveperdermaistempopensandonoqueaconteceu.Sómeprometaquevocênuncavaivoltaramorarnumhotel.”“Com uma condição”, disse eu, repetindo infantilmente o ardil de Füsun nove meses antes.

“Queroficarcomocarrodomeupai,ecomÇetin.”“Deacordo”,disseOsman.“SeÇetinconcordar,eutambémconcordo.Masvocêprecisapararde

encrencarcomKenaneonovonegócio.Nãoqueroquevocêfalemaldele.”“Eeunãoquerovocêsdoisdiscutindonafrentedetodomundo,nunca!”,disseaminhamãe.DepoisdemeseparardeSibeleuficaramaisdistantedeNurcihan;assimquemedistancieidela,

comeceiavermuitopoucoMehmet,queaindaestavaloucamenteapaixonado.Zaim,porsuavez,passavamaistempocomeles,entãoquandonosencontrávamoséramossónósdois,eaospoucosfuime retirando do grupo. Por um tempo, saí comHilmi, oBastardo,Tayfun e outros que, emboracasados,noivosoupraticamentenoivos,aindacultivavamcertoapegopeloladomaisboêmiodavidanoturna,visitandoosbordéismaiscarosdacidade,ouentãosaíacomamigosquesabiamquaishotéistinham os saguões frequentados pelas moças um pouco mais refinadas e instruídas que, debrincadeira, chamávamosde “asuniversitárias”;na verdadeeunãoestava àprocuradediversão; oqueesperavaencontrareraumacuraparaaminhadoença,masmeuamorporFüsunemergiradassombras e tomara contade todoomeucorpo.Embora fosse agradável estar entre amigos, eunãoconseguiasentir-meàvontadeeesquecermeusproblemas.Assim,namaioriadasnoites,ficavaemcasa, sentado ao lado de minha mãe, com um copo de rakı na mão, assistindo ao que estivessepassandonoúnicocanaldeTV,controladopeloEstado.Minhamãe continuava como no tempo em quemeu pai vivia: crítica impiedosa de tudo que

aparecianatela;pelomenosumavezpornoite,elamediziaparanãobebertanto,comocostumavafazercommeupai,edepoisadormeciaemsuapoltrona.FatmaHanım,aempregada,eeuapartirde então éramos obrigados a conversar aos sussurros sobre o que aTVmostrava. À diferença dasempregadasquetrabalhavamparafamíliasricasquevíamosnosfilmesocidentais,FatmaHanımnãotinhaumatelevisãoemseuquarto.Porquatroanosjá,desdequeastransmissõestinhamcomeçadoetínhamos comprado nosso aparelho, Fatma Hanım vinha toda noite para a sala de estar e seequilibravaumtantoprecariamentenobancodobarqueficavanaoutraextremidadedasala—eaessaalturajáconsiderávamosaquelebancoo“lugardeFatma”—edelongeassistiajuntoconosco,mexendononóde seu lençonacabeçanosmomentosmaisdramáticos,eàs vezesarriscandoumcomentário. Depois damorte demeu pai, cabia a ela responder aos intermináveismonólogos daminhamãe,eentãoaouvíamoscommaisfrequência.Umanoite,depoisqueminhamãecochilou,uma prova de patinação foi transmitida ao vivo; enquanto víamos, tão ignorantes das regras dacompetição quanto o resto da Turquia, os soviéticos e noruegueses passar com suas pernascompridas,FatmaHanımeeuconversamossobreocalorquefazia,osassassinatospolíticosnasruas,asaúdedeminhamãe,afutilidadedapolíticaeofilhodela,que,depoisdetrabalharcommeupai,emigrara para Duisburg, na Alemanha, para abrir um restaurante de döner— noutras palavras,falávamosdascoisasboasdavida,quandoelafinalmenteabordouoassuntocomigo.“UnhasdeGarra,agoravocêparoudeabrirfurosnasmeias,oqueémuitobom.Percebiquetem

Page 177: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

cortadoasunhas,emuitobemcortadas.Entãovoulhedarumpresente.”“Umcortadordeunhas?”“Não,jáexistemdoisnacasa.Três,contandocomodoseupai.Éoutracoisa.”“Oqueé?”“Venhaaquidentro”,disseFatmaHanım.Pela sua atitude percebi que era algo especial, então fui. Entrando em seu quarto, ela pegou

alguma coisa; depoisme levou atémeu quarto e acendeu a luz; abriu a palma damão, como seexecutasseumtruquedemágicaparaumacriança.“Oqueé?”,perguntei,antesquemeucoraçãocomeçasseabatercomforça.“Éumbrinco.Oqueéisso—umaborboletacomumaletra?Nãoéestranho?”“Émeu.”“Euseiqueéseu.Muitosmesesatrás,encontreinobolsodoseupaletó.Pusdelado,paraentregar

avocê.Massuamãeviuepegou.Deveterachadoqueseuqueridofinadopaitinhacompradoparaalguémeresolveuestragaroarranjo,oucoisaassim.Dequalquermaneira,elatinhaumasacoladeveludosecretaondeescondiacoisasdoseupai”—FatmaHanımsorriu— “coisasqueroubavadoseu pai e escondia dele.Depois que elemorreu, suamãe esvaziou a sacola e espalhou tudo quecontinhaemcimadaescrivaninha;quandoviobrincoreconhecinamesmahoraepegueiparavocê.Aindaguardeiumafotografiaqueencontreinumdosbolsosdoseupai.Fiquecomelatambém,antesqueasuamãeencontre.Fizbem?”“Fez muito bem, Fatma Hanım”, eu disse. “Você é muito esperta, muito sábia e uma pessoa

maravilhosa.”Comumsorrisofeliz,elameentregousuasdádivas.Afotografiaeraaquemeupaimemostrarano

restaurantedeAbdullah:umretratodesuaamadamorta.Olhandoagoraparaessamoçatristeeosnavioseomaraofundo,viderepentesombrasdeFüsun.Nodia seguinte ligueiparaCeyda.Doisdiasmais tarde, voltamos anos encontrar emMaçkae

caminhamosatéoparqueTaşlık.Seucabeloestavapresonumcoque,elairradiavaafelicidadequesósevêemquemacabadesermãe,elogopudeverqueelatinhaadquiridoaconfiançaqueapessoasentequandoéobrigadaacrescerdepressa.Nosúltimosdoisdias,semmuitoesforço,euescreveraquatro ou cinco cartas para Füsun, finalmente enfiando a mais contida e moderada delas numenvelopepardodaSatsat.Comoplanejaradeantemão,franziorostoaoentregaroenvelopeaCeyda,dizendoqueumanovidademuito importante tinhaacontecidoequeelaprecisava seassegurardequeFüsun iria receber aquela carta.Meuplano eranãodizernada aCeyda sobre o conteúdodacarta, criando tamanho mistério que ela não pudesse deixar de entregá-la. Os modos sensatos emadurosdeCeydamedesarmaram,e foicomgrandeanimaçãoqueconteiaelaqueacartadiziarespeito a uma questão que deixara Füsun muito aborrecida comigo, e que quando recebesse anotíciaqueeulheenviavaficariamuitocontente,comoeuestava,eque,excetopelotempoperdido,nossos problemas tinham acabado.Quandome despedi deCeyda, que corria para casa a fim dealimentarseubebê,eulhedisseque,assimqueFüsuneeunoscasássemos,teríamosumfilhoqueseriaamigodofilhodela,equeumdiaacabaríamosrindodetodososproblemasecomoçõesquesempreafetamaprocuradoverdadeiroamor.Pergunteiaelaonomequederaaseumenino.

Page 178: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Ömer”,respondeuCeyda.“Masavidanuncaacontecedamaneiracomoqueremos,KemalBey.”QuandosemanassepassaramsemumarespostadeFüsun,aspalavrasdedespedidadeCeydame

voltaram muitas vezes, mas jamais duvidei de que Füsun fosse responder, pois Ceyda tinhaconfirmado que Füsun sabia que eu romperameu noivado.Naminha carta, eu contava que seubrincotinhaaparecidonumacaixademeupai,equeeuqueriaentregá-lodevolta,juntamentecomaqueleoutropardebrincosdemeupaiqueeutentaralhedar,maisovelocípede.Tinhachegadoomomentodaquelanoitequetínhamosplanejadohaviatantotempo,emqueeuiriaàsuacasajantarcomseuspais.Nomeiodemaio,numdiamuitomovimentado,estavanoescritóriolendoacorrespondênciade

nossosdistribuidoresnasprovíncias,comoutrascartas,pessoaiseprofissionais,contendoofertasdeamizade, agradecimentos, queixas, desculpas e ameaças. Amaioria tinha sido escrita àmão, e euprecisavame esforçar para ler algumas delas, pois não conseguia decifrar a caligrafia— e entãodepareicomumacartamuitobreve,quedevoreicomocoraçãoaossaltos:PrimoKemal,Nóstambémgostaríamosmuitodevê-lo.Esperamossuapresençaparajantarnodia19demaio.Nossalinhatelefônicaaindanãofoiligada.Senãoforpossívelvirnosvisitar,porfavormandeÇetinEfendinosavisar.Comnossoafetoerespeito,FüsunEndereço:ruaDalguç24,Çukurcuma

Nãohaviadatanacarta,maspelocarimbopostalpudeverquetinhasidoremetidadaagênciado

correioemGalatasaray,nodia 10demaio.Odia 19eradali amaisdoisdias,e,emboraeu tenhapensadoemsaircorrendonamesmahoraparaoendereçodeÇukurcuma,conseguimeconter.Semeuobjetivoeracasar-mecomFüsunnofinaleunir-meaelaparasempre,eudeviaterocuidadodenãomemostrarmuitoansioso,pensei.

49.Eupretendiapediraelaquesecasassecomigo

Na quarta- feira 19 demaio de 1976, às sete emeia, parti para a casa da família de Füsun emÇukurcuma,dizendoapenasaÇetinEfendiqueíamosdevolverumvelocípedeatiaNesibe.Dei- lheoendereçoemerecosteiemmeuassento,olhandoparaachuvaquecaíanasruas,comosealguémderramasseumcopo gigantesco.Nunca, emmeusmilhares de sonhos sobrenosso reencontro, euimaginaraumdilúviosemelhante,nemmesmoumachuvaleve.Parandono edifícioMerhametparapegar o velocípede e a caixa comosbrincosdepérolaque

meu pai me dera, fiquei completamente ensopado. Ainda totalmente ao contrário das minhasexpectativas,sentiaamaiscompletapaznocoração.EracomosetivesseesquecidotodaadorquesentiradesdeaúltimavezqueavinoHilton,trezentosetrintaenovediasantes.Lembro-meatédesentircertagratidãoporcadaminutoquepassaracontorcendo-medeagonia,poismetrouxeraatéaquelefinalfeliz.Nãoculpavanadanemninguém.

Page 179: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Via estendida à minha frente a mesma vida maravilhosa que imaginava no começo da minhahistória.PareinumfloristadaavenidaSıraselvilerepediquemefizessemumimensobuquêderosasvermelhastãobeloquantominhavisãodofuturo.Parameacalmar,tinhatomadomeiocopoderakıantes de sair de casa.Devia parar paramais um em algumameyhane, uma das tavernas das ruassecundáriasque levavamaBeyoğlu?A impaciência, aexemplodador, tomavaconta. “Cuidado!”,avisava-meumavozinterior.“Dessavezvocênãopodeerrar!”EnquantopassávamospeloHamamdeÇukurcuma, envolto em chuva, percebi subitamente a boa lição que Füsun me ensinara comaqueles trezentose trintaenovediasdeagonia:elavencera.Euestavaprontopara fazeroqueelaquisesse, a fim de evitar a pena de nuncamais tornar a vê-la.Depois que eume recuperasse daemoçãoinicial,depoisquetivessecertezadequeFüsunestavaameulado,pretendiapediraelaquesecasassecomigo.EnquantoÇetinEfendi tentava enxergar através da chuvaparadistinguir osnúmerosdas casas,

invoqueiacenadopedidodecasamento,quejáimaginaraemalgumpontodamente,mantendo-ooculto daminha consciência.Depois de entrar na casa e entregar o velocípede, de fazer algumaspiadas,demesentaremeinstalar—conseguiriamesairbem?—,eutomariaumgoledocaféqueFüsunme traria e, reunindo toda a coragem, fitaria seupaidiretonosolhos e lhediria àqueima-roupaquevierapediramãodesuafilha.Ovelocípedeerasóumadesculpa.Riríamosdaquilo,comodetantosoutrosgracejosdestinadosaevitarqualquermençãoàsagoniasouaosdesgostosquetinhacausadoaeles.EnquantotomavaoYeniRakıqueseupainaturalmentemeserviriaàmesa,euolharianos olhos de Füsun eme regalaria com a felicidade queminha decisãome trouxera. Poderíamosdiscutirosdetalhesdonoivadoedocasamentonumaoutraocasião.Ocarroparouemfrenteaumprédioantigo;achuvatornavaimpossívelverquetipodeestrutura

era.Comocoraçãodisparado,batinaporta.QuasenamesmahoratiaNesibeveioabrir.Enquantolevavaovelocípedeparadentro,lembrei-medecomoelaficouimpressionadaaoverÇetinEfendi,queseguravaumguarda-chuvaameulado,edecomoficouencantadacomasrosas.Percebialgumdesconfortoemsuaexpressão,masnãomeperturbei,poiscadadegraudasescadasmelevavamaisparapertodeFüsun.OpaideFüsunestavaàminhaesperanopatamar.“Bem-vindo,KemalBey.”Eumeesquecerade

queo tinhavistoumanoantesna festadenoivado,e imaginavaquenãonos tivéssemosabraçadodesdeaúltimarefeiçãoemfamílianaFestadoSacrifício.Aidadenãoprejudicarasuabelaestampa,comoocorretantasvezes;simplesmenteotornaramenosvisível.EntãoacheiquedeviaestarvendoumairmãdeFüsun,porqueali,depéaoladodopainaporta,

vinãoFüsun,masumabeldadedecabelosescurosparecidacomela.Aomesmotempoemqueessaideiameocorria,percebiqueeraFüsun.Foiumchoquetremendo.Seucabeloestavanegro.“Acornatural,claro!”,penseicomigo,enquantotentavaacalmarmeusnervos.Entrei.Meuplanotinhasidoignorarseuspais,entregar- lheasfloresetomá-laemmeusbraços,masficouclaroporsuaexpressão,eporseudesconfortoaoseaproximardemim,quenãoqueriaqueeuaabraçasse.Trocamosumapertodemãos.“Ah,quelindasrosas!”,disseela,semtirá- lasdasminhasmãos.Sim, claro, ela estava belíssima; tinha amadurecido. E percebia o quanto me abalava um

Page 180: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

reencontrotãodiversodoqueeuimaginara.“Nãosãolindas?”,perguntouela,dirigindo-seaalgumaoutrapessoapresentenasala.Meuolharencontrouapessoaqueelaindicara.Aprimeiraideiaquemepassoupelacabeçafoi:

“Mas não podiam ter escolhido outra noite para convidar esse vizinho simpático, gorducho eadolescente?”.Maisumavez,porém,aomesmotempoemquemeocorriaaquelepensamento,eusabiaqueestavaenganado.“PrimoKemal, queria apresentá-lo aomeumarido, Feridun”, disse ela, tentando soar como se

tivesseacabadodeselembrardeumdetalhequaseinsignificante.OlheiparaessehomemchamadoFeridun,nãocomoumapessoadeverdade,mascomosefosse

umamemóriaobscuraqueeunãoconseguialocalizarcomprecisão.“Casamos cincomeses atrás”, disse Füsun, erguendo as sobrancelhas como seme desse tempo

paraafichacair.Davaparadizer,pelamaneiracomoaquelegordinhoapertouminhamão,queelenãosabiade

nada.“Ah,queprazerconhecê-lo!”,disse-lheeu,esorrindoparaFüsun,escondidaatrásdomarido,disse:“Vocêéumhomemdemuitasorte,FeridunBey.Nãosósecasoucomumajovemlinda,masagoraelaéproprietáriadeummagníficovelocípede”.“KemalBey,quisemostantoconvidá-loparaocasamento”,disseamãedela.“Masouvimosdizer

que seu pai estava doente.Minha filha, em vez de se esconder atrás do seumarido, por que nãoencontraumvasoparaaslindasfloresqueaindaestãonasmãosdeKemalBey?”Minhaamada,quenãoseausentaradosmeussonhosumdiasequerdoanointeiro,tirouasrosas

dasminhasmãoscomumgestodiscretoeelegante,primeiroaproximando-seosuficienteparaeuvero tomcoradode suas faces, seus lábios sempre convidativos, sua pele de veludo e seupescoço, enaquelemomentoeuteriafeitoqualquercoisasóparagarantirquepassariaorestodavidanaquelaproximidade. Aspirei a fragrância de seu colo exposto antes que ela recuasse. Fiquei acachapado,atônitocomsuaexistênciaconcreta,comoalguématurdidocomarealidadedomundonatural.“Ponhaasrosasnumvaso”,dissesuamãe.“KemalBeyvaiaceitarumrakı,nãovai?”,perguntou-meopaidela.“Tritritri”,disseseucanário.“Ah,sim,euadoraria,sim,aceitoumrakı.”Trouxeram-medoisrakıscomgeloetomeiosdoisdeumgole,deestômagovazio,esperandoque

fizessemefeitoimediato.Lembro-medeterfaladoporalgumtemposobreovelocípedequetrouxeracomigo e de ter contado algumasmemórias de infância, antes de nos sentarmos para jantar.Masinfelizmente ainda estava sóbrio a ponto de saber que agora ela era casada e eunãopoderiamaisdemonstraraqueleadorávelamorfraternoqueesperavaevocarcomovelocípede.Füsunsentou-seàminhafrente,comoqueporacaso(elaperguntaraàmãeondedeviasentar-se),

masnãomeolhounosolhos.Duranteosprimeirosminutos,fiqueitãochocadoqueacrediteiqueelanãoseinteressassepormim.Eu,porminhavez, tentavaaparentarquenãotinhanenhuminteresseporela,comoumprimoricoebem-intencionadoquetivessevindotrazerumpresenteatrasadodecasamentoaumaprimamaispobre,enquantocoisasmaisimportantesmeocupavamamente.“Eentão,quandovêmascrianças?”,perguntei,semprenomeupapel,olhandoprimeironoolho

Page 181: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

deFeridun,masnãodeixandodemedirigiremseguidaaFüsun.“Nãoestamospensandoemterfilhoslogo”,respondeuFeridun.“Talvezdepoisdenosmudarmos

paraumacasaprópria.”“Feridunémuitojovem,maséumdosroteiristasmaissolicitadosdeIstambul”,dissetiaNesibe.

“FoielequemescreveuAvelhavendedoradesimits.”Passei a noite toda pelejando para fazer aquilo entrar naminha cabeça.Em intervalos, durante

todaanoite, imaginavaqueaquelahistóriadecasamentonãopassassedeumapiada,quetivessempedidoao filhogorduchodeumvizinhopara sepassarpornamoradode infânciaeagoramarido,umaliçãofinalparamimque,nofimdanoite,elesdesmentiriam.Finalmente,àmedidaqueficavasabendodemaiscoisassobreojovemcasal,acabeiaceitandoqueeramcasados,masentão,àmedidaquemerevelaram,acheiváriosdetalhesdessarealidadeinaceitáveis:FeridunBey,aquelegenroquemorava com a família damulher, tinha vinte e dois anos de idade e se interessava por cinema eliteratura;emboraaindanãoganhassemuitodinheiro,alémdosroteirosqueescreviaparaaYeşilçam,escreviapoemas.Descobrique,comoparentedistantepeloladodeseupai,elebrincaracomFüsunnainfância,eque,quandoeramenino,chegaraatéaandarnomesmovelocípedequeeutrouxera.Ao ouvir tudo isso, senti minha almamurchar dentro de mim, abalada pelo rakı que Tarık Beycontinuava a despejar solícito emmeu copo. Sempre que eu entrava numa casa nova, sentia-medesconfortávelatésaberquantosaposentostinha,paraqualruadavaavarandaeporquecertamesatinhasidocolocadanaposiçãoqueocupava,masnenhumadessasquestõesmepassoupelacabeça.Meuúnicoconsoloeraestarsentadoemfrenteaelaepoderadmirá-la,comoumapintura.Suas

mãosestavamemmovimentoconstante,exatamentecomoeumelembrava.Emboracasada,aindanãofumavanapresençadeseupai,eisso,aidemim,significavaqueeunãopodiavê-laacenderumcigarrocomaquelesseusgestosadoráveis.Masduasvezeselapuxouparatrásoscabelosdamaneiracomo costumava fazer, e três vezes, antes de entrar na conversa, respirou fundo— como semprefaziaquandodiscutíamos—eergueudeleveosombros,comoseesperasseasuavez.Quandoeuaviasorrir,aesperançaeaalegriaafloravamemmimcomaforçadegirassóisseabrindo.Suabelezaeseusgestos,dequeeugostavatanto,esuapeleluminosamelembravamqueocentrodomundo,ocentroparaoqualeuprecisavaviajar, ficavaaoladodela.Todasasoutraspessoas, todososoutroslugaresepassatemposnãopassavamde“exaltaçõesvulgares”.Enãoerasónomeuespíritoqueeusabiadisso,eraemmeucorpo;assim,sentadoàfrentedela,tudoqueeudesejavaeralevantar-meetomá-la em meus braços. Mas, cada vez que tentava contemplar minha situação e seusdesdobramentos,adoremmeucoraçãoeratantaquenemconseguiapensar.Eentãonãoerasóparaconsumoexternoquecontinuavaafazermeupapeldoprimoquevieraparabenizarojovemcasal:era também para mim mesmo. Embora nossos olhos mal tenham se encontrado durante aquelejantar,Füsunentrounojogodesdeoinício,e,enquantoeucontinuavaarepresentar,feztudooquesepodiaesperardeuma jovemrecém-casada recebendoumprimoricodistantequevieravisitá- laemseucarrocomchofer,brincandocomomaridodando-lhecolheradasdefavasnaboca.Oqueprovocavaecossinistrosnosilênciodaminhamente.A chuvaque começara a cair aindamais forte que emmeucaminhode idanãodava sinais de

ceder.TarıkBeyjámedissera,noiníciodojantar,queobairrodeÇukurcumatinha,comoonome

Page 182: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

em turco indica, a topografiadeuma tigela, e que sódepois de comprar a casano verãopassadoficaramsabendodasinundaçõesquesofreramuitasvezesnopassado,demaneiraquefuicomeleatéajanelaveraenxurradaquedesciadoaltodaladeira.Muitosdeseusvizinhosestavamnarua,comascalçasarregaçadasedescalços,usandobaldesdezincoebanheirasdeplásticoparaesgotaraáguaquesubiapelacalçadaeentravadiretoemsuascasas,empilhandopedrasepanosparaformardiquesimprovisados. Enquanto dois homens descalços forcejavam para desobstruir um bueiro entupidocomasmãos,duasmulheres,umadecabeçacobertacomumlençoverdeeoutracomumlençoroxo,apontavamcominsistênciaparaoutraquepassavanaenchente,aosgritos.Àmesa,TarıkBeycomentara em tommisteriosoqueos bueiros da região, quedatavamda era otomana,nãodavammaiscontadaágua.Semprequeobarulhodachuvase intensificava,alguémdiziaalgocomo“Oscéusabriramascomportas”,“Éodilúvio!”ou“Deusnosacuda”,eentãoselevantavadamesaparaacompanharansiosamentepelajanelaaságuasdaenchenteeavizinhança,agoratransfiguradaàluzfracadoslampiões.Eutambémmesentiobrigadoamelevantar,solidáriocomomedodeles,masestava tãobêbadoque fiquei com receiodenão conseguirmanter-medepé e acabar derrubandomesasecadeiras.“Comoestaráseumotoristaláfora?”,dissetiaNesibe,olhandopelajanela.“Levamosalgumacoisaparaelecomer?”,perguntouonoivo.“Eupossoirlálevar”,disseFüsun.Mas tia Nesibe, pressentindo que eu podia não gostar da ideia, mudou de assunto. Por um

momento,sentiqueeraumbêbadosolitáriosoboescrutíniodesconfiadodafamíliareunidajuntoàjanela.Demaneiraquemevireiparaelesesorri.Exatamentenessemomentoumestrépitoocorreuna rua— umbarril tinha tombado— e ouvimos alguémgritar de dor. Füsun e eu trocamosumolhar.Maseladesviouosolhosnamesmahora.Comoeracapazdedemonstrartãopoucointeresse?Eraoqueeugostariadelheperguntar.Mas

nãocomoumconfusoamanterejeitadoque,quandolheperguntamporquenãoseafastadaamada,alegaqueprecisaperguntar- lhe algumacoisa!Sóquea verdadeéqueeraexatamenteesseomeucaso.Elasabiaqueeuestavasentadoalisozinho,entãoporquenãovierasentar-seameulado?Porque

nãoaproveitaraaquelaoportunidadeperfeitaparameexplicartudo?Novamentetrocamosumolharedesviouosolhos.AgoraFüsunvirásentar-seaseulado,disseumavozotimistadentrodemim.Seelaviesse,seria

umsinaldequeumdiadesistiriadaquelaligaçãoequivocada,divorciando-sedomaridoevindoparamim.Oscéusrugiam.Füsunseafastoudajanelae,dandocincopassos,flutuouatéamesacomouma

pluma,sentando-seàminhafrenteemsilêncio.“Eupeçoquemeperdoe”, disse elanum sussurroqueperfuroumeucoração. “Nãopude ir ao

funeraldoseupai.”Obrilhoazuladodeumrelâmpagorefulgiuentrenóscomoumretalhodesedaaovento.“Fiqueiàsuaespera”,disseeu.“Imaginei,maseujamaispoderiaterido”,disseela.

Page 183: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Otoldoilegalemfrenteàmerceariafoilevadopelovento,vocêsviram?”,disseFeridun,omaridodela,enquantovoltavaparaamesa.“Nósvimos,foiumapena”,disseeu.“Penacoisanenhuma”,disseopai,voltandodajanela.Vendoafilhacomasmãoscobrindoorosto,comoumameninaemlágrimas,eleprimeiroolhou

ansiosoparaogenroedepoisparamim.“AindasintomuitopornãoteridoaofuneraldotioMümtaz”,disseFüsuncomvoztrêmula.“Eu

gostavatantodele.Fiqueitãotriste.”“Füsunadoravaoseupai”,disseTarıkBey.Passandopelafilha,beijou-lheacabeçae,aosentar-

se,sorriuemeserviumaisumrakı.Emseguida,ofereceu-meumpunhadodecerejas.Euaindaimaginava,emminhaembriaguez,omomentoemquetirariadobolsoacaixadeveludo

demeu pai comos brincos de pérolas, e depois o brinco único que pertencia a Füsun,mas essemomentonuncapareciachegar.Revirando-mepordentro,pus-medepé.Nãoconseguificareretoparalheoferecerformalmenteosbrincos;pelocontrário,precisavacontinuarsentado.Pelamaneiracomopai e filhaolhavamparamim,percebiqueeles tambémestavamàesperade algumacoisa.Talvez quisessem que eu fosse logo embora, mas não, de alguma forma a atmosfera da saladenunciava outro tipo de expectativa. Eu sonhara tantas vezes com aquela cena, mas em meussonhos, claro,Füsunnão estava casada, e imediatamente antes de oferecer- lhemeus presentes eupediasuamãoaseupai.Agora,minhamenteintoxicadamostrava-seincapazdedecidiroquefazercomosbrincosnaquelasituaçãoimprevista.Pensei que não podia pegar as caixas no bolso por causa demeus dedosmanchados de cereja.

“Possolavarasmãos?”,perguntei.Füsunnãoconseguiamaisignoraratempestadequeocorriadentrodemim.Sentindooolharpenetrantedeseupai,quelhedizia“Mostreaeleondefica,minhafilha!”,elasepôsdepétomadapelopânico.Vendo-adepéàminhafrente,minhasmemóriasdetodososnossosencontrosdeumanoantesadquiriramumavidarepentina.Penseiemabraçá-la.Todos sabemos comoamente funciona emdois planosdistintos quandonos embriagamos.No

primeiroplanoeuabraçavaFüsuncomonumsonho,comosetivéssemosnosencontradonumlugaralémdotempoedoespaço.MasnosegundoplanoestávamosdeladosopostosdaquelamesanacasadeÇukurcuma,eumavozatentaaosegundoplanomeadvertiaquenãopodiaabraçá-lademodoalgum,quefazê-loseriadesastroso.Noentanto,devidoàsmuitasdosesderakı,essavozmechegoucom atraso; em vez de coincidir com meu sonho de abraçar Füsun, só se fez ouvir cinco, seissegundos mais tarde. Durante esses cinco ou seis segundos minha vontade ficou à solta, eprecisamenteporessemotivonãoentreiempânico,masaseguiescadaacima.Aproximidadeentrenossoscorpos,amaneiracomosubimosaquelaescadatambémpertenciama

umsonhoforadotempo,eassimpermaneceriamnaminhamentepormuitosemuitosanos.Euvicompreensãoeintranquilidadeemseuolhar,esenti-megratoaelapelamaneiracomoexprimiaseussentimentoscomosolhos.Ali,maisumavez, ficavaclaroqueFüsuneeutínhamossidofeitosumpara o outro. Eu passara por toda aquela angústia devido à consciência desse fato, e não meimportavanemumpoucoqueelaestivessecasada; sódemesentir felizcomomesentiaagora,de

Page 184: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

subir as escadas em sua companhia, estava disposto a enfrentar qualquer tormento a mais. Aovisitanteaferradoao“realismo”,incapazdesuprimirumsorrisodiantedasminhaspalavrasdepoisdepercebercomoacasadeÇukurcumaerapequenaequeadistânciaentreamesaeobanheirodopisosuperiorseriatalvezdequatrooucincopassos,semcontarosdezessetedegraus,sópossoafirmarcomumaclarezacategóricaeliberalqueteriasacrificadoprontamenteminhaprópriavidaemtrocadafelicidadequesentinessebreveinterlúdio.Depoisdefecharaportadobanheirodoandardecima,concluíqueminhavidatinhaescapado

totalmenteameucontrole,queminhaligaçãocomFüsunlhederaumaformaqueindependiadaminhavontade.Sóacreditandonissoeupoderiaserfelizepoderianaverdadesuportarestarvivo.Napequenabandeja ao ladodo espelhoonde ficavamas escovas dedentedeFüsun, tiaNesibe e tioTarık,alémdecremedebarbear,pincelebarbeador,viobatomdeFüsun.Peguei-oeaspireiseuperfume,edepoisoguardeinobolso.Farejeimeticulosamentecadaumadastoalhaspenduradasnocabide,masnãodetecteinenhumaromadequeme lembrasse: comcerteza tinhamposto toalhaslimpas,devidoàminhavisita.Enquantopassavaemrevistaobanheiroacanhado,àprocurademaisalgumobjetoquepudessemerenderconsoloduranteosdiasdifíceisquetinhapelafrente,vi-menoespelho,eminhaexpressãomevaleucomoumaintimaçãochocantedoabismoqueseabriaentremeucorpoeminhaalma.Enquantomeurostoestavalívidodederrotaeespanto,pordentrominhacabeçaeraoutrouniverso:agoraeuentendia,comoumfatocrucialdavida,que,aomesmotempoemquemeencontravaali,dentrodomeucorpohaviaumaalma,umsignificado;quetodasascoisaseramfeitasdedesejo,tatoeamor,equeminhadorsecompunhadessesmesmoselementos.Entreorugidodachuvaeogorgolejodoencanamento,ouviumadasantigascançõesturcasque,naminhainfância,deixavamminhaavófelizsemprequeasouvia.Deviahaverumrádioligadoaliporperto.Entreosgemidosgravesdoalaúdeeavozmaisalegredokanun,haviaumavozfemininacansadamascheiadeesperança,quemechegavapelajanelaentreabertadobanheiro,dizendo:“Éoamor,éo amor, a razão de tudo no universo”. Com a ajuda dessa cantora, pude assim vivenciar um dosmomentosmaisprofundamenteespirituaisdaminhavida,depédiantedoespelhodaquelebanheiro;o universo era uno e formava uma unidade com tudo que nele havia.Não eram só os objetos domundo—oespelhoàminhafrente,opratodecerejas,otrincodobanheiro(queexponhoaqui)eumgrampode cabelodeFüsun (queeu, grato, tinha localizadoe guardadonobolso)—, toda ahumanidade tambémerauma coisa só. Para compreender o sentido desta vida, primeiro a pessoaprecisaperceberessaunidadeatravésdoefeitodopoderdoamor.FoinesseespíritoquetireidobolsoobrincodesemparelhadodeFüsuneodepusondeantesficava

seu batom. Antes de tirar do bolso os brincos de pérolas de meu pai, a mesma canção me fezrememorarasruasdavelhaIstambul,osamorestempestuososdequefalavamoscasaismaisvelhosinstaladosemsuascasasdemadeiraouvindoorádioeosamantesdestemidosquearruinavamsuasvidasporcausadapaixão.Inspiradonacançãomelancólicadorádio,compreendique,assimcomoeu me comprometera com outra mulher, Füsun estava plenamente justificada e na verdade nãotivera outra escolha senão salvar-sepelo casamento.Eme vi verbalizando isso tudo, enquantomeolhavanoespelho.Reconheciemmeusolhosalgoda inocênciaedadisposiçãoaobrinquedoquetinha quando criança, e emminhas experiências commeu reflexo fiz uma descoberta chocante:

Page 185: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

imitando Füsun, conseguia escapar à minha própria existência graças à força do meu amor;conseguiaimaginar—eatésentir—tudoqueocorriaemseucoraçãoeemsuamente;podiafalarpor suaboca, entender comoeramos sentimentos delanomomento exato emque ela própria ossentia—poiseueraela.O choque deminha descoberta deve termemantido naquele banheiro por um tempo fora do

comum. Alguém tossiu discretamente do lado de fora, acho.Ou bateu na porta, nãome lembrobem, porque “a fita partiu”. Era a expressão que usávamos quando éramos mais moços edesmaiávamosnasfestasdetantobeber,aludindoàquelasinterrupçõesirritantesnocinema,quandomuitosdesejavammataroprojecionista.Dequemaneiraacabeisaindodobanheiro,dequemaneiraretorneiàminhacadeira,comqualdesculpaÇetinsubiuemeconduziuportaafora,dessascoisasnãotenhonenhumalembrança.Haviaumsilêncioemtornodamesa;dissoeumelembro,masseeradevidoàchuvaquecaíacommenosforça,ameuconstrangimento,queninguémtinhamaiscomoesconder ou ignorar, ou simplesmente à derrota que me demolia, com uma dor que se tornavapalpável—issonãoseidizer.Longe de se inquietar com esse silêncio, o genromanifestava seu entusiasmo pela indústria do

cinema— talvezeu tenhaditoemvozaltaqueminha fita tinhapartido,eele tenhaaproveitadoadeixa — com uma mistura de amor e horror, dizendo como os filmes turcos eram ruins,especialmenteos feitosnaYeşilçam, embora o povo turco fosse louco por cinema.Eramopiniõesabsolutamente correntes naquela época. Filmes incríveis podiam ser feitos, bastando apenasconseguir um financiador sério, decidido e sem ambições financeiras excessivas; ele escrevera umroteiroquetinhaaintençãodeverestreladoporFüsun,masinfelizmentenãoconseguiraencontrarquemoproduzisse.Oquemepreocupounão foi queomaridodelaprecisassededinheiro enãotivessepejodedizê-lo;foiqueFüsunpudessetransformar-senuma“estreladocinematurco”.Acaminhodecasa,semiconscientenobancodetrásenquantoÇetindirigiaocarro, lembro-me

detersonhadoqueFüsunsetornaraumaatrizfamosa.Pormaisembriagadaqueapessoapossaestar,semprehámomentosemqueasnuvenscarregadasdedoreconfusãosedispersam,emqueporuminstante conseguimos enxergar a realidade que acreditamos ou desconfiamos que todos os outrosestejam vendo; pois aqui, enquanto Çetin dirigia e eu me recostava no banco traseiro do carro,olhandoparaasavenidasescuraseinundadas,houveummomentodesúbitalucidez,eentendiqueFüsuneseumaridomeviamcomoumparentericoquepodiaajudarseussonhosdefazercinema.Foi por isso que me convidaram para jantar.Mas, amortecido como estava pelo rakı, não fiqueiressentido;emvezdisso,continuavaameentregarasonhoscomFüsuntransformadaematriz,tãofamosaqueeraconhecidaemtodaaTurquia,nãoumasimplesatriz,masumaglamorosaestreladecinema:naestreiadeseufilmemaisrecente,nocinemaPalace,elachegavadebraçodadocomigosob os aplausos da plateia e subia ao palco. E naquelemomento o carro passava exatamente porBeyoğlu,bememfrentedoPalace!

50.Eraaúltimavezemqueeuaveria

Page 186: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Na manhã seguinte, vi as coisas como realmente eram. Na noite anterior, nas mãos daquelaspessoas,meuorgulho fora reduzidoapedaçoseeu tinhacaídonoridículo,atéadegradação,masforahumilhadocommeuconsentimento,viaagora,portermeembriagadoàqueleponto.Emborasoubessem o quanto eu era apaixonado por sua filha, os pais de Füsun devem ter participado doplano,tendoconcordadocomaqueleconviteparajantarembenefíciodossonhosinfantiseestúpidosdogenro,decididoasetornarcineasta.Nuncamaiseutornariaaveraquelaspessoas.Quandosentios brincos domeu pai no bolso domeu paletó, fiquei contente. Eu devolvera a Füsun o brincodesemparelhado, mas não tinha permitido que o presente valioso do meu pai parasse nas mãosdaquelaspessoasquesóqueriamsaberdomeudinheiro.Depoisdeumanodesofrimento,tambémforasalutarverFüsunpelaúltimavez:oqueeusentiaporelanãoeraumamordevidoàsuabelezaouàsuapersonalidade;eraapenasumareaçãosubconscienteaSibeleaoprojetodemecasarcomela.Embora eu nunca tivesse lido uma linha deFreud, lembro queme apropriei do conceito desubconsciente,amplamentediscutidonosjornais,paraconferiralgumsentidoàminhavidanaquelemomento.Nossosancestraiseramassoladospordjinnsqueoslevavamaagircontraavontade.Eeutinha omeu “subconsciente”, queme levara não só a um ano demuito sofrimento por causa deFüsun,masaindaanovosconstrangimentosqueeujamaispoderiaterimaginado.Nãopodiamaismecomportarcomoumfantochedela;precisavavirarapáginadaminhavidaeesquecertudoquetinhaavercomFüsun.Meuprimeirodesafiofoitiraroconvitedomeubolsoerasgarempedacinhosaquelepapelqueeu

guardara com cuidado em seu envelope. Na manhã seguinte fiquei na cama até o meio-dia,finalmente determinado a barrar aquela obsessão imposta pelomeu subconsciente.Dar um novonome àminha dor e àminha degradação conferia-me forças renovadas para combatê-las.Minhamãe, vendo o tamanho de minha ressaca da noite anterior, prostrado na cama, mandou FatmaHanım a Pangaltı a fim de comprar camarões graúdos para o almoço;mandou prepará-los numacaçarolacomalho,damaneiracomoeugostava,acompanhadosdealcachofrascomazeiteemuitolimão.Aplacadoporminhadecisãodenuncamais tornaraverFüsune sua família, saboreeimeualmoçoapreciandocadabocado,tomandoatéumataçadevinhobranco,aexemplodeminhamãe.ElamecontouqueBillur,afilhamaisnovadafamíliaDağdelen,quefizerafortunaoriginalmentecom estradas de ferro, tinha terminado o liceu na Suíça e acabara de completar dezoito anos nasemanapassada.Afamília,quemaisrecentementeentraraparaoramodaconstrução,passavaagoraporummomentodifícil e, incapazdequitar vários empréstimos obtidos sabe-se lá graças a quaiscontatosepagandosabe-seláquantapropina,osDağdelenestavamansiososporcasarafilhaantesquesuasdificuldadessetornassempúblicas.Parecequeabancarrotaeraiminente.“Edizemqueamoçaélinda!”,contouela,comumardeestímulo.“Sevocêquiser,possoirdarumaolhada.Nãoaguento ficar sentada vendo você passar toda noite bebendo com seus amigos homens, comoumbandodeoficiaisdeserviçonointerior.”“Podeirvercomoéessamoça,minhamãe”,disseeu,semsorrir.“Tenteiasortecomumamoça

modernaqueescolhiporminhaconta—passeialgumtempocomelaeempregueimeutempoemconhecê-la,masnãodeucerto.Vamostentarumcasamentoarranjadodestavez.”“Oh,meuqueridofilho,sesoubessecomomedeixafelizouvirvocêfalarassim”,disseela.“Claro,

Page 187: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

vocês ainda podem se conhecermelhor e sair juntos…Vocês têm um lindo verão pela frente; otempotemestadotãolindo,vocêsdoissãojovens...Olhe,destavezeuqueroquevocêatratebem.QuerqueeulhedigaporqueseunoivadocomSibelnãodeucerto?”Naquelemomento percebi queminhamãe sabia de tudo sobre Füsun,mas preferia encontrar

outromododeexplicarumaocorrênciadolorosa—assimcomonossosancestraispunhamaculpade tudo nos djinns, e não em si mesmos. Ao entender o movimento dela, fiquei profundamentecomovido.“Ela era ambiciosa demais, altiva demais, orgulhosa demais, aquela moça”, disse minha mãe,

olhandodiretamentenosmeusolhos.Eacrescentou,comoserevelasseumsegredo:“Dequalquermaneira,desdeomomentoemqueouvidizerqueelanãogostavadegatos,comeceia terminhasdúvidas”.EunãotinhalembrançadarepulsadeSibelaosgatos,masjáeraasegundavezqueminhamãe

usava aquilo como motivo para censurá-la. Mudei de assunto. Tomamos nossos cafés juntos navaranda,assistindoaumpequenofuneralnamesquita.Emboraaindaderramassealgumaslágrimasde vez emquando, dizendo “Ah, coitado do seu querido pai”,minhamãe estava comboa saúde;reagiraesuasfaculdadesfuncionavambem.Elamedissequeapessoanapedrafuneráriaeraumdosproprietários do famoso edifícioBereket.Enquanto indicavaoprédioparamim,quase ao ladodocinema Atlas,me surpreendi devaneando uma estreia no Atlas de um filme estrelado por Füsun.DepoisdoalmoçofuiparaaSatsat,onde,convencidodequeconseguiriarecuperaravida“normal”quetinhaantesdeFüsuneantesdeSibel,atirei-menotrabalho.TervistoFüsunaliviouboapartedadorqueeusofreraportantosmeses.Enquantotrabalhavano

escritório, uma parte minha pensava, com toda a sinceridade, que era uma sorte eu ter merecuperado do meu mal de amor, pensamento que me trazia grande serenidade. Enquantocontinuavaaremexermeuspapéis,verificavadetemposemtemposcomoeuestava;efiqueisatisfeitodeperceberque realmentenão tinhaomenordesejode vê-la.Nemmepassavamaispela cabeçavoltaràquelacasahorrendaemÇukurcuma,aqueleninhoderatoscercadode lamaeenxurradas.MeudesdémeraalimentadomenospeloamorporFüsunquepeloressentimentocontrasuaardilosafamíliaeaquelegorduchoquechamavamdegenro.Masmeirriteidesentirtantahostilidadeporumsimplesgaroto,assimcomoamaldiçoavaminhaestupidezportersuportadoumanointeirodeagoniaporcontadaquele “amor”.Estarianaverdadecontrariadocomigomesmo?Queriamuitoacreditarqueembarcavanumavidanova,deixandominhadorparatrás;aquelessentimentosvigorososeramumaprovanecessáriadequeminhavidatinhamudado,eeuprecisavadeles, fossemautênticosounão.Então resolvimeencontrar comos velhos amigosque vinhaevitando,paramedivertir e ir afestas, embora por algum tempo eu tivesse guardado alguma distância de Zaim eMehmet, paraevitar asmemórias de Füsun e Sibel. Às vezes, depois dameia-noite, tendo bebido bastante numclube noturno ou numa festa, eu viaminha raiva dirigir-se não às idiotices da sociedade, às suasaborrecidasconvenções,nemàminhaprópria tolicepor ter sucumbidoàobsessão;minharaiva sedirigia contra Füsun; num canto emparedado de minha mente, reconhecia a contragosto minhadiscussãoperpétuacomela,àsvezesconcluindoemsegredoqueFüsunéquemdecidirarejeitaravida agradável que eu poderia ter lhe dado em favor daquele ninho de rato inundado em

Page 188: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Çukurcuma,demaneiraqueeraculpadelaeusernaturalmenteincapazdegostardeumamulherqueresolveraseenterrarvivanumcasamentotãoidiota.EutinhaumamigodostemposdeExército,Abdülkerim,filhodeumricoproprietáriodeKayseri.

No fimdenosso serviçomilitar,elemantiveracontatocomigoatravésdecartõesnos feriadosenoAno-Novo,queassinavacomumacuidadosacaligrafia floreada,demaneiraqueeuo transformaranodistribuidordaSatsatemKayseri.ComoeupensavaqueSibeloacharia“turco”demais,eununcalheconcederamuitotempodurantesuasvisitasaIstambulnosúltimosanos,masquatrodiasdepoisdeminhavisitaàfamíliadeFüsuneuoleveiaumnovorestaurantechamadoGaraj,quetinhacaídoimediatamentenasboasgraçasdasociedadedeIstambul.Enquantotrocávamosreminiscências,eraquase como se eu visse a minha vida através dos seus olhos; para me sentir melhor, contei- lhehistóriassobreosclientesricosqueentravamesaíamdorestaurante,àsvezespoucoantesoudepoisqueelesvinhamaténossamesaparanoscumprimentarcomeducadoseafáveisapertosdemão.Empoucotempo,ficouclaroqueAbdülkerimestavamenosinteressadonashistóriassobreafraqueza,ador e a transgressão humanas comuns do que pela vida sexual, pelos escândalos e pecadilhosdomésticosdehabitantesricosdeIstambulqueelemalconhecia;umaauma,mencionoutodasasmoçascomfamadeteremfeitosexoantesdocasamento,oumesmoantesdonoivado,enãogosteinemumpouco.Talvez seja por isso que, no final da noite, tendo decidido contrariá- lo, contei aAbdülkerimminhaprópriahistória,descrevendooamorquesentiraporFüsun,mascontandotudocomose tivesseacontecidoaoutro idiota rico.Enquantoeucontavaahistóriadaquele jovemrico,muito admiradona sociedade,que se apaixonara tão loucamenteporuma “vendedora” edepois aencontraracasadacomoutro,estavatãoansiosoparaevitarqueAbdülkerimsuspeitasseque“ele”eraeu,queaponteiparaumrapazsentadoaumamesadistante.“Bem,nofimdascontasninguémsaiuprejudicado.Amoçapromíscuasecasou,demaneiraqueo

pobrehomemescapoudeboa”,disseAbdülkerim.“Naverdade,quandopensonosriscosqueessehomemcorreuporamor,nãovejocomodeixarde

sentirmuitorespeitoporele”,disseeu.“Elerompeuonoivadoporcausadessamoça…”Por ummomento, o rosto deAbdülkerim se iluminou de compreensão;mas em seguida ele se

virouparaolharcobiçosoparaHicriBey,omagnatadotabaco,comsuamulhereduas filhasquelembravam cisnes, abrindo caminho para a saída do restaurante. “Quem são aquelas pessoas?”,perguntouelesemolharparamim.AmaisjovemdasduasfilhasmorenasdeHicriBey—seunomeeraNeslişah,acho— tinhaoxigenadooscabelos.NãogosteidamaneiracomoAbdülkerimolhavaparaeles,entreodesdémeaadmiração.“Estátarde.Vamosembora?”,disseeu.Pediaconta.Nãodissemosnadaatédeixarmosorestauranteenosdespedirmos.Não caminhei de volta direto paraminha casa emNişantaşı; em vez disso, tomei a direção de

Taksim. Eu devolvera o brinco desemparelhado de Füsun, mas não formalmente— em meuestupor, limitara-meadeixá-lonobanheiro.Oqueeraaviltante, tantoparamimquantoparaeles.Meuorgulhoexigiaqueeudeixasseclaroparatodosqueaquelegestonãoforaumengano,masumadecisãodeliberada,comaintençãodefazê-laencontrarobrinco.Assim,precisavadesculpar-me,e,nacertezadequenuncamaisvoltariaavê-la,podiasorrirparaFüsunedirigir- lheumúltimoadeus

Page 189: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

indiferente.Quandoeuentrassepelaportadasuacasa,Füsunhaveriadeentenderqueerasuaúltimaoportunidade de olhar para mim, e talvez entrasse em pânico, mas eu a evitaria num silêncioprofundo,comoelafizeracomigoportodooúltimoano.Nemmesmolhediriaquenuncamaisnosveríamos, apenas desejando-lhe boa sorte de um modo que ela não pudesse entender de outramaneira,ficandodevidamenteperturbada.EnquantoeuavançavalentamentenadireçãodeÇukurcumapelasruassecundáriasdeBeyoğlu,

passou-me pela cabeça que havia uma possibilidade de que Füsun não se perturbasse nem umpouco; era possível que estivesse perfeitamente feliz, vivendo naquela casa com omarido.Mas sefosseesteocaso, seelaamavaaquelebeócioapontodepreferirvivercomelenapenúriadaquelacasaprecária,entãocertamenteeunãodesejavatornaravê-laemhipótesealguma.Percorrendoasruas estreitas, as calçadas e as escadarias irregulares, eu olhava pelas cortinas entreabertas e via asfamílias desligando a televisão e preparando-se para dormir, ou casais pobres e idosos sentados àfrenteumdooutro,fumandoseusúltimoscigarrosdodia,emeocorreunaquelanoitedeprimavera,àluzfracadoslampiões,queaspessoasqueviviamnaquelasruelassilenciosaseramfelizes.Toquei a campainha. Uma janela do segundo andar se abriu. “Quem é?”, perguntou o pai de

Füsunparaaescuridão.“Soueu.”“Euquem?”Fiqueialiparado,perguntando-mesedeviasaircorrendo,eamãedelaabriuaporta.“TiaNesibe,desculpeincomodartãotarde.”“Nãofazmal,KemalBey.Entre.”Enquantoaacompanhavaescadasacima,exatamentecomodaprimeiravisita,eumedisse:“Não

seacanhe!EstaéaúltimavezquevaiverFüsun!”.Entrei,fortalecidoporminhadecisãodenuncamaismedeixarhumilhardaquelamaneira,masassimqueavimeucoraçãocomeçouabatercomforçaefuitomadopelavergonha.Elaestavasentadaemfrenteàtelevisãoaoladodeseupai.Quandomeviram,osdoissepuseramdepé,numasurpresaenumaconfusãoquesóseatenuaramumpoucoquandoperceberammeurostocontraídoeabebidaemmeuhálito.Duranteosprimeirosquatrooucincominutos,quenãogostoderecordarnemumpouco,eumeesforceiparalhesdizeroquantoestavaarrependidoportê- losperturbado,masqueestavapassandoporaliequeriadiscutiralgocomeles.Nesseintervalo,descobriqueomaridonãoestavaemcasa(“Feridunsaiucomseusamigosdocinema”),masnãoconseguiencontrarmodoalgumdeabordarmeuassunto.Amãedelafoiparaacozinhafazerchá.Depoisqueseupaiselevantousemsedesculpar,ficamosasós.“Sinto muito”, disse eu, enquanto nós dois mantínhamos os olhos fixos na televisão. “Minha

intençãoeraboa.Foiporqueestavabêbadoquedeixeiseubrincopertodasescovasdedentenaquelanoite,emboraquisessedevolvê-loavocêdamaneiracerta.”“Nãovibrinconenhumpertodasescovasdedente”,disseelafranzindoatesta.Quando trocamos um olhar, nos esforçando para entender o que ocorrera, o pai dela entrou

trazendouma tigelade semolinaedehelvade fruta,quedisse ser sóparamim.Depoisdecomerumacolherada,pusaquelahelvanasalturas.Porummomentoficamostodoscalados,comosefossepelahelvaqueeutivessevindoatéalinomeiodanoite.Foientãoquedescobri,pormaisbêbadoque

Page 190: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

estivesse, queobrinco tinha sidoumadesculpa: eu só fora até lápara verFüsun.E agora elameprovocava,dizendoquenãotinhaencontradoobrinco.Duranteesseinterlúdiosilencioso,observeicomigomesmoqueadordenãoverFüsuneramuitomaisdestruidoraqueavergonhaporqueeupassaraparavê-la.Etambémdescobrinaqueleminutoqueestavaprontoaenfrentarmaissituaçõescomo aquela para poupar-me da dor de não a ver, embora dispusesse demenos defesas contra avergonhadoquecontraasaudade.Encurraladoentreomedodahumilhaçãoeomedodesofrersuaausência,nãotinhaideiadoquefazer,demaneiraquemelevantei.Eali,bemàminhafrente,vimeuvelhoamigoLimon.Deiumpassonadireçãodagaiola,olhando

opassarinhobemnosolhos.Füsuneseuspaistinhamselevantadoaomesmotempoqueeu,talvezaliviados porme verem partir.Novamente eume sentia tomado pela terrível consciência quemeexpulsaradaquelacasadaúltimavez.Füsunestavacasada;eujamaispoderialevá-laemboracomigo.Lembrandotambémaconclusãoaquechegaradepoisdaúltimavisita—queelaestavainteressadanomeudinheiro—,decidimaisumavezqueeraaúltimavezqueeuaveria.Nuncamaistornariaapôrospésnaquelacasa.Eentãoacampainhatocou.EstequadroaóleocapturaomomentoemqueeueLimontrocamos

umolharenquantoFüsune seuspaisobservavamamimeaocanáriopor trás,poucoantesqueacampainha tocasse e todos nos virássemos para a porta: encomendei-o vários anos depois dessesacontecimentos.ComoopontodevistaéodeLimon,ocanário,comquemeuestranhamentemeidentificavanaquelemomento,nenhumdosnossosrostosaparecenoquadro.Elerepresentaoamordaminhavida,vistodecostas,exatamentecomoeumelembrava,ecadavezquevejoestequadrolágrimasmevêmaosolhos:queroacrescentarcomorgulhoqueoartistacapturouanoitequeentravapelascortinasentreabertas,aescuridãodobairrodeÇukurcumaaofundoeointeriordasalacomumafidelidadeperfeitaàsminhasdescrições.OpaideFüsunfoiatéajanelaeolhouparaoespelhomontadodemaneiraarefletiraentradae,

anunciandoqueeraumdos filhosdosvizinhosquetocaraacampainha,desceuasescadas.Houveumsilêncio.Fuiatéaporta.Enquantovestiameucasaco,mantiveacabeçabaixaenãodissenada.Quando abri a porta, ocorreu-mequenem tudo estava perdido e que aquela podia ser a cena da“vingança”queeujávinhapreparandohaviaumano,masguardandosilêncioeudisseapenas:“Atélogo”.“KemalBey”,dissetiaNesibe,“nemtemoscomolhedizeroquantoficamossatisfeitosporvocêter

tocadoacampainhaaopassarpornossacasa.”OlhouderelanceparaFüsun.“Nãoligueparaessearemburradodela.Estácommedodopai.Senãoestivesse,teriamostradoqueficoutãofelizcomonósdevê-lo.”“Ora,mamãe,porfavor”,disseminhaamada.Passoupelaminhacabeçacomeçaroritualdadespedidacomalgumadeclaraçãodotipo“Bem,

eunãoaguentooscabelosdelapretos”,maseusabiaqueessaspalavrassoariamfalsas:estavadispostoaenfrentartodadordomundoporelaesabiaqueessadisposiçãoaindairiaacabarcomigo.“Não,não,estátudobem”,disseeu,olhandosignificativamentenosolhosdeFüsun.“Vercomo

vocêsestãofelizesmedeixoufeliztambém.”“Foi ver você que nos deixou felizes”, disse tia Nesibe. “Agora que os seus pés conhecem o

Page 191: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

caminho,esperamosquevenhanosvisitarmaisvezes.”“TiaNesibe,éaúltimavezquevenhovisitarvocês”,disseeu.“Porquê?Nãogostoudonossonovobairro?”“Agoraéanossavez”,disseeucomfalsabonomia.“Vouconversarcomminhamãeepedirque

convidevocês.”Havia,gostariadedizer,certaindiferençanamaneiracomodesciasescadas,semmevirarnemumavezparaolharparaelas.“Boanoite,meufilho”,disseTarıkBeyemvozbaixaquandooencontreijuntoàporta.Ofilhodo

vizinholheentregaraumpacote,dizendo:“Minhamãemandoutrazer!”.Quandosentioar refrescarmeurosto,penseiquenuncamaisveriaFüsun,eporummomento

acrediteiquetinhapelafrenteumavidafeliz,livredeproblemasecuidados.ImagineiqueBillur,afilhadafamíliaDağdelen,queminhamãeplanejavavisitar,seriaencantadora.Mas,acadapassoqueeu dava, afastando-me de Füsun, sentia como se estivesse deixando para trás um pedaço domeucoração.Enquanto subia a ladeira deÇukurcuma, sentiaminha alma estremecer emmeus ossos,querendoforçar-meavoltarparaolugardeondeacabaradesair,masaindaacreditavaquebastavadeixarafebrepercorrerseucicloquemelivrariadaquilotudo.Eujátinhaidolonge.Oqueeuprecisavaagoraeraencontrarmeiosdemedistrair,depermanecer

forte.Entreinumadasmeyhanes,jáquasenahoradefechar,esentadonaatmosferadedensafumaçaazuldecigarrotomeidoiscoposderakıcomumafatiademelão.Quandovolteiparaarua,minhaalmadiziaameucorpoquenãoestávamosmuitolongedacasadeFüsun.Aessaalturadevotermeperdido. Numa rua estreita, deparei com uma sombra familiar que me surpreendeu como umchoqueelétrico.“Oh,olá”,disseele.EraomaridodeFüsun,Feridun.“Quecoincidência”,disseeu.“Acabeidesairdasuacasa.”“Émesmo?”Mais uma vez fiquei espantado ao ver como aquelemarido era jovem— como era infantil, na

verdade.“Depois daminha última visita, tenho pensado nessa história de cinema”, disse eu. “Você tem

razão.Precisamos fazer filmesde artenaTurquia também, como fazemnaEuropa…Mas, comovocênãoestavalá,nãotiveaoportunidadedeconversararespeito.Vamosnosencontrarumanoitedessas?”Pudedetectarumaconfusãoimediatanaquelamenteevidentementejávacilante(pelocheiroque

eleemanava,tinhabebidopelomenostantoquantoeunaquelanoite).“Possopassarnaterça-feira,àssetedanoite,parapegá-lo?”,perguntei.“Füsunpodeirtambém?”“Claro, se vamos fazer um filme de arte à moda europeia, precisamos ter Füsun no papel

principal!”Por ummomento, trocamos sorrisos como dois velhos amigos que, tendo passado juntos pelos

longos epenosos anosde colégio ede serviçomilitar, finalmente veemchegar suahora.À luzdolampião,olheideformainquisitivanosolhosdeFeridunBey,cadaumdenósimaginandoquelevaravantagemsobreooutro,enosdespedimosemsilêncio.

Page 192: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

51.Afelicidadeéestarpertodequemvocêama,emaisnada

Lembro que, quando cheguei a Beyoğlu, as vitrines cintilavam e fiquei satisfeito de podercaminhar emmeio àmultidãoque saíados cinemas.Minha felicidade— a alegriaque conseguiaextrairdavida—eraimpossíveldenegar.QueFüsuneseumaridotivessemmeconvidadoairàcasadelesparaqueeupudesseinvestiremseussonhoscinematográficosabsurdostalvezdevessecausar-mesóvergonhaehumilhação,mastãograndeeraafelicidadeemmeucoraçãoqueeunãosentiaomenorconstrangimento.Naquelanoite,minhamenteestavafixadanumaúnicafantasia:asessãodeestreia do filme, e Füsun segurando o microfone, dirigindo-se à plateia maravilhada no cinemaPalace— ou seria o Yenı Melek uma escolha melhor?— agradecendo a mim, antes de maisninguém.Quando eu subia ao palco, as pessoas que acompanhavamos últimosmexericos diriamque durante a filmagem a jovem estrela se apaixonara pelo produtor e abandonara o marido. AfotografiadeFüsunbeijandomeurostosairiaemtodososjornais.Não preciso estender-me sobre os sonhos queminha imaginação não parava de criar, como as

rarasfloresdasafsa,asamambaia-real,quesecretamumelixiropiáceoedepoisadormecem.Comoamaioriadoshomensturcosdomeumundoquepassaramporsituaçõesassim,nuncapareiparameperguntaroquepoderiaestaracontecendonamentedamulherporquemeuestavatãoloucamenteapaixonado, e quais poderiam ser os sonhos dela; só fazia fantasias a seu respeito.Dois diasmaistarde,quandopasseiparapegarocasalnoChevrolet,comÇetinEfendiaovolante,euvi,assimquemeus olhos encontraramos dela, que nossa noite não seria emnada parecida com as criações daminhaimaginação,mas,felizsódevê-la,nãoperdinemumpoucodomeuentusiasmo.Convideiosrecém-casadosasentarem-senobancotraseiro,eumeacomodavaàfrenteaoladode

Çetin, e, enquanto percorríamos ruas escurecidas pelas sombras da cidade, praças abandonadas ecobertasdepoeira,tenteitornaraatmosferamaislevevirandoacabeçaparatrásotempotodoparafazerpiada.Füsunusavaumvestidodacordeumalaranjasanguíneaedofogo.ParaexporsuapeleàextraordináriafragrânciadabrisadoBósforo,eladeixaraostrêsbotõesdecimaabertos.Lembroque,enquantoocarrosacolejavapelocalçamentodepedradasruasàmargemdoBósforo,cadavezqueeu me virava para falar com eles a felicidade ardia em mim. Naquela primeira noite fomos aorestaurante de Andon, em Büyükdere, e— como acabaria sendo a norma toda vez que nosencontrávamos para falar de nossos projetos cinematográficos— logo percebi que eu era omaisanimadodostrês.Tínhamos acabado de escolher nossas entradas na bandeja que os velhos garçons gregos nos

trouxeramquandoFeridun,cujaconfiançaemsimesmoeuquaseinvejava,disse:“Paramim,KemalBey, o cinemaé aúnica coisaque importana vida.Digo issoparaque aminhapouca idadenãoabale a sua confiança em mim. Já faz três anos que trabalho no coração da Yeşilçam, a nossaHollywood.Porsorte,jáconhecitodomundo.Trabalheicomocontrarregra,carregandorefletoresepeçasdocenário,ecomoassistentededireção.Tambémjáescrevionzeroteiros”.“Etodosforamtransformadosemfilmesdemuitosucesso”,disseFüsun.“Eugostariadeveressesfilmes,FeridunBey.”“Claro,KemalBey,podemosvê-los.Amaioriaestápassandonoscinemasdeverão,ealgunsestão

Page 193: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

sendo exibidos emBeyoğlu.Mas não fiquei satisfeito com esses filmes. Se eume contentasse emproduzirobrasdessecalibre,aspessoasdaKonakFilmesdizemqueeujáestariaprontoparadirigi-los.Sóquenãoquerofazeressetipodefilme.”“Equetipodefilmeéesse?”“Comercial, melodramático, dirigido à plateia de massas. Você não costuma assistir filmes

turcos?”“Muitoraramente.”“Os ricos do nosso país, que já estiveramnaEuropa, só vão ver os filmes turcos para rir deles.

Quandoeutinhavinteanos,tambémpensavaassim.Masnãodesprezomaisosfilmesturcoscomoantes.Füsunhojegostamuitodosfilmesturcos.”“Entãomeensine,peloamordeDeus,paraqueeupossagostardelesdamesmaforma”,disseeu.“Comomaiorprazer”,disseosr.Genro,comumsorrisosincero.“Masofilmequevamosfazer

comasuaajudanãoteránadaavercomeles,podeficartranquilo.Porexemplo,nãovamosfazerumfilmeemqueFüsunfujadasuaaldeiaparavirmorarnacidadeetrêsdiasmaistarde,graçasàsuababáfrancesa,setransformenumagrandedama.”“Dequalquermaneira,euiriabrigarcomessababádesdeoprimeiromomento”,disseFüsun.“EtambémnãovaiverFüsunnopapeldeCinderela,desprezadapelosparentesricossóporqueé

pobre”,continuouFeridun.“Naverdade,eunemmeincomodariadefazeropapeldeprimapobredesprezada”,disseFüsun.Emboraeunãoachassequeelaestivessezombandodemim,sentiemsuaspalavrasumaligeireza,

uma exuberância, que ainda assim me causou certa dor. E foi no mesmo espírito que trocamosmemórias de família; depois de rememorar nosso passeio de muitos anos antes por Istambul noChevrolet, com Çetin ao volante, discutimos as mortes mais recentes e iminentes de parentesdistantes quemoravam nas ruas estreitas de bairros longínquos, e ainda falamos demuitas outrascoisas. Nossa conversa sobre a maneira certa de preparar mexilhões recheados terminou com ocozinheirogregomuitopálidovindodacozinhaparanosdizer,comumsorriso,queeranecessáriousar uma pitada de canela. O genro, cuja inocência e cujo otimismo estavam começando a meconquistar,nãofezmaismuitoalardeparapromoverseuroteiroesuaspretensõescinematográficas.Quandoosdeixeiemcasa,combinamosquenosencontraríamosdenovodaliaquatrodias.Aolongodoverãode1976,jantamosjuntosemmuitosrestaurantesdoBósforo.Mesmoanosmais

tarde,semprequeeuolhavaparaoBósforoatravésdasjanelasdessesrestauranteseumelembravadecomomesentianaquelesmomentos,presoentreminhaalegriaporestarsentadodiantedeFüsuneacalmaqueprecisavamanterparareconquistá- la,etornavaamesentirconfusocomonaquelaépoca.Nessesjantares,eusempreescutavacomtodoorespeitoenquantoFeridunmefalavadeseussonhos,dosfilmesdaYeşilçamedopúblicoturco,jamaisexpondoasminhasdúvidas;afinal,nãoeraideiaminha proporcionar ao espectador turco “a surpresa de um filme de arte no sentido ocidental dotermo”,eporissoeucriavadiscretasdificuldades;porexemplo,pediaparaveroroteiroacabado,sóparamanifestarminhaanimaçãodiantedeoutrahistóriaantesqueoprimeiroroteiromechegasseàsmãos.Certavez,depoisqueFeridun(queeudescobriraserbemmaisinteligenteehabilidosoquemuitos

Page 194: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

dos empregados daSatsat) travou comigouma conversa sobre o custo deum filme turco “bomedecente”, calculei que transformar Füsun numa estrela custariamais oumenos ametade de umpequenoapartamentonas ruas secundáriasdeNişantaşı.Noentanto, senãoconseguíamos realizaresseobjetivo,nãoeraporqueacifra fosse inaceitável; eraporqueeucompreenderaqueverFüsunduas vezes por semana a pretexto de produzir um filme já bastava para aplacarminha dor, pelomenosàquelaaltura.Depoisdesofrertanto,agoraeumecontentavacomoquetinha.Emesmoasimples espera era pior. Era como se, tendo suportado toda aquela agonia, eu precisasseme daralgumdescanso.Sempreque,depoisdenossosjantares,Çetinnoslevavaatéİstinyeparacomermospudimdepeito

defrangocobertodemuitacanela,ouatéEmirgânparaumpasseio,pararireconversarenquantocomíamosfolhasdehelvaesanduíchesdesorvete,econtemplávamosaságuasescurasdoBósforo,parecia-mequenãopodiahaverfelicidademaisprofundanomundointeiro.Certanoite,depoisqueeutinhaaplacadotodososdjinnsdoamoreencontradoapazsódeficarsentadoemfrenteaFüsun,lembroquemeocorreuafórmulasimpleseinelutável:afelicidadeéestarpertodequemvocêama,emaisnada.(Aposseimediatanãoénecessária.)Poucoantesdereconheceressemantraenigmático,eu olhara pela janela do nosso restaurante para a margem oposta do Bósforo; vendo as luzescintilantesdayalıondeSibeleeutínhamospassadojuntosoverãoanterior,percebiqueoamornãodilaceravamaisomeuestômago.E, alémde as dores lancinantesdo amordesapareceremnomomento emque eume sentava à

mesa com Füsun, eu esquecia na mesma hora que, até pouco antes, essa mesma dor tinha meprovocadopensamentossuicidas.Assim,aoladodeFüsun,superadaminhaagonia,eumeesqueciademeusmales,convencendo-medequeminha“normalidade”forarestaurada.Voltavaaserquemeraantigamente;sucumbiaàilusãodequeeraforte,decidido,atémesmolivre.Mas,depoisdastrêsprimeirasvezesemquesaímos,percebiqueesseêxtaseerainvariavelmentesucedidopelodesesperodesempre,eassim,todavezquemesentavadiantedela,conscientedequedaliapoucosentiriasuafalta, antevendo a dor dos dias seguintes, subtraía discretamente alguns objetos da mesa comolembrançasdafelicidadequesentianaquelesmomentos—eparamefortalecermaistarde,quandomevissedenovo sozinho.Esta colherzinha, por exemplo: certanoite, emYeniköy,no restauranteAleko, tive uma curta conversa com o marido dela sobre futebol— por sorte éramos ambostorcedoresdoFenerbahçe,oquenospoupavadediscussõesrasas—,quandoFüsun,sentindocertoenfado,pôsessacolherzinhanaboca,brincandocomelaalgumtempo.Este saleiro:nomomentoemqueelaopegavaumpetroleirosoviéticopassouroncandopelajanela,eaviolênciadeseumotorfezestremecerasgarrafaseoscoposdanossamesa,fazendo-aficarbastantetempocomosaleironamão.Emnossoquartoencontro, fomosaZeynel,emİstinye,eenquanto todoscaminhávamos,eubematrásdela,Füsunjogouforaessacasquinhadesorvetequecomerapelametadeeeuapegueidochão, guardando no bolso com a rapidez de um raio. Ao voltar para casa, eu contemplavaembriagadoaquelesobjetos;umdiaoudoismais tarde,paraevitarqueminhamãeos visse,euoslevava para o apartamento do edifício Merhamet, onde os arrumava em meio a outros artefatossimilarmentepreciosos, e,quandome sentia tomadopelaagoniadoamor, conjuravaalgumalíviocomaajudadeles.

Page 195: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Durante aquela primavera e aquele verão,minhamãe e eunos aproximamos cada vezmais—nossacamaradagemagoraeradiferentedoquetinhasido.Omotivo,semdúvida,eraqueelaperderameupai,assimcomoeuperderaFüsun.Aperdatrouxegrandematuridadeanósdois,enostornavamais indulgentes. Mas o quanto minha mãe saberia do meu sofrimento? Se ela encontrasse ascolhereseascasquinhasdesorvetequeeutraziaparacasa,oquehaveriadepensar?SeinterrogasseÇetin,quanto ficaria sabendodosmeusmovimentos?Às vezes,nosmomentosde sofrimentomaisintenso,eumepreocupavacomessascoisas;demaneiraalgumaqueriaqueminhamãesofresseporminhacausa;nãoqueriaqueelameconsiderassepresadeumaobsessãointolerávelquemelevavaacometererrosdequeeupoderia“mearrependerpelorestodavida”.Às vezes eu fazia de conta que estava mais alegre do que ela; jamais poderia contar- lhe, nem

mesmo de brincadeira, que suas tentativas deme conseguir um casamento arranjado não faziamnenhumsentido,eporissoescutavaatentoaseusrelatosdetalhadossobreasmoçasqueinvestigaraemmeubenefício.UmadelaseraafilhamaisnovadafamíliaDağdelen,Billur;segundominhamãe,a tempestade de falências que agora finalmente ocorrera não tinha contido a “vida de dissipação”levadapelafamília,repletadecozinheirosecriados;emboraelaadmitissequeamoçatinhaumbelorosto,acrescentouqueerabaixademaise,quandoeudissequenãoestavapreparadoparamecasarcomumaanã,encerrouocaso.(Desdequeéramosmuitonovos,nossamãesemprenosdizia:“Nãoescolhamnenhumamoça commenos de ummetro e sessenta e cinco, por favor; não quero quenenhum de vocês se case com uma anã”.) Quanto à filha do meio da famíliaMengerli, que euconheceranacompanhiadeSibeleZaimnoCercled’Orientnoiníciodoverãoanterior,minhamãeconcluiuquetampoucoeraadequada:amoçaforarecentementelargadapelofilhomaisvelhodosAvunduk,porquemtinhasidoloucamenteapaixonada,ecomquemaindacontavasecasar—umestadodecoisasque,comominhamãesódescobrirapoucoantes,eradoamploconhecimentodasociedade de Istambul.Minha mãe continuou a procurar por todo verão, e sempre comminhasbênçãos,tantoporqueeudefatoesperavaqueseusesforçospudessemdealgummodoproduzirumresultadofeliz,quantoporquetorciaparaqueesseprojetoatirassedareclusãoemqueviviadesdeamortedomeupai.Emqualquertarde,minhamãepodialigarparamimnoescritóriodesuacasaemSuadiyeparamefalardeumajovemquequeriaqueeuvisse:elavinhasemprenalanchadafamíliaIşıkçı para visitar à noite o terraço de nosso vizinhoEsat Bey; se eu atravessasse a ponte antes deanoitecerefosseatéabeirad’águapoderiavê-lae,sequisesse,serapresentadoaela— todasessasinformações eram transmitidas nos menores detalhes, como faria um camponês conduzindo oscaçadoresaolocalondeasperdizessereuniam.Pelomenosduasvezespordiaminhamãeencontravaalgumpretextoparamechamaraotelefone

noescritório,e,depoisdemecontarquantotempotinhachoradoaoencontraralgumpertencedemeupainofundodeumarmário—seussapatospretoebrancodeverão,porexemplo,umdosquaisrespeitosamenteexponhoaqui—, ela dizia: “Nãomedeixe sozinha, por favor!”, e em seguidamerepetia que eunão devia ficar emNişantaşı, que não era bom paramim estar sozinho, e quemeesperavaparajantarmosjuntosemSuadiye.Àsvezesmeuirmãoapareciacomamulhereosfilhos.Depoisdojantar—enquantominhamãee

Berrinconversavamsobreascrianças,osparentes,oshábitosantigos,asnovaslojaseaúltimamoda,

Page 196: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

os preços cada vez mais altos e as últimas novidades sobre a vida alheia—, Osman e eu nossentávamos debaixo da palmeira, ondemeu pai costumava se acomodar em sua espreguiçadeira,contemplandoasilhaseasestrelasesonhandocomsuasamantessecretas.Láfalávamosdenegóciosedaliquidaçãodosbensdomeupai.Meuirmãosempreinsistiacomigonaquelesdias,dizendoqueentrasse em seu negócio com Turgay Bey, mas nunca pressionava além de certo ponto; e entãotornavaamedizercomotinhasidobompromoverKenanaumaposiçãodegerência;reclamavadasdificuldades que eu criara com Kenan, e de minha recusa em participar daquele novoempreendimento;depoisdemedizerqueeraaminhaúltimaoportunidadedemudardeideiaedemurmurar que eu ainda haveria de me arrepender de perder aquela chance, ele se queixava daimpressãoqueeudava,deevitá- losempre,eatodososnossosamigoscomuns,fugindodosucessoeda felicidade, tanto na vida particular como no trabalho. “O que está havendo com você?”,perguntavaele,franzindoocenho.Minha resposta era sempre amesma: sentia-me exausto depois da perda do nosso pai e do fim

desconfortável domeu noivado comSibel— o queme provocava um comportamento um tantointrovertido.Foinumanoitemuitoquentede julhoque lhedissequepreferia ficar sozinhocomaminhador,epudevernorostodeOsmanqueeleviaaquilocomoumaformadeloucura.Parecia-meque,pelomenosàquelaaltura,meuirmãosedispunhaatolerarmeucomportamentocomoumaformadedepressãograve;noentanto,casoomeumalpiorasseaindamais,eleseveriaencurraladoentre o constrangimento e a agradável perspectiva de assumir o controle permanente de nossosnegócios, a pretexto daminha incapacidade.Mas essas ansiedades sóme ocorriam se tivesse vistoFüsun um pouco antes; quando um tempomaior transcorria desde a última vez que eu a vira, esentia-me torturado pela dor de sua ausência, só ela cabia em meus pensamentos. Minha mãepercebiaaobsessãoeastrevasdentrodemim,masapesardepreocupadanuncaquissaberrealmentedosdetalhes.DepoisdecadaencontrocomFüsun,euera tomadoporumdesejo inocentedemeconvencerdequeoamorquesentianão tinhamuita importância;demaneirasemelhante, tentavaconvencerminhamãe, semchegaradizê-locomclareza,dequeaobsessãoquearruinavaminhavidadeformacadavezmaisevidentenãoeramotivodepreocupação.Paraprovaràminhamãequenão sentia nenhum “complexo”, eu lhe disse que tinha saído comFüsun, a filha da tiaNesibe, acostureira, com omarido, para jantar no Bósforo, mencionando também que, por insistência dojovemmarido,todostínhamosidoverumdosfilmescujoroteiroeleescrevera—distraçõesaqueumobsessivojamaisconseguiriasededicar!“MeuDeus”,disseminhamãe.“Ficosatisfeitadesaberqueestãobem.Ouvidizerqueamenina

estavapassandomuitotempocomgentedecinema,gentedaYeşilçam,efiqueicompena.Oquesepode esperar de uma moça que entra em concursos de beleza? Mas se você diz que eles estãobem…”“Elemepareceumrapazmuitorazoável.”“Evocêvaiaocinemacomeles?Deviatomarcuidado.Nesibetemmuitobomcoração,eéótima

companhia,masnuncaparadefazerplanos.”Então,mudandoderumo,eladisse:“VaihaverumafestanocaisdeEsatBeyhojeànoite;mandaramumempregadometrazerumconvite.Porquevocênãovem?Possopedirquearmemminhacadeiradebaixodafigueira,eentãoficovendovocêdaqui”.

Page 197: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

52.Umfilmesobreavidaeaagoniaprecisasersincero

De meados de junho ao início de outubro de 1976, fomos ver mais de cinquenta filmes noscinemasaoarlivre,eexponhoaquioscanhotosdosingressos,juntamentecomasfotografiasexibidasnaentradaeoscartazesqueconseguiadquirirnosanossubsequentesdecolecionadoresdeIstambul.Ao cair da tarde eu ia comÇetin até a casa emÇukurcuma para pegar Füsun e seumarido noChevrolet, como nas noites em que saíamos para jantar à beira do Bósforo. Demanhã, Feridundescobriacomosgerentesedistribuidoresconhecidosondeestavapassandoofilmequequeríamosver,anotandoobairroeodistritonumpedaçodepapel,eobedecendoasuasdireçõestentávamosencontrar o caminho. Istambul crescera desordenadamente nos dez anos anteriores, enquantoincêndiosenovasconstruçõesmudavamseuaspecto,easruasestreitasestavamtãoabarrotadasderecém-chegados que muitas vezes nos perdíamos. Só parando com frequência para perguntar ocaminhoconseguíamosfinalmenteencontrarocinema,emesmoentãoéramosobrigadosacorrer,equasesemprechegávamosparaencontrarojardimjáàsescuras,demaneiraquenãotínhamoscomosaberquetipodelugareraocinemaatéasluzesseacenderemduranteointervalodecincominutos.Nosanosseguintes,essescinemasaoarlivrehaveriamdedesaparecer—asamoreiraseosplátanos

foram derrubados, sendo substituídos por prédios de apartamentos ou transformados emestacionamentosoucamposdefutebolreduzidosdegramaartificial;mas,naqueletempo,todavezqueeupunhaosolhosnaquelestristeslugares—cercadosporparedescaiadas,pequenas fábricas,velhas casasdemadeira foradeprumoe edifíciosdedois ou três andares com inúmeras janelas esacadas— ficava impressionadodevercomoestavamsempre lotados.Eentãoodramaexibidonatelamisturava-senomeuespíritocomahumanidadepalpitantequeeupressentiaemtodasaquelasfamíliasnumerosas, comasmãesde cabeça coberta, os pais que fumavam semparar, as criançastomandogolesde refrigerante,oshomens solteiros,onervosismocontidoacustodaquelaspessoasquemascavamdesconsoladassuassementesdeabóboraenquantoassistíamosaofilme,quasesempreummelodrama.Foi numa dessas telas, num gigantesco cinema ao ar livre, que vi pela primeira vez Orhan

Gencebay, que com suas canções e seus filmes, seusdiscos e cartazes, tornou-separteda vidadetodoopúblico turcodaquele tempo— ele era o rei damúsica e dos filmesnacionais.O cinemaficavanumaencostaportrásdosaglomeradosderesidênciasmiseráveisentrePendikeKartal,dandoparaomardeMármara,ascintilantes ilhasdosPríncipes,as fábricas,pequenasegrandes,comasparedes cobertas de slogans esquerdistas. A fumaça, que parecia ainda mais branca à noite,emanandocomobaforadasdealgodãodaschaminésdafábricadecimentoYunus,emKartal,cobriatodaaáreadebranco,ecomopódegessoquecaíanaplateiaproduziaumefeitosemelhanteaodanevenumcontodefadas.No filme,OrhanGencebay fazia opapel deumpescadorpobre e jovemchamadoOrhan.Seu

patrãoeraumhomemricoemau,dequemsesentiadevedor.Ofilhomimadodessepatrãoerapiorainda, e, quando ele e seus amigos deparavam com a jovem representada porMüjde Ar (que naépoca fazia seus primeiros filmes) e a estupravam, impiedosa e demoradamente, arrancando suas

Page 198: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

roupasparanospermitirvermelhor,aplateiaficavaemsilêncio.Pressionadopelopatrão,comquemse sentia tão em dívida,Orhan era obrigado a acobertar a história casando-se comMüjde. A essaaltura, Gencebay exclamava “Maldito seja este mundo!”, e mais uma vez cantava a música quetornaraafrasefamosaemtodaaTurquia.Duranteascenasmaisemocionantesdofilme,ouvíamosapenasumsomcrepitantequevinhadas

centenasdepessoassentadasànossavolta,mascandosementesdeabóbora(aprimeiravezqueouviesse som, achei que vinha das máquinas de alguma fábrica próxima). Sempre que escutava essebarulho, sentia-me como se todos tivéssemos sido abandonados a sofrimentos que se acumulavamdentrodenóshaviamuitosanos.Masoambientedofilme,aextremaproximidadedaspessoasquetinhamvindoali sedivertir,aspiadasqueseelevavamdaáreaparahomenssolteirosnasprimeirasfilase,claro,oselementosimplausíveisdoenredoprejudicavamminhacapacidadedemeentregarameussentimentosreprimidosedeleitar-mecomeles.QuandoOrhanGencebaycantavaenfurecido“Tudoviroutrevas,ondeestáahumanidade?”,fiqueimuitofelizdemeencontrarnaquelecinema,emmeioàsárvoresedebaixodasestrelas,comFüsunameulado.Enquantoeumantinhaumolhopregado na tela, com o outro eu observava comoFüsun se retorcia em seus jeans, no assento demadeira,comoseupeitosubiaedesciaacadarespiração,ecomo,quandoOrhanGencebaygritava“Malditosejameudestino!”,elacruzouaquelaspernas.Euavifumar,emepergunteioquantoelaseidentificavacomaspaixõesprojetadasnatela.QuandoOrhaneraobrigadoasecasarcomMüjde,esuacançãorevoltadaassumiatonsdeprotesto,virei-meparaFüsun,sorrindocomumaraomesmotempoapaixonadoemalicioso.Entretanto,envolvidacomofilme,elanemsequersevirouparameolhar.Comosuamulhertinhasidoestuprada,opescadorOrhannãotinharelaçõescomela—mantinha

semprecertadistância.QuandoMüjdepercebiaqueaquelecasamentojamaisaliviariaasuador,elatentava suicidar-se; Orhan a levava para o hospital e salvava sua vida. A cena mais emocionanteacontecia no caminho de volta do hospital, quando ele dizia àmulher que tomasse seu braço, eMüjde, virando-separa ele, perguntava: “Você temvergonhademim?”.Foi entãoque finalmentesenti uma insinuação da vergonha que ficara sepultada emmim.O público recaíra num silênciosepulcral,abismadocomavergonhadealguémquesecasavaeandavadebraçoscomumamulherqueforaestuprada,quetiveraapurezaroubada.Minhaprópriavergonhasóeraacentuadapelaraiva.Estariaconstrangidodeveravirgindadeea

castidadesendodiscutidas tão francamente,ouporqueassistiaàquiloao ladodeFüsun?Enquantoessespensamentosmepassavampelacabeça, sentiaFüsun se remexeremseuassento.Ascriançassentadas no colo das mães tinham adormecido, e os jovens malcomportados das primeiras filastinhamparadodefazerpiadascomosheróis,ficandoemsilêncio;Füsun,sentadaameulado,pôsobraçodireitoparatrásdacadeira—comoeudesejavasegurá-lo!Osegundofilmedeuumanovadimensãoàvergonhadentrodemim,apresentando-acomoum

mal que afligia todo o país, e até mesmo as estrelas do céu: a dor do amor. Dessa vez OrhanGencebaytinhaaseuladoamorenaedocePerihanSavaş.Diantedeumadorinsuportável,elenãodemonstrava nenhuma revolta, preferindo recorrer a outras armas mais poderosas que todospossuímos— ahumildadeea resistência— para resumir seus sentimentos, eo filme,na seguinte

Page 199: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

canção,queosvisitantesdomuseutêmoprazerdeescutar:QuandovocêeraminhaamadaEusentiasaudadessuasmesmoaseuladoAgoravocêencontrououtroamorQuesejasuaafelicidadeEminhasasdoreseosproblemasEavidaserásua,serásua.

A essa altura, todas as crianças dormiam no colo dos pais e os rapazes desordeiros que

esguichavamrefrigeranteeatiravamgrãos-de-bicounsnosoutrosnasprimeirasfilastinhamsecalado— seria devido ao adiantado da hora ou ao respeito que sentiam por Orhan Gencebay, quetransformavaemsacrifícioadordoseumedo?Poderiaeufazeramesmacoisasemmaissofrimentoehumilhação,desejandosimplesmentequeFüsunfossefeliz?Seporminhadecisãoelaestrelasseumfilmeturco,seráqueeuencontrariaapaz?ObraçodeFüsunnão estavamais pertodemim.QuandoOrhanGencebaydizia à sua amada

“Quesejasuaafelicidade,eminhasasmemórias!”alguémnasprimeirasfilasgritou:“Deixedeseridiota!”, mas quase ninguém riu em aprovação. Ficamos todos em silêncio. E foi então que meocorreuquealiçãoqueestepaístinhaaprendido,oudesejavaaprender,maisquequalqueroutra,acapacidade quemais queríamos adquirir e transmitir era a de aceitar a derrota com elegância. ApelículaforafilmadanumayalıdoBósforo,e,talvezpormetrazermemóriasdoverãoanterioredoúltimooutono,poralgumtempofiqueicomumnónagarganta.AolongodacostadeDragos,umnaviobrancoavançava lentamentenadireçãodomardeMármaraedas luzescintilantesdas ilhasdos Príncipes, onde pessoas felizes passavam o verão. Acendendo um cigarro, cruzei as pernas econtemplei as estrelas, ofuscado pela beleza do universo.Eume sentira atraído por aquele filme,apesardaprecariedadedesuanarrativa,devidoàreaçãosilenciosadaplateia.Seestivesseassistindoàquele filmeemcasa, sozinhodianteda televisão, elenãomeemocionaria tanto, e se euestivessesentadocomminhamãenemsequeroteriavistoatéofim.FoisóporqueestavasentadoaoladodeFüsunquesentiaquelelaçodecompanheirismocomorestantedaplateia.Quando as luzes se acenderam, ficamos tão quietos como os pais e as mães com os filhos

adormecidos nos braços; e não quebramos esse silêncio nem uma vez durante a volta. EnquantoFüsuncochilavanobancode trás,comacabeçaapoiadanopeitodomarido, fumeiumcigarroeolheipelajanelaparaasruasescuras,aspequenasfábricas,asresidênciasmiseráveis,osjovensquedesfiguravamosmuroscompalavrasdeordemesquerdistassobaproteçãodoescuro,asárvoresquepareciam tãomais velhas à noite, os bandos de cães que vagavam a esmo e as casas de chá quefechavam,enquantoFeridunmetransmitiaaossussurrossuaanálisebem-humoradadosmomentos-chavedosfilmes,queeununcaviravaacabeçaparacomentar.Numanoitequente, fomos até o cinemaYeni İpek, que ficava num jardim comprido e estreito

espremidoentrebarracõespertodopaláciodeİhlamuredasruassecundáriasdeNişantaşı,ondenossentamos debaixo das amoreiras para ver A agonia do amor termina com a morte e um segundomelodrama,Escuteoprantodomeucoração,comaestrelainfantilPapatya.Enquantoconversávamos

Page 200: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

duranteointervalo,comnossosrefrigerantesnasmãos,Feriduncontouqueosujeitofortedebigodefinoque faziaopapeldocontadordesonestonoprimeiro filmeeraamigodeleeestavadispostoafazerumpapelsemelhanteemnossofilme.FoiaessaalturaquepercebioquantoseriadifícilparamimentrarnomundodosfilmesdaYeşilçamapenasparapoderestarpertodeFüsun.Meusolhosevasivospousaramnumadasvarandasquedavamparaojardimdocinemaaoarlivre,

epelascortinaspretasquecobriamsuasportaspercebiqueaquelaantigacasademadeiraeraumdosbordéismais secretoseexclusivosdas ruas secundáriasdeNişantaşı.Asmeninasde lágostavamdebrincarcontandocomo,nasnoitesdeverão,deitadascomseusricosclientes,seusgemidosdeamorsemisturavamàmúsicadastrilhassonoras,oclangordeespadaseatoresdeclarando“Estouvendo,estou vendo”, emmelodramasnosquaisumpardeolhos cegosbruscamente recobrava a visão.Acasa pertencera no passado a um famoso comerciante judeu, e seu antigo salão agora funcionavacomosaladeespera,demodoque,semprequeasmoçasalegresdeminissaiaseentediavam,podiamsubiraumdosquartosvaziosdosfundoseassistiraofilmedavaranda.Nopequenocinema-jardimdeYıldız,emşehzadebaşı, varandas repletascercavamo jardimpor

três lados,deummodoque lembravaoscamarotesdeLaScala.Certavez,duranteumacenadeMeuamoremeuorgulho,emqueopairepreendiaseufilho(“Sevocêsecasarcomaquelavendedoraimprestável, vou retirá- lo do meu testamento e deserdá-lo!”), uma discussão irrompeu numa dasvarandas,oquefezalgunsdenósconfundirasduasbrigas.Nocinema-jardimYazÇiçek,aoladodocinema Çiçek em Karagümrük, vimos A velha vendedora de simits, cujo roteiro fora escrito porFeridun,combase,disse-nosele,numanovaadaptaçãodoromanceAentregadoradepão,deXavierdeMontépin.DessaveznãoeraTürkanşoraynopapelprincipal,masFatmaGirik,eumpoucoatrásdenósumpaigordo,infelizcomsuasituação,sentadonavarandaderoupadebaixo,cercadopelafamília,bebendorakıecomendoseuspetiscos,dizia:“ImagineseTürkaniriaconcordaremfazerumpapel como este...Demaneira nenhuma,meu irmão, que imitadora ruim!”. Para piorar, já tendovistoofilmenanoiteanterior,eleanunciavaemtomsarcásticotudooqueiaaconteceremseguida,numavozperfeitamenteaudívelpara todaaplateia.Quando travouumadisputadegritoscomospresentesquelhepediam“Shhh,caleabocaparapodermosverofilme”,elezomboumaisaindadahistória,puxandobrigacomaplateia.Füsun,achandosemdúvidaquetudoaquiloperturbavaseumarido,aninhou-semaispertodele,eeuqueimeipordentro.Nocaminhodevolta,elaparticipavadaconversaoucochilavanobancodetrás,apoiavaacabeça

noombrodomaridoouemsuabarriga,ouorodeavacomosbraços,oqueeunãotinhaamenorvontadedever.Nocarro,enquantoÇetindirigiacomvagarecautela,euvoltavaminhaatençãoparaanoitequenteeúmida,paraocaminho iluminadoporvaga-lumes,ouvindoosgrilos,aspirandoafragrância de madressilva, ferrugem e poeira que chegava às ruas secundárias das janelasentreabertas, contemplando a escuridão.Mas, quando assistíamos a um filme e eu percebia queficavammuito juntinhos, como aconteceu, por exemplo, no cinema Incircli, em Bakırköy, ondevimosdoisfilmesdemistérioinspiradospelocinemaamericanoepassadosnasruelasdeIstambul,eueraimediatamentetomadoporumestadodeespíritosombrio.E,àsvezes,comooviolentoheróideVítimadefogocruzado,queescondiaseusofrimento,euficavacomoslábiosselados.HaviaocasiõesemquemepareciaqueFüsunapoiavaacabeçanoombrodomaridosóparamecausarciúmes,e

Page 201: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

emminhamenteelaeeuduelávamosparaverquemconseguiafazerooutrosesentirpior.Eentãoeu agia como se nem tivesse percebido os sussurros e risinhos que trocavam os recém-casados, efingiaestarabsortonofilme,queacompanhavacomtodaaatenção;paraprovar,euriadealgumacoisaquesóapessoamaisobtusadaplateiapodiaacharengraçada.Oubufavadedesdém,comosetivesse percebido uma incoerência bizarra que ninguém mais notara e, como tantos intelectuaisdesconfortáveisde iremassistir aum filme turco,nãoconseguisseconterminha indignaçãodiantedaqueleabsurdo.Masnãogostavadessaminhaposturacínica.SenummomentoemocionalmentemaiscarregadoomaridorodeavaoombrodeFüsuncomobraço,coisaquesófaziararasvezes,eunãomesentianadadesconfortável,mas,seFüsunaproveitasseessemomentoparaapoiardeleveacabeçanoombrodeFeridun,sentia-meabsolutamentearrasadoenãoconseguiadeixardesentirqueFüsuneraumadesalmadaquetentavamemagoar,oquemedeixavamuitoirritado.Nofinaldeagosto,quandoosprimeirosbandosdecegonhasjátinhampassadosobreIstambul,a

caminhodosBálcãsparaosul,rumoàÁfrica(nemmelembravamaisdequeeueSibeltínhamosdadoumafestadefimdeverãonessamesmaépoca,noanoanterior),eotempoficaramaisfrescoechuvoso,umanoitefomosverumfilmenograndejardimdointeriordomercadodeBeşiktaşqueeraconhecidocomooLugardoCorcundaeserviacomosededeverãodocinemaYumurcak.Enquantoassistíamos,sentadosali,aofilmeAmeiumajovemsemdinheiro,percebique,porbaixodopulôverqueelaestenderanocolo,elesdoisestavamdemãosdadas.Tomeiamesmaprovidênciaquenasoutras vezes em que, noutros cinemas,me sentia invadido pelomesmo ciúme, e, logo depois deconvencer-medequejá tinhaconseguidoafastarociúmedamente,cruzeiaspernaseacendiumcigarroparapoderespiardenovoeverificarseofelizcasalestavadefatodemãosdadasporbaixodaquelecasaco.Lembrandoqueeramcasados,dormiamjuntosetinhamtantasoutrasoportunidadesde se tocar, eu só podiame espantar por aquela decisão de trocarem algum afago logo agora, naminhafrente.Semprequemeuânimobaixava,tinhaaimpressãodequeofilmeprojetado(comotodososque

tínhamos visto nas últimas semanas) era insuportavelmente ruim, absurdamente raso edeploravelmentedesconectadodomundo real.Estava fartodos idiotas apaixonadosque todahoracomeçavamacantar,daquelascriadasdecabeçacobertaelábiospintadosquesetransformavamemgrandescantorasdanoiteparaodia.Nãogostavadashistóriassobrebandosdesargentos“pirateadasde uma adaptação francesa” deOs trêsmosqueteiros, comome revelava Feridun comum sorriso,assimcomonãogostavadosbandosdedesordeirosqueprovavamsuamasculinidademexendocomasmoçasnarua.VimosOtriodeKasımpas¸aeOstrêsdestemidosmosqueteiros comseusheróisdecamisanegrano cinemaDesejo emFeriköy, onde a concorrência forçara os gerentes a exibir trêsfilmesderolostrocadoseportantoincompreensíveisacadanoite.Todosaquelesamantesdestemidos(“Pare!Pare!Tanjuéinocente;soueuquevocêprocura!”,comoHülyaKoçyiğitdeclaraemÀsombradasacácias, que não conseguimos ver até o fim por causa de uma chuvarada), aquelasmães quesacrificavam tudo para que seus filhos cegos pudessem ser operados (como emCoração partido,exibidonocinema-jardimPopulardeÜsküdar,ondeumatrupedeacrobatasdistraíaopúblicoentreosfilmes),osamigosquediziam:“Continueacorrer,meuleão,quevoudistraí- los”(ErolTaş,quesegundoFeriduntinhaprometidotrabalharemnossofilme,proferiacertavezessafalaimortal),eu

Page 202: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

osachavanãomenoscansativosqueosrapazeshonradosedesprendidosquerecusavamafelicidadedizendo: “Mas você é a namorada domeu amigo”.Nummomento sombrio e vazio de esperançacomoesse,mesmoasheroínasquediziam“Sousóumavendedorasemtostão,evocêéfilhododonodeumafábrica”—mesmoodesgraçadoinfelizqueiaseencontrarcomsuaamadanumcarrocommotoristaapretextodevisitarparentesdistantesnãoconseguiadespertarminhasimpatia.Os prazeres deme ver sentado ao lado de Füsun, a felicidade passageira de comungar com a

plateiaenquantoassistiaaofilme,emboratocadopelosoprogeladodociúme,podiamproduzirumnegrorqueenvolviatudoàminhavolta.Emalgumasocasiõestranscendentes,porém,todoomundopareciailuminar-se:quando,porexemplo,emmeioaosofrimentodosheróisquesempreperdiamavisão,meubraçoroçavade leveapeleaveludadadeseubraçoe, semquererqueminhasensaçãomaravilhosachegasseaofim,euomantinhaimóvel,continuandoavero filmesemacompanharaação,atéconseguirconvencer-medequeelanaverdadedeixaraseubraçoroçarnomeu,euquasedesmaiavadefelicidade.Nofinaldoverão,nocinemaÇamparkdeArnavutköy,assistindoaPequenadama,sobreasaventurasdeumaricamoçamimadaqueseuchoferrepreendeefazcairemsi,nossosbraçosseencostaramdessemodo,epermaneceramemintensocontatoenquantoofogodesuapeleacendia o da minha, até meu corpo responder com uma exultação totalmente inesperada. Tãotransportadomesentiporaquelasensaçãovertiginosaqueporalgumtempomeesquecidocontroledodespudordemeucorpo,eassim,quandoasluzesseacenderamecomeçouointervalodecincominutos,fuiobrigadoaocultarminhavergonhaestendendonocolomeupulôverazul-marinho.“Vamoscomprarrefrigerante?”,perguntouFüsun.Nointervalo,elageralmenteiacomomarido

comprarrefrigeranteesementesdeabóbora.“Claro,masqueriaficaraquimaisumpouco,estábem?”,respondi.“Acabeidepensarumacoisa

quenãoqueriaesquecer.”Como costumava fazer emmeus tempos de liceu, sempre que precisava ocultar dos colegas a

excitação inoportuna do meu corpo, percorria as memórias da morte da minha avó, dos ritosfunerários reais e imaginários daminha infância, de ocasiões em quemeu paime repreendera, edepoisimaginavameuprópriofuneral,asepulturacercadadetrevasterríveis,meusolhoscheiosdeterra.Emmeiominutoestavaprontoparamelevantarsemmetrair.Caminhando juntosatéo localdevendade refrigerantes,percebi,comoquepelaprimeiravez,

comoFüsuneraalta,ecomotinhaumabelapostura.Eratãoagradávelestaralicercadodefamílias,cadeiras, crianças que corriam sem a preocupação de ser vistas…Gostava de observar como elachamavaaatençãodaspessoas,e sempremedeixavamuito felizquepudessemnosvercomoumcasal,maridoemulher.Eparecia certo,naquelesmomentos, queessas curtas caminhadas lado aladocompensavamtodaadorqueeusofrera,queaquelesinstanteseramdistintosdetodososoutros,queaquelascaminhadaseramdosmomentosmaisfelizesdaminhavida.Como sempre, não havia fila formada diante do vendedor de refrigerantes, só um tumulto de

crianças e adultos que gritavam todos ao mesmo tempo. Tomamos nosso lugar atrás deles ecomeçamosaesperar.“Quepensamentotãosérioeraessequevocênãoqueriaesquecer?”,perguntouFüsun.“Gosteidofilme”,respondi.“Eestavameperguntandocomoagoraconsigogostardetodosesses

Page 203: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

filmes que antigamente me faziam rir, ou que simplesmente ignorava. Naquele momento, tive aimpressãodequearespostaestavanapontadalíngua,bastavaeumeconcentrar.”“Vocêgostamesmodessesfilmes?Ousógostadevirassistirconosco?”“Claroquegosto.Elesmedeixammuitofeliz.Amaioriadosfilmesquevimosduranteoverãofala

sobrecertadordentrodemim,eeusintoquemeconsolam.”“Naverdadeavidanãoésimplescomoessesfilmes”,disseFüsun,comoqueperturbadaporme

vertãodiferente.“Maseugosto.Eficosatisfeitaporvocêvirconosco.”Poralgumtempoficamoscalados.Oqueeuqueriadizerera:“Paramimbastaestarsentadoaoseu

lado”.Teriasidoporacasoquenossosbraçostinhamficadoencostadosportantotempo?Comoeradoloroso percorrer esses pensamentos ocultos, sabendo que o público do cinema, como todo omundoemquevivíamos,jamaispoderiaestardeacordocomeles.Pelosalto-falantesquependiamdas árvores, ouvimos amúsicaqueOrhanGencebay cantavano filmeque tínhamos assistidodoismesesantesnaencostadePendik,comvistaparaomardeMármara.“Depoisquemeapaixoneiporvocê…”Aquiloevocavatodasasminhasmemóriasdoverão,queagorasesucediamdiantedosmeusolhoscomo imagensprojetadas, todosaquelesmomentos sublimesqueeupassaranos restaurantesdoBósforoadmirandoebriamenteFüsunealuanomar.“Senti-memuitofeliznesteverão”,disseeu.“Essesfilmesmeensinarammuito.Omaisimportante

navidanãoéserrico…Éumapena…todaessaagonia…essesofrimento…Vocênãoacha?”“Um filme sobre a vida e a agonia”, disse minha beldade, com o rosto anuviado, “precisa ser

sincero.”Quandoumadascriançasqueesguichavamrefrigeranteumasnasoutrascorrerade repenteem

suadireção,segureiFüsunpelacinturaeapuxeiparamim.Umpoucodorefrigerantecaiunela.“Seus idiotas!”,disseumvelho,dandoum tapanopescoçodeumdosmeninos.Olhou-nosem

buscadeaprovação,eseusolhospousaramemminhamão,aindapresaàcinturadeFüsun.Comoestivemospróximosnaquelecinemaaoar livre,nãosó físicamasespiritualmente!Füsun,

commedo damaneira como eu olhava para ela, recuou, atravessando o bando de crianças parachegaràsgarrafasderefrigerantearrumadasnumabaciadelavadeira;aquilopartiumeucoração.“Vamos comprar um também para Çetin Efendi”, disse Füsun. Já estava com duas garrafas

abertas.Paguei os refrigerantes e depois fui levar um deles a Çetin Efendi, que nunca se acomodava

conoscona“áreadas famílias”quandoíamosaocinema,preferindoinstalar-sesozinhonaáreadoshomenssolteiros.“Nãoprecisava,KemalBey”,disseelecomumsorriso.Quandomevirei,viummeninoolhandoadmiradoenquantoFüsuntomavaseurefrigerantedireto

dagarrafa.Ogarototomoucoragemeseaproximoudenós.“Vocêéatriz,minhairmã?”“Não.”Comoamodajápassou,quero lembrarameus leitoresquenaquelesdiasessaperguntaeraum

mododedizeràsgarotasqueeramlindas,eeraumaintroduçãopopularàscantadasdosplayboysquetentavamabordarasgarotasvestindoroupasumpoucomaisreveladorasqueonormal,equenão

Page 204: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

eramexatamentedeclassealta.Masessemenino,quepareciaterunsdezanos,nãoeramovidoporessasrazões.Einsistiu:“Masjávivocênumfilme”.“Qual?”,perguntouFüsun.“Borboletasdooutono,evocêestavausandoestemesmovestido…”“Equepapeleufazia?”,perguntouFüsun,sorrindocomprazerdiantedafantasiadomenino.Masogaroto,queagoraperceberaseuerro,secalara.“Vou perguntar aomeumarido”, disse ela para poupar o embaraço domenino. “Ele conhece

todosessesfilmes.”Oleitorhádetercompreendidoque,quandoFüsundisse“marido”olhandoparaascadeirasda

plateia à sua procura, e quando omeninopercebeuquenão era eu ohomememquestão, fiqueimagoado.Noentanto,estimuladopelaalegriadeestar tãopertodela, tomandorefrigerante juntos,eudisseoseguinte:“Omeninodeveterpressentidoquedaquiapoucovamosfazerumfilmeevocêvaivirarumaestrela”.“Estáquerendomedizerquevaimesmoentrarcomodinheiroparafazerofilme?Porfavornãose

ofenda,primoKemal,Feridunéencabuladodemaisparatocarnoassunto,maspossolhedizerquejáestamoscansadosdeesperar.”“Émesmo?”,perguntei.Estavaabismado.

Page 205: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

53.Umcoraçãoindignadoepartidonãoservedenadaparaninguém

Eu não disse mais nada a noite inteira. Tantas línguas descrevem a condição em que meencontravacomo“coraçãopartido”queocoraçãoquebradodelouçaaquiexpostodevebastarparadescreveraosvisitantesdomuseuoquesentinaquelemomento.Adordoamornãosemanifestavamais sob a forma de pânico, desespero ou raiva, como ocorria no verão anterior. A essa altura,transformara-se numa substância mais viscosa, que corria por minhas veias. Como eu via Füsunpraticamentediasimdianão,quandonãotododia,adordesuaausênciadiminuíra,eeudesenvolvianovoshábitosparalidarcomadornovaemaisfracadesuapresença;depoisdeumverãodepráticacuidadosa,esseshábitostinhamseconvertidonumasegundanaturezaparamim,transformando-meemoutrohomem.Eunãopassavamaismeusdiasàsvoltascomaminhador;tornara-mecapazdesuprimi-la,encobri- la,ouagircomosenãohouvessenadadeerrado.Adornova,adordapresença,eranaverdadeadordahumilhação.Füsundavaaimpressãodeme

poupar a esse tipo de dor, evitando assuntos e situações que pudessem ferir omeu orgulho.Masdiantedacruezadessassuasúltimaspalavrasfinalmentepercebiquenãoeramaispossívelfingirquenadaestavaerrado.Numprimeiromomento,eutentaranãoouvirsuareverberaçãoemminhamente:“entrarcomo

dinheiro… estamos cansados de esperar”. Mas a fraca resposta que eu tinha murmurado (“Émesmo?”)eraprovadequeouviraperfeitamente.Nãopodiaagircomosenãoestivesseofendidoe,dequalquer maneira, ninguém teria como deixar de perceber minha expressão contrariada, queindicavameudesânimoeminhamaiscompletahumilhação.Comaqueleinsultoecoandoemminhacabeça, voltei parameu lugar eme sentei, ainda aferrado àminha garrafa de refrigerante. Tinhadificuldadedememexer.Apiorpartenãoforanemmesmosuaspalavrascortantes,masaevidenteconsciênciaqueFüsuntinhadaminhahumilhaçãoedoquantoelameabalava.Forcei-me a pensar emoutra coisa, emassuntos corriqueiros.Lembrode terme feito amesma

perguntaque sempre fazia antes, quandome sentia a pontode explodir de tédio.Entregava-me aespeculações metafísicas, como: “O que estou pensando agora? Estou pensando que estoupensando?”.Depoisderepetiramesmafraseemsilênciomuitasvezes,virei-meparaFüsuncomardecididoedisse:“Pediramparadevolvermosasgarrafas”,e,pegandoorecipientevazioemsuamão,levantei-meemeafastei.Naoutramãoestavaaminhaprópriagarrafa,queaindacontinhaumpoucoderefrigerante.Ninguémestavaolhando,demaneiraquetransferioquemesobravaparaagarrafadeFüsun,entregandoaminha,agoravazia,paraosjovensvendedoresdebebidas.Assim,pudevoltarparaminhacadeiralevandoagarrafadeFüsun,queexponhoaqui.Füsunconversavacomomarido;nemnotaramminhachegada.Nãomelembronadadofilmea

queassistimosemseguida.IssoporquetinhaagarrafaquepoucoantesestiveraemcontatocomoslábiosdeFüsunemminhasmãostrêmulas.Enadamaismeinteressava.Sóqueriavoltarparaomeumundo,paraasminhascoisas.AquelagarrafahaveriadepassarmuitosanosnamesadecabeceiradoapartamentonoedifícioMerhamet,meticulosamentepreservada.Osvisitanteshãodereconhecerporsua forma que é uma garrafa do refrigerante Meltem, lançado na época em que começa nossa

Page 206: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

história e hoje disponível em todo o país, mas o que continha não era a fórmula de Zaim, tãoapreciadaportodosnós.Pois jánaquelaépocaimitaçõesmuitoinferioresdenossaprimeiragrandemarca nacional de refrigerantes eram vendidas em toda parte. Havia pequenas fábricas piratasoperandoclandestinamente,coletandogarrafasdeMeltemqueenchiamcomacontrafaçãobarataedistribuíamaosvendedoresincautosouindiferentes.Quandomeviucomagarrafanabocadentrodocarro,navoltaparacasa,Feridun,totalmenteignorantedeminhaconversacomsuamulher,disse:“EsserefrigeranteMelteméótimo,nãoacha,irmão?”.RespondiqueorefrigerantenãoeraMeltem“genuíno”, a partir do que ele deduziu todo o esquema e sentiu-se levado a comentar: “Nas ruassecundáriasdeBakırköy,existeumafábricaclandestinadegás.ElesenchemosbujõesdaAygazcomgásdecozinhamaisbarato.Jácompramosdelesumavez.IrmãoKemal,acrediteemmimquandolhedigo—ogásfalsoqueimoumelhorqueoverdadeiro”.Roceimeuslábiosnagarrafa,tomandomuitocuidado.“Esteaquitambémtemumgostomelhor”,

disseeu.Enquanto o carro trovejava pelas ruelas silenciosas, atravessando as manchas de luz fraca dos

lampiõeseestremecendocomasirregularidadesdocalçamentodepedra,assombrasdasárvoresedasfolhagenssesucediamnopara-brisadocarro,comoocorrenossonhos.SentadonafrenteaoladodeÇetin,omotorista, como sempre,eu sentiameucoração inchar-sededor,enãomevireiparaolharparaocasal,mesmoquandocomeçouaconversahabitualsobrecinema.ÇetinEfendinuncaparticipavadasconversasquetínhamosacaminhodecasa,entãotalveztenhasidoporqueosilênciocomeçava a deixá-lo desconfortável que se arriscou a observar como certas partes do filmesimplesmentenãoeramcríveis.Ummotoristade Istambul jamais repreenderiaa jovemparaquemtrabalhava,nemmesmocompalavraseducadas,comoocorrera.“Masnaverdadeelenãoémotorista”,disseFeridun,ogenro.“EleéofamosoatorAyhanIşık.”“Osenhortemrazão”,disseÇetin.“Efoiporissoqueeugostei.Decertamaneira,éeducativo…

Pormaisqueeutenhaachadodivertidososfilmesaqueassistimosduranteoverão,gostomaisdelesquandotrazemliçõessobreavida.”Füsun ficoucalada,comoeu.QuandoouviÇetinEfendidizer“duranteoverão”,minhador se

acentuou,poissuaspalavraslembravamqueaquelasbelasnoitesdeverãoestavamchegandoaofim:logopararíamosdeiràquelescinemasverfilmesaoarlivre;aalegriaqueeusentiainstaladoaoladodeFüsunàluzdasestrelaslogoseriaapenasumalembrança,etiveoimpulsodefalardequalquercoisa queme viesse à cabeça só para esconderminha tristeza,masmeus lábios continuavam tãocerradosquenãoteriasidopossívelsepará-losnemcomumafaca.Mergulheinumaamarguraque,suspeitavaeu,haviadedurarmuitotempo.Eupreferianão verFüsundaquelemodo,na verdadenãoqueria estar comninguémque só se

aproximassedemimparaajudaromaridoa fazerum filme—noutraspalavras,pordinheiro.Eraumaousadia,atécertopontoanimadora,queelanemsedesseaoincômododedisfarçarsuaintençãovenal—animadoraporqueeusabiaque jamaispoderia sentir-meatraídoporumapessoaassim,ecombasenissotalvezpudesseencontrarumasaídafácil.Naquelanoite,quandoosdeixeiemcasa,aocontráriodocostume,nãomarqueidataparauma

próximaidaaocinema.Fiqueitrêsdiassementraremcontato.Efoinessemomentoquecomeceia

Page 207: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

experimentar(primeironosrecessosdaminhamente,masaospoucosdemaneiramaisclara)umanovamaneirade ruminaros acontecimentos.Eraumadisposiçãoqueeuchamavade “hostilidadediplomática”, pois derivava menos da dor de um coração partido que de determinada ideia deprotocolo:oabusodaamizadedeviaserrespondidoàaltura,demaneiraqueevidenciasseoquantoessecomportamentoeraexecrável,preservandomeuorgulho.Obviamente,arespostaqueeutinhaem mente no caso de Füsun era simplesmente recusar-me a financiar o filme de seu marido,matandoassimnonascedouroseusonhodesetransformaremestreladecinema.“Vamosveroqueacontece”,penseicomigo,“seessefilmenuncaforfeito!”Sentindovisceralmenteaquelahostilidadeantes apenas formal, comecei, no segundo dia, a imaginar em detalhes a maneira como aquelapuniçãopoderiafazerFüsunsofrer.Naminhaimaginação,porém,oquemaisdesgostavaFüsuneraobrilhoquedeixariadeteraonãoserreveladacomoestrela,enãoaperspectivadenuncamaismever.Eissotalveznemfosseumailusão,masaverdade.OprazerdeimaginaroremorsodeFüsun,nosegundodia,acentuoumeumal-estarvisceral.Ao

anoitecer daquele dia, enquanto jantava em silêncio com minha mãe em Suadiye, percebi quecomeçava a sentir falta deFüsun.Depois queminhas vísceras se curassem, eu sabiaque sópodiamanterminhaposturahostilcomoformadepunição.Enquantojantava,tenteipôr-menolugardeFüsuneadotarumaposturacruelmentepragmática.Imagineioincômodoeoremorsoquesentiriase fosse uma linda jovem à beira de estrelar um filme, dirigido pormeumarido, e com palavrasimpensadasofendesseossentimentosdoricoprodutor,pondoassimaperderminhaoportunidadedevirarumaestrela.Nãofossemasinterrupçõesconstantesdaminhamãe(“Porquenãocomeutodaacarne?Vocêvai sairhojeànoite?Overãoestáquaseacabando.Nemprecisamosesperaro fimdomês—podemosvoltaramanhãparaNişantaşı.Comamaiseste,quantoscoposvocêjátomouhojeànoite?”)eupoderiaterconseguidopôr-menolugardeFüsun.No decorrer de meu esforço alcoolizado para adivinhar o que Füsun poderia estar pensando,

ocorreu-meapossibilidadedeque,nomomentoemqueouviaquelaspalavrasdesagradáveis(“Estáquerendome dizer que vaimesmo entrar com o dinheiro”), que provocaramminha “hostilidadediplomática”, meu desejo de vingança ficara claro. Queria vingar-me de Füsun, mas, como essesentimentomeinspiravamedoevergonha,prefericonvencer-medeque“nuncamaisqueriavê-la”.Eraarespostamaishonrada,poismepermitiriavingar-meficandocomaconsciêncialimpa,poisoexagero de minha hostilidade visceral poderia servir para desculpar o pecado apresentando meudesejo de puni-la sob o disfarce de uma inocência de vítima. Percebendo essa manobra, decidiperdoarFüsuneirvê-la;tendotomadoessadecisão,comeceiavertudosobumaluzmaispositiva.Aindaassim,antesquepudessetornaravê-los,euprecisavapensarmelhor,alémdemeesforçarmaisaindaparameconvencerdaminhailusão.Depoisdojantar,saíparaaavenidaBağdatonde,anosantes,quandoerajovem,tantasvezesfizera

apromenadecommeusamigos,e,enquantocaminhavapelascalçadas largas,denovomeesforceipara me pôr no lugar de Füsun, tentando imaginar exatamente como ela poderia interpretar asituaçãocasoeudecidissenãoacastigar.Earespostameocorreunumclarãocegante:umamulherlindacomoela,inteligente,quesabiaoquequeria,nãoteriaomenorproblemaparaencontraroutroprodutorque financiasseo filmede seumarido.Umarrependimento ardente e enciumado tomou

Page 208: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

contademim.Nodiaseguinte,mandeiÇetindescobrirquefilmesestavampassandonoscinemasaoar livre de Beşiktaş, pesquisa que me levou a decidir que havia “um filme importante que nãopodíamosperder”.SentadoemmeuescritórionaSatsatcomofoneapertadonoouvido,ouvindootelefone tocarnacasadeFüsun,meucoraçãodisparouquandopercebique,não importavaquematendesse,eunãoconseguiriafalarcomnaturalidade.Como nada de natural podia resultar daquele esforço para tentar satisfazer as exigências

conflitantesdahostilidadevisceraledahostilidadediplomática,decidiquepelomenosprolongariaesta última por algum tempo, até que me chegasse um pedido de desculpas. E foi assim quepassamosnossasúltimasnoitesdeverãonoscinemasaoar livrede Istambul,comnossadignidadeofendida, divertindo-nos pouco, conversandomenos ainda, simulando uma indignação recíproca.Meu aparentemau humor era contagioso— e claro que Füsun respondia namesmamoeda. Euficava ressentido por elame obrigar a fingir daquele jeito, e agora sim esse seu procedimentomedeixava autenticamente indignado.Como tempo, aquele personagemque eu representavana suapresença acabou suplantando minha verdadeira identidade. E deve ter sido nesse momento quepercebicomoparaamaioriadaspessoasavidanãoéumaalegriaqueprecisamosaproveitardetodocoração,masumafarsadolorosaasertoleradacomumsorrisofalso,limitandonossospassosaumatrilhaestreitadementiras,castigoserepressão.Enquanto aqueles filmes turcos insistiam em nos dizer que era possível encontrar “a verdade”,

deixandoparatrásaquele“mundodementiras”,aessaalturaeunãoacreditavamaisnosfilmesquevíamos nos cinemas ao ar livre,misturados a plateias cada vezmenores. Não conseguiamaismeentregaràquelemundosentimental.Nosúltimosdiasdoverão,ocinemaEstrela,emBeşiktaş,estavatãovazioqueficariaestranhoeumesentarmuitopertodeFüsun,demaneiraquedeixeiumacadeiradesocupada entre nós dois e, à medida que o vento ficavamais frio, meu aborrecimento fingidocristalizou-seemgélidoremorso.QuatrodiasmaistardefomosaoClubCinemadeFeriköy,masemvezdefilmeencontramoscamasocupadaspormeninospaupérrimosassistidosporvelhasmulheresde cabeça coberta, e achamos graça quando descobrimos que o conselho municipal tinhaorganizado uma cerimônia coletiva de circuncisão, com apresentação de acrobatas, mágicos edançarinos, para as famílias que não pudessem pagar um ritual privado.Mas, quando o prefeitobonachão,comseusbigodes,viucomoassistíamosatudocomgostoenosconvidouaaderiràfesta,Füsuneeu,ambosdeterminadosatratarooutrocomamáximafrieza,recusamos.Eraenfurecedorvê-la responder àminha hostilidade diplomática com sua versão nãomenos antipática, enquantotambémsustentavaumapantomimasuficientementesutilparanãoserpercebidapelomarido.Consegui ficar sem ligar por seis dias. Incomodava-me que nem Füsun nem seu marido

telefonassem para mim. Se não íamos fazer aquele filme, que desculpa eu poderia ter para lhetelefonar?Sequisessecontinuaravê-los,precisariadar- lhesdinheiro,umaverdade intolerávelquenãoconseguiaaceitar.O último filme que fomos assistir foi no cinema-jardim Majestic, em Pangaltı, no início de

outubro.Eraumanoitequente,ehaviamaisalgumaspessoasnaplateia.Euesperavaquenaquelalinda noite, provavelmente a última do verão, nossas recriminações mútuas, aquele impassediplomático, pudesse chegar ao fim.Mas, antes que instalássemos nossos lugares, aconteceu uma

Page 209: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

coisa: encontrei-mecomCemileHanım, amãedeumamigode infância.Ela também tinha sidouma das antigas parceiras de bezique deminhamãe,mas parecia que tinha empobrecido com aidade. Trocamos olhares, como se disséssemos: “O que você está fazendo aqui?”, à maneira daspessoasdefamíliasricastradicionaisquesentiamvergonhaeculpapelaperdadafortuna.“EstavacuriosaparaveracasadeMükerremHanım”,disseCemileHanım,comoseme fizesse

umaconfissão.Não entendi o que ela queria dizer. Imaginei que uma pessoa interessante chamadaMükerrem

Hanımvivianumadaquelasantigascasasdemadeiracujointeriorsepodiaverdocinemaaoarlivre,eassimsentei-meaoladodeCemileHanım,paraquepudéssemosolharjuntosparaessacasa.Füsuneomaridoforamsentar-seseisousetefileirasànossafrente.Quandoofilmecomeçou,percebiqueeraacasadofilmequeeladiziaserdeMükerremHanım.Eraaresidênciaprincipesca,emErenköy,deuma importante famíliada aristocracia— palacete pelo qual eu costumavapassar de bicicletaquando menino. Depois de atravessarem um período de crise, eles (como tantas outras famíliastradicionais das relações deminhamãe) tinham começado a alugar suas propriedades à Yeşilçamparaseremusadascomocenáriosemseusfilmes.CemileHanımnãoforaaocinemaparaderramar-se em lágrimas vendo um filme intituladoMais amargo que o amor, mas para ver os aposentosforradosdemadeiradaantigacasadeumpaxáquepassava ficcionalmentepor residênciadeumafamíliamalvadaderiquezaevidentementerecente.EudeviatermelevantadoeidosentarpertodeFüsun.Masnãoconsegui,poisumaestranhavergonhameimobilizava.Eueracomoumadolescenteque se recusassea sentar-seao ladodospaisnocinema,mas tambémse recusassea reconheceracausadesuavergonha.Esse constrangimento, mesclado à pretensa hostilidade que ainda reluto em admitir depois de

tantos anos, tornava mais fácil sustentar o fingimento de que eu fora ofendido. Quando o filmeacabou, tornei a me encontrar com Füsun e o marido, que Cemile Hanım examinoucuidadosamente da cabeça aos pés. Füsun estavamais amuada ainda do que antes, emeu únicorecurso era responder damesma forma.No caminho para casa, o silêncio no carro era difícil desuportar, e então fiz fantasias de abandonar aquele papel que me impusera com uma piadainesperada,começandoarirloucamente,oumeembebedando—tudoemvão.Passeicincodiassemligarparaeles.Sobreviviaàcustadeelaboradasedeliciosasfantasiasemque

Füsun, contrita, me procurava para pedir perdão. Em meus sonhos, eu respondia a seus apelosarrependidospondo-lheaculpadetudo,e,depoisdelistarseuserrosumaum,meconvenciaatalponto da angústia dela que, em pouco tempo, ficava autenticamente contrariado com a injustiçaterrívelqueelasofria.Osdiassemvê-la foramficandocadavezmaisdifíceisdesuportar.Maisumavezeumevianas

garras da agonia sombria e densa que me mantivera prisioneiro por um ano. Sentia pânico decometer um erro cujo castigo fosse nunca mais ver Füsun. Para evitar que isso acontecesse, euprecisavacertificar-medequeelanãoperceberiaminhahostilidadevisceral.Eagoraaarmaemqueeu transformaraminharaivavoltava-secontra seucriador,penalizandoapenasamimmesmo.Umcoraçãoindignadoepartidonãoservedenadaparaninguém.Insistindoemmeproclamarofendido,sócastigavaamimmesmo.Certanoite,enquantopensavanissotudo,caminhandosozinhoentreas

Page 210: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

folhascaídasdooutonoemNişantaşı,percebiqueadecisãomaisfeliz—eportantoaquemetraziamaisesperança—seriaverFüsuntrêsouquatrovezesporsemana(enuncamenosdoqueduas).Sóentãoeupoderiarecobrarmeuantigoequilíbriosemrecairnoabismonegroebiliosodoamor.Agorasabiaquenãoaguentavaficarsemvê-la—fosseparameprotegerouparamagoá-la.Afimdeevitaroinferno do ano anterior, precisava cumprir a promessa que fizera a ela na carta que lhe enviaraatravésdeCeyda:precisavalevar- lheosbrincosdepéroladomeupai.Nodia seguinte, quando fui almoçar emBeyoğlu, os brincos de pérola estavamnomeubolso,

aninhados na caixa que meu pai me dera. Era 12 de outubro de 1976, um dia de sol com umaclaridadedeverão.Asvitrinesdaslojascintilavamdetantascores.EnquantoalmoçavanorestaurantedeHacıSalih,faleifrancamentecomigomesmo:podiaadmitirquetinhaidoatéládepropósitoe,“semedessena telhaagirassim”,nãohaviamalalgumemdarumpuloemÇukurcumaepassarmeiahoravisitandotiaNesibe.Eramapenasseisouseteminutosdecaminhadadorestauranteondeeumeencontrava.Acaminhodelá,tinhapassadopelocinemaPalaceevistoqueasessãoseguintecomeçava às 13h45. Depois do almoço, se eu quisesse, podia me perder naquela escuridãorecendendoamofoeumidade,oupelomenosingressarnumoutromundo,eencontraralgumapaz.Mas já às 13h40, depois de me levantar e pagar minha conta, vi-me descendo a ladeira deÇukurcuma.Ocalordosolaqueciaminhanuca,ehaviacomidaemmeuestômago,amoremminhamente,pânicoemminhaalmaedoremmeupeito.Foiamãedelaqueabriuaporta.“Não,tiaNesibe,nãoprecisosubir”,disseeu,enfiandoamãonobolso.“IstoaquiéparaFüsun…

Éumpresentedomeupai.Resolvideixaraquinocaminho.”“Porquenãovemtomarumcaférápido,Kemal?QuerialhedizeralgumascoisasantesdeFüsun

chegar.”Disse essas palavras num tom tão furtivo que cedi e subi as escadas atrás dela. A casa estava

inundadadesol,eocanárioLimontrinavacontenteemsuagaiola.ViqueosapetrechosdecosturadetiaNesibe—suastesouras,seuscortesdetecido—estavamespalhadosportodaasala.“Hojeemdianãocosturomaisemcasa,masaspessoasinsistemtantoquenãoconsigodizernão,e

por issoestou fazendoumvestidodenoiteàspressas.Füsunestámeajudando.Daquiapoucoeladeveestardevolta.”Serviu-me um café e foi direto ao assunto. “Tem havido um sofrimento desnecessário, e

recriminações sempalavras— tudo issoeuentendo”,disseela. “KemalBey, elapassoupormuitador, minha filha. O coração dela se partiu em mil pedaços. Você precisa ser paciente com oshumoresdelaesertolerante…”“Sim,éclaro”,respondi,comosesoubessedissotudo.“Você sabemelhor que eude quemaneira deve agir. Seja tolerante comela, faça o que achar

melhorparaelapoderdeixarocaminhoerradoquetomou.”Lancei- lheumolharinterrogativo,parasaberqualeraocaminhoerradoqueFüsuntomara;então

levanteiassobrancelhas.“Antesdoseunoivado,enodiadoseunoivado,emesmodepoisdoseunoivado,porváriosevários

meses ela sofreuhorrivelmente— ah, como ela chorava”, disse tiaNesibe. “Parou de comer e de

Page 211: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

beber,nãosaíadecasa,afastou-sedetudo.Esserapazvinhavê-latododiaetentavaconsolá-la.”“EstáfalandodeFeridun?”“É,masnãosepreocupe.Elenãosabedenadaaseurespeito.”Emseguida,explicouqueameninahaviasofridotantoquenãotinhaideiadoquefazia;TarıkBey

foraoprimeiroaproporaideiadocasamentocomocura,enofinalelaprópriaconcordaraemcasarFüsuncom“essegaroto”.FeridunconheciaFüsundesdequeelatinhacatorzeanos.Naqueletempo,apaixonara-seloucamenteporela,masFüsunnãolhedavaatenção,equaseodestruíracomsuafaltadeinteresse.HojeemdiaFeridunnãoeramaistãoapaixonadoporFüsun—eelaergueudeleveassobrancelhas,sorrindo,comosemedissesse:“Seiquedessanotíciavocêvaigostar”.Feridunquasenuncaficavaemcasaànoite,poisviviatotalmenteabsorvidoporseusamigosdomundodocinema.AtéparecequetinhadeixadoodormitórioondemoravaemKadırganãoparasecasarcomFüsun,masparaficarmaispertodosbaresdeBeyoğluondeseusamigospassavamotempo.Claro,osdoisacabaramsentindoalgumacoisaumpelooutro,comosempreaconteciacomjovenscasaissaudáveisqueaceitavamcasamentosarranjados,maseunãodeviaexageraraimportânciadessessentimentos.Depoisdetodootormentoporquetinhampassado,seuspaistinhamachadoprudentequeFüsunsecasasselogo,edissonãosearrependiam…O“tormento”dequeelafalavaerasemdúvidanãooamordeFüsunpormim,ouseufracassono

vestibular: seusolhosdeixavambemclaroqueocoraçãodacriseerao fatodeFüsun terdormidocomigoantesdocasamento,eagoraacusar-medaquilo lhetraziaumprazerevidente.SócomumcasamentoimediatoFüsunpodiasalvar-sedadesonra,e,claro,eratudoresponsabilidademinha!“Sabemos— todos nós — que Feridun não irá muito longe, que não tem condições de

proporcionarumavidaboaaFüsun.Maséomaridodela!”,dissetiaNesibe.“ElequertransformarFüsunnumaestreladocinema.Éummeninohonestoebem-intencionado!Sevocêamaaminhafilha,ajudaráosdois.AchamosqueseriamelhordarFüsunaFeridunemcasamentodoqueaalgumbodevelhoqueaolhassedecimaparabaixoporcausadavirtudemanchada.Ogarotovaiapresentá-laàspessoasdocinema.Evocê,Kemal,podeprotegê-la.”“Claro,tiaNesibe.”Sesoubessequesuamãemerevelarasegredosdefamília,Füsunhaviadenospunirseveramente.

(TiaNesibesorriudeleve,comoseestivessesóexagerandoumpouco.)“Claro,Füsunficoumuitoabaladaquando soubeque você terminouonoivado comSibel, assimcomo ficoumuito triste aosaberquevocêestavasofrendotanto,Kemal.Essegarotoapaixonadoporcinemacomquemelasecasou tembomcoração,masnãovaidemorarmuitoparaFüsunvercomoé inepto,equandoelapercebervaideixá-lo…Atéessemomento,vocêpodeficarporperto,dando-lheapoioeconfiança.”“Tudoqueeuquero,tiaNesibe,érepararomalqueeufizeosofrimentoqueprovoquei.Porfavor

meajudeareconquistá- la”,pedi,tirandodobolsoacaixacomosbrincosdemeupaieentregandoaela.“IstoéparaFüsun”,disseeu.“Obrigada…”,respondeuela,epegouacaixa.“TiaNesibe…maisumacoisa…Daprimeira vezque vimaqui jantar, eu trouxeumbrincode

Füsun.Masnuncachegouàsmãosdela.Vocêporacasosabeondeestá?”“Nuncatinhaouvidofalardisso.Podeentregaropresentevocêmesmo,sequiser.”

Page 212: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Não,não…Dequalquermaneira,aquelebrinconãoerapresente;pertenceaela.”“Que brinco?”, perguntou tia Nesibe. Quando viu que eu não sabia bem o que dizer, ela

comentou:“Sepelomenostudopudesseseacertarcomumpardebrincos…QuandoFüsunestavapassandomal,Feridunvinhasemprenosvisitar.Quandominhafilhaestavatãofracadesofrerquemalconseguiaandar,eleapegavapelobraçoeandavacomelaatéBeyoğluparairaocinema.Todanoite,antesde iraobar seencontrarcomos seusamigosdocinema,elepassavaaquie se sentavaconosco,comiaconosco,viatelevisãoconosco,tratavaFüsuncomtantocarinho…”.“Possofazerbemmaisdoqueisso,tiaNesibe.”“SeDeusquiser,KemalBey.Vocêserásemprebem-vindonestacasa.Venhaqualquernoite!Edê

lembrançasminhasàsuamãe,masnãováaborrecê-lacomnadadisso.”Quandoolhouparaaporta,comoqueparamedizerqueeuprecisavairemboraantesqueFüsun

chegasse e me encontrasse, saí de imediato, sentindo-me em paz enquanto subia a ladeira deÇukurcumaatéBeyoğlu,livredaindignaçãoedequalquertipodehostilidade.

54.Otempo

DuranteexatamenteseteanosedezmesesvisiteiregularmenteacasadeÇukurcuma,parajantareverFüsun.Senoslembrarmosdequeminhaprimeiravisitafoinosábado,23deoutubrode1976—onzediasdepoisdoconvitepermanentede tiaNesibe (“Venhaqualquernoite!”)—, e queminhaúltimanoiteemÇukurcumacomFüsunetiaNesibefoinodomingo,26deagostode1984,podemosverquehouve2864diasentreumaeoutra.Segundominhasanotações,duranteasquatrocentasenove semanas queminha história descreverá agora, estive lá jantando 1593 vezes. Disso podemosdeduzirquejantavaláquatrovezesporsemanaemmédia,masnãoquefosseregularmentequatrovezesporsemana.Haviasemanasemqueestavacomelestodososdias,eoutrasemque—tornandoameindignare

ameconvencerdequeseriacapazdeesquecerFüsun—eumemantinhaàdistância.Masnuncapassei dez dias sem Füsun (quer dizer, sem vê-la), porque no final desse período sempre estavanovamenteàsvoltascomomesmoníveldesofrimentoporquepassaranooutonode1975equetinhaprecipitadooregimeemcurso,demodoqueocorretoseriadizerqueeuviaFüsunesuafamília(osKeskin)comgrandefrequência.Eles,porsuavez,contavamregularmentecomminhapresença,esempre adivinhavam quando eramais provável que eu fosse aparecer. De qualquermaneira, empoucotempotinhamseacostumadoameveràmesadojantar,assimcomomeacostumeiàideiadequeestavamsempreàminhaespera.OsKeskin nunca precisavam convidar-me formalmente para jantar, porque sempre guardavam

um lugar para mim à mesa. E isso me deixava bastante aflito quando eu não estava totalmentedecididoecustavaadecidir.Àsvezeseuachavaque,casofosseumavezmais,podiaestarabusandoe,senãofosse,nãosómeveriaàsvoltascomadordenãoverFüsun,comoaindapodiadeixá-los“ofendidos”,sucumbindoaomedodequeminhaausênciapudessesermalinterpretada.EssasansiedadesmeafetarammaisduranteminhasprimeirasvisitasaÇukurcuma,quandoainda

Page 213: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

nãoestavaacostumadoàquelacasa,àpresençaregulardeFüsuneàsuarotinadoméstica.EsperavaqueFüsunpercebessequeeutentavalhedizer“Estouaqui”,pelomodocomoeuaolhavanosolhos.Foi o sentimento que me dominou na primeira visita. Nos primeiros minutos depois de minhachegada,eumecongratuleiporteridoatélá,vencendominhavergonhaemeunervosismo.Afinal,seeume sentia felizassimporestarpertodeFüsun,porque tantosproblemasem tornodaquelasvisitas?Ealiestavaela,sorrindodocemente,comosenãohouvessenadaforadocomumnaminhapresença,comoseestivesserealmentefelizporeutervindo.Éuma pena quemuito raramente ficássemos a sós durante essas primeiras visitas. Ainda assim,

aproveiteicadaoportunidadeparamurmurarcoisascomo“Sentiterrivelmenteasuafalta!”ou“Achoquesentiterrivelmenteasuafalta!”eFüsunrespondia,apenascomosolhos,dandoaimpressãodedizerqueminhaspalavrasadeixavamfeliz.Nãoseriapossívelnosaproximarmosmaisqueisso.Para esclarecer os leitores que se espantem ao ver que fui capaz de visitar Füsun e sua família

(parecetãoclínicochamá-losde“osKeskin”)poroitoanos,equeseperguntemcomopossofalaremtom assim ligeiro de um período de tempo tão longo— milhares de dias—, gostaria de dizeralgumascoisassobreailusãoqueéotempo,poisexisteumtipodetempoquepodemoschamardetempodecadaum,eoutro—damos-lheonomedetempo“oficial”?—quecompartilhamoscomtodososdemais.Éimportanteestender-mesobreessadistinção,primeiroparaadquirirorespeitodosleitores que podem me achar um sujeito estranho, obcecado e até um tanto assustador, por terpassado oito anos suspirando de amor, entrando e saindo da casa de Füsun, mas também paradescrevercomoeraavidadaquelafamília.Voucomeçarpelorelógiodeparede:eragrande,defabricaçãoalemã,comumacaixademadeira

evidro,pênduloecarrilhão.Pendiadaparedeaoladodaporta,eficavalánãoparamedirotempo,mas como um lembrete constante a toda a família da continuidade do tempo, e testemunho domundo“oficial”doladodefora.Comoatelevisãoassumiraopapeldemarcarashorasnosúltimosanos,fazendoissodemaneiramaisdivertidaqueorádio,aquelerelógio(comocentenasdemilharesdeoutrosrelógiosdeparededeIstambul)vinhaperdendosuaimportância.Os relógiosdeparedeentraramnamodaem Istambulno finaldo séculoXIX, quando os paxás

ocidentalizadoseosnãomuçulmanosricoscomeçaramaguarnecersuascasascomimensosrelógiosdeparedemuitomaisadornadosqueaquele,comcontrapesos,pênduloechavesparadarcorda.NosprimeirosanosdoséculoXX,depoisdafundaçãodaRepública,quandoopaísaspiravaaoOcidente,esses relógios logo caíram no gosto das classesmédias da cidade. Havia um relógio daqueles emminhacasaquandoeueracriança,etodasasoutrascasasquenaépocafaziampartedaminhavidatinhamrelógiosidênticosoumaiores,comacaixademadeiraaindamaistrabalhada,egeralmenteeramencontradosnaentradaounosaguãodascasas,emboraninguémolhassemuitoparaeles,poisjánadécadade 1950“todomundo”,atéascrianças,usava relógiodepulso,e todacasa tinhaumrádiosempreligado.Atéosaparelhosdetelevisãofinalmentecomeçaremadominaratrilhasonoradavidadoméstica,alterandoamaneiracomoaspessoascomem,bebemesereúnememcasa—emmeados dos anos 1970, quando começanossa história—, esses relógios de parede continuavam atiquetaquearcomooutrora,emboraosmoradoresdascasasmallhesdessematenção.Emnossacasa,denenhumdosquartosnemdasaladeestardavaparaouvirotique-taqueouocarrilhãodorelógio,

Page 214: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

demaneiraqueelenuncanosperturbava.Eassim,pormuitosanos,ninguémnempensouemdeixá-loparar,econtinuavamasubirnumacadeiraparadar- lhecorda.Emcertasnoitesemminhacasa,quando meu amor por Füsun me levava a beber muito, o sofrimento me despertava e eu melevantavadacamaparafumarumcigarronasala;ouviaorelógionocorredordandoashoraseaquiloreconfortavameucoração.NacasadeFüsun,haviaocasiõesemqueorelógiofuncionavaeoutrasemqueestavaparado:foi

duranteoprimeiromêsquerepareinadiferença,elogomeacostumeiaela.Depoisdejantar,nossentávamosjuntosparaverumfilmeturco,algumacantoraturcamuitosedutorainterpretandoumacançãoantiga,ouumfilmesobreRomaantigacomgladiadoreseleões,quecomeçávamosaassistirnomeio,comlegendastãoruinsouumadublagemtãoprecáriaqueimediatamentecomeçávamosafazerpiadasatémalconseguirmosacompanharaação;cadaumseentregavaaseusprópriossonhos,elogochegavaummomentoemque,poralgumencantamento,umsilênciorecaíasobreoaparelhode televisão, e o relógio pendurado junto à porta, de cuja existência tínhamos nos esquecido,começavaabaterashoras.Umdenós—geralmentetiaNesibeeàsvezesFüsun—virava-separaorelógiocomumolharsignificativo,eTarıkBeydizia:“Quemterádadocordadenovo?”.Àsvezesalguémdavacordanorelógio,masàsvezestodosesqueciam.Mesmoquandolhedavam

cordaeeleandava,ocarrilhãopermaneciaemsilênciomesesa fio;àsvezessóbatiaumavez,nasmeias horas; às vezes se rendia ao silêncio reinante e semanas se passavam antes que voltasse aproduzir algum som.Era entãoqueeupercebia, comumarrepio, como tudodeve ser assustadorquandoapessoanãoestáemcasa.Estivesseounãoorelógioandando, tocasseounãoocarrilhão,ninguém fitava o relógio de parede para ver as horas; mas sempre passavam muito tempoconversandosobreorelógio,discutindosealguémtinhalhedadocordaounão,esobreamaneiradefazerumpêndulo serpostodenovoemmovimentocomumúnico impulso. “Deixeo relógio empaz,deixe tiquetaquear,não fazmal aninguém”,dizia às vezesTarıkBey à suamulher. “Elemelembradequeestacasaéhabitada.”Achoqueeusempreconcordava,assimcomoFüsun,Feriduneatéalgumvisitanteocasional.Demaneiraqueafinalidadedorelógiodeparedenãoeranoslembraraexistênciadotempo,ounosavisarquetudomuda:eraconvencer-nosdequenada,coisanenhuma,tinhamudado.Durante esses primeiros meses, não me atrevi sequer a sonhar que nada teria mudado ou iria

mudar— que eupassaria oito anos jantando emÇukurcuma, vendo televisão e jogando conversafora com aquela família. Durante minhas primeiras visitas, cada palavra que Füsun emitia, cadasentimentoqueserevelavaemseurosto,amaneiracomoelaandavadeumladoparaooutropelasala—tudomeparecianovoediferente,e,estivesseorelógiofuncionandoounão,eununcaolhavaparaele.Oqueimportavaeraestarsentadoàmesmamesaqueela,olharparaela,sentir-mefelizeficarperfeitamenteimóvelenquantomeufantasmadeixavameucorpoparabeijá- la.Mesmoqueninguémpercebesse,o relógio sempre tiquetaqueavadamesmamaneira, equando

nos sentávamos à mesa, jantando juntos, ele nos trazia o conforto de saber que não tínhamosmudado,quetudocontinuariaigualentrenós.Orelógioserviaparanãodeixarqueesquecêssemosdo tempo, embora sempre nos trouxesse de volta ao presente, recordando a cada um de nós asrelaçõesquetinhacomosoutros—eeraesseparadoxoqueprovocavaaguerrafriaquedetempos

Page 215: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

em tempos se travava entre tiaNesibe eTarık Bey. “Quem voltou a dar corda nesse relógio paraacordar todo mundo no meio da noite?”, perguntava tia Nesibe, quando percebia durante umsilêncio que o relógio voltara a funcionar. “Se não estivesse funcionando, íamos sentir a falta dealgumacoisanestacasa”,disseTarıkBeynumanoitedeventodedezembrode1979.Eacrescentou:“Ouvíamos o tique-taque na outra casa também”. “Está querendo me dizer que ainda não seacostumouaÇukurcuma,TarıkBey?”,perguntoutiaNesibe,comumsorrisomuitomaisdocedoquesuaspalavrasdavamaentender (àsvezesela sedirigiaaomaridoacrescentandoa seunomeohonorífico“Bey”).Esses gracejos comedidos, comentáriosmaliciosos e alfinetadas proferidas nomomento perfeito

eramumaartequeocasal tinhaaperfeiçoadoao longodemuitos anos, e, todavezqueouviamotique-taquedorelógionummomentoinesperadoouqueocarrilhãocomeçavaatocar,adiscórdiatornava-semaisintensa.“Vocêdeucordanesserelógioparaeutambémpassaranoitesemdormir,TarıkBey”,diziatiaNesibe.“Füsun,querida,podepararorelógio?”Sealguémusasseodedoparapararopêndulonomeiodocaminho,orelógioparava,pormaisquealguémtivessedadocordanorelógio,masFüsunlimitava-seasorrireolharparaopai;àsvezes,TarıkBeylhedirigiaumolharquesignificava“Estábem,podeirpararorelógio!”,masàsvezesteimavaemrecusar.“Eunãomexinorelógio.Começouatrabalharporcontaprópria,entãoqueparesozinho!”,diziaele.Àsvezes,quandoviamqueessaideiamisteriosaproduziaalgummedonosvizinhosounascriançasquevinhamvisitá-los em raras ocasiões, Tarık Bey e tia Nesibe começavam uma discussão carregada de duplossentidos.“Foramosdjinnsquepuseramnossorelógioparafuncionardenovo”,diziatiaNesibe.“Nãomexanele,podesemachucar”,diziaTarıkBeycomumavozameaçadoraeorostofranzido.“Estoupoucoligandoseéumdjinnqueestáagindodentrodele”,respondiatiaNesibe.“Sónãoqueroquemeacordenomeiodanoitecomoumencarregadodosinodaigrejaque,quandoencheacara,nãosabemaisadiferençaentreodiaeanoite.”“Parecomessashistórias!Dequalquermaneira,separardepensarnotempovaisesentirmelhor”,diziaTarıkBey.Aquieleusava“tempo”nosentidode“omundo moderno”, ou “a época em que vivemos”. Esse “tempo” era uma coisa em permanentemudançae,comaajudadofuncionamentoperpétuodorelógio,tentávamosmantê-loaolargo.O aparelho realmente usado pela família Keskin para acompanhar a marcha do tempo era a

televisão,que,comoorádiodanossacasanosanos1950e1960,estavasempreligada.Notempodorádio,qualquerquefosseaestaçãoouoprogramatransmitido—umconcerto,umdebate,umaauladematemática,oquefosse—,ouvia-seumsinalsonorodiscretoaocompletar-seahoraecadameiahora, emprol dos eventuais interessados.Ànoite, quando víamos televisão, nãohavia necessidadedessessinais,ouamaioriadaspessoasnãoprecisavadashoras,amenosquequisessesaberqualeraoprogramanatelevisão.Todanoite,àssete,quandooimensorelógioaparecianatelaumminutoantesdeaTRT,oúnico

canal de televisão do país, começar seunoticiário, Füsun olhava para o relógio de pulso (expostoaqui)enquantoTarıkBeyconsultavaumdosmuitosrelógiosdebolsoqueoviusaraolongodaqueleperíodo de oito anos— fosse para confirmar que os relógios estavam certos ou para acertá- los deacordo com aTV. E o faziam sempre.Minha satisfação era profunda sempre que eu via Füsunsentadaàmesadejantar,olhandoparaorelógioimensonatelaeapertandoosolhos,pressionandoa

Page 216: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

línguacontraointeriordabochechaenquantocalibravaseurelógiocomaseriedadedeumacriançaquecopiaseupai.Desdeasminhasprimeirasvisitas,Füsunpercebeuoquantoeuapreciavaaquelesmomentos. Enquanto sincronizava o relógio, sabia que eu a observava com amor, e, quandofinalmenteajustavaahoracerta,olhavaparamimesorria.“Agoraseurelógioestácertíssimo?”,euperguntavanessesmomentos.“Está,acertei!”,respondia-me,comumsorrisoaindamaiscaloroso.Comomuitoaospoucosacabariacompreendendoaolongodessesoitoanos,nãoeraapenaspara

verFüsunqueeu ia à casada famíliaKeskin,maspara viver algum temponomundocujo ar elarespirava.E o quemelhor definia aquele universo era sua atemporalidade.Eis por queTarıkBeyaconselhava sua mulher a “esquecer-se do tempo”. Quando as pessoas vêm visitar meumuseu eexaminamosantigospertencesdafamíliaKeskin—especialmentetodosaquelesrelógiosdeparede,debolsoedepulsoquebradoseenferrujadosquejánãofuncionamháanos—,queroquepercebamcomosãoestranhos,comoparecemexistir foradotempo,comocriaramentresiumtempoquesóelesmarcam.EsteéomundoatemporalcujoareurespiravanosanosemquefrequenteiacasadeFüsunesuafamília.Para além desse espaço sem tempo ficava o tempo “oficial” do mundo exterior, com o qual

mantínhamos contato através da televisão, do rádio e das convocações às preces; sempre que nosperguntávamosquehorasseriam,estávamosorganizandonossasrelaçõescomomundoexterior,oupelomenoseraaimpressãoqueeutinha.Füsunnão acertava seu relógioporque a vidaque levava exigisseum relógio exato aonível dos

segundos,paraquepudessechegarpontualmenteaotrabalhoouaalgumencontro;comoseupai,funcionáriopúblico aposentado, elao fazia comoummodode aceder aumadiretivaque lheeratransmitidadiretamentedeAnkaraedoEstado,oupelomenoseraaimpressãoqueeutinha.Víamosorelógioqueaparecianatelaantesdonoticiáriocomoolhávamosparaabandeiraqueaparecianatela,quandoohinonacionaltocavanofimdastransmissõesdecadadia:sentadosemnossotrechodemundo,nos preparandopara o jantar oupara encerrar a noite desligando a televisão, sentíamos apresença de milhões de outras famílias que faziam a mesma coisa, a quantidade de gente queconstituía a nação, o poder do que chamávamos de Estado e nossa própria insignificância. EraquandovíamososprogramassobreAtatürk,olhávamosabandeiraouorelógiooficial(detemposemtempos, o rádio se referia à “hora nacional”) que percebíamosmais nitidamente que nossas vidasdomésticasconfusasedesordenadastinhamumaexistênciaindependentedodomíniooficial.EmsuaFísica,AristótelesestabeleceumadistinçãoentreoTempoeosmomentos isoladosque

descreve como o “presente”. Os momentos isolados— como os átomos de Aristóteles— sãoindivisíveis.EoTempoé a linhaqueconecta essesmomentos indivisíveis.EmboraTarıkBeynosrecomendassequeesquecêssemosoTempo—essalinhaqueconectaummomentopresenteaoqueosucede—,sóosidiotasouosacometidosdeamnésiaconseguemrealmenteesquecê-lo.CadaumdenóssópodetentarserfelizeesqueceroTempo,eéoquetodosfazemos.SehouverleitoresqueachemridículasascoisasquemeuamorporFüsunmeensinou,essasobservaçõesquesurgiramdasminhas experiências ao longo de oito anos na casa de Çukurcuma, gostaria de lhes pedirencarecidamente para não confundirem esquecer-se do Tempo com esquecer-se dos relógios oucalendários.OsrelógiosecalendáriosnãoexistemparanoslembraroTempoqueesquecemos,mas

Page 217: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

pararegularnossarelaçãocomosoutrosenaverdadecomasociedadeemgeral,eéporissoqueosusamos.Quandoolhávamosparaorelógioempretoebrancoqueaparecianatelaacadanoite,logoantes do noticiário, não era doTempo que nos lembrávamos,mas das outras famílias, das outraspessoas e dos relógios que regulavam nossas relações com elas. Era por esse motivo que FüsunsempreestudavaorelógionateladaTVparaverificarsetinhaajustado“exatamente”oseurelógio,etalvezelasorrissetãofelizporqueeuaolhavacomamor—enãoporqueselembrassedoTempo.Minha vidame ensinou que lembrar-se doTempo— a linha que conecta cadamomento que

Aristóteleschamadepresente—é,paraamaioriadenós,umexercíciodoloroso.Quandotentamosimaginaralinhaqueconectaessesmomentos,ou,comoemnossomuseu,alinhaqueconectatodososobjetosquetrazemessesmomentosdentrodesi,somosforçadosalembrarquealinhachegaráaumfim,econtemplaramorte.Àmedidaqueenvelhecemosechegamosàpenosacompreensãodeque essa linha, por si só, não tem um significado próprio — é uma ideia que nos ocorrecumulativamente,emintimaçõesquenosesforçamosporignorar—,recaímosnosofrimento.Masàsvezesessesmomentosquechamamosde“presente”podemnostrazerumafelicidadecapazdedurarumséculo,comoocorriaacadasorrisodeFüsun,nosdiasemqueeujantavaemÇukurcuma.Desdeoinício,sabiaquesóestavaindoàcasadosKeskinnaesperançadepoderreunirfelicidadesuficientepara durar até o fimdaminha vida, e erana intençãodepreservar para o futuro essesmomentosfelizesqueeurecolhiatantosobjetos,grandesepequenos,quetinhampassadopelasmãosdeFüsun,eoslevavaparacasa.No finaldeumanoite,nodecorrerdo segundodosoitoanos,quandoa televisão terminousuas

transmissões,ouviTarıkBeyrecapitularasmemóriasdeseutempocomojovemprofessordoliceudeKars.Se tinhaalgumapegopelasmemóriasdaqueles anos infelizes,quandovivia só, lutandoparasobreviver com um salário baixo, sofrendo muitos infortúnios, não era porque as memóriasadquirissemumtommaisróseocomopassardotempo,comoacreditaamaioriadaspessoas,masporque gostava de falar sobre os bonsmomentos (as partículas de Agora) que vivera naquela faseconturbadadesuavida(contas inevitavelmenteenfiadasnalinhaperversadoTempo).Depoisquefaloudesseparadoxoumanoite, lembrou-seporalgummotivodo relógio “Leste-Oeste”que tinhacompradoquandoviviaemKars,equefoibuscarparamemostrarseusdoismostradores,umcomalgarismosarábicos,outrocomromanos.Quero estender-me nesse tema com outro relógio: quando vejo este delgado relógio de pulso

Buren que Füsun começou a usar em abril de 1982, o que aparece diante dos meus olhos é omomentoemqueodeidepresenteaelaemseuvigésimoquintoaniversário,eomomentoemque,depoisde tê- loretiradodesuacaixahojeperdida,comseuspaisemalgumoutro lugar(eFeridunforadecasa),elamebeijounasduasfaces,portrásdaportaabertadacozinha,eomomentoemqueestávamostodossentadosjuntoseelamostrouorgulhosaorelógioaseuspais,eomomentoemqueseus pais, tendo aceitado havia muito minha presença como ummembro excêntrico da família,agradeceram-me cada um por sua vez. Paramim, a felicidade reside em reviver essesmomentosinesquecíveis. Se pudermos aprender a parar de pensar em nossas vidas como uma linhacorrespondente ao Tempo de Aristóteles, dando valor a nosso tempo por seus momentos maisprofundos,cadaumporsi,esperarporoitoanosàmesadejantardesuaamadadeixadepareceruma

Page 218: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

obsessãotãoestranhaerisível,mas(comoeuhaviadedescobrirmuitodepois)assumearealidadede1593noites felizes àmesa de jantar deFüsun.Hoje, lembro cadaumadessas noites emque eu iajantar emÇukurcuma— mesmo as mais difíceis, mais cheias de desesperança e humilhação—comoafelicidade.

55.Volteamanhã,epodemossentarjuntosdenovo

Por oito anos, contanto que alguma enchente ou a neve não tivesse fechado as ruas, o carroestivesseemboascondições,eelenãoestivessedoenteoudefolga,ÇetinEfendimelevavaatéacasade Füsun noChevrolet demeu pai. Tive o cuidado de jamais abrirmão dessa regra.Depois dosprimeirosmeses,eletravaraamizadesnascasasdecháenoscaféslocais.JamaisdeixavaocarrobememfrenteàcasadosKeskin,preferindoestacionarpertodessesestabelecimentos,quetinhamnomescomoCaféMarNegroouCasadeCháNoturno;entravanumdesseslugarese,enquantoassistiaaomesmoprogramadetelevisãoquevíamosnacasadeFüsun,liaojornal,participavadaconversaeàsvezesdeumapartidadegamão,ouviaoshomensdisputandoumjogodecartasconhecidocomokonken.Depoisdosprimeirosmeses, todomundonavizinhançanosconheciadevista,e,amenosqueÇetinEfendiestivesseexagerando,consideravam-meumhomemhumildequevisitavafielmenteseusparentesmaispobresedistantessópeloprazerdesuacompanhiaepeloamorquesentiamporele.Ao longodosoitoanos, éclaroquehouvequem julgassequeeu tinhaalgumdesígnioocultoe

malévolo. Surgiram rumores a esmo, indignos de qualquer consideração: que eu estava lá paracomprarporumaninhariatodasascasasarruinadasdasproximidades,sóparademoli- laseconstruiredifíciosdeapartamentos;queestavaàprocuradetrabalhadoressemqualificaçãoparatrabalharemminhas fábricas em troca de um salário vil; que era desertor do Exército; ou que era um filhoilegítimo de Tarık Bey (o queme transformaria em irmãomais velho de Füsun).Mas a maioriarazoável deduziu, a partir dos fragmentos de informação que tia Nesibe cuidava de liberarocasionalmente, que eu era umprimo distante deFüsun, envolvido numprojeto cinematográficocom seumarido destinado a transformá-la numa estrela. Pelo queÇetinme contou ao longo dosanos,entendiquenãohavianadadeinaceitávelnessascircunstâncias,eque,emboraosvizinhosdeÇukurcumanãocultivassemumafetoespecialpormim,emgeralmedirigiamumolharfavorável.Dequalquermaneira,nosegundoanojámeviamquasecomomaisummoradordaárea.Eraumaregiãomuitodiversificada:estivadoresdeGalata,vendedoreseproprietáriosdepequenas

lojasdas ruas secundáriasdeBeyoğlu, famílias romanique tinhamse transferidopara lávindasdeTophane, famíliascurdasdeTunceli,os filhosenetosempobrecidosde italianose levantinosquetrabalhavam como funcionários em Beyoğlu ou nos bancos do centro, um punhado de famíliasgregas antigas que, como eles, ainda não tinham reunido a coragem de deixar Istambul, e váriosempregadosdepadariaseoficinas,motoristasdetáxi,carteiros,merceeiroseestudantesuniversitáriossem dinheiro. Essa multidão não constituía o tipo de comunidade unida que se via nos bairrosmuçulmanos tradicionais como Fatih, Vefa e Kocamustafapaşa. Mas pela ajuda que sempre me

Page 219: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

ofereciam,pelointeressequeosrapazesdemonstravamporqualquercarromaiscaroouincomumque passasse pelas ruas, pela velocidade com que as notícias e os boatos se transmitiam pelavizinhança, inferi certa interconexão, uma solidariedade precária, ou pelo menos a energia daexperiênciacompartilhada.A casa em que a família de Füsun, os Keskin, vivia ficava na esquina da avenida Çukurcuma

(popularmente conhecida como a ladeira de Çukurcuma) e uma viela estreita chamada Dalgıç.Comosepodevernomapa,deládavaparairapéemdezminutos,percorrendoasruasinclinadasecheiasdecurvasdaárea,atéBeyoğlueaavenidaİstiklal.Certasnoites,nocaminhodevoltaparacasa,Çetinsubiaporessas ruasatéBeyoğlue, sentadonobancode trás, fumandoumcigarro,euolhavaparadentrodascasasedaslojas,eparaaspessoasnascalçadas.Aquelasruaseramladeadaspor casas dilapidadas de madeira que se reclinavam sobre a calçada como que à beira de umcolapso,eprédiosvaziosabandonadospelaondamaisrecentedegregosquetinhamemigradoparaaGrécia; esses prédios, além das chaminés que os curdos pobres que invadiam os apartamentosarmavamparaforadasjanelas,assumiamumafeiçãoumtantoassustadoraànoite.Mesmoàmeia-noite,aáreapróximaaBeyoğluaindaestavavivacompequenosbarespoucoiluminados,meyhanes,clubes noturnos baratos que se descreviam como “estabelecimentos de bebida”, lanchonetes,mercearias que vendiam sanduíches, casas lotéricas, tabacarias onde também se podia comprarnarcóticos,uísqueoucigarroscontrabandeados,eatélojasquevendiamdiscosecassetes,e,emboratodosesses lugares tivessemumarmiserável,pareciam-mealegreseanimados.Claroque só tinhaessaimpressãoquandodeixavaacasadeFüsunempazcomigomesmo.HaviamuitasnoitesemquedeixavaafamíliaKeskinachandoquenuncamaisvoltariae,revoltadodiantedafeiuradaquelaruadesordenada,enquantoÇetindirigiaeumerecostavainfeliznobancotraseiro,comoquedesmaiado.Amaioriadasnoitesinfelizesdessetiporemontaaosprimeirosanos.ÇetinmepegavaemNişantaşıumpoucoantesdassetedanoite;encontrávamosalgumtráfegoem

Harbiye, Taksim e Sıraselviler, e depois serpenteávamos pelas ruas secundárias de Cihangir eFiruzağa,passandoemfrenteaohistóricoHamamdeÇukurcumaenquantodescíamosaladeira.EmalgumpontodocaminhoeupediaaÇetinparapararocarroecompraralgumpetiscoouumramodeflores.Nãoemtodavisita,masacadaduasemmédia,eutraziaalgumpresentinhoparaFüsun—chicletes Zambo, um broche ou um prendedor de cabelo enfeitado de borboletas que eu tivesseencontradoemBeyoğluounobazarcoberto—edavaaelacomarmuitodespreocupado,comoseaquilonãopassassedeumabrincadeira.Em certas noites, para evitar o tráfego, tomávamos o caminho que passava porDolmabahçe e

Tophane, virando à direita na avenida Boğazkesen. Sem exceção, naquele período de oito anos,semprequeentrávamosnaruaondemoravaafamíliaKeskin,meucoraçãodisparavacomoocorriaquando,aindacriança,euentravana ruaonde ficavaminhaescola, sentindouma inquietaçãoemqueaalegriasemisturavaaopânico.Cansadodepagaro alugueldeumapartamentoemNişantaşı,TarıkBeyusara suas economias

paracompraracasadeÇukurcuma.Aentradadacasadafamíliaficavanoprimeiroandar.Maseleseramdonos tambémdapequenacasado térreo,eao longodosoitoanosumasériede famíliasdelocatários entroue saiude lá como fantasmas, sem jamais se envolvernanossahistória.A entrada

Page 220: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

desse pequeno apartamento (quemais tarde seria incorporado aoMuseu da Inocência) ficava natransversal— a rua Dalgıç —, de maneira que meu caminho raramente cruzava com seusmoradores.SoubequeFüsunficaraamigadeumadasinquilinas—umagarotachamadaAyla,quedividiaoapartamentocomamãeviúvaenquantoseunoivofaziaoserviçomilitar—eiamjuntasaocinemaemBeyoğlu,masFüsunescondiademimsuasamizadesnasvizinhanças.Duranteosprimeirosmeses, semprequeeu tocavaa campainhana ladeiradeÇukurcuma,era

invariavelmentetiaNesibequemdesciaolancedeescadasparameabriraporta.Emtodososoutroscasos, mesmo que a campainha tocasse à noite, ela mandava Füsun descer. Era sua maneira dedeixarclaroparamimque,desdeminhaprimeiravisita, todomundosabiaporqueeuestavaali,equeparatantoeraelaminhamediadoranatural.MashouveocasiõesemqueacheiqueFeridundefatonãodesconfiavadenada.QuantoaTarıkBey,vivendocomovivianummundoàparte,nuncamedeumotivoparamuitapreocupação.Nomesmoespírito,tiaNesibe,assimqueabriaaporta,cuidavadedizeralgumacoisaparafazer

minha presença parecer natural. Os começos de conversa eram quase sempre inspirados no queestivessemvendonatelevisão:“Umaviãofoisequestrado.Vocêjásabia?”,“Estãopassandoimagensdabatidadeônibus,enãotomaramocuidadodeescondernenhumhorror”,ou“Estamosvendoavisitadoprimeiro-ministroaoEgito”.Quandoeuchegavaantesdotelejornal,tiaNesibediziacomamesma convicção: “Ah, ótimo, você chegou bem na hora. O jornal já vai começar!”. E às vezesacrescentava: “Fizemos aqueles folheados de queijo de que você tanto gosta” ou “Hoje demanhãFüsuneeufizemosdolmasdefolhasdeparreira,vocêvaiadorar”.Quandosuaspalavrasparadiluirasituação soavam forçadas demais, eu ficava envergonhado e não dizia nada. Mas quase semprerespondia alegremente: “É mesmo?” ou “Ah, ótimo, bem na horinha”, e repetia a resposta comentusiasmo exagerado quando subia e via Füsun, esperando conseguir esconder a vergonha e aalegriaquesentianaquelemomento.“Ah,esperonãoterperdidoaquedadoavião”,dissecertavez.“Aquedadoaviãofoiontem,primoKemal”,respondeuFüsun.No inverno, eu sempre podia dizer “Como está frio!” ou “Vamos tomar sopa de lentilhas?”

enquantotiravaosobretudo.Depoisdefevereirode1977,quandoainstalaçãodeuminterfonelhespermitiadeixar-meentrarsemqueninguémprecisassedesceraescada,cabiaamimogambitodeaberturaquandoentravanoapartamento,oqueeramaisdifícil.QuandotiaNesibemeviafazendoumesforçoparaencontraralgummododemeintegraràrotinadacasa,puxava-meimediatamenteparadentro:“Oh,KemalBey,nãofiqueaíparado,sente-selogo,antesqueseufolheadoesfrie”;issoquandonãofaziaalgumaalusãomaistópicaaonoticiário:“Osujeitomatoutodomundoqueestavanocafé,eagoraaindasegaba”.Eu franzia a testa eme sentava imediatamente.Os presentes que levava também ajudavamnos

primeirosmomentosdedesconcerto,assimqueeuchegava.Duranteosprimeirosanos,costumavalevarbaklavadepistache,aprediletadeFüsun,oudocesfolheadosdaLatif,afamosaconfeitariadeNişantaşı,ouhorsd’oeuvrescomobonitosalgadooutaramasalata.SempreentregandooquetrouxeraparatiaNesibe,etomandoocuidadodenãoexagerar.“Ah,nemprecisavasedaraotrabalho!”,diziatiaNesibe.Emseguida,euentregavaopresenteespecialquetrouxeraparaFüsun,ouodeixavaem

Page 221: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

algumlugarondeelapudesseencontrá-lomaistarde,desviandosuaatençãocomarespostaalegrequedirigiaatiaNesibe:“Euestavapassandopelaloja,eosdocescheiravamtãobemquenãoresisti”,e acrescentando algumas palavras de elogio à confeitaria de Nişantaşı de onde trouxera minhaoferenda.Emseguidainstalava-mediscretamenteemmeulugar,comoumalunoquechegaatrasadona saladeaula,eaospoucos recobravameuânimo.Depoisde jáestar sentadoàmesaporalgumtempo, acabava trocando um olhar com Füsun. Esses eram os momentos sublimes quecompensavamquaisquertribulaçõesporqueeutivessepassado.Eudavaumvalorsupremoaessesmomentosemquenossosolhosseencontravampelaprimeira

vez— não assim que eu chegava, mas quando já estávamos sentados à mesa—, não só porqueaqueciameucoraçãomasporqueindicavaotipodenoitequetínhamospelafrente.SeeupercebessealgumatranquilidadenaexpressãodeFüsun,mesmoquecontraída,orestodanoiteassumiriaaqueletom.Se,contudo,elasemostravainfelizouinquieta,semsorrir,eutampoucosorririamuito;duranteosprimeirosmeses,nessas condições, eunem tentava fazê-la rir, limitando-mea ficar ali sentado,procurandoatrairomínimodeatençãoparamimmesmo.Meulugaràmesasituava-seentreTarıkBeyeFüsun,doladoqueficavadefrenteparaatelevisão,

oposto ao ocupadopor tiaNesibe.Quando estava emcasa,Feridun sentava-se aomeu lado, bemcomoalgumconvidadoocasional.Nocomeçodarefeição,tiaNesibepreferiasentar-sedecostasparaatelevisão,demodoapoderirevoltarmaisfacilmentedacozinha,maspelomeiodojantar,quandotinhamenosafazer,vinhasentar-seàminhaesquerda,entreFüsuneeu,parapoderveratelacommais conforto. Por oito anos sentei-me ali, cotovelo a cotovelo com tiaNesibe. Às vezes, quandochegavaemcasamais tarde,FeridunseinstalavaemalgumpontodoladodamesaquetiaNesibedeixara vazio. E então Füsun se transferia para o lado domarido, e tiaNesibe ocupava a cadeiraanteriorda filha.Aí ficavadifícil ver televisão,mas a essa altura as transmissõesdodia já estariamterminandodequalquermaneira,eoaparelhoeradesligado.Quandoa televisãomostravaumacoisa importanteenquantoaindahaviaalgoassandonoforno,

tiaNesibemandavaFüsuniremseulugarversejáestavapronto.Füsuncorriaentreacozinhaeamesadojantar,queficavabemaolado,carregandotravessasetigelas,epassavabementremimeatela da televisão.Enquanto suamãe e seu pai se perdiam acompanhandoum filme, programadeperguntase respostas,boletimmeteorológico,odiscursodealgumgeneralque tivesseacabadodeparticipar de um golpe, o campeonato balcânico de luta, o festival do lentisco de Manisa ou acerimônia comemorativa do sexagésimo aniversário da libertação de Akşehir, eu ficavaacompanhandocomosolhosminhabeldade,quepassavadeumladoparaooutroàminhafrente,comosenãoestivessebloqueandoaimagem,comoseuspaispodiamachar,masnaverdadefosseaúnicaimagemquemeinteressava.Duranteminhas1593visitasaolardafamíliaKeskin,passeiboapartedanoitesentadoàmesade

jantarvendotelevisão.Masnãosaberiaenumerarcomamesmafacilidadeaduraçãodecadavisita.Porvergonha,sempretentavaconvencer-medequeforaparacasamuitoantesdoquedefatotinhaido.Semdúvida,eraaofimdastransmissõesdodiaqueéramoslembradosdahora.Acerimôniadeencerramento,assistidaemtodososcaféseclubesdejogodopaís,duravaquatrominutos:soldadosmarchando na mesma cadência, prestando continência à bandeira enquanto ela seguia mastro

Page 222: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

acima,eohinonacionaltocandoaofundo.Considerandoqueeugeralmentechegavaemtornodassete danoite e saía poucodepois dessa cerimônia diária, em tornodameia-noite, achoquepossocalcularquepassavaamédiadecincohorasnacasadeFüsunacadavisita,mashaviaocasiõesemquecertamenteficavamais.Emsetembrode1980,quatroanosdepoisdecomeçarminhasvisitasàfamíliaKeskin,houveum

novogolpemilitar;aleimarcialpassouavigorar,ecomelaotoquederecolheràsdezdanoite.Issomeobrigavaadeixaracasadelesàsquinzeparaasdez,muitoantesdemeucoraçãosaciarsuafome.Durante os últimosminutos antes do toque de recolher, enquantoÇetin dirigia rápido pelas ruasescuras que se esvaziavam depressa, o tormento da insuficiência fazia-se sentir com a mesmapungênciadaprivaçãototal.EusentiaadordenãotervistoFüsunosuficiente.Mesmohoje,tantosanosmaistarde,semprequeleionosjornaisnotíciassobreodesgostodosmilitarescomasituaçãodopaís,omalquelembrocommaisclarezadosgolpesmilitareséodeserobrigadoavoltarparacasacomumaraçãoinsuficientedecontatocomFüsun.Minhasrelaçõescoma famíliaKeskin tiveramsuasdificuldadesao longodosanos:osignificado

que nossas conversas, nossas expectativas mútuas e nossos silêncios tinham para cada um estavasempremudandoemnossasmentes.Claro,oquenuncamudavaparamimeraomotivodasminhasidas,queeraverFüsun,eeuimaginavaqueaquiloagradasseaelaeaseuspais.Mas,comonuncapodia falarabertamentedessemotivo, todosprecisávamosrecorreraalgumtipodeeufemismo.Euestava ali como “convidado”, mas esse termo era ambíguo e não de todo convincente nascircunstâncias, o que nos fez concordar coletivamente com uma expressão alternativa que nosdeixavamenosdesconfortáveis.EuiaquatrovezesporsemanaàcasadafamíliaKeskinpara“sentar-me”comeles.Tia Nesibe gostava especialmente desta expressão, bem familiar aos leitores turcos, que os

visitantesestrangeirosdonossomuseupodemnãocompreendercomamesmafacilidade,devidoàssuasmúltiplasaplicações—“visitar”,“aparecerdesurpresa”ou“passaralgumtempocomalguém”—, que normalmente não aparecemnos dicionários.Quando eu ia embora, no final da noite, tiaNesibe se despedia de mim com as mesmas palavras generosas: “Volte amanhã, Kemal Bey, epodemossentarjuntosdenovo”.Implícitaemsuaspalavras,claro,estavaaideiadequetudoquefazíamoserasentar-nosjuntosà

mesa,nadamais.Tambémvíamostelevisão,àsvezesporlongosperíodossemdizernada,trocandocomentários amistosos sobre isto ou aquilo, ao mesmo tempo em que comíamos alguma coisa etomávamos rakı.Durante os primeiros anos, parame convencer do quanto eu era bem-vindo, tiaNesibemencionavaespecialmenteessasoutrasatividades.Edizia:“Volteamanhã,KemalBey,vamoscomer aquelas abobrinhas recheadas de que você tanto gosta” ou “Amanhã podemos assistir aocampeonato de patinação no gelo, que vão transmitir ao vivo”.Quando ela dizia essas coisas, euolhavaderelanceparaFüsun,àesperadealgumsinaldeaprovação, idealmenteumsorriso; se tiaNesibedissesse“Venha,vamossentar”eFüsundesseaimpressãodeaprovar,eupodiapermitir-meacreditarquenãohavianenhum fingimentoem suaspalavras, quede fato estávamos reunidos ali,comotodomundocostumafazer,paranossentarmosjuntos.Abordandodamaneiramaisinocentemeumotivoparaestarali—meudesejodeestarnomesmolugarqueFüsun—,apalavra“sentar”

Page 223: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

meserviaperfeitamente.ÀdiferençadosintelectuaisqueconsideramseudeversoleneridicularizarascoisasdopovoeacreditamqueosmilhõesdepessoasnaTurquiaque falamde “sentar-se juntos”toda noite reúnem-se para não fazer nada, eu, ao contrário, apreciava o impulsomanifestado naexpressão“sentarjuntos”comoumanecessidadesocialqueseverificaentrepessoasligadasporlaçosde família ou amizade, ou mesmo entre pessoas que sentem entre elas uma conexão profunda,emborapossamnãocompreenderseusignificado.EaquiexponhoumamaquetedoapartamentodeFüsunemÇukurcuma(ouosegundopisodo

edifício), que há de servir, espero, como uma introdução a esse período de oito anos da minhahistória.NopisosituadoacimadasaladeestarficavamosquartosquetiaNesibedividiacomTarıkBeyeFüsundividiacomomarido;entreosdois,ficavaobanheiro.Umexamedetidodamaqueterevelaráqueolugarqueeuocupavaàmesaestáassinalado.Paraas

pessoasquenãotêmcomovisitarnossomuseu,vouexplicar:eumesentavadefrenteparaatelevisão,queficavaligeiramenteàminhaesquerda,eficavacomacozinhabemàminhadireita.Atrásdemimestavaobufê,eàsvezes,quandoinclinavaminhacadeiraparatrás,euesbarravanele.Nessashoras,os coposde cristal queele continhaestremeciam todos coma louça eos açucareirosdeprata, osconjuntosdelicor,asxícarasdecaféquenuncaeramusadas,ovelhorelógio,oisqueirodeprataquenão funcionavamais, o pequeno jarro de cristal com o desenho de volutas de flores do tipo quepodemosvernosbufêsde todasascasasdeclassemédiadacidade,outrosornamentosvariados,efinalmenteasprateleirasdevidrodobufê.Comotodomundosentadoàmesa,euviatelevisãoanoapósano,mas,desviandomeusolhosum

poucoparaaesquerda,podiaverFüsunbastantebemsemprecisarvirar-menadireçãodelaoumedeslocarminimamente.Issosignificavaque,enquantoviatelevisão,podiaolharparaelaporlongosperíodos semqueninguémnotasse,movendo apenas os olhos.A tentação, claro, era irresistível, equantomaiseupraticava,maishábilficavanesseexercício.Quando assistíamos a um filme que chegava a seu clímax ou víamos alguma notícia que

achávamos especialmente interessante, eu sentia imenso prazer em acompanhar as expressões deFüsun; nos dias e meses subsequentes, minha memória das imagens na tela se mesclaria com aexpressãodeseurosto.Àsvezes,emcasa,eurememoravaaexpressãodeFüsunantesdacenaqueaprovocara(umaindicaçãodequeestavasentindofaltadelaejápassaratempodemaissemirjantaremsuacasa).Asmemóriasmaisprofundas,maisestranhasemaistocantesdascenasvistasdamesade jantar da família Keskin estão inapelavelmentemescladas com as imagens correspondentes deFüsun.Minhafluêncianaleituradesuasexpressõeschegouatalpontoquemebastavaolharparaelacom o canto do olho para deduzir com precisão notável o que estava acontecendo na televisão,mesmoquenãoprestasseamenoratençãoàtela.Emcimadamesa,ao ladodo lugaronde tiaNesibeacabariavindo sentar-semais tarde,depois

queo jantareraservido,haviaumabajurcompésemgarraeumacúpulasempre torta,eao ladodele umdivã em forma deL.Certas noites, quando a comida, a bebida, os risos e a conversa semostravamespecialmenteexaustivos, tiaNesibedizia“Vamostodosnossentarnodivã”ou“Podemrelaxarqueeutragoocafé!”,eemseguidaeumesentavanapontadodivãmaispróximadobufê,enquanto tia Nesibe se instalava na ponta oposta, e Tarık Bey se acomodava perto da janela, na

Page 224: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

cadeiramaispróximaàmontanha.Paraumaboavisãodateladenossosnovoslugareseranecessáriogirar o aparelho de televisão, o queFüsun fazia de seu lugar namesa, onde preferia permanecer.Emboraàsvezes,depoisdemudaroângulodatelevisão,elasesentassenapontaopostadodivã,aoladodamãe,asduasmuitojuntinhas.TiaNesibeacariciavaocabelodafilhaesuascostasdevezemquando,e,tantoquantoLimon,ocanário,quenosobservavacominteressedesuagaiola,euachavaoespetáculomuitoagradáveleoacompanhavacomocantodosolhos.Maistarde,depoisqueeuafundavanasalmofadasdodivãemL,todoorakıqueeutinhatomado

comTarıkBeyfaziaefeito,eeuquasechegavaaadormecer,olhandoparaa teladatelevisãocomumolhoabertoenquanto,comooutro,eracomosecontemplasseasprofundezasdaminhaalma;sentindo a vergonha que em outras ocasiões conseguia evitar, o constrangimento daquele pontoestranhoaqueavidametrouxera,umrasgodeirritaçãosurgiaemmim,instando-meapôr-medepéeiremboradaquelacasa.NãoeraincomumeumesentirdessemodonasnoitessombriaseaziagasemqueasexpressõesdeFüsunmedesagradavam,emqueelamalmedirigiaumsorrisoemenosainda seeuencostavanela semqualquer intenção,mas,depoisdisso,passavaaprecisardealgumsinaldereconforto.Emmomentoscomoesseseumelevantavaeiaatéajanela,ondeocanárioLimonenvelheciaaos

poucosemsuagaiola,eolhavaatravésdascortinas,pelavidraçadomeiooudadireita,paraaladeirade Çukurcuma. Nos dias de chuva, era possível ver a luz dos lampiões refletida nas pedras docalçamento.Semtirarosolhosdatela,tiaNesibeeTarıkBeysentiam-selevadosadizer:“Elecomeuacomidadele?”,“Precisamostrocaraágua?”ou“Hojeelenãoestámuitofeliz”.Havia mais um quarto no primeiro piso; ficava nos fundos e tinha uma sacada estreita. Usado

principalmenteduranteodia,eraláquetiaNesibecosturavaeTarıkBeyliaoseujornal.Depoisdosprimeiros seismeses,quandoeume sentiadesconfortável àmesaou ficavacomvontadedeandarnervosodeumladoparaooutro,dirigia-meaessequartosealuzestivesseacesa,afimdeolharpelajanelaquedavaparaasacada.Gostavadeficaralicercadopelamáquinadecostura,astesouras,osvelhos jornaise revistas,agavetaabertacomumavariedadedeornamentos,eantesde sairmuitasvezespegavaalgumacoisaepunhanobolsoparameacalmarmaistarde,quandofosseassoladopelasaudadedeFüsun.Poressajaneladavaranda,euviaumreflexodasalaondejantávamosprojetadasobreumafileira

decasaspobresnobecoestreitoque ficavaatrásdadeles.Emalgumasnoites, ficavamuito tempoolhandoparaumamulherquemoravanumadessascasas.Elatinhaocostumede,depoisdevestiracamisola de lã e antes de ir dormir, tirar umapílula deuma caixa de remédios e comela a bulaamarrotada,queliacomgrandecuidado.FoisóquandoFüsunapareceuameuladocertanoitequepercebi tratar-sedaviúvadeRahmiEfendi,ohomemcomamãomecânicaque trabalhara tantosanosnafábricademeupai.Füsunsussurrouquemeseguiraatéaquelequartoparadescobriroqueeuestavafazendoalinos

fundos.Suacuriosidademedeixouencantado,eporalgumtempo ficamos ladoa ladonoescuro,olhandoparaa rua.Nessemomento,quaseconseguicompreenderoqueme faziavoltar sempreàcasadafamíliaKeskinporoitoanos:eraaprópriaperguntaqueresidenocernedoquesignificaserumhomemouumamulhernaquelapartedomundo.

Page 225: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Naminhaopinião,Füsunlevantou-sedamesanaquelanoiteporquererestarpertodemim.Oqueficouclaropelamaneiracomoparouameuladoemsilêncio,contemplandooqueparaelaeraumpanoramasemqualquernovidade.Paramim,porém,enquantocorriaoolharpelastelhaspróximas,ostelhadosdezincoeafumaçaquebrotavamansadaschaminés,enquantoolhavaparaasjanelasacesas, captando vislumbres de famílias que se deslocavam pelas suas casas, tudo pareciaextraordinariamentepoético,simplesmenteporqueFüsunestavaameulado,emeudesejofoigrandedepôramãoemseuombro,envolvê-lacommeusbraços,ouapenastocá-la.MasminhaexperiêncianacasadeÇukurcumaduranteasprimeiras semanasera suficientepara

meindicarqueareaçãodeFüsunteriasidosevera,talvezatétãofriaquantoseeutentassemolestá-la;elameempurrariaedeixariaoquartoàspressas,oquemeprovocariaumadorforadocomum,lançando-nos em nossas indignações gêmeas (o jogo que aperfeiçoamos aos poucos ao longo dosanos),comoresultadodequeporumtempoeunemsequer iria jantarnacasada famíliaKeskin.Mesmo depois de pensar tudo isso, o desejo de tocá-la, beijá- la ou pelo menos roçar seu flancopersistia.O rakı tinhaalgumpapelnisso tudo.Mas,mesmoqueeunãobebessenada,essedilematambémmeafligia.Se eu me refreasse e evitasse até encostar nela (arte em que aos poucos eu me tornava um

verdadeiromestre),Füsunseaproximavamais;podiaroçaremmim,etalvezdizeralgumaspalavrascarinhosas. Ou (como ocorrera alguns dias antes) podia perguntar: “Alguma coisa o estáincomodando?”.Naverdade,naquelanoiteFüsundisse: “Adoroo silêncioqueestá fazendohojeànoite.Adoroverosgatosandandopelos telhados”.Emaisumavezeumevinasgarrasdomesmodilemadoloroso.Seráqueeupodiatocá-la,abraçá-la,beijá- la?Comoeuqueria.Seriapossívelque,durante as primeiras semanas, os primeirosmeses (comomais tarde eu acabaria acreditando, pormuitosanos),elanãofossefazernenhumtipodeabertura,limitando-seadarasrespostaseducadasecivilizadasqueumamoçainteligenteedebonsmodos,portadoradeumdiplomasecundário,deviaapresentaraumparentedistantequeeraricoesofriaporamor?Aolongodosoitoanos,essedilemamepreocupavaemeamaldiçoava.Opanoramaquesepode

ver no quadro aqui exposto era o que ficamos contemplando lado a lado junto à janela por nomáximodoisminutosemeio.Eugostariaqueovisitantedomuseurefletisseporfavorsobreomeudilema enquanto contempla essa vista, sem esquecer como o comportamento de Füsun nessemomentofoidelicadoesutil.“Achoavistalindaporquevocêestáameulado”,eudissefinalmente.“Vamosvoltar,meuspaisvãocomeçaraseperguntaroqueestamosaprontandoaqui.”“Comvocêaomeulado,eupodiaserfelizanosafio,sóolhandoparaessavista”,disseeu.“Suacomidaestáesfriando”,disseFüsun,evoltouparaamesa.Elasabiacomosuaspalavrashaviamsidofrias,pois,poucodepoisquevolteiparaamesa,Füsun

paroudefranziratestaemedirigiudoissorrisosdocesecompassivosquandopassouosaleiro(quemais tarde eu acrescentaria àminha coleção), permitindo que seus dedos tocassem atrevidamenteminhamão;comisso,feztudovoltaraficarbem.

Page 226: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

56.ALimonFilmesLtda.

Assimquedescobriuquesuafilhaentraranumconcursodebelezacomoapoioeaaprovaçãodamãe,TarıkBeyficaraforadesideraiva,mas,amandotantoafilhacomoamava,nãofoicapazderesistir às suas súplicasquandoelaprorrompeuem lágrimas; em seguida,porém,quando soubeoqueaspessoasdiziamsobreela,arrependeu-sedetertoleradoaquelavergonha.AlgunsconcursosdebelezatinhamacontecidoduranteosprimeirosanosdaRepública,duranteodomíniodeAtatürk,equando as moças desfilavam pela passarela de maiô preto estavam, na opinião de Tarık Bey,manifestando seu interesse pela história e pela cultura turcas, além demostrar aomundo inteirocomoerammodernas,oquenaocasiãoerapositivo.Emtornodosanos1970,porém,osconcursostinham se transformadono território de garotas semcultura e semmodos, levadas pela esperançacruade se transformarememcantoras emodelos, demaneiraqueo significadodos concursos debelezaseconverteraemoutracoisa.Osapresentadoresdosconcursosdeantigamenteperguntavamàsconcorrentes,comamáximapolidez,qualotipodehomemcomquemsonhavamsecasar,comouma forma sutil de deixar claro que todas eram virgens. Quando os apresentadores posterioresperguntamàsmoças“Oquevocêsprocuramnumhomem?”(arespostacorreta,claro,é“caráter”),elassorriemefazemcaretasquelembramHakanSerinkan.PorissoTarıkBeysemostravatãofirmecomseugenrocineasta,dizendoque,enquantoeleeFüsunmorassemdebaixodoseuteto,suafilhanãoterianovasaventurasdomesmogênero.Por medo de que seu pai pudesse considerar tornar-se uma estrela de cinema igualmente

reprovável,oquecontrariavanossosplanosdeváriasmaneiras,declaradasounão,continuávamosadiscutiro“filmedearte”queFeridunplanejavafazerapenasdeummodomuitodiscreto.Ameuver,TarıkBeyfingianãoescutarnossossussurrosporqueencaravacombonsolhosmeuinteresseporsuafamíliaegostavadebebereconversarcomigo.E,comoofilmedearteserviadepretextoplausívelparaminhasvisitasàfamíliaKeskinquatrovezesporsemana,funcionavaperfeitamenteparadisfarçara verdadeira finalidadedasminhas idas à sua casa, tãobemconhecidas de tiaNesibe.Durante osprimeirosmeses,semprequeeuolhavaparaorostogentilesemmalíciadeFeridun,achavaqueelenãosabiadenada,porémmaistardecomeceiapensarquefaziapartedeoutroplano:meconfiavasuamulherpornãoveremmimnenhumaameaça—naverdade,eraalguémdequemelepodiarirpelas costas— e, por necessitar desesperadamente domeu financiamento, simplesmente aceitavalevaradianteaquelafarsa.Pertodofimdenovembro,depoisdemuitainsistênciadeFüsun,Feridunterminouaversãofinal

do seu roteiro, e uma noite, depois do jantar, de pé no patamar no alto da escada, sob o olharapertadodeFüsun,entregoucerimoniosamenteotextodatilografadoamim,seupossívelprodutor,paraaguardarminhadecisão.“Kemal,queroquevocêleiaesteroteirocommuitocuidado”,disseFüsun.“Acreditonesseroteiro

econfioemvocê.Nãovámedecepcionar.”“Eununcairiadecepcioná-la,minhacara!”,eaponteiparaoroteiroemminhamão.“Digauma

coisa, você gosta tanto do roteiro porque vai fazer o papel principal ou porque será um ‘filme dearte’?”(UmconceitonovonaTurquiadadécadade1970.)

Page 227: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Asduascoisas.”“Entãopodeconsiderarqueofilmeestáfeito.”OroteiroeraintituladoChuvaazul,enadanelesugeriaalgumconhecimentodeFüsun,demim,

do nosso romance ou de nossa história. Ao longo do verão eu tinha adquirido certo respeito pelainteligênciadeFeriduneporsuafamiliaridadecomocinema;nasconversassobreoscineastasturcoscultos e altamente instruídos que desejavam fazer filmes de arte à maneira do Ocidente, eleidentificava com grande perspicácia seus erros mais típicos (imitação, artificialidade, moralismo,vulgaridade,melodrama,populismocomercialetc.).Então,porquecaíanasmesmasarmadilhas?Enquantoeuliaaqueleroteiroconstrangedor,percebiqueodesejodaarte,comoodesejodoamor,é uma doença que nos deixa cegos, e nos faz esquecer o que já sabemos, ocultando a realidade.Mesmo as três cenas, motivadas por considerações comerciais, em que a personagem de Füsunapareceria nua (numa cena de cama, noutra fumando pensativa um cigarro numa banheira deespuma, ao estilo da nouvelle vague, e numa terceira caminhando por um jardim celestial numsonho)eramforçadas,insípidasegratuitas!Minhaconfiançanaqueleprojetonuncafoimaisquefingida,masdepoisdeleressascenasopus-

meaelecommaisdecisãoe irritaçãoaindaqueopróprioTarıkBey.Entretanto,percebendoqueprecisavamanter o projeto vivo pormais algum tempo, fiz elogios rasgados ao roteiro, tanto paraFüsun quanto para seu marido, chegando ao ponto de lhes dizer que, “como produtor”, estavadispostoacomeçaros testespara formaroelencoeaequipe técnica,demonstrandoumempenhoqueeupróprioacheiridículonointeressedetornaraquilomaiscrível.Assim,comachegadadoinverno,Feridun,Füsuneeunãoperdemosummomentoemcomeçar

nossas visitas ao casario decadente das ruas secundárias, locais prováveis para o escritório deprodução, e os cafés ondeos atores de segunda classe, os pretendentes ao estrelatono cinema, osespecialistas empequenospapéis característicoseos técnicosdecinema jogavamcartas, alémdosbares ondeosprodutores, osdiretores e os atores semifamosospodiam ser encontrados apartir doiníciodanoite,comendoebebendoatédemadrugada.Todosesseslugaresficavamdezminutosapéladeiraacima,esemprequeeuenveredavaporessecaminhomelembravadetiaNesibecomentandoqueFeridun só secasaracomFüsuna fimdemorarnasproximidadesdaquelesestabelecimentos.Emalgumasnoites euos pegava à porta de casa, e emoutrasnós três— Feridun, de braço comFüsun,eeu— caminhávamos juntos ladeira acimaatéBeyoğlu, depois de jantarmos comospaisdela.NossodestinomaisfrequenteeraoPelürBar,muitofavorecidopelosastroseestrelasdocinemae

porhomensdefortunarecentedesejososdeencontrargarotascomaesperançadesetransformarememestrelas,filhosdeproprietáriosruraisdaAnatólia,quenaépocaseiniciavamdedianomundodosnegócios de Istambul e procuravam aliviar a pressão à noite, além de jornalistas de renomemoderado, críticos de cinema e colunistas sociais. Passamos o inverno todo conhecendo muitosatoresquefaziampapéissecundáriosnosfilmesquetínhamosassistidoaolongodoverão(inclusiveoamigobigodudodeFeridunquefaziaopapeldocontadorcriminoso)enostornamospartedaquelasociedadedealmasespirituosas,amargas,massempreesperançosasquepassavamasnoitestrocandocomentáriosmaldosossobreavidaalheia,contandoahistóriadesuasvidasoudescrevendoasideias

Page 228: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

quetinhamparanovosfilmes,equenãoconseguiriamchegaraofimdodialongedacompanhiadeseussemelhantes.GostavammuitodeFeridun,e,comoeletinhaalgunsemaltaestima,foraassistentedeoutrose

queriaagradaroresto,sempreiasentar-seasuasmesas,ondeficavahorasafio,deixandoFüsuneeua sós, embora deminha parte nunca feliz.QuandoFeridun estava conosco, Füsunme tratava de“primoKemal”,mentira semi-inocente que raras vezes deixava de usar; quando se dignava a falarfrancamentecomigo,euentendiasuamudançaderegistrocomoumaadvertência—emrelaçãoaoshomensquepassavampelanossamesaeofuturodelanomundodocinema—queeuignoravaporminhacontaerisco.Certa noite, depois deumexcesso de rakı, eume vi a sós comelamais uma vez, e, tendome

cansado de suas aspirações fantasiosas e da estreiteza geral daquele ambiente, de repente meconvenci de que meu comentário seguinte era apropriado, e que ela haveria de recebê-lo bem.“Pegueomeubraço,querida,vamosembora juntosdeste lugarhorrendoagoramesmo”,eudisse.“Podemos ir paraParis, para aPatagôniaouparao fimdomundo— tanto faz, contanto quenosesqueçamosdessaspessoasevivamosfelizesparatodoosempre,sónósdois.”“PrimoKemal, como vocêpodemedizerumacoisa dessas?Nossas vidas são aquilo emque se

transformaram”,disseFüsun.Depoisquejáfrequentávamosaquelebarhaviaváriosmeses,obandodebeberrõesquesereunia

alitodanoite(umgrupode“genteimportante”naopiniãodelespróprios)nãonosincomodavamais,tendoaprendidoaaceitarFüsuncomoajovemelindanoivaemetratando,comumadesconfiançazombeteira,comoo“milionárioidiotabem-intencionado”dispostoaproduzirumfilmedearte.Mashavia inevitavelmenteosquenãonosconheciam,osbêbadosquenosconheciammasaindaassiminsistiamemarrastaraasaparaFüsun,osqueatinhamvistodelongeenquantorodavamdebarembar,eosquesentiamumimpulsoirresistíveldenoscontarahistóriadesuasvidas(estesconstituíamumaverdadeiramultidão),entãoquasenuncaficávamosasós.Enquantoeumeorgulhavatodavezquealgumdesconhecidosesentavajuntoanóscomumcopoderakınamão,achandoqueeufossemarido de Füsun, ela respondia na mesma hora com um sorriso, fazendo questão de corrigir oengano comuma insistênciaquepartiameucoração: “Meumarido é aquele gordinho ali”, o queestimulavaodesconhecidoameignoraretentarlhepassarumacantada.Cadatentativaassumiaumaformadiferente.Haviaosquesediziamàprocuradeuma“beldade

turcadecabelosescurosearinocente”exatamentecomoelaparaestrelarumafotonovela;outroslheofereciam de imediato o papel principal em um novo filme sobre o profeta Abraão que logocomeçariaa ser filmado;outros aolhavamsonhadoresnosolhosporhoras a fio semdizernada;eoutrosdiscorriamsobreaspequenasbelezasdavidaetodososprodígiossutisqueninguémsedáaotrabalhodeenxergaremnossomundotãomaterialista,ondesóodinheiroconta;haviaaindaosquesesentavamamesasdistanteslendoaobradepoetasprisioneirossofredores,poemassobreoamor,asaudadeeopaís;outrosdemesasdistantesoupagavamanossacontaoumandavamnosentregarumpratodefrutas.NofinaldoinvernofrequentávamosmenosessesredutosdeBeyoğlu,mas todavezquechegávamos lá avistávamos invariavelmente amesmamulher imensaquemuitas vezes fazia opapeldecarcereiradiabólicaoucompanheirainseparáveldavilãprincipal.SempreconvidavaFüsun

Page 229: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

parafestasemsuacasa,prometendoapresençade“muitasmeninascultasebem-educadas”comoela.Ehaviasempreumvelhocríticoatarracadoqueusavagravata-borboletaeadornavasuapançaimensacomumpardesuspensórios;plantavasuamãofeia,quelembravaumescorpião,noombrode Füsun, antevendo a “grande fama” que a esperava, talvez como a primeira atriz turca a obterrenomeinternacional,contantoqueatentasseparacadapassodasuacarreira.Füsundefatodavaamaioratençãoatodaofertadefilme,fotonovelaoutrabalhodemodelo,por

maisinconvenienteoutrivialquefosse;tambémguardavaonomedecadapessoaqueconhecia,enocasodosatoresdecinema,pormaisobscurosquefossem,elaoscobriasempredeelogiosexageradose até vulgares, demonstrando uma falta de proporção que eu não reconhecia dos seus tempos devendedora. Ao mesmo tempo que tentava encantar e lisonjear todo mundo, também estavadeterminadaaalcançaroobjetivomuitasvezescontraditóriodeparecermaisinteressante.Paraisso,semprenospressionavaafrequentaraqueleslugares,e,seeulherecomendassenãodarseutelefoneatodomundo que lhe fazia algumaproposta— “O que o seu pai irá dizer?”—, elame respondiabruscamente que sabia o que estava fazendo, chegando a declarar que ia precisar de opções se ofilmedeFeridunnão fosse feito.Ofendi-meprofundamentecomoqueela insinuavaememudeipara outramesa,mas então ela se aproximou com Feridun e disse: “Por que nós três não vamoscomeremalgumlugar,comonoverão?”.Eu fizera dois novos amigos entre os bebedores da turma do cinema de que me tornara um

participante um tanto constrangido. A primeira era uma atriz de meia-idade chamada SühendanYıldız, que devia totalmente a fama de “mulhermá” a seu nariz, que fora quebrado por um dosprimeiroscirurgiõesplásticosdaTurquiaereconstruídonumanovaformahorrenda.OoutroeraumatorcaracterísticochamadoSalihSarılı,que,depoisdeanosfazendoopapeldefigurasdeautoridadecomo oficiais do Exército ou policiais, agora era obrigado a ganhar a vida dublando filmespornográficos piratas, situação absurda que ele invariavelmente contava em voz profunda,muitasvezesinterrompidaporumarisadaeumatossesufocante.Dali a alguns anos eu descobriria que não era só Salih Sarılı que trabalhava na indústria

pornográfica,masamaioriados atoresque tínhamosconhecidonoPelürBar,oquemeespantoucomo se tivessedescobertoqueamigosmeuspertenciamauma sociedade secreta.Atrizes e atoresbem-comportados de meia-idade com tipo forte como Salih Bey viviam da dublagem de filmesestrangeirossómoderadamenteobscenose,duranteascenasdesexo,gemiamegritavamparasugerirosdetalhesdaaçãoqueofilmenãomostrava.Essesatoreseram,emsuamaioria,casados,comfilhoseadmiradosporsuaseriedade;contavamaseusamigosquetinhamsidoforçadosaaceitaraquelestrabalhos durante a decadência econômica para não se verem totalmente afastados da indústriacinematográfica,emboranumprimeiromomentotenhamescondidodetodomundo,especialmentede suas famílias. Mesmo assim, seus fãs mais ardorosos, especialmente do interior do país,reconheciam suas vozes e lhes enviavamcartas de ódio ou admiração.Aomesmo tempo, atores eprodutoresmaisousadoseambiciosos,emsuamaioriafrequentadoresregularesdoPelür,envolviam-se emproduções nacionais que entrariampara a história como “os primeiros filmes pornográficosislâmicos”.As“cenasamorosas”dessesfilmesmisturavamsexoecomédiarasgada,àmedidaqueosgemidoseosarquejosseredobravamcomumexageroridículoeosatoresassumiamtodasasposições

Page 230: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

quepodiam ser aprendidasnosmanuais europeus do sexo compradosnomercadonegro, emboratodososenvolvidos,tantohomensquantomulheres,jamaisaparecessemsemsuasroupasdebaixo.NoPelür,enquantoFüsuncirculavacomFeridundemesaemmesa,conversandocomtodosque

podia, eu ficava sentado ouvindomeus dois novos amigos demeia-idade,mais frequentemente agentilíssimaSühendanHanım,fazer-merecomendaçõesdecautela.Eudevia,porexemplo,impediratodocustoqueFüsunseaproximassedaqueleprodutorali,quepareciamuitorespeitávelcomsuagravataamarela,suacamisaperfeitamentepassadaeobigodinhodeescova,mascujafamasedeviaaofatodeencurralarmulheresdemenosdetrintaanosemseuescritórioemcimadocinemaAtlas,ondenãohesitavaemtrancaraportaeestuprá-las,silenciandodepoisosprantosdasvítimascomaoferta do papel principal em um de seus filmes; papel que, quando as filmagens começavam,revelava-seumameraponta—adababáalemãintrigantequeperturbaapazdolardeumturcoricodeótimocoração.Eeudevia tomaromesmocuidadocomoprodutorMuzaffer,antigopatrãodeFeridun,aoladodequemorapazaindapassavatantotempo,rindoprestimosamentedecadapiada,esperando conquistar a ajuda técnicadaquelehomempara seu filmede arte.Pouco tempo antes,menosdeduassemanas,aquelecanalhadividiaamesacomodonodeduascompanhiasprodutorasde médio porte com quem concorria o tempo todo, e apostara com o rival uma garrafa dechampanhe contrabandeadaque conseguiria seduzir amulher deFeridun emmenos deummês.(OsfilmesdessaépocanosapresentamexemplosabundantesdenossofetichepelaluxúriainfieldoOcidente.)Enquantoeuconversavacomaquelarenomadaatrizqueportantosanosfizeraapenasopapeldapérfida(nuncaodaverdadeiravilãdemoníaca)eque,graçasàsrevistasdecelebridades,eraconhecidaemtodaanaçãoturcacomoaIntriganteSühendan,elatricotavaumpulôverdelãemtrêscores para seu amado neto de três anos, ememostrou a foto da revistaBurda da qual copiava ocasaco. Se alguém zombasse dela por sentar-se num canto do bar com novelos de lã vermelha,amarelaeazul-marinhonocolo,elarespondia:“Pelomenosestoufazendoalgumacoisaenquantoesperoopróximotrabalho,bemmelhordoquevocês,quesóbebem”,e,quandoascircunstânciasexigiam,deixavadeladoseusmodosdesenhorafinacomalgumafacilidade,despejandoinvectivascarregadasdepalavrões.Os intelectuais,cineastaseas jovensatrizesque frequentavamlugarescomooPelürBarsempre

estavamtodosembriagadosàsoitodanoite:vendocomoeumeescandalizavacomasvulgaridadesque se desencadeavam a partir de então,meu experiente amigo Salih Sarılı dirigia o olhar para ooutro lado do salão com uma expressão romântica que evocava os papéis de policiais nobres eidealistasquepersonificarapor tantos anos e, fixandoos olhos emFüsun, instalada emumamesadistante, rindo com alguém que eu não conhecia, admitia que, se fosse um rico empresário, nãotrariaumaparentetãobonitacomaideiadetransformar-seemestreladecinemaparaumbarcomoaquele. E isso partiu meu coração. Agora eu me via obrigado a acrescentar meu amigo ator edublador à minha lista dos “homens que olhavam para Füsun da maneira errada”. A IntriganteSühendan fez um comentário mais oblíquo num dia que jamais esquecerei: minha linda primaFüsun,disseela,eraumajovemdoce,boaelinda,exatamentedaidadecertaparasetornarumaboamãe,comoamulherquetiveraonetoparaquemelatricotavaopulôververmelho,amareloeazul.Entãooqueestávamosfazendoali?

Page 231: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Eu também acabaria sucumbindo a essa ansiedade. Pois a cada semana Füsun conhecia gentenovanosbares frequentadospelopessoaldecinemaemBeyoğlu,eadmiradores lhepropunhamotempo todo estrelar uma fotonovela ou certo comercial. E assim, no início de 1977, assinalei aFeridunquetinhachegadoahoradeescolhersuaequipetécnica.Porseussorrisosamistososepelamaneiracomometocouenquantomurmuravahistóriasengraçadasnomeuouvido,FüsunmelevaraaacreditarqueestavaprestesadeixarFeridun.Comoeuplanejavacasar-mecomela“nomomentoseguinte”, pensei comigo que também seriamelhor para ela não se envolver demais com aquelemundosórdido.Podíamostransformá-laematrizsemnostornarmosíntimosdaquelaspessoas.Jáeratempo de nós três decidirmos que o nosso projeto conjunto seria mais bem administrado de umescritórioquedoPelürBar.ChegaraomomentodeformarumaempresaparafinanciarosfilmesdeFeridun.FoiporinspiradasugestãodeFüsunqueconcordamosembatizaracompanhiaemhomenagem

aocanárioLimon.Comosepodededuzirdenossocartãodevisita,quetrazaimagemdoadorávelpassarinho,aLimonFilmesficavaaoladodocinemaYenıMelek.Cuidei para que 1200 liras fossemdepositadasmensalmente numa conta pessoal na agência de

Beyoğlu do Banco Agrícola. A soma era um pouco superior ao salário que eu pagava aos meusmelhoresgerentesnaSatsat:metadesedestinavaapagarosaláriodeFeriduncomodiretorexecutivodacompanhia,enquantoorestoeraparacobriroalugueleoscustosdeprodução.

57.Sobreaincapacidadedemelevantareirembora

DepoisquecomeceiapagarFeridunatravésdaLimonFilmes,convencendo-memaisacadadiadequenãohaviaamenorpressaemcomeçararodar,senti-memuitomelhor,mesmoemrelaçãoameus jantares na casa de Füsun.Oumais sinceramente, certas noites, quandomeu desejo de verFüsunficavafortedemaispararesistiremeucoraçãoseviatomadoporumavergonhanadamenosviolenta,eumediziaque,dealgummodo,comoagoraeulhesdavadinheiro,nãohaviamaisdoquemeenvergonhar.AnecessidadedeverFüsunatalpontoenevoaraminhamentequenuncaexamineialógicadoraciocíniosegundooqualospagamentosanulariamavergonha.MasmelembrodetersentadocomminhamãeemfrenteàtelevisãoemNişantaşıemtornodahoradojantarnaprimaverade1977,maisumavezencurraladoentreodesejoeavergonha,encolhidonapoltronadomeupai(agoraminha),paralisadopelaindecisão,pormeiahora,incapazdememover.Minhamãerepetiuoquesemprediziaaomeverficaremcasaànoite.“Porquevocênãoficaem

casaparavariar,enósjantamosjuntos?”“Não,mamãe,vousair.”“MeuDeus,eunãotinhaideiadequeexistiamtantasdiversõesnestacidade.Vocênãoconsegue

ficaremcasanemumanoite.”“Meusamigosinsistiram,mamãe.”“Bemqueeuqueriasersuaamigaemvezdesuamãe,sozinhanavida…Escute,Bekripodeiraté

o açouguedeKazıme comprarumas costeletas de carneiro; e pode grelhar para você.Sente-se e

Page 232: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

jantecomigo.Vocêpodecomersuascosteletasdecarneiroedepoissairparaencontrarseusamigos.”“Possoiraoaçougueagoramesmo”,exclamouBekridacozinha.“Não,mamãe,éumafestaimportante”,disseeu.“OrganizadapelofilhodafamíliaKarahan.”“Entãocomoeunãosoubedenada?”,perguntouminhamãe,desconfiadacomtodarazão.Oque

minhamãe,OsmanouqualqueroutrapessoasabiadafrequênciadasminhasvisitasaFüsun?Nemqueriapensarnisso.NasnoitesemqueeuiaatéacasadeFüsun,àsvezesjantavaantescomaminhamãe, sóparaaplacar suas suspeitas,eemseguida saíae jantavadenovonacasadeFüsun.Nessasnoites,tiaNesibepercebiadeimediatominhafaltadeinteressepelacomidaedizia:“Hojevocêestásemapetite,Kemal.Nãogostoudocozido?”.Haviavezesemquejantavacomminhamãe,achandoque,seconseguissesobreviveraessashoras

emquesentiaumasaudademaisintensadeFüsun,teriaforçasparaficaremcasa,masumahoraedoiscoposderakıdepoisminhasaudadechegavaatalpontoquenemminhamãetinhacomodeixardeperceber.“Já está você aí de novo sacudindo a perna. Por que não vai dar um passeio para gastar esse

nervosismoedepoisvolta?”,diziaela.“Mas,porfavor,nãovámuitolonge,nãocomasruasperigosascomoandamultimamente.”Nãotenhoamenorvontadedeinterromperminhahistóriacomdescriçõesdosconfrontosderua

entrenacionalistas e comunistas fervorososnaquela época, exceto para dizer que o que estávamostestemunhando era uma extensão daGuerra Fria.Naqueles anos,muita gente era assassinada nasruas;caféserammetralhadosnomeiodanoite,epraticamentetododiahaviaocupaçõesougrevesnasuniversidades,atentadosabombaebancosassaltadospormilitantes.Palavrasdeordemtinhamsidopichadaspor cimadeoutraspalavrasdeordememcadamurodacidade, em todas as cores.ComoamaioriadoshabitantesdeIstambul,nãomeinteressavaporpolítica,enãopareciafazerbemaninguémqueessaguerraestivessesendotravadanasruasporumavariedadedefacçõesviolentas,nenhumadasquaistinhanadaemcomumcomorestantedoshabitantesdacidade.QuandoeudisseaÇetin,quemeesperavadoladodefora,quedirigissecomcautela,falavacomoseapolíticafossemaisumacalamidadenatural,comoumterremotoouumaenchente,enãohouvessenadaquenós,oscidadãoscomuns,pudéssemosfazeralémdetodoopossívelparaficarforadeseucaminho.NemsempreeuiaparaacasadafamíliaKeskinse,comonamaioriadasnoites,nãoconseguisse

ficaremcasa.Àsvezesiaaalgumafesta,naesperançadeencontrarumabelajovemquemefizesseesquecerFüsun;àsvezessaíaparabebereconversarcomvelhosamigos.SeZaimmelevavaaumafesta, se, estando na casa de um parente distante que havia pouco entrara para a sociedade, euencontravaNurcihanouMehmet,ouse,tardedanoite,Tayfunmelevavaatéumclubenoturnoe,deparando com amigos que já não encontrávamos fazia muitos anos, pedíamos uma garrafa deuísque e ficávamos ali sentados ouvindo canções pop turcas (namaioria copiadas de canções popfrancesasouitalianas),eumeanimavacomaideiaequivocadadequeaospoucosretornavaàminhasaudávelvidaanterior.Não erama vergonha e a indecisão adiantadas que eu sentia de ir à casa deFüsunos sinais da

verdadeiragravidadedomeumal,masainérciahesitantequetomavacontademimquando,depoisdepassarhorassentadocomafamília,jantandoevendotelevisão,chegavaomomentodeirembora.

Page 233: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Além da vergonha da inércia comum, havia no caso extremo o constrangimento que eu sentiaquandomevialiteralmentesemforçasparadeixaracasadeÇukurcuma.Astransmissõesdatelevisãoacabavamtodanoiteentreonzeemeiaemeia-noite,easimagensda

bandeira, do mausoléu de Atatürk e de “nossos rapazes” do Exército eram substituídas por umanevascadepontosborrados,aquecontinuávamosassistindodurantealgumtempo,comoseoutroprogramapudessecomeçarporengano,atéTarıkBeydizer“Füsun,minhafilha,vamosdesligaressacoisaporenquanto”,ouFüsundesligaroaparelhoporcontaprópria,comumúnicotoque.Eentãocomeçava o sofrimento específico que agora desejo analisar. A sensação de que, caso eu nãomelevantasse de imediato para ir embora, produziria um grande desconforto em todos. E eu nãoconseguiaavaliaroquantoessapreocupaçãoeraounão fundamentada.Apenaspensava: “Daquiapoucomelevantoevouembora”.Depoisdeouvi- losfalarmaldeconvidadosquedisparavamportaaforanomomentoemqueas transmissõesdaTV acabavam,maldandoboa-noite, edos vizinhossemtelevisãoprópriaquefaziamamesmacoisa,eumeiludia,imaginandoqueestavasendoapenaseducado.É claro que eles sabiam que eu não fora visitá- los para ver televisão, e sim para estar perto de

Füsun,mas às vezes, para ignorar esse imperativo, eu telefonava antesde ir, dizendoa tiaNesibe:“Posso ir visitá- los hoje à noite?Vai passarPáginas daHistória!”.No entanto, adotar esse pretextoequivaliaaumcompromissodeiremboranomomentoemqueoprogramaacabasse.Assim,naquelemomento, depois que a televisão era desligada, eu ficava casualmente sentado por mais algunsinstantes, antesdepensar comigo, commais energia, queprecisavame levantar e ir embora,masminhaspernasaindanãoobedeciam.Nesseestadodeimobilidadeeupermanecia,fosseàmesaounodivã em formadeL, comouma figuranumquadro, e, enquanto sentia a transpiraçãoporejar emminha testa, muitos momentos aristotélicos se passavam e meu desconforto era sublinhado pelotique-taquedorelógio,enquantoeutentavaassumirocomandoepensava“Agoravoumelevantar!”quarentavezes,emvão.Mesmo tantos anos depois, essa inércia ainda me desconcerta um pouco, e não consigo

compreenderplenamenteoamorquetantomeafligia,emborasejacapazdeaduzir,perfeitamente,umasériedemotivosseparadosparaaaparenteperdademinhaforçadevontade:1.Todavezqueeudizia“Agoraeuprecisoirembora”,TarıkBeyoutiaNesibediziam,comtoda

sinceridade:“Oh,porfavor,fiquemaisumpouco,KemalBey,estamostãobemaqui!”.2.Quandoelesnãodiziamnada,Füsunpodiamedirigirumsorrisoencantador,comumar tão

misteriosoqueeuficavaaindamaisconfuso.3. Então alguém começava ame contarmais uma história, ou trazia à baila um novo assunto.

Levantar-me antes que a história acabasse seria uma grosseria da minha parte, dizia-me eu, demaneiraquecontinuavaalisentado,pormaisdesconfortoquesentisse,pormaisunsvinteminutos.4.AotrocarumolharcomFüsun,euperdiacompletamenteanoçãodotempo,atéqueporfim,

olhandoparaomeurelógio,viaquequarentaminutos,enãovinte,tinhamsepassado,eentãodizia“Ah,vejamsóquehorassão”,masnemassimeuiaembora:continuavasentadoali,amaldiçoando-

Page 234: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

meporsertãofraco,presadeumainérciaeumavergonhaqueficavamcadavezmaisprofundas,atéchegaromomentoemqueseupesosetornavainsuportável.5.Euvasculhavaamenteàprocuradeumadesculpaparaficarsentadopormaisumtempo,para

medarumatréguadaquelefardoantesdeirembora.6.TarıkBeypodia ter se servidodemaisumrakı,casoemqueacortesia talvezmeobrigassea

bebercomele.7.Eutentariatornarmaisfácilminhapartidausandoafracadesculpadequeestavaesperandoa

meia-noite,eentãodizia:“Ah,jáémeia-noite,precisovoltarparacasa”.8.EudiziaamimmesmoqueÇetintalvezestivessenomeiodeumaconversanocafé,equepodia

aindanãoestarpronto.9.Edequalquermaneira,narua,bempertodaporta,umgrupoderapazesdavizinhançaestava

reunido,fumandoeconversando,demaneiraquesairnaquelemomentometransformariaemtemadeseuscomentários.(Nãoeraumafantasia:semprequeeudeparavacomosrapazesdavizinhançaacaminho ou saindo da casa da família Keskin, eles se calavam, e por muitos anos aquilo meperturbou,emboraaomeveremtãobonstermoscomFeridunelesjamaispudessemmedesrespeitarcomo“defensoresdavizinhança”.)AausênciadeFeriduntambémmedeixavaconstrangido,estranhamentemaisquesuapresença.

Eujásabia,pelamaneiracomoFüsunolhavaparaele,queasituaçãoestavadifícil.MasaideiadequeFeridunconfiavainteiramenteemsuamulhermelevavaàconclusãoterríveldequeocasamentodelespudessedealgummodoserfeliz.Eramuitomais reconfortante explicar a despreocupação de Feridun recorrendo aos tabus e às

tradições.Vivendocomovivíamosnumpaís emqueera impensáveldemonstrar interesseporumamulhercasadanafrentedeseuspais,eonde,sobretudoentreospobresenointerior,umolhardeesguelhapoderialevaràmorte,teriasidovirtualmenteinconcebívelparaFeridunquepudessepassarporminhamente flertar comFüsun toda noite enquanto nos sentávamos para ver televisão comoumafamíliafeliz.Oamorqueeusentia,comoamesadejantaremquecomíamos,eracercadodetantas sutilezas e interdições que, embora cada fibra minha gritasse que eu estava loucamenteapaixonadoporFüsun,aindaassimnosvíamosobrigadosa“fazerdeconta”queumamorcomoessejamaispoderiaexistir.Àsvezes,quando issomeocorria,euentendiaqueconseguiaverFüsunnãomalgradotodasessasrecomendaçõesecostumesminuciosos,masporcausadeles.Vouapresentarumexemplonegativoparaefeitodeelucidação,poiseleécrucialparaaminha

história: se vivêssemos numa sociedade ocidental moderna, em que as relações entre homens emulheressãomaisfrancaseemqueossexosnãovivememreinosseparados,minhasidasàcasadafamíliaKeskinquatrooucincovezespor semanaacabariam,claro, levando todomundoaadmitirqueeu ia lápara verFüsun.Omarido seria obrigado a ficar comciúmes eme impedir.E assim,nesseoutropaís,minhas visitas jamaispoderiam ser tão frequentes, emeuamorporFüsunnuncapoderiaterassumidoessaforma.NasnoitesemqueFeridunficavaemcasa,erabemmenosdifícileumelevantareiremboranuma

hora conveniente. Se, porém, Feridun tivesse saído para encontrar seus amigos do cinema,muitotempo podia se passar depois do fim das transmissões e depois que alguém proferia uma destas

Page 235: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

fórmulasdecortesia: “Nãoquermaisumaxícaradecháantesde ir embora?”ou “Fiquemaisumpouco,KemalBey,porfavor!”,porqueàsvezeseudecidiasincronizarminhapartidacomachegadadele.Masnãohouveumaúnicaocasião,emtodosessesoitoanos,emqueeu tenhasidocapazdedecidirseeraounãomelhoriremboraumpoucoantesouumpoucodepoisdachegadadele.Duranteosprimeirosmeses,achavapreferíveliremboraantesdavoltadeFeridun.Porquenesses

primeiros tempos, depois que ele entrava em casa e trocávamos um olhar, eu me sentiaextremamentemal,masmuitomalmesmo.Eprecisava tomarpelomenosmais trêscoposde rakıdepoisdevoltarparaNişantaşısóparaconseguirdormir.Emais:levantar-menomomentoexatoemqueFeridunchegavaequivaliapraticamenteasugerirqueeunãogostavadelee,piorainda,quesóforaatéláporcausadeFüsun.Daímeuhábitodepermanecerpelomenospormaismeiahoradepoisque ele voltava, embora isso aumentasse muito tanto a minha inércia quanto a minha vergonha.Melhor suportar aqueles sentimentos que revelar minha culpa ao evitá- lo. Não podia seguir oexemplodessesmalditoscasanovasdosromanceseuropeusquecortejamabertamenteacondessaeescapolemdocastelominutosantesdoretornodoconde!Claro,comoalternativaairemboraantesdachegadadeFeridun,eupodiadeixarumintervalomaiorentreminhapartidaeachegadadele.Mas isso me faria sair cedo demais da casa da família Keskin. E eu não conseguia. Era difícil iremboramaistarde.Eradifíciliremboramaiscedo.10.SeeuesperasseporFeridun,podíamosconversarumpoucosobreaquelaquestãodoroteiro.

Naverdade,tenteifazerissoalgumasvezes;quandoFeridunchegavaemcasa,tentavaconversarcomele.“Agoraexisteummeiomaisrápidodepassarpelajuntadecensura,Feridun.Ouviufalardisso?”,

disse eu uma vez. Se não tiver usado exatamente essas palavras, disse alguma coisa parecida,provocandoumsilêncioglacialemtornodamesa.“TiveumareuniãocomopessoaldaErlerFilmsnocafédePanayot”,respondeuFeridun.Em seguida beijou Füsun da maneira meio rotineira quase desprovida de sentimento que os

maridosusamparabeijarasmulheresnosfilmesamericanosquandochegamemcasadotrabalho.Àsvezeseupercebia,pelamaneiracomoFüsunrecebiaseuabraçocomumabraçoemresposta,queessesbeijoseramautênticos,eficavamuitoabalado.Noutras noites Feridun sentava-se e jantava conosco, mas quase sempre ia depois aos cafés

encontrar-secomosescritores,osdiretoresdearte,oscontrarregraseosoperadoresdecâmeradomundo do cinema, ou visitar a casa de um deles. Fora atraído para uma vida comunitária compessoas ruidosas emaldizentes aquem faltava calma interior e às quais jamais faltavamotivoparabrigarem entre si. Na verdade, Feridun acabou atribuindo uma importância desproporcional aossonhoseàsbrigasdessesassociadoscomquembebiaejantavaquasesempre,e,enquantoosprazerespassageiros de seus amigos do cinema lhe traziam uma felicidade instantânea, o desesperopermanentedelesodeixavanãomenos instantaneamenteagoniado.Quandoeuo via assim, ficavaumtantoaliviadoenãomepreocupavacomofatodeminhasvisitasimpediremFüsundesaircomomaridoeaproveitaravida.Normalmente,aproveitandoasnoitesemqueeunãoosvisitava,Füsunia

Page 236: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

atéBeyoğluumaouduasvezespor semana, radiosanumablusaeleganteeadornadacomumdosbroches de borboleta que eu lhe dera, e comomarido passava horas sentada num lugar como oPelürouoPerde,eumrelatodetalhadodanoitemechegariadapartedeFeridunnavisitaseguinte.TantoFeridunquantoeusabíamosquetiaNesibetambémdesejavaqueFüsunentrasse logono

mundo do cinema pelo caminhomais curto.TarıkBey se alinhava secretamente do “nosso” ladorelutante,mas sabíamos que jamais revelaria com todas as letras o que pensava a respeito. Aindaassim,euqueriaqueelesoubessequeeraeuquempatrocinavaseugenro.FoisóumanodepoisdafundaçãodaLimonFilmesqueFeridunmedissequeseusogrosabiadaminhaajuda.Ao longodesse ano, cultiveiFeridun comocolega e amigo fora da casa da famíliaKeskin.Não

posso negar que ele era afável, sensato emuito sincero.De tempos em tempos nos reuníamos noescritóriodaLimonFilmesparapassaremrevistaasituaçãodoroteiro,nossorequerimentoàjuntadoscensoreseaprocuradoatorparaopapelprincipalmasculino.Dois atores famosos e de ótima aparência já tinhammanifestado interesse no filme de arte de

Feridun,mas tanto ele quanto eu os encarávamos com certa desconfiança. Aqueles fanfarrões debigode negro, especializados em filmes históricos, nos quais matavam sacerdotes bizantinos ederrotavam quarentamalfeitores comum só golpe, certamente haveriam de assestar suamira emFüsun. De seu repertório habitual constavam relatos lascivos sobre suas coestrelas, mesmo asmenoresdedezoitoanos, e suashistóriascarregadasdealusõespoderiam levar amanchetescomo“Osbeijosdo filmetornaram-severdadeiros”ou“Oamorproibidoquefloresceunas filmagens”.Abemdaverdade,essetipodeescândalofaziapartedaindústriadocinema,poistransformavaatoreseatrizes emastros e estrelas e atraía asmultidões,mas a vantagemera queFeridun e eu estávamosdecididosaabrirmãodepartedosucessoparapouparFüsun.Sabendoqueprotegê-laassimpodiarepresentarumcustoparaFeridun, euordenava àSatsat queenviassemais fundos e aumentavaoorçamentodaLimon.Masofatodeserimpossívelresolvercomdinheirotodasasansiedadesquecercavamaentradade

Füsunpara omundodo cinemanessa épocapreocupava-meprofundamente.Umanoite, quandocheguei à casa da família emÇukurcuma, tiaNesibemedisse, em tomdedesculpas, queFüsuntinhasaídocomFeridunparaBeyoğlu.Mantiveumaexpressãoneutra,escondendominhadecepçãoenquanto me sentava com Tarık Bey e tia Nesibe para ver televisão. Duas semanas mais tarde,quando a mesma coisa se repetiu, convidei Feridun para almoçar e comentei que, se Füsun seenvolvesse demais com a turma de bêbados do cinema, aquilo podia prejudicar a integridade denossofilmedearte.Eledeviausarasminhasvisitas,aconselhei,comoummododeobrigá-laapassarasnoitesemcasa.Seguiu-seumalongaexplicaçãodosmotivosporqueeuachavaqueissoseriabomtantoparaafamíliaquantoparaonossofilme.Fiquei contrariado ao ver como meu conselho foi pouco acatado. Chegando mais uma vez e

sabendoqueFeriduneFüsuntinhamsaídoparaalgumlugarcomooPelür,eumevinovamenteasóscomtiaNesibeeTarıkBey,vendotelevisãoemsilêncio.FiqueiatéFüsuneFeridunchegarem,àsduasdamanhã,passandootempo—emcujapassagemfizdecontaquenãoreparava—contandohistórias sobre os Estados Unidos que eu tinha conhecido nos meus anos de universidade: osamericanos trabalhavam muito, eram bem-intencionados e ao mesmo tempo muito ingênuos;

Page 237: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

dormiamcedoemesmoosfilhosdasfamíliasmaisricaseramobrigadospelospaisapedalardeportaem porta com suas bicicletas para entregar o jornal demanhã cedo. Os dois sorriram daminhahistória,comoseeuestivessebrincando,mastambémficaramcuriosos.TarıkBeymepediuquelheexplicasse uma coisa que sempre o intrigara: quando os telefones tocavamnos filmes americanos,soavam diferente dos nossos. Todos os telefones americanos tocavam daquele jeito, ou só os dosfilmes?FiqueiconfusoepercebiquemeesqueceradotoquedostelefonesnosEstadosUnidos.Bemdepoisdameia-noite,essaconstataçãomefezpensarquedeixaraminhajuventudeparatrás,aomelembrarda liberdadequesentianosEstadosUnidos.TarıkBey imitouosomdeumtelefonenumfilmedemistério,umsomaindamaisagudo.Jápassavadasduashoraseaindaestávamostomandochájuntos,fumandoerindo.Seráquefiqueiaté tãotardeparadesencorajarFüsunasairnasnoitesdasminhasvisitas,oupor

quepodiaficarmuitosentidosefosseemborasemtê-lavisto?Mesmotantosanosmaistarde,nãoseiaresposta.Masfinalmente,depoisdemaisumaconversadehomemparahomemcomFeridunsobreosperigosdoconvíviodeFüsuncomaquelagentedúbia,elaparoude sairnasnoitesemquemeesperavamparaojantar.Foi em torno dessa época que Feridun e eu começamos a pensar se não devíamos arrecadar

recursosparaofilmedearteestreladoporFüsunfazendoantesumfilmecomercial.Épossívelqueasconversassobreesseprojetointermediário,emqueFüsunnãoteriapapelalgum,tenhaminspiradoFüsunaficaremcasa,emboraelanãotenhadeixadodecomunicarseuressentimentoe,emcertasnoites,disparasseescadasacimaparaacamaantesdeeuirembora.Aindaassimcontinuavaapegadaaseusonho,e,dessemodo,emminhapróximavisita,elasemostroumaiscarinhosadoquenunca,perguntandopelaminhamãeoupondomaisumacolherdepilafnomeupratosemqueeupedisse,depoisdoquemefoisimplesmenteimpossívelirembora.Pois, mesmo enquanto progredia minha amizade com Feridun, eu continuava assolado pelos

ataquesdeinérciaquemeimpediamdeirembora.NomomentoemqueFeridunentravapelaporta,eume sentia imediatamente supérfluo, deslocado naquelemundo, como se fosse um cenário desonho,masincapazdedesistirdemeudesejoobstinadodepertenceraele.Jamaismeesquecereidaexpressão de Füsun numa noite de março de 1977, depois de um noticiário do fim da noite natelevisãoquefoiumasucessãointermináveldenotíciassobreatentadosacomíciospolíticosecafés,elíderesdaoposiçãobaleadosasangue-frio;eramuitotarde(emminhavergonhaeujátinhaparadodeconsultar o relógio), e quando ele chegou encontrou-me sentado lá. Vi a expressão triste de umhomembomautenticamentepreocupadocomigo,mastambémtemperadoporumelementodesuanaturezaquemedeixavaperplexo—certainocência,ligeira,boaecheiadeesperança,queaceitavatudocomonormal.Depoisdogolpede1980,otoquederecolheràsdezdanoiteencurtoumeusepisódiosdeinércia.

Masnemaleimarcialeracapazdecurarminhaaflição;naverdade,espremermeusmomentosdealívionumintervalomaiscurtodetempotornavameusofrimentomaisintenso.Poucoantesdotoquede recolher, a crise de imobilidade se intensificava a partir das nove e meia, e eu me descobriaincapazdelevantar,pormais furiosamentequemedissesse:“Levanta!”.Àmedidaqueacontagemregressivacontinuavaimplacável,meupânicotornava-seintolerávelàsvinteparaasdez.

Page 238: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Quando finalmenteconseguia impelir-meescadaabaixoeparadentrodoChevrolet,Çetineeuficávamos apavorados, enquanto nos perguntávamos se conseguiríamos chegar em casa à hora dotoquederecolher;chegávamosinvariavelmentequatrooucincominutosatrasados.Nessesprimeirosminutosdotoquederecolher(quemaistardefoiadiadoparaasonzedanoite),ossoldadosnuncaparavamosúltimoscarrosquecorriampelasavenidas.Acaminhodecasa,víamoscarrosquetinhambatido na praçaTaksim, emHarbiye e emDolmabahçe em sua ânsia de derrotar o relógio, e osmotoristas nem perdiam tempo em descer e começar a trocar socos. Certa noite, um senhorembriagado emergiu com seu cachorro de um Plymouth, cujo cano de descarga ainda expeliafumaça, eme lembrou de outra ocasião em que, depois de uma colisão de frente emTaksim, oradiadorpartidodeumtáxiproduziumaisvaporqueoHamamdeCağaloğlu.Umanoite,depoisdetermosatravessadoaescuridãolúgubreeasavenidasdesertasesemi-iluminadas,chegueiemcasaasalvo e, depois de me servir de um último rakı antes de ir para a cama, pedi a Deus que medevolvesseàvidanormal.Nãoseidizersedesejavadefatoqueessaprecefosseatendida.Qualquerpalavragentilqueeuouvisseantesdesairdesuacasa,qualquerobservaçãodelicadaou

positiva que Füsun ou os outros fizessem, bastava para sustentar minha esperança, fazer reviverminhaconvicçãodequeumdiahaviadereconquistarFüsun,dequetodasaquelasvisitasnãoeramemvão.Nesseestadodealegreilusão,euconseguiairemboracomrelativafacilidade.UmcomentárioagradáveldapartedeFüsunàmesadojantarnummomentoinesperado—por

exemplo: “Você foi ao barbeiro, estou vendo. Ele cortoumuito,mas ficou bom” (16 demaio de1977),ouseelasevirasseparaamãedizendo:“Elegostadealmôndegascomoummenino,nãoé?”(17defevereirode1980),ounumanoitedemuitaneve,umanomaistarde,quandotinhaacabadodechegar: “Aindanãonos sentamos para jantar,Kemal.Estávamos dizendoo quanto queríamos quevocêchegasselogoparajantarconosco”—mefaziatãofelizque,pormaissombriosquefossemospensamentosque trouxeracomigo,pormaisdesencorajadoresque fossemos sinaisqueeucaptavaenquanto víamos televisão, quando chegava a hora de ir embora me levantava da cadeira comdecisão, pegando meu sobretudo no cabide ao lado da porta e dizendo: “Com sua licença, vouembora!”.Deixandoacasadelesdessemodo,sentia-meserenoenquantoÇetinmelevavaparacasacedo,econseguiaaténãopensarsobreFüsun,massobreotrabalhododiaseguinte.Um dia ou dois depois de um triunfo semelhante, quando voltei à casa deles para jantar e vi

Füsun,entendicomgrandeclarezaduasdascoisasquemeatraíamparalá:1. Quando eu estava longe de Füsun, omundome perturbava; era um quebra-cabeça com as

peças fora do lugar. No momento em que eu a via, todas as peças se encaixavam de novo,lembrando-medequeomundoeraumtodolindoeharmoniosoondeeupodiarelaxar.2. Sempre que eu entrava na casa dela à noite e nossos olhos se encontravam, era como uma

conquista. Apesar de tudo, e independentemente do que tivesse acontecido para abalar minhasesperançasemeuorgulho,eusentiaaglóriadeestaralimaisumavez,eamaiorpartedotempoviaaluzdamesmafelicidadenosolhosdeFüsun.Oupelomenoseraoqueimaginavae,convencidodequeminhateimosia,minhaobstinação,adeixaraimpressionada,julgavaqueabelezademinhavida

Page 239: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

forarestaurada.

58.Atômbola

Passei a noite de Ano-Novo de 1976 jogando tômbola com a família Keskin. Talvez tenha melembrado disso agora porque estava falando da beleza que era restaurada na minha vida. MastambéméimportanteporquepassaroAno-NovocomosKeskineraaprovadequeamudançaemminhavidaerairrevogável.TendorompidocomSibel,eraobrigadoaficardistantedenossocírculodeamigoscomuns,eagora,visitandoosKeskinquatrooucincovezesporsemana,euabandonaraquasetodosmeusantigoshábitos,masatéavésperadoAno-Novoaindamantinhaemmimenosquemecercavamaimpressãodequeestavalevandoadianteminhavidaantiga,oupelomenosqueeracapazderetornaraelanomomentoemquequisesse.Quantoaosconhecidosquenãoviamais— paraguardardistânciadeSibel, evitarperturbar as

pessoascommásrecordaçõesemepouparotrabalhodeexplicarporquetinhadesaparecido—,eraZaimquemmemantinhaapardesuasnotícias.EleeeunosencontrávamosnoFuaye,noGarajouem algum outro restaurante da sociedade que tivesse acabado de abrir, e lá nos entregávamos aprolongadaseagradáveisconversassobreavidaeoquetodosandavamfazendo,comaintensidadededoishomensdiscutindonegócios.Zaim perdera o interesse em sua jovem namorada, Ayşe, que tinha a mesma idade de Füsun.

Disse-me que ela era criança demais e que não conseguia responder bem aos seus problemas eansiedades, e ela tampouco se encaixarabememnosso grupo;quandoquis sabermais, reafirmouquenãotinhaoutranamoradanemestavainteressadoemninguém.Peloquemecontou,ficouclaroqueeleeAyşenão tinhampassadodeuma trocadebeijos, e que amoça continuaria cautelosa eprudenteenquantopersistissesuaincertezaacercadeZaim.“Porquevocêestásorrindo?”,perguntouZaim.“Nãoestou.”“Estásim”,disseZaim.“Masnãomeincomodo.Evoulhecontarumacoisaquevocêvaiachar

aindamaisinteressante.NurcihaneMehmetseencontramtododiadasemana,semfalta,eandamde restaurante em restaurante, de clube em clube noturno.Mehmet chega a levar Nurcihan aosvelhosgazinosparaouvirmúsicaotomana,asvelhascanções.Emtodosesseslugares,ficaramamigosdecantoresquecostumavamseapresentarnorádioeagoratêmsetenta,oitentaanos.”“Estáfalandosério?…NuncaviNurcihancomoalguémqueseinteressasseporessetipodecoisa.”“TudoporqueseapaixonouporMehmet.Naverdade,Mehmetnemsabede tantascoisasassim

sobre esses antigos cantores. Está se esforçando para descobrir só para deixar Nurcihanimpressionada.ElesvãojuntosaomercadoSahaflarcomprarlivrosantigos,edepoiscorremparaomercadodepulgas àprocurade velhosdiscos.Ànoite vãoaoMaksimeaogazino deBebekparaouvirMüzeyyenSenar.Masnuncaescutamosdiscosjuntos.”“Comoassim?”“Bom, todanoiteeles saemevãoparaosgazinos”,disseZaimcomcuidado. “Masnuncavãoa

Page 240: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

lugaralgumondepossamficarsozinhosedormirjuntos.”“Comovocêsabedisso?”“Eaondeelespoderiamir?Mehmetaindamoracomospais.”“Maseletinhaumapartamentoaondelevavaasmulheres,numatransversaldaMaçka.”“Jámelevouatéláparatomarumuísque”,contouZaim.“Éumagarçonnière típica.Nurcihané

inteligente demais para ir a esse apartamento horrível; e sabe que, se fosse,Mehmet considerariaimediatamentequeissoeramotivoparanãosecasarcomela.Atéeumesentimalnaquelelugar:osvizinhosficavamespiandopeloolhomágico,paraverseaquelesujeitotinhatrazidooutraprostituta.”“E então, o que Mehmet deve fazer? Você acha fácil para um homem solteiro alugar um

apartamentonestacidade?”“Podiam ir para o Hilton”, disse Zaim. “Ou ele podia comprar um apartamento num lugar

decente.”“Mehmetadoramorarcomafamília.”“Evocêtambém”,disseZaim.“Possolhedizerumacoisa,comoamigo?Massósevocêprometer

nãoficaraborrecido.”“Nãovouficar.”“Em vez de se encontrar em segredo no seu escritório, como se vocês estivessem fazendo algo

errado,vocêdeviaterlevadoSibelparaoapartamentodoedifícioMerhamet,aondelevavaFüsun;aívocêsdoisaindaestariamjuntos.”“Sibeldisseisso?”“Não,meuamigo.Sibelnãofaladessascoisascomqualquerum”,disseZaim.“Nãosepreocupe.”Ficamoscaladosporumtempo.Estávamosgostandomuitodanossaconversasobreavidaalheia,

mas agora fiquei abalado por ter minha vida discutida como se eu tivesse sofrido algum tipo decalamidade. Zaim percebeu que meu ânimo desabara e me contou o encontro que tivera comMehmet, Nurcihan, Tayfun e Faruk, o Rato, todos sentados juntos num restaurante de sopas deBeyoğluemplenamadrugada.Zaim me contou o episódio na esperança de me atrair de volta para minha vida antiga, mas

tambémgostavademecontaroquantosedivertia.Escuteicadadetalhedesuahistória,muitasvezesexagerados,mas só fui pensarmelhor nelamais adiante, quando cheguei à casa dosKeskin emesurpreendi refletindo com carinho sobre aquelas noites. Mas ninguém vá imaginar que estavadeplorando aperdados amigosouosdias emque vagavapela cidade.Éque às vezes, àmesadejantardafamíliaKeskin,eutinhaaimpressãorepentinadequenadaacontecianomundo,oudeque,sealgumacoisaestavaacontecendo,estávamoslongedela—sóisso.Nanoitedequefalei,em1977,devotersucumbidoaessesentimento,porquemelembrodeum

momentoemquemepergunteioqueZaim,Sibel,Mehmet,Tayfun,Faruk,oRato,etodoorestoestariam fazendo. (Zaim tinha instalado radiadores elétricos em sua casa de verão e mandara ocaseiroacenderalareiraparaumagrandefesta,paraaqualconvidara“todomundo”.)“Olhe,Kemal,saiuovinteesete,evocêtemonúmeronoseucartão!”,disseFüsun.Quandoela

viu que eu não estava prestando a menor atenção, pôs uma fava seca no 27 do meu cartão detômbola,e sorriu.“Paredeperder tempoe jogue!”,disseela,olhandoporummomentoemmeus

Page 241: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

olhoscompreocupação,ansiedadeeatécertaternura.EraexatamenteparaconseguiraqueletipodeatençãodeFüsunqueeuiaàcasadosKeskin.Senti

uma felicidade extraordinária,mas que não fora fácil de conquistar. Semquerer perturbarminhamãeemeu irmão, escondidelesmeusplanosdepassaroAno-NovonacasadosKeskin, jantandocomosdois.Depois,osfilhosdeOsman—meussobrinhos—gritaram:“Vamos,vovó,vamosjogartômbola!”, e eu fui obrigado a jogar uma partida com eles. Enquanto estávamos todos jogando,troqueiumolharcomBerrin,etalvezelatambémtenhaficadoimpressionadacomaquelepretensoquadro de felicidade familiar, porque lembro que ela ergueu as sobrancelhas, como se dissesse:“Nadaerrado,espero?”.“Nada”,sussurrei.“Estamosnosdivertindo,nãoviu?”Maistarde,correndoparaaportaapretextodeirparaafestadeZaim,surpreendioutroolharde

Berrin,quenãosedeixaraenganar.Masnãorespondi.EnquantoÇetinmelevavaparaacasadafamíliaKeskin,euestavaansiosomasfeliz.Aprimeira

coisaquefizdepoisdesubirasescadascorrendoedeentrar—além,claro,desaborearaalegriadedepararcomosolhosdeFüsun—foitirardasacoladeplásticoalgunsdosprêmiosqueminhamãeprepararaparaosvencedoresdojogodetômbolananossacasa,edistribuí- lospelapontadamesa,exclamando: “Paraos ganhadoresda tômbola!”.TiaNesibe também tinhapreparado seusprêmiossingelos para o jogo, comominhamãe vinha fazendo todo Ano-Novo desde a minha infância, emisturamososprêmiosdasduas.NossadiversãodaquelanoitejogandotômbolahaviadeserepetiracadaAno-Novoporoitoanos,eosprêmiosdetiaNesibesempreerammisturadosaosqueeutraziacomigo.AquiexponhoojogodetômbolaqueusamosporoitoAnos-NovosconsecutivosnacasadeFüsun.

Porquarentaanos,desdeofinaldadécadade1950atéofinaldade1990,minhamãeusavaumjogosemelhanteparaentreterprimeiromeuirmão,meusprimoseeu,edepoisseusnetos.QuandoafestadeAno-Novochegavaaofim,ojogoacabava,osprêmiostinhamsidodistribuídoseascriançaseosvizinhoscomeçavamabocejareacochilar.TiaNesibe,comominhamãe,reuniacomcuidadoaspeças, enchia o saco de veludo e contava os tentos numerados (noventa no total). Depois deembaralharoscartõesnumerados,queatavacomumafita,recolhiaasfavassecasqueusávamosparamarcarosnúmeroseosguardavanumsacodeplásticoatéapróximavésperadeAno-Novo.Agora, tantos anos depois, quando tento explicar meu amor da maneira mais sincera possível,

enumerando cada objeto por sua vez, tenho a impressão de que a tômbola captura o estranho emisteriosoespíritodessesdias.InventadaemNápoleseaindajogadapelasfamíliasitalianasnoNatal,a tômbola passou, com tantos outros rituais e costumes de Ano-Novo, das famílias italianas elevantinasdeIstambulparaapopulaçãoemgeraldepoisdareformadocalendárioempreendidaporAtatürk,logosetransformandoemritoconsagradodoAno-Novo.Todoano,tiaNesibeincluíaentreseusprêmiosumlençodecriança.Seriaparanoslembrardo

velho ditado que dizia “Jogar tômbola no dia deAno-Novo deixa as crianças felizes, e por isso osadultosdevem lembrar-sede ficar felizes comocriançasnessedia”?Quandoeuerameninoeumconvidado mais velho ganhava um prêmio originalmente destinado a uma criança, diziainvariavelmente:“Ah,exatamenteotipodelençodequeeuprecisava!”.Meupaieseusamigosentão

Page 242: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

trocavampiscadelas,sugerindoquehaviaumsentidoocultoalémdonossoalcancedecrianças.Aovê-losagirassim,comaquelesarcasmo,eumesentiacomoseosadultosnãolevassemojogoasério.Em 1982, numAno-Novo chuvoso, quando consegui completar primeiro a linha superior demeucartão de tômbola e gritei como uma criança, tia Nesibe disse: “Parabéns, Kemal Bey”, e meentregouolencinho.Esim,eudisse:“Exatamenteotipodelençodequeeuprecisava!”.“ÉumdoslençosdeFüsunquandoeracriança”,dissetiaNesibe,totalmenteséria.Minhamãe ainda juntava aos prêmios alguns pares demeias de criança, como que para dar a

entendernãoumaindulgênciapródiga,masquesóescolhiaalgunsartigosdomésticosessenciais.Daraosprêmiosumaaparênciamenosagudadeprendanospermitiavernossasmeias,nossoslenços,opilão que usávamos para esmagar nozes e amêndoas na cozinha ou um pente barato da loja deAlaaddincomoartigosdegrandevalor,aindaqueporpoucotempo.NacasadafamíliaKeskin,todomundo, inclusiveascrianças,comemoravanãoporganharmeias,masporquetinhaganhoo jogo.Agora,anosdepois,tenhoaimpressãodequeeraassimporquenenhumdosobjetosdacasapertenciaa ummembro específico da família,mas, como aquelameia, pertencia a toda a casa e a toda afamília,enquantoeusempreimaginaraumquartonopisosuperiorqueFüsundividiacomomarido,eneleumarmáriocomospertencesdela;tivemuitossonhosatormentadossobreaquelequarto,asroupasdelaeoutrascoisasneleguardadas.FoinoAno-Novode1980queleveiumprêmiosurpresaparaojogodetômbola—umalembrança

domeuavô,EthemKemal:o copoantigoemqueFüsuneeu tínhamos tomadouísqueemnossoúltimoencontro,nodiadomeunoivado.Apartirde1979,afamíliaKeskindetectarameucostumedeembolsarváriospertencesdacasaesubstituí- losporartigosmaisvaliososecaros,mas,aexemplodomeuamorporFüsun,aquilonuncaeramencionado;demaneiraquenãohavianadadeestranhoparaelesnumcopoenfeitadocomooquesevianoantiquáriodeRafiPortakal,girandoemmeioalapiseiras,meias e sabonetes.Oquepartiumeu coração foi que, quandoTarıkBey ganhou, e tiaNesibeapresentouosprêmios,Füsunnemdeusinaldereconhecê-locomoocopodecristaldodiamaistristedenossocaso.Toda vez que Tarık Bey o usava para tomar rakı pelos três anos e meio que se seguiram, eu

procuravarememorarafelicidadedaquelaúltimavezemqueFüsuneeutínhamosnosamado,mas,comoumacriança condicionadaporum tabu a tirar certopensamentoda cabeça,não conseguiachegaraessamemóriasentadoàmesmamesaqueTarıkBey.O poder das coisas é inerente às memórias que acumulam em si mesmas, e também nas

vicissitudes de nossa imaginação e nossa memória— disso não há nenhuma dúvida. Em outromomentoeunãoteriaomenorinteressepelossabonetesEdirnecontidosnaquelacestaepodiaatéachá-los de mau gosto, mas, como serviam de prêmios para a tômbola do Ano-Novo, aquelessabonetes com a forma de damascos,marmelos, uvas emorangosme lembram do ritmo lento ehumildedarotinaquereinavaemnossasvidas.Creiodevotamenteesemqualquercálculoqueessessentimentosnãosãoapenasmeus,eque,aoveressesobjetos,osvisitantesdomeumuseumuitosanosmaistardehãodesentiramesmacoisa.Com idênticaconvicção, exponhoaqui váriosbilhetesda loteriadoAno-Novodaqueleperíodo.

Comominhamãe, tiaNesibe semprecompravaumbilhetedogrande sorteiode31dedezembro,

Page 243: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

paraservircomoumdosprêmiosdatômbola.Paraoganhadordobilhete,quemquerquefosse,osoutros presentes em torno da mesa dos Keskin, como na minha casa, sempre diziam quase emuníssono:“Oh,vejamsó,quesorteasua…Tenhocertezadequevaiganhartambémosorteio”.Devidoaalgumaestranhacoincidência,Füsunganhouosbilhetesdeloteriadetodososanosentre

1977e1984.Masquandoonúmerovencedoreraanunciadonorádioenatelevisãopoucodepois,porumacoincidênciaigualmenteestranha,elajamaisganhavanada,nemmesmoadevoluçãodopreçodobilhete.Comoemnossacasa,emtornodamesadosKeskinovelhoditadosobreojogodepôquer,oamor

eavidaerarepetidovezessemconta,especialmentequandoTarıkBeyjogavacartascomasvisitas.“Azarnojogo,sortenoamor.”Eraoque todosdiziamcompulsivamente,eassimem1981,navésperadoAno-Novo,depoisde

termosassistidoaosorteioaovivodograndeprêmiodaloteria,supervisionadopeloprimeiroescrivãodeAnkara,depoisdeverificarmosqueFüsunnãoganharanada,eu,embriagadoeimpensadamente,diziaomesmo.“Tendo em vista que a senhora não ganhou nada na loteria, srta. Füsun”, dizia eu, imitando o

heróinobreinglêsquevíamosnatelevisão,“devetersidopremiadanoamor!”“Quanto a isso não tenho a menor dúvida, Kemal Bey”, respondia Füsun sem fazer qualquer

pausa,comoasheroínaseleganteseespirituosasdomesmoprograma.Os jornais conservadores como aMilliGazete, oTercüman e oHergün sempre reclamavam da

vésperadeAno-Novo,que,graçasàtômbola,àloterianacional,atodosaquelesjogosdecartaseàspromoções generalizadas de restaurantes e clubes noturnos, aos poucos se transformava numaverdadeira orgia de bebedeira e jogatina. Quando famílias ricas muçulmanas de şişli e Nişantaşıcomeçaramacomprarpinheirosparadecorareexibirnasjanelascomooscristãosfaziamnosfilmes,lembro que atéminhamãe ficou chocada,mas como erampessoas que conhecia não chegou aopontodeclassificá-lasde“degeneradas”ou“infiéis”comoaimprensareligiosa,preferindochamá-lasde“desmioladas”.DuranteospreparativosparaoAno-Novo,haviamilharesdevendedoresanunciandobilhetesda

loterianacionalnasruasdeIstambul,ealgunssaíamvestidosdePapaiNoelnosbairrosmaisricos.Certanoite,emdezembrode1980,quandoescolhiaosprêmiosquelevariaparaatômboladacasadeFüsun,viumgrupovariadodealunosdoliceuridicularizandoumdessespapaisnoéis,puxandosuabarbadealgodãoerindo.Quandochegueimaisperto,viqueaquelehomemeraoporteirodoedifício do outro lado da rua; enquanto os adolescentes puxavam seu bigode de algodão,HaydarEfendisuportavatudoemsilêncio,segurandoseusbilhetes,comosolhosbaixos.Poucosanosmaistarde, a raivaqueos conservadores sentiamdabebedeiraeda jogatinaduranteessacomemoraçãodescambou quando fundamentalistas islâmicos puseram uma bomba no hotelMármara na praçaTaksim,naconfeitariaque foradecoradaparaa festadeAno-Novocomumpinheiro imenso.Emtorno da mesa da família Keskin, lembro-me bem, o atentado foi assunto obrigatório, mas bemmenos comentado que o destino da dançarina programada para aparecer na televisão durante aprogramaçãodeAno-Novo.QuandoSertap,praticantededançadoventremais famosadaépoca,apareceu na televisão apesar das diatribes furiosas da imprensa conservadora, ficamos perplexos,

Page 244: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

comoquasetodososhabitantesdopaísinteiro.AdireçãodaTRThaviaenvolvidoascurvasdalindaSertap em tantas camadas de roupa que não só sua barriga e seus seios “de fama internacional”estavamcobertos,mastambémassuaspernas.“Podiamtê-laobrigadoadançartambémdevéu,essespalhaços!”,disseTarıkBey.Naverdadeele

quasenuncaseirritavacomatelevisão,epormaisquetivessebebidojamaisgritavacomatelacomonósfazíamosquandoirritados.Fazia já alguns anosque eu compravaumSaatlıMaarifTakvimi, o calendário que indicava os

horários das preces, na loja de Alaaddin para levar como prêmio de tômbola para a casa de tiaNesibe.NavésperadoAno-Novode1981,foiFüsunquemganhouafolhinha,eporminhainsistênciapendurounaparedeentreatelevisãoeacozinha,masninguémdavaatençãoàspáginasnosdiasemque eu não ia lá, embora houvesse um poema do dia, uma nota diária sobre os acontecimentoshistóricosocorridosnaqueladata,eaimagemdeummostradorderelógio,paraqueosanalfabetospudessemsaberoshoráriosdaspreces,alémdereceitasrecomendadas,anedotashistóricasealgumascitações.“TiaNesibe, você se esqueceunovamentede trocar a páginada folhinha”, eudiziano final da

noite,quandoossoldadosbatiamcontinênciaparaabandeiraenquantomarchavamcompassodegansonatela,ejátínhamostomadovárioscoposderakı.“Mais um dia encerrado”, dizia Tarık Bey. “Graças a Deus não passamos fome e temos teto,

estamosdeestômagocheioesentadosnumacasaquentinha—oquemaissepodequererdavida?”Por algum motivo, meu coração ficava reconfortado ao ouvir Tarık Bey dizer essas palavras

despretensiosasnofinaldanoite,eassim—muitoemboraeutivessepercebidoaochegarquetinhamseesquecidode trocar apáginadocalendário— deixavapara só falar dissonomomento emqueestavaquaseindoembora,quandodesejavaouviraquelaspalavrasdereconhecimento.“Omaisimportanteéqueestamostodosjuntos,comaspessoasdequemgostamos”,acrescentava

tiaNesibe.Quandodiziaisso,inclinava-separabeijarFüsun,e,seFüsunnãoestavaaseulado,elachamava:“Venhaaqui,minhanuvenzinhadetempestade,paraeupoderlhedarumbeijo”.ÀsvezesFüsunassumiaumaexpressãodegarotinhaesentava-senocolodamãe,permitindoque

tia Nesibe passasse muito tempo acariciando-a, beijando seus braços, seu pescoço, seu rosto.Qualquerquefosseoestadodasrelaçõesentremãeefilha,elasmantiveramaqueleritualportodosos oito anos. Enquanto riam, trocavam beijos e abraços, Füsun sabia perfeitamente bem que euolhavaparaela,masnuncadevolviadiretamentemeuolhar.Houveocasiões, também,emque,depoisquetiaNesibediziasuaspalavrassobre“aspessoasde

quemgostamos”,Füsunnãoiaparaocolodamãe,masemvezdissopegavaummeninovizinho,umgaroto chamadoAli, que crescia depressa, punha-o no colo e, depois de acariciá- lo e cobri- lo debeijos, dizia: “Estánahorade você ir para casa, ou seuspais vãobrigar conoscopormanter vocêaqui”. Finalmente, havia as ocasiões em que Füsun estava demau humor, porque ela e suamãetinham discutido de manhã, e, quando tia Nesibe chamava: “Venha aqui, minha filha”, elarespondia:“Ora,mamãe,porfavor!”,obrigandotiaNesibearesponder:“Entãopelomenosarranqueapáginadafolhinha,paranãoficarmostrocandoasdatas”.EissosubitamentedeixavaFüsunmuitosorridente,e,depoisdeselevantarparaarrancarapágina

Page 245: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

doSaatlıMaarifTakvimi,liaopoemaeareceitadodiaemvozaltaemeioteatral,rindomuito.TiaNesibecomentava“Ah,queboaideia,vamosfazercompotademarmeloedeuva,faztantotempo”ou“Ah,estãosugerindoalcachofra,masninguémmaiscolheasalcachofrasquandoaindacabemnapalmadamão”.Àsvezeselafaziaumaperguntaquemedesconcertava:“Seeufizesseumfolheadodeespinafre,vocêscomeriam?”.QuandoTarıkBeynãoescutavaaperguntaouestavamelancólicodemaispararesponder,Füsun

seviravaemeexaminavaemsilêncio,comumacuriosidadesádicabaseadanaexpectativadequeeunãomeatreveriaamecomportarcomoummembrodafamíliadeplenodireito,dizendoatiaNesibeoquedeviaounãopreparar.Eu sabia como me safar dessa situação difícil, dizendo: “Füsun adora folheados gostosos, tia

Nesibe,eporissovocêdeviapreparar”.ÀsvezesTarıkBeyperguntavaàfilhaasdatashistóricasimportantesqueapareciamnapáginaque

elaarrancaradoSaatlıMaarifTakvimi,eelaliaemvozalta:“Em3desetembrode1658,oexércitootomano começou seu cerco ao castelo de Doppio”. Ou: “Em 26 de agosto de 1071, depois daBatalhadeMalazgirt,aAnatóliaabriusuasportasaosturcos”.“Hummm,deixeeudarumaolhadanisso”,diziaTarıkBey.“Erraramagrafiade‘Doppio’.Tome

aqui,eleiaoditadododia.”“Olarficaondeestáocoraçãoeondeenchemosabarriga”,disseFüsun,lendoafraseemtomde

ironiaaténossosolhosseencontraremeelaficarséria.De repente todos nos calávamos, como se cada um ponderasse o sentido profundo daquelas

palavras.DepoisqueFüsunterminavadelerepunhadeladoapáginaarrancadadafolhinha,euapegava fingindoquequeria lê- la sozinhoe,quandoninguémestavaolhando,guardavaopapelnobolso.Claroqueessespequenos furtosnemsempreeramfáceis,masnãoqueromerevelaraindamais

ridículo entrandonos detalhes dasminhasdificuldades para subtrair tantos objetos de tamanhos evalores tãovariadosdacasada famíliaKeskin.Quebasteumexemplodo finaldavésperadeAno-Novo de 1982: antes de deixar a casa com o lencinho que eu ganhara de prêmio na tômbola, opequenoAli,ofilhodovizinho,queadmiravamaisFüsunacadadia,aproximou-sedemime,comum comportamento muito diferente de seus maus modos habituais, me disse: “Kemal Bey, sabeaquelelencinhoqueosenhorganhou?”.“Oquê?”“ÉumlençodequandoFüsuneracriança.Possoverdenovo?”“Ah,nãotenhoamenorideiadeondeguardei,Ali.”“Maseusei”,respondeuogaroto.“Guardounobolso,entãoaindadeveestarlá.”Equaseconseguiuenfiaramãonomeubolso,masdeiumpassoparatrás.Achuvacaíafortedo

ladodefora,etodomundosereunirajuntoàjanela,demaneiraqueninguémouviuaspalavrasdomenino.“Ali, meu garoto, está ficando muito tarde, e você ainda está aqui”, disse eu. “Seus pais vão

reclamarconosco.”“Jávou,KemalBey.MasosenhorvaimedarolencinhodeFüsun?”

Page 246: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Não”,sussurreifranzindoatesta.“Precisodele.”

59.Passandopelacensura

Eu sabiahavia anos,peloquea imprensapublicava,que todosos filmes, tantonacionais comoestrangeiros, precisavam passar pelos censores doEstado antes de serem exibidos,mas até criar aLimonFilmesnãofaziaideiadopoderqueelestinhamnaindústriadocinema.OsjornaissófalavamdoscensoresquandoelesproibiamfilmesdemuitosucessonoOcidente,comoLawrencedaArábia,categoricamentebanidoporinsultaraTurquia,eOúltimotangoemParis,cujascenasdesexoforamcortadasparadeixarofilmemaisartísticoemaisarrastadoqueooriginal.UmconhecidodoPelürBartrabalhavanajuntadecensoreshaviaváriosanos;HayalHayatiBey

era visitante frequente de nossa mesa, e numa noite nos contou que, na verdade, acreditava nademocraciaenaliberdadedeexpressãomaisfervorosamentequequalquereuropeu,masnãopodiacederterrenoagentedispostaaconvencerenganosamentenossanaçãoinocenteedeboavontadeaexploraraartedocinemacomessafinalidadeescusa.ComotantosoutroshabituésdoPelür,HayalHayati tambémtrabalhavacomodiretoreprodutor,edisseque tinhaaceitoaposiçãona juntadecensorespara“levarosoutrosàloucura!”—umaafirmaçãoquepontuava,comofaziacomqualquerpiada,piscandooolhoparaFüsun.HayalHayatirecebeuseuapelido(quesignificava“Sonho”)dosfrequentadores do Pelür porque usavamuito o termo quando circulava pelas mesas, falando dosfilmesquepretendiafazer.Todavezquechegavaànossamesa,olhavaperdidamentenosolhosdeFüsunecontavaaelaumdosfilmesdosseussonhos,pedindo-lhetodavezumaopinião“imediataesincera”independentede“consideraçõescomerciais”.“Lindaideiaparaumfilme”,diziaFüsuntodavez.“Quandoofilmeforfeito,vocêvaiterqueaceitaropapelprincipal”,respondiaHayalHayati,no

tomdeumhomemquesempreagiaporinstinto,levadopelocoração.Estávamosdescobrindoqueprecisaríamosdealgumtempoparafazernossofilmedecolar.SegundoHayalHayati, a indústria cinematográfica da Turquia tinha toda a liberdade de fazer

maisoumenosoquequisesse,contantoqueosfilmesnãocontivessemobscenidadesnemcenasdesexo, interpretações inaceitáveis do Islã, de Atatürk, do Exército turco, do presidente, de figurasreligiosas, dos curdos, dos armênios, dos judeus ou dos gregos. Claro, dizia essas coisas com umsorriso, porque já fazia meio século que os membros da junta de censores não se limitavam aobedecer aos ditames do Estado, banindo todos os temas que provocassem desconforto nosocupantes do poder, mas tinham adquirido o costume de agir de acordo com suas própriasconvicções, proibindo tudo que por acaso os contrariasse ou ofendesse e, como Hayal Hayati,derivandodaíaconsiderávelsatisfaçãodesseusoarbitráriodepoder.HayatiBeycontouhistóriassobreosfilmesquetinhaproibidoduranteseutempodecensorcomo

deleite de um caçador que se gaba dos ursos que capturara em suas armadilhas.Ríamos das suashistórias, tanto quanto os outros. Por exemplo, tinha proibidoum filme sobre as aventuras de umdesastradoguardadesegurançaalegandoque“degradavaosguardasdesegurançaturcos”;umfilme

Page 247: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

sobre umamulher casada,mãe de filhos, que se apaixonava por outro homem foi vetado porque“insultava a instituição da maternidade”; e um filme sobre as felizes aventuras de um pequenovagabundofoiproibidoporque“afastavaascriançasdaescola”. Infelizmente,oprimeiro filmequeHayati Bey fizera depois do tempo que trabalhara na junta de censores também foi proibido, “e,lamentavelmente, a decisão foi um capricho,motivada apenas por questões pessoais”.Hayati Beyficavamuitoirritadosemprequesefalavanoassunto.Ofilme,cujaproduçãocustarabastantecaro,foi totalmente proibido devido à cena de um jantar em que um homem se enfurecia à mesa dafamíliaporquea saladaviera semvinagre,eoscensores sentiram-se instadosa “protegera família,basedasociedade”.Enquanto conversava conosco, explicando como essa cena e mais duas brigas de família,

igualmenteofensivasparaoscensores, tinhamsebaseadocomtodainocênciaemsuaprópriavida,ficouclaroqueoquerealmenteperturbavaHayalHayatieratersidotraídoporseusantigosamigosda junta de censores. A se acreditar no que ele dizia, certa noite ele saíra para beber com eles eterminarabrigandonumbecocomseumaisvelhoamigodajunta,supostamenteporcausadeumamulher. Quando a polícia os recolheu na ruela enlameada e os transportou para a delegacia deBeyoğlu, nenhum dos dois deu queixa, e assim os policiais os convenceram a fazer as pazes e irembora.Masemseguida,quandopediualiberaçãoparaexibirseufilmenoscinemasesalvar-sedafalência,HayalHayati,queaindareuniainfluênciasuficienteparaobterumsegundojulgamento,foiobrigado a retirar todas as cenas debriga quemais de longepudessemprejudicar a instituiçãodafamília, com a exceção daquela em que um filho forte e brutal surrava a irmã mais nova porinstigaçãodamãedevota;depoisdessescortes,ofilmepassoupelajuntadecensores.HayalHayaticontinuavaconvencidodequeera“umacoisarelativamenteboanofimdascontas”

quandoacensurasódeterminavaocortedecenasconsideradasreprováveispeloEstado.Poismesmoum filme muito cortado podia ser exibido nos cinemas e, se ainda fizesse sentido, o produtorconseguiarecuperarseuinvestimento.Opiorresultadopossíveleraumaproibiçãoterminante.Paraevitar essa calamidade, oEstado era gentilmente instado a dividir o processo de censura emduasfases.Naprimeira,oroteiroprecisavaserenviadoparaquea juntaaprovasseo temaeoconteúdodas

cenas.Comoeratípicodetodasassituaçõesenvolvendotrabalhosemqueoscidadãosprecisassemobter a “permissão” doEstado, uma complexa burocracia de licenças e propinas se desenvolvera,dandoorigemporsuavezaumaredededespachantesefirmasqueseofereciamparaencaminharosrequerimentosdoscidadãos.Lembro-medemuitasocasiõesnaqueleverãode1977emquemesenteidiantedeFeridunnosescritóriosdaLimonFilmes,fumandocigarrosenquantoponderávamosquaisseriamosmelhoresdespachantesausarparaChuvaazul.Havia um esforçado grego de Istambul de quem todos gostavam e que era conhecido como

DaktiloDemir,ouDemir,odatilógrafo.Suamaneiradeexpurgarumroteirodeformaanãoofenderoscensoreserareescrevê-lo,emsuafamosamáquinaecomseupróprioestilo.Essehomemimenso,ex-boxeador(usaranopassadoouniformedaequipedeKurtuluş),eranaverdadeumhomemmuitorequintado, dono deuma alma elegante. Sabiamelhor que qualquer umcomo tornar um roteiroaceitável, suavizandosuasarestas,amenizandoemtominocenteasdivisõesprofundasentrericose

Page 248: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

pobres, trabalhadores epatrões, estuprador e vítima,mal e virtude, abafandoo efeitodequalquerpronunciamentomaisásperooucríticodoheróinofinaldofilme—palavrasquepudessemofenderoscensoresmasdeliciaraplateia—,acrescentando-lhesalgunsclichês sobreabandeira,anação,Atatürk e Alá. Seu maior dom era o faro infalível para neutralizar os momentos mais vulgares eextremosdoroteiro:elesempreencontravaummodoleveeengraçadodedevolveràaçãooencantoinocentedavidacotidiana.Mesmoasgrandesprodutorasquecontribuíamcompropinas regularespara a junta de censores confiavam seus roteiros a Daktilo Demir, ainda que não contivessemmomentos inadequados, sóparaqueelepudesse injetar- lhesadoceaurademagia infantilqueerasuamarcaregistrada.Quandodescobrimosoquanto sedeviamaDaktiloDemirosmomentosmais líricosdos filmes

quenostinhamcomovidonoverãoanterior,nóstrês—FeridunachouqueFüsuntambémdeveriavir—decidimosvisitaracasado“CirurgiãodeRoteiros”emKurtuluş.Numasalatomadapelotique-taque de um imenso relógio de parede, vimos a antiga Remington a que ele devia seu lendáriocognome, e sentimos a mesma aura mágica presente nos filmes que reescrevera. Demir Bey nosrecebeucomgrandegentileza,dizendoqueficariaencantadosedeixássemosnossoroteirocomele,para que, caso gostasse, pudesse remodelá-lo em sua máquina de escrever numa versão quecertamenteseriaaprovadapelacensura.Mostrando-nosapilhadepastasdeprojetosentreospratosdekebabedefrutasquenosapresentou,revelouqueoprocessonãoseriarápido,devidoàimensacarga de trabalho que acumulara; indicando comum gesto suas filhas gêmeas de vinte e poucosanos,acomodadasnaextremidadedaenormemesadejantareexaminandocomseusolhosmíopes,atravésdosóculosdecoruja,osroteirosqueseupainãotinhatempodereescrever,eleadmitiu,comorgulhopaternal,queelastinhamficado“aindamelhores”doqueelenareformaderoteiros.Füsunficoumuitocontentequandoamaiscorpulentadasgêmeaslembrou-sedequetinhasidofinalistadoconcursonacionaldebelezadoMilliyetanosantes.Penaquetãopoucaspessoasselembrassem.A mesma jovem nos devolveu o roteiro, reescrito e polido especialmente para Füsun, e

acompanhadoporpalavrasgentisdeadmiração(“Meupaidissequeéumverdadeirofilmedearteeuropeu”), mas a essa altura mais três meses tinham se passado. Füsun reagiu a esse atraso comamuos e ocasionais queixas mais ásperas, obrigando-me a lembrar- lhe de que o trabalho do seumaridotinhasidoigualmentelento.PoucasoportunidadesdefalarcomFüsunemparticular,longedamesa,ocorriamduranteminhas

visitas aÇukurcuma.Mas perto do final de toda noite nós nos encontrávamos ao pé da gaiola deLimonparanoscertificardequeopássarotinhacomidaebebidaeumpoucodecartilagemdelulaparabicar(queeucompraranoMısırÇarşısı,obazardeespeciarias).Porémoarranjoestavalongedeserideal,eprecisávamosfalaraossussurros.Detemposemtemposumaoportunidademais fácilseapresentava:quandonãoestavapassando

algumashoras com as amigas da vizinhança que escondia demim (namaioria jovens solteiras ourecém-casadas),quandonãosaíacomFeridunparaosbaresdopessoaldecinema,quandonãotinhatarefasdomésticasafazernemestavaajudandoamãecomascosturasqueaindaaceitava,elaficavasozinhapintandoaves.Eraalgoquedescreviadamaneiramaisprosaica,maseusentiaapaixãoportrásdasupostaindiferençadeamadora,esuaspinturasmefaziamamá-laaindamais.

Page 249: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Opassatempocomeçaraquandoumcorvotinhapousadonasacadadeferrodoquartodosfundosdo andar térreo, semelhante ao que pousara na varanda do apartamento do edifício Merhamet:quandoFüsunseaproximou,aavenãoseafastoudela.Ocorvovoltouemoutrasocasiões,edenovo,emvezdesimplesmentebaterasaseirembora,ficavaaliempoleirado,olhandoparaFüsuncomoscantosdosolhosbrilhanteseameaçadores,apontodedeixá-laassustada.UmdiaFüsuntirouumafoto do corvo, uma pequena fotografia em preto e branco que exponho aqui, e que elamandouampliar para usar como modelo para a trabalhosa aquarela que eu tanto admirava. Em seguidaprosseguiu com um pombo que vinha pousar na mesma grade de ferro, e depois com umaandorinha.NasnoitesemqueFeridunnãoestavaemcasa,antesdojantarouduranteumintervalocomercial

maislongo,euperguntavaaFüsun:“Comoestáindoasuapintura?”.Seela estivessebem-disposta, respondia “Vamosaté láolhar”, e íamos atéoquartodos fundos,

tomadopelos artigosde costurade tiaNesibe, seus tecidos e suas tesouras, e à luz fracado lustreestudávamosjuntosapintura.“Está linda, realmente linda”, eu dizia.Minhas palavras não erammenos sinceras por causa do

desejo insuportável que eu sentia de passar a mão em suas costas ou apenas tocar sua mão. Eucompravaumlindopapel“defabricaçãoeuropeia”,alémdecadernoseconjuntosdeaquarelanumapapelariaemSirkeciparalevardepresenteparaela.“VoupintartodasasavesdeIstambul”,diziaFüsun.“Feriduntirouafotodeumaandorinha.Vai

serapróxima.Estoufazendoessesquadrossóparamimmesma,vocêsabe.Achaquealgumdiaumacorujavaiaparecernagradedasacada?”“Umdiavocêdeviamontarumaexposição”,disseeuumavez.“Naverdade,oqueeuqueriafazererairaPariseverosquadrosdosmuseusdelá”,disseFüsun.Àsvezeselaestavairritáveledesanimada.“Nãoconseguipintarnosúltimosdias,Kemal”,diziaela.Ficava sempreclaroque seudesânimosedeviaàdemorado filme:não só tínhamosdeixadode

começar a filmar como nem sequer conseguíramos um roteiro aceitável. Às vezes, sem teracrescentadoquasenadaaumapinturadesdeaúltimavezqueavíramos,Füsunmelevavaaoquartodosfundosparaconversarsobreofilme.“Feridun ficou tão insatisfeito com as mudanças feitas por Daktilo Demir que recomeçou a

escrevertudo”,disseelacertanoite.“Eufaleicomele,masvocêtambémprecisafalar.Elenãopodedemorartantoassim.Precisamoscomeçarlogoessemeufilme.”“Voufalarcomele.”Três semanasmais tarde fomosdenovo atéoquartodos fundos.Füsun terminara apinturado

corvoecomeçaraapintarlentamenteaandorinha.“Estáficandomuitobom”,disseeudepoisdeadmirarapinturapormuitotempo.“Kemal,agoraentendiqueaindafaltammuitosmesesantesdepodermoscomeçarafazerofilme

deartedeFeridun”,disseFüsun.“Oscensoresnuncadeixamfilmesdessetiposimplesmentepassar;andamdevagar,elessãomuitodesconfiados.Nooutrodia,noPelür,MuzafferBeymeofereceuumpapel.Feridunlhecontou?”“Não.QuerdizerquevocêscontinuamairaoPelür?Cuidado,Füsun,oshomensdelásãotodos

Page 250: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

unsverdadeiroslobos.”“Nãosepreocupe,Feriduntomaodevidocuidadocomisso,nósdoistomamos.Masessaproposta

foiséria.”“Evocêleuoroteiro?Érealmenteumacoisaquevocêqueirafazer?”“Claroquenãolioroteiro.Seeuconcordar,elesmandamescreverumroteiroparamim.Querem

sereunircomigo.”“Qualéoenredo?”“Que diferença faz, Kemal? Estamos falando de um dosmelodramas românticos deMuzaffer.

Estoupensandoemaceitar.”“Não se precipite, Füsun. Essas pessoas não prestam. Feridun devia se reunir com eles no seu

lugar.Elespodemestarmal- intencionados.”“Comoassim?”Nãoquisdarprosseguimentoaessaconversa;volteiparaamesa.NãomeeradifícilimaginarumdiretorexperimentadocomoMuzafferBeyusandoFüsuncomoa

principalatraçãoemummelodramacomercial,etornando-afamosadeEdirnaaDiyarbakır.Comsua beleza e bondade, ela certamente havia de encantar os espectadores— os desordeiros, osdesempregados,asdonasdecasaquepassavamodiasonhandoeossolteirossedentosdesexo—queseapinhavamnoscinemassufocantesfedendoàsfornalhasdecarvãoqueosaqueciam.Nãodemoroumuito parame ocorrer que, se aquele sonho se realizasse e ela se transformasse numa estrela, iapassaratratarmalnãosóamimcomotambémFeridun,possivelmenteabandonandonósdois.Nãopude suportar a ideia de que fosse o tipo de mulher capaz de manipular sem contemplação osrepórteresdasrevistasemtrocadefamaefortuna.MasnosolharesdosfrequentadoresdoPelüreuviamuitagentecapazdequalquercoisapara“nos”separar—eusoaprimeirapessoadopluralporquefoiaprimeiraquemeocorreu.SeFüsunsetransformassenumafamosaestreladecinema,aquilosóaumentariameuamorporela,ecomelemeumedodeperdê-la.OarcontrariadodeFüsunpersistiuatéofimdojantar,e,sabendoqueminhabeldadenãoestava

pensandoemmimnemnomarido,fiqueiansiosoedepoisfrenético.Játinhacalculadomuitoantesque, se Füsun fugisse com um diretor ou ator famoso que conhecesse num daqueles bares,abandonandoamimeaomarido,minhadorseriaastronomicamentemaiorquetudoqueeusofreranoverãode1975.SeráqueFeridunpercebiaoperigoquenosameaçava?Deveternotadopelomenosvagamenteos

produtorescomerciaisqueplanejavamarrastá- laparaummundodistanteedepravado,cujosriscoseusemprecuidavadelembrar—emlinguagemvelada—enquantoinsinuavaqueo filmedeartedeixariadetersentidoparamimseFüsunsedegradasseestrelandoumrelesmelodrama.Devoltaàminha casa, tomando rakı sozinho na poltrona do meu pai, eu me perguntava ansioso se teriareveladocoisasdemais.No iníciodemaio,enquantoosdiasmaisamenosea temporadade filmagens seaproximavam,

HayalHayativeioatéoescritóriodaLimonFilmesparanosdizerqueumajovematrizsemifamosaestava hospitalizada depois de ter levado uma surra de seu amante, e que aquele acontecimentoinfeliz também proporcionava uma excelente oportunidade para uma jovem linda e culta como

Page 251: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Füsun,masFeridun,agoraplenamentesabedordeminhassuspeitas,declinougentilmenteaoferta,eachoquenuncachegouamencioná-laparaFüsun.

Page 252: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

60.NoitesàbeiradoBósforo,norestauranteHuzur

Àsvezes,ascoisasqueéramoslevadosafazerparamanterFüsunasalvodoslobosechacaisqueaassediavamemcadaidaaoPelürnoscausavammenosdesgostoquealegriaouatéânimo.Quando,por exemplo, ouvimos falar que o Cravo-Branco, o colunista social de que os leitores devem selembrardaminha festadenoivadonoHilton,planejavaescreverumartigo sobreFüsun,noestilo“nasce uma estrela”, inventamos indícios abundantes de como ele era um cafajeste, demaneira afazê-laconspirarconoscoparaevitá- locomoaumleproso.Quandoumjornalistaquesedescreviacomopoetasentou-seànossamesaparaanotarumpoemaqueacabaradebrotardesuasentranhas,atribuindogentilmenteainspiraçãoaFüsun,conseguicuidarparaqueaodeimortalnãosobrevivesseàquele momento ou jamais viesse a ter nenhum leitor, instruindo furtivamente o idoso garçomTayyar a jogá-la no lixo.Mais tarde, quandoFeridun, Füsun e eu nos víamos a sós depois dessesepisódios, trocávamos impressões divertidas e, embora cada um de nós ocultasse certos detalhesconformeasrespectivaspretensões,ríamosjuntoscomocúmplicesautênticos.Depoisdealgumasdosesdebebida,amaioriadopessoaldecinema,dosjornalistasedosartistas

que frequentavambares e tavernas comooPelür tendia a entregar-se aumaautopiedadechorosa,mas só depois de duas doses de bebida é queFüsun ficava alegre comouma criança, tão efusivacomoumameninatravessa,eemnossasidasaoscinemasdeverãoeaosrestaurantesdoBósforoeuàsvezesimaginavaquearazãodesuaalegriaeranóstrêsestarmosjuntos.Hámuitocansadodaspiadase dosmexericos do Pelür, eu raramente ia ao bar, e quando ia era só para espionar quem estavaassediandoFüsun e, se possível, antes do fim da noite, retirar Füsun eFeridun do bar e levá-los,conduzidosporÇetin,parajantaremalgumrestauranteàbeiradoBósforo.FüsunficavaamuadadesairmaiscedodoPelür,masdepoisqueentravanocarrosedivertiatantoconversandocomÇetineconoscoqueeuconcluía,comotinhafeitonoverãode1976,quesairmosmaisvezesparajantarfaziabem para todos nós. Mas primeiro eu precisava convencer Feridun. Estava fora de questão eu eFüsunirmossozinhoscomeremqualquerlugar,comosefôssemosamantes.Quandoeleserecusavaaseafastardosseusamigosdomundodocinema,euconvocavatiaNesibeparafazerpartedogrupoeconvencerFüsuneomaridoaviremcomerpeixenoUrcan,emSariyer.Noverãode1977,convidamosTarıkBeyparavirconoscotambém,equandoeleseanimavacom

a ideia toda a plateia de televisão da casa dosKeskin partia para jantar noBósforo, comÇetin aovolante.Eugostariaquecadavisitantedonossomuseuachasseessesjantarestãoagradáveisquantoeu,eporissoentrareiemalgumdetalheaqui.Nofimdascontas,afinalidadedeumromance,comotambém de um museu, aliás, não é narrar nossas memórias com tamanha sinceridade queconseguimos transformar a felicidade individual numa felicidade compartilhável? Naquele verão,essas excursões àsmeyhanes doBósforo logo se transformaramnumhábitoque todos adorávamos.Nosanosqueseseguiram,fosseinvernoouverão,pelomenosumavezpormêsentrávamosnocarro,animadoscomoconvidadosparauma festadecasamento,epartíamosparaumrestauranteouumdosgrandesefamososgazinos,paraouvirascançõeseosidososcantoresdequeTarıkBeygostavatanto.Havia, claro, intervalos emquenãonos entregávamos aos nossos prazeres—momentos de

Page 253: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tensãoouconfusãoentremimeFüsun,ansiedadedequenossasfilmagensjamaiscomeçassem—eesses períodos sem alegria podiam durarmeses até que, inesperadamente, voltávamos a embarcarjuntos no carro e percebíamos o quanto na realidade nos alegrava estarmos juntos, como éramospróximosequantoamávamosunsaosoutros.Naqueles dias, o lugarmais popular àsmargens do Bósforo era a Tarabya, com sua fileira de

restaurantes lotados transbordando para as calçadas, e os vendedores de cartões de tômbolacaminhandopor entre asmesas, alémdos vendedoresdemexilhões,dos vendedoresde amêndoasfrescas, dos fotógrafos que tiravam seu retrato e depois traziama foto revelada emmenosdeumahora, os sorveteiros, os conjuntos tocando música otomana e os cantores tradicionais que seapresentavamnamaioriadosrestaurantes.(Naquelaépocanãoseviaumúnicoturista.)Lembro-mede como tia Nesibe ria admirada da velocidade e da coragem dos garçons, que disparavam peloestreito caminho que separava os restaurantes das mesas, fazendo curvas em meio à circulaçãointensacomsuasbandejaspesadascarregadasdecomida.DaprimeiravezquesaímosjuntosfomosaumrestauranterelativamentemodestochamadoHuzur

(paz),queporacasotinhaumamesavazia,edequeTarıkBeygostouinstantaneamenteporficaraoladodoiluminadoMücevherGazino,oquesignificaqueerapossívelsentarnorestauranteeescutaras antigas canções turcas “de certa distância e de graça”. Da vez seguinte, quando propus quepodíamos ouvir melhor os cantores de dentro do próprio Mücevher, Tarık Bey disse: “Ah, não,KemalBey!Porquepagarparaouviraquelaorquestrahorríveleaquelamulhercomvozdecorvo?”,maspassouorestodojantardandotodaaatenção,àsvezesalegreeàsvezesirritado,àmúsicaquevinhadogazino.Corrigiaoscantores“desafinados, semouvido”emvozalta,e terminavaosversosantesdeles, sóparaprovarque sabiaas letrasdecor,edepoisdo terceirocopode rakı fechavaosolhosebalançavaacabeçaacompanhandoamúsica,emprofundoarrebatamentoespiritual.Emnossas idas aoBósforo saindoda casa deÇukurcuma, emcertamedida abandonávamos os

papéisquedesempenhávamosdentrodacasa,oquemefaziaadorarnossospasseios.Füsunsentava-se a meu lado no carro e no restaurante, o que nunca ocorria em casa. Quando estávamos alisentados,cercadosdeoutrasmesas,ninguémpercebiasemeubraçoencostavanodela,e,enquantoseu pai ouviamúsica de olhos fechados e suamãe contemplava as luzes trêmulas do Bósforo naescuridão vaporosa, sussurrávamos um para o outro por cima do tumulto, conversando sobrequalquer coisa— a comida, a beleza da noite, como o pai dela era adorável— com a mesmahesitaçãodedoisjovensacanhadosqueacabaramdeseconheceresórecentementedescobriramqueum rapaz e uma moça podiam flertar ou travar uma relação, como ocorria na Europa. Füsuntambémsemostravamaisàvontadedeoutrasmaneiras;normalmenteavessaafumarnapresençadopai, nos restaurantes do Bósforo dava suas baforadas como se fosse uma formidável empresáriaeuropeia.Lembroquecertavez,decidindo tentara sorte,compramosumcartãode tômbolacomumvendedordeóculosescuroseardevigaristaequandonãoganhamosnadatrocamosumolharedissemos: “Azar no jogo…”, o que produziu em nós dois um constrangimento terrível e, depois,muitasrisadas.Pormaisqueessafelicidadederivassesimplesmentedetermossaídodecasaeàsalegriasgêmeas

(tão decantadas pelos poetas das cortes otomanas) de beber vinho e sentar-se ao lado da pessoa

Page 254: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

amada,havia tambémadistraçãodosmuitospassantes,quandoosengarrafamentosdo trânsitonocaminhoentreosrestauranteseasmesasprovocavamdiscussõesentreosocupantesdasmesaseosocupantes dos carros: “Por que vocênão olha para a frente em vez de olhar para amoça?”, diziaalguém,ou“Porqueestá jogandoessapontadecigarronaminhadireção?”.Àmedidaqueanoiteavançava, os presentes mais embriagados começavam a cantar, e de mesa a mesa trocavam-seaplausos e exclamações em voz alta. De repente, uma dançarina “oriental” coberta de muitaslantejoulasapareciacorrendoentreumrestauranteeoutro,acaminhodeumespetáculo,e,quandoseustrajesesuapelebronzeadaeramiluminadospelosfaróis,osmotoristastocavamsuasbuzinasemêxtase, como navios tocando seus apitos no dia 10 de novembro para comemorar omomento damortedeAtatürk.Numanoitequente,oventopodiamudardedireçãodeumahoraparaoutra,ebruscamenteapoeiraeasujeiraquerecobriamolixoespalhadopelacalçadadepedrasàbeira-mar— as amêndoas e suas cascas e as cascas das fatias demelancia e os papéis e jornais e tampasderefrigeranteeespigasdemilhoeosdejetosdepombosegaivotaseassacolasdeplástico—adquiriamvida, e imediatamente as árvores do outro lado da rua começavam a farfalhar, e tiaNesibe dizia:“Cuidado,apoeiraestá subindo,crianças,nãodeixemcairnacomida!”ecobria seupratocomasmãos.Emseguidaoventotornavaamudardedireçãoeentravapornordeste,trazendoumarfrescocheirandoaiodo.Pertodofinaldanoite,quandoaspessoascomeçavamadiscutircomosgarçons,questionandoas

contas,ecantavamemtodasasmesas,Füsuneeuencostávamosaindamaisnossosbraços,pernasemãos,tantoqueàsvezeseuachavaqueiadesmaiar.Nãopodiaevitarpediraumfotógrafoquetirassenossoretrato,ouaumaciganaquelesseanossasortecomosetivéssemosacabadodenosconhecer.EnquantoficavaalisentadocoladoaFüsun,imaginavaodiaemquenoscasaríamos,olhavaparaaluaemeperdiaemsonhos;assimquetomavamaisumrakıcomgelopercebiaqueficaraeretocomonumsonho,masentão,trêmulodeprazer,nãoentravaempânico,poissentiacomoseeu—eueela—fôssemos,comonossosancestraisnocéu,almaspurgadasdaculpaedopecado,emeabandonavaameussonhos,ameusprazereseàbem-aventurançadeestarsentadoaoladodeFüsun.Não sei dizerporqueconseguíamos ficar tãomaispróximosquando saíamos,nomeiode tanta

genteedebaixodonarizdeseuspais,doquenacasadeÇukurcuma.Maseranessasnoitesqueeuconseguianos imaginarcomoumcasalvivendoemharmonia,econstatarque— comodiziamosredatores das revistas— “ficávamos muito bem juntos”. Não era pura imaginação. Lembro comenormesatisfaçãocomocertavez,enquantoconversávamos,elaperguntou:“Querexperimentarumpouco?” e commeu garfo peguei uma prova das pequenas almôndegas escuras do prato dela, ecomo, noutra noite, novamente encorajado por ela, experimentei suas azeitonas, cujos caroçosexponhoaqui.Noutranoite,viramosnossascadeirasdecostasparaconversarlongaeamigavelmentecomumjovemcasalnamesaaolado(porquemnossentimosatraídos,creio,porqueeramparecidosconosco:umhomemdetrintaepoucosanosecabeloscastanhos,eumamoçadevinte,comcabelosmaisescurosepeleclara).No final dessamesmanoite encontreiNurcihan eMehmet saindo doMücevherGazino, e sem

mencionarnossosamigoscomunsenveredamosimediatamentenumaconversasériasobre“qualdassorveteriasdoBósforoaindaabertasàquelahora”eraamelhor.Enquantomedespedia,aponteina

Page 255: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

direçãodeFüsun,queembarcavanoChevroletcomsuamãeeseupai,paraquemÇetinseguravaaportaaberta,edissequesaíracomalgunsparentesdistantesparaumpasseiopeloBósforo.Equeroaproveitaraoportunidadeparalembraraosvisitantesdomeumuseuemanosposterioresqueduranteas décadas de 1950 e 1960 havia muito poucos carros particulares em Istambul, e as pessoassuficientementericaspara importarcarrosdosEstadosUnidosoudaEuropamuitasvezes levavamseusfamiliaresparafazerpasseiospelacidade.(Quandoeueramenino, lembroqueminhamãeàsvezesseviravaparameupaiedizia:“SaadetHanımquerpasseardecarrocomomaridoeosfilhos.Você quer vir também ou devo ir com eles e Çetin?”. Às vezes ela dizia apenas “o chofer”. E arespostahabitualdomeupaiera:“MeuDeus,não!Podesairvocêcomeles.Estouocupado”.)Nocaminhodevolta,nocarro, tínhamosocostumedecantar todos juntos,eera sempreTarık

Beyquemcomeçava.Primeiroelemurmuravaumaantigamelodia,e,enquantotentavalembrar-sedaletra,pediaqueorádiofosseligado;euprocuravaporumacançãoconhecidaeelecomeçavaacantaralgumavelhamelodiaquenostivessechegadodoMücevherGazinonaquelanoite.Àsvezes,enquanto eu procurava uma estação, ouvíamos vozes de países distantes falando em línguasdesconhecidas,eporalgumtempoficávamoscalados.“RádioMoscou”,diziaTarıkBey,numtomenigmático.Depois,assimqueselembrava,cantavaosprimeirosversosdeumacanção,eempoucotempo tiaNesibe e Füsun estavam cantando com ele. Enquanto rodávamos emmeio às sombrasescuraseaosgrandesplátanosdabeiradoBósforo,euficavaescutandooconcertodobancodetráse,virando-me, tentavafazerumasegundavozquandoelescantavam“Velhosamigos”deGültekinÇeki,embora—parameuconstrangimento—nuncamelembrassedaletrainteira.Sempre que cantávamos juntos no carro, ou ríamos e jantávamos juntos num restaurante do

Bósforo,amaisfelizdetodosnóseranaverdadeFüsun,masaindaassim,todavezquesurgiaumaoportunidade, ela queria ir ao Pelür, ver seus amigos domundo do cinema. Por isso, eu sempredependia de convencer antes tia Nesibe. Ela, por sua vez, nunca queria deixar passar umaoportunidadedejuntarFüsuneeu.OutrorecursoeraconvencerFeridun,certasvezesconvidandoainda Yani, um amigo operador de câmera que ele detestava deixar para trás. Feridun usava asdependências daLimonFilmes para produzir alguns comerciais comYani, e eu nãome opunha,achandoprudentedeixá-losganharalgumdinheiro,emboraàsvezesmeperguntassecomoeufariapara verFüsun seumdiaFeridun realmente ganhassemuitodinheiro e saísse da casa dos sogros,mudando-se para outro lugar com a mulher. Às vezes eu percebia, envergonhado, que essespensamentosminavamminhaintençãodemeentenderbemcomFeridun.Tia Nesibe e Tarık Bey não vieram conosco ao Tarabya naquela noite, de maneira que não

ficamosouvindooscantoresnogazinoaolado,nemcantamosnocaminhodevoltaparacasa.Füsunsentou-seaoladodomarido,nãodemim,emergulhounaconversasobreomundodocinema.Foiamemóriadessanoitepenosaquemelevou,noutraocasião,quandosaíadoPelürcomFüsun

eFeridun,adizeraumamigodeFeridunquenãohavialugarnocarro,poisíamospegarospaisdeFüsunpara ir jantar.Posso terdadoanotíciademaneiraumpoucobrusca.Ohomem tinhaumatestaamplaebonita;visurpresaeatémesmofúriaemseusescurosolhosverdes,masafastei-odesseespírito.Maistarde,tendochegadoaÇukurcuma,conseguiconvencertiaNesibeeTarıkBey,compoucaspalavrasealgumaajudadeFüsun,eentãopartimosparaorestauranteHuzuremTarabya.

Page 256: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Estávamos sentados lá, comendo e bebendo já havia algum tempo, lembro-me bem, quandopercebiquenãohaviapazànossamesa,poisosmodostensosdeFüsundavamotomdanoite,quenãometrouxeprazeralgum.Eutinhaacabadodemevirarparaversenãohaviaumvendedordetômbola por perto para nos divertirmos, ou vendedores de nozes recém-abertas, quando avistei ohomemcomosescurosolhosverdessentadoaduasmesasdenós.Estavacomumamigo,olhandoparanósenquantobebia.Feridunpercebeuqueeuosvira.“Seuamigodeveterentradonumcarroevindoatrásdenós”,disseeu.“TahirTannãoémeuamigo”,respondeuFeridun.“NãoéomesmohomemquepediuparavirconoscoquandosaímosdoPelür?”“Éele,masnãoémeuamigo.Eleposaparafotonovelasturcasetrabalhaemfilmesdeaventura.

Nãogostodele.”“Eporqueelenosseguiu?”Poruminstanteninguémdissenada.Füsun,sentadaaoladodeFeridun,ouviraoquetínhamos

ditoeestavaficandoconstrangida.TarıkBeyseperderanamúsica,mastiaNesibetambémescutou.E nessemomento adivinhei, pelas expressões de Feridun e Füsun, que o homem estava vindo nanossadireção,emevirei.“Desculpe-me,KemalBey”,disseTahirTan.“Nãoqueriaperturbá-los.Masgostariadefalarcom

amãeeopaideFüsun.”Assumiuaposturadeumjovemelegantedeboasmaneirasqueacabaradeverumajovembonita

no casamento de um oficial, e que vem pedir permissão a seus pais antes de tirá- la para dançar,obedecendoaosconselhosdascolunasdeetiquetadosjornais.“Desculpe,masháumassuntoqueeugostariade tratarcomosenhor”,disseele,dirigindo-sea

TarıkBey.“HáumfilmequeFüsun…”“Tarık,olhe,estesenhorquerlhedizerumacoisa”,dissetiaNesibe.“Masestoufalandocomasenhoratambém.AsenhoraémãedeFüsun,nãoé?Eosenhoréopai

dela. Sabiam que dois importantes produtores,Muzaffer Bey eHayalHayati— ambos figuras derelevoda indústriacinematográficadaTurquia— oferecerampapéis importantes à sua filha?Masnos deram a entender que o senhor e a senhora não consentiam porque havia cenas de beijo nosfilmes.”“Nãoénadadisso”,dissefriamenteFeridun.ComosempreemTarabya,onívelderuídoeraaltíssimo.TarıkBeyounãoouviranadaouentão

—comotantospaisturcosqueseviamnamesmasituação—fingiranãoterescutado.“Nadadisso?”,perguntouTahirTan,emtommaisáspero.Ficouclaroparatodosnósqueelebeberamuitoeestavaprocurandobriga.“Tahir Bey”, respondeu cuidadosamente Feridun, “saímos para um jantar em família, e não

queremosdiscutirnadaligadoaocinema.”“Maseuquero…FüsunHanım,porqueestácomtantomedo?Nãopodesimplesmentedizerque

querumpapelnofilme?”Füsundesviouoolhar.Fumavacalmamenteeganhavatempo.Eumelevantei.Feriduntambém.

Ambosnosinterpusemosentreohomemenossamesa.Nasmesasquecercavamanossa,ascabeças

Page 257: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

começaram a se virar na nossa direção.Devemos ter assumido a postura de galo de rinha que oshomensturcossempreassumemantesdebrigar.Ninguémqueriaperderaqueledrama;ànossavolta,bêbadosentediadosecuriosossepreparavamparaassistiraumbomespetáculo.OamigodeTahirlevantou-sedamesaeseaproximou.Um garçom mais velho que tinha visto muitos anos de brigas de bar interveio. “Nada disso,

senhores, não vamos formar um ajuntamento aqui.Voltempara asmesas.”E acrescentou: “Todomundobebeubastante,ealguémvaiacabarperdendoacabeça.KemalBey,jáestamostrazendoseusmexilhõesfritoseopeixesalgado”.Para quenão entendammal, quero informar aos visitantes que vierem aonossomuseudaqui a

séculos—essasfelizesgeraçõesdofuturo—quenaqueletempooshomensturcosaproveitavamomenorpretextoparacomeçarumabrigaemqualquerlugar—fosseumcafé,umafiladehospital,umengarrafamentodetráfegoouumjogodefutebol—equeeraconsideradaumagrandedesonradar a impressãode recuardeumconfronto.Evitarumabrigaou encolher-se era visto comoumadesonrasematenuantes.OamigodeTahirchegouportrásepôsamãonoombrodele;levou-oembora,agindocomose

elesfossem“osquemantiveramadignidade”.Feridunmepuxoupeloombro,comosedissesse“Dequeadianta?”,emeobrigouasentar.Fiqueimuitogratoaeleporisso.Enquantoo ventonorte sopravaeoholofotedeumnaviocortava anoite, iluminandoasondas

agitadas, Füsun continuava fumando, como se nada tivesse acontecido. Olhei nos seus olhos pormuitotempo,eemnenhummomentoeladesviouoolhar.Haviacertodesafio,quasearrogante,namaneira comoelameolhava;percebide repentequeamudançaqueela sofreranosúltimosdoisanoseramuitomaioremaisperigosaqueaquelepequenoproblemaqueacabáramosdetercomumatorbêbado—assimcomosuasexpectativas.Tarık Bey somou sua voz à canção que saía do Mücevher Gazino, balançando lentamente a

cabeçaeseucopoderakıenquantoentoava“Porqueameiessamulhercruel?”,deSelahattinPınar.Todoscomeçamosacantarjuntos,sabendoquecompartilharosofrimentodeumacançãofariabematodosnós.Muitomaistarde,pertodameia-noite,enquantovoltávamosparacasa,cantandojuntosnocarro,pareciaquetínhamosesquecidododesagradávelincidente.

61.Oolhar

MaseunãoesqueceraatraiçãodeFüsun.Ficouclaroque,tendoreparadonelanoPelür,TahirTanficaraencantadoeconvenceraHayalHayatieMuzafferBeyaconvidá-laparapapéisemfilmes.Ou, o que era aindamais provável, tendo percebido o interesse de Tahir Tan por Füsun,HayalHayatieMuzafferBeytinhamlheoferecidopapéisemfilmes.DepoisqueTahirTanrecuou,Füsun,comportando-se comoumgatoque acabarade virar a tigelade leite, confessouque,paradizeromínimo,tinhaestimuladoesseshomensalhefazerumconvite.DepoisdessanoitenorestauranteHuzuremTarabyanoverãode1977,Füsunfoibanidadetodos

osredutosdopessoaldecinemaemBeyoğlu,emaisespecialmentedoPelür;seuressentimentoem

Page 258: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

respostaaesseregime, fosse impostopelomarido,porseupaiouporambos,precipitouumafúriacarrancudanaminhavisitaseguinte.Maisadiante,noescritóriodaLimonFilmes,FeridunesclareceuquetantotiaNesibequantoTarık

Bey tinham ficado alarmados como episódio.E por isso não só oPelür fora proibido; por algumtempo, restringiram também seus contatos com as amigas da vizinhança. Não podia sair sem apermissãodamãe,comoseaindafossesolteira.FeriduntentouatenuararaivadeFüsuncomaqueleencarceramentodraconianomasbreve,prometendoqueeletampoucoiriaaoPelürBar.Masficouclaroparanósquecomeçarafazerlogoofilmedearteeranossaúnicaesperançaderestaurarseuânimo.Ofilme,entretanto,aindanãoestavaprontoparasersubmetidoàcensura,enãomepareciaque

Feridun pudesse remediar a situação em pouco tempo. No quarto dos fundos, onde começara apintarumagaivota,Füsunmerevelouquetinhaumaconsciênciaclaraedolorosadessefato,efiqueitristeporela,emboraoespetáculodesuaobstinaçãomelevasseasólheperguntarraramentecomoiasuapintura.Eraquandoporacasoasurpreendiadebomhumor,eassimmesentiaasseguradodequenossaconversairiatratardapinturadegaivotas,queeuaseguiaatéoquartodosfundos.Quase sempre eu chegava e encontrava uma Füsun desalentada, e sentia seus olhos furiosos

pousadosemmim.Àsvezeselamepareciaconvencidadequeeracapazdesecomunicarcomumaeloquênciapormenorizadaapenasatravésdoolhar,emefitavadeummodomuitoparticularqueeunãoconseguiatraduzirempalavras.Mesmoquepassássemosquatrooucincominutosnoquartodosfundos, contemplando sua pintura, a maior parte da noite era dedicada a esses olhares e meusesforçosparadecifrá- los,entenderoqueelaachavademim,davidadelaedeseussentimentos.Nopassadoeudesprezavaessesexercícios,masmeentregueiàssutilezasdacomunicaçãonãoverbal,eempoucotempometorneiumpraticantemuitohabilidoso.Na juventude, quando ia commeus amigos ao cinema ou sentava-me com eles àmesa de um

restaurantenaprimavera,nodequesuperiordeumabalsa,acaminhodasilhas,lembroquequandoum de nós dizia “Veja só, aquelas garotas ali estão olhando para nós”, enquanto os outros seagitavam, eu ficava indiferente na minha desconfiança, sabendo que, na verdade, as moçasraramente se atreviam a olhar para homens num lugar público, e que, se por acaso seu olhar secruzavacomodeumdeles,eladesviavaosolhosdeimediato,comoquemevitafitardiretamenteosol,enuncamaisolhavanaqueladireção.Duranteosprimeirosmesesdepoisquecomeceiminhasvisitas à casada famíliaKeskinnahorado jantar, quandoestávamos todos sentados àmesa vendotelevisãoeemalgummomentoinesperadonossosolhosseencontravam,eraexatamenteaqueletipodeolharabortadoqueFüsunmedirigia.Era,achavaeu,amaneiracomoumajovemturcapoderiareagir ao encarar um estranho na rua, e eu não gostava.Mais tarde, comecei a considerar aquilocomoumesforçodeFüsunparameprovocar,masnaquelaépocaaindaeramuitoinexperientenaartedatrocadeolhares.Nos velhos tempos,mesmo emBeyoğlu, estivesse ou não de cabeça coberta, qualquermulher

andandopelasruasdeIstambul,percorrendosuaslojasoumercados,nãoselimitavaaevitarosolhosdoshomens,masnuncaeravistalançandoumolharnadireçãodeles.Poroutrolado,euerajovemosuficienteparaconhecervárioscasaisque,diferentementedamaioriaqueaindaaceitavaocasamento

Page 259: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

arranjado,capturaramoolharumdooutro,conseguiramserapresentadoseacabaramsecasando.“Nocomeçonoscomunicávamoscomosolhos”,diziaminvariavelmente.Mesmominhamãesemprecontavaque,antesqueseucasamentocommeupaifossearranjado,osdoisseviramdelongenumbaileaquecompareceuopróprioAtatürke, tendo simpatizadoumcomooutro,chegaramaumentendimento não pela conversa, mas através da troca de olhares. Apesar de meu pai nunca tercontestado esse seu relato, certa vez me confidenciou que, embora de fato ambos tivessemcomparecidoaumbailecomapresençadeAtatürk,eleinfelizmentenãotinhanenhumalembrançadajovemdedezesseisanoscomseuvestidoeleganteesuasluvasbrancas.TalveztenhasidoporpassarpartedaminhajuventudenosEstadosUnidosquedemoreitantopara

entenderoquesignificaparaosdoissexostrocarolharesnummundocomoonosso,ondeatradiçãoditava que a mulher jamais podia se encontrar com um homem ou conhecê-lo fora do círculofamiliar. Isso só aconteceu quando passei dos trinta anos, depois que conheci Füsun… Mas aodescobriressa realidadeentendiovalordoqueacabaradedesvendarecomoessascorrenteseramprofundas. O olhar que Füsun me dirigia era o mesmo que as mulheres exibiam nas antigasminiaturas persas, que agora podia ser visto nas cenas de amor e nas fotonovelas de nossa época.Quandoeumesentavaàmesadefrenteparaela,minhaatençãonãosefixavanatelevisão,masnaleitura dos olhares queminha beldade lançava emminha direção. Por ela ter descoberto quantoprazereuobtinhadessa trocaeporquerermepunir,ouporqualqueroutromotivo, todavezquenossos olhos se encontravam, os olhos de Füsun se desviavam às pressas, como se ela fosse umameninatímida.Numprimeiromomento, achei que ela quisesseme informar quenão tinhanenhumdesejo de

recordar ou deme lembrar do que tínhamos vivido juntos, muitomenos durante os jantares emfamília,equeseuressentimentoporaindanãoatermostransformadonumaestrelaardiamaisfortequenunca.EusentiaqueFüsuntinhatodoodireitoaessessentimentos.Maistarde,porém,acabeicontrariadocomaquelaevasão sistemáticadomeuolhar,quemepareciaumfingimentoabsurdo:depoisde todas asnossas felizes tardesde amor, comoelapoderiaquerer representarumavirgemacanhada diante de um homem desconhecido?Quando ninguém estava prestando atenção a nósenquantojantávamosetínhamosnosentregadoàtelevisão,ondefôramoscomovidosàslágrimaspeloespetáculo de um casal que trocava suas últimas despedidas em um seriado sentimental, umencontrocasualdenossosolhosmecausavagrandealegria,ereconheçodebomgradoquesóforaláaquela noite para olhar em seus olhos.Mas Füsun fingia que não percebera a felicidade daquelemomentoedesviavaosolhos,oquepartiameucoração.Seráqueelapercebiaqueeusóestavaláporquenãoconseguiraesqueceroquantotínhamossido

felizes juntosnopassado?Finalmenteacabeisentindoqueelaentendia,pelaminhaexpressão,queeu vivia mergulhado nesses pensamentos e sentimentos de dor. Mas talvez fosse apenas a minhaimaginação.Esse domínio ambíguo, no limiar entre o sentido e o imaginado, foi minha segunda grande

descobertasobaconduçãodeFüsunnaintricadaartedatrocadeolhares.Claro,oolhareraaúnicaformadecomunicaçãoemquenãohaviapalavras.Tudoquesemanifestava,tudoqueprecisavaserentendido,porém,tinharaízesprofundasnumaambiguidadequeachávamosirresistível.Seeunão

Page 260: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

foracapazdeentenderalgumacoisaqueFüsunpretenderadizercomosolhos,daliaalgumtempoconseguiriaverqueoqueseusolhospretendiamexprimireraopróprioolhar.Havia,numprimeiromomento, esses raros instantes em que uma emoção profunda e poderosa semanifestava em seurosto,e,sentindosuaraiva,suadeterminaçãoeseucoraçãotempestuoso,eumeviaperdidonumaconfusão, sentindo como se o chão tivesse sumido de debaixo dosmeus pés.Mais tarde, porém,quando alguma coisa na televisão evocava as memórias felizes que tínhamos em comum— porexemplo,umcasalsebeijandocomonopassadonosbeijamos—eminhatentativadecapturarseuolhar era respondidapelodesviodos seusolhosoumesmopelo gestode virar a cabeça, eu ficavafurioso. E graças a essa emoção aprendi a controlar o hábito de olhar para ela com insistência,obstinadamente,sempiscar.Euolhavadiretamentenosolhosdelaeaestudavacomcuidado,comosetivessetodootempodo

mundo. Claro, à mesa do jantar esses meus olhares nunca podiam durar mais que dez ou dozesegundos, eminhas tentativasmais ousadas não persistiam pormais demeiominuto. As geraçõesmodernas bem podem considerar o que eu fazia uma forma de assédio. Pois com meus olharesinsistenteseuabordava,àmesadejantardafamília,aintimidadeeoamorquetínhamosvividonopassadoequeFüsunagorapreferiaesconderouatéesquecer.Nãopossomedesculparalegandoquetodos tínhamos bebido, ou que eu tivesse bebido além da conta. Em minha defesa, posso dizerapenasque,seeumenegasseatéessaalegriadoolhar,podia terenlouquecidoe inclusiveperdidominhavontadedevisitarafamíliaKeskin.Na maioria das noites, Füsun conseguia perceber, depois dos primeiros olhares, se eu estava

tomadoporaqueladisposiçãoirritadaeobsessivaemquetendiaarecorreraolharesprolongadosnaprocura incansáveldoquepretendia,mas jamais entrava empânico; emvezdisso, como todas asmulheres turcas escoladas nessa arte, fingia não ter nem sequer percebido que havia um homemsentadodefrenteparaeladooutroladodamesacomumaexpressãodeameaçanosolhos,enãomedirigianemumvislumbreemreação.Essarespostaenlouquecedoramedeixavaaindamaisirritado,eeu a fitava com uma expressãomais determinada. Em sua coluna doMilliyet, o famoso cronistaCelâl Salik proferiumuitas advertências severas contra os homens irados que andam pelas nossasruas: “Quando você deparar comuma belamulher”, disse ele, “por favor não crave o olhar nelacomoseestivessedecididoamatá-la”.EaideiadequeFüsunpudesseentendermeuolharinsistentecomoprovadequeeueraumdesseshomensaquemCelâlsedirigiafazia-meardercomumafúriarenovada.Sibelconversaramuitocomigosobreamaneiracomooshomensrecém-chegadosdasprovíncias

incomodavamasmulheres;quandoviamumabelamulherusandobatomedecabeçadescoberta,paravam e ficavam olhando para ela com um espanto maldoso. Muitas vezes, depois de olhá-lalongamente da cabeça aos pés, alguns desses homens saíamno encalço de suas presas, enquantooutros revelavam sua presença demaneiramais sutilmente ameaçadora, passando horas, às vezesdias,asegui- ladecertadistância.Umanoite,emoutubrode1977,TarıkBeysubiumaiscedoparaacama,dizendoquesesentia

“indisposto”. Füsun e tia Nesibe conversavam carinhosamente, e eu as observava meio distraído,acho,quandoderepenteFüsunmeolhoudiretonosolhos.Eeuafiteidevoltadamaneiracautelosa

Page 261: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

querecentementeaprendera.“Nãofaçaisso!”,disseFüsun.Aquilomedesconcertouporum instante.Füsun imitara perfeitamente omeuolhar penetrante.

Numprimeiromomento,fiqueienvergonhadodemaispararesponder.“Oquevocêestáquerendomedizer?”,murmurei.“Estouquerendolhedizerparaparardefazerisso”,disseFüsun,eentãotornouameimitar,dessa

vezcomexagero.Sua imitaçãodemim fez-meverminha semelhançadesagradávelcomosheróisdasfotonovelas.Até tiaNesibe sorriudessa troca.Eentão ficoupreocupada. “Parede imitar tudoe todomundo

comoumacriança,minhafilha!”,disseela.“Vocênãoémaisumagarotinha.”“Não se preocupe, tia Nesibe”, disse eu, reunindo todas as minhas forças. “Eu entendi

perfeitamenteFüsun.”Tinha entendido mesmo? É importante, sem dúvida, entender a pessoa que amamos. Se não

conseguimosesseentendimento,pelomenosprecisamosacreditarqueaentendemos.Devoconfessarque ao longo de todos esses oito anos só raramente senti a satisfação da segunda possibilidade, emenosaindadaprimeira.A noite ameaçava se transformar numa daquelas em que eu não conseguia levantar da minha

cadeira.Lançandomãodetodaaminhaforçadevontade,finalmentemepusdepée,murmurandoqueestavamuitotarde,fuiembora.Emcasa,bebendoatécair,resolvinuncamaisvoltaràcasadosKeskin.Noquartoaoladominhamãeressonavaumlamentodolorido,masperfeitamentesaudável.O leitor jádeve ter adivinhadoquemergulhei em seguidanuma indignaçãoprofunda.Masnão

durou muito. Dez dias depois toquei a campainha da casa dos Keskin, como se nada tivesseacontecido.Aoentrar,pudever,nomomentoemquenossosolhosseencontraram,queosolhosdeFüsunbrilhavam,dizendoqueelaestavafelizpormever.Naqueleinstante,mesentiohomemmaisfelizdoplaneta.Sentamo-nosàmesa,ondecontinuamosatrocarolhares.Àmedidaquepassavamosmeseseanos,eeucontinuavaafrequentaramesadafamíliaKeskin,

vendotelevisãocomTarıkBeyetiaNesibe,tagarelandoaesmosobreissoouaquilo—comFüsunentrandonaconversaemtangentesocasionais—,experimenteiprazeresquejamaisconheceraantes.Pode-sedizerqueeuestavacriandoumanovafamíliaparamim.Aquelasnoitesemquemesenteidefrente para Füsun, participando das conversas da família, alegravam-me e faziam o mundo meparecertãoradiantequequaseesqueciadorquemeconduziraatélá.E era assim que, numa disposição de espírito dessas, tarde da noite, em algum momento

inesperado,meusolhosencontravamosdelaporacasoederepenteeumelembravademeuamorimorredouroe chegava ame levantar animado, como se tivessedespertado, como se sofresseumasúbitaressurreição.QueriaqueFüsunsoubessedomeusentimento.Pois,seelapudessesóporummomentodespertarcomoeutinhadespertadodaquelesonhoinocente,selembrariadomundomaisprofundoeverdadeiroemquevivemoscertaépoca,e logohaveriadedeixarseumaridoecasar-secomigo.Masquandoeunãoviauma“lembrança”,um“despertar”comoessenosolhosdeFüsun,ficavadesoladodemaisparalevantardaminhacadeira.Por todo o tempo que nossos planos cinematográficos passaram no limbo, ela de algummodo

Page 262: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

conseguiununcameolhardeumaformaquesugerissequalquermemóriadecomotínhamossidofelizes.Mantinha uma expressão contida, fingia estar fascinada por qualquer coisa que a televisãoexibisseoupelasnovidadesquetinhaacabadodeouvirsobrealgumvizinho,agindocomosesuavidativesse encontrado aplenitude sentada àmesade jantarde seuspais, como se suaprocuradeumsentidoparaavidativesseacabadoaliefossenaverdadeofimabruptodaminhaprocuratambém—essaimpressãodedesolaçãoquenãoprenunciavaqualquerfuturoconjunto,qualqueresperançadequeFüsunjamaisviriaadeixaromarido.Anosdepoisdessesacontecimentos,percebioquantoosolharesindignadosdeFüsuneorestode

sua pantomima em código deviam às expressões dos filmes turcos. Mas não se tratava de meraimitação,porqueFüsun,comoaquelasheroínas,eraincapazdeexplicarseusproblemasàsuamãe,aoseupaiouaqualquerhomem,demaneiraquecanalizavatodaasuacólera,todooseudesejoetodasassuasoutrasemoçõesparaessesolhares,carregadosdesignificação.

Page 263: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

62.Paraajudarapassarotempo

VerFüsunregularmentetambémmepermitiaimporalgumaordemaorestodaminhavida.Comoeudormiaosuficiente,sempreiaparaoescritóriodemanhãcedo.(IngeaindatomavarefrigerantesMeltememesorriacomardemistériodaparededaqueleedifícioemHarbiye,mas,segundoZaim,o efeito dela sobre as vendas diminuíra.) Liberado da necessidade de pensar obsessivamente emFüsun,euvinhaatéexibindocertaprodutividade.Conseguia identificaros truquesalheiose tomarboasdecisões.Comoeuesperava,nãodemoroumuitoparaqueaTekyay,aempresaemqueOsmannomeara

Kenan diretor, se transformasse em forte concorrente da Satsat.Mas seu sucesso não se devia aomodocomoeraadministradaporKenanemeuirmão.OfatoéqueTurgayBey(emeuespíritoseanuviava cada vez que eu pensava no seuMustang, na sua fábrica e em sua paixão por Füsun,emboraporalgummotivonãosentissemaisciúmes),omagnatadatecelagem,entregaraàTekyayosdireitosdedistribuiçãodealgunsdeseusprodutosmaisimportantes.Homemdebonssentimentos,Turgay Bey esquecera aquela história de não ter sido convidado para a festa doHilton; ele e suafamíliaviviamentãoemótimostermoscomOsmaneafamíliadele.Assinantesdasmesmasrevistasdeviagem,tinhamidoesquiartodosjuntosemUludağnoinverno,etinhamfeitoviagensconjuntasdecomprasemPariseLondresnaprimavera.Fiquei espantado com a tática agressiva da Tekyay, embora houvesse pouco que pudesse fazer

paralhesoporresistência.KenansaíraatrásdosjovensgerentesdinâmicosqueeucontrataraparaaSatsat,alémdosdoisgerentesdemeia-idadecujotrabalhoárduoecujahonestidadevinhamsendoumdosbaluartesdaempresahaviamuitos anos; atraídospelos saláriosbemmaioresqueaousadaTekyaylhesoferecia,todoselesmedeixaram.Maisdeumavez,emmeusjantarescomminhamãe,mequeixeidequeOsmaneratãoambicioso

efaziatantaquestãodelevarvantagemqueconcorriacomaempresafundadapeloprópriopai,masemrespostaminhamãedisseapenas:“Nãoqueromemeterentrevocêsdois,meufilho”.AchoqueOsmanalevaraaacreditarqueminhaseparaçãodeSibel,meusestranhosnovoshábitospessoaiseminhasvisitasàcasadosKeskin—dequeelacertamentejádeviatertomadoconhecimentoaessaaltura—tinhamminadominhacompetênciaparacuidardosnegóciosdomeupai.Nos primeiros dois anos e meio, minhas visitas à casa dos Keskin acabaram perdendo sua

singularidade.OsolharesqueeutrocavacomFüsun,osjantaresconjuntos,nossasconversasenossospasseiosnoBósforo(queagoratambémsedavamnoinverno)—semexceção,cadaumdelesrepetiaumacontecimento anterior; juntos, evocavama sensaçãodeuma rotina forado tempo,dotadadeumabelezaprópria.EmboranãotivéssemoscomeçadoaproduzirofilmedeartedeFeridun,oiníciodasfilmagensestavaprevistoparadaliapoucosmeses.Füsunconcluíra,ouagiacomosetivesseconcluído,queofilmedeartedemorariaaindamaisdo

que esperava, e que se lançar por conta própria no mundo do cinema comercial a deixariavulnerável;dequalquermaneira,araivapresenteemsuasexpressõesaindanãoestavainteiramentedissipada.Certas noites, quandonossos olhos por acaso se encontravam, ela, em vez de desviar o

Page 264: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

olhar como uma garota tímida, cravava seus olhos emmim com uma fúria que nãome deixavaesquecer osmeus erros.Eudesanimava diante dessamanifestação súbita de toda a cólera que elahaviaacumuladodentrodesi,masficavaalegreporsaberqueaquiloafaziasentir-semaispróximademim.A essa altura, recomecei a perguntar, quando a noite já ia avançada, “Füsun, como vai sua

pintura?”, estivesseFeridun emcasa ounão. (Depois daquelanoiteno restauranteHuzur, ele saíacommenos frequência e preferia jantar conosco, já que a produção do filme ficara de qualquermaneiraproblemática.)LembroqueumdianóstrêsnoslevantamosjuntosdamesaparaexaminarapinturadeumpomboemqueFüsun trabalhavanaépoca,eemseguidaconversamos longamentesobreela.“Eurealmenteadmiroamaneiralentaepacientecomovocêtrabalha,Füsun”,sussurrei.“Eusempredigoamesmacoisa.Eladeviafazerumaexposição!”,disseFeridun,tambémemvoz

baixa.“Maselaémuitoacanhada…”“Só pinto esses quadros para passar o tempo”, disse Füsun. “A partemais difícil é conseguir o

brilhodaspenasdacabeçadopombo.Estãovendo?”“Estamos”,respondi.Seguiu-se um longo silêncio. Feridun ficara em casa naquela noite também para assistir à

transmissãodofutebol,acho.Quandoouvíamosquealguémfizeraumgol,saíamoscorrendoparaasala.“Füsun,vamosaParisalgumdiaparavisitartodososmuseusevertodososquadros.Eugostaria

tanto!”,disseeu.Foi uma ousadia: um crime que emprincípio devia provocar amuos, caretas, indignação e um

silêncioestendidoporváriasvisitas,masFüsunrecebeuminhaspalavrascomgrandenaturalidade:“Eugostariadeir,Kemal”.Comotantascrianças,eutinhacultivadoumapaixãopelapinturadurantemeusanosdeescola,e

por algum tempo, enquanto cursava a escola secundária e o liceu, tinhausado o apartamento doedifícioMerhametparapintar“sozinho”,chegandoasonharemmetornarpintorumdia.FoinessetempoquemepermitirapelaprimeiravezosonhodeiraParisvertodososquadros.Entreadécadade 1950 e o final da seguinte, não havia um únicomuseu em Istambul em que se pudessem verquadros;nãohavianemsequerlivrosdearteoucatálogosquesepudessefolhearagosto.Assim,nemFüsunnemeu sabíamosmuito sobrea artedapintura.Bastava-nos ampliar fotografias empretoebrancodeaveseoutrascoisaseacrescentar- lhesacor.EnquantoasvisitasàcasadafamíliaKeskinsesucediam,asruasdeIstambul,omundoparaalém

dacasa,adquiriamumtommaissombrio.AcompanharaspinturasdeFüsunetestemunharseulentoprogressoapartirdefotografiasdasavesdeIstambulqueelatirara,opinandoemvozabafadasobreaavequedeviapintaremseguida—umgavião,umapomba,umaandorinha—,essaconfirmaçãodasegurançaedacontinuidadedosprazeresdomésticospareciadeixartudocertoportodaaeternidade.Alegravameucoraçãoconstatarquevivíamosnumuniversosimplesebom.Apazqueeusentiavinhadaquelelugar,daquelequartinho,donossoestadodeespíritoedoquevíamosànossavolta;vinhadoprogresso lento de Füsun em suas representações de aves, e do vermelho-tijolo do tapete Uşak

Page 265: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

estendidonochão,doscortesdetecido,dosbotões,dosjornaisvelhos,dosóculosdeleituradeTarıkBey,doscinzeirosedotricôdetiaNesibe—emminhamente,tudoaquiloformavaumacoisasó.Euaspirava a fragrância daquele quarto, e mais tarde, quando voltava ao apartamento do edifícioMerhamet, o dedal, o botão ou o carretel que tivesse embolsado antes de sair me ajudava arememorartudoaquilo,prolongandoassimminhafelicidade.Depoisde tirar amesano finaldo jantar e guardarnageladeira as travessas comacomidaque

sobrara(osvisitantesdomuseudevemdedicarumaatençãoespecialàgeladeiradacasadosKeskin,quesempremepareceupossuircertasqualidadessobrenaturais),tiaNesibeiabuscarseusapetrechosdetricô,queguardavanumagrandesacoladeplástico,oucommaiorfrequênciapediaàsuafilhaquefossebuscarparaela.Eraesseomomentoemquenosesgueirávamosparaoquartodosfundos.Tia Nesibe dizia: “Minha filha, pode trazer meu tricô na volta?”. Depois se entregava ao tricôenquanto conversava à frente da televisão. Era pelomedo que sentia do tio Tarık, acho, que tiaNesibe,quenãoseincomodavadenosdeixarsozinhosnoquartodosfundos,nuncadeixavapassarmuito tempoantesde vir atrásdenós edizer: “Ondeestáomeu tricô?Osventosdooutono já vaicomeçar.Vocêsnãoqueremassistir?”.Assistíamos.Duranteessesoitoanos,devoterassistidoacentenasdefilmeseseriadosdetelevisão

comFüsunesuafamília;maseu,queconsigorememoraratéosmenoresemaistriviaisdetalhesdequalqueroutracoisa ligadaàcasadosKeskin,não lembronadados filmeseseriadosquevimos,emenos ainda dos programas de debates transmitidos nos feriados nacionais (com títulos como AconquistadeIstambul:seulugarnahistóriadomundo;Acondiçãoturca:sobreoqueéprecisorefletir?;eEntendendomelhorAtatürk).Amaior parte do queme lembro de termos visto na televisão não passa demomentos isolados

(Aristóteles,oteóricodotempo,haveriadeaprovar).Sãomomentosquesecombinaramcomumaimagemeassimpermaneceramgravadosnaminhamemória.Metadedessasmemóriasindeléveissecompõedameraimagemnatela,oumesmodeumfragmentodeimagem.Ossapatoseasbainhasdascalçasdeumdetetiveamericanocorrendoescadaacima;achaminédeumprédioantigo,seminteresseparaooperadorda câmera,masquemesmoassim invadiraoquadrode algummodo;ocabelodeumamulher,presoatrásdesuaorelha,duranteumacenadebeijo (enquantoosilêncioreinavaàmesa);ouumagarotinhaassustadaagarradaaseupaiduranteumjogodefutebol,cercadapor milhares de homens de bigode (provavelmente não havia ninguém em casa com quem elapudesseficar);ouasmeiasusadaspelomaispróximodoshomenscurvadosduranteasprecesnumamesquitaduranteoRamadã,naNoitedasMedidas;ouabalsadoBósforoao fundodacenanumfilmeturco;oualatadaqualovilãotiravaosdolmasquecomia;emuitasoutrascoisas.Emminhamente, essas imagens se combinavamcomalgumdetalhedo rosto deFüsun enquanto ela assistiaàquelamesmacena:umdoscantosdasuaboca,suassobrancelhaserguidas,aposiçãodesuamão,amaneira como deixava o garfo à beira do prato ou suas sobrancelhas que se elevavam de repentequandoelaapagavaocigarro.Muitasvezesessasimagenssefixaramemminhamentecomosonhosdeque jamaisnosesquecemos.Numesforçopara tentar torná-las visíveisnoMuseuda Inocência,forneciaváriosartistasinstruçõesdetalhadas,quemuitasvezesassumiamaformadeimagensoudeperguntas,paraasquaisnuncaencontreiarespostaexata.PorqueFüsunteriaficadotãocomovida

Page 266: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

comaquelacena?Oquehaveriaaliparadeixá-la tãoabsortanahistória?Gostariade lhe fazereumesmo essas perguntas, mas, quando um filme terminava, os Keskin não gostavam de conversarsobreamaneiracomoosteriaafetado,preferindodiscutirofinalsóemtermosmorais.Porexemplo,tiaNesibepodiadizer:“Aquelebrutamontesteveofimquemerecia,masaindaassim

fiqueicompenadomenino”.“Ora,deixedisso,elesnemselembrammaisdomenino”,retrucavaTarıkBey.“Oshomensdesse

tiposópensamemdinheiroemaisnada.Desligue,Füsun.”QuandoFüsunapertavaobotão,todosaquelesbrutamontes—oseuropeusdejeitoestranho,os

gângsteresamericanos, aquela famíliaesquisitaedisplicente,eatéodesprezívelautorediretordofilme—eramsugadospelaescuridãoeternadooutroladodatelacomosecaíssememredemoinhosdeáguaturvadescendopeloralodabanheira.Imediatamente,TarıkBeycostumavadizer: “Ah, agoraque isso tudoacabouestoume sentindo

bemmelhor!”.“Isso tudo” podia ser um filme turco ou estrangeiro, umdebate, o apresentadormaroto de um

programadeperguntaserespostas,ouseusconcorrentesdeexpressãoapalermada.Eessaspalavrassesomavam à paz que eu sentia; a própria expressão parecia confirmar que o importante era eucontinuarali,fazendocompanhiaaFüsunesuafamília.Epercebiassimquesemprequeriaficaralinãosópeloprazerdemesentaràmesmamesa,namesmasalaqueFüsun,mas tambémdevidoàminhaligaçãoprofundacomaquelacasa,aqueleprédioecadamembrodafamíliaKeskin.(Éporminhareconstituiçãodaqueleespaçoencantadoqueosvisitantesdomuseupodemcaminhar,comoseviajassemnoTempo.)EmedariaumprazerespecialsepercebessemamaneiracomomeuamorporFüsunfoiseirradiandoaospoucos,dedentroparafora,eacabouenglobandotodooseumundo,cadamomento,cadaobjetoligadoaela.Essa sensação de estar fora do Tempo enquanto via televisão, a paz profunda queme tornava

possível retornar fielmente à casa da família Keskin, amando Füsun por oito anos, só se desfaziaquandocomeçavaonoticiário,repetindoqueopaíscaminhavadepressaparaumaguerracivil.Em 1978, bombas explodiam à noite mesmo naquela área. As ruas que levavam a Tophane e

Karaköyeramcontroladaspor facçõesnacionalistas, eos jornais contavamquemuitos assassinatostinham sido planejados nos cafés da região.No alto da ladeira deÇukurcuma, nas ruas tortuosascalçadas de pedra que seguiam na direção deCihangir, os residentes eram pequenos burocratas,trabalhadores e estudantes que simpatizavam com os curdos, os alevitas e facções variadas deesquerda.Tinhamumapegoequivalentepelasarmas,ehaviaocasiõesemqueosmilitantesdosdoisladostravavamcombatesarmadosparatentarassumirocontroledeumarua,deumcaféoudeumapraça; às vezes, logo depois da explosão de uma bomba plantada por malfeitores controlados àdistância pelo serviço secreto ou por outro braço do Estado, seguia-se uma batalha feroz. AquilocriavabastantedificuldadeparaÇetinEfendi,quemuitas vezes se viaemmeioao fogocruzadoenuncasabiaaocertoondeeramelhorestacionaroChevroletouemquecafédeviaesperarpormim,mas, toda vez que eu dizia que preferia ir sozinho para a casa dos Keskin, ele se recusavaterminantementeamedeixar.Àhoraemqueeusaíadacasadeles,asruasdeÇukurcuma,Tophanee Cihangir nunca eram seguras. Pelo caminho, enquanto sombras pregavam cartazes e avisos e

Page 267: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

rabiscavamslogansnosmuros,trocávamosolharesassustadospeloespelho.Enquantootelejornaldanoiterelatavaosdetalhesdosatentadosabomba,dosassassinatosedos

massacres, os Keskin sentiam a paz de estarem a salvo em casa, graças a Deus, mas ficavampreocupadoscomo futuro.Asnotíciaseramtãopavorosasque tendíamosanunca falar sobreelas,preferindo conversar sobre os encantos de Aytaç Kardüz, a locutora de telejornais mais populardaquelaépoca.Àdiferençadasrelaxadaslocutorasocidentais,AytaçKardüzapresentava-sesentadaimóvelcomoumaestátua,jamaissorria,eliacorrendoostextosdasreportagensemsuasmãos.“Maisdevagar,menina,respireumpouco,vaiacabarengasgando”,diziaTarıkBeydetemposem

tempos.Emborajátivessefeitoamesmapiadacentenasdevezes,nóstodosaindaríamoscomosefossea

primeira, porque Aytaç Kardüz, tão disciplinada e dedicada a seu trabalho, realmente pareciademonstrarumverdadeiropânicodecometeralgumerro,oqueeramesmoengraçado;corriaatéofimdecadafrasesempararpararespirar,e,quandoafraseeraespecialmentecomprida,àsvezesiaficandovermelhaantesdechegaraofim.“Oh,não,elaestáficandovermelhadenovo”,diziaTarıkBey.“Maisdevagar,menina,pelomenospareumpoucoparaengolir”,diziatiaNesibe.Nesse momento, Aytaç Kardüz desviava os olhos da página que vinha lendo, como se tivesse

ouvido a sugestão de tia Nesibe; olhando para todos nós que a observávamos damesa com umaexpressãoemqueopavoreaalegriasemisturavam,elaseesforçavaparaengolircomoumacriançaque tivesse acabado de sofrer uma operação de amígdalas, o que era sempre aplaudido por tiaNesibe:“Muitobem,menina!”.Foiessa locutoraquenoscontouqueElvisPresley tinhamorridoemsuamansãoemMemphis,

que aBrigadaVermelha tinha sequestradoAldoMoroequeCelâlSalik forabaleadoemorto emfrenteàlojadeAlaaddinemNişantaşı,comsuairmã.HaviaoutrométodoaqueosKeskinrecorriamparasedistanciardastribulaçõesdomundoeque

euachavamuito reconfortante:procuravamsemelhançasentreaspessoasqueapareciamna telaeseusamigoseparentes,e,enquantojantávamos,observavamessassemelhançascomgrandeatenção.No final de 1979, enquanto assistíamos à invasão soviética do Afeganistão, lembro-me de

comentarmosqueBabrakKarmal,onovopresidenteafegão,erapraticamentesósiadeumhomemquetrabalhavanapadariadasredondezas;osdoiseramtãoparecidosquepodiamserirmãos.FoitiaNesibequemreparouprimeiro.ElagostavatantodaquelaprocuradesemelhançasquantoTarıkBey.Numprimeiromomentoninguémentendeuaquemelasereferia,mas,comoeufaziaÇetinpararregularmente o carro em frente à padaria pelo tempo necessário para entrar correndo e compraralguns pães ainda quentes do forno, conhecia os rostos dos curdos que trabalhavam lá e pudeconstatarque aobservaçãode tiaNesibeera absolutamente correta.Nãoobstanteomeuendosso,porém,TarıkBeyeFüsuncontinuaramainsistirqueohomemqueatendianaquelebalcãonãotinhaamenorsemelhançacomonovopresidenteafegão.ÀsvezesFüsunpareciadiscordarsóparameaborrecer.Recusava-se,porexemplo,aaceitarque

AnwarSadat,opresidenteegípcioqueforaassassinadoporfundamentalistasenquantoassistiaaumdesfilemilitardatribunadehonra,comonossosgeneraistambémfazem,eraidênticoaojornaleiro

Page 268: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

daesquinada ladeiradeÇukurcumacomaavenidaBoğazkesen; e, se vocêsmeperguntaremporquê, digo que era porque fui eu o primeiro a assinalar a semelhança. Enquanto a cobertura doassassinatodeSadatseestendiaporváriosdias,travou-seumaverdadeiraguerradenervosentremimeFüsunquemeincomodavabastanteeduroudiasafio.SeamaioriadospresentesàmesadosKeskinconcordavacomumasemelhança,apartirdeentão,

sem qualquer dissenso, podíamos passar a aludir à pessoa ilustre que aparecia na tela não comoAnwarSadat,mascomoBahriEfendi,ojornaleiro.QuandoentreiemmeuquintoanodejantaresnacasadosKeskin,eutambémconcordaraqueNazifEfendi,ovendedordecolchas,eraparecidocomofamosoatorfrancêsJeanGabin(quetínhamosvistoemváriosfilmes);equeadesajeitadamoçadaprevisãodotempoqueàsvezesaparecianotelejornaldanoiteeraparecidacomAyla,quemoravanotérreocomsuamãeeeraumadasamigasqueFüsunescondiademim;enquantoofalecidoRahmiEfendi era exatamente igual ao idoso líder do partido fundamentalista, que aparecia dandodeclaraçõesfulminantesnonoticiáriodanoite;Efe,oeletricista,lembravaofamosolocutoresportivoqueapresentavaosgolsdasemananasnoitesdedomingo;efuieu(principalmenteporcausadesuassobrancelhas)quemapontouasemelhançaentreÇetinEfendieopresidenteReagan.Depoisqueasemelhançaeraconsagrada,oaparecimentodeumdessesrostosfamososnatelaera

osinalparaverqualdenósfariaaprimeirapiada.“Venhamdepressaver,meninos!”,diziatiaNesibe.“OlhemcomoélindaamulheramericanadeBahriEfendi!”Mashavia tambémcasos emquenos esforçávamosumpoucopara enquadrar a celebridadeda

tela. Por exemplo, quando Kurt Waldheim, secretário-geral da ONU que se empenhava porpromoverapazentreIsraeleaPalestina,aparecia,tiaNesibedizia,comosepedisseajuda:“Vamosver,comquemessehomemseparece?”;enquantocadaumdenósreviravaamemória,amesaficavaemsilênciopormuitotempo.Essessilênciospodiamseprolongarbemdepoisqueapessoafamosadesaparecesse,sendosucedidaporoutrasimagens,poroutrasnotíciasoupeloscomerciais.Então,derepente,euouviaumnavioquevinhaapitandodadireçãodeKaraköyeTophane,eme

lembravadossonsdacidadeedeseushabitantes,e,enquantotentavainvocaraimagemdasbarcasseaproximandodocais,percebiarelutanteoquantoeumeenvolveracomafamíliaKeskin,equantotempo eu passava comendo àquela mesa: enquanto aqueles navios passavam, apitando, eu nemsequerpercebiaquantosmeseseanostinhamtranscorrido.

63.Acolunasocial

Enquantoopaísseaproximavadaguerracivil,osatentadosabombaeosferozescombatesderuaresultavam na redução do número de pessoas que frequentavam os cinemas, o que devastou aindústria cinematográfica. O Pelür Bar e outros redutos do pessoal de cinema continuavam tãolotadoscomosempre,masaessaaltura,quandoas famíliasnãosearriscavammaisasairàsruasànoite,todosfaziamopossívelparasobrevivercomoscomerciais,osfilmespornôouosfilmesdelutaque inundavam omercado. Em apenas dois anos, os grandes produtores pararam de investir emtodosostiposdefilmesaqueassistíamosnoverão,desdobramentoquedeumdiaparaooutrofez

Page 269: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

crescermeuprestígioentreoshabituésdoPelür,aosolhosdosquaiseueraoricopatrocinadordaLimonFilmeseum investidorpotencial em seusprojetos.Emboraquase semprememantivesse àdistânciadobar,umanoite,por insistênciadeFeridun,estive láeviquehaviamaisgentedoquenunca,fatomaistardejustificadoquandoouviváriosbêbadosexplicandoqueodesempregoeraumabênçãoparaosbareseque“todaYeşilçam”estava“bebendomuito”.Naquelanoite,bebiatéoamanhecercomosinfelizesprofissionaisdocinema.Lembroatédeter

batidoumpapoamigávelcomTahirTan,ohomemquecertavezseguiraFüsunatéorestauranteHuzur.Nofinaldaquelanoite,Papatya,umadasmaisencantadorasatrizesdanovageração,decidiraqueeuera“amigo”dela.Poucosanosantes,Papatyaestrelavafilmesfamiliaresnopapeldameninainocentequevendiasimitsecuidavadamãecega,ousedesmanchavasistematicamenteemlágrimastodavezquesuamadrasta, interpretadapela IntriganteSühendan, tentava levá-laà ruína;naquelemomento, como todos os demais, Papatya estava sem trabalho e era forçada a participar dadublagemde filmes pornôs;mashaviaum roteiro queFeridun tambémachara interessante, e elacontava com omeu patrocínio para produzi- lo. Pormais bêbado que eu estivesse, pude ver queFeridun achava Papatya igualmente interessante— havia entre eles o que as revistas de cinemachamavamde“certa intimidade”—,mas aindaassim fiqueimuitoespantadoquandopercebiqueFeridunseaborreciacomaatençãoqueeudavaaela.Poucoantesdeamanhecer,quandonóstrêsdeixamosoPelür,lembroquecaminhamosjuntospelasruelasescuras,passandopormurosemqueos bêbados tinham se aliviado e os esquerdistas haviam rabiscado slogans radicais, a caminho deCihangir,ondePapatyamoravacomsuamãe,quetrabalhavacomocantoraemclubesnoturnosdesegunda linha. Enquanto ameaçadoras matilhas de cães nos seguiam pelas ruas frias, deixei queFeridun fosse levar Papatya em casa e voltei para Nişantaşı, onde ainda vivia pacificamente comminhamãe.Depoisdebebedeirascomoessa,entredormireacordar,eraassoladoporpensamentospenosos:

queminhajuventudeestavadefinitivamenteacabada,que(comonocasodetodososhomensturcos)minhavidajáestavaassumindosuaformafinalantesmesmoqueeuchegasseaostrintaecincoanos;quenuncamaisiria—ouconseguiria—encontrarumagrandefelicidade.Àsvezes,lembrando-medo amor e da saudade que enchiam meu coração, eu me consolava pensando que meu futuropareceriamaissombrioacadadiaquepassava,masqueessaimpressãosópodiaserilusória,induzidapelos assassinatospolíticos, pelas intermináveisbatalhasde rua, pelospreços emdisparada epelasfalênciasquesemultiplicavamnosnoticiários.Mas,seeutivesseestadoemÇukurcumaparaverFüsuneseeueelativéssemostrocadoumolhar

ealgumaspalavras,seeutivessesubtraídodacasadosKeskinalgunsobjetosquemelembrassemdeFüsunmais tarde,esedevoltaàminhacasaeutivesseumaoportunidadedemanuseá-los, tinhaaimpressãodequenuncamaisseriainfeliz.HaviaocasiõesemqueeuexaminavaasfacaseosgarfosqueFüsuntinhausadoequeeuroubaradamesadejantardosKeskin,comoseformassemporsisósumaúnicaimagem,umamemóriacompleta.Àsvezes,convencidodapossibilidadedeumavidamelhoremoutrolugar,paraalémdomundo

circunscritodaminhaobsessão,procuravameocuparcomoutrascoisas.Mas,seporacasoeutivessevistoZaim,suashistóriassobreosúltimosacontecimentosdasociedadejábastariamparamelembrar

Page 270: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

dequenãoestavaperdendomuitacoisaaoevitaracompanhiadosamigosricos,cujasvidaspareciamcadavezmaistediosas.Embora a essa altura já fizesse três anos que vinham se encontrando, Mehmet e Nurcihan

(segundoZaim)aindanão tinhamdormidojuntos,ediziama todosquepretendiamcasar-se logo.Era a notíciamais importante domomento. Apesar de todomundo, inclusiveMehmet, saber doscasos amorosos deNurcihan comhomens franceses durante os anos emque passou emParis, eladecidiranãoterrelaçõescomeleantesdocasamento,etratavaessadecisãoemtomligeiro,dizendoquenospaísesmuçulmanosabasedeumcasamentolealeduradouro, felize tranquilo,nãoeraariqueza,masaabstinênciapré-marital.Mehmetdavaaimpressãodegostardapiada;integrava-seàtapeçariadeumavisãocomumdavidaqueosdoisarticulavamaumasóvoz,contandohistóriasqueilustravam a sabedoria de nossos antepassados, a beleza da nossamúsica tradicional e a satisfaçãocomnossosantigosmestres,comseus temperamentosdedervixe.Nemaspiadasquegostavamdefazernemseuinteressepornossosancestraisotomanosfizeramcomqueficassemrotuladosemnossasociedade como religiosos devotos ou reacionários. Zaim achava que um dosmotivos disso era oquantoosdoisbebiamnasfestas,umexcessoque,pormaisextremoquefosse,jamaiscomprometiaseus bons modos ou sua elegância. Quando tomava vinho, Mehmet proclamava com algumaanimaçãoqueosvinhosmencionadosnapoesiadoDivannãoerammetafóricos,maslibaçõesreais,recitavaversosdeNedimeFuzuli—cujaprecisãoninguémsabiaavaliar—e,olhandonosolhosdeNurcihan,erguiaataçanumbrindeaoamoraDeus.Haviaummotivoparaasociedadenãorejeitaresse comportamento e, na verdade, até aceitá- lo com respeito: coisas muito piores existiam,conclusãoquepodiaseratribuídaaopânicoqueseespalharaentreasmulheresdepoisdadissoluçãodomeunoivadocomSibel.Oepisódio serviracomoumapoderosaadvertênciaàsmoçasdenossageraçãonasociedadedeIstambul:nãodeviamconfiardemaisnoshomensantesdocasamento.E,asecrernosrumorescorrentes,inspiraraasmãesassustadasdasjovenscasadourasalhesrecomendarmáximacautela.Mas,paraqueninguématribuaimportânciaexcessivaàminhaexperiência,peçoaoleitorqueselembredequeasociedadedeIstambuleraumcírculotãoreduzidoetãofrágilqueavergonha profunda de qualquer um de seus membros não era menos universalmente sentida seocorressenumafamíliapequena.Especialmentedepoisde1979,eumeacostumaraaosconfortosdeminhanovavidae,deslocando-

meentreminhacasaemeuescritório,acasadeFüsuneoedifícioMerhamet,sentia-meintegradoemespírito.EuchegavaaoapartamentodoedifícioMerhamete,refletindosobreashorasfelizesqueFüsuneeutínhamospassadoali,perdia-meemdevaneios,contemplandominha“coleção”,queaospoucos ia crescendo com uma admiração sempre renovada. À medida que esses objetos seacumulavam,meuamortambémficavamaisintensamentemanifesto.Àsvezeseuosvianãocomosimples lembranças das horas felizes, mas como destroços preciosamente tangíveis no rastro datempestade que assolava minha alma. Às vezes eu me envergonhava de sua simples existência,alarmadocomaideiadequealguémmaispudessevê-los,ecomcertomedodeque,àqueleritmo,minhacoleçãologolocupletassetodososaposentosdoapartamento,dochãoatéoteto.Poiseunãocomeçara a me apoderar daqueles objetos da casa dos Keskin com nenhum projeto futuro, masapenascomaintençãodepoderretornaraopassado.Nãomeocorreuqueumdiapudessehaveruma

Page 271: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

quantidade suficiente de objetos para encher aposentos e casas inteiras, porque na maior partedaquelesoitoanoseusubsistiacombasenaconvicçãodequebastariammaisalgunsmeses,seisnomáximo,paraeuconseguirconvencerFüsunasecasarcomigo.AquiexponhoumrecortedoAks¸am,umacolunadapáginada“AltaSociedade”,datadade8de

novembrode1979:

ASOCIEDADEEOCINEMA:UMADISCRETAADVERTÊNCIA

Todos costumamos nos gabar da indústria cinematográfica turca, a terceira maior do mundo, depois de Hollywood e daindiana.Infelizmente,asituaçãoestámudando.Osnovos filmesdesexoearelutânciacadavezmaiordenossoscidadãosasairdecasaànoite,emvistado terrorpromovidopormilitantesdeesquerdaededireita,mantêmnossas famílias longedoscinemas.Nemmesmooscineastasturcosmaisadmiradosconseguemencontrarboasplateiasoufinanciadoresparaproduzirseus filmes.O cinema turco jamais precisou tanto quantohoje de empresários ricos que acorram aYeşilçam para produzir“filmesde arte”.Nopassado, os cineastas dementalidademais artística tendiama surgir em famílias de fortuna recente—geralmenterecém-chegadasdasprovíncias—etinhamcomoúnicoobjetivotravarconhecimentocombelasatrizes.Dosmuitos“filmesdearte”quenossoscríticoselogiavamtanto,nenhumchegouaserexibidoparaosintelectuaisdoOcidente,apesardetudo que foi dito, ou recebeu sequer menção honrosa nos festivais mais singelos de cidadezinhas obscuras da Europa;limitaram-se a servir aos rebentos dos novos-ricos como veículos para conhecerem e terem casos amorosos com belas“artistas”. Mas isso era antigamente. Hoje encontramos uma nova moda. Atualmente, nossos ricos amantes da arte nãoprocuramYeşilçamembuscadecasosamorososcomlindasatrizes;vêmtransformaremestrelasmulheresporquemjáestãoapaixonados. Em consequência, descobrimos agora que o filho solteiro de uma das famíliasmais ilustres da sociedade deIstambul (cujonomenãodeclinaremos, referindo-nosaeleapenascomo sr.K)está tãoenamoradodeuma jovemcasadaaquemdescrevecomo“primadistante”edequemsemostratãoenciumadoquandoalguémseaproximadela,quenemsequerconseguedarinícioàproduçãodotal“filmedearte”(paraoqualencomendouumroteiro).Asfontesdesterepórtercontamqueosr.Kchegouaopontodeadmitirque“nãopoderiasuportarvê-labeijandooutrapessoa!”.Eseuciúmeétamanhoqueele se comporta como uma sombra constante da jovem e de seumarido cineasta, arrastando-se atrás deles pelos bares deYeşilçamerestaurantesdoBósforo,semprecomumcopoderakınamão,eaparentementeseaborrecequandoajovemcasadacandidata a atriz sai de casa. Segundo essas fontes, nosso solteirão da sociedade— que pouco tempo atrás celebrou seunoivadocomuma formandadaSorbonne,adorável filhadeumdiplomataaposentado,comuma festa fabulosanoHiltonaquetodasociedadecompareceu,descritaemfartosdetalhesnestacoluna—teveairresponsabilidadederomperonoivadoporcausada lindaprimaaquemagoradiz: “Vou transformá-lanumaestrela!”.Nós, enquanto isso, relutamos emnos limitar aassistiraesseinoperanterapazrico,quejácausoutantomalàadorávelfilhadodiplomata,dedicar-seamancharonomedeF,a linda aspirante a atriz, a cujos encantos tantos conquistadores de renome semostraram especialmente suscetíveis. Assim,depois de nos desculparmos antecipadamente com os leitores cansados de sermões, gostaríamos de transmitir a seguintemensagem ao sr. K da nossa sociedade: Caro senhor, na nossa época moderna, quando os americanos chegaram à Lua,simplesmentenãoépossívelhaverum“filmedearte”semcenasdebeijo!Osenhorprecisadecidir-sedeumavezportodasecasar-se com uma camponesa de cabeça coberta, esquecendo para sempre a arte e o cinema ocidentais, ou desistir dessafantasiade transformar emestrelauma jovemque vigia tãodepertoque lhe é intolerável ver outrapessoaolhandoem suadireção.Querdizer,seoseuobjetivoformesmocriarumaestrela.—CB

Page 272: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Minhamãeliaosdoisjornaisentreguesdiariamenteemnossacasadaprimeiraàúltimapágina,enunca perdia as colunas sociais. Enquanto tomávamos café na manhã em que esse texto foipublicado,espereiatéqueelaselevantassepararecortarapáginaofensiva,quedobreieguardeinobolso.“Algumacoisaestá incomodandovocêdenovo…Oque foi?”,elaperguntouquandosaídecasa.“Vocêestácomumartãosombrio!”Noescritório,também,tenteisimularanimação,contandoumaanedotadivertidaaZeynepHanım,assobiandoenquantopalmilhavaoscorredoresevisitandoos funcionários idosos e cada vezmais desocupados de uma Satsat agonizante, que passavam seutempofazendoaspalavrascruzadasdoAks¸am.Depois que todo mundo voltou do almoço, ficou claro pela expressão de seus rostos e, em

especial,peloardecompaixão—emedo—nosolhosdeZeynepHanım,quetodososfuncionáriosdaSatsattinhamlidoacoluna.Talvezeuestejaapenasimaginandocoisas,penseimaistarde.Minhamãetelefonouparamedizerquemeesperavaparaalmoçar,etambémperguntou:“Comovocêestá,querido?”,exagerandonocuidadoparanãodeixarapreocupaçãoafogarsuavoznormal,peloquepercebiqueouvira falardacoluna,mandaracompraroutroexemplardo jornalechorarabastanteporcausadela (suavoz“normal” tomadaporaquela seriedadequeaspessoasadquiremdepoisdechorarmuito);assimcomoelasabia,pelapáginarasgada,queeutambémlerao texto.“Omundoestácheiodegentecomalmasmonstruosas,meu filho”,disseminhamãe. “Vocênãopodedeixarquenadadissooatinja.”“Doquevocêestáfalando,mamãe?”“Nãoénada,meufilho”,respondeuela.Fiquei tentado a confessar tudo para ela,mas sabia que, caso o fizesse, ela, depois de extensas

manifestaçõesdeamorecompreensão,iriasentir-seobrigadaamedizerqueaculpaafinaltambémeraminha,pressionandoemseguidaparaqueeulhecontassetodososdetalhesdahistóriadeFüsun.Podiaatéprorromperemlágrimasedizerqueeutinhasidoenfeitiçado.Epodiadizer:“Emalgumcanto da casa, dentro de um pote de arroz ou farinha, ou no fundo de uma das suas gavetas noescritório,devehaverumamuletoescondido—alguémpôsumfeitiçoneleesoprouparafazervocêseapaixonar—evocêprecisaencontrarequeimaresseamuletoagoramesmo!”.Maspercebiqueelaestava desalentada porque tinha sido incapaz de compartilhar a minha dor, incapaz de falar doassunto.Eraomáximoqueelapodiafazerparademonstrarrespeitopelaminhaprovação.Seriaumaindicaçãodoquantominhasituaçãonãotinharemédio?Naquelemomento, pensei nos leitores doAks¸am: comquanto desprezo estariampensando em

mim, com quanta intensidade ririam ou criticariam minha paixão, e em quantos dos detalhesdaquelamatéria acreditavam?Nãoconseguia tirar essasquestõesda cabeça,nema ideiade comoFüsundeviaterficadoaborrecidaaoleracoluna.Depoisdotelefonemadaminhamãe,ocorreu-meligarparaFeridunedizer- lhequenãodeixasseFüsunnemmaisninguémda família leroAks¸am.Masnãoofiz.MeuprimeiromotivofoiodenãopoderexplicarascoisasaFeridundeummodoquenãooirritasseapontodefazercomquesesentisseobrigadoatomarumaatitude.Masmeusegundomotivoeramaisprofundo:apesardahumilhaçãoedetersidoapresentadocomoumidiota,euestavasatisfeito comaquela coluna.Escondi essa satisfação até demimmesmo,mas quandopensonelaagora,depoisdetantosanos,entendoperfeitamente:minharelaçãocomFüsun,minhaproximidade

Page 273: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

com ela sob o nome que fosse, aparecera nos jornais, e assim, em certo sentido, fora aceita pelasociedade! Aquela coluna era lida por absolutamente todo mundo interessado na sociedade deIstambul; matérias maliciosas como aquela eram discutidas por meses a fio. E, assim, tenteiconvencer-medequeaquelamaledicênciaprenunciavaavoltaàminhaposiçãoanteriornaordemsocial,comFüsunameulado—ou,nomínimo,mepermitiaimaginarquenossahistóriapudessechegaraessefinalfeliz.Mastamanhaeraadesesperançaemquerecaíquenempodiameentregaraessesdocessonhos.

Empouco tempo, sentiqueas fofocasdasociedade,osboatoseas insinuaçõesme transformavamnumoutro tipodehomem.Deixeide serumapessoaque,devidoà forçade suavontadeede suapaixão, tomavaum rumonão convencional, emeconverti numhomem submetido aoostracismodepoisdeaparecercomopersonagemnumacolunasocial.As iniciais publicadas no final da matéria não deixavam dúvida de que tinha sido escrita pelo

Cravo-Branco. Fiquei contrariado comminhamãe por tê- lo convidado para a festa de noivado efurioso com Tahir Tan, que suspeitava ter sido a fonte de tantos detalhes inventados (“eu nãosuportaria vê-la beijando outro homem!”). Como queria sentar-me com Füsun, para podermosamaldiçoarjuntosnossosinimigoseconsolá-la,eelaamim.PrecisávamosiraoPelürBaredesafiá-los todos comanossadeterminação.EFeridunprecisaria ir junto!Só assimpodíamosprovar queaquela história era uma mentira degradante, e silenciar os bêbados caluniadores do mundo docinema—paranãofalardosnossosamigosdasociedade,queagoradeviamestar lendoamatéria,deliciados.Mas,nanoitedodiaemqueamatériafoipublicada,nãofuicapaz—pormaisquetentasse—de

meconvencerairvisitarosKeskin.TinhacertezadequetiaNesibefariaopossívelparamedeixaràvontade,edequeTarıkBeyfariadecontaquenãosabiadenadadoqueacontecera,mas,quandotentava imaginar omomento em quemeu olhar encontraria os olhos de Füsun,minhamente seapagava.Ali,nãohaveriacomonegarquesentíamosambosomesmotorvelinhointerior,eporalgummotivoissomeassustava.Entãoocorreu-measeguinteideia:oqueiríamospercebernomomentoemquenossosolhosseencontrassemnãoeraqueasalmasdeamboseramassoladasportormentas,massimplesmentequeaquelasfalsasnotíciaseramnarealidadeverdadeiras!Sim,comooleitorbemsabe,muitosdosdetalhesdamatériadoCravo-Brancoestavamerrados:

eunãoromperaonoivadocomSibelparatransformarFüsunnumaestrela;eunãoencomendaraumroteiroaFeridun.Masesseserroseramtriviais.Oqueosleitoresdojornaletodososmexeriqueirosdacidadeextrairiamdamatériaeraumaverdadesimples:meuamorporFüsuneascoisasqueeufizeraporelatinhammelevadoaarruinarminhareputação!Todoszombavamdemim,riamdetudoqueeu fizera;mesmoosmaisbem-intencionados sentiampenademim.Emboraeu tentasse lembraramimmesmo que a sociedade de Istambul eramuito pequena e que nenhuma dessas pessoas erarealmente rica ou tinha princípios genuínos, minha vergonha não se atenuava. Em vez disso, eusentia mais intensamente ainda os efeitos da minha estupidez e da minha inépcia. Lá estava eu,vivendo num país pobre, mas com a sorte de ter nascido numa família rica; dispondo dasoportunidades queDeus proporciona a tão poucas pessoas naquela parte domundo— uma vidahonesta,civilizadaefeliz—e,comoumidiota,jogaratudoissofora!Eusabiaqueaúnicamaneira

Page 274: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

desairdaqueleapuroeracasar-mecomFüsun,pôremordemmeusnegócios,ganharminhafortunaedepois retornar,vitorioso,paraa sociedade,masaessaalturaeunãosabiaondeencontrar forçasparalevaresseplanoadiante,enaverdadepassaraaodiaraquelepequenogrupoaoqualprecisariaserreadmitido.Acimadetudo,sabiaque,depoisquetodostivessemlidoaquelamatériaofensiva,afamíliaKeskinserecusariaaalimentarouasecurvaraosmeussonhos.Meu amor eminha vergonha tinhamme levado àquele ponto ondeminhaúnica tendência era

virar-meparadentrodemimepassaraviveremsilêncio.Porumasemana,fuiaocinematodanoite:fui aoSite, aoKonakeaoKentver filmesamericanos.Especialmentenummundo infelizcomoonosso,oobjetivodosfilmesnãoéproduziraverossimilhança,masumuniversonovoediferente,quepossa nos distrair e nos deixar felizes. Particularmente, aome identificar com o herói, eu tinha aimpressãodequeestavaexagerandoosmeusproblemas.Emmomentosassimeumerepreendiaporter sido inepto a ponto de me transformar no objeto de ridículo dos mexeriqueiros de plantão;chegueiaacreditaremalgumasdasmentirasquecontavamameurespeito.Detodasessasmentiras,aquemaismeincomodavaeraaafirmaçãodequeeudisseraque“não

poderiasuportarvê-labeijandooutrohomem!”.Emmomentosdemaiordesânimo,eumeconvenciadequeaquelaacusaçãoeraaquemaisprovocavarisos,eminhaobsessãopassouagiraremtornodaideia de corrigir aquelas mentiras. Também fiquei irritado por ser descrito como o rapaz rico emimado irresponsável apontode terminarumnoivado,mas repetiaamimmesmoqueaspessoasquemeconheciamnãoacreditariamnaquilo.Queeupudesseterditoquenãoqueriaqueelabeijasseninguém,entretanto,eracrível,porqueapesardetodaminhaposturaocidentalizadahaviaemmimalgo de um homem capaz de dizer essas coisas, e eu nem sequer tinha a certeza de não ter ditoaquelas palavras a Füsun, em tom de brincadeira ou por excesso de bebida. Porque, na verdade,mesmoquefossepelaarte,eucertamentenãoqueriaqueFüsunbeijassenenhumoutrohomem.

64.OincêndionoBósforo

Nasprimeirashorasdamadrugadade15denovembrode1979,minhamãeeeufomosdespertadospelo som de uma fortíssima explosão; pulamos da cama e saímos para o corredor, onde nosabraçamosaterrorizados.Porum instante, todooapartamentobalançoudeum ladoparaooutro,comoao sabordeumviolento terremoto.Acostumadoscomoestávamosabombasqueexplodiamemcafés,emlivrariasenaspraçasdacidade,supusemosquemaisumativessesidodetonadapertodaavenidaTeşvikiye,masentãopercebemosaschamasquesubiamdooutroladodoBósforo,juntoà costa de Üsküdar. Imaginando que se tratasse de um ato de violência política, durante algumtempo contemplamos ao longe o fogo e as nuvens vermelhas que se desprendiam dele, e entãovoltamosparaacama.Umpetroleiro romeno carregado de óleo cru tinha colidido comumpequeno cargueiro grego

pertodeHaydarpaşa;opetróleoseespalharapelaágua,provocandoexplosõesdentroeforadocascodopetroleiro,edepoisoincêndio.Osjornaisseprecipitaramempublicarediçõesespeciais,enodiaseguintetodaacidadesófalavadoBósforoemchamasedasnuvensquecobriamIstambulcomoum

Page 275: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

guarda-chuvapreto.NaSatsat,aqueledia,euquasesentiaoincêndiodentrodemim,epercebiqueo mesmo acontecia com todas as mulheres que trabalhavam no escritório, além dos gerentesentediados,e tenteiveraconflagraçãocomoumaboadesculpapara ir jantaraquelanoitenacasadosKeskin.Oacontecidohaviadeanularacolunasocial,queeunemsequerprecisariamencionarenquanto jantássemos falandodo incêndio o tempo todo.Ainda assim,porém, como todomundoqueviviaemIstambul,associeiosincêndiosdoBósforoatodososoutrosdesastresquecontribuíamparaainfelicidadegeral:umnovoassassinatopolítico,asfilasdopão,ahiperinflaçãoeaaparênciaabjeta e empobrecida de todo o país. Enquanto lia as últimas notícias, parecia-me que estavafascinadopeloincêndioporqueelemefalavadascalamidadesnaminhaprópriavida.Naquela noite fui até Beyoğlu; enquanto percorria toda a extensão da avenida İstiklal, fiquei

surpreso ao vê-la vazia. À frente dos grandes cinemas, como o Palace e o Fitaş, que agora exibiafilmes eróticos, havia apenas poucos homens nervosos. Quando passei pela praça Galatasaray,percebi como estava perto da casa de Füsun. Às vezes, nas noites de verão, a família inteiracaminhava até Beyoğlu para tomar sorvete. Talvez nos encontrássemos no caminho. Mas não vimulheralgumanasruas,nenhumafamília.QuandochegueiaTünel,novamentefiqueiincomodadoporestartãopertodacasadeFüsun,demaneiraquecaminheinadireçãoopostapararesistiràsuaatração.Passandoao ladoda torreGalata,desciatéopédaYüksekkaldırım.NaesquinaemqueaYüksekkaldırımatravessavaaruadosbordéis,haviaacostumeiraaglomeraçãodemarginais.Comotodomundo,contemplavamosreflexosdaluzalaranjadanasnuvensnegras.Atravessei a ponte Galata com os passantes que olhavam de longe para o fogo. Mesmo os

pescadoresquetentavampegarcavalinhascomsuastarrafasnãoconseguiamdespregarosolhosdaschamas.Semqueeuquisesse,meuspés seguiramamaioriadaspessoasatéoparqueGülhane.Asluzesdoparqueestavamapagadas—porque,comoamaioriados lampiõesdas ruasde Istambul,tivessemsidoespatifadasporpedrasatiradascomraivaouporqueaenergiaforacortada—,masaschamasqueseerguiamdopetroleiroeramtãointensasquetodooparqueeopalácioTopkapı,aoqual antigamente pertencia, além da boca do Bósforo, Üsküdar, Salacak e a torre de Leandroestavamclaroscomoodia.Ailuminaçãodoparque,vindadiretamentetantodoincêndioquantodaluzalaranjadaqueserefletianasnuvens,produziaoefeitoacolhedordeumabajuracesonumasalade estar europeia, fazendo comque a aglomeração de pessoas, extensa e inquieta, parecessemaissatisfeita e tranquila do que estava na realidade. Ou o prazer de contemplar aquele espetáculodeixava a todosmais animados.Aquelaspessoas tinhamvindode todosospontosdacidade— deônibus,apéedecarro,tantoricoscomopobres,algunsporobsessãoeoutrosporpuracuriosidade.Viavósdecabeçacoberta;jovensmãescomcriançasadormecidasnosbraços,coladasaosmaridos;homens desempregados hipnotizados pelo fogo; motoristas sentados em seus carros e caminhões,ouvindo música; vendedores ambulantes que tinham acorrido de todo lado para vender helva,mexilhões recheados, fígado frito e lahmacun; vendedoresde cháque ziguezagueavamemmeio àmultidão com suas bandejas. Dispostos em torno da estátua de Atatürk estavam os homens quevendiamsanduíchesdealmôndegaselinguiça;tinhamacendidoofogoemseuscarrinhoscercadosdevidro,eoagradávelaromadecarnegrelhadacirculavapeloar.Osrapazesquevendiamayranerefrigerantes(masnãoMeltem)tinhamtransformadooparquenumafeira.Compreiumchádeum

Page 276: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

vendedorambulantee,encontrandoumlugarnumdosbancos,aoladodeumhomemidoso,pobreesemdentes,entreguei-meàminhaprópriafelicidadeenquantocontemplavaaschamas.Volteitododiaatéofinaldasemana,quandoofogocomeçaraamorrer.Àsvezesaschamasfracas

tornavamaseanimar,erguendo-secomoumaondaatéaalturaquetinhamatingidonoprimeirodia,voltando a espalhar um fulgor alaranjado pelos rostos dos espectadores do incêndio tomados pelomedoepeloespanto,enquantoaschamastingiamnãosóabocadoBósforo,masaestaçãodasbalsasdeHaydarpaşa,oquarteldeSelimiyeeabaíadeKadiköydeváriosmatizesdelaranja,eàsvezesdedourado.Emmomentosassim,euficavaimóvelaoladodorestodosespectadores,arrebatadopelopanorama. Pouco mais tarde, ouvíamos uma explosão e víamos as brasas caindo, ou tentávamosescutaralgumacoisaenquantoaschamasseencolhiamemsilêncio.Eraadeixaparaosespectadoresprocuraremcomidaebebida,etrocaremideias.Durante uma dessas noites no parque Gülhane, avistei Nurcihan e Mehmet, mas me afastei

correndoantesquemevissem.QueeudesejavaestaralicomFüsuneseuspais,equetalvez fosseesse o motivo pelo qual comparecia àquele local toda noite, só fui perceber depois de ver umafamília cujas três sombras lembravam as deles. Era exatamente como tinha ocorrido no verão de1975,quatroanosantes:todavezqueeuviaalguémquelembrasseFüsun,oamorfaziameucoraçãodisparar.OsKeskineram,ameuver,exatamenteotipodefamíliaqueacreditavamaissinceramentenopoderdascalamidadesdeaproximaraspessoas.Euprecisavairvisitá- losantesqueoincêndiodoIndependenta se extinguisse; atravessaríamos juntos aquela catástrofe, e a proximidade deles meajudariaadeixartudodemauparatrás.Seráqueaqueleincêndiopoderiaassinalarocomeçodeumanovavidaparamim?Houve outra noite em que, enquanto procurava um lugar para me sentar no parque lotado,

deparei comTayfuneFigen.Parameugrande alívio,nãomencionaramamatériadoAks¸am, ounenhumoutrocomentárioquecirculavanasociedade;pareciamnemsaberdenadaquesedissesseameu respeito, o que me deixou tão contente que fui embora do parque com eles, enquanto aschamascomeçavamamorrer; entramosnocarrodelese fomosaumdosnovosbaresque tinhamsidoinauguradosnasruastransversaisdeTaksim,ondeficamosbebendoatéoamanhecer.No dia seguinte— domingo à noite— fui à casa dos Keskin. Tinha dormido o dia inteiro e

almoçado com minha mãe. Ao anoitecer, sentia-me otimista, esperançoso e até feliz. Mas, nomomentoemqueentreinacasaemevifrenteafrentecomFüsun,todososmeusonhosdesabaram:elaestavainfeliz,desolada,magoada.“Oquehádenovo,Kemal?”,disseela,imitandoumamulhersatisfeitaesempreocupações—ou

melhor,aideiaqueelafaziadeumamulherassim.Masminhabeldadenãoseempenharamuito;atéelasabiaqueestavafingindo.“Nadademuitonovo”,respondidescaradamente.“Nãotivetempodeviraqui,detantacoisaque

vemacontecendonafábrica,naempresaenosnegócios.”Num filme turco, sempre que certa intimidade se estabelece entre o herói e a heroína, uma

compreensivamatronalançaumolhardesatisfaçãonadireçãodosdois,paraqueatéoespectadormaisdesatentopercebaoacontecidoepossacompartilharsuasemoções…Bem,poisfoiassimquetiaNesibeolhouparanósdois,Füsuneeu.Mas,logodepois,pudedizerpelomodocomodesviouo

Page 277: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

olharqueamatériadacoluna social tinhaprovocadomuito sofrimentonaquelacasaequeFüsunpassaradiaschorando,comoaconteceraconstantementeemseguidaàfestadenoivado.“Porquevocênãovaibuscarumcopoderakıparaonossoconvidado,minhafilha?”,disseTarık

Bey.Já fazia três anos que Tarık Bey se comportava como se não soubesse de nada, sempre me

saudandocomumcarinhosincero,tratando-mecomoumparentequesimplesmenteapareciaparajantar, o que eu sempre respeitei. Mas agora me doía vê-lo demonstrar tão pouco interesse pelaangústia da própria filha, por meu desamparo e por nossa provação conjunta. E farei aqui aobservação desalmada que eu não me permiti fazer, nem para mim mesmo: Tarik Bey quasecertamentetinhadeduzidoporqueeuiaàsuacasa,massuamulheroconvenceraaaceitarqueeramelhor“paraafamília”elefingirquenãosabiadenada.“Sim,FüsunHanım”,disseeu,assumindoosmesmosmodoscontraídosdeseupai.“Porquenão

metrazorakıdesempre,paraeupodersaborearplenamenteafelicidadedestavoltaaolar.”Atéhojenãoseiexplicarporqueeudisseessaspalavras,ouoquequisdizercomelas.Digamos

apenasquemeusofrimentoaflorouemmeuslábios.MasFüsunentendeuosentimentoportrásdaspalavras, e por ummomento pensei que ela iria começar a chorar.Olhei para o canário em suagaiola.Penseisobreopassado,minhavida,ofluxodotempo,apassagemdosanos.Vivemos nossosmomentosmais difíceis naquelesmeses, naqueles anos. Füsun não chegara ao

estrelato,eeunãoconseguiraficarmaispróximodela.Nossoimpassesetransformaranumavergonhapública; e ambos fomoshumilhados.Era amesma coisa que acontecianasnoites emque eunãoconseguiame levantar da cadeira— eu via nós dois incapazes de nos levantar e pôr fim àquelasituação. Pois, enquanto continuássemos a nos encontrar quatro ou cinco vezes por semana, seriaimpossívelparaqualquerumdenóscomeçarumavidanova,eambossabíamosdisso.Naquelanoite,pertodofimdojantar,proferiointeressedesempre,commaissinceridadedoque

nunca.“Füsun”,disseeu,“faztantotempoquenãovejooqueestáacontecendocomasuapinturadapomba.”“Fazséculosquetermineiapomba”,disseela.“Feridunencontrouumalindafotodeandorinha.E

agoracomeceiapintá-la.”“Aandorinhaédelongeamelhorqueelajáfez”,dissetiaNesibe.Fomosatéoquartodosfundos.InsistindonafórmuladasavesdeIstambulempoleiradasemvários

pontos da casa— balaustradas, peitoris de janela e chaminés—, ela enquadrara uma andorinhaelegantena janeladenossa salade jantar,dandoparaa rua.Ao fundopodiam-severaspedrasdocalçamentodaladeiradeÇukurcuma,representadasnumaestranhaperspectivainfantil.“Estou tãoorgulhosodevocê”,disseeu, a vozpesadadederrotaapesardosmeusmais intensos

esforços. “Um dia todo mundo em Paris verá esses quadros!”, disse eu. Como sempre, o querealmentequeriadizereraalgocomo:“Minhaquerida,euaamotantoesentimuitoasuafalta.Foitãodolorosoficarlongedevocê,equefelicidadeévê-ladenovo!”.Maseracomoseosdefeitosdapinturativessemsetransformadonosdefeitosdomundoemquevivíamos,efoienquantoexaminavaapinturadapomba,notandotristementesuasimplicidade,suainocênciaesuafaltadesofisticação,queentendiqueeraassim.

Page 278: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Está ficandolindo,Füsun”,disseeucomcuidado, tentandoaplacarumagrandedordentrodemim.Se digo que a pintura continha elementos que lembram miniaturas indianas pintadas sob a

influênciainglesa,pinturaschinesasejaponesasdeaves,comaatençãodeAudubonaosdetalhes,emesmo a série de estampas de aves que acompanhavam uma marca de biscoitos de chocolatevendidos em todas as lojas de Istambul, tenham a bondade de lembrar que eu era um homemapaixonado.ContemplamosospanoramasdacidadequeserviamdecenárioparaaspinturasdeFüsundasaves

de Istambul,mas longe de reanimarmeu coração esse exercíciome trouxe desalento. Amávamosmuitonossomundo,pertencíamosaele,e issosignificavaquenósdois tambémparticipávamosdainocênciadaquelapintura.“Talvezvocêpudessepintaracidadeeascasasemcoresmaisalegresumdiadesses…”“Nãoseincomode,querido”,disseFüsun.“Ésóumpassatempo,vocêsabe.”Elapegouapinturaquememostraraeapôsdelado.Eupasseiosolhosporseuslindosmateriais

dearte—asbisnagasdetinta,ospincéis,osfrascoseospanosmanchadosdetodasascores.Comoaspinturasdasaves,tudoestavaemperfeitaordem.AoladodelesficavamosdedaisemateriaisdetiaNesibe.Enfieiumdedaldeporcelanacoloridanobolso,alémdeumlápispastellaranjaqueFüsuntinha segurado nas mãos pouco antes. Foi durante esses dias, os mais difíceis para nós, e maisespecialmenteosúltimosmesesde1979,queroubeiamaioriadascoisasdacasadosKeskin.Aessaaltura,essesobjetosnãoeramapenaslembrançasdemomentosdaminhavida,nemmerossouvenirs;para mim, eram parte fundamental daqueles momentos. Por exemplo, as caixas de fósforos queexponhonoMuseudaInocência:Füsunestevecomcadaumadelasnasmãos,deixandoparatrásoaromadeseusdedoscomtoquesdeáguaderosas.Comoocorreracomtantosoutrosobjetosexpostosnomuseu, toda vez que eu segurava alguma dessas caixas de fósforos no apartamento do edifícioMerhameteracapazdereviveroprazerdedividiramesacomFüsunedeolharemseusolhos.Mas,mesmoantesdisso,semprequeeuguardavaumacaixadefósforosemmeubolso,fingindoquenãonotava o que fazia, havia outromotivo de regozijo. Podia não ter “conquistado” amulher que euamavatãoobsessivamente,masficavaalegreportertiradoumpedaçodela,pormenorquefosse.Falar“tirarumpedaço”dealguémtrazimplícito,éclaro,queaquelepedaçofazpartedocorpo

dapessoaadorada.Mas,daliatrêsanos,cadaobjetoecadapessoadaquelacasadeÇukurcuma—amãe,opai,amesadejantar,afornalha,acestadecarvão,oscachorrosdelouçasobreatelevisão,osfrascosdeágua-de-colônia,oscigarros,oscoposderakı,ospotesdebalas—tinhasemisturadocomaimagemmentalqueeutinhadeFüsun.Euconseguiavê-latrêsouquatrovezesporsemana,e,pormaisfelizqueissomedeixasse,acadasemanaeuaindaremovia(“furtava”nãoseriaapalavracerta)desuacasa(desuavida)trêsouquatroobjetos,àsvezesatéseisousete,eduranteasfasesdemaiorsofrimentoentredezequinze,e,depoisdelevá-losparaoapartamentodoedifícioMerhamet,sentia-metriunfante.QuantafelicidadeemternasmãososaleirocomqueFüsunsalgaratãograciosamentesua comida sem tirar os olhos da televisão— enfiá- lo no bolso, saber que estava lá enquantoconversava e tomava goles do meu rakı, saber que tomara posse daquele troféu me ajudava aencontrarasforçasparamelevantareiremboraquandoanoitechegavaaofim.Depoisdoverãode

Page 279: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

1979,umobjetopresenteemmeubolsoeraachavequemedesprendiadaminhacadeira.Anosmais tarde,quandoconhecios estranhos eobsessivos colecionadoresde Istambul,quando

visiteisuascasasabarrotadasatéotetodepapéis,bugigangas,caixasefotografias,tentandoentendertoda vez o que aquelas almas irmãs daminha sentiam pelas tampas de garrafa de refrigerante oupelas fotosdeestrelasdocinemaeque significado tinhacadanovaaquisição, eume lembravadecomomesentiatodavezquesubtraíaalgumacoisadacasadosKeskin.

Page 280: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

65.Oscachorros

Muitos anos depois dos acontecimentos que relato aqui, comecei a visitar todos os museus domundo;apóspassarodiavendodezenasdemilharesdeobjetosestranhosediminutosexpostosnummuseudoPeru,daÍndia,daAlemanha,doEgitooudeváriosoutrospaíses,eutomavaalgumasdosesdeumabebidaforteepassavamuitashorascaminhandopelasruasdacidadeondemeencontrasse.EspiandoporcortinasejanelasabertasemLima,Calcutá,Hamburgo,Cairoetantasoutrascidades,euviafamíliasbrincandoerindoenquantoviamtelevisãoejantavamànoite;inventavatodotipodedesculpasparaentrarnessascasas,emesmoparapedirquetirassemminhafotocomseusmoradores.Foi assim que descobri que na maioria das casas do mundo existe um cachorro de porcelanaacomodadoemcimadatelevisão.Porquemilhõesdefamíliasdomundotodosentiamessamesmanecessidade?Primeiromepropusumaversãomaismodestadessapergunta,nacasadosKeskin.Comoeumais

tarde ficaria sabendo, o cão de porcelana que eu vi a primeira vez que entrei no apartamento dafamílianaruaKuyuluBostanemNişantaşı,antesqueatelevisãochegasseàTurquia,ficavaemcimado rádio em tornodo qual a família se reunia todanoite.Como em tantas casas que conheci emTabriz,Teerã,emcidadesdosBálcãs,noOriente,emLahoreemesmoemBombaim,nacasadosKeskinocãoficavaemcimadeumpaninhodecrochêfeitoemcasa.Àsvezeshaviaumvasoaoladodele,ouumaconcha(umavezFüsunpegouaconchadatelevisãoe,sorrindo,encostou-aaomeuouvido, para que eu também pudesse ouvir o murmúrio oceânico aprisionado nela), ou o cãoaparecia encostado a uma cigarreira, como que de sentinela. Às vezes eram essas cigarreiras e oscinzeiros que determinavam onde o cão era colocado. Creio que fosse tia Nesibe quem cuidavadesses arranjosmisteriosos, que podiam dar a impressão de que o cão estava a ponto de baixar acabeça—oumesmocaircomofocinhodentrodocinzeiro—,emboratenhahavidoumanoitededezembrode1979emque,enquantoadmiravaFüsun,euavimudaraposiçãodocãodelouçaemcima da televisão.Nummomento em que nada chamava a atenção para o cão ou o aparelho detelevisão,quandoestávamos todos sentadosem tornodamesa,esperando suamãe servir acomidaquepreparara,elamudouaposiçãodocachorrocomumgestoimpacientedopulso.Masissonãoexplicaapresençainicialdocãodelouça.Anosdepois,eleseriaacompanhadodeumcãodeguarda,junto a outra cigarreira. Por algum tempo reinou a moda de cães de plástico que realmentebalançavamacabeça;eracomumvê-losjuntoaopara-brisatraseirodoscarrosedostáxiscoletivos;amoda chegou e passou num piscar de olhos. Pouco se falou sobre esses cachorros; se os Keskincomeçaramarepararnasidasevindasdessescães, foiporquemeuinteresseemseuspertenceseraagoraevidenteparaeles.Naépocaemqueoscãesdecimada televisãocomeçaramamudarcomregularidade,tiaNesibeeFüsuntinhamadivinhadooudescobertoqueeuosestavalevandocomigo,comolevavatantasoutrascoisas.Na verdade, eu não tinha nenhuma vontade de compartilhar minha coleção com os outros, e

ninguémsabiaqueeuvinhaacumulandoobjetos—oquemedavavergonha.Depoisdeterlevadotodas aquelas caixas de fósforos, pontas de cigarro de Füsun, saleiros, xícaras de café, grampos e

Page 281: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

prendedores de cabelo— coisas que não eram difíceis de pegar, porque as pessoas raramentedetectamsuaausência—,passeiaalmejarasubtraçãodeobjetoscomocinzeiros,xícarasechinelos,começandogradualmenteasubstituí- lospornovos.“Sabeaquelecachorrinhodecimadatelevisão,aqueledequeestávamosfalandooutrodia?Bem,

acabounaminhacasa.NossaFatmaHanımestavalimpandoquandodeixoucairnochãoequebrou.Entãoeu trouxeesteaquiparasubstituí- lo.Euestavanobazardeespeciarias,comprandoalpisteesementesdecolza,quandoviestecachorronumavitrine,tiaNesibe…”“Ah,comoélindo,comasorelhaspretas”,diziaela.“Parecemesmoumcachorroderua…Venha

aqui,OrelhaPreta!Agorafiquesentadoaí.Obichinhotrazpazparaestacasa!”Pegou o cão de louça que eu trouxera e o pôs em cima da televisão. Às vezes os cachorros ali

dispostosnos traziampazporsuamerapresença, tantoquantoo tique-taquedorelógiodeparede.Alguns tinham um ar ameaçador, outros eram feios e totalmente desprovidos de encanto, masmesmoessesnostransmitiamasensaçãodeestarmosacomodadosnumlugarguardadoporcães,etalvezsentir-nosassimprotegidosfosseoquenostrouxessepaz,naquelemomentoemqueobairroressoavacomostirosdosmilitanteseomundoexteriornospareciamaissurrealacadadia.Ocãodeorelhas pretas foi o mais simpático das dezenas de cachorros que se acomodaram em cima datelevisãodosKeskinduranteaquelesoitoanos.Nodia12desetembrode1980houveumnovogolpemilitar.Por instinto,acordeiantesde todo

mundo naquelamanhã; vendo que a avenida Teşvikiye e as ruas que a cruzavam estavam todasvazias,percebinamesmahoraoquetinhaacontecido.Naquelestempos,haviaumgolpemilitaracadadezanos.Detemposemtempos,caminhõesdoExércitopassavampelaavenida,carregadosdesoldadosentoandocançõesmarciais.Liguei a televisãonamesmahora, edepoisde ficar vendoasimagensdebandeiras edesfilesmilitares, e deouvir os pronunciamentosdos generais que tinhamtomado o poder, saí para a varanda. Gostei de ver a avenida Teşvikiye tão vazia e a cidade tãosilenciosa,atalpontoqueofarfalhardasfolhasdascastanheirasnojardimdamesquitachegavaaosmeus ouvidos eme acalmava.Exatamente cinco anos antes, eume postara naquela varanda comSibeldepoisdenossa festado fimdoverão,naquelamesmahoradamanhã, admirandoamesmavista.“Melhorassim,gosteidesaber.Opaísestavaàbeiradodesastre”,disseminhamãeenquantoviao

cantorfolclóricodafronteira,comseuimensobigode,cantarsobreaguerraeoheroísmo.“Masporqueprecisammostrar essebrutamonteshorrívelna televisão?Bekrinão vai conseguir vir trabalharhoje,entãovocêvaiprecisarcozinhar,Fatma.Oquevocêtemparanósnageladeira?”O toque de recolher durou o dia todo. De vez em quando víamos um caminhão do Exército

descendo ruidosamente a avenida; isso nos dizia que políticos, jornalistas emuitos outros estavamsendo recolhidos em suas casas para serem levados à prisão, e ficamos gratos por não nosenvolvermosnapolítica.Osjornaistinhampublicadoediçõesespeciais,saudandoogolpedeEstado,epasseiodiainteirosentadoaoladodaminhamãe,lendoosjornaisevendoosgeneraisanunciaremogolpe,umagravaçãorepetidamuitasvezeseentremeadadeantigasimagensdeAtatürk.Detemposemtemposeuiaatéajanelaeadmiravaabelezadasruasvazias.EstavacuriosoparasabercomoiamascoisascomFüsun—comoestavamtodosnacasadeÇukurcuma.Havia rumoresderevistasde

Page 282: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

casaemcasaemcertasáreasdacidade,comoocorreranogolpede1971.“Apartirdeagoravamospoderandarnasruasempaz”,disseminhamãe.Com a imposição do toque de recolher às dez da noite, o golpe militar interrompeu minha

sequênciadejantaresnacasadosKeskin.Duranteotelejornaldanoitedoúnicocanaldetelevisãodopaís, os generais não só discursavam contra os políticos e os intelectuais dissidentes comorepreendiamanaçãointeirapelosmauscostumesqueatinhamdeixadoempéssimasituação.Masnãoeramsópolíticoseintelectuaisdissidentes—prendiamtambémvigaristascomuns,donos

de bordéis, vendedores ambulantes de cigarros contrabandeados ou qualquer um que violassealguma lei do trânsito, pichasse uma parede ou tivesse participado de um filme pornô. Inúmeraspessoas ligadas ao terrorismo foram sumariamente executadas para servir de exemplo aos demais.Sempre que a notícia de um desses fatos chegava à mesa dos Keskin, todos se calavam. Emmomentos assim eume sentiamais próximo deFüsun: parte da família.Não recolhiamos jovensmeiohippiesquecirculavamnasruascomoscabeloscompridospararasparsuasbarbas,comonogolpe anterior, mas demitiram de imediato uma legião de professores universitários. O Pelüresvaziou-se,assimcomooutroslugaressemelhantes.Logodepoisdogolpe,decidiqueiriapôrminhavidaemordemtambém:passariaabebermenosparamitigarosofrimentoquemeuamormecausarae,nomínimo,tentariacontrolarmeuimpulsodecolecionarobjetos.Menosdedoismesesmais tarde,vi-mea sóscomtiaNesibenacozinha,poucoantesdo jantar.

Tinhacomeçadoachegarmaiscedonacasadeles,parapoderestarmaistempocomFüsun.“MeuqueridoKemal,sabeovira- latadeorelhaspretasquevocênosdeu,queficavaemcimada

televisão?Bem,eledesapareceu…Seusolhosseacostumamcomascoisas,enomomentoqueelasdesaparecem você se dá conta. Não sei o que terá acontecido; mas tanto faz— talvez o pobrebichinhotenharesolvidoqueestavanahoradeselevantareirembora”,disseela.Soltouumarisadasimpática,mas quando viu a expressão contraídanomeu rosto ficou séria. “Oque vamos fazer?”,perguntouela.“TarıkBeyviveperguntandooqueteráacontecidocomocachorro.”“Deixequeeucuidodisso”,respondi.Naquelanoite,fiqueinervosodemaisparaconversar.Masapesardomeusilêncio—ouporcausa

dele—tampoucoconseguimelevantareirembora,paralisiaquesóseintensificouàmedidaqueseaproximavaahoradotoquederecolher.AchoquetantotiaNesibequantoFüsunsabiamdaminhadificuldade.TiaNesibefoiobrigadaadizer“Porfavornãoseatrase!”váriasvezes.Sóàsdezecincoconseguisairdelá.Ninguémnosparounocaminhodevoltaparacasa,edepoisquechegamos sãose salvospassei

muitotempopensandosobreosignificadodaquelescachorros,eporqueeuoslevavaparaacasadosKeskinsóparatirá- losdeláemseguida;naverdade,apesardainsistênciadetiaNesibeemdizerquetinha dado pela falta do cachorro de imediato, na realidade eles tinham levado onzemeses, umtempoespantoso, para ver queo cachorronão estavamais lá.Acheique só tinhampercebido suafaltaporcausadogolpemilitaredosentimentoreinantedequetodosprecisávamospôrnossascasasemordem.Quasecertamente,essescachorrossentadosempaninhosderendaemcimadastelevisõeseram, em sua maioria, remanescentes do tempo em que ficavam instalados em cima dos rádios.Quandoaspessoasouviamorádio,viravamnaturalmenteacabeçanadireçãodoaparelho,eentão

Page 283: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

seusolhosprocuravamalgocomquesedistrair,algoquelhesdesseconforto.Depoisqueosrádiosforam substituídos pelas televisões como a distraçãodas refeições em famílias, os cachorros foramtransferidos para cima dos aparelhos de televisão, mas, com todos os olhos grudados na tela,ninguémmais dava atenção a essas criaturinhas. Eu podia levá-los comigo sempre queme dessevontade.Doisdiasdepoisdaquelanoite,leveidoiscãesdelouçaparaosKeskin.“EstavaandandohojeporBeyoğlueviessesdoiscachorrosnomercado japonês”,disseeu.“Até

parecequeforamdesenhadosespecialmenteparaficaremcimadanossatelevisão.”“Ah,formamumlindopar”,dissetiaNesibe.“Masporquesedeuatantotrabalho,KemalBey?”“Fiquei triste quando soube que o cachorro das orelhas pretas tinha sumido”, respondi. “Na

verdade, eu sempre me perguntava se ele não se sentia muito sozinho, sentado ali em cima datelevisão.Quandovicomoessesdoissesentiamfelizesjuntos,penseiqueseriamuitobomterumadupladecachorrinhoscontentesemcimadatelevisão.”“Vocêachavamesmoqueocachorrosesentiasóaliemcima,KemalBey?”,perguntoutiaNesibe.

“Vocêéumhomemmuitodiferente.Maséporissoqueoamamos.”Füsunsorriacarinhosamenteparamim.“Euficoperturbadoquandovejocoisasseremjogadasforaeesquecidas”,disseeu.“Dizemqueos

chinesesacreditavamqueosobjetostinhamalma.”“AntesdenósturcosvirmosdaÁsiaCentral,passamosmuitotempopróximosdoschineses;outro

diaatelevisãomostrouumprogramasobreisso”,dissetiaNesibe.“Vocênãoestavaaqui.Füsun,vocêse lembradonomedoprograma?Ah,vocêpôsoscachorrosnolugarexato,e ficaramlindos.Masachamesmoque devem ficar de frenteumpara o outro, ou de frente para nós?Não consigomedecidir.”“Odaesquerdadeveficardefrenteparanós,eodadireitadeveficardefrenteparaoamigo”,disse

TarıkBeyrepentinamente.Às vezes, no momento mais inesperado de uma conversa, quando todos achávamos que nem

estava ouvindo,TarıkBey fazia de repenteumcomentário ponderadoquedemonstrava comoeleestavaaindamaisatentoquenósacadadetalhe.“Se fizermosassim,oscachorrospodem ficaramigosenão seentediar,mas tambémvãopoder

ficardeolhoemnósefazerpartedafamília”,continuouele.Pormaisqueeudesejassepegá-los,conseguificarlongedessescachorrosporumanointeiro.Em

1982,oanoemquefinalmenteos leveiemboracomigo,eucomeçaraadeixardinheironumcantodiscretoparacompensaropreçodascoisasquelevava,ouentãotraziaumsubstitutobemmaiscarono dia seguinte. Durante esses últimos anos, muitos objetos estranhos de mesma forma, mas defunçãodiferente—cachorrosquetambémeramalmofadasdealfinete,cachorrosquefuncionavamcomotrenas—tiveramsuatemporadaemcimadatelevisão.

66.Oqueéisso?

Page 284: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Quatromeses depois do golpe de Estado, estávamos a caminho de casa, voltando dos Keskin,quando, quinzeminutos antes do toque de recolher,Çetin e eu fomos parados por soldados queverificavamdocumentosde identidadenaavenidaSıraselviler.Euestavaconfortavelmenteestiradonobanco traseiro, e comomeus papéis estavamemordemnão tinhanada a temer.Mas, quandopegouminhacarteirade identidade,o soldadomeolhoucomumaexpressãodúbia.Vi seusolhosfixosnoraladordemarmeloquetraziaameuladoefiqueinervoso.Por instinto ou por força do hábito, eu tinha subtraído o ralador da casa dos Keskin quando

ninguémestavaolhando.Issomedeixoutãofelizqueconseguisairdelámaiscedosemprecisardemuito esforço. Pouco antes do bloqueio, tinha tirado o troféu do bolso domeu paletó, comoumcaçadorqueresolve lançarumolhardeorgulhoparaumgalo-de-campinaque tivesseacabadodeabatereguardar,eodeixeinobancoameulado.NomomentoemquechegueiàcasadosKeskinaquelanoite,sentiafragrânciadeliciosadegeleia

demarmelo.Enquanto conversávamos sobre isso e aquilo, tiaNesibedissedepassagemqueela eFüsun tinham cozinhado os frutos a tarde inteira em fogo baixo, e que haviam tido uma ótimaconversaentremãeefilha.Fiqueiencantadodeimaginarcomo,enquantosuamãeseocupavacomoutracoisa,Füsunmexialentamenteageleiacomumacolherdepau.Depoisdeexaminarascarteirasdeidentidadedosocupantes,ossoldadosdeixavamalgunscarros

seguiremcaminho.Noutroscasos,mandavamquetodosospassageirosdescessemeossubmetiamameticulosasrevistaspessoais.Çetin e eu descemos do carro como nos mandaram fazer. Estudavam cuidadosamente nossas

carteirasdeidentidade.ObedecemosquandonosdisseramparaapoiarasmãosnoChevrolet,comosuspeitosnumfilmepolicial.Osdoissoldadosrevistaramoporta- luvas,olharamdebaixodosassentoseemtodaparte.AscalçadasdaavenidaSıraselviler,ladeadasporedifíciosdeapartamentosdecertaaltura,estavammolhadas,elembrotambémquealgunspassantessevirarameolharamparanós.Àmedidaqueseaproximavaahoradotoquederecolhereasruasseesvaziavam,vilogoàfrentequeasluzesestavamapagadasnoSessentaeSeis,ofamosobordelquedeviaonomeaonúmerodoprédioque ocupava e que, em nosso último ano de liceu, todo mundo da minha turma frequentava.Mehmetconheciamuitasdasgarotasdelá.“Dequeméisso?”,perguntouumdossoldados.“Meu”,disseeu.“Eoqueé?”Derepente,percebiqueeuseriaincapazderesponderquesetratavadeumraladordemarmelo.

Seeudissesse,acheiqueelesentenderiamnamesmahoraqueeuestavaobcecadoporFüsunevinhavisitando havia anos, quatro ou cinco vezes por semana, a casa onde ela morava com a família,situação tão sem saída e humilhante que os obrigaria ame considerar umhomemde inclinaçõesestranhas,certamentecomalgumatendênciaparaomal.MinhacabeçaestavaenevoadadepoisdeumanoitebatendomeuscoposderakınosdeTarıkBey,mas,quandorelembroesseepisódiotantosanos depois, não acredito que tenha sido esse omotivo domeu erro de cálculo. Poucosminutosantes,aqueleraladordemarmelofaziapartedacozinhadosKeskin,eagorapareciatãoincongruentenasmãosdaqueleoficialbenevolentevindo(achavaeu)deTrebizonda,quedeformainesperadame

Page 285: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tocouprofundamente—algoquetinhaavercomavidanestaterraeacondiçãohumana.“Istoéseu?”“É.”“Eoqueé,meuirmão?”Novamentemecalei,entregando-meaodesespero— umnovo sintomadeparalisia; queriaque

aquelesoldado,aquelemeuirmão,entendesseomalqueeufizerasemqueeuprecisasselhedizer,masnãoerapossível.Eutinhaumcoleganaescolaprimáriaqueeraestranhoebastanteburro.Semprequeaprofessora

ochamavaaoquadro-negroeperguntavaseeletinhafeitoodeverdematemática,eleficavacaladoexatamentecomoeunaquelemomento,recusando-seadizersimounão;tamanhoeraopesoqueelesentiadevidoàculpaeao fracassoquesóconseguia ficarparadoali, trocandoopesodocorpodeumapernaparaaoutra,atéaprofessoraficarfuriosa.Oqueeunãoentendiaquandoviaaquilomuitoespantadonaminhasaladeaulaeraque,seumapessoacainaquelesilêncioumavezqueseja,nuncamaisconsegueabriraboca;ficaráemsilêncioporanos,atéséculos.Quandoeueramenino,erafelizelivre.Masnaquelanoite,naavenidaSıraselviler,tantosanosmaistarde,descobrioquesignificavaser incapaz de falar. Eu já tivera intimações de que minha paixão por Füsun acabaria por setransformarnumahistória assim,de introversãoobstinada.Meuamorpor ela,minhaobsessão, ouseja qual for o nome, tornara-me incapaz de enveredar por um caminho que permitisse falarlivrementedaquelemundocomoutrapessoa.Mesmonosprimeirosdias eu sabia, bemno fundo,queamudançajamaispoderiaacontecernomundoquevenhodescrevendo,eassimmevireiparadentro,para lá tentar encontrarFüsun.Achoqueela sabia, também,queumdia eu acabariaporencontrá-ladentrodemim.Nofim,tudoacabariabem.“Oficial,éumralador”,disseÇetinEfendi.“Umraladordemarmelocomum.”ComoÇetinpodeterreconhecidooralador?“Entãoporqueelemesmonãomedisse?”Evirou-separamim:“Escute,estamossobleimarcial…

Vocêésurdooucoisaassim?”.“Oficial,KemalBeyandatãotristeultimamente…”“Eporquê?”,perguntouooficial,emborasuasfunçõesnãocomportassemnenhumacompaixão.

“Voltem para o carro e fiquem esperando!”, gritou. Em seguida se afastou, levando o ralador demarmeloenossascarteirasdeidentidade.Oraladorrefulgiuporummomentoàluzdosfaróisdoscarrosqueesperavamatrásdenós,antes

queeuovissedesaparecernointeriordopequenocaminhãodoExércitoparadologoànossafrente.DentrodoChevrolet,Çetineeuesperamos.Quantomaisnosaproximávamosdahoradotoquede

recolher,maisdepressaaspessoaspassavampornós,eàdistânciavimoscarrospassarcorrendopelasesquinasdapraçaTaksim.Osilêncioentrenóspesavaaindamaiscomomedoeaculpaquesentiasemprequeeuerarevistado,meucarroeraexaminadoousimplesmentemeencontravanapresençada polícia. Ouvimos o tique-taque do relógio do carro e, para manter o silêncio, ficamosperfeitamenteimóveis.Imagineioraladorsendomanuseadoporumcapitãonointeriordocaminhão,eaquilomedeixou

embaraçado. Sentado ali, esperando em silêncio, aos poucos fui sendo tomado pela ansiedade,

Page 286: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

imaginandoadorqueiriasofrerseaquelessoldadosconfiscassemoraladordemarmelo;anosmaistardeeuaindame lembravanitidamentedoquantoessaansiedade foi intensa.Çetin ligouo rádio.Locutores liam vários boletins relacionados ao estado de lei marcial: a lista dos procurados, asproibições,alistadesuspeitosquetinhamsidocapturados…PergunteiaÇetinseelepodiatrocardeestação.Depois de alguns chiados, conseguimos captar um programamais agradável de um paísdistante.Enquantotentávamosnosdistrair,algumasgotasdechuvacaíramnopara-brisa.Vinteminutosdepoisdocomeçodo toquede recolher,umdos soldados voltouenosdevolveu

nossascarteirasdeidentidade.“Estátudoresolvido.Podemirembora”,disseele.“Esealguémnospararporquejápassouahoradotoquederecolher?”,perguntouÇetin.“Podemdizerqueforamparadospornós”,respondeuosoldado.Çetindeuapartidanomotor.Osoldadoabriucaminhoparanós.Masdescidocarroemedirigi

aocaminhão.“Achoquevocêsaindaestãocomoraladordemarmelodaminhamãe…”“Olhesó,nofinaldascontaselenãoerasurdonemmudo,evejamcomofalabem!”“O senhor não pode andar com este objeto, porque ele pode ser usado como arma e causar

ferimentos”,disseoutrosoldado,depatentesuperior.“Mastudobem,podelevar,sónãofiquemaisandandocomelepelarua.Qualéasuaprofissão?”“Souempresário.”“Pagaseusimpostosemdia?”“Pago.”E não disseram mais nada. Eu sofrera um pouco, mas fiquei feliz de recuperar meu ralador.

EnquantoÇetinnos levavaparacasa,dirigindodevagare commuitocuidado,percebiqueestavafeliz. Aquelas ruas escuras e vazias que agora pertenciam às matilhas de cachorros de Istambul,aquelasavenidastãofeiasàluzdodia,espremidasporedifíciosdeconcretoemestadotãodeplorávelquemedeixavamdesalentadosódeolhar,pareciamentãomisteriosaseinteressantes,comopoemas.

67.Aágua-de-colônia

Em janeiro de 1981, almoçando noRejans, Feridun e eu conversamos sobre negócios enquantotomávamos nosso rakı e comíamos nossa enchova. Ele estava fazendo comerciais com Yani, umoperador de câmera que conhecia do Pelür, e, embora isso nãome causasse nenhum problema,ficavaaborrecidodefazeressetipodetrabalho“pordinheiro”.TendoobservadoafacilidadeprecocecomqueFeridunaprenderaadominaraartedesemprepareceràvontadeeaceitarosprazeresdavida quando se apresentavam, eu antes poderia ter tido alguma dificuldade em entender seusescrúpulos; mas, como o sofrimento me fizera amadurecer além da minha idade, eu finalmenteperceberaqueamaioriadaspessoasnuncaéoqueaparenta.“Tenhoumroteiroprontoparacomeçaraserfilmado”,disseFeridun.“Seeucomeçaratrabalhar

por dinheiro, seria melhor estar trabalhando nele. É um pouco rudimentar, mas tem boas

Page 287: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

possibilidades.”Foi no Pelür que ouvi pela primeira vez roteiros serem classificados como “prontos” ou

“absolutamenteprontos”paraseremfilmados;issosignificavaqueoroteirotinhapassadopelajuntadecensoresouobtiveratodasaslicençasdoEstadoquelhegarantiriamtrânsitolivre.Numtempoemque poucos roteiros com apelo popular passavampela censura, os diretores e os produtores cujosganhosdependiamdefazerumoudoisfilmesporanosedispunhamafilmarroteirosquenemteriamcogitado antes, contanto que estivessem “prontos”. Depois de vários anos de atuação da censura,aparandoasarestasecortandoaspassagensmaispicantesdetudooqueerainteressanteouoriginal,os filmes tinhamassumidoumadesanimadorauniformidade,eassim,paraamaioriadosdiretores,nãoeradifícilfazerumfilmesobreoqualnãosabiamnada.“OenredoserveparaFüsun?”,pergunteiaFeridun.“Nemdelonge.Opapelfemininoémuitosugestivo,perfeitoparaPapatya.Aatrizprecisaráusar

roupasmuitoreveladoraseficarnua.Alémdisso,oatorprincipalseráTahirTan.”“NãopodeserTahirTan.”PassamosalgumtempodiscutindosobreTahirTan,comoseomais importantedaquestãonão

fosseusarmosPapatyacomoprotagonistaemvezdeFüsunnoprimeiro filmeque fazíamos juntos.“Nãovamosnosdeixarlevarpelossentimentos!”,disseFeridun,reafirmandoquechegaraahoradedeixar para trás o incidente no restaurante Huzur. De repente, nossos olhos se encontraram. OquantoeleestariapensandoemFüsunnaquelemomento?Perguntei- lhesobreoquefalavaofilme.“Umhomemricoseduzumalindajovemqueporacasoésuaprimadistante,edepoisaabandona.

Amoça,tendoperdidoavirgindade,sevingatransformando-seemcantora…Naverdade,ascançõesforamescritasparaPapatya…HayalHayatiiafazerofilme,mas,quandoelaserecusouavirarsuaescrava,irritou-seemudoudeideia.Oroteiroficoulargado.Éumagrandeoportunidadeparanós.”O roteiro, ascançõese tudomaisnaquele filmeeram tão ruinsque,maisque inadequadopara

Füsun,eraumdescréditoparaFeridun.Emboraminhabeldadetenhaaparecidoamuadanojantar,comrelâmpagosdesprendendo-sedosolhoscadavezqueolhavaparamim,acheiquepodiahaveralgodevirtuosoemcontentarpelomenosFeridun,eassim,antesdechegarmosaofimdarefeição,estimuladopelorakı,concordeiemfinanciarofilme.Emmaiode1981Feriduncomeçouafilmarseu“roteiropronto”,chamadoVidaspartidas,baseado

noromancedemesmonomeescritooitentaeoitoanosantesporHalitZiya;masasemelhançasóiaaté aí, pois aquela história de amor e laços de família nas mansões otomanas da burguesiaocidentalizadaedaeliteimperialestavaaummundodedistânciadoroteiro,quesepassavanasruasenlameadasenosgazinos da Istambuldadécadade 1970. Impelida apenas pela raiva e pelapuraforçadevontade,nossaheroína(encarnadaporPapatya,queseentregoudecorpoealmaaopapel)torna-sefamosapelascançõesdeamorqueinterpretanosgazinosenquantodedicamuitosanosaopacienteplanejamentodesuavingançacontraohomemquelhetirouavirgindade;àdiferençadaheroínadolivro,elasofrenãoporsercasada,masporquenãopodesecasar.ComeçamosafilmarnoantigocinemaPeri,naquelaépocaalocaçãomaisprocuradapelosfilmes

comcenasemclubesnoturnosqueapresentassemmúsicatradicional.Osassentosdaplateiatinhamsido retirados,emesas forampostasemseu lugarparadeixaro lugarparecidocomumgazino.O

Page 288: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

palcodocinemaeralargoeprofundo,emboranãotãolargoquantoodoMaksim,omaiorgazinocobertodaépoca,ouoÇakılGazino,queficavadebaixodeumatendaimensaemYeniköy.Entreasdécadasde1950e1970haviamuitosdessesestabelecimentos,inspiradosnoscabarésfranceses,ondeos frequentadores podiam comer e beber enquanto eram entretidos por números de cantores,comediantes, acrobatas e mágicos; apresentavam cantores e cantoras turcos com repertóriostradicionais ouocidentalizados, emuitosmelodramasmusicais eram filmadosneles.Tipicamente,era num gazino que a heroína fazia a primeira confissão eloquente da dor que a consumia, e,quando,anosmais tarde,atraíaoaplauso frenéticoeas lágrimasdeoutraplateia, ficavaclaroquetriunfaratambémnogazino.FeridunmeexplicaraosváriostruquesqueaYeşilçamusavaparaevitaropagamentodefigurantes

nas cenas em que ricos espectadores aplaudiam cantores empobrecidos com imenso entusiasmo;antigamente,cantorasdeverdadecomoZekiMürenouEmelSayıncostumavamfazeropapeldesimesmas nesses musicais, e os produtores admitiam qualquer pessoa de terno e gravata que fossecapazdeficarimóvelecommodoseducadosaumamesa.Ogazinoficavalotadodepessoasansiosasporassistiraumespetáculogratuito,emtrocatrabalhandodegraçacomofigurantes.Nosanosmaisrecentes,porém,oscineastastinhamcomeçadoausaratrizesmenosconhecidas,comoPapatya,nosmusicais.(Essasjovensatrizesfaziamopapeldecantorasmuitomaisfamosasqueelaspróprias,masao cabo de um ou dois filmes a lacuna entre o filme e a vida real se estreitava, a partir do quecomeçavam a estrelar filmes sobre cantoras empobrecidas muito menos famosas do que elas.MuzafferBeycertavezmedissequeopúblicoturcosecansavadepressadequalquerumquefossetão rico e famoso na vida real quanto parecia nos filmes; o poder secreto de um filme residia nadiscrepânciaentreascircunstânciasdaestrelanavidarealedeseupersonagem.Poisoobjetivodosfilmesera,nofimdascontas,mostrarcomoessalacunasefechava.)Comonãoconseguimosacharninguém disposto a envergar suas melhores roupas para vir ao empoeirado cinema Peri ver umacantora menor de que nunca tinham ouvido falar, oferecemos kebabs de graça para qualquerhomemqueaparecessedegravataequalquermulherdecabeçadescoberta.Antigamente, semprequenosreuníamoscomnossosamigosouforadacidade,Tayfunzombavadosfilmesturcosquevianoverãonoscinemasaoarlivre;depoisdeimitarasafetaçõeseosgestosfalsosdosfigurantespobresquetentavamfazeropapeldeespectadoresricosdeestômagocheio,comacontrariedadeautênticadealguémenganado,elereclamavaqueosricosdaTurquianãoeramnemdelongecomoeles.Antesmesmodecomeçarmosa filmar,eujásabia,pelashistóriasdeFeridunsobreo tempoem

quetrabalhavacomoassistente,queosfigurantesbaratoscriavamproblemasbemmaissériosqueamaneiracomorepresentavammalos ricos.Alguns tentavamiremboraassimque terminavamseuskebabs,enquantooutrosficavamsentadosemsuasmesaslendoojornal,ouinsistiamemfazerpiadaserircomosoutrosfigurantesmesmonahoraemqueacantoradiziasuasfalasmaisemocionantes(emborapelomenosesteúltimodetalhe fosse fiel aoqueocorrianavida);outros simplesmente secansavamdeesperareadormeciamemsuasmesas.QuandovisiteiosetdefilmagemdeVidaspartidaspelaprimeiravez,oprodutorexecutivo,como

rostorubroderaiva,reclamavacomosfigurantesporquetinhamolhadoparaacâmera.Poralgumtempoacompanheiostrabalhosacertadistância,comoqualquerprodutordecinema,quandoouvi

Page 289: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Feridun gritar: “Ação!”. Em seguida houve um vislumbre damagia rudimentar—meio conto defadas, meio vulgaridade— que se vê tanto nos filmes turcos, enquanto Papatya andava pelapassarela,microfonenamão,cercadadosdoisladospelaplateia.Cinco dias antes eu fora com Füsun e Feridun a um cinema ao ar livre perto do palácio de

İhlamur para ver um filme também estrelado por Papatya, dessa vez no papel de uma garota decoração de ouro que, demonstrando grande habilidade diplomática, descobre um modo dereconciliarseuspais,quetinhamseseparadoporcontadeummal-entendido;nonovofilme(comumavelocidadequeindicavaodestinodetodasascriançasturcas)elaforatransformadanumadasvítimasenraivecidasesofredorasdavida.Papatyaassumiraopapeltradicionaldamulhertrágica—desafortunadaedespojadadainocência,destinadaapenasàmorte—comoseenvergasseumvestidosob medida. Era quando eu rememorava a antiga inocência infantil de Papatya que conseguiaentendê-la,assimcomoeracapazdereconheceraquelainocênciainfantilsemprequeviaamulhercansadaeenraivecidaemqueela se transformara.Acompanhadaporumaorquestra inexistente—queFeridunacrescentariaapartirde trechosdeoutros filmes—, elacaminhavapelacenacomasegurançadeumamodelo,umdesamparoquepareciaquaseserevoltarcontraDeuseumasededevingança tãograndeque sópodíamoscompartilhar seu sofrimento, reconhecendoque,pormenoslapidadaquefosse,Papatyaeraumajoia.Osfigurantesadormecidosretornavamàvidae,quandoafilmagemcomeçou,atéosgarçonsqueserviamoskebabspararamparaolhá-la.Naqueles anos, cada estrela segurava o microfone de um modo particular, correspondendo

supostamenteàsuapersonalidade;quePapatyativesseencontradoummodopróprioeoriginal,emqueseusdedoslembravamumatorquês,eraumaprova,segundoumjornalistaqueeuconheceranoPelür,dequeestavarealmentedestinadaaoestrelato.Osgazinostinhamparadodeusarmicrofonesfixos,preferindoosdomodelomaisnovo,ligadosalongosfiosquepermitiamaoscantoresmisturar-se ao seu público. Mas esse progresso apresentava seus próprios problemas: embora as divaspudessem semostrarmais expressivas, realçando as letras das canções com gestos de amargura edesafio, e às vezesmesmo com lágrimas verdadeiras, precisavam puxar aqueles longos fios comodonas de casa que manobrassem um aspirador. Na verdade Papatya estava apenas dublando acanção,eomicrofonenãoestavaligadoanada,masaindaassimelafaziadecontaqueofioficavapresoparamostrar suadestrezaemenfrentaraquelapequenadificuldadecomgestoscomedidoseelegantes. Foi o mesmo jornalista e admirador que, mais tarde, comparou esses gestos aos dasmeninasquebatemacordaparaasamigaspularem.A filmagemavançavadepressa,eno intervalo seguinte fuicumprimentarFeridunePapatya.No

mesmomomentoemquelhesdavaosparabéns,ouvi-mefalandocomoosprodutoressobreosquaistinhalidonosjornaiserevistas.Talvezporqueosjornalistastomavamnota!Enquantoisso,Feridunficaraparecidocomosdiretoresqueapareciamnasreportagens:avelocidadecaóticadasfilmagenslhehavia roubadooar infantil, emdoismeseseracomoseele tivesseenvelhecidodezanos,eeletinhaaaparênciaforte,decididaeatéimpiedosadotipodehomemquesemprelevavaatéofimoquecomeçava.Aquele dia também me revelou os primeiros sinais de que Feridun e Papatya pudessem estar

apaixonados,oupelomenosenvolvidosnumarelaçãoséria,emboraeunãotivesseabsolutacerteza.

Page 290: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Sempre que havia jornalistas por perto, todas as estrelas e atrizes secundárias agiam como seestivessemvivendograndesromancessecretos.Ouhaveriaalgumacoisanoolhardosjornalistastãosugestivadopecado,daculpaedoproibidoqueobrigavaatoresecineastasaumcomportamentotransgressivo?Quandocomeçaramatirarfotografias,mantive-meàdistância,ecomomalhouvesseuma semanaemqueFüsundeixavadecomprarumexemplardeSesouHaftaSonu, revistas quecobriamextensamenteomundodocinema,previquelogoestarialendoalgumacoisasobreFeridunePapatya.Papatyapodia tambémdar a entenderqueestava tendoumcaso como atorprincipal,Tahir Tan, ou mesmo comigo— o produtor! De qualquer maneira, não havia necessidade deinsinuaçõesindependentes:oseditoresdasrevistasedaspáginasdecinema,depoisdedecidiremqualversãovenderiamais,logohaveriamdeinventaralgumaintriga,enfeitá- laedivulgá-lacomamáximaênfase.Àsvezeschegavamaproporabertamente suahistória falsaaosartistas,eestescolaboravamfornecendo-lhesalgum“flagranteíntimo”adequado.Eu estava satisfeito por ter mantido Füsun à distância desse ambiente sórdido, mas ao mesmo

tempoficavatristeporprivá-ladaanimaçãodotrabalhonosetdefilmagem,queeladesejavaquasetantoquantoafama.Eporque,naverdade,depoisqueumamulherrepresentaramuitasvariantesdamulherdecaída,nosfilmesenavidareal—paraasplateias,osdoiseramamesmacoisa,nofimdascontas—, depois que a vida lhe causava alguns percalços, uma estrela famosa de cinema podiapassarasededicarapapéisdematriarcasrespeitáveiseconduzirorestodacarreiracomoumadama.Será que Füsun sonhava com uma trajetória assim? E, se fosse o caso, primeiro ela precisariaencontrar um “patrono” no submundo ou outro aventureiro rico e durão inclinado a esse tipo deligação?Nomomento emque esses homens travavamcasos amorosos com as estrelas de cinema,proibiam-lhescenasdebeijoecenascomocorpomuitoàmostra.Paraqueosleitoresevisitantesdosséculosfuturosnãomeentendammal,vouesclarecerque,com“corpoàmostra”,falodaexposiçãodosombrosedaspernas.Assimqueumamantericoemaisvelhoassumiaaproteçãodeumaestrela,impunhatambémaproibiçãoimediatadetodososartigosgrosseiros,degradantesoumaliciososaseurespeito.Houveumcasoemqueumjovemrepórterlevouumtironojoelhoporque,ignorandoumadessas proibições, escreveu uma reportagem sobre uma estrela de seios imensos, na época sob aproteção de um augusto personagem desse tipo, dizendo que quando ainda era adolescentetrabalharacomodançarinaeforaamantedeumfamosoindustrial.Eradolorosolembrarque,amenosdedezminutosdocinemaPeri,Füsunestavasentadaemcasa

em Çukurcuma sem fazer nada, no mesmo instante em que eu assistia às filmagens, que seprolongariampelo dia inteiro, até a hora do toque de recolher. Alarmava-me pensar que, semeulugaràmesadosKeskinpermanecessevazio,Füsuniriadeduzirqueeupreferiaomundodocinemaaumanoiteemsuacompanhia.Assim,todanoite,depoisdesairdocinemaPeri,eudesciaaladeiracalçadadepedraatéacasadosKeskin, impelidopelaculpaepelapromessade felicidade.Füsunacabariasendominha,pensava;eeufizerabememmantê-laforadosfilmes.Àsvezesmeocorriaquehaviaentrenósdoisumaconsciênciacompartilhadadaderrota,oqueme

deixavaaindamais felizqueoamor.Semprequeeu tinhaessesentimento, tudo—os raiosdosolvespertinonasruasdacidade;ocheirodepoeira,velhiceemofoqueemanavadosvelhosedifíciosdeapartamentosocupadospelosgregos;osvendedoresdefígadofritoepilafcomgrão-de-bico;abola

Page 291: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

de futebol que quicava em meio aos meninos que jogavam na rua calçada de pedra; o aplausozombeteiroquandoeudevolviaumabolaperdidaparaelesenquantodesciaparaacasadosKeskin—,tudonomundomedeixavafeliz.Naquele tempo, todo mundo na cidade— fosse no local das filmagens ou nos corredores da

Satsat, nos cafés ou na mesa de jantar dos Keskin— falava das taxas exorbitantes de lucro quevinhamsendooferecidasporoportunistasque seestabeleciamcomo“banqueiros”.Coma inflaçãopróximadoscemporcento,todomundoqueriainvestirseudinheiroemalgumlugar.Poucoantesdenossentarmosparajantar,TarıkBeymecontouquenocafépróximoqueàsvezeselefrequentavahaviaalgumaspessoasquetinhamcompradoouronobazarcoberto,eoutrosqueentregavamsuaseconomiasabanqueirosquelhesprometiamumretornodeatécentoecinquentaporcentoaoano,mas que todos os demais estavam vendendo seu ouro e fechando suas contas de banco; tímida edesconfortavelmente,elequeriaminhaopiniãodeempresário.Comafilmagemeotoquederecolher,Feridunquasenuncaestavaemcasa,enãodavaaFüsun

nenhumapartedodinheiroqueeuinvestianaLimonFilmes.Foiemtornodessaépoca(cercadeummês antes eu tinha subtraídoda casaumvelhobaralhopertencente aTarıkBey,mal encobrindomeu furto) que parei de trocar por novas as coisas que levava, preferindo deixar dinheiro em seulugar.Eu sabia que Füsun lia a sorte naquelas cartas para passar o tempo.QuandoTarık Bey jogava

bezique com tia Nesibe, ele usava um baralho diferente, assim como tia Nesibe quando, muitoocasionalmente,jogavacartascomumconvidado(pôquercomsementesouseteemeio).Muitasdascartasdobaralhoque“roubei”estavamcomumapontadobradaemanchadas;outrasestavamtortasoudobradas.Füsunachavagraçaemadmitirque,comoconseguiareconheceralgumasdessascartaspor suasmarcas emanchas, conseguia fazer sua sorte assumir o rumo que quisesse. Eu cheiravaaquelascartas,aspirandoamisturadeperfume,mofoepoeirapeculiardascartasantigas,captandooaromadasmãosdeFüsun.Obaralhoe seucheiro faziamminhacabeçagirar,e,como tiaNesibetinhapercebidomeuinteresse,enfieiascartasnobolsoàplenavista.“Minhamãetentalerasortenascartas,masnuncadácerto”,disseeu.“Estebaralhoparecetrazer

resultadosmais favoráveis.Depoisqueelaaprendera reconhecerasmanchaseasdobras, talvezasortedaminhamãemelhore.Elaandamuitodesanimada.”“PorfavormandelembrançasminhasàirmãVecihe”,dissetiaNesibe.DepoisqueprometicomprarumbaralhonovonalojadeAlaaddinemNişantaşı,elapassoumuito

temporecomendandoque“eunemmedesseàqueletrabalho”.Quandoinsisti,elaadmitiuquecertotipodebaralhonovotinhachamadosuaatençãoemBeyoğlu.Füsun estavanoquarto dos fundos.Commuita vergonha, tirei um rolo de dinheiro dobolso e

escondinaprateleira.“TiaNesibe,fazofavordecomprardoisdessesbaralhos,umparavocêeoutroparaaminhamãe?

Elavaificarfelizdeganharumbaralhonovo,sevierdestacasa.”“Claro”,dissetiaNesibe.Dezdiasmaistarde,enovamentesentindoumaestranhavergonha,deixeioutrapilhadenotasno

lugardeondeeutiraraumfrasconovodeágua-de-colôniaPe-Re-Ja.

Page 292: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Durante os primeiros meses, eu tinha certeza de que Füsun não podia imaginar que eu vinhatrocando objetos por dinheiro. Na verdade, faziamuitos anos que eu vinha subtraindo frascos deágua-de-colônia da casa dos Keskin, acumulando-os no apartamento do edifícioMerhamet. Maseram frascos vazios ou quase vazios, e assimde qualquermaneira logo seriam jogados fora. Só ascriançasquebrincavamcomelesnaruatinhamalguminteresseporaquelesfrascosvazios.Sempre que me ofereciam água-de-colônia depois do jantar, eu a esfregava com ansiedade e

esperançanasmãos, na testa e nas faces, como seme cobrisse com algumunguento consagrado.QuandoacolôniaeraoferecidaaFüsunouaseuspais,euobservavaencantadoenquantocadaumseentregavaaseusprópriosrituais.Semjamaisdespregarosolhosdatelevisão,TarıkBeydesatarraxavalentaeruidosamenteatampapesadadofrasco,etodossabíamosquedepois,nointervalocomercialseguinte,eleentregariaofrascoaFüsundizendo:“Vejasealguémquerumpouco”.PrimeiroFüsundespejava água-de-colônia nas mãos do pai, que a esfregava nos pulsos com um empenhoterapêutico, inalando profundamente a fragrância, como alguém que se recuperasse de falta defôlego, alívio renovado pelo resto da noite levando de vez em quando ao nariz as pontas de seuslongosdedos.TiaNesibepegavaapenasumaspoucasgotase,comgestosafetadosquelembravamminhamãe, fazia como se estivesse esfregandoum sabonete imaginário entre aspalmasdasmãos.Quando ele estava em casa, era Feridun quem pegavamais água-de-colônia quando suamulheroferecia,apresentando-lheasmãosemconchacomoumhomemqueestivessemorrendodesedeeespirrandoacolônianorostocomosequisesseengoli- la.Essavariedadedegestosmelevouasentirque a água-de-colônia tinhaum significadoque ia alémde seuperfumeagradável ede seu efeitorefrescante(especialmenteporqueosmesmosrituaisserepetiamnasnoitesfriasdeinverno).Comoaágua-de-colôniaqueoassistentedomotoristaofereciaacadapassageironoiníciodeuma

viagemdeônibus,anossanoslembravadeque,todavezquenosreuníamosemtornodatelevisão,pertencíamos uns aos outros, que compartilhávamos o mesmo destino (um sentimento tambémsugerido pelo telejornal da noite), que, embora estivéssemos reunidos na mesma casa para vertelevisãotodanoite,avidaeraumaaventura,ehaviacertabelezaemfazerascoisasjuntos.Eu ficava impacientequandochegavaaminhavez,esperandoqueFüsundespejasseaágua-de-

colônia em minhas mãos, para que os nossos olhos se encontrassem. Trocávamos um olharprofundo, como duas pessoas que tivessem se apaixonado à primeira vista. Quando eu sentia operfume da água-de-colônia em minhas mãos, nunca olhava para elas, mas continuava a olharprofundamente nos olhos de Füsun. Às vezes a intensidade, a determinação e o amor visíveis nosmeusolhosafaziamsorrir,umasugestãodesorrisoquecustavaasedesmancharnoscantosdeseuslábios.Naquelesorrisoeuviaumaternuraao ladodazombariadespertadapormeuardor,minhasvisitasnoturnaseaprópriavida,masissonãomecausavasofrimento.Naverdade,sentiamaisamorporeladoquesempre,eassimficavacomvontadedelevaraquelaágua-de-colônia,aquelefrascodeAltınDamla,GotasdeOuro,paracasacomigo,ealgumasvisitasmaistarde,quandoofrascoestavaquase vazio, eu caminhava atémeucapote, pendurado ao ladodaporta, e semdisfarce enfiava ofrascoemmeubolso.DuranteasfilmagensdeVidaspartidas,enquantocaminhavaentreocinemaPerieÇukurcuma

em tornodas setedanoite,poucoantesdeanoitecer, às vezeseume sentiacomo se revivesseum

Page 293: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

fragmentodeumavidaanterior.Naprimeiravida,queagoraeurepetiaemcadadetalhe,nãotinhahavido grande sofrimentonemqualquer grande alegria, e umanegramelancolia escureciaminhaalma.Talvezfosseporeutervistoofinaldahistóriaesaberquenãomeesperavaumagrandevitórianemumabem-aventurançaextraordinária.SeisanosdepoisdemeapaixonarporFüsun,eunãoeramais alguém que via a vida como uma aventura agradável, indeterminadamente plena depossibilidades: estava à beira deme transformar numhomem triste e desalentado.Aos poucos eratomadopelomedodenãoterfuturoalgum.“Füsun,vamosolharacegonha?”,perguntavaeuduranteaquelasnoitesdeprimavera.“Não,nemtrabalheineladepoisdaúltimavez”,respondiaFüsundesanimada.CertaocasiãotiaNesibenosinterrompeuparadizer:“Ah,comovocêpodedizerumacoisadessas?

Ora,daúltimavezqueeuvi,essacegonhalevantouvoodanossachaminéesubiumuitoaltonocéu—KemalBey,deondeelaestáagoradáparaverquasetodaaIstambul”.“Eubemquegostariadeolhar.”“Hojenãoestoucomvontade”,diziaàsvezesFüsun,comtodaahonestidade.Eentãoeu sentiaopulsodocoraçãodeTarıkBey,emseudesejodeprotegera filhaeemsua

tristeza.Doía-meque,quandoproferiaessaspalavras,Füsunestivessefalandonãosódaquelanoite,masdobecosemsaídaqueeratodasuavida,efoientãoquedecidiparardefrequentarasfilmagensdeVidaspartidas.ArespostadeFüsuntambémserviraparalembraraguerraqueelavinhatravandocontramimhaviamuitosanos;nosolharesdetiaNesibe,eupodiaverqueelaestavapreocupadanãosó com Füsun, mas também comigo. As dores e as preocupações da vida tinham lançado umasombra sobrenossoscorações,nãomenosqueasnuvenscarregadasdechuvaqueseacumulavamsobreTophanetinhamescurecidoocéu;sentindoisso,mergulhávamosnumsilêncioquesópodiaserremediadoporumadetrêsformas:1.Víamostelevisão.2.Vertíamosmaisrakıemnossoscopos.3.Acendíamosmaisumcigarro.

Page 294: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

68.4213pontasdecigarro

Durantemeusoitoanosdefrequênciaaos jantaresdosKeskin,acumulei4213pontasdecigarrosfumados por Füsun. Cada uma delas tinha tocado seus lábios rosados e entrado em sua boca,algumasatéatingindosualínguaeficandoumedecidas,comoeudescobriaaoencostarapontadodedo no filtro logo depois que ela apagava o cigarro; as pontas, avermelhadas por seu adorávelbatom,traziamaimpressãoúnicadeseuslábiosemummomentocujamemóriaestavacarregadadeangústiaoufelicidade,oqueastransformavaemartefatosdeumaintimidadesingular.DurantenoveanosFüsun fumoucigarrosdamarcaSamsun,pelaqual troqueimeusMarlboros logodepoisquecomeceiairjantarnacasadafamíliaKeskin.EucostumavacomprarMarlboroLightdevendedoresdetômbolaoucontrabandistasdasruassecundárias,emelembrodeumaconversacomFüsunumanoite discutindo comoMarlboro Light e Samsun eram cigarros de gosto forte e sabor parecido.FüsundiziaqueoSamsunprovocavamais tosse,maseudiziaquenão tínhamosmaneiradesaberquantosvenenoseoutrassubstânciasquímicasosamericanosacrescentavamaseutabaco,equeerapossívelqueoMarlborofossemaisnocivo.TarıkBeyaindanãosesentaraàmesaquando,trocandoumolharprofundo,nósdoispuxamosnossosmaçosoferecendoumcigarroaooutro.PoroitoanoseuacompanheiFüsunfumandoumSamsunatrásdooutro,mas,comonãodesejodarmauexemploàsgerações futuras, não irei deter-me commuito amor nesses detalhes sedutores que figuram comtamanhodestaqueemlivrosefilmesantigos.Depoisqueeramacesos,nossoscigarrosMarlboro falsos,produzidosnaRepúblicaSocialistada

BulgáriaecontrabandeadosparaaTurquiaemnaviosebarcospesqueiros,queimavam—comooMarlboroverdadeirofabricadonosEstadosUnidos—atéofim.JáoscigarrosSamsun,acertaaltura,produziam uma chama e se extinguiam bem antes. O tabaco era grosseiro e úmido,insuficientementepicado,eoscigarrosmuitasvezescontinhamoquepareciamlascasdemadeira,bemcomopartesaindanãosecasdetalosefolhasdeveiosgrossos.Poressemotivo,Füsuntinhaocostumedeamaciaroscigarrosantesdefumarrolandocadaumdelesentreosdedos,ecomotempoacabeiadquirindoomesmohábitoderolarmeuscigarrosentreosdedos,exatamentecomoela,antesde acendê-los, e adorava quando nossos olhos se encontravam no momento em que ambos nosdedicávamosaessegestual.Durante meus primeiros anos com os Keskin, Füsun fumava de um modo que sugeria uma

tentativaparcialdeesconderohábitodopai.Cobrindoseucigarrocomapalmadamãoemconcha,enuncausandoocinzeiroKütahyaqueseupaieeuusávamos,batendosuascinzasnopiresdeumaxícaradecafé,“semninguémver”.Seupai,tiaNesibeeeunãonospreocupávamoscomorumoquenossa fumaça tomava, mas Füsun só exalava a fumaça virando a cabeça para a direita, como sepreferisse sussurrar um segredo ao ouvido de uma colega sentada a seu lado, dirigindo a nuvemaceleradadefumaçaazul-escuraaumlugardistantedamesa.Euadoravaverseurostoanuviadodepânico, culpa e vergonha simulada: lembrava nossas aulas de matemática, e eu achava nessesmomentosquehaviadeamá-laatéofimdaminhavida.Aadesãoansiosaàsformasdedeferênciaqueassociamosàsfamíliastradicionais—sentarcomas

Page 295: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

costas retas, jamais cruzar as pernas ou fumar e beber na frente do pai— foi com o tempodesaparecendo aos poucos.Não há dúvida de que Tarık Bey via sua filha fumar,mas não reagiacomosepodiaesperardeumpaitradicional,dandoaimpressãodesecontentarcomosoutrosgestosa que Füsun recorria para demonstrar seu respeito. Era uma grande alegria estudar os inúmerosrefinamentos sociais de que os antropólogos parecem ter tão pouca compreensão, e maisespecialmenteessesrituaisquepermitiamàsfamílias“fazerdeconta”quemantinhamumrespeitoàtradição,aomesmotempoemquerompiamcomela.Essaculturade“fazdeconta”nãomeparecianadadúplice:todavezqueeuviaFüsunfazeressesgestosdoceseadoráveis,eulembravaquesómeerapermitidovisitarosKeskinporquetodavezqueeuchegavaàcasatodos“fazíamosdeconta”queeu não ia visitá- los na condição de pretendente, como ocorria na realidade. Eu podia estar comFüsunporqueagiacomosefosseummeroparentedistanteemvisita,emboramuitofrequente.Quandoeunãoestavanacasa,Füsunfumavaseuscigarrosquaseatéo filtro,comoeuviapelas

pontasqueeladeixavanos cinzeiros antesdaminhachegada.Eu sempre sabiaquais pontas eramdela, não pelamarca, mas pelamaneira como as esmagava no cinzeiro, que sempre refletia seuestadodeespírito.Quandoeuvinhajantarepassaralgumashorascomeles,elafumavaseuscigarroscomoSibele

suasamigas fumavamseuselegantescigarrosamericanos“ultralight”, longose finos— sem jamaisfumartodoocigarro,masapagando-oquandochegavamaisoumenosàmetade.Àsvezeselaesmagavaapontacomraivaevidente,àsvezescomimpaciência.Euaviraapagarum

cigarrocomraivamuitasvezes,oquesempremedeixavainquieto.Haviadiasemqueapagavaseuscigarros contra a superfície do cinzeiro comuma série de batidas curtas e insistentes. E às vezes,quandoninguémestavaolhando,elao apertavacom forçaemuitodevagar, como seesmagasseacabeça de uma serpente, e eu tinha a impressão de que o ressentimento acumulado em sua vidainteira entrava em ação contra aquela ponta de cigarro. Às vezes, enquanto via televisão ouacompanhavaaconversaemtornodamesadojantar,quandoseuespíritoestavaclaramenteausentedali, ela apagava o cigarro sem sequer virar a cabeça para olhar.Muitas vezes, quando precisavaliberarumadasmãosparapegarumacolherouumajarramaior,euaviaapagá-locomumúnicomovimento rápido. Quando estava alegre ou satisfeita, às vezes apertava o que restava do cigarrocontra o cinzeiro, apagando-o com uma pressão súbita de seu dedo indicador, como se tentassematarumanimalsemlhecausardor.Quandotrabalhavanacozinha,faziaomesmoquetiaNesibe,tirandoocigarrodabocaesegurando-oporuminstantedebaixodatorneiraabertaantesdeatirá- lonalatadelixo.Graças a essa variedade de métodos, cada cigarro que deixava sua mão tinha uma forma

determinadaeumaalmaprópria.DevoltaaoapartamentodoedifícioMerhamet,eutiravaaspontasdobolsoparaumexamedetalhado,comparandocadaumadelasaumaoutraforma.Porexemplo,algumas eu via comopessoas de rosto enegrecido com a cabeça e o pescoço esmagado, o troncoentortado pelo mal que outros lhes haviam causado; ou enxergava nelas estranhos e assustadorespontosdeinterrogação.Àsvezescomparavaaquelaspontasdecigarrosalagostinsouàschaminésdasbalsas da Linha da Cidade; às vezes as via como pontos de exclamação, queme recomendavamcuidado como perigo de que outra era umpresságio; às vezes era só lixomalcheiroso.Ou as via

Page 296: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

comomanifestaçõesdaalmadeFüsun,atémesmofragmentosdelaprópria,e,enquantopassavadelevealínguapelosvestígiosdebatomdeixadosnofiltro,perdia-meemcomunhãocomela.Quando os visitantes domeumuseu percebemque, debaixo do local onde cada uma das 4213

pontasdecigarroestácuidadosamentepresaàparedeporumalfinete, indiquei adataemque foirecuperada, espero que não se impacientem, achando que estou abarrotando as vitrines comtrivialidades dispensáveis: cada ponta de cigarro, a seu modo único, registra as emoções maisprofundasdeFüsunnomomentoemqueelaoapagou.Ver,porexemplo,astrêspontasdecigarroquecoleteiem17demaiode 1981,quandoas filmagensdeVidaspartidas começaramnocinemaPeri: todasestãomuito tortas,dobradas sobresimesmasecompactadas,evocandoperfeitamenteodesconcertoterrívelquesentidiantedosilênciodeFüsunnaqueledia,desuarecusadedizeroqueaincomodavaedesuastentativasvãsdefingirquenadaestavaerrado.Quantoaesseoutropardepontasbemesmagadas,umadelaspertenceànoiteemquevimosum

filmechamadoFalsafelicidade,transmitidopelatelevisãomaisoumenosnaquelaépoca,comnossoamigo Ekrem do Pelür Bar (mais conhecido como Ekrem Güçlü, o famoso astro que fizera nopassadoopapeldoprofetaAbraão)nopapeldeherói.Füsunapagouessecigarrologodepoisqueelerecitou“Omaiorerrodavida,Nurten,équerermaisetentarserfeliz”,enquantoNurten,suaamadacaídanapobreza,baixavaosolhosemsilêncio.AlgumasmanchasnaspontasdecigarromaisretasvêmdosorvetedecerejaqueFüsungostavade

tomarnasnoitesdeverão.KamilEfendi,osorveteiro,passavacomseucarrinhodetrêsrodaspelasruascalçadasdepedradeTophaneeÇukurcumanasnoitesdeverão,gritando“Soooooooorvete!”etangendo lentamente sua sineta;no inverno,usavaomesmocarrinhoparavenderhelva.Certa vezFüsunmedissequetinhavistoocarrinhodeKamilEfendisendoconsertadoporBeşir,ohomemaquemlevavasuabicicletaquandoerapequena.Quandoolhoparaoutradupladepontasdecigarroeleioasdatasregistradasabaixodelas,penso

emoutrasnoitesquentesdeverão,emberingelafritacomiogurte,emficardepéàjanelaaoladodeFüsun,elacomumcinzeirinhonamão,batendorepetidamenteacinzacomaoutra.SemprequeFüsun conversava comigo em frente à janela, assumia a mesma pose, e eu a imaginava como aconvidadadeumafestaelegante.Sequisesse,podiajogarascinzasnarua,comoeufazia,aexemplodetodososhomensdaTurquia,ouapagarocigarronopeitorildajanelaantesdeatirá- locomoumdardopelajanela;podiaatéjogá-loforaaindaaceso,comumgestorápidodamão,paravê-lodesceremespiralpelanoite escura.Masnão,Füsunnunca fazianadadisso, e eu seguia seuexemplodecomedimentoeelegância.Alguémquenosvissedelongepoderianostomarporumcasalenvolvidonumaconversaeducadanumpaíseuropeu,ondeoshomenseasmulherespodiamficaràvontadejuntos;podianosimaginarnumafestaesuporquetínhamosnosrecolhidoaumcantodiscretoparanos conhecermos melhor. Não nos olhávamos nos olhos; olhávamos pela janela aberta, rindoenquantoconversávamossobreofilmequetínhamosacabadodevernatelevisão,oureclamávamosdocaloropressivodoverão,ou falávamosdascriançasquebrincavamdeesconde-escondena ruaabaixodenós.NesseinstanteumabrisalevesopravadoBósforo,trazendoumaromafortedealgas,quesemisturavaaoperfumedominantedemadressilva,àfragrânciadoscabelosedapeledeFüsun,eàagradávelfumaçadessecigarro.

Page 297: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Às vezes, no momento em que Füsun apagava seu cigarro, nossos olhos se encontravaminesperadamente.Seelaestivessevendoumahistóriadeamor,ouabsortanasucessãoinfindáveldeacontecimentoschocantesnumdocumentáriosobreaSegundaGuerraMundial,comumamelodiafúnebretocandoaofundo,Füsunapagavaseucigarrosemcerimôniaesemmostrarmuitoempenho.Entretanto,quando,comonocasodessaamostra,nossosolhosporacasoseencontravam,umafaíscaseacendiaentrenós,atingindoaosdois,quandorelembrávamosaomesmotempoporqueeuestavasentado à suamesa, e seu cigarro apagado refletiria a confusão específicaque ela estava sentindo,conferindoassimumaformaincomumàponta.Ouvindoumnavioapitaraumagrandedistância,euimaginavaentãoouniversoeminhavida,damaneiraquepoderiamservistosporalguémabordodaembarcação.Emcertasnoites eu só levava comigoumapontade cigarro, enoutras levava várias; depois,no

apartamentodoedifícioMerhamet,aosepará-lasumaauma,eurelembravavários“momentos”dopassado.De todososobjetosqueeucolecionava,eramoscigarrosque,ameuver,correspondiammaisdepertoaosmomentosaristotélicos.Aessaalturaeunemprecisavamaismanusearosobjetosacumuladosnoapartamentodoedifício

Merhamet;bastavavê-losumavezpararelembraropassadoqueFüsuneeutínhamosvividojuntos,asnoitesquetínhamospassadoladoaladoàmesadejantar.Euassociavacadaumdaquelesobjetos—umsaleirodeporcelana,umatrenaemformadecachorro,umabridordelatasquepareciauminstrumentode tortura,umagarrafadoóleodegirassolBatanayquenunca faltavanacozinhadosKeskin—aummomentoparticular,e,àmedidaqueosanospassavam,pareciaqueessesmomentosrelembrados se expandiam e se fundiamna perpetuidade. Assim, olhar para qualquer dos objetosreunidos no apartamento do edifício Merhamet, mesmo que apenas para lembrar-me deles, eracomo olhar para as pontas de cigarro: cada um por sua vez, eles rememoravam as partículas daexperiência até eu conseguir evocar a realidade completa de estar sentado àmesa do jantar comFüsunesuafamília.

69.Àsvezes

Àsvezesnãofazíamosnadaalémdeficarmosalisentadosemsilêncio.ÀsvezesTarıkBey,cansadodoprograma—todosnósnoscansávamosàsvezes—começavaalerojornalcomocantodoolho.Às vezes um carro descia a ladeira ruidosamente, tocando a buzina, e nos calávamos enquanto oouvíamospassar.Àsvezeschoviaeficávamosouvindoasgotasbatendonavidraça.Àsvezesdizíamos:“Quecalorestáfazendo”.ÀsvezestiaNesibe,esquecendoquetinhadeixadoumcigarroqueimandono cinzeiro, acendia outro na cozinha. Às vezes eu ficava olhando discretamente para a mão deFüsun por quinze ou vinte segundos, e sentia crescer minha adoração. Às vezes, durante oscomerciais,umafigurademulheraparecianatelaenosapresentavaalgoqueestávamoscomendoàmesa naquele exato momento. Às vezes ouvia-se uma explosão ao longe. Às vezes tia Nesibe selevantavadamesaparajogarmaisumpoucodecarvãonafornalha,ouàsvezeseraFüsunquemofaziaporela.ÀsvezeseuachavaquenaminhavisitaseguintedevialevarumapulseiraparaFüsun,

Page 298: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

emvezdeumprendedordecabelo.Àsvezesmeesqueciadotemadofilmequeestávamosvendoe,emboracontinuasseaassistir,ficavapensandonosmeustemposdeescolaprimáriaemNişantaşı.Àsvezes tia Nesibe dizia: “Por que não preparo um chá de tília?”. Às vezes Füsun bocejava tãolindamentequeeuachavaqueela tinhaseesquecidodomundointeiroequepuxavadofundodesuaalmaumavidamais tranquila,comose tirasseáguadeumpoçonumdiaquentedeverão.Àsvezeseudiziaamimmesmoquenãodeviaficarlánemmaisumminuto,quedeviamelevantareirembora.Àsvezes,depoisqueobarbeiroquetrabalhavaatétardenalojadotérreodooutroladodarua sedespediadoúltimo freguês,elebaixavaacortinademetalmuitodepressa,eno silênciodanoiteoecoreverberavaportodaavizinhança.Àsvezesfaltavaágua,epassávamosdoisdiassemumagota sequer.Às vezespercebíamosoutracoisaalémdechamasardendono interiorda fornalhadecarvão.Àsvezeseuvinhajantarduasnoitesemseguida,porquetiaNesibetinhadito:“Vocêgostoutantodosmeus feijões comazeite, entãopor quenão volta amanhã, antes que comam tudo?”.ÀsvezesasconversastratavamdaGuerraFriaentreosEstadosUnidoseaUniãoSoviética—osnaviossoviéticosquepassavampeloBósforo tardedanoite,eos submarinosamericanosqueinfestavamomar de Mármara. Às vezes tia Nesibe dizia: “Ficou muito quente agora à noite!”. Às vezes euconseguiaver,pelaexpressãodeFüsun,queelaestavasonhandodeolhosabertos,edariatudoparavisitara terrade sua imaginação,emboraminhavida,minha letargiaeatéamaneiracomoeumesentavanacasadosKeskinmeparecessemumcasoperdido.Àsvezesosobjetosdamesalembravammontanhas, vales, colinas, depressões e planaltos. Às vezes alguma coisa engraçada acontecia natelevisão, e todos começávamos a gargalhar aomesmo tempo.Às vezesparecia ridícula amaneiracomo todos ficávamos absorvidos em qualquer coisa que acontecesse na tela. Às vezes eu meincomodavacomamaneiracomoAli,ofilhodovizinho,sentava-senocolodeFüsuneseaninhavajuntoaela.ÀsvezesTarıkBeyeeudiscutíamososcaprichosdasituaçãoeconômica,dehomemparahomem,numavozbaixaque sugeriaconspirações, tramase truques sujos.Às vezesFüsun subiaedemorava para voltar, o queme perturbava. Às vezes o telefone tocava e era engano. Às vezes tiaNesibedizia: “Terça-feiraque vemvou fazer abóboracaramelada”.Às vezesumbandode trêsouquatrohomensdesciacorrendoarua,gritandoecantandorefrõesdastorcidasdefutebolenquantoseguiamna direção deTophane. Às vezes eu ajudavaFüsun a alimentar a fornalha de carvão. Àsvezeseuviaumabarataatravessarcorrendoopisodacozinha.Àsvezeseu sentiaqueFüsun tinhatiradoochineloporbaixodamesa.Àsvezesovigianoturnoapitavabememfrenteàporta.ÀsvezesFüsunse levantavaparaarrancaraspáginasesquecidasdoSaatlıMaarifTakvimiumaauma,eàsvezesainiciativaficavaporminhaconta.Àsvezes,quandoninguémestavaolhando,eupegavamaisumacolherdehelvacomsemolina.ÀsvezesaimagemdatelevisãoficavaborradaeTarıkBeydizia:“Pode ver se consegue melhorar, minha filha?”, e Füsun mexia num botão atrás do aparelho,enquantoeuobservavaascostasdela.Àsvezeseudizia:“Voufumarmaisumcigarroedepoisvouembora”.ÀsvezeseumeesqueciatotalmentedoTempoemeenrodilhavano“agora”comosefosseumacamamacia.Àsvezeseumesentiacomosepudessevercadamicróbio,insetoeparasitaalojadono tapete. Às vezes Füsun ia até a geladeira entre um programa e outro e pegava água gelada,enquanto Tarık Bey ia ao banheiro no andar de cima. Às vezes preparavam abobrinha, tomate,beringela ou pimentões recheados emmanteiga clarificada e comiam duas noites em seguida. Às

Page 299: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

vezes, quando acabávamos de jantar, Füsun levantava-se da mesa, ia até a gaiola de Limon econversava com ele como se fosse um amigo, e eu fazia de conta que na verdade estava falandocomigo.Àsvezes,nasnoitesdeverão,mariposasentravamvoandopelajanelaabertaeesvoaçavamcada vezmaisdepressa em tornodo lustre.Às vezes tiaNesibecontava algummexericoantigodavizinhançaquesóouviraagora,contando-nos,porexemplo,queopaideEfe,oeletricista,eraumbandido famoso. Às vezes eu esquecia onde estava e achava que estávamos juntos a sós; perdia anoção emostrava todomeu amor a Füsun, contemplando-a amorosamente pormuito tempo. Àsvezesumcarropassavatãodepressaquesuapresençasóeradenunciadapelotremordosvidrosdajanela.ÀsvezesouvíamosaconvocaçãoparaasprecesvindadamesquitadeFiruzağa.Àsvezes,semmotivo aparente,Füsun levantava-sedamesa e ia até a janelaquedavapara a ladeira, e ficava láparadamuitotempo,comoseesperasseporalguémdequemsentiamuitasaudade,oquemedeixavadecoraçãopartido.Àsvezes,enquantovíamostelevisão,euimaginavaalgumacoisamuitodiferente,porexemplo,queéramospassageirosquetinhamseconhecidonorestauranteabordodeumnavio.Às vezes, nas noites de verão, depois de borrifar todo o andar de cima com Temiz İş, TrabalhoLimpo,tiaNesibedesciaasescadascomoinseticida,paradar“umaespirradarápida”nosaposentosdebaixoematarmaismoscas.ÀsvezestiaNesibefalavasobreSüreyya,aex-rainhadoIrã,edesuaangústiaquandooXádivorciou-sedelaporsuaincapacidadedelhedarumherdeiro,edesuavidanaalta sociedadedaEuropa.ÀsvezesTarıkBeyexclamava:“Comoéqueapresentamdenovonatelevisãoumdesastrecomoessesujeito?”.ÀsvezesFüsunapareciadoisdiasseguidoscomamesmaroupa, embora a mim ela parecesse diferente. Às vezes tia Nesibe perguntava: “Alguém quersorvete?”.Àsvezeseuviaalguémnoapartamentodooutroladodaruaindoatéajanelafumarumcigarro. Às vezes comíamos enchovas fritas. Às vezes eu observava que os Keskin acreditavamsinceramentequehaviajustiçanomundo,equeosculpadosacabavampunidos,senãonestavida,então na próxima. Às vezes passávamosmuito tempo calados. Às vezes não éramos os únicos: eracomo se toda a cidade estivesse em silêncio. Às vezes Füsun dizia: “Papai, por favor não fiqueremexendoassimacomida!”,eemseguidaeumesentiacomoseelesnemsequerpudessemficaràvontadeem suaprópriamesa,porminhacausa.Às vezes euachavaexatamenteooposto, e ficavaencantadoaoperceberque todospareciamàvontade.Às vezes,depoisdeacender seucigarro, tiaNesibe se envolvia tantocomoquepassavana televisãoque se esqueciade apagaro fósforoe eleacabava queimando seus dedos. Às vezes comíamosmassa ao forno. Às vezes um avião voava porcimadenósnocéunegro,rumandoparaoaeroportodeYeşilköy.ÀsvezesFüsunusavaumablusaquerevelavaseulongopescoçoeumpoucodafendaentreosseios,evertelevisãoeratudoqueeuconseguiafazerparanãoolharfixamenteparaabrancuradeseulindocolo.ÀsvezeseuperguntavaaFüsun:“Comoestáindoofilme?”.Àsvezesnatelevisãodizia“Amanhãvainevar”,masnãonevava.Àsvezesumpetroleirotocavaseuapitotristeeansioso.Àsvezesouvíamostirosaolonge.Àsvezesovizinho ao lado batia a porta da frente com tanta força que as xícaras na prateleira atrás demimchacoalhavam. Às vezes o telefone tocava e Limon, confundindo seu toque com uma canária,começavaacantardealegria,e todosríamos.Àsvezesumcasalvinhavisitara família,eeu ficavaacanhado. Às vezes, quando o coro feminino da AssociaçãoMusical deÜsküdar cantava cançõestradicionaisturcasnatelevisão,TarıkBeycantavajuntosemdeixarsuapoltrona.Àsvezesdoiscarros

Page 300: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

paravamumdefrenteparaooutronaruaestreita,e,sendoosdoismotoristasteimososdemaisparadarpassagem,começavaumadiscussãoemquexingamentoseramtrocadose,empoucotempo,osdoisdesciamdeseuscarrosparabrigar.Àsvezesfazia-seumsilênciomisteriosonacasa,narua,emtodoobairro.Àsvezeseulhestraziapeixesalgado,alémdefolheadosdequeijoepeixedefumado.Àsvezesdizíamos:“Hojeestáfazendomuitofrio,nãoé?”.Àsvezes,nofinaldojantar,TarıkBeyenfiavaamãonobolsocomumsorrisoetiravadeláalgumasbalasFerahdehortelã,queofereciaatodosnós. Às vezes dois gatos à porta do edifício começavam a miar loucamente, e depois chiavam ecomeçavamatrocarunhadas.Àsvezes,duranteojantar,Füsunusavaosbrincosouobrochequeeulhetrouxeranaquelediamesmo,eeulhedizia,numavozperdida,comoelatinhaficadobem.Àsvezesficávamostãoafetadospelosbeijosepelosreencontrosemumahistóriadeamorqueeracomosetivéssemosesquecidoondeestávamos.ÀsvezestiaNesibedizia:“Puspoucosalnacomida,então,sealguémquisermais,ésóusarosaleiro”.Àsvezesavistávamosrelâmpagosaolonge,etrovejava.Àsvezes,enquantovíamosumfilme,umseriadoouumcomercial,apareciaalguémqueconhecíamosdo Pelür, alguém de quem tínhamos zombado, e eu fazia o possível para trocar um olhar comFüsun,maseladesviavaosolhos.Àsvezes faltavaenergiaevíamosasbrasasdenossoscigarrosnoescuro.Àsvezesalguémpassavapelaportadaentradaassobiandoumamelodiaconhecida.ÀsvezestiaNesibedizia:“Ah, já fumeidemaishojeànoite”.Àsvezesmeusolhosse fixavamnopescoçodeFüsun,eeupassavaorestodanoitesemtornaraolharparaomesmoponto,semmuitadificuldade.Às vezes todos nos calávamos de repente, e tia Nesibe dizia: “Em algum lugar alguém acaba demorrer”.ÀsvezesTarıkBeynãoconseguiafazerumdeseusisqueirosfuncionar,eeupercebiaqueestavanahoradelhetrazerumisqueironovodepresente.ÀsvezestiaNesibetraziaalgumacoisadageladeiraenosperguntavaoquetinhaacontecidonofilmeenquantoelaestavalonge.Àsvezes,dooutroladodaruaDalgiç,ouvíamosumabrigaemfamília,eosgritosenquantoomaridosurravaamulher nos deixavam perturbados. Às vezes, nas noites de inverno, ouvíamos o vendedor debozatocando suacampainhaegritando“Vefaa genuína!”aopassarpelaporta, eeu tinhao impulsodetomarumpouco.ÀsvezestiaNesibemedizia:“Hojevocêestámuitoalegre!”.Àsvezeseuprecisavame esforçarmuito para não estender amão e tocar Füsun. Às vezes, especialmente nas noites deverão,sopravaumventoderajada,batendoasportas.ÀsvezeseupensavaemZaim,emSibeleemtodososmeusvelhosamigos.Àsvezesmoscaspousavamemnossacomidaàmesa,aborrecendotiaNesibe.ÀsvezeselapegavaáguamineralnageladeiraparaTarıkBeyemeperguntava:“Querumcopotambém?”.Àsvezes,antesmesmodasonzehoras,ovigianoturnopassavaapitando.Àsvezeseueratomadoporumdesejoinsuportáveldedizer“Euteamo!”quandoomáximoquepodiafazereraacenderocigarrodeFüsun.Àsvezeseupercebiaqueos lilasesque tinha trazidonaminhaúltimavisitaaindaestavamnumvaso.Àsvezesemmeioaumsilêncioalguémnumadascasasvizinhasabriauma janela e jogava alguma coisa na rua. Às vezes tiaNesibe dizia: “E agora, quem vai comer aúltimaalmôndega?”.Àsvezes,vendoosgeneraisnatelevisão,eumelembravadosmeustemposnoExército. Às vezes eu ficava totalmente convencido de quenão era a única pessoa inconsequente:todos nós éramos. Às vezes tiaNesibe dizia: “Quem adivinha a sobremesa que teremos hoje?”. ÀsvezesTarıkBey tinhaumacessode tosseeFüsunse levantavapara lhe trazerumcopod’água.ÀsvezesFüsunusavaumbrochequeeucompraraparaelaanosantes.Àsvezeseucomeçavaapensar

Page 301: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

queoquepassavanatelevisãotinhaumsubtexto.ÀsvezesFüsunmeperguntavaalgumacoisasobreumator,umluminarliterárioouumprofessorquevíamosnatelevisão.Àsvezeseuajudavaalevarospratossujosparaacozinha.Àsvezeshaviaumsilêncioemtornodamesa,porqueestávamos todoscom a boca cheia de comida. Às vezes um de nós bocejava, de algummodo induzindo todos osdemaisafazeromesmo,atéque,todoscontagiados,caíamosnarisada.ÀsvezesFüsunseenvolviaatalpontocomo filmeda televisãoqueeudesejava seroheróidaquele filme.Àsvezesocheirodecarnegrelhadapersistianacasaanoite inteira.Àsvezeseupensavaqueeramuitíssimofeliz, sódeestar sentadopertodeFüsun.Àsvezeseudizia: “Jáestánahorade sairmospara jantarnoBósforoumanoitedessas”,paraestimulartodosafazeremplanos.Àsvezeseusentiaplenacertezadequeavidanãoocorriaemalgumoutrolugar,masalimesmo,emtornodaquelamesa.Àsvezesdiscutíamossobrealgo—osúltimoscemitériosespanhóisdaArgentina,agravidadeemMarte,otempoqueumapessoa podia passar sem respirar debaixo d’água, por que era perigoso andar de motocicleta emIstambul, a formadas agulhas de pedranaCapadócia— a partir denadamais que algo visto natelevisão.Àsvezessopravaumventoforteegelado,as janelasgemiameaschaminésmetálicasdasfornalhaschacoalhavamdemaneiraassustadora.Àsvezes,quandoTarıkBeyselembravadecomo,quinhentosanosantes,asgalerasdeMehmet,oConquistador,passavampelaavenidaBoğazkesen,aapenascinquentametrosdeondeestávamos,acaminhodoChifredeOuro,eledizia:“Eohomemtinhasódezenoveanos!”.ÀsvezesFüsunse levantavadamesadepoisdojantare iaatéagaioladeLimon,ondedepoisdepoucotempoeuiaencontrá-la.Àsvezeseudiziaamimmesmo:“Étãobomqueeutenhavindohojeànoite!”.ÀsvezesTarıkBeymandavaFüsunsubirepegarojornal,obilhetede loteriaouosóculosdele,ouqualqueroutracoisaque tivesseesquecido lá, e tiaNesibegritavaparaasescadas:“Nãováseesquecerdeapagara luz!”.Àsvezes tiaNesibediziaquepodíamos iraParisafimdecompareceraocasamentodeumparentedistante.ÀsvezesTarıkBeydizia“Silêncio!”comvozenérgica,e,gesticulandocomosolhos,dirigianossaatençãoparaumbarulhoquevinhadoteto,enãoconseguíamosdizerseosestalidosqueouvíamoseramproduzidosporumcamundongoouporumladrão.ÀsvezestiaNesibeperguntavaaomarido:“Osomestábomparavocê,querido?”,porquecomapassagemdosanosTarıkBeyvinhaperdendoaaudiçãoaospoucos.Àsvezesosilêncioquenosconsumiatinhaumarmisterioso.Àsvezesnevava,eanevecolava-seàsesquadriasdajanelaeàscalçadas.Àsvezessoltavamfogosdeartifício,etodosnoslevantávamosdamesaparaverascorescortando o céu; mais tarde, o cheiro de pólvora entrava pela janela aberta. Às vezes tia Nesibeperguntava:“Querqueeuenchaseucopo,KemalBey?”.Àsvezeseudizia:“Vamosolharsuapintura,Füsun?”,eseguíamosparaoquartodos fundos,e,enquantonósdoisolhávamosparasuaobra,eupercebiaqueeraaqueleomomentoemqueeuficavasemprefeliz.

70.Vidaspartidas

Umasemanadepoisqueotoquederecolherfoiadiadoparaasonzedanoite,Feridunchegouemcasa apenasmeiahora antes. Por algummotivonão vinhamais para casa à noite, dizendoque asfilmagens tinham se atrasado e ele resolvera dormir na locação. Ao nos ver sentados em torno da

Page 302: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

mesa, ele se forçou a fazer algumas brincadeiras, mas não conseguiu sustentar aquilo por muitotempo.QuandoosseusolhosencontraramosdeFüsun,eleassumiuaexpressãodeumsoldadoqueacabaradechegardeumacampanhalongaemalsucedida,edepoisdefalarmaisumpoucosubiuparaoseuquarto.Füsundeviaterselevantadoeacompanhadoomarido,mascontinuousentada.Eufixarameusolhosnelaeaobservavaemdetalhe.Elasabiaqueeuafitava.Acendeuumcigarro,

fumandocomarausente,comosenadativesseacontecido.(Nãotomavamaisocuidadodesoprarafumaça para um lado, tendo abandonado a antiga simulação de vergonha por estar fumando nafrentedeseupai.)Elaapagouocigarrosemmuitaexpressão.Derepentemeviincapazdelevantar,ummaldequenaépocaeumeconsideravacurado,mastornavaameassolarcomosenuncativessemelhorado.Quando faltavamnoveminutosparaasonze,FüsunpôsumnovoSamsunentreos lábios, com

gestosumpoucomaisdeterminadosqueohabitual,elançou-meumolharprolongadoecauteloso.Conversamos tanto com os olhos naquelemomento queme senti como se tivéssemos falado semfreiosanoiteinteira.Porcontaprópria,minhamãoseestendeueacendiocigarroentreseuslábios.PorummomentoFüsunfezoqueoshomensturcossóviamemfilmesestrangeiros,encostandonamãoqueseguravaoisqueiro.Acenditambémumcigarro,quefumeidevagar,comosenadaforadocomumtivesseacontecido.

A cada momento, sentia que o toque de recolher se aproximava. Tia Nesibe tinha perfeitaconsciênciadoqueestavaacontecendo,mas,alarmadacomaseriedadedasituação,nãodissenada.Quanto a Tarık Bey, ele também quase certamente percebeu o rumo estranho que as coisastomavam,masnãoconseguiaconcluirseprecisavafingirquenadaacontecera.Saídacasaàsonzeedez.AchoquefoinessanoitequebrotouemmimaideiadequeFüsuneeuíamosdefatonoscasar.EstavatãoarrebatadamentefelizdeperceberqueFüsunnofinalescolheriaamim,quemeesquecidogranderiscoaquemeexpusera,eaÇetin também,porsairnasruasapóso toquederecolher.Depois de me deixar em frente de minha casa em Nişantaşı, Çetin Efendi deixava o carro numestacionamentona ruaPoetisaNigâr, aumminutodecasa, ede láprecisavacaminharpelas ruassecundárias até sua casa no velho bairro pobre das proximidades, tentando evitar ser visto. Masnaquelanoiteeuestavafelizdemaisparamepreocupar,ecomoumacriançanãoconseguidormir.Setesemanasmaistarde,porocasiãodaestreiadeVidaspartidasnocinemaPalace,emBeyoğlu,

fiqueicoma famíliaKeskinnacasadeÇukurcuma.Comoesposadodiretor,Füsunnaturalmentedeviatercomparecidoàestreia,assimcomoeu,sendooprodutoreproprietáriodemaisdametadedaLimonFilmes,masnenhumdenósdoisfoi.Füsunnãoprecisavadedesculpa,poiselaeFeridunnãoestavamfalandoumcomooutro,jáqueelemalestiveraemcasaoverãointeiro:eraquasecertoqueestivessevivendocomPapatya.PassavanacasadeÇukurcumamaisoumenosumavezacadaduas semanasparapegar algumacoisaem seuquarto—umacamisa,um livro.Eu sóouvia falarindiretamente dessas visitas, através de insinuações e alusões de tia Nesibe, mas apesar deminhaextrema curiosidade não me atrevia a abordar aquele assunto “proibido”. Pelos olhares que melançava,porsuaatitudeemgeral,ficavaclaroqueFüsuntinhaproibidoqualquermençãoaoassuntonaminha presença.Mas foi tiaNesibe quem acaboume contando que uma briga tinha ocorridoduranteumadasvisitasdeFeridun.

Page 303: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Calculeique,casoeufosseàestreia,Füsunficariasabendopelosjornaise,aborrecida,certamenteme faria pagar. Ainda assim, como produtor do filme, minha ausência chamaria atenção. LogodepoisdoalmoçonaquelediapediaZeynepHanımqueligasseparaaLimonFilmesdizendoqueminhamãeestavamuitodoenteequeporissoeunãopoderiasairdecasa.Naquelanoite,emtornodahoradaprimeiraexibiçãodeVidaspartidasaumpúblicodecineastas

ejornalistasdeIstambul,choveumuito.QuandoÇetinmepegouemNişantaşı,eulhedisseparamelevaràcasadosKeskinviaTaksimeGalatasaray,emvezdetomarocaminhoporTophane.QuandopassamosemfrenteaocinemaPalace,olheiatravésdasgotasdechuvanajanelaevialgumaspessoasbem-vestidasacaminhodaestreiadebaixodeguarda-chuvas,eosbeloscartazeseanúnciospagospelaLimonFilmes,masnão lembravanemde longeaestreianocinemaPalacequeeu imaginaraparaoprimeirofilmedeFüsun.Ninguémtocounoassuntodaestreiaduranteojantar.TarıkBey,tiaNesibe,Füsuneeufumamos

umcigarroatrásdooutroenquantocomíamosmassacommolhodecarne,pepinoscomiogurteealho,saladadetomate,queijobranco,edepoisosorvetequeeutrouxeradaÖmüremNişantaşıepusera direto no congelador assim que chegara.Toda hora umde nós se levantava damesa paraolharachuvaeaáguaquedesciaaladeiradeÇukurcuma.Àmedidaqueanoitesearrastava,senti-meváriasvezestentadoaperguntaraFüsuncomoestavaindosuapinturamaisrecente,masapartirdeseuarcontrariadoesuaexpressãocontraídadeduziqueomomentonãoeraoportuno.Emboraoscríticos tenhamsido impiedososcomVidaspartidas, o filme foi recebido com tanto

entusiasmopelasplateiasdeIstambuledasprovínciasquefoiconsideradoumsucessodebilheteria.Duranteasúltimascenas,quandoPapatyaentoavaduascançõesamargasecheiasdeangústiasobreseusinfortúnios,eramasmulheresdasprovínciasquemaischoravam,mastodotipodegente,tantojovensquantovelhos, saíadoscinemasúmidose sufocantescomosolhos inchados.Napenúltimacena, quando elamata o homem rico emalvado que a enganara,manchando sua honra quandoainda era menina, mas que naquele momento suplicava por sua vida, ocorria uma exultaçãogeneralizada.Essacenacausou tamanha impressão, ficando tãoconhecida,queo atorque faziaopapeldohomem ricoemalvado (EkremBey,nosso amigodoPelür, quegeralmente interpretavasacerdotesbizantinosemilitantesarmênios)paroudesairdecasaporalgumtempo,cansadodelevarsocosecusparadasnasruas.Ofilmetambémfoielogiadoportrazerdevoltaasgrandesplateiasquetinhamevitadooscinemasduranteos“anosdoterror”—comoaspessoasagoraaludiamaoperíodoanterior ao golpe militar. E, com a revitalização dos cinemas, o Pelür Bar tornara a encher-setambém: sentindoa ressurreiçãoda indústriacinematográfica, seusantigos frequentadoresassíduosvoltaramaaparecertododia,àprocuradetrabalhoousimplesmenteparaseremvistos.Numanoitede chuva e vento no final de outubro, duas horas antes do toque de recolher, quando— porinsistênciadeFeridun—chegueiaoPelür,viqueminhareputaçãosubiramuitonaquelelocal;parausaraexpressãoemvoganaqueletempo,euestavaemmeuelemento.OsucessocomercialdeVidaspartidas me transformara num produtor de destaque, a quem muita gente tendia a atribuirsagacidade e grande esperteza, e todomundo, de operadores de câmera a atores famosos, tentavapassaralgumtemposentadoàminhamesaparafazeramizadecomigo.No final daquela noite, embora minha cabeça girasse de tantos elogios, tanta atenção e tanta

Page 304: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

bebida, lembroqueestava sentadocomHayalHayati,Feridun,PapatyaeTahirTan.EkremBey,pelo menos tão bêbado quanto eu, alfinetava Papatya com comentários maliciosos sobre asfotografiasdacenadeestuproqueos jornais vinhampublicandoo tempo todo;masela respondiacom um sorriso simpático, dizendo que jamais dormiria com um velho galo decrépito e semdinheiro. Na mesa ao lado estava um crítico afetado que a ridicularizara por aparecer num“melodrama tão vulgar”; Papatya tentou incitar Feridun a lhe passar um belo sermão, mas seusesforçosforamvãos.Depoisdofilme,EkremBeyrecebeumuitosconvitesparaestrelarcomerciaisdebanco,embora

confessasse que não entendia por quê: vilões não deviam ser tão solicitados para comerciais.Masnaqueletempo,quandotodomundofalavadosbanqueirosqueofereciamrendimentosdeduzentosporcentoequeatiçavamessaschamascomanúncios imensosnos jornaisena televisãousandoosrostos mais famosos de Yeşilçam, a comunidade cinematográfica demonstrava uma inclinaçãofavorável a eles. Ainda assim, como aos olhos alcoolizados da clientela do Pelür eu era umempresário moderno (de acordo com a definição de Hayal Hayati: “Um empresário que ama acultura é moderno”), sempre que esses assuntos surgiam fazia-se um silêncio respeitoso, que,segundo todos esperavam, eu acabaria preenchendo comminha opinião.No rastro do sucesso debilheteria, eumecredenciara comoum“capitalista impiedoso”de visão; e todomundoesqueceraqueeutinhaaparecidonoPelüralgunsanosantesparatransformarFüsunemestrela,assimcomoseesqueceramdaprópriaFüsun.ConstatarcomoFüsun foraesquecidadepressa faziameuamorporelaardercomforçadentrodemim,eeusentiavontadedevê-la imediatamente;depois,pensandoemcomoeladeixaradeserarrastadaparaaquelemundodegostoduvidoso,dispostoamancharsuareputação,euaamavamaisainda—enovamentemecongratulavapormantê-laafastadadaquelaspessoasmalévolas.Foiumadesconhecidadecertaidade,amigadamãedePapatya,quedublaraascançõesparaela

nofilme.Agora,graçasaosucessodeVidaspartidas,Papatyairiagravarumdiscoemqueelaprópriacantaria. Naquela noite de outubro, concordamos que a Limon Filmes financiaria também esseprojeto,alémdedar inícioaumacontinuaçãodeVidaspartidas.Naverdade,adecisãode fazeracontinuaçãonãofoinossa;foioqueoscinemaseosdistribuidoresdaAnatóliapediramaumasóvoz,ecomtamanhainsistênciaquequalquerrecusadapartedeFeridunseriavistacomo“cuspirnacaradosucesso”,parausaroutraexpressãodaquelesdias.Quaisquerquefossemsuasintenções,nofinaldo filmeopersonagemdePapatya, como todas asmoças, boas emás, queperdiama virgindade,morria sem realizar o sonho de uma vida feliz em família.Decidimos que amelhor solução seriarevelarquenaverdadePapatyanãomorreraeque,ferida,tinhasimuladosuamorteparasemanterasalvodeoutroshomensmaus.Aprimeirasequênciadacontinuaçãoocorrerianumhospital.TrêsdiasdepoisoMilliyetpublicouumaentrevistacomPapatyaemqueelaanunciavao início

próximodasfilmagens.Àquelaaltura,osjornaispublicavamumaentrevistapordiacomela.QuandoVidaspartidasestreou,deramaentenderquePapatyaeTahirTanestavamtendoumcasosecretonavida real,mas esse boato perdera a energia, e agora Papatya o negava.Quando conversamos pelotelefone em torno dessa época, Feridunme informou que todos os atores mais famosos queriamcontracenarcomPapatyaeque,dequalquermaneira,TahirTannãoserviaparaopapel.Poisem

Page 305: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

suas entrevistas mais recentes Papatya começara a revelar que, embora tivesse beijado algunshomens,naverdadenuncatinhasidomuitoíntimacomninguém.Suamemóriamaispreciosaenaverdademais indelévelcontinuavaaseroprimeirobeijo,comseunamoradodeadolescêncianumdiadeverão,numvinhedodominadopelozumbidodasabelhas.Infelizmente,ojovemforamortonoconflitocontraosgregosemChipre,edepoisdissoPapatyatinhaconsideradoinconcebívelmanterintimidadescomqualquerhomem,concluindoqueapenasoutrotenentepoderiasercapazdecurarseu coração. Feridun admitiu que não aprovava essasmentiras,mas Papatya reafirmava que só astinha contado para ajudar a continuação a passar pela censura. Feridun fazia pouca força paraesconderdemimsuarelaçãocomPapatya;coadunavacomsuanaturezadepessoaquenãosemetiaem brigas e não tinha inimizade com ninguém, seguindo sempre em frente, sempre aparentandoingenuidade,nuncaamargooumenosquesincero—eporissoeusentiaumainvejagenuínadele.Vidaspartidas,oprimeirodiscodePapatya,foilançadonaprimeirasemanadejaneirode1982,e,

embora não tenha alcançado o mesmo sucesso do filme, foi muito bem recebido. Cartazesapareceramnosmurosdacidade,muitosdosquaistinhamsidopintadosdebrancodepoisdogolpe,e anúncios, embora relativamentemodestos, nos jornais.Mas, como a junta de censores doúnicocanaldetelevisãodaTurquia(que,naverdade,tinhaumnomemaiselegante:InspetoriadaMúsica)achavaqueacançãodeixavaadesejaremmatériadefibramoral,avozdePapatyanãoaparecianatelevisãonemnorádio.Odisco,aindaassim, lhevaleuumanovarodadadeentrevistas,ehistóriasespúrias sobre surras e outras controvérsias que ela fabricava para essas ocasiões a tornaram aindamaisfamosa.Papatyacomeçouaparticipardedebatesculturaisnalinhade“Deveumajovemturcamodernaekemalistapensarantesemseutrabalhoounoseumarido?”;posandodiantedoespelhodoseu quarto (tendo comprado uma mobília turca tradicional, adornada com alguns elementos dacultura pop), ela brincava com seuurso de pelúcia enquanto discorria sobre comoeraumapenajamaisterencontradoohomemdosseussonhos;produzindomassaverdecomamãenacozinha,emquehaviaumacaçaroladeesmalte idênticaàdacasadeFüsun,ela faziaopapeldedonadecasahonestaparaprovarqueeramuitomaisrespeitávelqueLerzan,aheroínaferidaeimpiedosadeVidaspartidas.Suahonra jamais foramanchada,eelaviviaperfeitamente feliz,embora,admitisse:“SemdúvidatodasnóstemosalgumacoisadeLerzan”,esperandocomissomarcarpontosdosdoislados.Feridunmanifestava seuorgulhoporPapatya semostrar tãoprofissional, jamais levando a sério asentrevistaseosartigossobreela.TantasestrelaseaspirantesaatrizmenosespertasdoPelürreagiamcomoamadoras,commedodequeasmentiraspropagadasaseurespeitopudessemprejudicarsuaimagempública,masPapatyasabiacomoexercerplenocontrole,preferindocontardesdeo iníciosuasprópriasmentiras.

71.Osenhorquasenãovemmaisaqui,KemalBey

QuandoafábricadoMeltem,agoraempenhadaemcompetircomaCoca-Colaeoutrasmarcasestrangeiras,decidiuusarPapatyaemsuacampanhapublicitáriadecomeçodoverão,dirigidaporFeridun,eu tiveumdesentendimento finalcommeuantigocírculodeamigos,pelosquaiseunão

Page 306: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

sentiarancor,emborativéssemosnosafastado,efiqueidecoraçãopartido.Zaim,claro,sabiaquePapatyatinhacontratocomaLimonFilmes,eassim,planejandoconversar

amigavelmentesobreaquestão,nosencontramosparaumlongoalmoçonoFuaye.“A Coca-Cola está oferecendo um créditomais longo aos distribuidores e dando de graça um

letreiro imenso de plexiglass para cada estabelecimento de venda, além de calendários e outrosbrindespromocionais,esimplesmentenãotemoscomocompetircomisso”,disseZaim.“Osjovensparecem borboletas: depois que viram oMaradona com uma garrafa deCoca-Cola namão, nãopodiam semostrarmais indiferentes a um refrigerante de fabricação turca,mesmo que sejamaisbaratoemaissaudável.”“Nãoseofenda,masnasrarasocasiõesemqueeutomorefrigerantetambémprefiroCoca-Cola.”“Eeu também”,disseZaim. “Masnão interessaoquenós tomamos…Papatya vainos ajudar a

aumentarasvendasnasprovíncias.Quetipodemulherelaé?Podemosconfiarnela?”“Nãosei.Éumagarotaambiciosaqueveiodonada.Amãedelafoicantoradecabaré…Enãohá

sinaldepai.Vocêestápreocupadocomoquê?”“Estamos investindomuitonessacampanha.Sedepoisdissoelaaparecernumadançadoventre

numfilmepornô,ouse—nãosei— for surpreendidaemflagrantecomumhomemcasado…asprovínciasnãoiriamaceitar.OuvidizerqueelaandaenvolvidacomomaridodasuaFüsun.”Não gostei damaneira como ele disse “sua Füsun”, nem fiquei satisfeito com sua expressão de

conhecedor,quemepareceudaraentenderumaconsciênciaimplícitademinhaintimidadecomaspessoasemquestão.Umtantoirritado,respondi:“QuerdizerqueelesrealmentepreferemMeltemnasprovíncias?”.Zaim,quepretendiaumasofisticaçãomodernaeeuropeia,arrepiou-seàmençãodeque,adespeitodesuacampanhapublicitáriaocidentalestreladaporInge,osucessodeseuprodutocomosconsumidoresurbanosmaisricosforaefêmero.“Sim, fazemosmais sucessonasprovíncias”, admitiuele. “Porqueaspessoasquevivem láainda

nãocorromperamopaladar,sãoturcospuros,éporisso!Masnãometratecomhostilidadeemauhumor…EntendoperfeitamenteosseussentimentosporFüsun.Emnossaépoca,oseuamormerecetodoorespeito—digamoquedisserem.”“Quemandadizendooquê?”“Ninguémestádizendonada”,respondeuZaimcomcautela.Isso significava “Vocêestá àmargemda sociedade”.A ideianosdeixou intranquilos.Eugostava

muitodeZaimporquepodiatercertezadequeelesempremediriaaverdadeejamaisiriaquerermemagoar.E Zaim viu o afeto nos meus olhos. Com um sorriso de amizade e estímulo, ergueu as

sobrancelhaseperguntou:“Eentão,oqueestáacontecendo?”.“Ascoisasvãobem”,respondi.“VoumecasarcomFüsun.Vouentrardenovonasociedadeelevá-

lacomigo…Supondo,claro,queconsigasuperaressesmexericosasquerosos.”“Esqueçaessascoisas,meuamigo”,disseZaim.“Logotudoseráesquecido.Quandoeusoubeda

históriadeFeridun,imagineiimediatamentequeFüsuntomariajuízo.”“OndevocêouviufalarsobreFeridun?”“Esqueçaissotambém”,disseZaim.

Page 307: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Bom, e você? Casamento no horizonte?”, perguntei, mudando de assunto com algumarelutância.“Alguémnovonasuavida?”“Hilmi,oBastardo,acaboudeentrarcomanovaesposa,Neslihan”,disseZaim,olhandoparaa

porta.“Ora…Vejamsóquemestáaqui!”,disseHilmi,vindonadireçãodanossamesa.Neslihanestava

vestidamuitodeacordocomaúltimamoda,oquecombinavabemcomHilmi,oBastardo,poiselenãoconfiavanosalfaiatesenascostureirasdeBeyoğluesóusavaroupasitalianas,queescolhiacommuitovagar.Eraumasatisfaçãoverumcasal tãobem-vestido, tãopróspero,maseusabiaquenãoseriacapazdemanifestaromesmodesdémgeneralizadoqueelespor todasascoisasepessoasquenão se mostrassem à altura de seus padrões de exigência. Enquanto trocávamos apertos de mão,houveummomentoemquejulgueipercebercertomedonosolhosdeNeslihan,demaneiraquememantive reservado na presença deles, postura que de uma hora para outra me pareceu a maisrecomendada. Eu mal podia acreditar que um minuto antes, conversando com Zaim, eu usaraaquelapalavrapeculiar,“sociedade”,expressãotiradadasrevistasedascolunasdecelebridadesqueminhamãesemprelia—equetinhadeclaradominhaesperançadeestardevoltaaelaassimquemeredimisse.SentiavergonhaeansiavaporretornaraÇukurcumaeaomundoquecompartilhavacomFüsun.OFuayeestavacheiocomosempre,e,enquantoeupassavaemrevistaosvasosdeciclâmen,as

paredessimpleseoslustreselegantescomoseenumerassememóriasagradáveis,olugarmepareceugasto, como se tivesse envelhecido mal. Será que eu conseguiria sentar-me ali algum dia nacompanhia de Füsun com o coração despreocupado, sentindo apenas a felicidade de estar vivo epróximoaela?Eupreferiacrerquesim.“Está pensando em alguma outra coisa? Está com aquele ar distante. Deve ter se perdido em

devaneios”,disseZaim.“EstavapensandonoseudilemaemrelaçãoaPapatya.”“Lembre-sedequenesteverãoelavaiseracaradoMeltem—essamulher terádeaparecerem

todasasnossasfestaseassimpordiante.Oquevocêacha,afinal?”“Oquevocêquersaber?”“Elavaiestarapresentável?Vaisabersecomportar?”“Eporquenão?Elaéatriz,naverdadeumaestrela.”“Pois é dissomesmoque estou falando…Você sabe como se comporta esse pessoal de cinema

turco,ospobresquefazempapeldericos.Nãopodemosnosveràsvoltascomumacoisadessetipo.”Zaimtiravaaquelasexpressõesdascoisasquediziasuamãe,mulherbem-educada,masoqueele

queriadizerera:“Nãoéissoquequeremos”.Papatyanãoeraaprimeirapessoaadespertaraqueletipodepreocupação,queoassolavasemprequeelepensavaemalguémqueviacomodeclasseinferior.Por mais que seu preconceito me incomodasse, ainda assim não vi o que poderia ganharmanifestandominhairritaçãooudecepçãocommeuamigo,meucompanheirodemesanoFuaye.Perguntei a Sadi, o chefe dos garçons do restaurante havia muitos anos, que peixes ele

recomendava.“Osenhorquasenãovemmaisaqui,KemalBey”,disseele.“Tampoucoasenhorasuamãe.”

Page 308: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Expliqueique,depoisquemeupaimorreu,minhamãeperderaointeresseporsairdecasa.“Eporqueosenhormesmonãotrazasenhorasuamãeaqui?Porfavor,KemalBey—elapodese

alegrar.QuandoopaidafamíliaKarahanmorreu,traziamamãeviúvaparajantaraquitrêsvezesporsemana,enósainstalávamosnamesaaoladodajanela,ondeelapodiacomerseubifeeficarvendoquempassavapelarua.”“Você sabiaquea senhoraemquestão fezpartedoharémdoúltimosultão?”,perguntouZaim.

“Elaécircassiana, temolhosverdes,eaindaé linda,commaisdesetentaanos.Que tipodepeixevocêstêmparanós?”ÀsvezesSadisimulavaumarindecisoerecitavaosnomesdospeixesumporum:“Pescada,goraz,

tainhavermelha,peixe-espada,linguado”,diziaele,erguendoassobrancelhasemsinaldeaprovaçãooufranzindoatestaparaindicaraqualidadedecadaum.Noutrasocasiões,erabreve:“Hojevoulhestrazerperca-do-marfrita,ZaimBey”.“Acompanhadadequê?”“Purêdebatatas,rúcula,oqueosenhorquiser.”“Edeentrada?”“Temosbonitosalgadodesteano.”“Tragacomcebolaroxa”,disseZaimsemtirarosolhosdomenu,edepoisconsultoua listadas

bebidas.“SantoDeus,vocêstêmPepsi,sodadeAnkaraeatéElvan,masaindanãoservemMeltem!”,queixou-seele.“ZaimBey, seu pessoal faz uma entrega, depois nuncamais aparece.Estamos comcaixotes de

garrafasvaziasnosfundoshásemanas.”“Temrazão,nossosdistribuidoresdeIstambulsãounsincompetentes”,disseZaim.Evirou-separa

mim.“Vocêconheceessenegócio.ComoestáindoaSatsat?Oquepodemosfazercomessenossoproblemadedistribuição?”“Nem me fale da Satsat”, respondi. “Osman criou uma empresa nova com Turgay e acabou

conosco.Desdequemeupaimorreu,Osmansópensaemdinheiro.”ZaimnãoseincomodoudequeSadiouvissenossosfracassosparticulares.“TragaumrakıKulüp

duploparacadaum,comogeloàparte,podeser?Éomelhor”,disseele.QuandoSadiseretirou,franzia a testa com se esperasse por uma resposta. “Seu querido irmãoOsmanquer fazer negócioconoscotambém.”“Prefiroficarforadisso”,respondi.“MasnãovoulevaramalsevocêtivernegócioscomOsman.

Negóciossãonegócios.Quaissãoasoutrasnovidades,Zaim?”Ele entendeu imediatamente que eu estava falando das notícias da sociedade, e esperandome

animarcontou-meváriashistóriasbemdivertidas.Güven,oAfundadordeNavios,tinhaencalhadoocargueiro enferrujado em terra, dessa vez entre Tuzla e Bayramoğlu. Güven era especialista emnaviosforadeuso,arruinadosemuitopoluidores.Eleoscompravanoestrangeiroapreçodeferro-velhoe,comaajudadeseuscontatosnogovernoenaburocraciaestatal,alteravaospapéisparafazê-los parecer navios valiosos e em perfeitas condições; subornando as pessoas certas, obtinha entãoempréstimosajurozerodoFundoTurcoparaoDesenvolvimentoMarítimo,dandocomogarantiaonavio, que pouco depois afundava, recebendo polpudas indenizações da Seguradora Başak,

Page 309: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

controladapeloEstado.Assim,quandovendiaocargueiroparaseusamigosdonosdeferros-velhos,já tinha feito um monte de dinheiro sem nem sequer se levantar de sua mesa. Estimulado poralgumasdosesdebebida,Güvensegabavacomosamigosdoclubedeser“omaiorarmadorquejáestiveraabordodeumnavio”.“Oescândalocomeçounãoporcausadastramoias,masporqueelefezonavioencalharbemao

ladodacasadeverãoquetinhacompradoparaaamante,demodoanãoterdeviajarmuitoparairver o naufrágio. Os residentes daquelas casas de praia responderam com uma verdadeira gritariacontraapoluiçãodaágua.Edizemquenemsuaamanteconseguiaparardechorar.”“Equemais?”“AsfamíliasAvundukeMengerliinvestiramtudocomDeniz,obanqueiro,perderamatéoúltimo

centavo,efoiporisso,aliás,queosAvunduktiraramafilhadocolégioNotre-DamedeSioneestãotentandoarrumarummaridoparaela.”“Agarotaéhorrorosa.Esperoqueelesconsigam”,disseeu.“Equemhaveriadeconfiaremalguém

chamadoDeniz,obanqueiro?Nuncaouvifalardele.”“Vocêtemalgumdinheiroinvestidoemcorretora?”,perguntouZaim.“Sabedealgumaqueseja

deconfiança?”Tendo chegado à profissão depois de terem tido restaurantes de kebab, oficinas de conserto de

pneusdecaminhãoeatécasaslotéricas,essesbanqueirosofereciamrendimentostãoridiculamentealtosqueeraclaroquenãoteriamcomodurarmuitotemponaatividade.Masseusanúncioseramtão frequentes e sedutores que eles tinham arrecadado dinheiro suficiente para se mantertemporariamenteàtona,porquemesmoosqueriamdeleseosacusavamnaimprensa—entreelesatéprofessoresdeeconomiaquesabiamperfeitamentetratar-sedevigaristas—deixavam-seofuscarpelosrendimentosapregoadosparainvestirseuprópriodinheiro“sóporumoudoismeses”.“Nãotenhodinheironenhuminvestidoemcorretoras”,disseeu.“Nemnossasempresas.”“Com esses rendimentos, parece uma idiotice empatar o dinheiro em negócios comuns. Só de

pensarque,seeutivesseinvestidocomKastelliodinheiroqueenfieinaMeltem,aestaalturajáteriadobradomeuinvestimento,semprecisardessasdoresdecabeça...”SemprequemelembrodessaconversaquetivemosemmeioaosfrequentadoresdoFuaye,elame

parece tãovaziae sem sentidocomonaqueledia.Masnaépoca, assimcomoagora, euaindanãopercebiaaidioticegeneralizada—ou,maiseducadamente,airreflexãogeneralizada—domundoemqueminhahistóriasedesenrolava,vendoapenasnaquilotudoumatristefaltadeseriedadequenuncame incomodavaalémdacontae,mais tipicamente,me faziaaté rirquandoostentadacomorgulho.“AMeltemrealmentenãoestáganhandodinheiro?”Eudisseissosemaintençãodealfinetar,masZaimseofendeu.“TudoagoradependedePapatya—nãohámaisnadaquepossamosfazer”,disseele.“Sóespero

que ela não nos envergonhe.Combinamos que vai cantar o jingle daMeltem acompanhada pelaorquestra Folhas de Prata no casamento de Mehmet e Nurcihan. Toda a imprensa vai estar noHilton.”Calei-meporummomento.EunãoouviraabsolutamentenadasobreocasamentodeMehmete

Page 310: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

NurcihannoHilton,efiqueiarrasado.“Euseiquevocênãofoiconvidado”,disseZaim.“Masacheiqueaessaalturajáteriaouvidofalar

doacontecimento.”“Porquenãofuiconvidado?”“Ah, as discussões foram intermináveis.Como vocêpode imaginar, Sibelnãoquer se encontrar

com você. ‘Se ele for, eu não vou’, foram as palavras dela. E, afinal, Sibel é amelhor amiga deNurcihan.FoiinclusiveelaqueapresentouNurcihanaMehmet,nãoseesqueçadisso.”“Mas sou um bom amigo deMehmet”, disse eu. “E também pode-se dizer que tive uma boa

participaçãoemaproximarumdooutro.”“Nãodêmuitaimportânciaaessahistória—sóvailhefazermal.”“PorqueossentimentosdeSibelsãomaisimportantesqueosmeus?”,disse,sabendonomomento

emquefalavaquenãotinhaodireitodereclamar.“Escute,meu amigo, todomundo vê Sibel como umamulher que foi enganada”, disse Zaim.

“Vocêficounoivodelae,depoisdeviveremjuntosnumayalıdoBósforodividindoamesmacama,abandonou-a.Pormuitotemposósefalavadisso,eatéparecequefalavamdeumdjinndomal,pelamaneira como asmães discutiam o escândalo com suas filhas. Sibel na verdade nem ligou tantoassim,masdequalquermaneiratodomundoficoucommuitapenadela,enaturalmentecommuitaraivadevocê.Vocênãopodeficarindignadoporagoratomaremopartidodela.”“Nãoestouindignado”,disseeu,indignado.Tomamos nossos rakıs e começamos a comer nosso peixe. Foi a primeira vez que eu e Zaim

comemosnoFuayesemdizernada.Euescutavaospassosapressadosdosgarçons,osomconstantedos risos e da conversa, o tinido de facas e garfos. Jurei, irritado, que nuncamais voltaria ali, aomesmotempoemquepensavanoquantogostavadaquelelugar,equenãotinhanenhumoutro.Zaimdissequequeriacomprarumalanchanoverão,masqueantesprecisavaencontraromotor

depopacerto,emboranãotivesseencontradonenhumnaslojasdeKaraköy.“Agora já chega.Pare comessa carade tristeza”, disse elede repente. “Ninguémpode ficar tão

chateadoassimsóporquevaiperderumcasamentonoHilton.Vocêjádeveteridoaalgumoutro.”“MeusamigosmeviraramascostasporcausadeSibel—nãogostodisso.”“Ninguémvirouascostasparavocê.”“Sei,masesevocêprecisassetomaradecisão?Oquevocêfaria?”“Quedecisão?”,perguntouZaim,deummodoquemepareceudissimulado.“Ah,entendi.Claro

queiriaquererquevocêviesse.Vocêeeusemprenosdivertimosmuitonoscasamentos.”“Nãoestoufalandodediversão;estoufalandodeumacoisamaisprofunda.”“Sibeléadorável;éumajovemmuitoespecial”,disseZaim.“Vocêpartiuocoraçãodela.Nãosó

isso— na frente de todomundo, você pôs Sibel numa situaçãomuito ruim.Em vez de ficarmeolhandoassim,comessacara,porquenãoadmite logooque fez,Kemal?Aguente firmeevai sermaisfácilvoltarparaasuavidadeverdade;empoucotempoissotudovaiserpáginavirada.”“Querdizerquevocêtambémachaqueeusouculpado?”,perguntei.Sabiaquedaliapoucoiame

arrependerdeinsistirnoassunto,maseramaisfortedoqueeu.“Seformosinsistirqueavirgindadeaindaétãoimportante,comoéquepodemosfazerdecontaquesomosmodernoseeuropeus?Pelo

Page 311: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

menosvamosserhonestosunscomosoutros.”“Todo mundo está sendo honesto… O seu erro foi impor as suas opiniões a outra pessoa. A

virgindadepodenãoserimportanteparavocêouparamim.Masnemprecisodizerquenestepaísavirgindadedeumajovemédeextremaimportânciaparaela,pormaismodernaeeuropeiaqueelaseja.”“VocêdissequeSibelnãoligoutanto…”“MesmoqueSibelnãotenhaligado,asociedadeseincomodou”,disseZaim.“Tenhocertezade

que você também não ligou muito, mas, quando o Cravo-Branco publicou aquelas mentirashorrendasaseurespeito,todomundocomentou.E,mesmoquevocêpossadizerquenãoliga,agoraestáaborrecidocomessahistória—nãoémesmo?”ConcluíqueZaimestavaescolhendosuaspalavras—expressõescomo“asuavidadeverdade”—

sóparameirritar.Epenseiquedeviarespondernamesmamoeda,emboraumavozdentrodemimmerecomendassecautela,lembrandoqueeupodiamearrependerdealgumacoisaquedissessepordespeitodepoisdedoiscoposderakı.Masinfelizmentefuitomadopelaraiva.“Naverdade,meucaroZaim”,disseeu,numtomsoberbo,“esseseuplanodefazerPapatyacantar

ojingledoMeltemacompanhadapelaorquestraFolhasdePratanoHilton—naverdadeébemmalpensado.Porquevocêachaquepodefuncionar?”“Ora,nãoimpliquecomigo.Estamosquaseassinandoumcontrato,peloamordeDeus.Vocênão

precisadescontarsuaraivaemmim.”“Vaiparecerumacoisameiotosca…”“Bom,seéoquevocêpensa,nãosepreocupe.EscolhemosPapatyajustamenteporisso—porque

elaémeiotosca”,disseZaimsegurodesi.Acheiqueeleiriadizerqueaquelesmodosdelatinhamsetornado vendáveis graças ao filme que eu produzira, mas Zaim era um bom homem; uma coisadessas jamais passaria por sua cabeça. Ele simplesmente impediu que a discussão prosseguissedizendoqueeleeseussóciosdariamumjeitodetomarcontadePapatya.“Masquerolhedizerumacoisacomoamigo”,disseele.“Kemal,aspessoasnãoderamascostasparavocê;vocêéquedeuascostasparaelas.”“Ecomofoiqueeufizisso?”“Virando-separadentrodesimesmoenãoencontrandomaisalegrianenhumaneminteresseno

nosso mundo. Sei que você acha que seguiu seu caminho, em busca de uma coisa profunda esignificativa.Fezoqueocoraçãomandou;tomouumaposiçãoclara.Nãofiquecomraivadenós…”“Masnãopodesermaissimplesdoqueisso?Osexoeratãobomquefiqueiobcecado…Oamoré

assim.Talvezsejavocêquemestáprocurandoumsignificadomaisprofundonisso,talvezprojetadodoseuprópriomundo.Naverdade,oamorentreFüsuneeunãotemnadaavercomvocêecomosseus.”Essasúltimaspalavrassaíramdeminhabocaporcontaprópria.DerepenteeusenticomoseZaim

meolhassedemuitolonge;jádesistirademimmuitoantes,esóagoraadmitiaquenãopodiamaisseverasóscomigo.Enquantomeescutava,pensavanãoemmim,masnoqueiriadizeraseusamigos.Davapara leraausênciano seu rosto.E,comoZaimeraumhomeminteligente,os sinaisqueeuacabaradeemitirnãodeixaramdeserpercebidos,edavaparaveroquantoeleficarairritadocomigo.

Page 312: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Assim,adistânciaeraperceptíveldequalquerângulo:derepente,eutambémestavaolhandoparaZaim,eparatodoomeupassado,deumpontomuitíssimodistante.“Vocêérealmenteumhomemmuitosensível”,disseZaim.“Éumadascoisasqueeuaprecioem

você.”“OqueMehmetachadissotudo?”“Vocêsabeoquantoelegostadevocê.MasestáfelizcomNurcihandeummodoqueninguémé

capaz de entender. Está andando nas nuvens, e não quer que nada— nenhum problema— oobrigueapisarnochão.”“Entendi”,disseeu,resolvendodesistirdaquilotudo.Zaimleuminhamente.“Nãopensecomocoração,useacabeça!”,disseele.“Estácerto,vouserracional”,respondi,epelorestodoalmoçonãodissemosmaisnadaquetivesse

importância.Uma ou duas vezes Zaim me contou mais alguma história da sociedade, e, quando Hilmi, o

Bastardo,eamulherpararamaoladodanossamesanasaídadorestaurante,tentoualiviaratensãocomgracejos,massemsucesso.AsbelasroupasusadasporHilmieamulheragorameparecerampretensiosas,atémesmo falsas.Sim,eu tinhameafastadode todoaquelegrupo,de todososmeusamigos, e talvez aquilo fossemotivo de tristeza,mas tambémhavia algo amais, sentia eu— umressentimento,umaraiva.Pagueiaconta.Quandonosdespedimosàporta,Zaimeeuderepentenosatiramosnosbraçosum

do outro e nos beijamos nas faces, como dois velhos amigos que soubessem que um deles estavaprestesacomeçarumalongaviagemqueosseparariapormuitosanos.Emseguida,saímosandandoemdireçõesopostas.Duassemanasmaistarde,MehmetligouparaaSatsat,desculpando-sepornãoterconseguidome

convidar para o casamento no Hilton. Acrescentou que já fazia algum tempo que Zaim e Sibelestavamjuntos.Eleimaginavaqueeujásoubesse,poistodomundosabia.

72.Avidatambéméexatamenteigualaoamor…

Numanoitedoiníciode1983,estavaapontodemesentaràmesadejantardosKeskinquando,percebendo algo estranho, sentindo que faltava alguma coisa, examinei a sala com cuidado. Ascadeirasestavamtodasemsuasposiçõesdecostumeenãohavianenhumcachorronovoemcimadatelevisão,masasensaçãodealgumacoisadiferentenasalapersistia,comoseasparedestivessemsidopintadasdepreto.Naquele tempo,eunãopensavamaisnaminhavidacomoalgoqueeu semprevivesseemplenavigíliaeconscientedoquefazia;começaraapensarqueelaeranaverdadefrutodaimaginação,umacoisaque—assimcomooamor—vinhadosmeussonhos.E,comonãotinhaomenor desejo deme opor oume render ao pessimismo cada vezmaior que sentia em relação aomundo,agiacomoseessespensamentos jamais tivessemmeocorrido.Pode-sedizerqueeudecidideixar tudocomoestava.Eresolviaplicaraodesconfortodespertadoemmimpelasalade jantaramesma lógicacomque respondia à inquietudeproduzidapelas salasdeespera: resolvinãopensar

Page 313: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

nela,eesperarquepassasse.ATRT2,canaldearteeculturadaTurquia,exibianaépocaumasériedefilmesestreladospor

GraceKelly,queacabarademorrer.EranossovelhoamigoEkrem,oatorfamoso,quemapresentavaasessãode“filmesdearte”todanoitedequinta-feira,lendootextoquetinhanasmãos,asquaisoalcoólatraEkremBeyescondiaatrásdeumvasoderosasparaocultarotremor.OscomentárioseramescritosporumjovemcríticodecinemaqueforaamigopróximodeFeridunantesdebrigaremporcausadeumaresenhaimpiedosadeVidaspartidas.EkremBeyliaaprosabarrocaeintelectualizadadojovemcríticocompoucacompreensão;finalmente,erguiaosolhosdapágina,epoucoantesdedizer “e agora apresentamos o filmedanoite dehoje” anunciava que tinha conhecido “a eleganteestrelaamericanaeprincesanumfestivaldecinemamuitosanosatrás”,acrescentando,quasecomose fosse um segredo, que ela cultivava um amor profundo pelos turcos, com uma expressãosonhadoraquedavaaentenderquepodiaatétervividoumromancecomaencantadoraatriz.Füsun,queouviramuitashistóriassobreGraceKellydeFeridunedeseuamigocríticodecinemaduranteosprimeirosanosdeseucasamento,nãoperdiaumúnicodessesfilmes,e,comoeunãopodiaperderuma oportunidade de ver Füsun acompanhando a frágil, desamparada, mas ainda assimradiosamente lindaGraceKelly, procuravame assegurar de ocuparmeu lugar àmesa dosKeskintodaquinta-feira.Naquela quinta vimos Janela indiscreta, deHitchcock,mas, longe de desanuviarminhamente

atribulada,o filme só fez acentuarminhaansiedade.Eraesse filmeaqueeu tinha idoassistir oitoanos antes, quando, deixandomeu triste almoço com os funcionários da Satsat, refugiei-me numcinemapara rememorarosbeijosdeFüsunempazena solidão.MasagoranãomeconsolavavercomocantodoolhooquantoFüsunestava absortanaquele filme,nemajudava vernela algodapurezaedorequintedeGraceKelly.Fosseadespeitodofilmeouporcausadele,euforatomadoporaqueleestuporqueàsvezesmeacometia,senãosemprepelomenosaintervalosregulares,durantesosjantaresemÇukurcuma.Eracomomeverenredadonumsonhosufocante,presonumaposentocujasparedesavançassemparame imprensar.Eracomoseopróprio temposeafunilassecadavezmais.PasseimuitashoraspensandonamaneiradetransporparaoMuseudaInocênciaessasensaçãode

estarpresonumsonho.Éumacondiçãocomdoisaspectos:(a)odeumestadoespirituale(b)odeumavisãoilusóriadomundo.(a)Oestadoespiritualéumtantosemelhanteaoquesesegueaoconsumodeálcooloumaconha,

emboradiferente emalguns aspectos.É a sensaçãodenão estar vivendoexatamentenomomentopresente, neste agora, aqui. Na casa de Füsun, enquanto jantávamos, muitas vezes eu tinha aimpressão de estar vivendo nummomento do passado. Segundos antes de assistir a um filme deGraceKellynatelevisão,oualgoassim,ébemverdadequenossasconversasemtornodamesaerammaisoumenosparecidas,masnão tão repetitivasque invocassemesse sentimento;naverdade,eraumasensaçãodenãomeentregaràquelesmomentosdaminhavidanahoraemqueocorriam,tendoa impressão de que não vivenciava cada umdeles. Enquantomeu corpo vivia o presente na tela,minhamentecontemplavaFüsuneamimmesmodecertadistância,eminhaalmadeumadistânciamaior ainda. Assim, aquele momento que eu vivia produzia em mim o efeito de algo que eu

Page 314: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

rememorasse.Os visitantes domeuMuseu da Inocência devem obrigar-se, portanto, a encarar osobjetosaquiexpostos—osbotões,oscopos,asfotografiasantigaseospentesdeFüsun—nãocomoobjetosreaisnomomentopresente,mascomomemóriasminhas.(b)Experimentaressemomentopresentecomomemóriaévivenciarumailusãotemporal.Maseu

tambémexperimentavaumailusãoespacial.Exponhoaquiumadupladeilusõesdeóptica.Tentemdetectarassetediferençasentreessasduasimagens,oudecidirqualdelaséamenor;esseenigmaédotipoquemeinduziaaumdesconcertosemelhantequandoeuerameninoedeparavacomelesnasrevistasinfantis.Quandoeueracriança,brincadeirascomo“Ajudeoreiasairdolabirinto”ou“Quetúnelocoelhodeveusarparasairdafloresta?”medivertiam,masmedeixavamnervoso.Damesmaforma,duranteosétimoanodosmeusjantaresnacasadosKeskin,amesadejantarsetransformounum lugar mais sufocante do que divertido. E, naquela noite, Füsun percebeu meu estado deespírito.“Qualéoproblema,Kemal?Nãogostoudofilme?”“Gostei.”“Talveznãotenhaachadoahistóriaboa”,disseela,comcuidado.“Pelocontrário”,respondi,emecalei.Era tão foradocomumFüsundemonstrar interessepormeuhumoroumeperguntar comoeu

estavaquandoaindanosencontrávamosàmesa,aoalcancedosouvidosdeseuspais,quefuilevadoadizeralgumaspalavrasdeadmiraçãosobreofilmeeGraceKelly.“Maseuseiquevocêestáabatidohojeànoite,Kemal,nãotentenegar”,disseFüsun.“Entãoestábem,eufalo…Ésóqueestoucomaimpressãodequealgumacoisamudounacasa,

masnãoconsigodescobriroquê.”Todoscomeçaramarir.“Mudamos Limon para o quarto dos fundos, Kemal Bey”, disse tia Nesibe. “Estávamos

estranhandovocênãoterditonada.”“Émesmo?”,perguntei.“Comoeupossonãoterpercebido?Querdizer,euadoroLimon…”“Nóstambém”,disseFüsuncomorgulho.“Decidipintaroretratodele,porissomudamosagaiola

paraooutroquarto.”“Ejácomeçouapintar?Possover,porfavor?”“Claro.”Fazia algum tempo que Füsun desistira de sua série das aves, que não despertava mais seu

entusiasmo. Ao entrar no quarto dos fundos, antes de olhar para o próprio Limon, inspecionei apinturadocanário,queFüsunapenascomeçara.“Feridunnãotiramaisfotografiasdeaves”,disseFüsun.“Porissodecidipintardiretamenteapartir

domodelo.”AexpressãodeFüsun,suaposturaquandofalavadeFeriduncomosefossealguémdoseupassado

—tudoaquilofaziaminhacabeçagirar.Masmantiveacalma.“Começoumuitobem,Füsun”,disseeu.“Limonvaiacabarsendoamelhordassuasobras.Afinal,éummodeloquevocêconhecemuitobem,eéquandodesenhamosascoisasqueconhecemosmelhorqueproduzimosasmelhoresobrasdearte.”

Page 315: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Masnãoestouquerendoserrealista.”“Comoassim?”“Nãovoupintaragaiola.Limonvaiaparecerempoleiradodiantedajanelacomoumpassarinho

soltoquepousoualiporsualivreeespontâneavontade.”Aquela semana, fui jantar mais três vezes com os Keskin. A cada uma delas, depois que

acabávamosdecomer,íamosatéoquartodosfundosacompanharosprogressosdoretratodeLimon.Ele pareciamais feliz e animado fora de sua gaiola, e, quando íamos ao quarto dos fundos, nosinteressávamosmaispelapinturaquepeloprópriopássaro.Depoisdeumadiscussãoestranhamentesériasobreasdificuldadesdaquelaobra,falávamosdeumaviagemparairverosmuseusdeParis.Nanoitedeterça-feira,enquantoobservávamosapinturadeLimon,eudisseaspalavrasquetinha

preparado de antemão, embora estivesse nervoso como um colegial: “Querida, chegou a hora dedeixarmosessacasaeessavidajuntos”,sussurrei.“Avidaécurta,eemnossa teimosia jáperdemosmuitosdias,muitosanos.Agoraprecisamosirparaoutrolugaresermosfelizes.”Füsunfezdecontaque não me ouviu, mas Limon respondeu com um chilreio apressado. “Não temos mais nada atemer,maisnadaquenosprenda.Vocêeeu,nósdois,devemosiremboradaquijuntos,paraoutrolugar,paraoutracasa,paraumacasaquesejanossa,eviver felizesapartirdeentão.Vocêsó temvinteecincoanos—temosmeioséculodevidapelafrente,Füsun.Sofremosbastantenessesúltimosseisanosparamerecercinquentaanosdefelicidade!Vamosemborajuntosagora.Jáfomosteimososumcomooutroportempodemais.”“Fomosteimososumcomooutro,Kemal?Issoparamiménovidade.Nãoponhaamãoaí,está

assustandoopassarinho.”“Nãoestouassustandoocanário.Veja,eleestácomendonaminhamão.Podemosreservarparaele

omelhorlugardacasa.”“Meupaideveestarseperguntandoondenósnosmetemos”,disseela,emtomcaloroso,comose

compartilhássemosumsegredo.Naquinta-feira seguinteassistimosaLadrãodecasaca.EmvezdeverGraceKelly, fiqueivendo

Füsunassistindoàestrela,doinícioaofim.Emtudo—dapulsaçãodasveiasazuisnopescoçodaminhabeldadeàmaneiracomosuamãoadejavaporsobreamesa,ajeitavaocabeloouseguravaseucigarro—euviaseufascíniopelaprincesadastelas.Quandofomosaoquartodosfundos,Füsundisse:“Sabeoquê,Kemal?GraceKellytambémnão

eraboadematemática.Evirouatrizdepoisdetrabalharprimeirocomomodelo.Masaúnicacoisaqueinvejonelaéquesabiadirigir”.Emsuaapresentaçãodaquelasemana,comoseestivessedandoaconheceralgumainformaçãode

cocheira,EkremBeyrevelouumaestranhacoincidênciaaosfãsdecinemadaTurquia:que,umanoantes, a princesa morrera num acidente de carro na mesma estrada em que aparecia dirigindonaquelefilme.“Porquevocêteminvejadisso?”“Nãosei.Dirigindoelapareciatãopoderosaelivre.Talvezsejaporisso.”“Possoensinarvocêadirigir,sequiser.”“Não,não,seriaimpossível.”

Page 316: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Füsun,euseiqueemduassemanaspoderiaensinarosuficienteparavocêtiraracarteiraedirigirperfeitamente por Istambul. Não há amenor dificuldade. Além disso, Çetinme ensinou a dirigirquando eu era da sua idade [o que eramentira]. Você só precisa ficar calma e ter um pouco depaciência.”“Pacienteeusou”,respondeuFüsunemtomconfiante.

Page 317: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

73.AcarteirademotoristadeFüsun

Emabrilde1983,Füsuneeucomeçamosasaulasparaoexamedemotorista,depoisquenossosprimeiros planos provocaram cinco semanas de indecisão, relutância simulada e silêncio. Ambossabíamosquehaviamaisemjogoqueumasimplescarteirademotorista,poisaintimidadeentrenósseriapostaàprova,novamentenumcontextoemqueeufiguravacomoseuprofessor.Tinhachegadonossa segunda chance, e, convencidodequeDeusnãohaveria denos concederuma terceira, euestavatenso.Aindaassim, sentia-me radiantecomaconcordância finaldeFüsun,epor issoalimentavauma

autêntica esperança de ficar cada vezmais relaxado, alegre e confiante.O sol começava a quereremergirportrásdasnuvens,depoisdeumlongoetenebrosoinverno.Foina tardedeumdessesdiasensolaradoseresplandecentesdeprimavera(15deabril,paraser

exato, três dias depois que tínhamos celebrado seu vigésimo sexto aniversário com um bolo dechocolate que eu comprara na Divan) que peguei Füsun no Chevrolet diante da mesquita deFiruzağaparasuaprimeiraauladedireção,e lá fomosnós,comigoaovolanteeFüsunsentadaaomeu lado.Elamepediraparanãoapegar em frentedacasaemÇukurcuma,masnumaesquinaladeiraacima,acincominutosdosolharescuriososdavizinhança.Era a primeira vez em oito anos que saíamos juntos a sós, embora eu estivesse tenso e nervoso

demais para perceber minha própria alegria. Estava saindo a sós com ela depois de uma esperaangustiantedeoitoanos—forasubmetidoatantasprovas,tinhasuportadotantador—,masapesarde tudonãoeraestaaminhasensação.Sentia-meantescomoseestivessesaindopelaprimeiravezcomumajovemespetacularquealgumaoutrapessoativesselocalizadoparamim,eque,naopiniãodeles,formariacomigoumparperfeito.Füsunusavaumelegante vestido estampado com rosas cor de laranja e folhas verdes sobreum

fundobranco.Foiessemesmovestido—comseudecoteemVeasaialogoabaixodosjoelhos—queusouemtodasasaulasdedireção,comoumaesportistaqueusasseomesmotrajeespecíficoemcadasessãode treinamento,eno finaldasaulas seuvestido ficavaencharcado,comoas roupasdeumaatleta.Trêsanosdepoisquecomeçamosasaulasdedireção,quandolocalizeiaquelevestidonacômoda de Füsun, eu o peguei, cheirando instintivamente suas mangas e sua parte da frente àprocura do aroma singular que ela emanava, desejando relembrar o prazer daquelas nossas aulastensasevertiginosas,noparqueYıldız,logoacimadopaláciodosultãoAbdülhamit.As axilas de Füsun eram a primeira parte que ficava úmida, antes que manchas escuras se

espalhassem lenta e adoravelmente por seus seios, seus braços e sua barriga. Às vezes o carroengasgavanumpontoensolaradodoparque,e—assimcomooitoanosantes,quandofazíamosamor—transpirávamosumpouco,sentindoosolnanossapele.MasFüsuneeutranspirávamosnãotantopor causa do sol quanto por estarmos a sós no carro, respirando o mesmo ar confinado, com omesmo acanhamento, as mesmas tensões e o mesmo nervosismo. Quando Füsun cometia algumerro,passandoporexemplocomopneudianteirodireitodacalçada,desgastandoaengrenagemoudeixandoomotormorrer,enrubesciaderaivaecomeçavaatranspirar,maisprofusamenteaindanas

Page 318: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

ocasiõesemqueerravaatrocademarchas.Füsunestudaracomcuidadoasregrasdotrânsito,decorandooslivretosemcasa,eseumanejodo

volantenãoeraruim,mas—comotantosmotoristasiniciantes—atrocademarchaseraseupontofraco.Ela conduzia com todoocuidadoabaixa velocidadepercorrendoa áreade aprendizado, ereduziaaindamaisaochegarnaesquina,aproximando-sedacalçadacomocuidadodeumcapitãoquemanobraparaencostaronavionumcais,e,quandoeudizia“Perfeito,minha linda,vocêestáindomuito bem”, ela tirava o pé da embreagem depressa demais e o carro dava um salto para afrente,estertorandosemfôlegocomoumvelhoagonizante.Enquantoocarroavançavaaostrancos,comouminválidotomadopelatosse,eugritava:“Aembreagem,aembreagem,aembreagem!”.Masem seu pânico Füsun pisava no acelerador ou no freio, nunca no pedal certo. Quando era oacelerador,ocarrodavaumsaltoameaçadorantesdemorrer.EuobservavaosuorescorrerpelorostovermelhodeFüsun,pingandodapontadeseunarizebrotandoabundanteemsuastêmporas.“Chega, não queromais”, dizia ela, enxugando o rosto com as costas damão, profundamente

envergonhada. “Nunca vou aprender essa coisa. Eu desisto! Não nasci para sermotorista, é isso.”Entãodesciadocarroesaíaandandofuriosa.Àsvezessaltavapara foradocarrosemdizernada,epescando um lencinho em sua bolsa caminhava para longe enquanto enxugava a transpiração;quandochegavaaumpontoaquarentaoucinquentapassosdemim,ficavaaliparadaumtempo,fumandofuriosamente.(Numadessasocasiões,doishomensqueacharamquevierasozinhaparaoparqueacorreramemsegundosparajuntodela.)NoutrasvezeselaacendiaseuSamsunsemdescerdocarro,eocigarrotambémficavasaturadodesuacóleraúmidaenquantoelaoapagavacomforçanocinzeiro,dizendoquenunca iaconseguir suacarteirae,dequalquermodo,nãoqueriamesmoaprenderadirigir.Naturalmenteeuentravaempânico,porquepareciaquenãoestavadesistindoapenasdacarteira

demotorista,masdenossafelicidadefutura,equaseimploravaaFüsunqueprocurasseterpaciênciaeseacalmar.Enquantoseuvestidoúmidosecolavaemseusombros,eucontemplavaseusbraçosadoráveis,o

pânico em seu rosto, sua testa franzida, seu gesto de esticar nervosamente os braços, e seu corpomiúdo,ensopadodesuor,comoocorrianaquelesdiasdeprimaveraemquenosamávamos.Poucodepoisdeocuparobancodomotorista,Füsunficavamuitocorada,empoucotempoabriaobotãodecimadoseuvestido,esuavaaindamaisprofusamente.Vendoaumidadeemseupescoço,emsuastêmporaseatrásdesuasorelhas,eutentavalembrar,vislumbraraquelesseiosmagníficosemformade pera que, oito anos antes, eu pusera emminha boca. (Naquela noite, de volta àminha casa,depois de consumir depressa alguns copos de rakı em meu quarto, sonhei que tinha visto seusmamilos,vermelhoscomomorangos.)Àsvezes,enquantoFüsundirigia,eupercebiaqueelaestavaconsciente de até que ponto olhar para ela me deixava intoxicado e, sentindo que ela não seincomodavaenaverdadeatéachavabom,meudesejocresciaaindamais.Quandoeumeinclinavaparaafrenteafimdelhemostrarcomotrocardemarchasuavementecomummovimentoúnicoeminhamãoencostavanadela,emseu lindobraçoouemsuacoxa,ocorria-meque,antesmesmoquequalquercontatofísicotivesseocorridonaquelecarro,nossasduasalmastinhamsetransformadonumasó.EntãoFüsuntornavaatiraropédaembreagemantesdahora,eoChevrolet56domeupai

Page 319: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tinhaumfrêmitodepangarépobreedoente,estertorandoviolentamenteatéseapagar.Comomotorengasgado, percebíamos o silêncio profundo que reinava no parque à nossa volta, no palacete deverão à nossa frente, em toda parte, pelomundo todo. Escutávamos encantados o chiado de uminseto que iniciava seu voo vernal antes que a primavera se firmasse, e percebíamos como eramaravilhosoestarvivonumparquenumdiadeprimaveraemIstambul.Foi naqueles jardins e naqueles palacetes que Abdülhamit se escondeu do mundo inteiro,

governandoreclusooEstadootomanoebrincandocomoummeninocomaminiaturadenavionagrande piscina (os Jovens Turcos chegaram a planejar um atentado a bomba que destruísse aomesmo tempo ele próprio e o navio); depois da fundação da República, aquele terreno setransformaranumparquepúblicoque serviapara as famílias ricasdaremumpasseio tranquilooupara aspirantes amotorista igualmente sempressa.TantoHilmi, oBastardo, quantoTayfun e atéZaimmecontaramquecasaiscorajososquenãotinhamaondeirvinhamatéali,refugiando-seatrásdos plátanos e das castanheiras centenárias, para trocar beijos. Semprequeos víamos abraçados àsombradasárvores,Füsuneeurecaíamosnumlongosilêncio.Nossasaulasduravamnomáximoduashoras,emboraamimparecessemtão infindáveisquanto

nossas horas de amor no apartamento do edifício Merhamet; quando cada aula acabava,sucumbíamosaosilêncioquesetransformaraemnossopadrãobásicodecomportamento.“VamosaEmirgântomarumchá?”,euperguntavaquandotranspúnhamososportõesdoparque.“Sim,estábem”,sussurravaelaemresposta,comoumameninaacanhada.Eu me sentia eufórico como um rapaz que, tendo chegado ao momento de combinar seu

casamento, só encontrasse motivo de deleite e gratidão depois do primeiro encontro com suaprometida.PercorríamosasmargensdoBósforo,estacionandojuntoaomar,eficávamossentadosnocarro,tomandocháaosgoles,eeuperdiaafaladefelicidade.Eraaúnicacoisaqueconseguíamosfazerdepoisdasagitadascorrentessubmersasquedominavamnossasaulas.Füsunficavaemsilênciooufalavasobredireçãodeautomóveis.Asjanelasàsvezesseembaçavam,eumaouduasvezestenteiusaralgumpretextoparatocá-laou

dar-lheumbeijo,mas,como todamoçahonradaque recusassequalquer tipode intimidade físicaantesdocasamento,elameempurravaeducadamente.Aindaassim,mesmodepoisdessesmomentoselanãoperdianadadeseurefulgentebomhumor—equealegriaeraverquenãoficaraaborrecidacomigo. Havia, acho, algo em minha reação satisfeita à rejeição que lembrava um pretendenteprovincianodescobrindoqueamoçaquetencionadesposartem“princípios”.Em junho de 1983, percorremos praticamente todos os bairros de Istambul reunindo a

documentaçãonecessáriaparaoexamedemotorista.Umdia,depoisdeesperarpormeiodianumafiladoladodeforadaadministraçãodoHospitalMilitardeKasımpaşa,aoqualtodososcandidatosamotoristaeramencaminhadosdevidoàsmedidasdeemergênciavigentesnaépoca,aparecemoscomumatestadoconfirmandoaboaformadosistemanervosodeFüsunedeseusreflexosdepoisdeumperíododetempointerminávelàportadeummédicoirritadiço,edemosumavoltatriunfalapéporaquela área, chegando àmesquita dePiyalepaşa.Noutro dia, tínhamos esperado por quatro horasnumafilaàportadoHospitaldePrimeirosSocorrosdeTaksim,sóparadescobrirqueomédicotinhaido para casa; para acalmar nossa indignação, jantamos cedo num pequeno restaurante russo de

Page 320: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Gümüşsuyu. Outro dia, depois de sermos informados de que o otorrinolaringologista de queprecisávamostantoestavadefériasequeprecisaríamosiraumhospitalemHaydarpaşa,passamosotempo na balsa de Kadıköy jogando simits do deque para as gaivotas. Foi no Hospital Çapa daUniversidade de Istambul que entregamos nossa pilha de atestados e documentos, e, enquantoesperávamosquefossemdevidamenteexaminados,demosumalongacaminhada,percorrendoruasestreitas calçadas de pedra e passandobemna frente dohotelFatih.Eu sofrera tamanha angústianaquele lugarporcausadeFüsun,e foi láquerecebianotíciadamortedemeupai,masagoraohotelpareciaficaremoutracidade.Sempre que conseguíamos mais um atestado necessário, que guardávamos na pasta que nos

acompanhavaatodaparteequeaessaalturaexibiaváriasmanchasdechá,café,tintaeóleo,saíamosdohospitalmuitoanimadose íamoscomemorarnossosucessoemumrestaurantesimplesdaárea.Füsunfumavaabertamente,semficarnervosaoutentarserdiscreta;àsvezessedebruçavanadireçãodo cinzeiro e— como se fôssemos camaradas doExército— pegava sem avisomeu cigarro paraacender o seu, lançando em seguida um olhar expectante e brincalhão à sua volta, à procura dadiversãoseguinte.Deixava-meanimadoverminhaamada,vítimadeumcasamentoinfeliz,aproveitara vida daquela forma: olhando para as pessoas, conhecendo novos lugares, encantada com assurpresasdavidaurbanaeansiosaporfazernovosamigos.“Viu aquele homem?O espelho que está carregando émaior que ele”, diziaFüsun.Depois de

ficarparadaaomeuladonumaruacalçadadepedravendoosmeninosjogaremfutebol,comumaalegriamais sinceradoque aminha, elanos compravaduas garrafasde refrigerantedamerceariaMar Negro (a qual, como para provar as palavras de Zaim, não vendia Meltem!). Quando umtrabalhador carregando bombas manuais e uma imensa barra de ferro passou descendo a rua,olhandopara as janelas rendilhadasdas casasdemadeira e gritando “Limpezade esgoto!”paraosmoradores dos edifícios de concreto e dos pisos superiores,Füsun ficou tão fascinada que pareciaumacriança;nabalsadeKadiköy,quandoapareciaumvendedordemonstrandoumutensíliocapazdedescascarabóbora,espremer limãoeatécortarcarneemfatias,elaestudavacuidadosamenteoinstrumento de metal nas mãos. “Viu aquele rapaz?”, perguntava sobre alguém com quemcruzáramos na rua. “Está praticamente estrangulando o irmão menor.” Num cruzamento, ondemuitagenteseaglomeravadiantedeumparquinhoenlameado,elaexclamou:“Oqueestáhavendo?Estãovendendooquê?”,eseadiantou,puxando-meareboque,paraumpontodeondepudéssemosverosciganoseseuursodançarino,ascriançasdeaventalpreto,rolandonomeiodaruaenquantobrigavam, e os olhos tristes de dois cachorros enganchados no coito enquanto algumas pessoaszombavamemvozaltaeoutrosassistiamcomarpassivo.Sedoiscarroscolidissemeosmotoristasdescessem, loucosporumabriga, seumaboladeplástico corde laranjadeixasseopátiodeumamesquita e descesse quicando graciosa uma ladeira, se uma escavadeira estivesse preparando asfundações de um edifício numa avenida importante, ou se houvesse uma televisão ligada numavitrinedeloja,parávamosparaolharjuntoatodososoutrospassantes.Tornarmosanosconhecerenquantoexplorávamosacidade;víamosumapartedesconhecidade

Istambul a cada dia, e eu via um lado desconhecido deFüsun— era umprazer empermanenterenovação.Quandotestemunhávamosocaosquereinavanoshospitais,vendoosvelhosdesesperados

Page 321: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

queprecisavamfazerfilajuntoàportaaindademadrugadaparaterachancedeveralgummédico,ou quando deparávamos com açougueiros clandestinos que carneavam carcaças de animais nosterrenosbaldiosdasruassecundárias,longedosolhosdosfiscaisdoconselhodacidade,parecia-mequeasáreasmaissombriasdavidanosdeixavamaindamaispróximos.Emboranossaprópriahistóriativessesuassombrasconstrangedoras,nãoeramnadaemcomparaçãocomastrevasferozesdavidadacidadeedeseusmoradores,quevislumbrávamosaopercorreraquelasruas.Acidadenosensinavacomonossas vidas eramordinárias e nos transmitia tambémumahumildade que excluía a culpa.Haviaumpoderdeconsolaçãoqueeusentiaaomemisturaraostranseuntesdacidadenosônibusenostáxiscompartilhados,equandoadmiravaFüsunenquantoelaconversavacomalgumamulherdecabeçacobertasentadanobancoaolado,comonetoadormecidonocolo.Com ela, pude descobrir todo o desconforto e todo o prazer de um passeio por Istambul na

companhiadeumalindamulherdecabeçadescoberta.QuandoentrávamosnaáreaderecepçãodeumhospitalouemumarepartiçãodaburocraciadoEstado, todasascabeças seviravamparaela.Velhos funcionários acostumados a encarar com olhos altivos e indiferentes os idosos e osempobrecidos endireitavam as costas, apresentando-se com um olhar de dedicação diligente aodever, e sem lheperguntar sua idadedirigiam-se a ela como“jovem senhora”.Havia aquelesque,habituados ao uso despreocupado de formas de tratamentomais familiares com outros pacientes,faziamquestãodetratá- lamaisformalmentecomo“asenhora”,eoutrosquenãoseatreviamsequeraolharpara seu rosto. Jovensmédicosa abordavamcomooscavalheirosmuitoeducadosdos filmeseuropeus, e perguntavam: “Posso ajudá-la em alguma coisa?”. Professores calejados que davam aimpressão de nem perceber minha presença tentavam capturar sua boa vontade com gracejos ecortesias. E todas essasmudanças eramprovocadas pela aparição de uma belamulher de cabeçadescobertaemumarepartiçãoburocráticadoEstado, semeandoumainquietaçãomomentânea,àsvezesatécertopânico.Algunsfuncionáriosnãoconseguiamfalarclaramenteemsuapresença,outrosgaguejavam,outrosainda ficavammudos, sendoobrigadosa recorreraoutrohomemquepudesseatuarcomointermediário.Quandofinalmentemeviamemetomavampormaridodela,relaxavamnumdesamparomuitosemelhanteaomeu.“Füsun Hanım precisa de um atestado de um otorrinolaringologista para apresentar ao

departamentodelicenciamentodemotoristas”,diziaeu.“DeBeşiktaşnosmandaramparacá.”“Odoutoraindanãochegou”,respondiaocontínuoencarregadodobalcão.Abrindoapastaque

levávamosnasmãos,elelançavaumolharrápidoaosdocumentosquecontinhaedizia:“Porfavor,assineoregistroepegueumasenha”.Quandopercebíamoscomoeraimensaafiladepacientes,eleacrescentava:“Todomundoestáesperandonafila.Ninguéméatendidosemesperar”.Numa ocasião, percebi uma oportunidade demolhar amão do atendente,masFüsun objetou,

dizendo:“Não,vamosfazerascoisasdomesmomodoquetodomundo”.Enquantoesperávamosnafila,conversandocompacientesefuncionários,todomundoimaginava

queeufossemaridodeFüsun,oquemedeixavamuitosatisfeito.Nãoencaravaesseenganocomoumreflexodasuposiçãodequeumamulherjamaisiriaaumhospitalcomumhomemquenãofosseseumarido,mas como uma prova de que nossa intimidade crescente saltava aos olhos de todos.Certa vez saímos para passear um pouco pelas ruas secundárias de Cerrahpaşa, enquanto

Page 322: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

esperávamosqueonúmerodanossasenhafossechamadonoHospitalÇapadaUniversidade,eemalgummomentomeperdideFüsun,aoqueumajanelanumacasademadeiraemmauestadoabriu-seeumasenhoradecabeçacobertameinformouque“minhaesposa”tinhaentradonamerceariadaesquina. Atraíamos certa atenção nessas áreas, mas não provocávamos alarme. Algumas criançaspodiamnosseguir,algunsadultosnostomavamporturistasperdidos.ÀsvezesumjovemencantadocomFüsun podia nos seguir por certo tempo só para admirá-la de longe,mas, quando, algumasesquinasmais adiante, eupercebia seusolhares,desaparecia educadamente.Cabeçasmuitas vezesdespontavamemportasejanelas,asmulheresperguntandoaFüsunquemestávamosprocurando,ouqualendereço,eoshomensperguntandoomesmoamim.Umavez,vendoFüsunapontodedaruma mordida numa ameixa que acabara de comprar de um vendedor ambulante, uma senhoraestendeuamão,exclamando:“Espereumminuto,minhafilha.Primeirodeixeeulavaraameixaparavocê!”.Amulherlavounossasameixasemsuacozinhadepisodepedranoandartérreo,fez-nosumcaféenosperguntouoqueestávamosfazendonasredondezas;quandoeudissequeminhaesposaeeuestávamosàprocuradeumabelacasademadeiraparamorar,asenhorarepetiuainformaçãoatodososvizinhos.O tempo todo, nossas laboriosas aulas de direção no parque Yıldız continuavam, enquanto nos

preparávamostambémparaoexameescrito.Quandoestávamossentadosnopátiodealgumacasadechácomtempodesobra,FüsunàsvezestiravaumlivretodabolsacomotítulodeDirigiréfácilouTodas as perguntas do exame escrito, com respostas e, com um sorriso malicioso, começava a meinterrogar.“Oqueéumaviapública?”“Nãosei.”“Todas as ruas, avenidas e logradouros franqueados ao trânsito do público”, respondia Füsun,

recitandoumapartedememóriaelendooresto.“Muitobem,então,oqueétrânsito?”“Étudoquedizrespeitoàpresençaeaodeslocamentodepedestreseanimais…”“Estáerrado,nãoterminaaí”,diziaFüsun.“Otrânsitodizrespeitoàpresençaeaodeslocamento

depedestres,animais,veículosmecânicosetratorescomrodaspelasviaspúblicas.”Euadoravaessasconversasnaformadeperguntaserespostas,quenosfaziamlembrardaescola

secundária,docurrículo,quedependiamuitodamemorização,edosnossosboletins,que traziamnotasde“comportamento”,elogoeuacabavafazendoumaperguntaaela.“Oqueéoamor?”“Nãosei.”“AmoréonomequesedáaolaçoqueuneKemalaFüsunsemprequeelessedeslocampelasruas

oucalçadas;entramemcasas,jardinsousalas;ousemprequeeleolhaparaelasentadanopátiodeumacasadecháounumrestaurante,ousentadaàmesadojantar.”“Hummm…Gosteidaresposta”,diziaFüsun.“Masamornãoéoquevocêsentequandonãome

vê?”“Nessecaso,oamorsetransformanumaobsessãoterrível,umadoença.”“Eoqueissotemavercomoexamededireção?”,perguntavaFüsun.Emseguida,comportava-se

como se esse tipodeconversanãopudessedurarmuito entreumhomemeumamulherquenão

Page 323: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

fossemcasados,eeutomavaocuidadodenãofazermaisnenhumcomentáriodomesmotipopelorestododia.O exame escrito aconteceu emBeşiktaş, num palacete ondeNumanEfendi, um dos príncipes

loucos de Abdülhamit, ouvia as garotas do harém tocando oud enquanto ele passava seu tempoproduzindoquadros impressionistas representandooBósforo.Depoisda fundaçãodaRepública,ocasarão foi convertido pelo Estado em repartições que nunca estavam devidamente aquecidas, eenquanto eu esperava à porta pensei com tristeza, como já pensara inúmeras vezes, que devia terficado à espera dela à porta do edifício Taşkışla enquanto ela fazia seu exame de acesso àuniversidade, oito anos antes. Se eu tivesse rompido o noivado comSibel emandadominhamãepediramãodeFüsun,aessaalturajápoderíamostertrêsfilhos.Masaindateríamostempoparatrêsfilhos, ou atémais, depois que nos casássemos. Eu estava tão seguro disso quandoFüsun saiu doexamecomarmuitoalegre,anunciando“respondiatodasasperguntas!”,quemeviàbeiradelhecomunicarquantosfilhosiríamoster,masmecontive,lembrandoqueànoiteaindanossentávamos,comtodaasolenidade,àmesadafamília,vendotelevisãoenquantojantávamos.Füsunpassouno exame escrito comanotamáxima,mas foimiseravelmente reprovada em sua

primeiraprovaprática.Geralmentereprovavamtodomundonaprimeiratentativa,sóparaenfatizaroquantooperarumautomóveleraumacoisa séria,masnãoestávamospreparadosparao resultado.Ela entrou noChevrolet acompanhada por três examinadores, e, embora tenha conseguido dar apartidanocarroefazê-loentraremmovimento,nãotinhachegadolongequandoumexaminadordevozmuito grave instaladonobanco traseirodeclarou: “A senhoranãoolhounoespelho!”; quandoFüsunvirou-separatráseperguntou“Comodisse?”,mandaram-napararocarronamesmahoraedesembarcar. O motorista, diziam claramente as regras do trânsito, jamais podia olhar para trásenquanto dirigia. Os examinadores desceram prontamente do Chevrolet, como se realmentesentissemmedodeseveremnumcarrocomaquelamotoristaimprudente,umareaçãodegradantequedeixouFüsunhumilhada.Marcaramumsegundoexameparadaliaquatrosemanas,nofinaldejulho.Gentequeconheciao

modus operandi da repartição de licenciamento demotoristas riumuito ao nos ver tão abatidos ehumilhados, e nos explicaram pacientemente como poderíamos assegurar a licença indo adeterminadacasadechádeumbairromuitopobre(comquatroretratosdeAtatürkeumrelógionaparede), frequentada por todomundo em Istambul que tinha alguma ligação com a atividade delicenciamento de motoristas. Se nos matriculássemos numa das autoescolas mais caras, onde osprofessores eram guardas de trânsito aposentados (e o comparecimento não era obrigatório),passaríamoscomtodaacerteza,porqueajuntadeexaminadoresemuitospoliciaiseramsóciosdelas.PagarpelocursotambémnosvaleriaoprivilégiodefazerotestenumvelhoFordespecialmente

modificado: esse veículo tinha um buraco grande no piso ao lado do banco domotorista, de talmaneiraque,quandochegavaahoradeocandidatoamotoristaestacionarnumespaçoapertado,podiavermarcascoloridaspintadasnoasfalto;eserecorresseàsinstruções,escondidasatrásdaabaprotetoracontraosol,saberiaquaismarcasindicavamqueprecisavavirarovolanteomáximoparaaesquerda,eexatamenteemquemomentodeviaengatararéparaestacionarocarroimpecavelmente.Também era possível, por uma quantia maior, contornar de todo a matrícula numa autoescola,

Page 324: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

costumequeeu,umempresário,sabiasermuitasvezesinevitável.Mas,comoFüsunseopunhademaneira terminante aomenor enriquecimento dos policiais que a tinham reprovado de forma tãoinsensível,continuamosnossasaulasnoparqueYıldız.Oguiadoexamecontinhacentenasderegrasmenorescujoconhecimentoomotoristaprecisava

demonstrar nas ruas. Não bastava operar o carro de maneira apropriada na presença da juntaexaminadora; também era necessário demonstrar, às vezes com gestos exagerados, o plenoconhecimentodessas regras— por exemplo, olharno espelho retrovisor da forma exigida contavamenosdoquequandoocandidatotambémdemonstravaaconsciênciadessanecessidadesegurandooespelho.Umpolicialcommodosdepai,comlongaexperiêncianoprocessodeexames,explicouisso a Füsun demaneiramuito amigável, dizendo: “Minha filha, não basta você dirigir durante oexame.Tambémprecisadaraimpressãodequeestádirigindo.Dirigirvocêfazparasimesma,masparaosexaminadoresprecisatambémdaraimpressão”.Depoisdenossasaulasdedireçãonoparque,quandoosoljáestavabaixonocéu,seguíamosaté

Emirgânparaumcaféeumcopode sodaàbeiradoBósforo,ouaumcafédeRumelihisarıparapedir um chá tirado do samovar, e esses prazeres nunca deixavamdeneutralizar os desgostos dasaulas.Masesperoqueosleitoresnãoinfiramdissoquenoscomportávamoscomonamoradostontos.“Estamosavançandomaisnessasaulasdoquenasdematemática!”,disseeucertavez.“Issoveremos”,respondeuFüsuncomcautela.Àsvezesnossentávamosàmesaetomávamosnossoschásemsilêncio,comosefôssemoscasados

havia muito tempo e os assuntos de conversa já tivessem se esgotado entre nós, e ficávamosadmirando os petroleiros russos que passavam, ou as balsas da Linha da Cidade a caminho deHeybeliada,ou(comoaconteceuumavez)oSamsunpartindoparaseucruzeiropelosportosdomarNegro;parecíamosabsortosnosofrimento,imersosemsonhosdeoutrasvidaseoutrosmundos.Füsuntambémfoireprovadanosegundoexame.Dessavez,impuseram-lheatarefamuitodifícil

deentrarnumavagaimagináriaderéenquantosubiaumaladeira.Quandoela,maisumavez,fezoChevrolettremerechacoalhar,mandaram-nadescerdocarrodamesmaformahumilhante.Eu assistia de certa distância com um grupo composto de policiais aposentados, candidatos,

escritoresdecartas, vendedoresdecháeváriosespectadoresdebocaaberta;quandoumdelesviuumexaminadordeóculostirarnovamenteovolantedeFüsun,disse:“Aquelagarotatomoubomba”,ealgunsriram.Enquanto voltávamos para casa, Füsun estava aborrecida demais para falar. Sem lhe perguntar

nada,estacioneiocarroemOrtaköyemesenteinumapequenameyhanedomercado,ondepedidoiscoposderakıcomgelo.“Avidaécurta,masé linda,Füsun”,disseeudepoisdealgunsgolesderakı.“Chegouavezde

deixaressesmonstrosseaproveitaremdevocê.”“Comopodemsertãomalvados?”“Elesqueremdinheiro.Vamospagar.”“Vocêachaqueasmulheresnãoconseguemaprenderadirigirdireito?”“Eunão,maselessim.”“Todomundoacha.”

Page 325: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Querida, por favor, não seja tão teimosaquanto a isso também”, disse eu, torcendonamesmahoraparaqueFüsunnãotivesseescutadoasminhaspalavras.“Nãosouteimosaemcoisanenhuma,Kemal”,disseela.“Mas,quandoahonraouoorgulhoda

pessoa está sendo pisoteado, você não pode baixar a cabeça. Agora eu vou lhe pedir uma coisa equeroquepresteatenção,porfavor,e leveasériooquevoudizer.Querotirarminhacarteirasempagarnadadesuborno,Kemal,enãoqueroquevocêinterfirademaneiranenhuma.Nãoousepagarumapropinapelasminhascostas,etambémnãotenteusarnenhumpistolão,porqueeuvousaberevouficarmuitoaborrecida.”“Estábem”,disseeu,baixandoosolhos.Tomamosnossosrakıssemtrocarmuitaspalavrasmais.Jáeraquasenoite,eaquelameyhaneno

meio do mercado estava vazia. Moscas impacientes se empoleiravam inseguras nas bandejas demexilhõesfritosedepequenasalmôndegascomtomilhoecominho.Anosmaistardevolteilá,parauma visita àquelameyhane arruinada cuja memória me é tão cara, mas toda a casa tinha sidodemolidaeemseulugarhavialojasvendendoamuletoscontraomau-olhado,bugigangaseoutraslembrançasparaturistas.Naquela noite, depois que deixamos o restaurante, enquanto voltávamos para o carro, peguei o

braçodeFüsun.“Sabedeumacoisa,querida?Foiaprimeiravezemoitoanosquecomemosnumrestaurantesó

nósdois.”“Foi”,disseela.Aluzquecintilouporumsegundoemseusolhosdeixou-meextraordinariamente

feliz.“Etenhomaisumacoisaalhedizer.Dêaschavesaqui,queeuvoudirigirocarro.”“Claro.”Asesquinaseas ladeirasdeBeşiktaşeDolmabahçea fizeramtranspirarumpouco,masmesmo

tendo bebido alguma coisa ela conseguiu conduzir o Chevrolet até a mesquita de Firuzağa semqualquerincidente.Quandoeuapegueitrêsdiasmaistardenolugardesempre,elaqueriadirigirdenovo,masacidadeestava repletadepoliciaiseeuaconvenciadesistir.Apesardo tempoquente,nossaaulacorreumuitíssimobem.Enquantovoltávamos,olheiparaasondasdoBósforoagitadopeloventoedisse:“Sepelomenos

tivéssemostrazidonossasroupasdebanho!”.Davez seguintequesaímos,quandoFüsunchegouemseuvestidodeestampa floral,usavapor

baixo obiquíni azul que exponho aqui.Depois denossa aula, napraia deTarabya, ela só tirouovestidoummomentoantesdemergulhardocostão.Porumbreveinstantedeacanhamento,euviocorpodeminhaamada,eentãoelaseafastouanado,tãodepressaquedavaaimpressãodefugirdemim.Asbolhaseaáguaagitadanorastrodeseumergulho,aluzmaravilhosa,oazulmuitoescurodo Bósforo, seu biquíni— tudo isso se combinou em minha mente para formar uma imagemindelével, uma sensação à parte. Passei anos examinando esse sentimento, e aquelas coresestupendas, como nas fotografias e nos cartões-postais antigos dos amalucados colecionadores deIstambul.Puleinomarlogoatrásdela.Umaestranhavozinteriormefalavademonstrosecriaturasmaléficas

quetalvezvivessemdebaixod’água,esperandoparaatacá-la.Euprecisavaalcançá-laatempodelhe

Page 326: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

darminhaproteçãocontrasasprofundezas.Lembroquefiqueitontoenquantoaprocuravanomaragitado,quenadeiomaisdepressaquepude,empânicodiantedaideiadequeafelicidadepudessemeescaparentreosdedos,enumdadomomento,noaugedopânico,nãoconseguiarespirar.FüsuntinhasidoarrastadapelascorrentezasdoBósforo!Naquelahoraeuquismorrercomela;quismorrernaquelamesmahora.EbemnessemomentoasondascaprichosasdoBósforoseabrirameláestavaFüsunbemàminhafrente.Osdoissemfôlego,encaramo-noscomosorrisodosamantesfelizes.Masquando tentei me aproximar, para poder tocá-la, beijá- la, ela fez um ar contrariado, como umagarotadominadaporpudoreseescrúpulos;semhesitarumsegundo,afastou-sedemimnadandodecostas.Nadeiatrásdela,tambémdecostas.Enquantonadava,admiravaomovimentodesuaspernasmagníficas,ascurvassuavesdesuasnádegas.Sómuitodepoiseuiriaperceberoquantoestávamoslongedacosta.“Chega!”,disseeu.“Paredefugirdemim.Éaquiquecomeçamascorrentezas.Podemnospuxar

paralonge,enósdoispodemosmorrer.”Virei-mee,quandovicomoamargemestavadistante,fiqueicommedo.Acidadenosrodeava,a

margemeuropeiaagorapareciatãodistantequantoaasiáticaquetínhamosàscostas.Láestavamabaía de Tarabya e o Huzur, o restaurante onde tínhamos jantado tantas vezes, e todos os outrosrestaurantesqueladeavamacosta,eohotelTarabya,eoscarros,micro-ônibuseônibusvermelhosquesearrastavamaolongodacosta,easmontanhasqueseerguiamacimadela,easfavelasacimadeBüyükdere—todaacidadeestavamuitodistante.Era como se contemplássemos uma pintura panorâmica emminiatura, não só doBósforo e da

cidade,masdavidaqueeudeixaraparatrás.Pareciaumsonho,aquelasensaçãoqueeutinhadeterme afastado tanto da cidade e do meu passado. Ter chegado ao meio da cidade, no centro doBósforo,estartãodistantedetodomundo,maspertodeFüsun,parecia-meosoprogeladodamorte.Quando uma onda maior que as demais atingiu inesperadamente Füsun e ela deu um grito,envolvendomeupescoçoemeusombroscomosbraços,foiqueeusoubequesóamortepoderianosseparar.Logodepoisdessetoqueardente—quepodemoschamardeabraço—elausouadesculpadeum

cargueiro de carvão que se aproximava para se afastar nadando. Nadava com graça e grandevelocidade, tão depressa que eu tinha dificuldade em acompanhá-la. Assimque subiu àmargem,Füsunseafastouparaacabine.Nadadissolembravadoisamantessempudor.Mostrávamo-nostãoacanhados, calados e encabulados como se tivéssemos acabado de ser apresentados por nossasfamílias comvistas aummatrimônioarranjado:nemsequerpodíamosolharumparaooutro semestarmoscomocorpocoberto.Assumindo o volante na ida para suas aulas e na volta, e às vezes a caminho da cidade

propriamentedita,Füsunlogoaprendeuadirigirbem.Masnemassimpassounoexamepráticodocomeçodeagosto.“Fuireprovada,mastudobem.Nãovamospensarnesseshomensmaus”,disseFüsun.“Vamosaté

omar?”“Vamos.”Como tantos candidatos que vinham ao exame prático comos amigos e tiravam fotos como se

Page 327: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

estivessemdepartidaparaoserviçomilitar,maseramreprovados,Füsundeixouolocalaovolante,com um cigarro na boca e a mão na buzina, como um motorista de caminhão mal-educado.(Quandovolteilámuitosanosdepois,aquelesmorrosantesfeios,carecasecobertosdelixotinhamsetransformadoemcondomíniosdeluxo,compiscinas.)ContinuamosnossasaulasnoparqueYıldızatéo fimdoverão,masaessaalturaacarteirademotorista se transformaranumsimplespretextoparairmosaumrestauranteouàpraia.AlgumasvezesalugávamosumbotearemonocaisaoladodaestaçãodabalsaemBebek,ejuntosremávamosatéalgumlugarlongedaságuas-vivasedasmanchasdeóleo,ondeabaía seencontravacomascorrentezas,e lámergulhávamosnomar.Umdosdoisficava segurandoobote,para impedirque fossepuxadopelacorrenteza, segurandoooutrocomamãoqueficaralivre.EuadoravaalugarumbotearemoemBebek,inclusivepeloprazerdeficardemãosdadascomFüsun.Esseamorquefinalmentefloresciaentrenósdoisdepoisdeoitolongosanosnãoeraumacoisaque

recebêssemos com grande alegria; na verdade nós o tratávamos com imensa cautela, como umaamizadequepassapormausmomentosmasnuncaseacaba.Osoitoanosquetínhamosatravessadohaviamsepultadonossoamorbemfundo,maseleaindasefaziasentirmesmonosmomentosemquelhedávamosmenosatenção.Mas,quandoeuviaqueFüsunnãopretendiacorrerosriscosdeumaintimidademaiorantesdocasamento,comeceitambémaresistirameudesejoconstantedetomá-laemmeusbraçosoubeijá- la.Eucomeçaraacultivaraideiadequeoscasaisqueperdemacabeçaecapitulam ao desejo antes do casamento, sem levar em conta as consequências, não estavamprovavelmentedestinadosàfelicidadeconjugal,masantesàdesilusãoeàdepressão.QuantoaHilmi,o Bastardo, Tayfun eMehmet, com quem eu esbarrava ocasionalmente, eu começara a adquirirdesdémporessesmeusamigos,queaindafrequentavambordéisesegabavamdesuasaventurascomasmulheres.Aomesmotempo,entretanto, sonhavaquedepoisqueFüsuneeunoscasássemoseumesentirialibertadodemeuspensamentosobsessivosepoderiamereencontrarcommeusamigosetodososparticipantesdemeuantigocírculo,comasatisfaçãoquesóamaturidadepodetrazer.Nofinaldoverão,Füsunfezmaisumaprovapráticacomosmesmosexaminadoresemaisuma

vezfoireprovada.OquedesencadeousuasqueixascostumeirasquantoaopreconceitodoshomenscontraasmulheresquedirigiamemIstambul,eseestendiasobreissocomaquelamesmaexpressãonorostodequeeumelembravadetantosanosatrás,quandomefalavadoshomensindecentesqueaapalpavamemolestavam.No começo de uma noite, depois de nossa aula de direção, fomos até a praia de Sariyer, e,

enquantotomávamosMeltem(umsinaldequeacampanhadeZaimcomPapatyatinhafuncionadode algummodo), vimos um amigo deMehmet chamado Faruk ao lado de sua noiva, e naquelemomentosentiumaestranhaformadevergonha.NãoporqueFaruktivessefeitováriasvisitasàyalıdeAnadoluhisarıduranteoverãode1975ouporqueeletivessetestemunhadootipodevidaqueSibeleeulevávamoslá;sentivergonhaporqueFüsuneeunãodemonstrávamosnenhumaalegriaenquantoestávamosalisentadostomandoMeltem.Osilênciosedeviaànossaconsciênciadequeaqueleeranossoúltimopasseio até a praia.As primeiras cegonhas quepassavamvoandopor cimadenós aoanoitecer nos anunciavam que aquele lindo verão estava perto do fim. Uma semana mais tarde,quando as praias se fecharam com as primeiras chuvas, nem Füsun nem eu sentimos a menor

Page 328: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

vontadedeirfazeraulasdedireçãonoparqueYıldız.Depoisdeserreprovadamaistrêsvezes,Füsunfinalmentepassouemsuaprovapráticadedireção

no início de 1984. Tinham se cansado dela, e compreenderam àquela altura que ela jamais lhespagariaqualquerpropina.Paracelebraraocasião,naquelanoitefuicomela,tiaNesibeeTarıkBeyaoMaksimGazino,paraouvirMüzeyyenSenarinterpretarantigascançõesturcas.

74.TarıkBey

NaquelanoiteemquefomosjuntosaoMaksimdeBebek, todosnosembriagamose,depoisqueMüzeyyenSenarsurgiunopalco,nossamesatodacomeçouacantarcomela.Quandoentoávamososestribilhos,olhávamosnosolhosunsdosoutros,sorrindo.Relembrandoessediatantosanosmaistarde,imaginoquetinhaaauradeumacerimôniadedespedida.Naverdade,eraTarıkBey,enãoFüsun,quemadoravaMüzeyyenSenar,masacheiqueFüsun fossegostardever seupaibebendo,felizdecantarumasegundavozcomMüzeyyenSenarcomoemcançõescomo“Nãoexisteninguémcomo você”. O mais memorável daquela noite para mim foi perceber pela primeira vez que aausênciadeFeridunse tornaraumfatocorriqueiro.Naquelanoite, refleti felizsobre todoo tempoquepassarasozinhocomFüsuneseuspais.Àsvezesapassagemdotempoeraassinaladapelademoliçãodealgumprédio,peladescobertade

queumagarotinhase transformaranumamulherespirituosae linda,elaprópriamãede filhos,ouporquandoeupercebiaquealgumalojacomqueestavaacostumadosofreraumatentadoabomba,eficavaansioso.Quandoeuvi,maisoumenosnessaépoca,queaboutiqueşanzelizetinhafechado,fiquei penalizado não só pela perda das minhas memórias, mas igualmente por uma sensaçãorepentinadequeavidatinhaseguidoemfrentesemmim.NavitrineondeSibeltinhavistoabolsaJenny Colon falsificada nove anos antes, salames italianos pendiam e viam-se grandes queijosamarelos, bem como marcas europeias de temperos de salada, massas e refrescos que tinhamacabadodeentrarnomercadoturco.Seanteseusempregostavademesentarcomminhamãeàmesadojantareouvirsuashistórias

sobrecrianças, famíliasecasamentos, foiemtornodessaépocaqueessesrelatoscomeçaramamecausardesconforto.Enquantominhamãe,manejandosuashipérboleshabituais,mecontavacomomeuamigodeinfânciaFaruk,oRato,jáestavacomdoisfilhos—“ummeninoenorme!”—,emborasóestivessecasadohaviapoucotempo—“trêsanos!”—,equandoeupensavaquenãotinhapodidocompartilharminhavidacomFüsun,minhaalegriaseperdia,masminhamãe,sempercebernada,continuavafalando.Desde que şaziment tinha (finalmente) conseguido casar sua filha mais velha com o filho da

famíliaKarahan,tinhamparadodeiresquiaremUludağtodomêsdefevereiro,preferindopassarummêsnaSuíçacomorestodoclãdosKarahan,levandocomelesafilhamaisnovadeşaziment.Essafilhamais nova tinha encontrado um rico príncipe árabe que estava nomesmo hotel, e şazimentestavaapontodecasá-latambémquandosesoubequeopríncipetinhaoutramulheremseupaís—naverdade,tinhaumharém.QuantoàfamíliaHalisdeAyvalık,ofilhomaisvelhodeles—“Lembra,

Page 329: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

aquele rapaz de queixo comprido”, disseminhamãe rindo, o queme contagioumesmo contra avontade—, minha mãe soubera através de Esat Bey, seu vizinho em Suadiye, que o jovem foraflagradonumdiadeinvernocomababáalemãnacasadeverãodeErenköy.OfilhomaisvelhodeMaruf,oreidotabaco—quandoéramoscrianças,brincávamosjuntoscompásebaldesnascaixasde areia das pracinhas da cidade—, tinha sido sequestrado por terroristas, e minha mãe ficouchocada ao saber que eu não ouvira nada a respeito, nemmesmo quando foi solto em troca dopagamento de um resgate. Sim, eles tinham conseguido manter o assunto fora das páginas dosjornais,mas,comoafamíliaprecisaradetantotempoparaseconvencerafazeropagamento,todomundopassaramesesa fio “escandalizado”comoassunto— comoeupodia terdeixadodeouvirfalardaquilo?Fiquei preocupado, pensando que minha mãe podia ter me feito aquela pergunta como uma

formademeespicaçardevidoàsminhasvisitasà famíliadeFüsun; talvez lembrasseque, todavezqueeuchegavaemcasanasnoitesdeverãodecalçãodebanhomolhadoetantoelaquantoFatmaHanımmeperguntavamcomquemeuforanadar,eurespondia:“Tenhotrabalhadomuito,mamãe”,e tentava mudar de assunto (como se minha mãe não soubesse da situação terrível em que seencontravaaSatsat).Euficavatristeporque,depoisdenoveanos,aindanãotinhaencontradoalgummeiode revelar àminhamãemeuamorobsessivoporFüsun,quantomais lhe fazerconfidências;desejava que elame contassemais algumade suas histórias sem sentido nem fim, para podermeesquecer dosmeus problemas.Uma noite, ela descreveu em detalhes comoCemileHanım, comquemeumeencontraranumasessãodocinema-jardimMajesticaque foracomFüsuneFeridunmuitos verões antes, não conseguindo mais pagar a manutenção de sua mansão de oitenta anos,tinha,comoMükerremHanım,outradasamigasdeminhamãe,decididoalugá-laaprodutoresdemelodramas históricos, só para ver “aquela mansão enorme e linda” incendiar-se, pelo que lhedisseramdevido aumdefeitono equipamento elétricodurante as filmagens, embora todomundosoubesse que a família incendiara amansão de propósito a fimde poder construir um edifício deapartamentosemseulugar.Anarrativaeratãoanimadaqueeunãotinhadúvidadequeminhamãetinhaplenaconsciênciadaminha ligaçãopróximacomomundodocinema,detalhesqueOsmandeviaterlhecontado.Embora eu tenha achado graça ao ler nos jornais sobreMelikhan, o ex-ministro das Relações

Exteriores, que caíra ao tropeçar num tapete num baile e morrera dois dias depois de umahemorragiacerebral,minhamãenãofaloudoassunto,temendotalvezquepudessemefazerlembrardeSibeledonoivado.Haviaoutrasnotíciasqueminhamãeachavapreferívelnãometransmitir,masqueeuouviadeBasri,obarbeirodeNişantaşı.Foiele,porexemplo,quemmeinformouqueoamigodemeupaiFasihFahiresuamulher,Zarife,tinhamcompradoumacasaemBodrum;queSabih,oUrso,eranaverdadeumhomemdecente“porbaixodaquilotudo”;quecomprarouroagoraeranaverdade mau investimento; que os preços deviam começar a cair; que haveria muitos resultadosarranjadosnascorridasdecavalosdaqueleverão;que,mesmosemquelherestasseumfiodecabelonacabeça,ofamosoricaçoTurgayBey,porapegoaoshábitosdeumcavalheiro,continuavaaviraosalãoparacortesdecabelo regulares;quedoisanosantes tinhamoferecidoaBasriaconcessãodoHilton,masele,sendo“umhomemdeprincípios”(oquenãocuidoudeexplicaroquesignificava),

Page 330: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tinharecusado—enomesmoespíritotentouextrairdemimqualquerinformaçãoqueeupudessetersobreissoemaisaquilo.Irritava-meperceberqueBasrietodososseusclientesricosdeNişantaşısoubessemdetudosobreminhaobsessãoporFüsun,e,paranãolhedarmaispretextosparanovosmexericos, às vezes eu procuravaCevat, o antigo barbeiro demeu pai emBeyoğlu, e dele ouviahistórias sobre os bandidos de Beyoğlu (a essa altura já referidos como “amáfia”) e omundo docinema. Foi com ele, por exemplo, que eu soube do envolvimento entre Papatya e Muzaffer, ofamosoprodutor.Nenhumadasminhas fontes, porém, contava-menada sobreSibel ouZaim, ousobre o casamento entreMehmet eNurcihan.Sópor isso, eudevia ter deduzido o conhecimentouniversaldaminhaprovaçãoedomeusofrimento,masnãodeduzi:otatodosmeusinformantesmeparecia tão natural como seus relatos indiscretos, tantas vezes repetidos, sobre os banqueiros quetinhamidoàfalência,históriasqueeusempregostavadeouvir.Foi dois anos antes, no escritório e tambémda parte de amigos, que comecei a ouvir falar dos

banqueirosquetinhamidoàfalênciaedosinvestidoresquetinhamperdidosuasfortunas—históriasde que eu gostava porque demonstravam o quanto os ricos de Istambul eram inteiramentedesmiolados, para não falar dos seus governantes de Ankara. Pelo seu lado, minha mãe adoravarepetirque“Seuqueridoe falecidopaisempreinsistiaquenãodevíamosconfiarnessesbanqueirosmuito ardilosos!”— tema que adorava porque, diferentemente de tantas outras pessoas do nossocírculo,nãotínhamoscaídonasgarrasdaquelagente.(EmboraàsvezeseususpeitassequeOsmantinhainvestidosecretamentepartedoslucrosdeseusnovosnegóciosjuntoaeles.)Minhamãesentiapenade qualquer amigoque tivesse sido tosquiado—Kadri, oCrivo, comcuja linda filhanumaépocachegouaesperarqueeumecasasse,CüneytBeyeFeyzanHanım,CevdetBeyesuafamília,eos Pamuk—,mas quando a conversa chegava aos Lerzan elamanifestava seu espanto por terempostotodaasuafortunanasmãosdeum“supostobanqueiro”queerafilhodeumdoscontadoresdesuas próprias fábricas (e que subira na vida depois de começar a trabalhar como guarda desegurança),homemquesópoucoantestinhasaídodosbairrosmaispobressemqualquercredencialfinanceira,mascomumescritórioprecário,umanúncionaTV eumaconta-correntenumbancorespeitável.Fechandoosolhoscomoseestivesseapontodedesmaiar,ebalançandoacabeçacomumarumtantodivertido,eladizia:“Podiampelomenos terprocuradoalguémcomoKastelli, tãopróximodessesseusamigosatores”.Eununcatocavanoassuntodosmeusamigosatores;quandoelaficouadmiradaaosaberqueaquelas“pessoassensataserazoáveis”(entreasquais,comoosleitoreshãodeselembrar,incluía-seZaim)podiamsertãoimprevidentes,eugostavadefazercorocomela.TarıkBeyseincluíaentreessaspessoasqueminhamãeachavaburras.Eleinvestiraseudinheiro

comobanqueiroKastelli,quecontrataramuitosatoresqueconhecíamosdoPelürparaapareceremseuscomerciais.QuandoTarıkBeyadmitira suasperdasdoisanosantes,eu imaginaraque fossempequenas,poiselenãodeunenhumaindicaçãodesofrimentoouprovaçãomaisinclemente.Nasexta- feira,9demarçode1984,doismesesdepoisqueFüsuntirousuacarteirademotorista,

quandoÇetinmedeixounacasadeÇukurcumaàhoradojantar,euviquetodasasjanelasecortinasestavam abertas, e que as luzes estavam acesas no térreo e no primeiro andar, apesar do pereneaborrecimentode tiaNesibecomodesperdíciodeeletricidadequandoumaúnica lâmpada ficavaacesa no piso superior durante o jantar; invariavelmente, ela dizia: “Füsun,minha filha, a luz do

Page 331: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

quartoficouacesa”,eFüsunsubiaparadesligarnamesmahora.Preparando-meparaumabrigadefamíliaentreFeriduneFüsun,subiasescadas.Ninguémestava

sentadoàmesaondejantávamosjuntoshaviatantosanos,nemvicomidapronta.Atelevisãoestavaligada, e sentados à frente dela estavamdois vizinhos— uma senhora idosa e seumarido— quepareciam não saber bem o que fazer. Com o canto dos olhos eles observavam nosso amigo atorEkremBey,que,trajadocomoumgrão-vizir,discursavacontraosinfiéis.“Kemal Bey”, disse o vizinho, que era Efe, o eletricista. “Tarık Bey faleceu. Aceite os nossos

pêsames.”Percorriasescadascorrendoparaopisosuperior,emqueoinstintomeconduziunãoaoquarto

principaldacasa,masaodeFüsun—oquartinhocomqueeusonharatantasvezesnaquelesanos.Minha lindaestavaencolhidanacamaechorava.Quandomeviu, seesticou,emesenteia seu

lado.Instantaneamentecaímosnosbraçosumdooutro,nosabraçandocomtodaaforça.Elaapoiouacabeçaentremeupescoçoemeupeito,chorandoconvulsivamente.Deusdocéu,quefelicidadefoitê- lanosbraços!Sentiaprofundidadedomundo,suabelezasem

limites.ComacabeçadeFüsunencostadaemmeuombro,seupeitoapertadocontraomeu,eumesentia como se não tivesse apenas a ela,mas omundo inteiro emmeus braços. Seus soluçosmeperturbavamemetocavamprofundamente,naverdade,masquanta felicidadetambémaquilometrazia!Acaricieiseuscabeloscomcarinhoecuidado,penteando-osdelevecommeusdedos.Cadavezqueminhamãoretornavaàssuasraízes,paraquemeusdedospudessempassarmaisumavezporseuscabelos,todoseucorpoestremeciaenquantoelavoltavaaprorromperemlágrimas.Recapituleiamortedomeupai,parapodercompartilharmelhorseusofrimento.Pormaisqueeu

amassemeupai,porém,semprehaviaumatensãoentrenós,umaespéciederivalidade.Füsun,aocontrário,amavaprofundamenteopai,invariavelmenteesemqualqueresforçooureserva,daformacomo a pessoa pode amar sua casa, sua rua e o sol que brilha sobre ela. Eme parecia que suaslágrimas eramderramadasnão sópelopai,mas tambémpela situaçãodomundoepelo rumodetodaavida.“Não se preocupe,minha querida”,murmurei em seu ouvido. “Tudo vai ficar bem a partir de

agora.Apartirdeagoratudovaidarcerto.Vamossermuitofelizes.”“Nãoqueromaisnada!”,respondeuela,chorandomaisforte.Enquantoeuasentiaestremecerem

meus braços, olhei longamente para os móveis, a cômoda, a mesinha de cabeceira, os livros deFeridunsobrecinemaetantasoutrascoisas.Poroitoanos,comoeudesejaraentrarnaquelequartoondeFüsunguardavatodososseusvestidos,todososseuspertences.Enquantoseussoluçosseintensificavam,tiaNesibeentrou.“Oh,Kemal”,disseela,“oquevamos

fazeragora?Comovoupoderviversemele?”Sentando-senacama,elatambémcomeçouachorar.Passei toda a noite em Çukurcuma. Às vezes descia para passar algum tempo com amigos e

conhecidosquevinhamprestarsuashomenagens,edepoisvoltavaasubirparaconsolarFüsun,queaindachoravaemseuquarto;acariciavaseuscabeloselheentregavaumlençolimpo.Comocorpode seu pai estendido no quarto ao lado, e os amigos e conhecidos reunidos no andar de baixo,tomando chá, fumando e vendo televisão em silêncio, Füsun e eu ficamos deitados lado a lado,abraçados,pelaprimeiravezemnoveanos.Euaspiravaoaromadesuanuca,deseuscabelos,desua

Page 332: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

pele perfumada como odor que o esforço do pranto liberara.Em seguida descia para receber osvisitantes.Feridunnãosabiadoacontecido,enaquelanoitenempassouemcasa.Ésóagora,muitosanos

depois,quepercebotodaadelicadezadosvizinhosemaceitaremcomabsolutanaturalidadeaminhapresença na casa, em que eume comportava na verdade como se fosse omarido de Füsun. EuconheceratodosnodecorrerdemeusanosdevisitasaÇukurcuma,àsvezesnarua,àsvezesquandovinhamatéacasa,eesvaziarseuscinzeiros,oferecer- lheschá,caféedocescompradosàspressasnapadariadaesquinaeraparamimumadistraçãobem-vinda,tantoquantoparaFüsunetiaNesibe.Acertaaltura,trêshomens—ocarpinteiroLaz,cujaoficinaficavaumpoucoacima,ofilhomaisvelhodeRahmiBey(cujamãomecânicadeveserfamiliarparatodososvisitantesdomuseu)eumvelhoamigoquecostumavairjogarcartascomTarıkBeyàtarde—abraçaram-mecadaumporsuavez,repetindoarecomendaçãotradicionalparadeixaradormorrercomomorto.Mas,enquantoeuviviaolutoporTarıkBey,haviatambémdentrodemimumdesejoirrefreáveldeviver;quandopensavanavidanovaàminhaespera,sentiaumafelicidadeprofunda,oquemedeixavaenvergonhado.Depoisqueobanqueirocomquemtinhaaplicadoseudinheirofalira,fugindodopaís,TarıkBey

começou a frequentar uma associação formada por uma série de outras “vítimas dos banqueiros”(comoosjornaisgostavamdesereferiraessaspessoas).Aassociaçãofoicriadaparatentarencontrarummeiolegalderecuperarodinheiroqueaposentadosepequenosfuncionáriostinhamperdidonasmãosdosbanqueiros,masnãoobtevesucesso.ComoTarıkBeyàsvezesnoscontava,malcontendooriso,osmembros(aqueàsvezessereferiacomo“umaturbadedesmiolados”)eramtãoirritadiçosqueasconversasparatraçarplanoscomunsgeralmentedegeneravamemdiscussõesebrigasemqueas vítimas acabavam trocando socos e pontapés. Às vezes, depois de muita gritaria, conseguiamaprovar uma petição, que submetiam aoministério ou deixavam à porta de um banco ou de umjornalquejamaismanifestaraqualquerinteresseemajudá-los.Algunsmembrosatacavambancosapedradas, berrando suas queixas e às vezes agredindo funcionários da agência. Depois de váriosincidentesdesagradáveisemqueasportasdosbanqueirosforamarrombadasapontapésesuascasaseescritóriossaqueados,TarıkBeydistanciou-sedaassociação,masnaqueleverão,enquantoFüsuneeusuávamosparaobtersuacarteirademotoristaenadávamosnomar,elerecomeçouacompareceràsreuniões.Naquelatarde,algumanovidadenaassociaçãoodeixaraespecialmenteaborrecido,eelevoltaraparacasaqueixando-sededoresnopeito;comoomédicoquechegariacomhorasdeatrasopôdeconfirmaràprimeiravista,morreudeataquecardíaco.Füsunficouaindamaisdevastadapornãoseencontraremcasaquandoseupaimorreu.TarıkBey

deveterpermanecidodeitadonacamapormuitotempo,esperandopelavoltadamulheredafilha.Tia Nesibe tinha levado Füsun com ela até uma casa em Moda para terminar um vestidoencomendadodeurgência.Apesardetodaaassistênciaqueeuprestavaàfamília,devezemquandotiaNesibeaindasaíadecasalevandoacaixadecosturaenfeitadacomoretratodaponteGalata,paratrabalharemváriascasasaumpreçopordia.Denenhummodoeumesentiaofendido,comooutroshomenspoderiamterficado,comapersistênciadetiaNesibe;emvezdisso,fiqueiimpressionadoaosaberqueelacontinuavacosturando,emborasoubessequepodiacontarcomigoparaseusustento.Aindaassim,ficavaaborrecidosemprequesabiaquelevaraFüsuncomela,perguntando-meoque

Page 333: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

minhabeldade,minhaprometida,poderiateridofazernacasadaquelesdesconhecidos;maselasóacompanhava a mãe raramente, e mais raramente ainda me contava essas saídas para costurar,emboraquandoofizessesempreasdescrevessecomopasseiosagradáveis,emtermosquelembravamas visitas de suamãe aSuadiyemuitos anos antes, com tanta alegriana voz quandome falava detomarayrannabalsadeKadiköyedejogarsimitsparaasgaivotasqueeunãotinhaacoragemdelhedizer que, quando nos casássemos e fôssemos morar em meio aos ricos, nenhum de nós doisgostaríamosdeencontraressaspessoascujascasaselavisitavanacondiçãodecostureira.Muitodepoisdameia-noite,apóstodosteremidoembora,encolhi-menodivãdoquartinhodos

fundosdoandardebaixo.DormirnamesmacasaqueFüsun,pelaprimeiraveznaminhavida…eraamaiordasfelicidades.Antesdemergulharnumsonosatisfeito,ouviprimeiroossonsdeLimonemsuagaiola,depoisosapitosdosnaviosquepassavam.Acordei com a convocação matutina para a prece; a essa altura, os navios que passavam pelo

Bósforo eram mais insistentes, e em meu sonho a viagem de balsa de Füsun, entre Karaköy eKadıköy,misturara-seàmortedeTarıkBey.De tempos em tempos, eu ouvia também o som das sirenes de nevoeiro, e toda a casa estava

banhada na brancura de pérola peculiar dos dias de cerração. Atravessando em silêncio aquelabranca paisagemde sonho, subi os degraus da escada.E lá, na cama onde ela e Feridun tinhampassadoasprimeirasnoites felizesdeseucasamento,encontreiFüsunprofundamenteadormecida,comosbraçosemvoltadamãe.SentiquetiaNesibeescutoumeuspassos.Deiumaúltimaolhadacuidadosaparadentrodoquarto:Füsunestavadefatodormindo,enquantotiaNesibesófingia.Entrando no outro quarto, ergui bem devagar o lençol que tinham estendido por cima dele, e

contemplei pela última vez o corpo de Tarık Bey. Ainda usava o paletó que tinha vestido paracomparecer à reunião da associação das vítimas dos banqueiros. Seu rosto estava cinzento, e seusangueseacumularananuca.Eracomoseasrugas,asmanchaseasverrugasdeseurostotivessemficadomaiorescomamorte.Seriaporquesuaalmaodeixaraouporqueocorpo jácomeçaraa sedecomporemudardeforma?AaterrorizantepresençadamorteeramuitomaisfortequeoamorqueeusentiaporTarıkBey.Emvezdesofrerporeleoudemepôremseulugar,eusóqueriasumirdali.Masnãodeixeioseuquarto.EuamavaTarıkBeyporqueeleerapaideFüsun,porquetínhamospassadotantosanossentadosà

mesmamesa, tomando rakı e vendo televisão.Mas, como ele nunca se abrira realmente comigo,nunca me sentira muito próximo dele. Na verdade, apesar de nunca termos nos sentido muitosatisfeitosumcomooutro,assimmesmoconseguíamosconviverbem.Enquantoeupensava,percebiqueTarıkBey,comosuamulher, sabiadesdeo iníciodeminha

paixãopelafilhadeles.Oumelhor,nãotantopercebiquantoadmitiparamimmesmo.Eledeviasemdúvida saberdesdeo inícioqueeu tiveraa irresponsabilidadededormircomsua filhaquandoelamal completara dezoito anos, e, inevitavelmente, deve ter me considerado um jovem rico e semcoração, umnamorador desalmado.Como era eu quem o forçara a casar sua preciosa filha comaquele jovem sem tostão e sem perspectivas, ele só podia me olhar com ódio. Mas jamaisdemonstrara seu ressentimento; ou talvez eununca tenha querido percebê-lo. Posso dizer que, aomesmotempo,elesentiaraivademimemeperdoara,comoosladrõeseosgângsteressóconseguem

Page 334: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

continuarjuntosdeixandodeenxergarasiniquidadeseospecadosdooutro.Eraporissoque,depoisdosprimeirospoucosanos,eledeixaradeserohomemdaquelacasa,assimcomoeudeixaradeserseuconvidado:tornamo-noscúmplicesdeumcrime.EnquantoeucontemplavaorostocongeladodeTarıkBey,umamemóriahaviamuitoreprimida

veioàtona:lembrei-medomedoedasurpresaqueficaramestampadosnorostodomeupaiquandoeleseviudiantedamorte.OataquecardíacodeTarıkBeytinhaduradomais:eledepararacomamorteelutaracomela,eassimemseurostonãohaviasurpresa.Morderaumdoscantosdoslábios,comoqueparacombaterador,edooutro ladosuabocaestavaentreaberta,comoquenummeiosorriso.Àmesaelesempretinhaumcigarronaquelecantodaboca,eumcopoderakıàsuafrente.Masnoquartonãohavianenhumaenergiaqueemanassedosobjetosqueo tinhamcercadoaindavivo;haviaapenasovazioeonevoeirodamorte.Aluzbrancaqueinundavaoquartovinhaprincipalmentedoladoesquerdodajaneladasacada.

Olhandoparafora,viquearuaestreitaestavadeserta.Comoasacadachegavaquaseaomeiodarua,pudemeimaginarsuspensoacimadelaemplenoar,numnevoeirotãodensoquemalconseguiavera esquina onde a rua cruzava a avenida Boğazkesen, a área inteira adormecida emmeio à névoaenquantoumcarrodeslizavaconfianteemmarchalentapelarua.Logoacimadesuacama,TarıkBeytinhapenduradoumafotografiaemolduradadeseutempode

professornoliceudeKars.Nafoto,eleapareciadepéaoladodeseusalunosnofinaldeumapeçaque eles tinham encenado no famoso teatro que datava da época em que a cidade pertencia aosrussos. O tampo da mesa de cabeceira e sua gaveta entreaberta também traziam estranhaslembrançasdomeupai.Emanavamumafragrânciaadocicada,misturadepoeira,remédios,xaropedetosseepapelamarelado.Acimadagaveta,viumcopod’águacontendoadentaduradeTarıkBeye um livro escrito por seu querido Reşat Ekrem Koçu. Dentro da gaveta havia velhos frascos deremédio, piteiras, telegramas, receitas médicas dobradas, artigos de jornal sobre os banqueiros,contasdeluzegás,moedasquetinhamsaídodecirculaçãoemuitosoutrosobjetosesparsos.AntesqueosprimeirosvisitantesdodiasereunissemnacasadosKeskin,fuiemboraparaNişantaşı.

Minhamãejá tinhaacordadoe tomavaodesjejumnacama,numabandejaqueFatmaHanımlhetrouxera e apoiara num travesseiro: ovos quentes, geleia, azeitonas pretas e pão torrado. Ela seendireitouquandomeviu.QuandolheconteisobreamortedeTarıkBey,seurostoseentristeceueelamepareceugenuinamentecondoída.PercebiqueelasentiaadordeNesibe.Masporbaixodissohaviaoutracoisa.“Vouvoltaratélá”,disseeu.“Çetinpodelevarvocêaofuneral.”“Eunãovouaofuneral,meufilho.”“Porquenão?”Primeiroelamedeuduasdesculpas ridículas. “Nãoanunciaramnadanos jornais.Porque tanta

pressa?”e“PorquenãofazemofuneralnamesquitadeTeşvikiye?Asprocissõesfuneráriassemprepartemdaqui.”PercebiqueelasentiaumacompaixãoautênticaporNesibe,dequemgostavamuitoecomquempassaratantosbonsmomentosnosdiasemqueamulhervinhacosturarnanossacasa.Masportráshaviaoutracoisa,algoirremovível.Quandoviuoquantoasuarecusameperturbavaecomoeuestavadeterminadoasaberqualeraoverdadeiromotivodaquilo,elaperdeuasestribeiras.

Page 335: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Quersaberporqueeunãovouaofuneraldele?”,disse.“Porque,seeufor,vocêvaisecasarcomaquelagarota.”“Deondevocêtirouessaideia?Elajáécasada.”“Eusei.VaipartirocoraçãodeNesibe.Mas,meufilho,fazanosqueeuseidessahistóriatoda.Se

vocêteimaremsecasarcomela,ninguémvaiaprovar.”“Eseráquefazdiferença,mamãe?Aspessoassemprefalam.”“Porfavor,euimploro,nãováseofender.”Comumaexpressãomuitoséria,elapousousuatorrada

nabandejae,aoladodela,afacalambuzadademanteiga;olhoufixamenteemmeusolhos.“Nofimdo dia, o que as outras pessoas dizem não tem importância nenhuma. Claro, o que importa é averdade, a honestidade dos sentimentos de cada um. Não reclamo disso, meu filho. Você seapaixonouporumamulher…Eémaravilhoso,meu filho.Nãopossomequeixardisso.Maseela,apaixonou-seporvocê?Oqueelafeznosúltimosoitoanos?Porquenãodeixouomaridodela?”“Elavaideixaromarido,eutenhocerteza.”“Escute, seu falecido pai andou apaixonado por uma moça que podia ser filha dele… Ficou

obcecado.Chegouacomprarumacasaparaela.Masmantinhatudoàsescondidas;nãofezpapeldeidiota,comovocê.Nemosamigosmaispróximosdelesabiamdenada.”Virou-separaFatmaHanım,queacabaradeentrarnoquarto,edisse:“Fatma,estamostendoumaconversinha”.Quandoelafoiembora, fechandoaporta atrásde si,minhamãecontinuou: “Seu falecidopai eraumhomemdecaráter e de muita inteligência, além de um cavalheiro, mas até ele tinha suas fraquezas e seusdesejos.AnosatrásvocêmepediuachavedoapartamentodoedifícioMerhameteeulhedei,mas,sabendoquevocêeraofilhodoseupai,euavisei:‘PeloamordeDeus,tomecuidado’.Nãofoi?Meufilho, você nãome deu ouvidos.Está certo, você vaime dizer que, se a culpa é sua, onde está opecadodeNesibenisso tudo?Oqueeujamaisvoupoderperdoaréessa torturaaqueelaea filhasubmeteramvocê,pordezlongosanos”.Nãocorrigidizendoqueeramoitoanos,enãodez.“Estácerto,mamãe”,disseeu.“Jáseioquevou

dizeraelas.”“Meufilho,vocênuncavaipoderserfelizcomessagarota.Sepudesse,játeriamencontradoum

jeitoaessaaltura.Eachoquevocêtambémnãodeviairaofuneral.”Não inferi das palavras da minha mãe que tinha arruinado a minha vida: pelo contrário, ela

lembrava,enaquelaocasiãoeraoqueeusentiaotempotodo,quedaliapoucoeuestariatendoumavidaemcomumfelizcomFüsun.Assim,nãofiqueinemumpoucoaborrecidocomela;atémesmosorrienquantoescutavaoseusermão,desejosoapenasdevoltaromaisrápidopossívelparaoladodeFüsun.Vendoquenãotinhameconvencido,minhamãeficoufuriosa.“Numpaísondeoshomenseas

mulheres não podem ficar juntos socialmente, onde não podem se ver nem conversar um com ooutro,nãoexisteissodeamor”,declarouelacomveemência.“Poracasovocêsabeporquê?Voulhedizer:porque,nomomentoemqueoshomensveemumamulherquedemonstreinteresseporeles,nem se preocupam em saber se ela é boa oumá, linda ou feia— só caem em cima dela comoanimaisfamintos.Éaissoqueelesforamcondicionados.Eentãoachamqueestãoapaixonados.Podeexistiressahistóriadeamornumlugarassim?Tomecuidado!Nãoseengane!”

Page 336: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Finalmenteminhamãeconseguirameirritar.“Estábem,mamãe”,disseeu.“Estoudesaída.”“Quando fazem funerais nas mesquitas de bairro, as mulheres nem comparecem”, gritou ela

enquantoeumeafastava,comoseaquelativessesidosuaverdadeiradesculpa.Duashorasmais tarde,enquantoospresentesàmesquitadeFiruzağasedispersavamdepoisdas

precesfunerárias,vialgumasmulheresentreosquevieramabraçartiaNesibe,emboraéverdadequefossempoucas.Lembro-medetervistoCeydaetambémŞenayHanım,proprietáriadahojeextintaboutiqueşanzelize,enquantofiqueipostadoaoladodeFeriduneseusextravagantesóculosescuros.Nos dias seguintes, cheguei emÇukurcumano começo da noite, todos os dias.Mas sentia um

grande desconforto na casa e em torno da mesa. Era como se a gravidade e a artificialidade dasituaçãotivessemsidopostasanu.SempreeraTarıkBeyquemfingiamelhornãoveroqueestavaacontecendoentrenós:eraelequetinhaumdesempenhoexcelenteemmatériade“fazdeconta”.Agora que ele se fora, não havia como agir comnaturalidade, nem tínhamosmeios de recair nasrotinasconfortáveisetãorepetidasnosúltimosoitoanos.

75.Aconfeitariaİnci

Numdiachuvosodo iníciodeabril,depoisdeconversarcomminhamãequaseamanhã toda,chegueiàSatsatemtornodomeio-dia.Enquantotomavaumcaféeliaojornalemminhamesa,tiaNesibe telefonou. Pediu que eu passasse algum tempo sem visitá- las, dizendo que boatosdesagradáveis corriam pela vizinhança e que, embora ela não pudesse entrar em detalhes pelotelefone, tinhaboasnotíciasparamim.Comminha secretária,ZeynepHanım,ouvindona salaaolado,nãopergunteicomoiamascoisas,nãoquerendotornaróbviademaisminhapreocupaçãocomtiaNesibe.Pordoisdiasesperei,devoradopelacuriosidade,atéque—maisumavez,poucoantesdomeio-

dia— tia Nesibe veiome ver na Satsat. Apesar de todo tempo que tínhamos passado juntos nosúltimos oito anos, era tão estranho vê-la no escritório que fiquei olhando sem expressão para elacomoseumvisitantedasprovínciasoudosarrabaldesdacidade,tendovindotrocaralgumprodutodaSatsatcomdefeitoourecolherseucalendárioouseucinzeirodebrinde,tivessesubidoasescadasporengano.Aessaaltura,Zeyneptinhapercebidoqueadesconhecidaeraumapessoamuitoimportantepara

mim;talvezdevidoàminhatimidezouaosmodosdescontraídosdetiaNesibe,outalvezporquejásoubesse de alguma coisa. Quando ela perguntou como queríamos nossos Nescafés, tia Nesiberespondeu:“Prefirocaféturcomesmo,minhafilha—seforpossível”.Fecheiaporta.TiaNesibesentou-seàfrentedaminhamesaeolhou-mediretamentenosolhos.“Está tudoacertado”,disseela,comumaexpressãoquesugerianãoapenasumfinal felizcomo

aindaatendênciadavidaapôrtudoemordemdamaneiramaissimples.“FüsuneFeridunestãoseseparando.SevocêdeixarFeridunficarcomaLimonFilmes,elenãovaicriarnenhumadificuldade.EéoqueFüsuntambémquer.Masprimeirovocêsdoisprecisamconversar.”“Quem?EueFeridun?”

Page 337: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Não;vocêeFüsun.”Depoisdeveroprimeirofulgordefelicidadeespalhar-sepelomeurosto,elaacendeuumcigarro,

cruzouaspernasemecontouahistória,nãocomumexcessodevagaredetalhes,massaboreandocada pormenor assim mesmo. Dois dias antes, Feridun tinha chegado em casa depois de beberbastante;contandoaFüsunqueeleePapatyatinhamseseparado,dissequequeriavoltarparacasaeparaFüsun.MasclaroqueFüsunnãoquisaceitá- lodevolta,eemseguidaelestiveramumabrigaterrível,efoiumapena,umavergonhaquetodososvizinhostenhamouvidoseusgritos(foiporissoquetiaNesibemepediraquepassassealgumtemposemiratélá).MaistardeFeriduntelefonoue,depoisqueeleetiaNesibecombinaramumencontroemBeyoğlu,maridoemulherconcordaramcomaseparação.Fez-seumsilêncio.“Mandeitrocarafechaduradaportadafrente”,dissetiaNesibe.“Nossacasa

nãoémaisacasadeFeridun.”Porummomento, foicomosetodootráfegoquepassavaruidosamenteàportadaSatsat tivesse

silenciado,assimcomoomundoemgeral.Vendo-metransidopeloqueeladissera,comocigarroqueimandodespercebidoentreosmeusdedos, tiaNesibe tornouacontarahistóriadesdeo início,dessa vez alongando-semais nos detalhes. “Para dizer a verdade, nunca senti amenor raiva desserapaz”,disseela,numtomdevozdequemconheceomundoesabiadesdeoiníciocomoaquiloiriaacabar.“Sim,eleéummoçodebomcoração,mastambémémuitofraco.Quemãepodiaquererummaridoassimparaafilha?”,disseela,edepoissecalou.Euesperavaqueemseguidaeladissessealguma coisa como: “Claro, não tivemos escolha”, mas o que ela acabou dizendo foi uma coisatotalmentediversa.“Passeiporumacoisaparecidanaminhavida.Émuitodifícilserumamulhermuitobonitaneste

país,especialmentedivorciada—maisdifícilaindadoqueserumajovemmuitobonita…Quandooshomensnãoconseguemoquequeremcomumamulherbonita,eles fazemmuitasmaldadescomela—vocêtambémsabedisso,Kemal;eFeridunprotegeuFüsundessesmales.”PorummomentoeumepergunteiseeraeuumdosmalesdequeFeridunatinhaprotegido.“Claro,nãodeviaterlevadotantotempoparaascoisasseesclarecerem”,continuouela.Calmo,masperplexo,eunãodissenada:eracomoseeujamaistivessepercebidoantescomoera

estranhoocaminhoqueminhavidatinhatomado.“Claro,FeriduntemtododireitoàLimonFilmes”,disseeudepoisdealgumtempo.“Eufalocom

ele.Poracasoeleestáaborrecidocomigo?”“Não”,dissetiaNesibe,franzindoatesta.“MasFüsunquerterumaconversasériacomvocê.Ela

carregamuitacoisanopeitoquenuncapôdedizer.Vocêsdoisprecisamconversar.”DecidimosqueFüsuneeunosencontraríamosàsduasdatardedaliatrêsdias,naconfeitariaİnci,

emBeyoğlu.TiaNesibenãoprolongoumaisnossaconversa;fezdecontaqueconversavaàvontadenaquelecenáriopoucofamiliar,mas,boamulherqueera,nãoescondiasuasatisfaçãoaoirembora.Natardedesegunda-feira,9deabrilde1984,eumedirigiparaBeyoğlufelizeanimadocomoum

adolescenteindoencontrar-secomagarotadoliceucomquesonhavahaviameses.Numprimeiromomento, fiquei inquieto demais para dormir e depois impaciente demais para chegar ao fim damanhã.EntãopediaÇetinquemedeixassemaiscedoemTaksim.Láfaziasol,enquantoaavenida

Page 338: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

İstiklalestavasemprenasombra,eprocureirefúgioemsuascalçadasfrescasprotegidasdosol,suasvitrines,asentradasdosseuscinemas;atémesmoocheirodeumidadeepoeiranasgaleriasqueeucostumavapercorrercomminhamãequandocriançamepareciaconvidativo.Euestavatontocommemórias de bem-aventurança e a promessa de um futuro feliz, como otimismo contagiante daspessoas que passavam velozes pormim à procura deumbomalmoço, deum filmedivertido, dealgumacoisaparacomprar.FuiatéaVakko,aBeymenealgumasoutraslojasàprocuradeumpresenteparaFüsun,masnão

consegui decidir-me a comprar nada. Para gastar minha energia nervosa, caminhei até Tünel, eexatamentemeiahoraantesdahoramarcada,emfrenteaoedifícioMısırlı,viFüsun.Elausavaumlindo vestido de primavera, com bolinhas grandes e claras contra um fundo branco, os olhosprotegidosporprovocantesóculosescurosenquantocontemplavaavitrinedeumaloja.Elanãomevira,masrepareineladelonge,epercebiespecialmentequeestavausandoosbrincosdomeupai.“Quecoincidência”,foramminhasprimeiraspalavrasdesajeitadas.“Oh…Olá,Kemal!Comovai?”“Odiaestátãolindoqueeuprecisavasairmaiscedodoescritório”,disseeu,comosenãotivesseo

planodemeencontrarcomeladaliameiahora,e tivéssemosnosesbarradototalmenteporacaso.“Vamosandarjuntos?”“Primeiroprecisoencontrarumbotãoparaaminhamãe”,disseFüsun.“Elaprecisaterminarum

vestidourgentee,depoisqueconversarmos,vouvoltarparacasaeajudá-la.VamosatéaGaleriadosEspelhosparaencontrarumbotãodemadeiraparaela?”FomosnãoapenasàGaleriadosEspelhos,masaindaaváriasoutrasgalerias.Comoeraadorável

ver Füsun conversando com os vendedores das lojas, consultando amostras de todas as cores,remexendoembandejas repletasdebotõesantigos,conversandoenquantoprocuravaumconjuntoquecombinasse.“Oquevocêachadestes?”,perguntouela,depoisdeencontraralgunsbotões.“Sãolindos.”“Entãoestábem.”Elapagouosbotõesqueeuacabariaencontrandonovemesesmaistarde,emsuacômoda,ainda

dentrodopapeldeembrulho.“Vamos então andar um pouco”, disse eu. “Passei oito anos sonhando com um encontro em

Beyoğlucomvocêeempassearmosjuntosporaqui.”“Émesmo?”“Verdade.”Andamosporalgum tempo semdizernada.Devezemquantoeu tambémolhavaparaalguma

vitrine,emboranãofossemasmercadoriasqueatraíammeuolho,masolindoreflexodelanovidro.Enãoeramsóoshomensque reparavamnelapelascalçadasdeBeyoğlu; asmulheres também,oquedeixavaFüsuncontente.“Vamosnossentaremalgumlugarecomerumpedaçodebolo”,disseeu.AntesqueFüsunpudesse responder,umamulher atravessouumgrupocompactodepessoas e,

gritandodefelicidade,atirouosbraçosàsuavolta.EramCeydaeseusdoisfilhos:ummeninodeoito

Page 339: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

ou nove anos e o irmãomais novo, ambos de calças curtas emeias brancas, ambos com um arsaudáveleesperto;enquantoamãeconversavacomFüsun,elesmeespiavamcomarcurioso:tinhamosolhosgrandesdeCeyda.“Comoébomvervocêsdoisjuntos!”,disseCeyda.“Acabamosdenosencontrarporacasocincominutosatrás”,disseFüsun.“Masvocês ficamtãobemjuntos”,disseCeyda.Easduasbaixaramasvozesparacontinuar sua

conversainaudivelmente.“Mamãe,estouachandoissochato,podemosirembora?”,disseomeninomaisvelho.Lembrei-medo encontro que tivera comCeyda oito anos antes, com aquela criança dentro da

barriga; enquanto olhávamos para Dolmabahçe, conversamos sobre a dor por que eu estavapassando.Masaorelembraraquelaocasiãonãofiqueitristenemfuitomadopelaemoção.DepoisqueCeydasedespediudenós,passamosdevagardiantedocinemaPalace,ondeestavaem

cartazAquelacançãoproblemática,estreladoporPapatya.Duranteosdozemesesanteriores,Papatya(a secrernos jornais) tinhaquebradoalgumrecordemundial,atuandocomoprotagonistaemnãomenos de dezessete filmes e fotonovelas. As revistas divulgavam o rumor falso de que tinham lheoferecido papéis importantes em Hollywood, e Papatya mantinha essa história sempre em pautaposandoparafotoscomlivrosdaLongmanementindosobreaulasdeinglêsesuadisposiçãodefazeroquefosseprecisopararepresentarbemaTurquianoestrangeiro.Enquantoexaminavaasfotosdofilmeexibidasnosaguão,Füsunmesurpreendeuprestandomuitaatençãoàexpressãodoseurosto.“Querida,vamosembora”,disseeu.“Nãosepreocupe,nãosintonenhumciúmedePapatya”,disseelaemtomsereno.Continuamoscaminhandoemsilêncio,olhandoasvitrines.“Vocêficamuitobemdeóculosescuros”,disseeu.“Vamosentrarecomerprofiterole?”Tínhamos chegado à confeitaria İnci na hora exata do encontromarcado pormim e pelamãe

dela.Entramos semhesitar: avistamosumamesa vazia ao fundo,bemcomonosmeus sonhosdosúltimostrêsdias.Pedimosprofiterole,peloqualaconfeitariaerafamosa.“Nãoestouusandoóculosescurosparaficarbonita”,disseFüsun.“Semprequepensonomeupai,

começoachorar.VocêentendequeeunãosintociúmedePapatya,pelomenos?”“Entendo.”“Ainda assim, fico impressionada como que ela fez”, continuou ela. “Ela se fixou numa coisa,

recusou-seadesistireconseguiuoquequeria,comoumpersonagemdefilmeamericano.Seeumearrependodealgumacoisa,foidenãoterconseguidovirarumaatrizdesucessocomoPapatya;éterdeixadodelutarpeloquequerianavida,eporissosópossoculparamimmesma.”“Faznoveanosqueeuinsistoparaconseguiroquequero,masnemsempreéesteomelhormeio

paraapessoaconseguiroquedesejanavida.”“Podeserverdade”,disseelafriamente.“Vocêconversoucomaminhamãe.Echegouahorade

vocêeeuconversarmos.”Irradiando confiança, ela pegouumcigarro.Enquanto eume inclinavapara a frente commeu

isqueiro,olheinosseusolhose—numsussurro,paraqueninguémmaismeescutassenaconfeitariaapertada— disse a ela mais uma vez o quanto eu a amava, como nossos dias ruins tinham se

Page 340: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

acabado, e como, apesar de todo o tempo que tínhamos perdido, uma grande felicidade nosaguardava.“Eusintoamesmacoisa”,disseelanumavozcomedidaecautelosa.Seusgestoseramtensos,sua

expressãoestava longedenatural,oquemelevouaconcluirquehaviaumatempestadeemcursodentrodela,queprecisavadetodaasuaforçaparacontê-la.Vendoquantoesforçolheeranecessárioparafazeracoisacerta,euaameimaisdoquenunca,mastambémfiqueicommedodoqueferviadentrodela.“DepoisdomeudivórciooficialdeFeridunqueroconhecertodaasuafamília,seusamigos,todo

mundo”,disseela, soandocomoumaalunadepédianteda turma,explicandooseu futuro.“Nãoestoucomamenorpressa.Podemosircomcalma…DepoisqueeumedivorciardeFeridun,éclaroque sua mãe vai precisar vir à nossa casa pedir permissão. Ela e minha mãe vão se entenderperfeitamente.Masprimeiroelaprecisaligarparaaminhamãeepedirdesculpaspornãotervindoaofuneraldomeupai.”“Elaestavamuitoindisposta.”“Claro.Eusei.”Nósnoscalamos,eporalgumtempocomemosumpoucodeprofiterole.Enquantoeuobservava

suaboca,agoracheiadechocolateecreme,nãoeradesejoqueeusentia,masamor.“Háumacoisaemquevocêprecisaacreditar,eeuesperoquesecomportedeacordocomisso.

Emnenhumpontodomeucasamento comFeridunnós tivemos relações conjugais.Vocêprecisaacreditarnissosemsombradedúvida!Sóheideestarcomumhomemnaminhavidainteira,eessehomemévocê.Podemoscobrircomumvéuaquelesdoismesesqueantecederamosúltimosnoveanos.” (Na verdade, caro leitor, fora ummês emeio,menos dois dias.) “Será como se tivéssemosacabadodenosconhecer.Assim,vaiserexatamentecomonessesfilmes—eumecaseicomalguém,mascontinueivirgem.”Elasorriudeleveaopronunciarasduasúltimasfrases,mas,aoperceberaseriedadedoqueelame

pedia,sófranziatestacomcomedimentoedisse:“Entendo”.“Vamos ser mais felizes se fizermos assim”, disse ela, como quem emite um pronunciamento

sensatoqualquer.“Ehámaisumacoisaqueeuquero.Naverdade,nemfoiideiaminha— foi sua.Quero que vamos todos juntos viajar pela Europa no seu carro.Minhamãe virá a Paris comigo.Podemosiraosmuseus,olhar todososquadros.Antesdenoscasarmos, tambémquerocomprar láalgumascoisasqueeupossalevarparaanossacasa,paraformarumenxoval.”Aoouvi- lafalarda“nossacasa”,euabriumsorriso.Nomesmomomentoemqueproferiaassuas

ordens,elasorriadeleveenquantofalava,comoumcomandantequeemergissevitoriosodabatalhaformulando seus termos justos para o armistício, ao final de uma guerra duradoura. Mais tarde,quando ela disse: “Vamos fazerumcasamento grande e lindonoHilton, como todomundo”, elafranziu a testa comar sério. “Tudo vai ser comoprecisa ser, até oúltimodetalhe”, disse ela, sememoção,comosenãotivessenenhumalembrança,boaouruim,daminhafestadenoivadorealizadalánoveanosantes,esimplesmentequisessefazertudodamaneiracorreta.“Éassimqueeuquerotambém”,disseeu.Poralgumtempoficamoscalados.

Page 341: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

AconfeitariaİncitinhasidoumlugarimportantedospasseiosdaminhainfânciaaBeyoğlucomminhamãe, e em trinta anosnão tinhamudadonada, embora estivessemais cheiadoque eumelembrava,oquetornavamaisdifícilconversar.Quando,porummomento,umsilênciomisteriosorecaiusobretodaaconfeitaria,eusussurreique

aamavamuitoequeobedeceriaacadadesejoseu,poistudoquequerianomundoerapassarorestodaminhavidaaoladodela.“É mesmo?”, disse ela, no mesmo tom infantil que usava às vezes ao fazer seus deveres de

matemática.Sentia-se confiante e determinada a ponto de rir de suas próprias palavras. Acendendo com

cuidadomaisumcigarro,enumerousuasoutrasexigências:eununcapoderiaescondernadadela,teria que compartilhar todos os meus segredos e só podia responder com a verdade a todas asperguntasquemefizessesobreomeupassado.Enquantoeuescutava,tudooqueviasegravavaemminhamemória.Aexpressãosériaedecidida

deFüsun,aantigamáquinadesorvetedaconfeitariaeafotografiaemolduradadeAtatürk,cujatestafranzidalembravatantoadeFüsun.DecidimosqueonoivadoocorreriaantesdenossapartidaparaParisequedeviaserumapequenafestaemfamília.FalamosdeFeriduncomrespeito.Voltandoaoassuntodasrelaçõessexuais,elamanifestouseudesejoclarodeesperaratédepoisdo

casamentonosseguintestermos:“Nãotentemeobrigaranada,estábem?Porquenãovaifuncionar,dequalquermaneira”.“Eusei”,disseeu.“Naverdade,eupreferiaquenossocasamentofossearranjado.”“Poisquasepodeservistoassim!”,disseela,comgrandecertezanavoz.E em seguida ela disse que, como não havia mais homem na casa, os vizinhos podiam tirar

conclusõesprecipitadasseeucontinuasse indojantar todanoite. (Todanoite?)“Claroquenãomeincomodomuitocomoquedizemosvizinhos;daquiapouconãovoumorarmaispertodeles”,disseelamais tarde. “Só não posso ter asmesmas conversas despreocupadas semmeu pai presente. Édolorosodemais.”Porummomentopenseiqueelafossechorar,masseconteve.Aconfeitariatinhaportasdemola,

masagoraumgrandeinfluxodeclientesasmantinhaabertas.Umbandodeestudantesdoliceudepaletó azul-marinho, com as gravatas tortas, entrava na confeitaria, rindo acintosamente eempurrandounsaosoutros.Empoucotempo,levantamo-nosefomosembora.ExtraindoumprazerinfinitodecaminharnacompanhiadeFüsunemmeioaosfrequentadoresdeBeyoğlu,fuiandandoemsilêncioaseuladoatéaladeiradeÇukurcuma.

76.OscinemasdeBeyoğlu

ConseguimosrespeitaroespíritodascondiçõesqueFüsunmeexpuseranaconfeitariaİnci.Tomeiprovidências imediatasparaqueumantigocamaradameudoExército,umadvogadoquemoravaemFatih—aummundodedistânciadeNişantaşı—,representasseFüsunnoquedeviaser,afinal,umcasosimples,poisocasal tomaraemcomumadecisãodesedivorciar.Füsunmedisseracom

Page 342: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

umsorrisoqueFeriduntambémpensaraemmepedirquelherecomendasseumadvogado.Emboraeunãopudessemaisvisitá- laemÇukurcuma,nósnosencontrávamosacadadoisdiasemBeyoğlueíamosaocinema.Mesmo quando era menino, eu sempre adorei o ar condicionado dos cinemas de Beyoğlu

enquanto o calor nas calçadas aumentava com o avanço da primavera. Füsun e eu nosencontrávamos em Galatasaray e depois de passar em revista todos os cartazes escolhíamos umcinema,comprávamosasentradaseentrávamosnaplateiafresca,quaseescuraevazia,onde,àluzbaçaque se refletianas cortinas, encontrávamosum lugar discretonasúltimas filas, para ficar demãosdadaseverofilme,comopessoasquetivessemtodootempodomundo.No início do verão, quando os cinemas começavam a exibir dois ou três filmes diferentes pelo

preçodeum,lembro-medeumdiaemquemesentei,ajusteiascalçasparaficaromaisconfortávelquepodia,pousei jornaise revistasnoassentoao ladodomeu,adiandoassimminhaprocuracegapelamãodeFüsun,e,antesqueeupudessefazerqualquercoisa,elaapousouemmeucolocomouma andorinha impaciente, abrindo-se expectante emminha barriga por ummomento, como seperguntasse:“Ondeestávocê?”.Enaquelemomento,movendo-semaisdepressaqueminhaalma,minhamãoenvolveuamorosamenteadela.EssescinemasdeBeyoğlucomprogramasduplosdeverão(oEmek,oFitaşeoAtlas)eatéosque

exibiam três filmes (o Rüya, o Alkazar e o Lale) não praticavam o tradicional intervalo de cincominutosnomeiodecadafilme;assim,erasóquandoas luzesseacendiamentreumfilmeeoutroquevíamoso tipodeplateiadeque fazíamosparte.Duranteessesentreatos,enquantopassávamosemrevistaoshomenssolitáriosderoupaamarrotada,comjornaisamassadosnamão,esparramados,recostados ou inclinados para a frente nos assentos desses cinemas imensos, mofados e poucoiluminados, os velhos que cochilavam nos cantos e as almas sequiosas que tinham enormedificuldade de deixar o mundo de sonho do filme e voltar à realidade do cinema sombrio eempoeirado,Füsuneeutrocávamosnotíciasaossussurros,emboranuncademãosdadas.Foinumdessesintervalos,numcamarotedocinemaPalace,queFüsunsussurrouaspalavrasqueeudesejavatantoouvirhaviaoitoanos:elaeFeridunestavamoficialmentedivorciados.“Oadvogadojáestácomospapéis”,disseela.“Agorasoulegalmentedivorciada.”Naquele instante, o teto decorado do cinema Palace, seu encanto desbotado e sua pintura

descascada,suascortinas,seupalcoeseusfrequentadoresdesleixadosesonolentosficaramgravadosparasemprenaminhamemória.Dezanosantes,oscasaisaindausavamoscamarotesdoscinemasAtlasePalacecomousavamoparqueYıldız,paraficardemãosdadasetrocarbeijos;emboraFüsunnãopermitissequeeuabeijassenumdaquelescamarotes,nãomeimpediadeapoiaramãoemsuaspernasouacariciarseusjoelhos.Meu último encontro com Feridun chegou à conclusão necessária, mas, contrariando minhas

esperançaseexpectativas,deixou-mecomumgostoruimnaboca.EuficarachocadoquandoFüsuninsistira em me dizer, na confeitaria İnci, que eles nunca tinham feito amor, e exigira que euacreditasse naquilo, porque, afinal, eu (como tantos outros homens apaixonados por mulherescasadas)vinhameapegandosecretamenteàquelaideiahaviaoitolongosanos.Eéeste,naverdade,oponto crucial da nossa história, pois explica por que eu fora capaz de continuar tanto tempo

Page 343: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

apaixonadoporela.Seeutivesserefletidodevidamente,comdeterminaçãoeamenteaberta,sobreaideiaderelações

conjugaisplenasentreFüsuneFeridun(umareflexãodolorosaque inicieiumaouduasvezessemnunca mais desejar repetir a experiência), meu amor não poderia ter sobrevivido. Ainda assim,quando,depoisdeanosdeautoenganobem-sucedido,Füsundeterminaraqueeunãotinhaescolhaalémdeacreditarnela,eumedisseimediataeinequivocamentequeaquilonãopodiaserverdade,eatéfiqueicontrariadocomofatodequeelapudesseestarquerendomeenganar.Mas,comoFeridunnaverdadeadeixaranofinaldeseisanosdecasamento,oenganoseapegavaaumfiodeesperança,emboraomaisbrevepensamentonadireçãoopostamedeixasse tomadodeciúmesinsuportáveisefuriosocomFeridun,ansiosoporhumilhá-lo.Tínhamosatravessadopenosamenteaquelesoitoanossemnenhumconflitoprecisamenteporqueeujamaissentiraraivadaquelehomem.Oitoanosdepois,era fácil entender como tinha sido uma feliz vida sexual que permitira a ele tolerar-me,especialmentenosprimeiros tempos.Comoqualquerhomem felizcomsuamulher,mas tambémafeitoaoprazerdacompanhiadosamigos,Feridungostavadepassarasnoitesnoscafésrelaxandoeconversando sobreoque fazia.Quandoolheinosolhosdele, fuiobrigadoaaceitaroutro fatoquepassara muito tempo escondendo de mimmesmo: que minha presença devia ter interrompido afelicidade que Füsun pudesse ter experimentado com omarido durante os primeiros anos de seucasamento.FoinodecorrerdemeuúltimoencontrocomFeridunqueouvipelaprimeiravezosmurmúriosdo

ciúme que jazia sem voz e adormecido havia oito anos, nas profundezas oceânicas da minhaconsciência,edecidialimesmo,naquelemomento,comotambémfizeraemrelaçãoaoutrosamigosdomeu antigo círculo social, que nuncamais tornaria a vê-lo. As pessoas que sabiam como, pormuitosanos,FeriduneraquaseumirmãoparamimeasquedesejavamFüsunantesmesmoqueeuaconhecessepodemacharincompreensívelqueeulhetenhavotadotamanhamávontadejustamentenomomentoemqueascoisascomeçaramacorrerameu favor.Bastadizerque,depoisde tantosanosvendoFeriduncomoumenigma,eucomeçavaaentendê-lo,e,comisso,deixemosoassuntodelado.OsolhosdeFeridun traíamoseuprópriociúme,emboraescasso,da felicidadequeeueFüsun

tínhamos pela frente. Mas, durante aquele longo almoço final no hotel Divan, tomamos rakısuficienteparadeixar-nosrelaxados;eassim,depoisdeacertarosdetalhesdatransferênciadetodosos direitos sobre a Limon Filmes para o nome de Feridun, pudemos abordar outro assunto queinteressava e alegrava a nós dois: Feridun planejava começar a rodar em breve seu filme de arte,Chuvaazul.Eubeberatantoque,compassosvacilantes,fuidiretodevoltaparacasa,semsequerpassarpela

Satsat,ecaíimediatamentenacama.Lembro-medeterditoàminhamãepreocupada,quandoelaveioverificarcomoeuestava,antesdeadormecer:“Avidaébela!”.Doisdiasmaistarde,numanoiteemqueoscéuseramrasgadosporraiosetrovões,ÇetinconduziuminhamãeeeuatéÇukurcuma.MinhamãepareciateresquecidosuarecusadecompareceraofuneraldeTarıkBeye,agitada,comosempreficavaemocasiõesdotipo,nãoparoudefalarumminutoemtodoocaminhodeida.“Oh,como ficou bonita a reforma dessas calçadas”, disse ela enquanto nos aproximávamos da casa de

Page 344: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Füsun. “Eu sempre quis andar por este bairro. Como é linda a ladeira. Como são bonitas eacolhedoras as casinhas daqui.” Quando entramos na casa, um vento frio levantou a poeira daspedrasdocalçamento,anunciandochuva.Minha mãe tinha telefonado previamente para tia Nesibe para dar seus pêsames, e as duas

mulherestinhamseencontradoalgumasvezes.Aindaassim,aquelavisitaparapediramãodeFüsundavaaimpressãodeumavisitadecondolências,umaoportunidadedemanifestarnossossentimentospelofalecimentodeTarıkBey.Mastodossentiamqueossentimentosmanifestadoserambemmaisprofundos.Depoisdasformalidadesedascortesiasdeterminadaspelaetiqueta(“Quelindacasa.Ah,comoeu senti a sua falta.Nem tenho comodizer como ficamos tristes quando soubemos…”), tiaNesibe e minha mãe se abraçaram e começaram a chorar, ao que Füsun saiu da sala e subiucorrendoasescadasparaoseuquarto.Quandoumraiocaiuemalgumlugarpróximo,asduasmulheressedesprenderameendireitaram

ocorpo.“Deusdocéu!”,disseminhamãe.Então,quandoachuvacaiucomforçaeocéucontinuoua trovejar, a divorciada de vinte e sete anosnos serviu o cafénumabandeja que carregava comomesmo requinte deuma jovemde dezoito anos recém-apresentada à sociedade. “Nesibe,Füsun éidêntica a você!”, disse minha mãe. “E como tem um ar inteligente e sabido quando sorri. Quebeldadeelavirou!”“Não,elaémuitomaisinteligentedoqueeu”,dissetiaNesibe.“Mümtaz,quedescanseempaz,semprediziaqueOsmaneKemalerammaisinteligentesdoque

ele,maseununcaacreditei totalmentequeeraoqueeleachava.Quemdissequeanovageraçãoprecisasermaisinteligentedoquenós?”,disseaminhamãe.“Asmoçassemdúvidasão”,dissetiaNesibe.“Vocêsabe,Vecihe”—poralgummotivo,elanão

conseguia,ounãoqueria,dirigir-seaelacomo“IrmãVecihe”,àmaneirarespeitosatradicional—“oqueeumaislamentonavida?”Econtouemseguidaquepormuitotemposonharaabrirumaoficinadecosturaefazerfama,masquejamaisconseguirajuntaracoragemnecessária,sóparaver“pessoasque nem sabem segurar uma tesoura ou dar um ponto virarem donas das casas de moda maisprocuradas”.Fomosjuntosatéajanelaverachuvaeaenxurradaquedesciaaladeira.“TarıkBey,quedescanseempaz,gostavamuitodeKemal”,dissetiaNesibeenquantoseinstalava

àmesa.“Todanoiteeledizia:‘Vamosesperarumpoucomais,KemalBeypodeestarchegando’.”Eeupercebiqueminhamãenãogostounemumpoucodessaspalavras.“Kemalsabeoquefaz”,disseminhamãe.“Füsuntambémsabeoquequer”,dissetiaNesibe.“Eelesjásedecidiram”,disseminhamãe.MasnãofoimaisalémemmatériadepediratiaNesibeamãodasuafilha.TiaNesibe,Füsuneeutomamosnossocopocostumeiroderakı;minhamãesóbebiararamente,

maspediutambémumcopoe,depoisdedoisgoles,ficoualegre—nãotantopeloefeitodaingestãodorakı,masdevidoaoperfumedabebida,comomeupaicostumavadizer.Lembrou-sedosdiasemque ela eNesibe ficavam acordadas até demadrugada para terminar um vestido de noite. Ambasgostavamdetrocarreminiscênciassobreoscasamentoseosvestidosdaqueletempo.

Page 345: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“OvestidoplissadodeVeciheficoutãofamosoquedepoisoutrasmulheresdeNişantaşıvierammeencomendarvestidosidênticos.HouveatéquemcomprasseomesmotecidoemParis,pondonomeucoloparaeucosturar,masrecusei”,dissetiaNesibe.QuandoFüsun se levantou cerimoniosamente damesa e foi para perto da gaiola deLimon, eu

tambémmelevantei.“Pelo amor de Deus, não vão cuidar desse passarinho enquanto ainda estamos comendo!”,

exclamouminhamãe. “Não sepreocupem, vocês vão termuito tempopara ficar juntos…Parem,paremaímesmo,nãovoudeixarnenhumdosdoisvoltarparaamesasemanteslavarasmãos.”Subiasescadasparalavarasmãos,eFüsun,quepodiaterlavadoassuasnacozinha,subiuatrás

demim.Euapegueipelosbraçosedei- lheumbeijoapaixonado.Foiumbeijoprofundoemaduro,queduroudezoudozesegundos.Noveanosantes,nósnosbeijávamoscomocrianças.Masnãohavianadadeinfantilnessebeijo,comsuaintensidadelentaepoderosa.EntãoFüsundesceucorrendoosdegraus,àminhafrente.Chegamosaofimdojantarsemmuitadiversãosuplementaretomandomuitocuidadocomoque

dizíamos;assimqueachuvaficoumaisfraca,fomosembora.“Mamãe,vocêseesqueceudepediramãodamoça”,disseeu,enquantovoltávamosdecarropara

casa.“Vocêialácommuitafrequência,essesanostodos?”,perguntouminhamãe.Quandomeviusem

palavras,elaemendou, irritada:“Oqueestá feito,está feito…MasNesibedisseumacoisaquemedeixoumuitomagoada.Talveztenhasidoporquevocêquasenuncaficavaemcasaparajantarcomsuamãequeouviraquilopartiumeucoração”.Elaacaricioumeubraço.“Masnãosepreocupe,meufilho,eunãomeincomodei.Aindaassim,nãoconseguipediramãodela,comoseFüsunaindafosseumagarotadeliceu.Elajáfoicasadaesedivorciou;éumamulhermadura.Temacabeçanolugaresabeoqueestáfazendo.Vocêsdoisjácombinaramtudoeconcordaramcomtudo.Entãoporqueessanecessidadede tantapompaecerimônia?Sevocêquersaberoqueeuacho,nemprecisavamficarnoivos…Paremde adiar as coisas ededarmaismotivosparamexericos— casem-se logo…NemsedeemaotrabalhodeiràEuropa;hojeemdiavocêpodeachartudoquequisernaslojasdeNişantaşı,entãoparaqueiratéParis?”Aovermeusilênciodeterminado,elaencerrouoassunto.Quandochegamosemcasa,antesdeirparaacama,minhamãedisse:“Masvocêtinharazão.Ela

é uma lindamulher, e inteligente. Vai ser uma boa esposa para você.Mas tome cuidado, Füsunparecetersofridomuito.Possonãosabermuitacoisa,mastomecuidadoparanãodeixarquearaiva,oressentimento,sejaláoquehouverdentrodela,enveneneavidadevocês.”“Podedeixar!”Muitoaocontrário,acadadia,aligaçãoentrenósficavamaisforte,ecomelanossoapegoàvida,

aIstambul,àssuasruas,aseushabitanteseatudoomais.Àsvezes,demãosdadasnocinema,euasentiatomadaporumleveestremecimento.Àsvezeselaseencostavaemmimoupousavaacabeçadeleveemmeuombro.Afundava-seemseuassentoparaficarmaispróxima,eeutomavasuamãoentre asminhas, às vezes acariciando sua perna, com um toque de pluma.Durante as primeirassemanasFüsunnãogostavadesesentarnoscamarotes,masagoranãoseopunhamais.Segurarsua

Page 346: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

mãomepermitiaavaliarseusreflexosderespostaaofilme,assimcomoummédico,comaspontasdos dedos, poderia apalpar os órgãos internos de um paciente, e eu extraía um prazer imenso depodertomaropulsodesuasreaçõesemocionaisaofilme.Durante o intervalo, conversávamos cautelosamente sobre os preparativos de nossa viagem à

Europa, e sobre começarmos a aparecer juntos em público,mas nunca falei do queminhamãeachavadeumafestadenoivado.Eutambémconcluíraaospoucosqueumafestadenoivadosónostrariaproblemas,estimulandomuitasfofocaseprovocandoinquietaçãoatémesmonaminhafamília.Se convidássemos muita gente, todos ficariam falando da quantidade de convidados; seconvidássemosmenos pessoas, ninguémpararia de comentar como eram poucos. Parecia-me queFüsun estava chegando à mesma conclusão, ou pelo menos eu achava que era por isso que elatambém evitava falar no assunto. Assim, foi sem discussão que de algummodo concordamos empular o noivado e nos casarmos quando voltássemos da Europa. Enquanto fumávamos nossoscigarrosduranteosintervalosentreosfilmesenasconfeitariasdeBeyoğluquetínhamosadquiridoohábitodefrequentardepoisdocinema,nossomaiorprazererasonharcomascoisasquefaríamosnanossaviagem.FüsuncompraraumlivroescritoparaosturcoschamadoAEuropadecarro,esempreo levava com ela ao cinema; enquanto virávamos suas páginas, planejávamos nosso itinerário.Passaríamos a primeira noite emEdirna, depois atravessaríamos a Iugoslávia e a Áustria.Compreiguiastambém,eFüsungostavaespecialmentedeolharasfotografiasdeParisquetraziam.“VamosaViena”,diziaela.Àsvezes,olhandoasfotosdaEuropaemalgumdoslivros,elarecaíanumsilêncioestranhoetristeenquantoseentregavaaumdevaneio.“Oquehouve,querida?Oquevocêestápensando?”,eulheperguntava.“Nãosei”,respondiaFüsun.Como tiaNesibe,FüsuneÇetinnunca tinhamsaídoantesdaTurquia,pediram seusprimeiros

passaportes.Parapoupar-lhesa torturadepercorrer asmuitas repartições federais eo tormentodeesperarnaquelasfilasimensas,apeleiparaSelami,oagentepolicialquecuidavadessesassuntosparaaSatsat. (Os leitores cuidadososhãode lembrarque foi a essemesmopolicial aposentadoqueeupediraquelocalizasseFüsunesuafamíliaoitoanosantes.)Ancoradonoamor,eutambémnãosaíradaTurquianosúltimosnove anos, e foi assimquedescobriquenão sentiamais anecessidadedeviajar,quandoantes,seeuficassenopaíspormaisdetrêsouquatromeses,ficavadeprimido.EraumdiaquentedeverãoquandofomosassinarospapéisnaRepartiçãoPolicialdeEmissãode

Passaportes,nasededogovernoemBabıali.Esseprédioantigo,usadonopassadocomoresidênciadeprimeiros-ministros, paxás e grão-vizires, desde então fora alvo de vários ataques e cena deassassinatospolíticosdescritosnoslivrosdehistóriaparaestudantessecundários,mas,comonocasodegrandesedifíciosotomanosquetinhamsobrevividoaoadventodaRepública,seuantigoesplendordourado segastara àmedidaquemilharesdealmascansadas ali ingressavamcadadiaparapassarhoras na fila, primeiro para tirar documentos, depois para tê- los carimbados e assinados, umaeternidadequeconduzia inevitavelmente adiscussões e escaramuças, cenaqueno todoevocavaoJuízoFinal.Emmeioaocaloreàumidade,osdocumentosemnossasmãoslogoamoleciam.Perto do final da tarde fomos enviados ao edifício Sansaryan, em Sirkeci, em busca de outro

documento. Enquanto descíamos a ladeira de Babıali, logo antes do velho caféMeserret, Füsun

Page 347: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

parounumacasadechásempedirpermissãoanenhumdenósesentou-seaumamesa.“Oquehouvecomelaagora?”,perguntoutiaNesibe.EnquantoelaeÇetinEfendiesperavamdoladodefora,entrei.“Oquehouve,querida,estácansada?”“Estou farta. Não quero mais ir à Europa”, disse Füsun. Acendeu um cigarro e tragou

profundamenteafumaça.“Vocêstodospodemir,façoquestão—vãopegarseuspassaportes—,maseuestouesgotada.”“Querida,aguentefirme,jáestáquaseacabando.”Elaresistiuumpoucomais,manifestandoseumauhumor,masnofinal,inevitavelmente,minha

beldade veio conosco. Tivemos de suportar mais um ataque semelhante quando pedimos nossosvistos no consulado da Áustria. Esperando poupá-la das filas e das entrevistas humilhantes, eupreparara nossos documentos descrevendo tia Nesibe, Füsun e também Çetin Efendi como“especialistas”,comótimossaláriosnaSatsat.Concederamosvistosatodosnós,menosaFüsun,que,devido à sua pouca idade, pareceu-lhes suspeita, e foi convocada para uma entrevista. Fui aoconsuladocomela.Seismesesantes,umcandidatoaquemnegaramváriasvezesovistoaolongodeanostinhadado

quatro tiros na cabeça de um funcionário do consulado da Suíça; depois desse incidente, osdepartamentosdeconcessãodevistonosconsuladosobedeciamamedidas rigorosasde segurança.Agoraoscandidatosnãopodiammaisconversarfrenteafrentecomosfuncionáriosdiplomáticosdospaíses daEuropa e, emvezdisso, comoprisioneiros do corredordamortenos filmes americanos,eramseparadosdosatendentesporgradesevidrosàprovadebalaeeramobrigadosafalarporumtelefone. Ainda assim, as pessoas se acotovelavam à porta, empurrando e se amontoando em seuesforço para chegar à sala do visto, ou para entrar no jardim ou no pátio. Empregados turcos(especialmentenoconsuladoalemão,ondesediziaquenoprazodedoisdiaselessetornavam“maisgermânicosqueosalemães”)reclamavamcomoscandidatosaglomeradospordeixaremdeformaruma filadecorosa, empurrando-os edestacandoosmalvestidos, aquemdiziam: “Estáperdendooseutempo”,comoformadereduziradensidadedamanada.Eassimoscandidatos,emsuamaioria,ficavam praticamente eufóricos quando conseguiam uma entrevista, assumindo nervosamente suaposição diante das grades e do vidro à prova de balas, como colegiais que se submetessem a umdifícilexameoral,tranquiloseobedientescomocordeiros.Comoeumobilizaraalgunspistolões,Füsunnãoprecisouesperarnafilaefoiparasuaentrevista

sorridente,masquando,logodepois,elaemergiudasala,tinhaorostoroxoe,semsequerolharemminhadireção,saiuparaarua.Euaseguieaalcanceiquandoelaparouparaacenderumcigarro.Recusou-seamecontaroqueacontecera,entrandonoPalácioNacionaldosSanduícheseRefrescos,onde,instalando-senumacadeira,anunciou:“NãoqueromaisirparaaEuropa.Desisto”.“Oqueaconteceu?Elesrecusaramovisto?”“Elesmeinterrogaramsobreaminhavidainteira.Atémeperguntaramporqueeumedivorciei.E

comoeumesustentava.Atéissomeperguntaram.EntãonãovouparaaEuropa.Nãoquerovistodenenhumdeles.”“Posso dar um jeito de resolver as coisas”, eu disse. “Ou podemos embarcar com o carro num

Page 348: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

naviodiretoparaaItália.”“Kemal,acredite,nãoqueromaisfazeressaviagemàEuropa.Nãoseifalarnenhumalíngua,eisso

medávergonha.”“Querida, ainda podemos ver um pouco domundo…Em outros lugares, existem pessoas que

vivem de maneira diferente e mais feliz. Podemos caminhar pelas ruas de lá de mãos dadas. OmundoémuitomaiordoqueaTurquia.”“Ah, entãoparamerecermecasar comvocê eupreciso ir àEuropa, é isso?Bem, entãodesisto

tambémdaideiademecasarcomvocê.”“VamossermuitosfelizesemParis,Füsun.”“Vocêsabecomoeupossoserteimosa,Kemal.Nãomepressione,ousóvaimefazerfincaropé.”Mas eu pressionei e, anosmais tarde, toda vez que recordava como insisti e sentia o ferrão do

remorso,tambémmelembravadequetinhapassadoanoscultivandoafantasiadefazeramorcomFüsunnumhoteldocaminho.ComaajudadeSelim,oEsnobe,queimportavapapeldaÁustria,ovistodeFüsunchegouumasemanamais tarde.Foimaisoumenosaomesmotempoquetambémconseguimos os documentos para poder sair de viagem com o carro. Estávamos sentados numcamarotedocinemaPalacequandoentregueiopassaporteaFüsun,comaspáginasagoracobertasdevistoscoloridosparatodosospaísesquevisitaríamosacaminhodeParis;naquelemomento,sentiumestranhoorgulhodeserumbommarido.Anosantes,quandodeparavacomfantasmasdeFüsunemcadaesquina, tambémtinhaencontradoumaaparição suanoPalace.Pegando seupassaporte,elasorriunumprimeiromomento,antesdeassumirumaexpressãomelancólicaenquantofolheavasuaspáginas,examinandoosvistosumaum.Atravésdeumaagênciadeviagens,reserveitrêsquartosgrandesnoHôtelduNordemParis:um

paramim,umparaÇetinEfendieumparatiaNesibeeFüsun.EutinhaficadoemoutroshotéisemParisduranteosanosemqueSibelestudavalá,mas,comoumestudantequesonhacomoslugaresaonde irá quando ficar rico, tinhauma fantasia sobre os dias felizes queumdiahaveria de passarnaquelehotelvenerável,quemepareciaumlugartiradodefilmesantigosememóriasancestrais.“Nãoprecisadetudoisso.Case-sedeumavezedepoisvá”,diziasempreminhamãe.“Ora,sevocê

vaiviajarcomamoçaporquemestáapaixonado,porquenãoaproveitaraomáximo?PorquearrastarNesibeeÇetinEfendicomvocês?Primeirovocêssecasam;assim,podempegarumaviãoparaParisepassaraluademelasós…EupossofalarcomoCravo-Brancoepedirqueelecontetudocomouma dessas histórias românticas que todo mundo adora, e então dois dias depois tudo estaráesquecido, será notícia velha.De qualquermaneira, estemundo antigo está acabando. Para ondevocêolha,sóvênovos-ricosvindosdointerior.”Domeulado,eusemprerespondia:“EcomoeuvoumevirarsemÇetin?Quemvaimelevarde

carrodeumladoparaooutro?Mamãe,vocêsósaiuduasvezesdacasadeSuadiyeoverãointeiro.Nãosepreocupe,voltamosantesdofinaldesetembro.QuandovocêvoltarparaNişantaşınoiníciode outubro, Çetin vai estar de volta para levar você aonde quiser. Eu prometo. E tia Nesibe vaiencontrarumvestidoparavocêusarnocasamento”.

Page 349: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

77.OhotelGrandSemiramis

No dia 27 de agosto de 1984, aomeio-dia e quinze,Çetin parou o carro em frente da casa deÇukurcuma, pronto para partir em viagem para a Europa. Fazia exatamente nove anos e quatromeses desde que eu e Füsun tínhamos nos encontrado na boutique şanzelize,mas não deimuitaatençãoaessacoincidência,nempenseimuitonamaneiracomominhavidaemeucarátertinhammudadonessesanos.Nossapartidatinhasidoretardadapelaslágrimasepelatorrenteincessantedeconselhosdeminhamãeetambémpelotrânsito,masnadadissoenfraqueceuminhadeterminaçãodeencerrarlogoessecapítulodaminhavidaepartirdevezparaanossaviagem.DepoisdeesperarinterminavelmenteenquantoÇetinEfendiguardavaasbagagensdetiaNesibeeFüsunnamaladocarro, assumi um ar petulante diante dos sorrisos e adeuses dos vizinhos e das crianças que seaglomeravamemtornodocarro,maspordentrosentiaumorgulhoquenãoqueriaadmitir.QuandoseguimosparaTophane,FüsunacenouparaAli,quevoltavadeumtreinode futebol.EeupenseiquedaliapoucoFüsuneeuteríamosumfilhoparecidocomAli.Enquanto atravessamos a ponte Galata, abrimos as janelas, aspirando satisfeitos aquele cheiro

familiar de Istambul composto de mar e musgo, excremento de pombo, fumaça de carvão,escapamentodeautomóveisefloresdetília.FüsunetiaNesibeestavamsentadasnobancotraseiro.EuestavanobancodafrenteaoladodeÇetin—exatamentecomonosmeussonhos—,eenquantoatravessávamosAksarayrumoàsmuralhasdacidade,passandoporumbairropobreatrásdooutro,porruascalçadasdepedra,entrandoesaindodeburacos,euàsvezespassavaobraçoporcimadoencostodobancoparadirigirumsorrisosatisfeitoaFüsun.Foradoslimitesdacidade,depoisdeBakırköy,passandoporfabriquetasearmazéns,novosbairros

emotéis, avistei a fábrica de tecidos deTurgayBey, que visitara nove anos antes,mas agoramalconseguia me lembrar do ciúme que tomara conta de mim naquele dia. Depois que o carroatravessouos limitesde Istambul, todoo sofrimentoqueeu tinha suportadopor amor aFüsunderepente se reduziu a uma história tranquila que podia ser contada de um fôlego só. Afinal, umahistória de amor com final feliz merece pouco mais que poucas frases! Talvez seja por isso quefalávamoscadavezmenosdepoisquedeixamosIstambulparatrás.AtémesmotiaNesibe—emboramuitosatisfeitacomaqueleresultado,fazendoperguntascomo“Nãoesquecemosdetrancaraporta,nãoé?”eadmirandotudooqueviapelajanela(mesmoosvelhospangarésemaciadosquepastavamnumterrenobaldio)—tinhaadormecidoquandochegamosàponteBüyükçekmece.EnquantoÇetinenchiaotanquenasaídadeÇatalca,Füsunsaiudocarrocomsuamãe.Depois

decomprarumqueijoamareloproduzidonolocaldeumasenhoraquevendiasuasmercadoriasàbeiradaestrada,asduasentraramnacasadecháaolado,pediramcháesimitsparaacompanharoqueijo e dedicaram-se a seu banquete improvisado.Quandome sentei ao lado delas, ocorreu-meque,casocontinuássemosnaqueleritmo,nossaviagemeuropeiairiadurarmesesemvezdesemanas.Ereclamei?Não!SentadodefrenteparaFüsun,olhandoparaela,sentiaamesmadoradocicadaqueseespalhavapelopeitoepelabarrigaquesentianocomeçodaadolescêncianosbailes,ouquandoconhecia uma linda garota no começo do verão.Não era a agonia profunda e corrosiva do amorfrustrado que em certo momento conheci tão bem, mas a doce impaciência de um amante

Page 350: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

correspondido.Às sete e quarenta da noite, o sol atingiu nossos olhos antes demergulhar abaixo da linha dos

camposdegirassol.PoucodepoisdeÇetinEfendiacenderosfaróis,tiaNesibedisse:“PeloamordeDeus,nãovamosviajardecarronessaescuridão!”.Naestradadeduaspistas,oscaminhõesquevinhamnosentidoopostonemsedavamaotrabalho

deabaixarosfaróis.LogodepoisdeBabaeski,meusolhosforamatraídospeloletreiroluminosoroxodohotelGrandSemiramis;pareceu-meumbomlugarparapassaranoite.PediaÇetinquereduzisseavelocidade; fazendooretornoemfrenteàTürkPetrol,ouvimosos latidosdeumcãoquetentounos afugentar. Çetin parou em frente ao hotel, ondemeu coração começou a bater loucamente,explodindodesensações,comaconsciênciadequenaquelelugar,depoisdenoveanosdeespera,meussonhosiamtornar-serealidade.Maistarde,quandoelaentrounapequenasaladejantardotérreo,percebiqueocomportamento

deFüsunseadequavaperfeitamenteàsurpresaqueeuprepararaparaela.FoiotipodeentradaemcenaqueseodeiaesperarnosalãosuntuosoguarnecidodecortinasdeveludodeumgrandehotelemalgumlocaldeveraneioeuropeudoséculoXIX.Elaestavalindamentevestidaemaquiada,usavaumperfumequeeulhederaanosantes—LeSoleilNoir(exponhoaquio frasco)—eomatizdeseubatomcombinavaperfeitamentecomovermelhodeseuvestido(tambémexpostonestavitrine),querealçava os fulgurantes tons secundários de seus cabelos negros. Às outrasmesas viam-se famíliascansadas— trabalhadores voltando da Alemanha; de tempos em tempos crianças curiosas e paischeiosdedesejoviravam-seeolhavamparanós.“Este vermelho está lindo em vocêhoje à noite”, disse tiaNesibe. “E vai ficarmelhor aindano

hoteldeParis,equandosairmos.Mas,querida,nãousetodanoiteduranteaviagem.”TiaNesibemelançouumolharpedindoqueeuapoiasseseuconselho,masnenhumapalavrame

saiudaboca.Nãofoisóporque,naverdade,euqueriaqueelausasseaquelevestidotodanoite,poiscom ele ficava extraordinariamente linda; era também porque eu estava tenso como um jovemamanteque,sentindoquesuafelicidadeestápróxima,aindatemmedodequealgumacoisapossadarerrado;eporissoemudeci.PercebiaqueFüsun,sentadabemàminhafrente,compartilhavaumpouco da mesma ansiedade, pois evitava meu olhar e fumava acanhada como uma menina noprimeirodiadeaula,virando-separasoprarlongeafumaça.Enquanto percorríamos o menu bem comum do hotel, que fora aprovado pelo Conselho de

Babaeski,fez-seumsilênciolongoeestranho,comoseaquelefosseomomentodepassaremrevistaosnoveúltimosanosdasnossasvidas.Quandoumgarçomfinalmenteapareceu,pediumagarrafagrandedeYeniRakı.“Por que não bebe alguma coisa conosco hoje à noite, Çetin Efendi, para podermos fazer um

brinde?”,propus.“Nãovaiprecisarmelevarparacasadepoisdojantar.”“Deusoabençoe,ÇetinBey,osenhor jáesperoudemais”,disse tiaNesibe,cheiadegratidão.E

então,aindacontandocomaatençãodele,elaolhouparamimedisse:“SeapessoatempaciênciaeseentregaàsmãosdeDeus,nãohácoraçãoquenãopossaconquistar,nemfortalezaquenãopossacapturar—nãoémesmo?”.Quandoorakıchegou,serviumadosegenerosaparaFüsun—comotinhaservidoparaosdemais

Page 351: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

—, adorando amaneira como ela fumava quando ficava nervosa, fitando a ponta do seu cigarro.Todos nós, inclusive tiaNesibe, tomávamos nosso rakı com gelo e, quando o líquido se turvava,tomávamostudocomosefossealgumapoção.Depoisdealgumtempo,comeceiarelaxar.Omundoeraumlugarmaravilhoso,naverdade.Eracomoseeureparassenissopelaprimeiravez,

embora soubesse que estaria acariciando o lindo corpo de Füsun, seus braços longos e seus seiosmagníficos pelo resto daminha vida, que encostando a cabeça em seu pescoço e inspirando seuaromaeuhaveriadedormirsempreempaznosanosvindouros.Fizoquefaziaquandocriança,primeiromeconcentrandoparatirardamentequalquercoisaque

fosse o motivo da minha felicidade, para poder olhar em volta com olhos renovados e percebernovamenteabelezadetudo:naparede,umafotografiaelegantedeAtatürkdecasaca,aoladodeumpanoramadosAlpessuíços,umfolhetodapontedoBósforo,e—lembrançadenoveanosantes—umaimagemdeIngeposandoelegantecomumagarrafadeMeltem.Viumrelógioquediziaqueeramnoveevinte,eumavisonaparedeatrásdobalcãoderecepçãodizendoque“oscasaisdeverãoapresentarcertidãodecasamento”.“HojeestápassandoEncostasdevastadas.Pedimosparaelestrocaremdecanal?”“Aindafaltaalgumtempo,mamãe”,disseFüsun.Umcasalestrangeirodemenosdequarentaanoschegouàsaladejantar.Todossevirarampara

fitá- los,eelesnoscumprimentarampolidamente.Eram franceses.Naquele tempo,poucos turistasocidentaisvinhamàTurquia,maschegavamquasetodosdecarro.Quandodeuahora,odonodohotelsentou-seemfrenteàtelevisãocomsuamulher,quetraziaa

cabeçacoberta,esuasduasfilhascrescidas—umadasquaiseuviramaiscedonacozinha—,cujascabeçasestavamdescobertas;decostasparaoshóspedes, instalaram-separaassistir em silêncioaonovoepisódio.“KemalBey,daívocênãovaiconseguirver”,disse tiaNesibe.“Porquenãovemsentaraonosso

lado?”Então,encaixeiminhacadeiranoespaçoestreitoentreFüsuneela.Encostas devastadas se passava nas colinas de Istambul,mas não posso dizer que presteimuita

atenção, comFüsunencostando seubraçonuemmim!Meubraçoesquerdo, especialmentemeuantebraço,quetocavanele,estavaemchamas.Meusolhosestavamnatela,maseracomoseminhaalmativesseentradonadeFüsun.Umterceiroolho,umolhointerior,regalava-secomanucadeFüsun,seusseiosesplendorosos,os

mamilos cor de morango na ponta desses seios e a brancura de seu ventre. Füsun continuavaencostadaemmim,eaospoucosaumentavaapressão,demaneiraqueocinzeirodoóleodegirassolBatanay em que ela apagou seu cigarro e até a ponta manchada de batom escaparam à minhaatenção.Quandooepisódioacabou,atelevisãofoidesligadapelorestodanoite.Afilhamaisvelhadodono

dohotel ligouo rádioeencontrouumprogramademúsica suaveeagradávelqueocasal francêsadorou.Voltandominhacadeiraaolugar,quasetropeceidetantoquetinhabebido.Füsuntomaratrêscopos,acrernomeuterceiroolho,quecontrolavaacontagem.“Nósnosesquecemosdebrindar”,disseÇetinEfendi.“Exatamente,vamosfazerumbrinde”,eudisse.“Naverdade,chegouomomentoderealizarmos

Page 352: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

umacerimônia.ÇetinEfendi,osenhoréquemvaipresidir.”Comumgestofloreado,apresenteiacaixacomasaliançasquetinhacompradoumasemanaantes

nobazarcoberto,etireiasaliançasdacaixa.“Esteéo jeitocertode fazer ascoisas, senhor”,disseÇetinEfendi, animando-se imediatamente

coma situação. “O senhornãopode se casar semantes ficarnoivo.Agora,podemmedar as suasmãos?”Füsunofereceuasdela,sorrindonervosamente.“Nãohávoltadepoisdisso”,disseÇetinEfendi.“Masnãovaisernecessário.Osdoisvãosermuito

felizes,tenhocerteza…Agora,medêaoutramão,KemalBey.”Elepôsasaliançasemnossosdedos,semdemora,eouvimosaplausos.Eraocasalfrancês,quenos

observava, e alguns outros hóspedes sonolentos que também bateram palmas. Füsun sorrialindamente, olhando para a aliança em seu dedo com o deleite de alguém que escolhe um anelnumajoalheria.“Ficoubom,querida?”,perguntei.“Ficou”,disseela,semfazerqualqueresforçoparaescondersuamaiscompletasatisfação.“Estálindonoseudedo.”“Está.”“Dancem,dancem!”,disseocasalfrancês.“Issomesmo,querovê-losdançar”,dissetiaNesibe.A música suave que emanava do rádio era boa para dançar. Mas será que eu conseguiria me

aguentardepé?Nós dois nos levantamos aomesmo tempo, e eu enlacei Füsun pela cintura, envolvendo-a nos

braços,sentindosobosmeusdedosseusquadris,suascostelas,suaespinha.Füsun,menostontadoqueeu,levouadançaasério,abraçando-mecomautênticaemoção.Eu

queria sussurrar em seu ouvido, dizer o quanto a amava, mas de uma hora para outra fiqueiencabulado.Na verdade, estávamos ambosbastante embriagados,mas algonos impediadenosdeixar levar.

Umpoucomaistarde,quandotornamosanossentar,ocasalfrancêsaplaudiudenovo.“Precisoirparaacama”,disseÇetinEfendi.“Amanhãtemosmuitaviagempelafrente.Demanhã

euexaminoomotor,antesdepartirmos.Vamossaircedo,nãoé?”SeÇetinnão tivesse se levantado tão abruptamente, tiaNesibe tambémpoderia ter ficadomais

tempo.“ÇetinEfendi,podemedaraschavesdocarro?”,pedi.“KemalBey,todosnósbebemosbastantehojeànoite,entãoporfavor,euimploro,nemencoste

novolante.”“Deixeiumasacolanoporta-malas,emeulivroficounela.”Quandopegueiachavedesuamãoestendida,ÇetinBeylevantou-semuitoeretoedepoisfezuma

reverênciaexagerada,umgestoderespeitoqueantesreservavaaomeupai.“Mamãe,comovoupoderentrarnoquartosemacordá-la?”,perguntouFüsun.“Voudeixaraportadestrancada”,respondeutiaNesibe.

Page 353: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Oueupossosubircomvocêedepoisficarcomachave.”“Nãoprecisa.Achavevaificarnafechadurapordentro”,dissetiaNesibe,“maseunãovoutrancar

aporta.Venhanahoraquevocêquiser.”DepoisquetiaNesibeeÇetinEfendiforamembora,ficamosimediatamentemaisrelaxadosemais

agitados.Füsunsecomportavacomoumanoivaemsuaprimeiranoitecomumhomem,edesviavaseusolhosotempotodo.Maspercebiumaemoçãodiferentedoacanhamentohabitual.Queriatocá-la.Estendiobraçoparaacenderseucigarro.“Vocêiasubirparaoseuquartoeleroseulivro?”,perguntouFüsun,começandoaselevantar.“Não,querida,penseiemsairmosparadarumavoltadecarro.Anoiteestátãolinda.”“Nósdoisbebemosdemais,Kemal.Estáforadequestão.”“Maspodíamosficarjuntos.”“Melhorvocêsubireirparaacama.”“Estácommedodequeeubataocarro?”“Nãoestoucommedo.”“Entãovamos;podemospegaralgumaestradinhaenosperderpelosmorroseflorestas.”“Não,subaparaoseuquartoevádormir.Voumelevantardamesa.”“Vaimedeixarsozinhonamesananoitedonossonoivado?”“Não,vouficarumpoucomais”,disseela.“Naverdade,aquiémuitoagradável.”Enquantoocasalfrancêsnosobservavadesuamesa,devemosterficadomeiahoraemsilênciona

nossa. De vez em quando nossos olhos se encontravam, mas a cada encontro nossos olhares sevoltavam para dentro. Havia um filme estranho e eclético passando no cinema daminhamente,reunindomemórias,medos,desejos emuitasoutras coisas esparsasqueeunãoconseguiadecifrar.Maistarde,umagrandemoscapretaquepairavaentreosnossoscopostambémsetornoupartedofilme.Minhamão,eamãocomqueFüsunseguravaseucigarro,eoscopos,eocasaldefrancesesentravame saíamdoquadro.Pormaisqueeuestivesse apalermadode tantabebidae tanto amor,aindahaviaumapartedemimqueprecisavaencontrarumalógicanaquelefilme,quequeriaobrigaro mundo a ver que não havia nada entre Füsun e eu além de amor e felicidade. Estava tãodeterminadoa issoquantoamoscasonolentaquecaminhavaentreospratos.Sorriparaocasaldefrancesesafimdedemonstrarnossafelicidade,eelesresponderamameusorrisonomesmoespírito.“Porquevocênãosorriparaelestambém?”“Eujásorriparaeles”,disseFüsun.“Oquemaisvocêquer—umadançadoventre?”Como eu esquecia que Füsun estava bastante bêbada e levava a sério tudo que ela dizia, suas

respostasàsvezesmeirritavam.Masnadahaveriadeperturbarminhasatisfação,poiseuconseguirachegaràqueleestadodeembriaguezemqueomundotodoviraumacoisasó,esóexisteummundo.Eraesse,concluí,otemadofilmeestreladopelamoscaeporminhasmemórias.TudoqueeujamaissentiraporFüsun,todaadorqueeutinhasofridoporela,formavaagoraumacoisasócomabelezaeaconfusãodomundo,e,nessasensaçãoextraordinariamentebeatíficadeunidadeeplenitude,meuespírito encontrou a paz que procurava havia tanto tempo.Mas nessemomento, voltandominhaatençãoparaamosca,comeceiameperguntarcomoelaconseguiacaminhartantosemembaraçaraspatas.Entãoamoscadesapareceu.

Page 354: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

QuandopegueiamãodeFüsunporsobreotampodamesa,sentiqueabelezaeapazquehaviaemmimtransmitiam-separaamãodelaatravésdaminhamão,edamãodelaparaaminha.AlindamãodeFüsunpareciaumanimal perseguidoqueminhamãodireita virara de barriga para cima,montando-lhe em cima, quase esmagando.Omundo inteiro rodopiava dentro daminha cabeça,dentrodasnossascabeças.“Vamosdançar?”,perguntei.“Não…”“Porquenão?”“Agoranãoestoucomvontade!”,disseFüsun.“Estoufelizassim.”Quandopercebiqueelasereferiaàsnossasmãos,eusorri.Eraummomentoforadotempo,como

seestivéssemosalisentadosdemãosdadashaviahoras,outivéssemosacabadodechegar.Olheiemvoltaeconstateiqueéramosasúltimaspessoasqueaindaestavamnorestaurante.“Osfrancesesforamembora.”“Aquelesdoisnãoeramfranceses”,disseFüsun.“Comovocêsabe?”“Euviaplacadocarrodeles.ElesvieramdeAtenas.”“Ondevocêviuocarrodeles?”“Vãofecharorestaurante.Vamosembora.”“Masaindaestamosaqui!”“Issomesmo”,disseelanumtomdematuridade.Continuamossentadosmaisalgumtempodemãosdadas.Tirandoumcigarrodomaço,queacendeucomhabilidade,elasorriuparamimenquantodava

umalongatragada.Eissotambémmepareceulevarhoras.Umsegundofilmeacabaradecomeçarnaminha cabeça quando ela tirou amão daminha e se levantou. Saí andando atrás dela e logocomeceiasubiraescada,concentradonapartedetrásdeseuvestido,felizmentesemtropeçar.“Seuquartoéaqui”,disseFüsun.“Primeirodeixe-meacompanharvocêatéoquartodasuamãe.”“Não,váparaoseuquarto”,sussurrouela.“Estoumuito aborrecido, você não confia emmim.Como vai conseguir passar o resto da vida

comigo?”“Nãosei”,respondeuela.“Agoravá—paraoseuquarto.”“Anoiteestálinda”,disseeu.“Estoutãofeliz.Enquantonósvivermos,cadamomentovaisertão

felizcomoeste,eujuro.”Elaviuqueeumeaproximeimais,parabeijá- la,masantesqueconseguisseelameabraçou.Eua

beijeiapaixonadamente,quaseaagarrandoàforça.Passamosmuitotemponosbeijando,eemcertomomentomeusolhosseabriramparavernocorredorestreitoedetetobaixoumretratodeAtatürk.Lembroque,entreosbeijos,supliqueiaFüsunqueviesseatémeuquarto.Numdosquartos,alguémtossiueducadamente.Umachavegirounafechadura.Füsunafastou-sedemime,virando-se,desapareceunocorredor.Fiqueiolhandoparaelacomdesespero,antesdecairnacamatodovestido.

Page 355: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

78.Chuvadeverão

Oquartonãoestavatotalmenteàsescuras;umaluzentravanele,vindadopostodegasolinaedaestrada deEdirna.Erauma floresta o que se via ao longe?Só consegui distinguir o clarãodeumrelâmpagonocéudistante.Minhamenteestavaabertaatodoouniversoeatudoquehavianele.Muitotempotinhapassadoquandoouvibateremàporta.Fuiabrir.“Achoqueminhamãemetrancoudoladodefora”,disseFüsun,olhandonoescuro,tentandome

ver.Pegueisuamãoeapuxeiparadentro.Estendendo-menacamaaindavestido,euapuxeiparao

meu ladoe a abracei, apertando-a aindamais.Ela se aninhoucontramim,comoumgatoque seabrigadeumatempestade,apoiandoacabeçaemmeupeito.Puxou-meparaelacomtodaaforça,comosenossafelicidadesópudessebrotarquantomaisnosaproximássemos;percebiqueelatremia.Sentique,comonalenda,morreríamosalimesmosenãonosbeijássemos.Lembro-medecomonosbeijamos antes de eu tirar seu vestido já muito amarrotado, de por quanto tempo e quãoprofundamentenosbeijamosdepoisdisso,decomoorangidoembaraçosodasmolasdacamanosfezirmaisdevagar,decomofiqueiexcitadoquandoseuscabelosroçaramnomeupeitoenomeurosto;mas, se eu entro em detalhes, ninguém vai achar que vivemos esses momentos com plenaconsciência,ouquemelembrodecadaumdeles.Aguinadabruscadeviverdeummomentoparaooutro o que passara anos esperando e a descrença passada de que ainda seria feliz neste mundoreduziramosprazeres auma sériedemomentos luminosos, separados e semmedida, comovaga-lumesquecintilavamedesapareciamnosegundoseguinte.Masasimagensqueentravamemminhacabeçaforadomeucontrole,comonumsonho,fundiam-senumaúnicaimpressãogeral.Lembro que nos enfiamos entre os lençóis e que, sempre que encostava na dela, minha pele

queimava.Euestavanumtranse,mergulhadoemmemóriasdenoveanosantesque,semsaber,eutinhaesquecido,masqueagorareviviam,animadasporoutrosdetalhesdaquelesdiasfelizesqueeurelembravaemmeuencantamento.Enquantoaesperançaportantotemporeprimidadefelicidadesemisturavaàalegriaeaotriunfodosdesejosatendidos(eusempreengoliraumdeseusseiosinteiro),omomento vivido tornava-se um borrão— uma confusão de prazeres e emoções. Enquantomerejubilavaporno final tê- la conquistado, eu só sabia desejá- la, admirar tudooque ela era— seugemido de prazer, seu modo quase infantil de agarrar-se a mim, o fulgor súbito de sua pele develudo.Deummomentosublimemelembroclaramente:elaestavasentadaemmeucolo,orostoiluminado pelos faróis dos caminhões que passavampela estrada (seusmotores cansados ecoandonossos gemidos graves e profundos), quando, olhando felizes nos olhos um do outro, nossurpreendemos;uma rajada fortee inesperadadeventoatingiu tudoporum instante,eemalgumlugardistanteumaportabateu,easfolhasdasárvoresfarfalharamcomosecompartilhassemconoscoumsegredo.Oclarãodistantedeumrelâmpagoencheuoquartocomuminstantedeluzarroxeada.Enquantonosamávamoscomumfervorquesófaziacrescercadavezmais,nossopassado,nosso

futuro e nossasmemórias se fundiram à escalada do êxtase daquelemomento. Tentando sufocarnossosgritos,encharcadosdesuor,continuamosatéaconsumação.Depois,Füsunseaninhoubempertodemim,eu—absolutamentesatisfeitocomavida,omundoetudoquenelehavia,radiantede

Page 356: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

beleza e significado— enterrei a cabeça em seu pescoço e, aspirando seu aromaquemedeixavatonto,adormecisemperceber.Muitomais tarde, num sonho, fui visitadopor imagens de felicidade.Aqui, para o desfrute dos

visitantesdomuseu,exponhoimagensdomeudevaneio.Omaremmeussonhoseraazulanil,comoomardaminhainfância.E,comoanossachegadaemSuadiyenocomeçodoverão,nossospasseiosdebotearemo,osdiasfelizesemqueeuandavadeesquiaquático,asnoitesemquesaíaparapescarsó por esporte— memórias que sempre despertavam emmim uma doce impaciência—, o martempestuosodomeusonhopareciadespertarumaidênticainquietaçãosatisfeitadecomeçodeverão.Nessemomentovinuvenzinhasmaciaspassandovagarosamentepelocéu,umadelas lembrandoorosto do meu pai. No oceano, em meio à tempestade, vi um navio que balançava lentamente,desaparecendoacadaonda,bemcomoimagensempretoebrancoquelembravamosquadrinhosdaminhainfânciaeoutrasimagensememóriasescurecidas,desbotadas,masaindaassimassustadoras.Davam a sensação de memórias havia muito perdidas e recuperadas pouco antes. Imagens deIstambul em antigos filmes, ruas cobertas de neve, cartões-postaismonocromáticos que passavamdiantedosmeusolhos.Essasimagensdesonhomeensinaramqueafelicidadedeestarvivonuncapodeserseparadado

prazerdeverestemundo.Entãoumaforterajadadeventomeatingiu,trazendotodasessasimagensàvidaeprovocandoum

calafrioemmeucorpoaindacobertodesuor.Asfolhasdasacáciaspareciamirradiarluzenquantooscilavampara a frente e para trás, farfalhando docemente ao vento.Quando o vento ficavamaisforte, o farfalhar das folhas e dos ramos se transformava num rosnado assustador, que vinhaacompanhadodeumalongatrovoada,tãoaltaqueacordei.“Comovocêestavadormindolindamente”,disseFüsun,emebeijou.“Quantotempoeudormi?”“Nãosei.Acabeideacordarcomatrovoada.”“Ficoucommedo?”,perguntei,envolvendo-acommeusbraçosepuxando-aparaperto.“Não,medonenhum.”“Achuvavaicairaqualquermomento…”Elaapoiouacabeçanabasedomeupescoço,epormuitotempoficamosládeitadosnoescuro,

olhando pela janela. À distância, o céu nublado cintilava intermitentemente com luzes roxas erosadas.Ospassageirosdoscaminhõeseônibusbarulhentosquecortavamaestradade IstambulaEdirna pareciamnem ver aquela tempestade distante, como se só nós dois percebêssemos aquelecantodistantedomundo.Antes de ouvirmos o tráfego que passava, os faróis altos iluminavam de passagem o quarto,

alargando-se aos poucos na parede da direita até clarearem o quarto todo; assim que ouvíamos oroncodomotor,aluzmudavadeformaedesaparecia.Devezemquandonosbeijávamos,quandonãoficávamosapenasacompanhandoojogodasluzes

naparede,fascinadoscomocriançasquedescobremumcaleidoscópio.Debaixodoslençóis,nossaspernasseestendiamladoalado,comomaridoemulher.Começamos a explorar novamente um ao outro com carícias, inicialmente leves, com toda a

Page 357: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

cautela,encontrandoaindamaisbelezaesignificadoemnossoencontro,agoraquejánãoestávamosmaistãobêbados.Beijeiseusseioseseupescoçodearomadocepormuitotempo.Quandodescobrino início daminha juventude a força bruta e implacável do desejo sexual, lembro-me de termeacalmadocomumpensamentootimista:umapessoacasadacomumalindamulherpodiaamá-ladamanhã à noite, sem precisar perder tempo commais nada. Agora, omesmo pensamento infantilpassouporminhamente.Uminfinitoseestendiaànossafrente.Omundo,aindaquemeioenvoltoemtrevas,aproximava-sedoparaíso.Quandoa luzdos faróispoderososdeumônibus invadiuoquarto,olheiparao rostodeFüsun,

para seus lábios irresistíveis, e vi que seus pensamentos a tinham levado para longe. A sensaçãopermaneceucomigoatébemdepoisqueasluzesdesapareceram.BeijeiabarrigadeFüsun.Devezemquandoaestradaficavaemsilêncio,eerapossívelouvirochiadodeumacigarra.Seriamocoaxarde sapos ao longe, a linda música interior do mundo, o sussurro da relva, o murmúrio grave eprofundoquebrotavadaprópria terraea respiração serenadanatureza suavesdemaispara seremouvidos enquanto vivemos?Continuei a beijar sua barriga,minha língua explorando ao acaso suapele macia, enquanto um mosquito me picava as costas e continuava a produzir seu zumbidoirritante.Comoumbiguáquemergulhaalegrenaságuasemergepararespirar,eulevantavaacabeçadevezemquando,paraprocuraràluzcambianteosolhosdeFüsun.Enquantonosamávamos,fartando-nosdosprazeresdaredescobertarecíproca,repetimosascoisas

que fazíamos antes; numa parte da minha mente eu registrava cada momento, para nunca maisapagá-lo,classificandosistematicamentecadaumdeles:1. O alegre reconhecimento de alguns dos gestos de Füsun, identificados primeiro durante os

quarentaequatrodiasquepassamosnosamandonoveanosantes,em1975.Seusgemidos,aternurainocentequeiluminavaseurosto—amaneiracomoelafranziaatestaquandoficavaintrigadaporeu agarrá-la com força pela cintura para trocar de posição com ela; o encaixe perfeito de nossosváriosapêndices,comoseoselementosdenossasrespectivasanatomiasfossempartesdeumúnicoinstrumento que normalmente ficava desmontado; amaneira, quando nos beijávamos, como seuslábiosseabriamcomoumaflor—eramessesosdetalhesdequeeumelembraraecomquesonharapornoveanos,desejandorevivercadaumdeles.2.Osmuitospormenoresque eu tinha esquecido e comquepor issonãopudera sonhar, agora

rememoradoscomsurpresaenquantoviaFüsunexibi- los:amaneiracomoelausavadoisdedoscomoumpardepinçasparatomarmeupulso,asurpresadeumapintaqueelatinhalogoabaixodoombro(muitasoutraspintasestavamondeeuasdeixara);amaneiracomoseusolhosseenevoavamnoaugedoprazerantesdetornarafocalizarpequenascoisasàsuavolta(orelógionamesinhadecabeceiraouosfioselétricosquecircundavamoperímetrodoteto);amaneiracomoelaafrouxavaseuabraçodepoisdemeapertarbastante, fazendo-meacharqueestava seafastando, sóparameagarrarcommaisforçaainda—naquelanoitelembrei-medetodosessespequenosmaneirismosesquecidosqueconferiamagora aonosso amorumaqualidade terrenaque impediaque se transformasseemumafantasiasurrealalimentadapornoveanossonhandoeimaginando.

Page 358: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

3.Vários hábitos, claramente novos, de que eu não tinha lembrança, queme surpreenderam edesconcertaramapontodemedeixarcomciúme.Suasunhascravando-seemmim;suamaneiradeseperderempensamentosnosmomentosmaisintensosdoamor,comoseponderasseseuprazerouseusignificado;ohábitodesubitamenterelaxartodoocorpo,comoseadormecesse,oudeenfiarosdentesemmeubraçoounomeuombro,comoqueparamecausardorverdadeira—essascoisasmefizerampensarqueelanãoeramaisamesmaFüsun.Numdadomomento,contentei-medeatribuiraquilo tudo à novidade da experiência. Durante os quarenta e quatro dias que ficáramos juntos,nuncatínhamospassadoumanoitenamesmacama.Aindaassim,nãofiqueimenosperturbadocomaferocidadedeseucomportamentonoamorquecomsuatendênciaarefugiar-sepassivamenteempensamentosparticulares.4. O simples fato de que agora ela era outra pessoa. A garota de dezoito anos que eu tinha

conhecido e com quem fizera amor ainda vivia dentro dela, mas com o passar dos anos ficaraenterradacadavezmaisfundo,comoamudinhaencerradanacascadaárvore.EuamavaaFüsunagoradeitadaaomeuladomuitomaisdoquejamaisamaraagarotaqueconheceratantosanosantes.Otemponosfavoreceraaamboscommaissabedoriaeprofundidade,fiqueiencantadodeconstatar.Gigantescas gotas de chuva começaram a cair nas vidraças e nos parapeitos da janela. O céu

trovejavaquandocomeçouachuvarada.Enquantoescutávamosachuvafortedeverão,nosbraçosumdooutro,adormeci.Quandodespertei,achuvatinhaparado.Füsunnãoestavaameulado,masdepé,envergandoseu

vestidovermelho.“Vocêvaivoltarparaoseuquarto?”,perguntei.“Nãováembora,porfavor.”“Voupegarumagarrafad’água.Parecequebebemosmuito.Estoucomumasedeterrível.”“Também estou com sede”, disse. “Fique aqui, eu saio. Vi garrafas d’água na geladeira do

restaurante.”Mas,quandosaídacama,ela já tinhaabertoaportadoquartosemfazerbarulhoesaíra.Então

volteiparaacamae,imaginandofelizqueelahaveriadevoltarlogo,adormeci.

79.Viagemparaumoutromundo

Muitomais tarde,quandoacordei,Füsunaindanão tinhavoltado.Achandoque teria retornadoparaoquartodamãe,descidacamaeacendiumcigarrojuntoàjanela.Osolaindanãosaíra,masnolusco-fuscodavaparadistinguirumasugestãodeluzdodiaeafragrânciadeterramolhada.OsletreirosluminososdopostodegasolinaestradaacimaedohotelGrandSemiramisrefletiam-senaspoças d’água à beira do asfalto e nos para-choques cromados do Chevrolet no estacionamentoadjacente.Viqueorestauranteondetínhamosjantadoeficadonoivosnanoiteanteriortinhaumjardinzinho,

comcadeirasealmofadasqueestavamencharcadas.Logoalémhaviaumalâmpadapresaaotronco

Page 359: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

deumafigueira,eàluzquesefiltravaporentresuasfolhasviFüsunsentadanumbanco.Estavadeladoparamim,fumandoenquantoesperavaosolnascer.Vesti-meàspressasedesciimediatamente.“Bomdia,minhalinda”,murmurei.Ela não disse nada, perdida em seus pensamentos e balançando a cabeça como uma pessoa

preocupadacomgravesproblemas.Nacadeiraaoladodobanco,viumcopoderakı.“Quando fui buscar a água, encontrei a garrafa de rakı aberta!” Sua expressão maliciosa me

lembroudequeerafilhadeTarıkBey.“Imaginoquenãovamospassarbebendoamanhãmaislindaqueomundojáviu.Oquevamos

fazer?”,perguntei. “Vai fazercalornaestrada.Podemosdormirodia inteironocarro…Este lugarestáocupado,minhajovem?”“Nãosoumaisumajovem.”Não respondi,mas sentei-me ao lado dela, e, tomando suamão como fazia no cinemaPalace,

instalei-meparaassistircomelaaonascerdosol.Sentados ali em silêncio, ficamos vendo o mundo à nossa volta clarear aos poucos. Ainda se

avistavamrelâmpagosarroxeadosao longe,enuvensalaranjadasdespejandosuachuvaemalgumaparte dos Bálcãs. Um ônibus interurbano passou com estrondo. Ficamos acompanhando as luzesvermelhasemsuatraseiraatédesaparecerem.Um cachorro de orelhas pretas aproximou-se de nós com grande cautela vindo do posto de

gasolina, abanando amistosamente a cauda. Era um cachorro sem nenhuma particularidade, umvira-latacomum.Depoisdemeexaminarcomofaro,eemseguidaFüsun,pousouacabeçanocolodela.“Apaixonou-seporvocê”,disseeu.MasFüsunnãorespondeu.“Ontem, quando estávamos chegando, ele latiu três vezes para nós”, disse eu. “Você reparou?

Vocêstinhamumcachorrodelouçaigualzinhoaeleemcimadatelevisão.”“Quevocêtambémroubou.”“Eunãodiriaquefoi‘roubo’.Suamãe,seupai,vocêstodossabiamdissodesdeoprimeiroano.”“Éverdade.”“Eoqueelesdiziamarespeito?”“Nada.Meupaificavaaborrecido.Minhamãefaziadecontaquenãotinhaimportância.Eeusó

queriaserestreladecinema.”“Eaindapodeser.”“Kemal,oquevocêacabademedizerémentira.Nemmesmovocêacreditanisso”,disseelaem

tommuitosério.“Eissomedeixacommuitaraiva—vercomovocêsabementir.”“Porquevocêdizisso?”“Você sabe perfeitamente bem que não tem amenor intenção deme ajudar a virar estrela de

cinema.Afinaldecontas,nãoprecisamais.”“Oquevocêquerdizer?Seéoquevocêquerdeverdade,éperfeitamentepossível.”“Fazanosqueéoqueeumaisquero,Kemal.Evocêsabedisso.”OcachorroseencostouemFüsun.

Page 360: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Eleéacaradaquelecachorrodelouça.Especialmenteasorelhas,metadepretasemetadeclaras—sãoidênticas.”“Oquevocêfezcomtodosessescachorrosepenteserelógiosecigarrosetodooresto?”“Euusavaparameconsolar”,disse,agoraeumesmoumpoucoressentido.“Acoleçãointeiraestá

guardadanoapartamentodoedifícioMerhamet.Nãopossomeenvergonhardelacomvocê,minhalinda.QuandovoltarmosparaIstambul,euqueriaquevocêvisse.”Elaolhouparamimesorriu.Nãohaviacompaixãoemseusorriso,mas,pelomenosameuver,só

amedidajustadezombariaqueminhahistóriaeminhaobsessãomereciam.“Querdizerquevocêquermelevardevoltaparaaquelagarçonnièreempoeirada”,disseela.“Nãoémaisnecessário”,respondiumpoucoagastado,emrespostaaotomdassuaspalavras.“Exatamente.Ontemànoitevocêmeenganou.Roubouomeumaiortesourosemprecisarcasar-se

emtroca.Apoderou-sedemim.Easpessoascomovocênuncasecasamdepoisqueconseguemoquequerem.Vocêéumhomemdessetipo.”“Temrazão”,disseeu,meioencolerizado,meiobrincando.“Éaúnicacoisaqueeupasseitodos

essesanosesperando.Paraquenoscasarmosagora?”Pelo menos ainda estávamos de mãos dadas. Procurando acabar com aquilo antes que o

desentendimentoficassemaissério,euabeijeiapaixonadamentenoslábios.Füsunsubmeteu-senumprimeiromomento,masdepoisrecuou.“Eudeviamatá-lo”,disseela,pondo-sedepé.“Porquevocêsabeoquantoeuaamo.”Nãoseiaocertoseelameouviu.Minhabeldade,realmenteencolerizadaaessaaltura,afastou-se

numarrouboalcoolizado,seussaltosaltosbatendofuriosamentenochão.Nãovoltouparaohotel.Ocachorropartiuatrásdela,ejuntosseguiramparaaestrada,tomandoo

rumodeEdirna,Füsunàfrenteeocachorrologoatrás.Termineiorakıquetinhasobradonocopodela (como fazia às vezes na casa de Çukurcuma, quando ninguém estava olhando). Por muitotempo,fiqueiolhandoparaelesenquantoseafastavam.AestradadeEdirnaseestendiaemlinharetaàfrentedelesatéohorizonte,e,comovestidodeFüsuncadavezmaisfácildeavistaràmedidaqueocéuclareava,nãopareciahaverperigodequeelasumisse.Mas depois de algum tempo parei de ouvir seus passos.Quando não conseguimais enxergar o

pontovermelhoqueeraFüsun,quandoeladesapareceunoinfinito,comoumaheroínanofinaldeumfilmedaYeşilçam,fiqueiinquieto.Poucosminutosdepoistorneiaveropontovermelho.Aindacaminhavanamesmadireção,minha

beldadeenfurecida.Umagrandeternurabrotouemmimenquantoeupensava:íamospassarorestodavidanosamandocomonanoiteanterioretendodesentendimentoscomoodaquelamanhã.Aindaassim,euqueriareduziraquantidadedediscussões,diminuirospontosdeatritoefazerFüsunfeliz.OtrânsitoestavaaumentandonaestradaEdirna-Istambul.Umabelamulherdevestidovermelho

comaquelas lindaspernastinhagrandepossibilidadedeser incomodada.EntreinoChevrolet56esaípelaestradaàprocuradela.Dali a umquilômetro emeio, localizei o cachorro à sombra de umplátano.Estava sentado, à

esperadeFüsun.Sentiumadorintensadentrodemim,emeucoraçãopulounomeupeito.Reduzia

Page 361: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

marcha.TOMATES ALTAT, proclamava um grande letreiro, em meio a hortas, campos de girassol,

pequenas fazendas.A letra “O”estava salpicadade furosdebala, tendo sidousadacomoalvoporpassantesentediados.Osfurosjátinhamjuntadoferrugem.Umminutomais tarde, tornandoaveropontovermelhonohorizonte,comeceia rircomoum

bobo.Reduziavelocidadeaomeaproximardela,queaindacaminhavacompassosfuriososaoladoda estrada.Não parou quandome viu, ou quando estendi o braço para abrir a janela do lado dopassageiro.“Venha,querida,entreevamosvoltar.Estáficandotarde.”Maselanãorespondeu.“Füsun,acredite,porfavor,hojeprecisamosviajarmuito.”“Não voumais.Vocêspodemcontinuar semmim”, respondeuela, comoumacriança rebelde,

aindasemreduziramarcha.Eudiminuíraavelocidadeparaacompanhá-laeinsistiacomeladobancodomotorista.“Füsun,querida,olhecomoomundoébonito—abraosolhosparatantabeleza”,disseeu.“Para

queenvenenaravidacomraivaediscussões?”“Vocênãoentendenada.”“Oqueeunãoentendo?”“Porsuacausa,eunãotiveachancedeviveraminhavida,Kemal”,disseela.“Euqueriaseratriz.”“Desculpe.”“Oquevocêquerdizercom‘desculpe’?”,perguntouelafuriosa.Àsvezeseunãoconseguiamanterocarroaseulado,enãoouvíamosdireitooqueooutrodizia.“Desculpe”,torneiadizer,dessavezaosgritos,achandoqueelanãomeescutara.“VocêeFeridunmeimpediramdepropósitodeterumachancenocinema.Éporissoquevocê

estásedesculpando?”“Você queria mesmo ser igual a Papatya e aquelas mulheres que enchem a cara todo dia no

Pelür?”“Enchemos a cara tododiadomesmo jeito”, disse ela. “Eeununca ficaria igual a elas, isso eu

garanto.Masvocêsdoiseramtãociumentos, tinhamtantomedodequeeupudesse ficar famosaeabandonarvocês,quemeobrigavamaficaremcasa.”“Você sempre mostrou um pouco de medo de seguir sozinha esse caminho, Füsun, sem um

homempoderosoaoseulado…”“Oquê?”,disseela,agoravisivelmenteenfurecida.“Vamos,querida,entrenocarro.Podemosdiscutiresseassuntooquantovocêquiserhojeànoite,

bebendoalgumacoisa”,disseeu.“Euaamodetodoocoração.Temosumavidalindapelafrente.Porfavor,sóentrenocarro.”“Comumacondição”,disseela,comomesmotominfantilqueusaratantosanosantes,quando

mepediraparalevardevoltaovelocípededainfânciaàsuacasa.“Qual?”,perguntei.“Eudirijo.”

Page 362: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“Ospoliciaisbúlgarossãoaindamaiscorruptosqueosnossos.Ouvidizerquetodahoramontambloqueiosnasestradas,sóparaconseguirpropinas.”“Não,não”,disseela.“Querodirigiragora,devoltaparaohotel.”Pareiocarronamesmahoraeabriaporta.Enquantomudavadelugar,pressioneiFüsuncontraa

frentedocarroeabeijeicomtodaaforça.Envolvendomeupescoçocomosbraços,apertando-mecomtodaaforçaepressionandoseuslindosseioscontramim,elafezminhacabeçarodar.Instalou-senobancodomotorista.Ligandoomotorcomomesmocuidadodenossasprimeiras

aulasnoparqueYıldızesoltandocomhabilidadeofreiodemão,elaentroulentamentenaestrada,apoiandoobraçoesquerdonajanelaaberta,exatamentecomoGraceKellyemLadrãodecasaca.Avançávamosdevagar,procurandoumlugarparadaravolta.Elatentoufazeroretornodeuma

vezsónopontoondeaestradaprincipalcruzavaumaestradinhalocaldeterra,masnãoconseguiu,eocarroparoucomumtranco.“Cuidadocomaembreagem!”,disseeu.“Vocênemreparounobrinco”,disseela.“Quebrinco?”Eladeunovamenteapartidanocarro,quedeuumsaltoàfrente.“Maisdevagar!”,eupedi.“Quebrinco?”“Oqueestánaminhaorelha…”,gemeuela,comoalguémquedespertassedeumaanestesia.Pendendodesuaorelhadireitaestavaobrincoperdido.Seráqueelausavaaquelebrincoenquanto

nosamávamos?Seráqueumacoisaassimpodiatermeescapado?Ocarroganhavavelocidade.“Calma!”,gritei,maselapisoucomtodaaforçanoacelerador.Ao longe, seu amigo cachorro pareceu ter reconhecidoFüsun e voltoupara omeioda estrada,

indodeencontroaocarro.Euesperavaqueelepercebessenossavelocidadeesaíssedocaminho,masnãodesviou.Andandomaisdepressa,cadavezmaisdepressa,Füsunbuzinouparatentarespantá-lo.Demosumaguinadaparaadireitaedepoisparaaesquerda,comocachorroaindalonge,maisà

frente.De repenteocarrocomeçoua sedeslocarem linha reta, comoumveleiroquecontinuaacortarasondassemsedesviarquandooventocessa.Nossorumo,emborareto,saíadaestrada.Foiquandoviquecorríamosnãonadireçãodohotel,masdiretoparaumplátanoao ladodaestrada,quepercebiqueumacidenteerainevitável.Naverdade,percebientão,nofundodaalma,quetínhamoschegadoaofimdaporçãoquenos

cabiadefelicidade,quechegaranossahoradedeixarmosaquelereinomaravilhoso,disparandonorumodaqueleplátano.Füsunfixara-senele,comosefosseumalvo.Eeusentiaquemeufuturonãopodia existir separado do dela. Aonde quer que estivéssemos indo, eu iria com ela, e nuncamaissentiríamosafelicidadequesepodeencontrarnaterra.Eraterrível,eraumapena,masmepareceuinevitável.Mesmoassim,gritei:“Cuidado!”—porpuroreflexo,comoseFüsunnãoestivesseenxergando.Na

verdade,foiogritoinstintivodealguémquetentaescapardeumpesadeloeretornaràbelezadavidadetodososdias.Sequeremsaber,Füsunestavarealmenteumpoucoembriagada,mas,dirigindoa

Page 363: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

cento e cinco quilômetros por hora, na direção de um plátano de cento e cinco anos de idade,pareciasaberexatamenteoquefazia.Entãoentendiquetínhamoschegadoaofimdasnossasvidas.OChevroletdomeupai,comseusmaisdevinteecincoanosdeexistência,chocou-secomuma

velocidadeeumaforçaimpressionantesnoplátanodoladoesquerdodapista.Alémdaárvore,emmeioaumaplantaçãodegirassóis,haviaumacasa—umapequenafábrica,

naverdade,queproduziaoóleodegirassolBatanay,exatamenteamarcaqueafamíliaKeskinusavanacozinha,comoambostivemostempodenotarlogoantesdoacidente.Mesesmaistardeencontreiosdestroçosdocarroerecuperei,enquantotocavaemváriospontosdo

Chevroletdestruído,amemóriaquemevoltaranumsonho:noinstanteanterioràbatida,Füsuneeunosolhamosnosolhos.Elasabiaqueiamorrer,eduranteessesdoisoutrêssegundosmedissecomosolhossuplicantes

quenaverdadenãoqueriamorrer,queiriaaferrar-seàvidaenquantopudesse,esperandoqueeuasalvasse.Massópudesorrirparaaminhalindanoiva,aindatãocheiadevitalidade,oamordaminhavidaatéofim,e,achandoqueeutambémestavadestinadoamorrer,fiqueisatisfeitodemeencontraracaminhodeumoutromundo.Todaamemóriadoqueaconteceuemseguidaescapou-meduranteosmesesquepasseidecama

numhospitalenosanosseguintes;demaneiraqueoqueseseguesebaseiaemrelatosalheiosenoquefuicapazderememorarquandovolteiaolocaldoacidentemuitosmesesdepois.SeisousetesegundosdepoisdacolisãoFüsunmorreudosferimentossofridosquandoocarrose

amassoucomoumalataeacolunadedireçãocravou-seemseupeito.Suacabeçaatingiucomtodaaforçaopara-brisa. (Ainda sepassariamquinze anos antesqueos cintosde segurança se tornassemobrigatórios nos carros turcos.) Segundo o relatório do acidente que exponho aqui, seu crânio foiesmagado, dilacerando as meninges do cérebro cujos prodígios sempreme surpreenderam, e elasofreuumaprofundalaceraçãonopescoço,bemcomoafraturadeváriascostelaseocortedatestapor inúmeros fragmentos de vidro.Todo o resto de seu lindo ser— seus olhos tristes; seus lábiosmiraculosos;suagrandelínguarosada;suasfacesdeveludo;seusombrostorneados;apelesedosadeseu pescoço, de seu peito, de sua garganta e de sua barriga; suas pernas compridas; seus pésdelicados, que sempre me faziam sorrir; seus braços esguios cor de mel, com suas pintas e suapenugem castanha; as curvas de suas nádegas; e sua alma, que sempre me atraíra tanto —permaneceuintacto.

80.Depoisdoacidente

Agora queria fazer um breve relato sobre os vinte e poucos anos que se seguiram, encerrandominhahistóriasemmaisdelongas.Mais tardemedisseramqueeutersobrevividoaoacidentefoioresultado fortuitode ter aberto a janelado ladodopassageiro,demaneira apoder conversar comFüsun enquanto dirigia ao lado dela, e de ter posto instintivamente meu braço para foraimediatamente antes da colisão. O impacto provocou pequenas hemorragias nomeu cérebro e oedemaresultantemedeixouemcoma.NesseestadofuitransportadodeambulânciaparaoHospital

Page 364: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

ÇapadaUniversidadedeIstambul,ondemepuseramnumrespirador.Passei um mês em tratamento intensivo, incapaz de falar. Nenhuma palavra me passava pela

cabeça;meumundotinhacongelado.NuncaesquecereiodiaemqueBerrineminhamãevieramme visitar, com lágrimas nos olhos ao verem o tubo na minha boca. Até Osman demonstroucompaixão incomum,emborade temposem tempos surgisseem suaexpressãoalgoquedizia “eubemqueavisei”.Se Zaim,Tayfun,Mehmet e outros amigosme encaravam com expressões semelhantes— em

partecondenação,empartepiedade—foiporqueorelatóriodapolíciaatribuíaoacidenteàdireçãosob influência do álcool (a participação do cachorro não foi registrada) e porque a imprensaapimentou a história com uma boa dose de escândalo. Os empregados da Satsatmanifestaram omesmorespeitodesempreeumacompaixãocomovente.Depoisdeseissemanascomeceiafisioterapia.Aprenderaandardenovopareciaumrecomeçode

vida, eenquantoembarcavaemminhanovaexistênciapensavaconstantementeemFüsun.Pensarnela entãonão tinhamais qualquer conexão como futuro ou comodesejoque eu já sentira; aospoucos,Füsunsetransformavanumsonhodopassado,emsimplesmatériadememória.Eissoeraintoleravelmentedoloroso,agoraqueosofrimentoporelanãoassumiamaisaformadedesejo,masde piedade por mim mesmo. Eu me encontrava nesse ponto— pairando entre a realidade e alembrança,entreadordaperdaeseusignificado—quandomeocorreupelaprimeiravezaideiadeummuseu.ProcureiconsoloemProusteMontaigne.Sentava-meàfrentedeminhamãenahoradojantar,a

jarraamarelaentrenósdois,eenquantocomíamosprestavapoucaatençãoaoquepassavanaTV.MinhamãeachavaqueamortedeFüsuneraalgosemelhanteàdomeupai,eque,comonósdoishavíamosperdidoapessoaamada,tínhamosumapermissãoincondicionaldesuspirarenosqueixaroquanto quiséssemos, compartilhando as nossas culpas. Copos vaporosos de rakı figuravam comdestaquenasduasmortes,assimcomoomundosecretoquecadaumdosfalecidosguardaradentrodesi,atéapressãoficartãofortequeaúnicasaídaeracontarosegredo.Minhamãenãogostavadessasegundasemelhança,maseuqueriaexportudoparaexame.Duranteosprimeirosmesesdepoisdaminhaaltadohospital,semprequeeuiaaoapartamentodo

edifícioMerhametparasentar-menacama,fumarumcigarroepassaremrevistaosobjetosquemecercavam,sentiadespertaremmimanoçãodequeseriaumalívioparaaminhadorseeupudessecontaraminhahistória.Masparatantoeuprecisariatrazerapúblicotodaaminhacoleção.Euqueria fazer as pazes comZaime tornar a tê- lo comoconfidente.Mas, em janeirode 1985,

Hilmi,oBastardo,contou-mequeeleeSibelestavamfelizesjuntoseesperavamumfilho.Hilmi,oBastardo,tambémmecontouqueNurcihaneSibeltinhamsedesentendidoemtornodealgotrivial.Não havia como restabelecer a ligação entre elas. E eu não podia ir aos novos clubes noturnos erestaurantes frequentados pela antiga clientela doPelür e doGaraj;minhahistória era importanteparamim,enãoqueriavê-larefletidanosolhosdosoutrosouservistocomoumdestroçohumano.Poressemotivo,duranteumaprimeiraeúltimaidaaoşamdan, ri,brinqueieprovoqueiTayyar,ovelho garçom,que conhecia doPelür, fazendoopossível para que todos percebessemminhaboadisposição e forçando assimos fofoqueiros a concluir que “no fimdas contas” eu conseguira “me

Page 365: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

salvar”dasmãos“daquelagarota”.UmdiadepareicomMehmetnumaesquinadeNişantaşı,emarcamosumencontroparajantarà

beiradoBósforo,“sóparahomens”.OsrestaurantesdoBósforotinhamdeixadodeserumlugarqueas pessoas reservavam para ocasiões especiais; eram frequentados todos os dias da semana.Percebendominhacuriosidade,Mehmetcomeçoupormecontaroquevinhaacontecendonavidadetodososmeusvelhosamigos.DissequeeleeNurcihantinhamviajadoparaUludağcomTayfuneamulher,Figen;queFaruk(omesmoFarukqueeueFüsuntínhamosavistadonapraiadeSariyer)tinhadefatoperdidomuitodinheirocomadisparadadainflação,devidoaempréstimoscontraídosem dólar, mas evitara a ruína total contraindo novos empréstimos bancários; e que, embora nãohouvesseressentimentosentreMehmeteZaimdepoisdodesentendimentoentreSibeleNurcihan,elesnãoseviammais.Antesqueeupudesseperguntaroquetinhaacontecido,MehmetexplicouqueSibel alfinetava Nurcihan porque ela adotara uma vida “turca” demais, frequentando gazinos,assistindoacantorastradicionaiscomoMüzeyyenSenareZekiMürenejejuandoduranteoRamadã(“Nurcihan está mesmo jejuando?”, perguntei sorrindo). Mas reconheci na mesma hora que nãopodia ser este o real motivo para um rompimento entre aquelas duas velhas amigas. Mehmet,imaginandoqueeudesejassevoltarameuvelhomundo,queriafacilitarminhareentradaaseulado.Masentenderamalminhaintenção.SeismesesdepoisdamortedeFüsun,eusabiacategoricamentequejamaispoderiaregressaràquelemundo.Depoisdebeberalgumasdosesderakı,eleadmitiuque,emboraamasseprofundamenteNurcihan

etivesseomaisextremorespeitoporela(sentimentoqueadquiriraemtemposrecentesumaelevadaimportância),nãoaachavamaistãoatraentequantoantesdedaràluz.Depoisdeumnamorolongoe romântico,docasamentoedo iníciodeuma família,eles logo tinhamvoltadoa serquemeramantes, e Mehmet retomou seus antigos hábitos. Deixando às vezes as crianças com a mãe dele,MehmeteNurcihansaíamjuntos,porémomaisfrequenteeraelesairsozinhoparaosnovosbareseclubesnoturnos,otipodelugarqueatraíapublicitáriosegenterica,aosquais,emsuadeterminaçãodemedeixarmais animadoe recuperarnossa antiga camaradagem, ele seoferecia entãoparamelevar,assimcomoàsáreasquesetornavammaisinteressantesnacidade.Numaoutra noite,Nurcihan saiu conosco.Fomos a umaparte nova da cidade, logo depois de

Etiler,quesurgiranoespaçodeumano,paraconsumirumestranhomenudepratosapresentadoscomo cozinha americana. Nurcihan não tocou no nome de Sibel nem perguntou pelos meussentimentosemseguidaàmortedeFüsun.Umacoisaqueeladissenomeiodojantareapropósitodenada,entretanto,meatingiuprofundamente;queelasabia“bemnofundo”queumdiaeuaindaseriamuitofeliz.Acontecequeeununcasentiracommaiscertezaqueperderaparasempreminhaoportunidadedeserfeliznestavida.Talvezsejaporissoque,emboraMehmetaindalembrassemuitooMehmetdesempre,comNurcihaneutivesseaimpressãodeestarconhecendoumapessoanova,comosetodasasnossasmemóriasemcomumtivessemdeixadodeexistir.Tambémmeocorreuqueaatmosferadaquelerestauranteedaquelas ruasnovasdacidade,quenãomeagradavamnemumpouco,tambémpodetercontribuídoparaessasensação.Haviamuitasdessasruasnovas,muitosdessesestranhosnovosbairrosdeconcretoquesurgiama

cada dia que passava e só serviam para reforçarminha impressão de que depois que eu saíra do

Page 366: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

hospital,comamortedeFüsun,Istambulse transformaranumacidademuitodiferente.Éprecisodizerqueessasensaçãofoiminhapreparaçãomaisimportanteparaosmuitosanosdecaminhadasaesmoqueeutinhapelafrente.Era só quando visitava tiaNesibe que eume sentia na velha Istambul, a cidade que eu amava

tanto.Umanoite,depoisdasprimeirasvisitaslacrimosas,ela,dispensandoasformalidades,disse-mequeeupodiasubirparaolharoquartodeFüsunsemprequeeuquisesse,elevarcomigotudoquemedessevontade.Antesdesubir,cumprioquesempretinhasidonossoritual:fuiatéagaioladeLimonverseestava

comcomidaeágua fresca. Isso,comoqualquer lembrançadenossos jantares,denossasconversasenquantovíamostelevisão,detudomaisquetínhamoscompartilhadosentadosàquelamesa,bastouparatrazerlágrimasaosolhosdetiaNesibe.Lágrimas…Silêncios…Comoas lembrançasdeFüsuneramdolorosasdemaisparanósdois,eu

cumpriaomais rápidopossível aspreliminaresantesde subirparaoquartodela.UmavezacadaduassemanaseudesciaaladeiraatéÇukurcuma,vindodeBeyoğlu,eenquantotiaNesibejantavavíamostelevisãoemsilêncio;apósdaralgumaatençãoaLimon,queaospoucosficavamaisvelhoesilencioso,euiaolharaspinturasdeavesdeFüsun,umaauma,depoisdoque,anunciandominhanecessidade de lavar as mãos, eu subia as escadas, com o coração batendo cada vez mais forteenquantoentravanoquartodeFüsuneabriasuasgavetasearmáriosparaestarcomsuascoisas.Todos os presentes que eu lhe dera ao longo dos anos— os pentes e escovas e espelhos e os

brochesdeborboletaeosbrincos—elaarrumaranasgavetasdaescrivaninha.Haviacoisasqueeumeesqueceradeterdado—meiasparaservirdeprêmiodetômbola,osbotõesdemadeiraqueeuachavaestarcomprandoparaamãedela,prendedoresdecabelo,bemcomoaminiaturadeMustangqueTurgaylhederaeascartasdeamorqueeulheenviaraporintermédiodeCeyda.Encontraressesartefatospesava-mea talpontoqueeununca ficavamaisdemeiahoraemmeioàquelasgavetasearmários ainda impregnadosdo seucheiro.Às vezes eume sentava àbeirada camae fumavaumcigarro,eàsvezes,pararefrearaslágrimas,eumeaproximavadajanelaouiaatéumadassacadasondeelasituavaasavesdosseusquadros,antesdepegarumameiaouumpenteelevá-loscomigo.Aessaaltura,jáperceberaqueprecisavaencontrarumlugarondepudessereunirtodososobjetos

quemeconectavamaFüsun,desdeasprimeirascoisascoletadasporimpulsoatéosartigosqueagoraretiravadeliberadamentedeseuquarto—talveztudoquesuacasacontinha—,masnãotinhaideiade onde poderia ser esse lugar. Foi só depois de ter começado as minhas viagens, visitando osmenoresmuseusdomundoumaum,queconseguifinalmenteencontrararespostaeentendertodooseusignificado.Numanoitedemuitaneve,duranteoinvernode1986,quandotínhamosacabadodejantareeu

escolhiaalgumacoisaentrebrochesdeborboleta,brincoseadornosquetrouxeradepresenteparaFüsundurantetodosaquelesanos,semconseguirchegaraumaconclusão,encontreiporacasonofundodeumagavetaumacaixa,edentrodelaumpardebrincosemformadeborboleta,cadaumtrazendoainicialF,queelausavanomomentodoacidente,emboraafirmassehaviaanosquetinhaperdidoumdeles.Pegueiosbrincosedesciasescadas.“TiaNesibe,achoqueessesbrincosforamguardadosnacaixadejoiasdeFüsunfazmuitopouco

Page 367: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tempo”,disseeu.“Kemal,meurapaz,tudoqueFüsunestavausandonaqueledia—ovestidovermelho,ossapatos,

tudo— eu escondi de você, porque não queria aumentar seu sofrimento. Depois pensei que eramelhorpôrtudonolugarcerto,evocêpercebeuimediatamente.”“Elaestavausandoosdoisbrincos?”“Antesdeirparaoseuquartonaquelanoite,aminhaqueridafilhaaindaplanejavavirdormirno

nossoquarto.Eusóestavafingindoquedormia,ederepenteelatirouessesbrincosdabolsaeospôsnas orelhas.Quando saiu do quarto, eu não disse nada, queria que vocês dois finalmente fossemfelizes.”EununcaconteiatiaNesibequeFüsunmedisseraqueelatinhatrancadoaporta.Como eu posso ter deixado de perceber os brincos enquanto nos amávamos? E então outra

perguntameocorreu.“TiaNesibe,anosatráseu lhedisseque tinhadeixadoumdessesbrincosao ladodoespelhodo

banheiro,naprimeiravezquevimaestacasa.Eatéchegueialheperguntar:‘Vocênãoviu?’.”“Não sei,meu filho.Não fiquepensandonessascoisaseme fazendochorar.Eu lembroqueela

querialhefazerumasurpresausandoumpardebrincosemParis—elamedissealgumacoisaassim,maseununcasoubedequaisbrincoselaestavafalando.Ah,elaqueriatantoconhecerParis,aminhaFüsun.”TiaNesibecomeçouachorar,peloque,maisadiante,pediu-medesculpas.NodiaseguintereserveiumquartonoHôtelduNord.Ànoitedisseaminhamãequeestavasaindo

deviagemparaParis,queviajarmefariabem.“Ah, fico muito satisfeita”, disse minha mãe. “E você também podia fazer alguma coisa pela

empresa,pelaSatsat.Seuirmãonãodeviaficarcomtudo.”

81.OMuseudaInocência

Não contei à minha mãe que aquela viagem a Paris não era a negócios. Porque, se ela meperguntasse qual era omotivo, eu não teria como lhe dar uma boa resposta, tendo ocultado suafinalidadeatédemimmesmo.Quandosaíparaoaeroporto,penseiqueaquelaviagemeradealgumaformaareparaçãoqueeuvinhaprocurandotãoobsessivamentepelosmeuspecados,entreeles,terdeixadodereconhecerosbrincosqueFüsunusava.No entanto, assim que entrei no avião, percebi que embarcara nessa viagem para esquecer e

sonhar.Cadaesquinade Istambul fervilhavade lembrançasdela.Assimquealçamos voo,percebique,foradeIstambul,eupodiapensaremFüsunenanossahistóriacommaiorprofundidade.EmIstambuleusempreaviaatravésdoprismadaminhaobsessão;masnoaviãoeuconseguiavertantoFüsunquantoaminhaobsessãodefora.Sentiumconsoloequivalente,amesmacompreensãoprofunda,àmedidaqueandavaaesmoem

tornodosmuseus.NãoestoufalandodoLouvrenemdoBeaubourg,nemdosoutrosmuseuslotadose importantes damesma estirpe; estou falando dosmuitosmuseus vazios que encontrei emParis,

Page 368: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

coleçõesqueninguémjamaisvisita.HaviaoMuséeÉdithPiaf, fundadoporumgrandeadmirador,ondecomhoramarcadapudeverescovas,penteseursosdepelúcia;oMuséede laPréfecturedePolice,ondepasseiumdiainteiro;eoMuséeJacquemart-André,ondeobjetosvariadoseramexpostosjunto a quadros demaneiramuito original— vi cadeiras vazias, lustres e impressionantes espaçosvazios. Sempre que vagava sozinho por museus como esses, sentia-me reanimado. Encontravaalguma sala nos fundos, longe do olhar dos guardas que acompanhavam atentamente cada passomeu;e,enquantoosomdotráfego,dasconstruçõesedotumultourbanoseinfiltravaali,eracomose tivesse entrado num reino à parte que coexistia com as ruasmovimentadas da cidademas nãopertenciaaelas;namisteriosaatemporalidadedesseoutrouniverso,euencontravaalgumconforto.Àsvezes,assimreconfortado,imaginavaser-mepossívelenquadrarminhacoleçãonumanarrativa,

esonhavafelizcomummuseuondepudesseexporminhavida—avidaqueprimeirominhamãe,depoisOsman, e ao final todomundo achou que eu jogara fora—, onde pudesse contar minhahistóriaatravésdascoisasqueFüsundeixaraetransmitirumaliçãoatodos.Ao visitar oMuséeNissim deCamondo, cujo fundador eu sabia ter vindo de uma das famílias

judiasmaisimportantesdeIstambul,atrevi-meapensarquenoconjuntodetravessas,garfosefacasdafamíliaKeskin,eemminhacoleçãodeseteanosdesaleiros,eutambémpodiateralgodignodeexibir com orgulho, e a ideia me deu uma sensação de liberdade. OMusée de la Poste me fezperceber que eu podia expor as cartas que escrevera a ela e oMicromusée duService desObjetsTrouvés legitimou a inclusão de um amplo leque de objetos, contanto que me lembrassem deFüsun,comoadentaduradeTarıkBey,frascosderemédiovazioserecibos.Leveiumahoradetáxipara chegar aoMuséeMaurice Ravel, situado onde antes ficava a casa do famoso compositor, equando vi sua escova de dente, suas xícaras de café, seus bibelôs de porcelana, várias bonecas,brinquedoseumagaioladeferroquemerecordouimediatamenteLimon,contendoumrouxinoldemetalquecantava,quasechorei.PassearporessesmuseusdePariseraserlibertadodavergonhadacoleção que eu acumulara no apartamento do edifício Merhamet. Deixando de ser um sujeitoesquisito, envergonhado pelas coisas que empilhava, eu aos poucos adquiria o orgulho de umcolecionador.No entanto, não invoquei esses conceitos àquela altura, avaliando em vez disso minha

transformaçãoespiritualpelasimplesconsciênciadequemesentiafeliznomomentoemqueentravanumdesseslugares,ecomeceiasonharcomanarrativadaminhahistóriaatravésdeobjetos.Certanoite, enquantobebia sozinhonobar doHôtel duNord, olhandopara os desconhecidos àminhavolta,mesurpreendifazendo-measperguntasqueocorrematodoturcoqueviajaparaoestrangeiro(setiverinstruçãoealgumdinheiro):oqueesseseuropeuspensamdemim?Oquepensamdetodosnós?Finalmente,comeceia refletir sobreamaneiracomopoderiadescreveroqueFüsun significava

paramimeparaalguémquenãosoubessenadasobreIstambul,NişantaşıouÇukurcuma.Comeceia me ver como alguém que viajara para terras distantes e passara lá vários anos: digamos, umantropólogoquetivesseseapaixonadoporumanativaenquantoviviacomumpovoindígenadaNovaZelândiaparaestudarecatalogarseuscostumeserituais,comoelestrabalhavam,descansavam,sedivertiam(econversavamentresienquantoviamtelevisão,devoacrescentarsemperdadetempo).

Page 369: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Minhasobservaçõeseoamorqueeutinhavividohaviamseentrelaçadoparasempre.Agora,oúnicomodoqueprometiadarsentidoaessesanoseraexpor tudoqueeureunira—as

panelas e caçarolas, as bugigangas, as roupas e os quadros — da mesma forma como esseantropólogopoderiatê- losorganizado.Durantemeus últimos dias emParis, com as aves de Füsun namente e com algum tempo de

sobra, fuiaoMuséeGustaveMoreau,porqueProust tinhaessepintoremaltaconta.Nãoconseguigostardosquadrosclássicos,históricosemaneiristasdeMoreau,masadoreiomuseu.Nosúltimosanosda sua vida,opintordecidiu reformaracasada família,ondepassara amaiorparteda vida,convertendo-anumlugarondeseusmilharesdequadrospudessemserexibidosdepoisdesuamorte,eessacasaa seu tempo foi transformadanummuseu,abrangendoainda seu imensoateliêdedoisandares, bem ao lado dela.Depois de convertida, sua casa tornou-se uma casa dememórias, um“museu sentimental” em que cada objeto refulgia de tanto significado. Enquanto eu percorriaaposentos vazios, passando por pisos de parquê que rangiam e guardas que cochilavam, senti-metomadoporumaintensaemoçãoquequasepossochamardereligiosa.(Visiteiessemuseuseteoutrasvezesnosvinteanosseguintes,eacadavezsentiamesmapaixãoenquantopercorrialentamenteassuassalas.)Aovoltarpara Istambul,procureidiretamente tiaNesibe.Depoisde lhe falardeParis ede seus

museus,edejantarcomelaàmesa,abordeisemdemoraaquestãoqueocupavaoprimeirolugaremmeuespírito.“Vocêsabequevenhopegandocoisasdestacasa,tiaNesibe”,disseeu,comanaturalidadedeum

paciente que por fim consegue sorrir de uma doença de que hámuito foi curado. “Pois agora euqueriacompraracasainteira—todooprédio.”“Comoassim?”“Queriaquevocêmevendesseacasaetudoqueelacontém.”“Masoquevaiserdemim?”Conversamos a respeito de um modo que só era sério pela metade. Falei em tom quase

cerimonioso:“GostariadeencontraralgummododehomenagearFüsunnestacasa”.TambémsugeriatiaNesibequeelanuncasesentiriafeliznaquelacasa,acendendoafornalhasozinha,embora,seelaassimquisesse,pudesseficar.TiaNesibechorouporalgumtempodiantedaideiadequepodiapassar sua vida sozinha.Mas então eu lhe contei que tinha encontradoumexcelente apartamentoparaelaemNişantaşı,naruaKuyuluBostan,ondeelatinhamoradoantes.“Ficaemqualedifício?”,perguntou.Ummês depois, compramos um grande apartamento para tiaNesibe nomelhor trecho da rua

KuyuluBostan,bempertodeseuantigoapartamento(ebemdooutroladodaruadatabacaria,dalojade jornaiserevistaseda lojacujoproprietárioeraoTioIndecente,omolestadordecrianças).ElamedooutodooprédiodeÇukurcuma,incluindooapartamentodotérreoetodososbensmóveisquecontinha.AconselhodemeuamigoadvogadoquecuidaradodivórciodeFüsun, fizemosuminventário de todos os bens contidos no prédio e o documento foi devidamente registrado emcartório.Tia Nesibe não sentia qualquer urgência de se mudar para sua casa nova em Nişantaşı. Com

Page 370: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

minhaajuda,mandouinstalarnovoslustresecomprouosmóveisqueumajovemteriaparamontarseu enxoval, e cada vez que nos encontrávamos ela me contava com um sorriso que não havianenhumaesperançadequeumdiaelasemudassedacasadeÇukurcuma.“Kemal,meu filho, não consigo ir embora desta casa eme separar dasmemórias nela.O que

vamosfazer?”,diziaela.“Vamos transformar a casa num lugar onde podemos expor as nossas memórias, tia Nesibe”,

respondiaeu.Àmedidaqueminhasviagensforamficandomaislongas,euaviacommenosfrequência.Como

euaindanãosabiaaocertooquefazercomacasa,seuconteúdoetodasascoisasdeFüsunqueeramtão preciosas para mim, eu mal tinha coragem de olhar para elas, por medo de que meu olharpudesseestragá-lasdealgummodo.MinhavisitaaParis serviudemodeloparaminhasviagens subsequentes.Chegandoaumanova

cidade, eu me instalava num hotel antigo e confortável localizado no centro, que reservara deIstambul, e, armado com o conhecimento adquirido nos livros e nos guias que lera de antemão,começavaminhasrondaspelosmuseusmaisnotáveisdacidade,semnuncameapressar,semdeixarde ir a nenhum deles, como um estudante cumprindo meticulosamente uma tarefa. E entãopercorria os mercados de pulgas, as lojas que vendiam bricabraques e bugigangas, algunsantiquários; se encontrasse um saleiro, um cinzeiro ou um abridor de garrafa idêntico a um quetivesse conhecido na casa dos Keskin, ou se alguma outra coisa me despertava o interesse, eucomprava.Ondequerqueeumeencontrasse—RiodeJaneiro,Hamburgo,Baku,KyotoouLisboa—,emtornodahoradojantareufaziaumalongacaminhadapelasruassecundáriaseosbairrosmaisdistantes;olhandopelasjanelas,observavaassalasemqueasfamíliasjantavamemfrenteàtelevisão,mães preparando a comida em cozinhas que também serviam de sala de jantar, crianças e pais,jovens mulheres com seus maridos decepcionantes, e até primos distantes ricos secretamenteapaixonadospelajovemdacasa.Demanhã, depois de umdemorado desjejumnohotel, eu passava o tempo caminhando pelas

avenidasepeloscafésatéaaberturadospequenosmuseus;escreviacartões-postaisparaminhamãeetiaNesibe, folheava os jornais locais, tentandodescobrir o que teria acontecido em Istambul enomundo,eàsonzehoraspegavameucadernoeencetavaoprogramadodia,cheiodeesperança.Num dia frio e chuvoso, enquanto caminhava pelas galerias doMuseu daCidade deHelsinki,

depareiexatamentecomotipodefrascosderemédioquetinhaencontradonasgavetasdeTarıkBey.PercorrendoassalasmofadasdeummuseunacidadezinhadeCazelles,pertodeLyon,naFrança(umaantigafábricadechapéusconvertidaemmuseu,emqueeueraoúnicovisitante),vichapéusexatamente iguais aos que minha mãe e meu pai costumavam usar. Enquanto contemplava osbaralhos,osanéis,oscolares,osjogosdepeçasdexadrezeosquadrosaóleodoMuseudoEstadodeWürttemberg,localizadonumadastorresdoantigocastelodeStuttgart,fuiinspiradopelaconvicçãode que os pertences da família Keskin (comomeu amor por Füsun)mereciam ser expostos comesplendorcomparável.Omenordetalhedeviaser investigadocomamaiorminúcia:passeiumdiainteironoMuséeInternationaldelaParfumerie,noSuldaFrança,acertadistânciadoMediterrâneo,emGrasse,acapitalmundialdoperfume,esforçando-meparaidentificarafragrânciadeFüsun.Na

Page 371: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

AltePinakothekdeMunique(cujasescadasserviramdemodeloparaasdomeumuseu),avisãodaobra-prima de RembrandtO sacrifício de Abraão lembrou-me de que eu tinha contado aquelahistóriaaFüsunmuitosanosantes,edesuamoral:queapessoadevedaroquetemdemaispreciososemesperarnadaemtroca.FiteilongamenteoisqueirodeGeorgeSand,suasjoias,seusbrincoseoscachosdeseuscabelos,grampeadosaumpedaçodepapel,atéterumcalafrioali,noMuséedelaVieRomantiquedeParis.NoGöteborgsHistoriskaMuseum, que conta ahistória daquela cidade,fiqueipacientementesentadodiantedosazulejosepratosdeporcelanaimportadospelaCompanhiadas Índias Orientais. Em março de 1987, a sugestão de um antigo colega de turma que agoratrabalhavanaembaixadadaTurquiaemOslomeconduziuaoMuseudaCidadedeBrevik;quandocheguei lá e o encontrei fechado, retornei aOsloparapassar anoite e volteinodia seguinteparavisitaraexposição,quecompreendeumaagênciapostaldetrezentosanos,oestúdiodeumfotógrafoeumaantigafarmácia.FoiemTrieste,ondeoCivicoMuseodelMareestáinstaladoemumaantigaprisão, que percebi pela primeira vez o que muitos outros museus me evocavam: estandoimpregnadasde lembrançasdeFüsun,asbalsasdoBósforo(porexemplo,aKalender)precisariamaparecerrepresentadasporalgummodeloemminiatura,aoladodeoutrostotensdaminhaobsessão.Em Honduras, país cujo visto precisei esperar muito para obter, o Museo de Mariposas y OtrosInsectos,deLaCeiba,quepercorrimisturadoaoutros turistasdebermudas, levou-mea imaginarquepoderiaexportodososprendedoresdecabeloqueeucompraraparaFüsunaolongodosanoscomo se fossem borboletas de verdade; e que, por extensão, podia organizar e expor todos osmosquitos, borrachudos, varejeiras e outros insetos da casa dos Keskin. Na cidade chinesa deHangzhou, noMuseu daMedicinaChinesa, senti que estava cara a cara com uma das caixas deremédiosdopróprioTarıkBey.NoteicomorgulhonoMuséeduTabac,recém-abertoemParis,quesuacoleçãonãoeratãovastaquantoaqueeuacumularaaolongodeoitoanos.Numdiaclarodeprimavera em Aix-en-Provence, lembro-me de ter contemplado com felicidade e admiraçãoilimitadasasprateleirasdepotes,panelaseoutrosobjetosdassalasensolaradasdoMuséedel’Atelierde Paul Cézanne. Na muito antiga e perfeitamente conservada Casa Rockox, em Antuérpia, tiveocasiãode lembrarquenosmuseusmenoresopassadoépreservadonosobjetoscomoasalmas sepreservamemseuscorpos terrenos,enessaconstataçãoencontreiumabelezaconsoladoraquememanteveligadoàvida.MasaindaassimeumeperguntavasejamaisteriaaprendidoaapreciarminhaprópriacoleçãodoapartamentodoedifícioMerhamet,quantomaisalimentarqualqueresperançadeexpô-lacomorgulhoaoutraspessoas,seprimeironãotivesseidoaVienaconheceroSigmundFreudMuseum, contendo as esculturas e osmóveis que pertenceram ao famoso psicanalista. Seria umavisitaàvelhabarbeariadoMuseudeLondresemcadaumadasminhasidasàcidadeaolongodosmeusprimeirosanosdeviagemumasimplesexpressãodesaudadedemeusbarbeirosdeIstambul,BasrieCevat,oTagarela,oualgomaisqueisso?NoFlorenceNightingaleMuseum,instaladonumhospitallondrino,euesperavaencontrarumquadrooualgumobjetoqueafamosaenfermeirativessetrazidodeIstambul,ondedirigiuumhospitalduranteaGuerradaCrimeia,masa lembrançaqueencontrei não era de Istambul— era umprendedor de cabelo idêntico aumdos prendedores deFüsun.NoMuséeduTemps,emBesançon,naFrança,umantigopalácio,enquantocaminhavaemmeioaosrelógios,absorvendoosilêncioprofundo,pensavasobreosmuseuseotempo.NaHolanda,

Page 372: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

fitando osminerais, os fósseis, asmedalhas, asmoedas e outros utensílios nos antigos armários deexposição comportas de vidro, cercadopelo silêncio doTeylersMuseumemHaarlem, senti quepoderia dizer o que dava sentido à vida eme proporcionava omaior consolo,mas, como ocorrequandooamornosfazenrubescerpelaprimeiravez,nãosoubeexprimirdeiníciooquemeligavaàqueleslugares.EmMadras,noMuseudoForteSãoJorge,instaladonaprimeirafortalezaconstruídapelosinglesesnaÍndia,faziacaloreestavamuitoúmido;e,quandomeposteidebaixodeumgrandeabano vertical, cercado por cartas, quadros a óleo,moedas e objetos do dia a dia, senti amesmaemoção.FoienquantocaminhavapeloMuseodelCastelvecchio,emVerona,subindosuasescadasmaravilhadocomamaneiracomooarquitetoCarloScarpatinhacuidadoparaquealuzenvolvesseasestátuascomoseda,queconseguientenderpelaprimeiravezcomomeucontentamentomaispurovinhanãosódessesmuseusenquantocoleções,masdaharmonianamaneiracomoeramdispostosseus quadros e objetos.Mas foi só quando visitei oMuseum der Dinge, em Berlim, acomodadoprimeironoedifícioMartinGropiusemaistardedesabrigado,queviessaverdadedeoutramaneira:pode-secolecionar tudoequalquercoisa,cominteligênciaecritério,apartirdeumanecessidadepositivadereunirtodososobjetosquenosligamàspessoasquemaisamamos,cadaaspectodesuaexistência,emesmonafaltadeumacasa,deummuseuadequado,apoesiadenossacoleçãoseráabrigosuficienteparaseusobjetos.QuandopelaprimeiravezpusosolhosemOsacrifíciodeIsaac,deCaravaggio,naGaleriaUffizideFlorença,vieram-melágrimasaosolhosquandomeocorreuquenunca tiveaoportunidadedeveressequadroao ladodeFüsun,eentãovinoquadroquea liçãomenospercebidadosacrifíciodeAbraãoeraqueépossívelsubstituiroobjetoquemaisamamosporoutro,equeerapor issoqueeume sentia tãoapegadoaospertencesdeFüsunqueacumularaaolongo dos anos. Toda vez que eu ia a Londres, visitava o Sir John Soane’s Museum; depois depercorrer suas salas lindamente repletas e muito frequentadas, e de admirar sua arrumação dosquadros,sentava-mesozinhoaumcanto,ouvindoporváriashorasossonsdacidade,pensandoqueum dia eu haveria de expor os pertences de Füsun exatamente dessamaneira, e que, quando euconseguisse,elahaveriade sorrirparamimdoreinodosanjos.Mas sóquandomevicercadopelacoleção sentimental que ocupava o piso superior do Museu Frederic Marès, em Barcelona,percorrendosuacoleção românticadeprendedoresdecabelo,alfinetes,brincos,baralhos,chaves,leques,frascosdeperfume,lenços,broches,colares,bolsasepulseiras,percebiafinaloqueeupodiafazercomascoisasdeFüsun.EnaminhaprimeiraviagempelosEstadosUnidos—ondepasseimaisde cinco meses visitando duzentos e setenta e três museus— me lembro de ter tido a mesmaexperiência emocional enquanto visitava oGloveMuseum deNova York.Depois, noMuseum ofJurassicTechnologydeCulverCity,Califórnia,lembreinovamenteporquecertosmuseustinhamopoder de me dar calafrios: eles induziam a sensação de que eu ficara suspenso em determinadaépoca, enquanto o resto dahumanidade vivia emoutra.Na cidadedeSmithfield, naCarolinadoNorte,noAvaGardnerMuseum,doqual subtraíuma lindaplacada exposição reproduzindoumanúnciodetoalhademesaemqueelaaparecia,quandoviafotodeAvanoanuáriodesuaescola,seusvestidosdegala,suasluvasesuasbotas,sentiumasaudadetãodolorosademinhaFüsunperdidaquequasedesistideminhaviagemevolteiparaIstambul.Felizmente,depoisdedoisdiasestudandoa coleção de latas de refrigerante e cerveja no recém-aberto e pouco depois fechado Museu do

Page 373: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

VasilhameedaPublicidadedeBebidas,pertodeNashville,emboraaindadesejassevoltarparacasa,encontreiaforçadevontadeparaseguiremfrente.Cincosemanasmaistarde,emSaintAugustine,Flórida,no(poucodepoisfechado)TragedyinU.S.HistoryMuseum,onde,aoveropainelcromadode instrumentos e os destroços enferrujados e retorcidos do Buick 1966 em que JayneMansfieldmorreu esmagada, finalmente resolvi voltar para Istambul. Na verdade, a essa altura eu já tinhachegadoàconclusãodequeoúnicolardocolecionadoréseuprópriomuseu.Não fiquei muito tempo em Istambul. Seguindo as indicações de Çetin, fui até a oficina de

propriedadedeşevketUsta,umespecialistaemChevrolets,nasruasportrásdeMaslak;noterrenobaldioatrásdaoficina,umúnicoolharparanossoChevrolet56debaixodeumafigueirabastouparame produzir um paroxismo de tumulto emocional. A mala estava aberta, com galinhas de umacriaçãopróximavagandopelosdestroços,eemtornodelescriançasbrincavam.SegundoşevketUsta,algumaspeçastinhampodidoserrecuperadas,entreelasatampadotanquedegasolina,acaixademarchaseamaniveladajanelatraseira,todasvendidasaproprietáriosdeoutrosChevrolets56,ummercado considerável pois à época todos os táxis da cidade eram dessemesmomodelo.Quandoenfiei a cabeça no que restava do carro, para ver o local onde o indicador de combustível e ovelocímetroapareciamemperfeitascondições,assimcomoosbotõesdorádioeovolante,capteiumcheirodecouroqueemanavadoforrodosbancosaocalorsuavedosol,eminhacabeçacomeçouarodar.Porinstinto,toqueinovolante,quepareciaquasetãovelhoquantoeu.Logoaimensidãodasmemóriascomprimidasnaquelesrestosmetomoudeassaltoecomeceiapassarmal.“Kemal Bey, o que houve? Por que não vem sentar-se aqui”, disse Çetin, com a voz cheia de

compreensão.“Crianças,podemnostrazerumcopod’água?”PelaprimeiravezdesdeamortedeFüsun,estiveàbeiradechorarempúblico.Umaprendizda

oficina, enegrecido como um mineiro de carvão e coberto de graxa, mas com as mãosimaculadamente limpas, trouxe-nos chá numa bandeja com o logotipoCYPRUS TURK (o queregistro por força do hábito; os visitantes não devem perder tempo procurando essa bandeja noMuseu da Inocência); enquanto tomávamos nosso chá, depois de pechincharmos um pouco,recompramosocarrodomeupai.“Masondeosenhorvaiguardarisso,KemalBey?”,perguntou-meÇetinEfendi.“Queropassaro restodaminhavidadebaixodomesmo tetoqueestecarro”, respondicomum

sorriso,masÇetinEfendicompreendeunamesmahoraqueeuestava falandosérioe,aocontráriodosoutros,nãodisse:“Ora,porfavor,KemalBey,avidaprecisacontinuar—vocênãopodemorrercomosmortos”.Seeletivesseditoalgoassim,euteriaexplicadoqueoMuseudaInocênciaeraumlugar onde era possível conviver com os mortos. Embora eu tivesse preparado essa resposta deantemão,agoraessaspalavrasnãosedesprendiamdaminhagarganta:movidopeloorgulho,respondiumacoisatotalmentediversa.“Tenhomuitas coisas guardadasno apartamentodoedifícioMerhamet.Quero reunir todas elas

debaixodomesmotetoepassarorestodaminhavidacercadoporelas.”Eu tinha em mente muitos heróis que, durante os últimos anos de suas vidas, como Gustave

Moreau,haviamtomadoprovidênciasparaquesuascasas fossempostumamentetransformadasemmuseus.Euadoravaosmuseusqueelestinhamcriado,eassimcontinueiminhasviagens,revisitando

Page 374: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

as centenas que conhecera e aprendera a amar e indo aosmilhares de outros que ainda desejavadescobrir.

82.Oscolecionadores

Eis o que observei enquanto viajava pelomundo e vagava por Istambul. Existem dois tipos decolecionadores:1.OsOrgulhosos,queadorammostrarsuascoleçõesaomundo(quepredominamnoOcidente).2.OsTímidos,queescondemtudoqueacumularam(umadisposiçãonadamoderna).OsOrgulhososjulgamqueomuseuéosupremodestinonaturaldesuascoleções.Afirmamque,

sejaqualforafinalidadeoriginaldeumacoleção,elaé,nofundo,umempreendimentoquevisaserorgulhosamente exposto num museu. Essa visão era comum nas histórias oficiais dos pequenosmuseusparticularesamericanos.Porexemplo,ofolhetodoMuseudoVasilhameedaPublicidadedeBebidasdescrevecomoocolecionadorTomrecolherasuaprimeiralataderefrigerantevoltandodaescola para casa.Em seguida recolheu outra, e uma terceira, guardando tudo que encontrava atéque,aofinaldecertotempo,suaambiçãoera“colecionartodas”eexpô-lasnummuseu.Mas o Tímido coleciona apenas pelo prazer de colecionar.Como oOrgulhoso, começa— os

leitoresterãovistonomeuprópriocaso—àprocuradeumaresposta,deumconsolo,atémesmodeum paliativo para a dor, procura resolver uma dificuldade ou é simplesmente movido por umacompulsão obscura. Mas, vivendo em sociedades onde colecionar não é um ato respeitado quecontribui para o aprendizado ou o conhecimento, o Tímido encara sua compulsão como umconstrangimento que precisa ser escondido. Porque, nas terras dos Tímidos, as coleções não seorganizamemtornodeinformaçõesúteis,masdealgumamágoadocolecionador.Deparei com esses sentimentos sombrios em muitos lugares ao longo do tempo, mas foi nos

primeirosmesesde1992,entreoscolecionadoresdeIstambulespecializadosemparafernálialigadaao cinema, que tivemeus primeiros vislumbres do “constrangimento do colecionador”, enquantoprocuravacartazes,fotografiasdesaguãoecanhotosdeentradadefilmesaquetínhamosassistidonoverãode1976,paraexpornoMuseudaInocência.FoidepoisdepechincharlongamentequeHıfzıBeyvendeu-meumasériedefotografiasdesaguão

de filmescomoAagoniadoamor terminanamorteePresono fogocruzado e, apósmedizer váriasvezescomoficavafelizcommeuinteresseemsuacoleção,ficoupensativo.“Deixa-me triste,KemalBey,me separar de coisas por que tenho tanto apego”, disse ele. “Mas

comoeugostariaqueaspessoasquezombamdomeuhobbyeriemdemim—asqueperguntam:‘Porquevocêentopeasuacasacomessasbobagens?’—,comogostariaquepudessemveralguémcomoosenhor,umhomemculto,deboa família,encontraralgodevalornaminhacoleção.Nãobebo,nãofumo,nãojogonemandoatrásdasmulheres.Meuúnicovícioécolecionarfotografiasdefilmeseartistasdecinema…OsenhorpodeseinteressarporfotosdaKalendernasfilmagensdeOuve

Page 375: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

o lamentodeminhamãe, emquePapatyaainda faziaumpapeldegarotinha?Elaestáusandoumavental,comosombrosdefora…Seosenhorquiservirhojeànoiteàminhacasa,possolhemostrarfotostiradasduranteafilmagemdePalácionegro,quenuncaficouprontodevidoaosuicídiodoatorprincipal,TahirTan.Atéagora,fuiaúnicapessoaatervistoessasfotos.TambémtenhofotografiasdeInge,amodeloalemãqueaparecianacampanhapublicitáriadoprimeirorefrigeranteproduzidonaTurquiacomsaboresdefruta—elaacaboufazendoopapeldeumamulhergentil,simpáticaaosturcos,emEstaçãocentral,partedaprimeiraondadeproduçõescinematográficasgermano-turcas.Tenhofotografiasdedivulgaçãoemqueelaaparececomohomemporquemseapaixonanofilme;opapelfoifeitoporEkremGüçlü,eosdoisestãosebeijandonoslábios.”Quandolhepergunteisobreoutrasfotografiasdedivulgaçãoquevinhaprocurando,HıfzıBeyme

dissequehaviavárioscolecionadorescujascasasestavamrepletasatéo tetodefotografias, filmesecartazes.Quandoseusaposentosficavamtãotomadosporfotos,cartazes,recortesdejornalerevistasque não lhes restava nem mais um quarto para dormir, suas famílias abandonavam a casa (namaioria,dequalquermodo,nemeramcasados),eoscolecionadoresficavamàvontadeparajuntartudoquelhescaíssenasmãos,atéquesuascasassetransformavamemdepósitostãoabarrotadosqueninguémconseguiamaisentrarnelas.Semdúvidaalgumdessescolecionadoresdevia teroqueeuprocurava,masseriaimpossívellocalizaraquelaspeçasnosvalhacoutosemquemoravam—jálheseradifícilobastanteconseguirentrarpelaporta.Ainda assim,Hıfzı Bey não teve como resistir àminha insistência, eme proporcionou acesso a

algunsdosdepósitosdeguardadosquesetornaramlendáriosentreoshabitantesdeIstambulduranteadécadade1990.Percorrendo os detritos acumulados nessas casas, consegui encontrar quase todas as fotos de

divulgação que em seguida exporia no meu museu, além de panoramas de Istambul, uma boaquantidade de cartões-postais, entradas de cinema, menus de restaurante que na época não meocorreu guardar, velhas latas enferrujadas, folhas de jornais amarelados, sacolas de papel com ologotipodeváriasempresas,caixasderemédios,frascos,fotografiasdeastroseestrelasdecinemaedeoutrascelebridades,alémdefotografiasdehabitantescomunsdeIstambul, tiradasnodiaadia,quefalavamcomeloquênciainigualáveldolugarondeFüsuneeumorávamos.O proprietário de uma velha casa de dois andares emTarbalaşı parecia relativamente normal,

mas,sentadonumacadeiradeplásticocercadaporpilhasdepapeleobjetosdíspares,declaroucomumorgulhoreticentequetinhareunido42742peçasemsuacoleção.Senti amesma vergonha enquanto passava em revista os artigos acumulados por umguarda de

trânsito aposentado,mal tendo conseguido entrar na casa onde ele e amãe inválida viviam numaposentoaquecidoporumaparelhoagás.(Orestodaresidênciaeratãogélidoquantoinacessível,emboraaolongeeutenhapodidodistinguirvelhoslampiões,latasealgunsbrinquedosqueconheciada infância.)Oquemeprovocouvergonhanão foiamãedoguardaaposentado,querepreendiaehumilhavaofilhootempotodo:erasaberquetodasaquelascoisas,saturadasdememóriasdepessoasque tinhamcaminhadopelas ruas de Istambul,morado em suas casas e agoranamaioriamortas,acabariam desaparecendo sem jamais terem sido reunidas num museu, ou organizadas eemolduradaspara exposição.Soube recentementedodramado fotógrafo gregoque, porquarenta

Page 376: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

anos, fotografaracasamentos, festasdenoivado, reuniõesdenegócioseosrestaurantesdeBeyoğlu;tendoficadosemespaço,esabendoqueninguémmaisqueriasuasfotos,decidiraqueimartodooseuestoque de negativos numa fornalha de seu edifício. Simplesmente inexistia demanda por essasfotografias e negativos registrando os casamentos, as festividades e outros acontecimentos de todaumacidade,mesmodegraça.Osdonosdaquelesdepósitosdeinutilidadeseramridicularizadosnosseusedifíciosenasáreasondemoravam,temidostantopelaexcentricidadesolitáriaquantoporseushábitosdevasculharlatasdelixoeporsuasrelaçõescomnegociantesdeferro-velho.HıfzıBeyjámecontara,semexcessodeamargura,numtomquesugeriaantesodealguémquerevelavacertosfatosda vida, que, depois que esses solitários morriam, suas pilhas de objetos acumulados com umaferocidade quase religiosa eram despejadas em algum terreno baldio da vizinhança (os mesmosreservadosaosacrifíciodoscordeirosnosdiassantos)—ondeeramqueimadosoudeixadosparaoscatadoresdepapeleoutroscolecionadoresdebobagens.Emdezembrode1996,umsolitárioacumuladordecoisas(“colecionador”seriaapalavraerrada)

chamadoNecdetAdsız,quemoravaemTophane,amerosseteminutosdecaminhadadacasadosKeskin,morreuesmagadosobpilhasacumuladasdepapéiseobjetosantigosemsuacasa,tendosidoencontrado,paranãodizerpranteadoeenterrado,apenasquatromesesmaistarde,quandonoverãoo fedorque sua casa emanava ficou insuportável.Comaspilhasbloqueando aportada frente, osbombeirosforamobrigadosaentrarpelajanela.Descrevendooincidentenumtomempartecômicoeempartemacabro,osjornaissemearamentreoshabitantesdeIstambulumaapreensãoaindamaiordoquejáexistiaquantoatodotipodecolecionador.Aindahámaisumdetalheque,espero,oleitornãováacharsupérfluo,equemeocorreugraçasàminhacapacidade,naquelesdias,depensaraomesmotempoemtodasascoisasassociadasaFüsun.NecdetAdsız,ohomemquemorreuesmagadopelas coisas que entesourava, cujo corpo apodreceu em casa, era o mesmo Necdet que FüsunmencionaranofinaldafestadenoivadodoHilton,quandosurgiraoassuntodassessõesespíritas—oamigoqueelajulgaraestarmorto.Que a obra de suas vidas fosse um motivo de vergonha que precisavam manter oculto e em

segredo,equeporbaixodissosentissemumavergonhacomraízesaindamaisprofundas,euvianosolhosdemeuscolegascolecionadores,aquemgostariadeagradeceraquiporsuascontribuiçõesaomuseueàmemóriadeFüsun.Já faleideHalıtBey,oInválido,océlebrecolecionadordecartões-postais,quefrequenteientre1995e1999,animadopelaambiçãodeadquirirpostaisdetodasasruaselocaisquejamaisvisitaracomFüsun.Háumoutro(quepreferenãoterseunomemencionado)cujacoleção demaçanetas e chaves fiquei encantado de expor depois que eleme explicou que cadaresidente (para ele, só contavamos homens) de Istambul tocava cerca de vintemilmaçanetas aolongodesuavida,demaneiraqueeravirtualmentegarantidoque“amãodapessoaqueeuamava”tivesseestadoemcontatocomumaboaquantidadedosobjetosquecolecionava.HaviaaindaSiyamiBey,quepassouosúltimostrintaanosdesuavidacolecionandofotosdecadanavioquepassarapeloBósforodesdeainvençãodafotografiaequeteveagentilezademedarcópiasdasquepossuíaemduplicata.Gostariadeagradecer- lheaqui,primeiropormeterpermitidomostrarameusvisitantesosnavios cujos apitos eu ouvia enquanto pensava em Füsun ou caminhava pela cidade com ela, esegundoporqueele,comoumocidental,nãotinhaamenorvergonhademostrarsuacoleção.

Page 377: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Foicomoutrocolecionador,que,maistipicamente,preferiuoanonimato,queadquiriasériedepequenos retratos em papel dos mortos que os frequentadores dos funerais prendiam com umalfineteàlapelaentre1975e1980:depoisdenegociarexaustivamentecadaumadessasfotos,elemefez a pergunta essencial que eu ouvia com tanta frequência desses tipos, muitas vezes num tomdepreciativo,eaquesempredavaamesmaresposta.“Équeestouorganizandoummuseu…”“Nãopergunteioquevaifazercomelas.Oquepergunteifoi:porqueosenhorqueressascoisas?”Manifestavaacompreensãodequequalquerpessoaobcecadapelacoletaepeloarmazenamento

de objetos só podia estar tomada pelo sofrimento, por uma perturbação profunda ou por umainefável ferida psicológica. Qual deles era o meu problema? Estava abalado pela perda de umapessoa querida cuja foto não pudera prender à minha lapela no funeral? Ou estaria eu, como ohomemquemefaziaapergunta,sofrendodealgomaisprofundo,imencionávelevergonhoso?Na medida em que museus pessoais eram praticamente inexistentes na década de 1990, os

colecionadoresdeIstambuldesprezavamintimamenteasimesmosesuasobsessões,enãomenosunsaosoutros,ridicularizando-seabertamenteemtiradasquesópioravamquandoagravadaspelainveja.Quando tiaNesibemudou-se paraNişantaşı e o arquiteto İhsan começou a trabalhar na casa dosKeskincomofimdetransformá-lanummuseudeverdade,comentou-seemtomdezombariaqueeuestava“organizandoummuseuparticular,comofazemnaEuropa”e,namesmafrase,queeueramuitorico.Minhaesperançaeradequeissopudesseatenuarseudesdémepermitirquevissemnãoalguém movido por uma ferida psicológica profunda e silenciada— noutras palavras, não umapessoaamalucada,comoeraocasodeles—,masalguémquereuniaartigosparaummuseucomosefazianoOcidente,simplesmenteporqueeraricoetinhadecididocelebrarsuacoleção.DiantedainsistênciadeHıfzıBeyenaesperançadeporacasoencontrarvestígiosdeFüsunque

pudessemocuparumlugarnaminhahistória,compareciaumencontrodaAssociaçãodosAmantesdeObjetosColecionáveis,oprimeirogrupodotipoformadonaTurquia,naépocarecém-criado.Lá,num pequeno salão de festas alugado por umamanhã, senti-me um leproso entre os leprosos dasociedade.Haviaosqueeuconheciadenomecomocolecionadores(entreelessetequeoleitorjáconhece,

comooSufiFrio, colecionador de caixas de fósforos) eme tratavam ainda pior do que poderiamtratar um colecionador comum de Istambul ou alguém como eles próprios. Os olhares dedesconfiançaquasesempremudos,comoseeufosseumespião,uminvasor,partirammeucoração.A explicação subsequente e apologética de Hıfzı Bey sugeria que ver um homem rico levado aaplacaradordeseucoraçãocomaaquisiçãodeobjetosdespertavanelessentimentosderepulsaedesamparo.Poiserampessoassimples,inocentesapontodeimaginarqueseupecado,suamaniadecolecionar coisas, fosse uma doença que a riqueza certamente teria curado.Mas como tempo, àmedidaqueos comentários sobremeuamorporFüsun se tornaramdoconhecimentogeral, essesprimeiroscolecionadoressériosdeIstambulnãosómeajudaramcomoaindamecontaramahistóriadesualutaparaemergirdosubmundoetrazeraconhecimentopúblicoosfrutosdosseusesforços.AntesdetransportarparaÇukurcumaumaumosobjetosqueeuarmazenaranoapartamentodo

edifícioMerhamet, tireiuma fotopanorâmicadacoleçãoque jáenchiaquase totalmenteoquarto

Page 378: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

emque eu eFüsunnos amávamos vinte anos antes. (A essa altura, os gritos dosmeninos jogandofutebolno jardimdos fundos também tinham sido suplantadospelo rugidodeumaparelhode arcondicionado.)Quandoreuniessascoisasaosobjetosquejáestavamnacasa-museudeÇukurcuma—osqueeuacumularanasminhasviagens,osantigospertencesdosKeskin,ascoisasqueeuextraíradaspilhasdecoleçõesdiversas edosmembrosdaAssociação,bemcomoobjetosque receberadeváriastestemunhasdaminhahistória—,umpensamentoquemeocorreraduranteminhasviagensaoestrangeiro,especialmenteemminhasvisitasaosmercadosdepulgas,tomouformaemminhafrente,nítidocomoumapintura.Todosaquelesobjetos—ossaleiros,oscachorrosdelouça,osdedais,oslápis,osprendedoresde

cabelo,oscinzeiros—tinhamocostumedemigrar,comoosbandosdecegonhasquesobrevoavamIstambulemsilêncioduasvezesporanoacaminhodetodasaspartesdomundo.Nosmercadosdepulgas de Atenas e de Roma, eu vira isqueiros idênticos ao que comprara para Füsun— e haviaoutros quase iguais em Paris e em Beirute. Este saleiro, produzido por uma pequena fábrica deIstambul,eraencontradonos restaurantesdasáreasmaispobresdacidade,mas tambémovinumrestauranteHalalemNovaDelhi,numacozinhadedistribuiçãogratuitadesopanaparteantigadoCairo,entrecacarecosdevendedoresde ruaqueespalhavamsuasmercadorias sobre lonasabertasnascalçadasdeBarcelonatododomingoenumalojacomumdeartigosdecozinhaemRoma.Oqueécerto:alguém,emalgumlugar,tinhaproduzidooprimeirodessessaleiros,edepoisoutrostinhamtiradomoldes a partir dele para a produção emmassa emmuitos outros países, demodoque, aolongo dos anos, milhões de cópias se espalharam pelo Sul do Mediterrâneo e pelos Bálcãs,ingressandonavidadiáriade incontáveis famílias.Ponderarcomoaquelesaleiro tinhachegadoaospontosmaisdistantesdoglobo sugeriaumgrandemistério, tãograndequantoamaneiracomoasavesmigratóriassecomunicamentreelas,seguindoasmesmasrotasacadaano.Umanovaondadesaleirossemprechegavaeosvelhoseramsubstituídospelosnovos,tãoregularmentequantooventosuldepositaseusdespojosnaspraias,eacadavezaspessoasesqueciamosobjetoscomquetinhamvividotãointimamente,semnemsequerreconheceremsualigaçãoemocionalcomeles.Transportei toda aminha coleção para a casa recém-convertida emmuseu, juntamente com a

cama,ocolchãoumtantomofadoeolençolazulemqueFüsuneeunosamávamosnoapartamentodoedifícioMerhamet, guardandoesses trêsobjetosno sótão.QuandoosKeskinmoravamnaquelacasa,o sótãoeradomíniodecamundongos, aranhasebaratas, e acasaúmidaemofadadacaixa-d’água;masagorasetransformaranumaposentolimpoeclarodoqualseviamasestrelasatravésdeuma claraboia. Eu queria dormir cercado por todas as coisas queme lembravamdeFüsun emefaziamsentirsuapresença,eentãonaquelanoitedeprimaverauseiachaveparaabriraportanovaquedavaparaaruaDalgıç;entreinacasaquemetamorfosearaemmuseu,subiasescadaslongaseretascomoumfantasmae,atirando-menacamadosótão,adormeci.Háquemenchasuacasadeobjetose,nomomentoemquesuavidacomeçaaaproximar-sedo

final,atransformaemmuseu.Maseu,tendotransformadoemmuseuacasadeoutrafamília,tentavaagora—pelapresençadaminhacama,domeuquartoedemimmesmo—transformá-lodevoltanumacasa.Oquepodesermais lindoquepassarasnoitescercadopelosobjetosquenosligamàsnossasmemóriaseconexõessentimentaismaisprofundas?

Page 379: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Especialmente na primavera e no verão, comecei a passarmais emais noites no quartinho dosótão.Oarquitetoİhsan tinhacriadoumespaçonocoraçãodoprédio,queeupodia verporumagrande abertura entre os pisos superior e térreo; podia passar a noite na companhia de todos osobjetosdaminhacoleção—comungandocomtodaacasa.OsverdadeirosmuseussãolugaresondeoTempoétransformadoemEspaço.Minhamãenãogostoumuitoqueeufossevivernosótãodomeumuseu,mascomoeualmoçava

regularmentecomelaetinhameligadodenovoaalgunsdosmeusvelhosamigos(emboranãocomSibel eZaim), fazendopasseios de barcono verão a Suadiye e às ilhas dosPríncipes, e como elatambémchegaraàconclusãodequeerasódaquelamaneiraqueeupoderiasuportaradordaperdadeFüsun,nuncadisseumapalavra;aocontráriodetodomundoqueelaconhecia,estavapreparadaparaencararminhacriaçãodeummuseunacasaondeosKeskin tinhammorado,expondocoisasque contavam a história do meu amor por Füsun e a vida que compartilhamos, como algoperfeitamentenormal.“Ah,vocêdevialevartambémtodasascoisasantigasdomeuguarda-roupaedasminhasgavetas…

Nuncamaisvouterocasiãodeusarchapéu,nemessasbolsasouascoisasantigasdoseupai…Levetambémaminhacestadecostura,alémdosbotõesecortesde tecido.Não fazmais sentidogastardinheirocomcostureirasdepoisdossetentaanos”,diziaela.SemprequeeuestavaemIstambul,faziavisitasmensaisatiaNesibe,quemepareciafelizcomseu

novo apartamento e seu novo círculo de amigas. Foi quando voltei de minha primeira visita aoMuseumBerggruen emBerlim que lhe contei animado do acordo que tinha ouvido falar entre ofundador,HeinzBerggruen, e o governomunicipal, pactopeloqual elepoderiapassar o restodavidanamansardadacasaquelegouàcidadeparaexporacoleçãoqueacumularaaolongodetodaavida.“Enquantopercorreomuseu,umvisitantepodeentrarnumasalaousubirumaescadaedarde

caracomapessoaquecriouacoleção,atéofimdavidadele.Nãoéestranho,tiaNesibe?”“QueDeusdeterminequeseudiademoreachegar”,respondeutiaNesibeacendendoumcigarro.

DepoischorouumpoucoporFüsune,comocigarroaindanoslábioseaslágrimasaindacorrendopelasfaces,dirigiu-meumsorrisomisterioso.

Page 380: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

83.Afelicidade

NomeiodeumanoiteenluaradaquepasseinacasadeÇukurcuma,desperteiemmeuquartinhosemcortinasdosótãobanhadoporumfulgorsuave,eolheiparaoespaçovaziodomuseu.Oluarprateadoqueentravapelas janelasemmeumuseu,queàsvezesmeparecia sempre longede ficarpronto, conferia ao local e a seu centro vazio um aspecto de assustadora vacuidade, como sehouvesse uma continuidade entre ele e o espaço infinito. Toda a minha coleção de trinta anosabrigava-senassombrasdospisosinferiores,eparaelaaquelevazioeracomoagaleriadeumteatro.Deondemeencontravaeuviatudo—ascoisasqueFüsunesuafamíliacostumavamusarnaquelacasa,osrestosenferrujadosdoChevrolet,tudooquemobiliavaacasa,dofogãoàgeladeira,damesaondejantamosporoitoanosàtelevisãoquevíamosduranteojantar,e,comoumxamãqueconsegueveraalmadascoisas,sentiasuashistóriasbruxuleandodentrodemim.Foi nessa noite que entendi quemeumuseu precisaria de um catálogo anotado, relatando em

detalhe a história de cada objeto. Não havia dúvida de que isso haveria também de constituir ahistóriademeuamorporFüsunedeminhaveneração.À luz da lua, cada coisa devidamente acomodada nas sombras, como que integrada ao espaço

vazio, parecia indicar um momento indivisível, semelhante aos átomos indivisíveis de Aristóteles.Percebientãoque,assimcomoa linhaqueuniaosmomentosdeAristóteleseraoTempo,a linhaque unia esses objetos seria uma narrativa. Noutras palavras, um escritor poderia empreender acomposição do catálogo da mesma forma como poderia escrever um romance. Mas, não tendodesejodeescrevereumesmoumlivroassim,perguntei:“Quempoderiafazê-lopormim?”.E foiassimqueprocureioestimadoOrhanPamuk,quenarrouahistóriaemmeunomeecom

minhaaprovação.Nopassado,seupaieseutiofizeramnegócioscommeupaieorestodenós.VindocomovinhadeumafamíliatradicionaldeNişantaşıqueperdeusuafortuna,julgueiqueelefosseteruma excelente compreensão dos antecedentes daminhahistória.Tambémouvi dizer que era umhomemapaixonadamentededicadoaoseutrabalhoequelevavaasérioaartedanarrativa.ComparecibempreparadoameuprimeiroencontrocomOrhanBey.Antesde falardeFüsun,

contei- lhe que nos quinze anos anteriores eu tinha viajado pelo mundo, visitando ao todo 1743museus,tendoguardadotodososmeusbilhetesdeentradae,paraespicaçarseuinteresse,faleidosmuseusdedicadosàmemóriadeseusescritores favoritos:quandoelemeouviucontarqueaúnicapeçaautênticadoMuseudoMemorialLiterário aF.M.Dostoiévski, emSãoPetersburgo, eraumchapéu conservado debaixo de uma redoma de vidro, com um cartão que dizia “Este chapéurealmentepertenceuaDostoiévski”,talvezeletenhasorridoparamim.OqueeleteriaadizersobreoMuseuNabokovdamesmacidade,queduranteaeradeStálinserviracomoescritórioparaajuntadecensuralocal?Contei- lhecomo,tendovisitadooMuséeMarcelProustemIlliers-Combrayevistoosretratos das pessoas que serviram de modelo para seus personagens, saí nem um pouco maisesclarecido sobre suasobras,emboracomuma ideiamaisclaraacercadomundoemqueoautorvivera.Não,eunãoachavaabsurdaa ideiadeummuseudeumescritor.Porexemplo,nacasadeEspinosa,napequenacidadedeRijnsburg,naHolanda,acheiadequadoquetivessemreunidotodos

Page 381: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

oslivrosdesuabibliotecaquetinhamsidoenumeradosnorelatóriooficialproduzidodepoisdesuamorte,ordenadosdomaiorparaomenor,comoeracostumeironoséculoXVII.Equedia felizeupassara percorrendo o labirinto de salas doMuseu Tagore, apreciando as aquarelas do escritor erememorandoocheiroempoeiradoebolorentodaprimeirageraçãodosMuseusAtatürk,aomesmotempoemquemechegavaaosouvidosoburburinhointermináveldeCalcutá!FaleidavisitaàcasadePirandellonacidadedeAgrigento,naSicília,edecomoviraláfotografiasquepoderiamserdaminha própria família; da vista da cidade das janelas do Museu Strindberg, na Torre Azul deEstocolmo; e da casinha sombria de quatro andares em Baltimore onde Edgar Allan Poe tinhamorado com sua tia e sua prima de dez anos,Virginia, comquemmais tarde se casaria. Achei-amuitofamiliar:detodososmuseusquevisitei,foiessapequenacasadequatroandaresemBaltimore,aPoeHouseandMuseum,quehojeseerguenomeiodeumbairropobreedesolado,quemaismelembroudacasadosKeskin,comseuardeabandono,seusquartosesuasformas.Mas,comoconteiaOrhanBey,omaismagníficodosmuseusdeescritoresqueconhecifoioMuseuMarioPraz,naviaGiulia,emRoma.Seeleumdiaconseguissemarcarumavisita,comoeufizera,àcasadeMarioPraz,o célebrehistoriador e autordeA carne, amorte e o diabona literatura romântica, que tinhaumapaixãodamesmaordempelasartesplásticasepela literatura,eledevia,aconselhei, lero livroemqueograndeautorcontavaahistóriadasuaincrívelcoleçãocomoumromance,salaporsala,objetoporobjeto.Emcontraste,acasaemRouenondeFlaubertnasceuestavarepletadoslivrosmédicosdeseu pai, de maneira que nenhum escritor precisava visitar o Musée Flaubert et d’Histoire de laMédecine. Então examinei com cuidado os olhos do nosso autor: “Enquanto Flaubert escreviaMadameBovary,inspiradoporsuaamadaLouiseCollet,comquemelefizeraamoremcarruagenseemhotéisdeprovíncia,assimcomonoromance,guardavanumagavetaumcachodeseuscabelos,bemcomoumlençoeumchinelopertencentesaela,e,detemposemtempos,pegavaessesobjetosparaacariciá- los,olhandoespecialmenteparaochineloafimdeselembrardoandardela—comoosenhordevesaberpelaleituradascartasdoescritor,OrhanBey”.“Não,nãosabia”,disseele.“Masadorei.”“Uma vez amei tanto uma mulher que também guardei cachos do seu cabelo, seus lenços e

prendedoresdecabelo,etudoqueelajamaisteve,epormuitosanosencontreiconsoloneles,OrhanBey.Possolhecontarminhahistóriacomtodaafranqueza?”“Claro,podecontar.”E foi assimemnossoprimeiroencontro,noHünkar (o restauranteque sucederaohojedefunto

Fuaye),que lhecontei todaaminhahistória—nãodemaneiradisciplinada,maspulandopara afrenteeparatrás—noespaçodetrêshoras.Sentia-meexaltado,tomeitrêsrakısduploseachoqueaanimaçãofoimaiordoqueeuconseguiacontrolar,fazendocomqueminhahistóriasoasseatécertopontobemcomum.“ConheciFüsun”,disseOrhanBey.“Lembro-medelanasuafestadenoivado,noHilton.Fiquei

tão triste quando soube que tinhamorrido. Ela trabalhava numa boutique aqui perto. Cheguei adançarcomelanasuafesta.”“Émesmo?Elaeraumapessoaforadocomum,nãoacha?…Nãoestoufalandodabelezadela,

masdaalma,OrhanBey.Quandodançoucomela,sobreoquêvocêsconversaram?”

Page 382: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

“SerealmenteestádepossedetodosospertencesdeFüsun,eugostariadevê-los.”PrimeiroeleveioaÇukurcuma,demonstrandouminteresseautênticopelacoleçãoqueeutinha

reunido e essemuseu que criei a partir de uma casa antiga, admiração que não fez esforço paradisfarçar. Pegava nas mãos alguns dos objetos, como os sapatos amarelos que Füsun usava daprimeiravezqueavinaboutiqueşanzelize,emepediaquelhecontassesuashistórias,oqueeufiz.Mais tarde começamos a trabalhar de maneira mais organizada. Sempre que eu estava em

Istambul, ele vinha aomeu sótão uma vez por semana,me perguntando por que os objetos e asfotografias de que eume lembrava e que tinha organizado agora precisavam aparecer namesmaordemnascaixasenasvitrinesdomuseu,eporquecadaumdelesdeviasermencionadoemseusrespectivoscapítulos.Eurespondiacomomaiorprazer.Eleouviacommuitaatençãotudoqueeudizia,equandoeuoviatomarnotasficavasatisfeito—eorgulhoso.“Por favoracabe logoeste romance,paraqueaspessoas interessadaspossampercorreromuseu

com o livro nas mãos. Enquanto andam de vitrine em vitrine em meu museu, buscando umacompreensãomelhor domeu amorporFüsun, possodescer domeuquartodo sótãodepijama ecaminharentreeles.”“Masoseumuseutambémnãoestáacabadoainda,KemalBey”,dizia-meOrhanBeyàguisade

resposta.“Existemmuitosmuseusqueaindaprecisoconhecernomundo”,eudiziacomumsorriso.Eentão

tentava, mais uma vez, explicar o efeito espiritual que o silêncio dos museus tinha em mim, afelicidadesublimequeeraestaremalgumpontodistantedomundonumamanhãcomumdeterça-feira, percorrendo um museu esquecido em um local fora de mão, e evitando o escrutínio dosguardas. Sempre que eu voltava dasminhas viagens, ligava imediatamente paraOrhan Bey e lhefalavadosmuseusquetinhaconhecido,mostrandoosbilhetesdeentradaeosfolhetosquetiravadobolso,alémdasbugigangasedeplacasindicativasquetinhaembolsadonosmuseusdequegostaramais.Foilogodepoisdaminhavoltadeumadessasviagensque,apóscontarminhahistóriaedescrever

osmuseusquetinhavisitado,perguntei- lhecomoestavaprogredindooromance.“Estouescrevendoolivronaprimeirapessoadosingular”,disseOrhanBey.“Comoassim?”“Nolivro,évocêquemcontaahistória,dizendo‘eu’,KemalBey.Estoufalandocomasuavoz.No

momento,estoumeesforçandomuitoparamepôrnoseulugar,paraservocê.”“Entendi”,disseeu.“Entãomediga,algumavezesteveapaixonadoassim,OrhanBey?”“Hummmm…Nãoestamosfalandodemim”,disseele,eficoucalado.Depoisdetrabalharmosjuntospormuitotempo,tomamosalgumasdosesderakınaminhaágua-

furtada.FalarsobreFüsuneavidaqueelaeeutivemosjuntosmedeixaracansado.Depoisqueelesaiu,estendi-menacamaondeFüsuneeunosamamos(maisdeumquartodeséculoatrás)efiqueipensandonomotivoparame sentir tãodesconfortável como fatodeelecontar ahistóriadomeupontodevista.Emboraeunãotenhadúvidadequeaindaassimseráaminhahistóriaedequeeleirátratá- lacom

o devido respeito, a ideia de que ele falasse com aminha voz era perturbadora. Parecia falta de

Page 383: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

coragem,certafraquezadaminhaparte.Emboraachasseperfeitamentenormalcontarahistóriaeumesmoparaosvisitantes, indicandoosobjetos relevantesao longodocaminho,queOrhanBeysepusessenomeulugar,quedesseaouvirsuavoznolugardaminha…issomeaborrecia.Eraassimqueeuaindamesentiadoisdiasdepois,quandolhepergunteiporFüsun.Naquelanoite

tornamos a nos reunir no sótão domeumuseu e já tínhamos enxugado o primeiro copo de rakıquandoeudisse:“OrhanBey,podemecontarporfavorcomofoisuadançacomFüsunnanoitedafestadomeunoivado?”.Eleficourelutanteporalgumtempo—achoqueestavaconstrangido.Masdepoisquecadaumde

nósdoistomoumaisumcopoderakı,OrhanBeydescreveucomtantosentimentocomoeletinhadançado comFüsunumquartode século antes quenamesmahora conquistouminha confiançacomoapessoaidealparacontar,naminhavoz,minhahistóriaaosvisitantesdomuseu.Foimaisoumenosnessaépocaquedecidiqueminhavozjá tinhasidoouvidaalémdaconta,e

queeraahoradepartirparadeixá-lo terminarminhahistória.Apartirdopróximoparágrafoatéofim, será emessênciaOrhanBeyquemcontará ahistória.Tendodadoumaatenção tão sinceraedetalhada a Füsun quando dançaram juntos, tenho certeza de que não fará nada menos nestaspáginasderradeiras.Adeus!OLÁ,AQUIÉORHANPAMUK!ComapermissãodeKemalBey,começareidescrevendominha

dançacomFüsun:elaeraajovemmaisbonitadafestanaquelanoite,eerammuitososhomensqueesperavam a vez de dançar com ela. Eu não era bonito nem ousado o bastante para atrair suaatenção,e,emboracincoanosmaisvelhoqueela,nãotinha,comodirei,amaturidadenecessária,enaqueletempotampoucoeramuitosegurodemim.Minhamenteviviaabarrotadadepensamentosmoralistas, livros e romances, de maneira que me foi impossível aproveitar aquela noite. Que oespíritodelaestavaocupadocomquestõesmuitodiversas,vocêsjásabem.Ainda assim, apesar de tudo isso, depois que aceitoumeu convite para dançar, enquanto eu a

seguiaatéapista, ingresseinumdevaneioanteavisãodesuasilhuetaalta,deseusombrosnus,desuascostasesplêndidasedeseusorrisopassageiro.Suamãoeraleve,masquenteaotoque.Quandoelapousouaoutramãoemmeuombro,houveummomentoemqueeunãopodiamesentirmaisorgulhososeelafosseminha,enãoapenasmeuparocasional.Enquantonosdeslocávamosdelevepelapista,fiqueicompletamenteabsorvidonaproximidadedesuapele,emsuaposturaperfeita,navivacidadedeseusombroseseios,e,emboratenhafeitoopossívelpararesistiràatração,fuiincapazdeconter as fantasiasquecorriamdesenfreadaspormeuespírito.Deixávamosapistadedançademãosdadas,subíamosatéobar;começávamosanosapaixonarloucamente;beijávamo-nosàsombradaquelasárvoreslogoadiante;euestavacertodequenoscasaríamos!Só paramanter a conversa, eu disse a primeira coisa queme passou pela cabeça (“Quando eu

caminhopelaruaemNişantaşı,àsvezesvejovocênaloja.”),masminhaspalavrasdesinteressantessófizeram lembrarque ela erauma linda vendedora, oquenão a impressionounemumpouco.Dequalquermaneira,jánomeiodaprimeiradançaelatinhapercebidoqueeunãoeragrandecoisa,ecomeçouaolharporcimadomeuombroparaaspessoassentadasemtornodasmesas,tentandoverquemdançavacomquem,acompanhandoosmuitoshomensquetinhamdemonstradointeresseporela,vendocomquemestavamrindoeconversandonaquelemomento,eavaliandoasmulheresmais

Page 384: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

bonitaseencantadoras,paraplanejarseumovimentoseguinte.Eutinhaapoiadoamãodireita,comtodorespeito(mastambémcomdeleite),logoacimadeseu

belíssimoquadril,ecomaspontasdosdoisdedosmaioressentiacadamovimentodesuaespinha,atéomais ligeiroestremecimento, como se tomasseo seupulso.Suaposturacuriosamenteereta faziaminhacabeçarodar,edurantemuitosanosfuiincapazdeesquecê-la.Houvemomentosemqueeusentia nas pontas dos dedos o sangueque circulava pelo seu corpo, a própria vida, e então ela sefixavarepentinamenteemalgumacoisanova,provocandoumaretraçãodeseusórgãos,um frissonquecorriaporsuasilhuetaelegante,eeraamuitocustoqueeuconseguiaevitarapertá- laemmeusbraçoscomtodaaminhaforça.Àmedidaqueapistadedançafoiseenchendo,outrocasalesbarrouemnóspor trás,eporum

momentonossoscorposseencostaram.Depoisdaqueleinstantedebruscaintimidade,fiqueicaladopormuitotempo.Enquantoolhavaparaseupescoçoeseuscabelos,fiqueitãoarrebatadoporminhasfantasiasde felicidadecomelaque teriadebomgradoabandonadonamesmahorameus livros emeus sonhos de me tornar romancista. Eu tinha vinte e três anos de idade e me irritava muitofacilmente quando a burguesia deNişantaşı e até osmeus amigos riam daminha decisão demetornar escritor, dizendo-me em tom de zombaria que ninguém da minha idade podia terentendimento suficiente da vida para tanto. Exatamente trinta anos mais tarde, enquanto faço arevisãodestaslinhas,gostariadeacrescentarqueacreditoqueessaspessoastinhamrazão.Tivesseeualgum entendimento da vida àquela altura, teria feito tudo ao meu alcance para despertar acuriosidadedeFüsunenquantodançávamos,teriaacreditadoqueelapoderiaseinteressarpormime, nomomento em que ela deixassemeus braços, não teria ficado ali imóvel, vendo-a afastar-se.“Estoucansada”,disseela.“Incomodariaseeumesentasseumpoucodepoisdasegundadança?”Eucaminhavacomeladevoltaàsuamesa,umacortesiaqueaprenderanocinema,quandoderepentenãoconseguimaismeconter.“Que gentemais aborrecida”, disse eu em tom presunçoso. “Vamos subir e procurar um lugar

confortávelparasentareconversarumpouco?”Obarulhoeratãoaltoqueelanemmeouviudireito,masentendeuimediatamentepelaminhaexpressãooqueeupretendia.“Preciso ficarsentadacomminhamãeemeupai”,disseela,enquantoseafastavadelicadamente.Quando percebeu que eu escolhera terminar minha história nesse ponto, Kemal Bey me

parabenizou.“Sim,eraesseexatamenteojeitodeFüsun.Acompreensãoquevocêdemonstradelaémuito boa!”, disse ele. “E eu também gostaria de lhe agradecer profusamente por ter resistido aoimpulsodeomitirosdetalhesquepodemferiroseuorgulho.Sim,éestaaquestãocrucial,OrhanBey—oorgulho.Comomeumuseu,queroensinarnãoapenasaosturcosmasatodasaspessoasdomundo que devem se orgulhar da vida que levam. Viajei por toda parte e vi commeus própriosolhos:enquantooOcidentesenteorgulhodoqueé,amaiorpartedorestodomundovivetomadapela vergonha. Mas, quando os objetos que nos causam vergonha são expostos num museu,transformam-seimediatamenteempertencesdequepodemosnosorgulhar.”E esse foi o primeiro de uma série de pronunciamentos que Kemal Beyme transmitiu em seu

quartinho do sótão enquanto bebíamos noite adentro. Não fiquei impressionado, principalmenteporquetodomundoqueencontraumescritoremIstambulsente-seinstadoalhefazerdeclarações

Page 385: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

edificanteseoutrascoisasdotipo,mas(comoKemalBeymesugeriutantasvezes)eutambémestavaficandoconfusoquantoaoquedeveriaounãoincluirnolivroecomodeviaproceder.“Sabequemmemostrouessaposiçãocentraldoorgulhonummuseu,OrhanBey?”,perguntou

KemalBeyduranteoutrasessãodemadrugadaemseusótão.“Osguardasdosmuseus,éclaro.Ondequerqueeutenhaestadonomundo,osguardasrespondiamatodasasminhasperguntascompaixãoeorgulho.NoMuseuStálin,emGori,naGeórgia,umaguardaidosafaloudurantequaseumahorade como Stálin tinha sido um grande homem. E foi graças a um guarda simpático do MuseuRomântico, no Porto, em Portugal, que conversou longamente comigo, que descobri em CarlosAlberto,reiexiladodePiemonteeSardenha,quepassouosúltimostrêsmesesdesuavidaresidindonaquela quinta em 1849, uma influência profunda sobre o romantismo português.Orhan Bey, sealguém fizerumaperguntaemnossomuseu,osguardasdevemdescreverahistóriadacoleçãodeKemalBasmacı,oamorquesintoporFüsuneosentidoqueatribuoaseuspertences,comomesmoar de dignidade. Faça-me o favor de dizer isso em seu livro. O trabalho do guarda não é, comogeralmenteacham,pedirsilêncioaosvisitantesmaisruidosos,protegerosobjetosexpostos(emboraéclaro que tudo que tenha alguma ligação com Füsun deva ser preservado para a eternidade!) eadvertir casais que troquem beijos ou pessoas mascando chicletes; o trabalho deles é fazer osvisitantes acreditarem que se encontram num lugar sagrado que, como uma mesquita, devedespertar- lhessentimentosdehumildade,respeitoereverência.OsguardasdoMuseudaInocênciaprecisamusarternosdeveludocordemadeiraescura—oquecombinacomoambientedacoleçãoetambémcomoespíritodeFüsun—,comcamisasrosa-claroegravatasfabricadasespecialmenteparaomuseu,bordadascomaimagemdosbrincosdeFüsun,e,claro,devemdeixarempazquemestivermascando chiclete e os casais quequeiram se beijar.OMuseuda Inocência estará sempreabertoparaosnamoradosquenãopuderemencontraroutrolugarparasebeijaremIstambul.”Àsvezeseumecansavadesseestilodeclamatório,quelembravatantoosescritorespolíticosmais

prolixosdosanos1970,adotadoporKemalBeydepoisdedoiscoposderakı,eparavadetomarnotas;nosdiasseguintes,nãotinhaamenorvontadedeestarcomele.MasasguinadasdahistóriadeFüsune a atmosfera singular criada pelos objetos domuseu eram tão interessantes que depois de algumtempo eu sempre voltava, visitando novamente aquele sótão, ouvindo aquele homem gasto pelotemporecitarseuslongossolilóquiossobreFüsun,maisanimadoacadadosedebebida.“Nuncaseesqueça,OrhanBey,dequealógicadomeumuseuprecisaseraseguinte:dequalquer

lugaremqueovisitanteparedentrodele,deveserpossívelvertodaacoleção,todasasvitrinesetudoomais”, dizia Kemal Bey. “Como todos os objetos domeumuseu— e, com eles, toda aminhahistória— podem ser vistos ao mesmo tempo de qualquer perspectiva, os visitantes irão perdertotalmente a noção do Tempo. Este é o maior consolo da vida. Nos museus poeticamente bemconstruídos,criadosapartirdascompulsõesdocoração,nossentimosconsoladosnãoporquenelesencontramosobjetos antigosqueadmiramos,masporqueperdemosanoçãodoTempo.Por favorincluaistotambémnoseulivro.Nãovamosdeixardefalardamaneiracomofoiescritonemdecomootrabalhofoiorganizado.Quandoficarpronto,façaofavordemeentregartodososrascunhoseseuscadernostambém,parapodermosincluí- losnaexposição.Quantotempoaindavailevar?QuemlerolivrocertamenteiráquererviraquiparaveroscachosdoscabelosdeFüsun,suasroupaseoutros

Page 386: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

pertences, como foio seucaso.Então,por favor, incluaummapano finaldo romance,paraqueaquelesquequiserempossamchegaraquiapépelasruasdeIstambul.QuemconheceahistóriadeFüsuncomigocertamentevaiselembrardelaenquantocaminhaporessasruaseobservaessasvistas,comoeufaçotododia.Equemtiver lidoolivroganhaentradafrancanomuseuquandovierpelaprimeiravez.Eamelhormaneiraéincluirumingressoemcadaexemplar.OMuseudaInocênciaterá um carimbo especial e, quando os visitantes apresentarem seu exemplar do livro, o guarda àportairácarimbaresseingressoantesdedeixá-losentrar.”“Masondeporemosobilhete?”“Aqui,éclaro!”

“Obrigado.Enofinalvamosacrescentarumíndicedosnomes,OrhanBey.Égraçasaoseurelato

quemelembreidequantaspessoasforamtestemunhasdanossahistóriaouaconheceramdeoutromodo.Atéeuachodifícilnãoconfundirosnomes.”Naverdade,KemalBeynãogostouqueeusaísseàprocuradaspessoasmencionadasnahistória,

mastoleroumeuscacoetesderomancista.Àsvezesficavacuriosodesaberoqueaspessoasqueeulocalizaratinhamdito,ouoqueestavamfazendoentão;àsvezesnãotinhanenhuminteressenelasemalentendiaporqueteriamdespertadomeuinteresse.Por exemplo, jamais conseguiu entender por que escrevi uma carta para Abdülkerim Bey, o

distribuidor da Satsat em Kayseri, ou por que quis encontrá-lo numa de suas visitas a Istambul.QuantoaAbdülkerimBey,quedeixouaSatsatparasetornardistribuidoremKayseridaTekyay,afirmaqueOsmanfundouemsociedadecomTurgayBey,eleconsideravaahistóriadeKemalBeycomoahistóriadeamoredesgraçaqueexplicavaofimdaSatsat.ConseguilocalizarSühendanYıldız(tambémconhecidacomoaIntriganteSühendan),aatrizque

semprefaziaopapeldevilãequeobservaraosprimeirosmesesdenossosamantesnoPelür.Elamecontou que, enquanto conhecera Kemal Bey como um homem desesperadamente solitário, eemboracomotodomundotambémsoubesseoquantoeleeraapaixonadoporFüsun,sentiapoucapenadele, reprovandodemaneirageraloshomens ricosque frequentavamomundodocinemaàcaçadebelasjovens.Sühendan,naverdade,tinhapenadeFüsun,“cujaimpaciênciadetrabalharnocinemaevirarumaestrelaseaproximavadopânico”.Seelativesseconseguido,cercadaportantos

Page 387: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

lobos, teria tidoumtriste fimdequalquermaneira,achavaSühendan, jamais tendoentendidoporqueFüsun se casara com“aquele gorducho” (Feridun).Quanto aonetopara oqual tricotavaumsuéter tricolornaquelesdias,agora tinhaexatamente trintaanose, semprequeviana televisãoumfilmeantigonoqualsuaavótrabalhava,malconseguiaconteroriso,mastambémficavachocadoaovercomoIstambulerapobrenaqueletempo.Basri,obarbeirodeNişantaşı,tambémfoimeubarbeirocertaépoca.Aindaestavatrabalhandoe

tendiaafalarcomafetoerespeitomaissobreMümtazBeyquesobreKemalBey.MümtazBeyeraumhomemafável,generoso,debomcoração, semprecomumapiadapronta.NãodescobrinadaquevalesseapenacomBasri,obarbeiro,tampoucocomHilmi,oBastardo,esuamulher,Neslihan,HayalHayati,SalihSarılı(outrofrequentadorassíduodoPelür)ouKenan.Ayla,avizinhadotérreoqueFüsunescondiadeKemal,moravaagoranumatransversaldeBeşiktaşcomomaridoengenheiroeosquatrofilhosdocasal,omaisvelhodosquaisjáestavanauniversidade.ElamecontouquedavagrandevaloràamizadedeFüsunequeadoravatudonela— suaalegriadeviver, suapresençadeespírito,amaneiracomoela falava— apontodeadotá-lacomomodelo,mas infelizmenteFüsunnuncacorresponderaaseudesejodeumaamizademaispróxima.AsduasjovenssevestiamesaíamjuntasparairaocinemaemBeyoğlu.UmamigodasredondezasquetrabalhavacomolanterninhanoTeatroDormen as deixava assistir aos ensaios. Depois, paravam em algum lugar para comer umsanduícheetomarayran,protegendoumaàoutradoshomensqueasincomodavam.ÀsvezesiamaVakko ou a alguma outra loja da moda, fazendo de conta que pretendiam comprar algo, e sedivertiammuito experimentando roupas e olhando-se no espelho. Às vezes, podiam estar rindo econversandoquandoFüsunsefixavarepentinamenteemalgumacoisaetodaasuaalegriasumianoar— como acontecia também no meio de um filme—, mas jamais contava a Ayla o que aincomodava.TodomundonavizinhançaacompanhavaasidasevindasdeKemalBey—sabiamqueeraricoequenãoeramuitocertodacabeça—,masninguémfalavadeamor.Comotodomundoque vivia emÇukurcuma, Ayla não sabia de nada do que tinha acontecido entre Füsun eKemalanteriormente,e“dequalquermaneira”elanãoconheciamaisninguémnaquelaárea.O Cravo-Branco tinha, ao cabo de vinte anos, ascendido de colunista social a editor do

suplemento diário sobre celebridades num dos maiores jornais do país. Além disso, editava umarevistamensaldefofocasqueseconcentravanosescândalosecasosamorososdasestrelasdocinematurco e dos seriados de televisão. Como tantos jornalistas cujasmatérias sem fundamento tinhammagoadoaspessoasoumesmodestruídoassuasvidas,esquecera-setotalmentedoquetinhaescritosobreKemal,pedindo-mepara lhe transmitir seuscumprimentos,comseurespeitomaisprofundopor suamãe,que tinhaemaltaestima,VeciheHanım,aquemele tinhaohabitode telefonarembuscadeinformaçõesdevezemquandoatémuitopoucotempoatrás.Imaginandoqueeuotivesseprocuradopara falardeum livroqueestavaescrevendo, envolvendoartistasdecinemaeportantocapazdeobterumagrandevendagem,mostrou-sesimpáticoemaisqueempenhadoemsuaofertadeajuda:eusabiaqueofilhodocasamentofracassadodePapatyacomoprodutorMuzaffer,emboraaindamuitojovem,eradonodeumadasmaioresagênciasdeturismodaAlemanha?Feriduncortaratodososlaçoscomomundodocinemaparafundarumaagênciadepublicidade

altamentebem-sucedida.QuandosoubequeelebatizaraaagênciadeChuvaAzul,percebiquenão

Page 388: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

tinhaabandonadoossonhosdajuventude,masnãomeatreviaperguntarsobreofilmequeacabaranunca sendo feito. Feridun dirigia comerciais cheios de bandeiras turcas e jogos de futebol,exagerandooorgulhopelomodestosucessointernacionaldosbiscoitosturcos,dosjeansturcos,dosbarbeadoresturcosedosbandidosturcos.OuvirafalardosplanosqueKemalBeytinhadeabrirummuseu, mas fui eu quem lhe anunciei que estava escrevendo um livro “contando a história deFüsun”: com uma franqueza extraordinária, escolhendo as palavras com cautela, ele me contoucomosótinhaseapaixonadoumaveznavida,masqueFüsunjamaisgostaradele,equeassimtinhatomadoocuidadodenão seapaixonardenovoporelaquando secasaram,especialmenteporquesabiaqueelasósecasaracomeleporquetinhasido“obrigada”.Gosteidahonestidadedele.Quandoestava deixando seu elegante escritório, ele me pediu com a mesma cortesia cautelosa quetransmitisse um abraço seu para “Kemal Bey”, depois do queme avisou, de testa franzida: “Se osenhorescreveralgumacoisafalandomaldeFüsun,OrhanBey,podetercertezadequeeuvouatrásdosenhor”.Depois,recobrandoosmodosleveserelaxadosquelheiamtãobem,pediu-meumfavor:seráqueelepoderiausaraprimeira frasedomeulivroYeniHayat [Anovavida]numacampanhapublicitáriaparaaBora,umnovoprodutodogigantedosrefrigerantesqueantesfabricavaoMeltem,comoqualsuaagênciatinhalaçosantigos?Com o que recebeu ao se aposentar, Çetin Efendi comprou um táxi, que alugava para outro

motorista,emboraàsvezes,apesardaidadeavançada,saíssecomelepelasruasdeIstambul.Quandonosencontramos,numpontodetáxideBeşiktaş,elemecontouqueKemalnãomudaranadadesdequeeramenino:naessência,eraumapessoaqueaproveitavacadamomentodavida,sempreabertoparaomundoeasoutraspessoas,edominadoporumotimismodecriança.Nessesentido,nãoeraestranho, perguntei, que sua vida tivesse sido dominada por uma paixão tão sombria?Mas se eutivesse conhecido Füsun, explicou-me Çetin Efendi, eu teria entendido por que Kemal Bey seapaixonaratantoporessamulher.Eles—FüsuneKemal—eramnofundoalmasboaseinocentesque se encaixavam perfeitamente,mas, comoDeus tinha decidido não os deixar ficar juntos, nósmortaisnãoestávamosemposiçãodequestionarosacontecimentos.Emnossoprimeiroencontroassimquevoltoudeumalongaviagem,depoisqueKemalBeyme

faloudosmuseusquevisitara,contei- lheminhaconversacomÇetinEfendi, repetindopalavraporpalavraoqueeledisserasobreFüsun.“Osvisitantesdomeumuseuficarãosabendoumdiadanossahistória,edequalquermaneiraem

seus corações saberão que tipo de pessoa Füsun era,OrhanBey”, disse.Começamos a beber emseguida—aessaalturaeurealmentegostavadebebercomele.“Enquantoandaremdevitrineemvitrineedecaixaemcaixacontemplandoessesobjetos,os visitantes irãoentenderdequemaneiraolheiparaFüsunduranteoitoanos,e,quandoviremcomoeuobservavaatentamentesuasmãos,seusbraços,asondulaçõesdoseucabelo,amaneiracomoelaapagavaseuscigarros,ojeitocomofranziaatestaousorria,seuslencinhos,seusprendedoresdecabelo,seussapatoseacolherquesegurava(eunãodisse: “Mas,KemalBey,nãovai falardosbrincos?”),hãode saberqueoamoréumaatençãoprofunda,umacompaixãoprofunda…Por favor termineo livroagoraeescreva tambémquecadaobjetodomuseudeverá ser suavemente iluminadoporuma luz vindadedentrodas vitrines, parapodercorresponderàminhaatençãointensaedevotada.Quandoosvisitantesdomeumuseuvirem

Page 389: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

esses objetos, devem sentir respeito pelo meu amor e compará-lo a memórias que eles próprioscultivem.Assalasnuncadevemficar lotadas,paraqueovisitantepossaexaminarcomcalmacadaumdosobjetose veros retratosdas áreasde Istambulquepercorremosdemãosdadas, formandotranquilamenteumaimpressãogeraldacoleçãocomoumtodo.Naverdade,querodeclararaquiquenãomaisdecinquentapessoasdevem ser admitidas a cada veznoMuseuda Inocência!Gruposeescolasprecisammarcarhoraparavisitarnossomuseu!NoOcidente,osmuseusestãoficandocadavezmaischeiosdegente,OrhanBey.Asfamíliaseuropeiassaemjuntasaosdomingosparavisitarumgrandemuseu,assimcomocostumávamossairdecarroparapassearaosdomingospelasmargensdoBósforo.Sentam-senosrestaurantesdosmuseuseriem,comofazíamosnosrestaurantesdoBósforo.Proustcontacomoamobíliadacasadesuatiafoivendidaparaumbordeldepoisqueelamorreu,ecomocadavezqueeleviasuascadeirasemesasnaquelelugartinhaaimpressãodequeosmóveischoravam. Quando as multidões de domingo se espalham nos museus, os objetos colecionadoschoram.Nomeumuseu, pelomenos, não vão estar arrancados da casa a que pertencem.TenhomedodequeessamaniademuseusnoOcidenteváinspirarosricosincultoseinsegurosdestepaísacriarpretensosmuseusdeartemodernacomrestaurantesanexos.Issoapesardofatodenãotermoscultura,bomgostooutalentonaartedapintura.Oqueosturcosdeviamveremseusmuseusnãosãoessas imitações ruins da arte ocidental, mas suas próprias vidas. Em vez de exibir as fantasiasocidentalistasdosnossosricos,nossosmuseusdeviamnosmostrarnossasprópriasvidas.MeumuseucomportaavidaquecompartilheicomFüsun,atotalidadedanossaexperiência,etudoqueeulhedisseéverdade,OrhanBey.Algumascoisaspodemnãoficartotalmenteclarasparatodososleitoresouvisitantes,pois,emboraeulhetenhacontadoaminhahistóriaedescritominhavidacomamaiscompleta franqueza, nem eu mesmo tenho como saber o quanto a entendi em sua totalidade.Podemos relegar essa tarefa a estudiosos futuros e aos artigos que eles escreverãopara a revista domuseu,Inocência.QuesejamelesaestabelecerasrelaçõesestruturaisentreospregadoresdecabeloeospincéisdeFüsuneofalecidocanárioLimon.Seasgeraçõesfuturasacharemexageradoorelatodanossa vida, se ficarem perplexos diante das dores que sofri em nome do amor, do sofrimento deFüsun, damaneira como evitávamos contemplar isso tudo trocando olhares na hora do jantar ouencontrandoafelicidadeemficarmosdemãosdadasnapraiaenocinema,osguardasdeveminsistircomos incrédulosque tudoaqui é apresentadode formaverdadeira.Masnão sepreocupe, tenhocerteza de que as gerações futuras hão de entender o nosso amor. Os estudantes universitáriossatisfeitos que virão de ônibus de Kayseri até aqui dentro de cinquenta anos, os turistas japonesesenfileirados à porta com suas câmeras, asmulheres solteiras que acabarãonomuseudepois de seperderem nas ruas e os amantes felizes da feliz Istambul de amanhã hão de constatar aqui—examinando as roupas de Füsun, os saleiros, os relógios de parede, osmenus dos restaurantes, asantigasfotosdeIstambul,osbrinquedoscomqueambosnosdivertimosnainfânciaeoutrosobjetos— que uma compreensão profunda do nosso amor e das nossas vidas é virtualmente inescapável.Esperoquemuitos visitantes tambémacorramparavernossasexposições temporárias,dedicadasafotografiasdenavios,tampasderefrigerante,caixasdefósforo,pregadoresderoupa,cartões-postais,fotos de estrelas de cinema e celebridades, e brincos reunidos por meus colegas colecionadoresobsessivos,meus estranhos irmãos, que conheci em seus depósitos de cacarecos ou através de sua

Page 390: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Associação.Essas exposições e ashistórias por trás delas tambémdevempor sua vezmerecer seuspróprioscatálogoseromances.EnquantoosvisitantesadmiramosobjetosehomenageiamamemóriadeFüsuneKemal,comadevidareverência,haverãodeentenderque,comoashistóriasdeLeylaeMecnunouHüsneAşk,oquetemosaquinãoéumasimpleshistóriadeamor,masdetodooreino,ouseja,deIstambul.Aceitamaisumrakı,OrhanBey?”Nas primeiras horas de 12 de abril de 2007— dia do quinquagésimo aniversário de Füsun—,

KemalBasmacı,heróidonossoromanceefundadordonossomuseu,estavaadormecidonumquartoespaçosodandoparaaviaManzoninoGrandHoteletdeMilan,oestabelecimentoondesempresehospedavaemsuasvisitasàquelacidade,quandosofreuumataquecardíacoemorreu,aossessentaedoisanosdeidade.KemalBeyaproveitavacadaoportunidadequetinhaparairaMilão,para“viver”(como ele dizia) o Museo Bagatti Valsecchi, que considerava “um dos cinco museus maisimportantesdaminhavida!”. (Quandomorreu, já tinhavisitado5723museus.)“Osmuseus(1)nãodevemserpercorridos,masvividos,(2)devemcontercoleçõesqueexprimamaalmadessa‘vivência’,(3)naverdadenãosãomuseus,massimplesgalerias,quandoseremovemsuascoleções.”Essessãoosúltimospensamentosdelequeanotei.OquemaisencantavaKemalBeynaquelacasa(reformadapordois irmãos no século XIX para replicar um palazzo renascentista do século XVI) era que suamagnífica coleção histórica compreendia apenas os objetos comuns e cotidianos da vida dos doisirmãos(ascamas,oslampiões,osespelhosrenascentistas,alouçaeaspanelasantigas).Amaioriadaspessoascujosnomesrelacioneinoíndicecompareceramaseufuneralnamesquita

deTeşvikiye.AmãedeKemal,Vecihe,assistindodavarandadecasacomoeraseucostume,tinhaacabeça coberta. Nós que nos espalhamos lacrimosos pelo pátio damesquita podíamos ouvir seusprantosenquantoelasedespediadofilho.Muitos dos parentes e pessoas mais próximas a Kemal Bey tinham se recusado a me receber

enquanto ele ainda estava vivo,mas nos primeirosmeses depois de seu funeral começaram ameprocurar,umdepoisdooutro,numaprogressãometódicaque,emboraestranha,tinhaasualógica.A relutância em falar comigo atribuo à impressão falsamas amplamente difundida de quemeuslivrospassadosemNişantaşıdenegriamimpiedosamentetodomundo.Tristemente,oscomentárioserumorestinhamsidotantos,alémdasacusações,queamaioriadaspessoasacreditavaqueeutinharepresentadoincorretamentenãosóminhamãe,meuirmãomaisvelho,meutioeorestodaminhafamília,comoaindamuitosoutrosnotáveisdeNişantaşı,entreelesocélebreCevdetBey,seusfilhosesua família; meu amigo, o poeta Ka; e Celâl Salik, o famoso colunista assassinado, que eu tantoadmirava; o conhecido lojista Alaaddin; além de altos dignitários do governo, líderes religiosos ecomandantesmilitares.ZaimeSibel tinhammedodemimsemjamais teremlidomeuslivros.Eleficaramuitomais ricodoque jáerana juventude.OrefrigeranteMeltemdeixaradeexistir,masaempresa crescera. Receberam-me com muita delicadeza em sua casa magnífica nas encostas deBebek com vista para o Bósforo, honrados, disseram eles, por receber a pessoa que empreenderacontarahistóriadavidadeKemal(osmaischegadosaFüsundiziamtratar-sedahistóriadela).Maseunãoqueriatornarminhahistóriaunilateral:queriaouvirtambémaversãodeles.Antesdemaisnada,quiseramcontar-meumagrandecoincidência:meiodiaantesdamortede

KemalBey,natardede11deabril,tinhamseencontradoporacasocomelenasruasdeMilão.(Na

Page 391: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

mesmahorasentique tinhammeconvidadoespecialmentepara falardaquilo.)Zaim,Sibele suasduas filhas belas e inteligentes, que se juntaram a nós no jantar, Gül, de vinte anos, e Ebru, dedezoito, tinhamfeitoumaviagemde trêsdiasaMilão, sópordiversão,unpetit séjour, comodisseSibel. Quando Kemal viu a família com suas casquinhas multicoloridas de sorvete de laranja,morangoemelão,olhandoasvitrineserindojovialmenteenquantopasseavampelarua,primeiroviuapenasGül,esuasemelhançacomamãeeratãograndequeelesedirigiuaelaedisse:“Sibel!Sibel!Soueu,Kemal”.“Gülseparecemuitocomcomoeueraaosvinteanos,enaquelediaporacasoestavausandoum

xalede tricôcomqueeuandavanaquele tempo”,disseSibelHanım, radiantedeorgulho.“Masopobre Kemal estava com um ar muito cansado e desfeito, alquebrado e profundamente infeliz.OrhanBey,fiqueitãotristeporvê-lodaquelejeito.Enãofuisóeu—Zaimtambémficouabalado.OhomemdequemeuficaranoivanoHilton,queamavatantoavida,erasempretãoencantador,tãodivertido,tinhadesaparecido,eemseulugarsurgiraessevelhoisoladodomundoedavida,comorosto tristeeumcigarropendendodaboca.Seelenão tivesse reconhecidoGül, jamais teríamosvisto que era ele. Não tinha só envelhecido: reduzira-se a destroços. Fiquei com tanta pena dele.Especialmenteporqueeraaprimeiravezquenosvíamosnemseiemquantosanos.”“TrintaeumanosdepoisdoúltimojantardevocêsnoFuaye”,disseeu.Fez-seumsilêncioassustador.“Quer dizer que ele lhe contou tudo!”, disse Sibel algum tempo depois, com a voz cheia de

sofrimento.Enquantoosilêncioseprolongava,percebioquenaverdadeelesqueriammedizer:queriamque

osleitoressoubessemcomosuavidaemcomumeramuitomaisfelizqueahistóriaqueeucontava,ecomoeraumavidabelaenormal.Mas depois que as meninas foram para seus quartos, enquanto tomávamos nossos conhaques,

percebi que havia mais uma coisa que o casal tentava dizer. Depois de sua segunda dose, Sibelexplicou-sedeummododiretoqueeuadmirei, semperder tempocomrodeioscomoZaim tinhafeito: “No final do verão de 1975, depois que Kemal me confessou que estava apaixonado pelafalecida Füsun Hanım, fiquei com pena do meu noivo e decidi ajudá-lo. Com a melhor dasintenções, fomos ficar juntos em nossa yalı de Anadoluhisarı, para que eu pudesse ajudá-lo arecuperar a saúde, Orhan Bey, e passamos lá um mês”. (Na realidade, tinham sido três.) “Naverdade,nãotemmaisimportância…Osjovensdehojenemsepreocupammaiscomcoisascomovirgindade.”(Oquetampoucoeraverdade.)“Mas,mesmoassim,querialhepedirespecialmentequenãofizessemençãoaesseperíodonoseulivro,porqueéhumilhanteparamim…Podenemparecermuito importante,mas foiexpressamenteporcausadoscomentáriosqueela fez sobreessahistóriaquerompicomminhamelhoramiga,Nurcihan.Asmeninasnãovão ligar,masasamigasdelas,etantosfofoqueiros…Porfavor,nãodeixedeatenderaessepedido…”ZaimmedisseoquantoamavaKemal—umapessoatãosincera,cujaamizadeelesempretentara

conservar—eoquantosentiasuafalta.“ÉverdadequeKemalreuniutodosospertencesdeFüsunHanım?Vaimesmoabrirummuseu?”,perguntouele,emparteadmiradoeempartecommedo.“Sim”,disseeu.“E,comestelivro,euvouseroprincipaldivulgadordomuseu.”

Page 392: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Quandofuiemboradacasadeles,bemtarde,masaindarindoeconversandocomeles,pus-meporuminstantenolugardeKemal.Seeleaindaestivessevivo,setivesseretomadoasrelaçõescomSibel e Zaim (o que teria sido possível, ao contrário do que ele imaginava), Kemal estaria saindodaquelacasacomomesmosentimentoqueeu— satisfeitocomsuavidasolitária,massentindo-seculpadoporela.“Orhan Bey”, disse Zaim junto à porta. “Por favor não se esqueça do pedido de Sibel.Nós da

empresaMeltem,claro,queremosfazerumadoaçãoparaomuseu.”Naquelanoite,tambémconcluíqueseriainútilconversarcomoutraspessoas:nãoqueriacontara

históriadeKemalcomoeravistapelosoutros;queriaescrevê-ladamaneiraqueelemecontara.EfoiporsimplesteimosiaquefuiaMilão,ondedescobrioqueperturbaratantoKemalnodiaem

queesbarroucomSibel,Zaimeas filhas:poucoantesdaqueleencontrocasualele foraaoMuseoBagatti Valsecchi, descobrindo que se encontrava num estado de abandono terrível e que, numesforçoparaarrecadarfundos,partedeletinhasidoalugadaparaumaboutiquedafamosadesignerdemoda JennyColon.Asmulheresque trabalhavamcomoguardasdomuseu,emseusuniformespretos,prorromperamemlágrimasquandolhesfaleidamortedele,eosdiretores,queconfirmaramque um cavalheiro turco vinha visitá- los invariavelmente com intervalo de poucos anos, tambémficaramabalados.Eissobastouparameconvencerdequenãoprecisavaouvirmaisnadaparaterminarmeulivro.Só

gostariadetervistoFüsuneouvidooqueteriaadizer.Mas,antesquepudessevisitaraspessoasqueaconheciammelhor, havia os convites dos que temiammeu livro e faziam questão deme receberpreventivamenteemsuascasas,convitesqueeusóaceitavapeloprazerdacompanhiaedosjantares.Foiassimque,nodecorrerdeumaceiamuitorápida,Osmanmeaconselhouanãoescreverde

todo aquela história. Sim, podia ser verdade que a negligência de seu falecido irmão tivesseprecipitadoafalênciadaSatsat,mastodasasoutrasempresasdeseufalecidopaiparticipavamhojedoboomexportadordaTurquia.Tinhammuitosconcorrentesmal- intencionados,eumlivrocomoeste,alémdecausarbastantepesare infinitas fofocas,haviade transformaraHoldingBasmacıemmotivo de piadas e, por associação, dar aos europeus mais uma desculpa para rir de nós e noshumilhar.Aindaassim,conseguideixar suacasacomumadorável souvenir,umaboladegudedainfânciadeKemalqueBerrinHanımmeentregounacozinha,foradasvistasdomarido.Quanto a tiaNesibe, a quemKemalme apresentara, nãome contou nada de novo quando fui

visitá- la em seu apartamento na rua Kuyulu Bostan. Agora não chorava mais só por Füsun, mastambémporKemal,quedescreviacomoseu“únicogenro”.Sófaloudomuseuumavez:possuíaumvelhoraladordemarmeloe,tendodecididoprepararumpoucodegeleiadafruta,estavapensandoseoraladorquenãoconseguiaencontraremlugarnenhumnãoteriatalvezidopararnomuseu.Euhaviadesaber.Seestivesse,seráqueeupoderialevarparaelaemminhapróximavisita?Quandonosdespedimos junto à porta, ela disse: “OrhanBey, o senhorme lembra deKemal”, e se desfez emlágrimas.Seismeses antes de suamorte, Kemalme apresentara a Ceyda, a confidentemais próxima de

Füsun,queameuversabianãosódetodosossegredosdelacomoaindaeraquemmelhorentendiaKemal. Esse encontro ocorrera em parte porqueCeydaHanım gostava de romances e queriame

Page 393: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

conhecer.Seusfilhos,agoraosdoiscomtrintaepoucosanoseengenheiros,estavamcasados,esuaslindasesposas,cujasfotoselamemostrou,jálhetinhamdadosetenetos.Seumaridorico(eraofilhodafamíliaSedirci!),homemmuitomaisvelhodoqueela,ligeiramenteembriagadoeumtantosenil,nãodemonstrouomenorinteressepornósounossahistória,mesmoquandoKemaleeuadmitimosnossogostotalvezexcessivopelorakı.CeydamecontoucomumsorrisosimpáticocomoFüsuntinhaencontradoobrincoqueKemal

deixara no banheiro dos Keskin na noite de sua primeira visita, e como, embora tenha contadoimediatamenteaCeyda,asduasdecidiramqueFüsundeviafazerdecontaquenãoviranada,sóparasevingardeKemal.ComotantosdossegredosdeFüsun,essahistóriaKemalBeyjáhaviaextraídodeCeydaanosantes.Esorriadolorosamentequandomecontara,servindo-nosmaisduasdosesderakı.“Ceyda”,disseKemalemseguida,“quandoeuaprocuravaatrásdenotíciasdeFüsun,vocêeeu

semprenosencontrávamosemMaçka,Taşlık.Enquantovocême falavadeFüsun,euadmiravaavista de Dolmabahçe deMaçka. Quando verifiquei recentemente, descobri que acumulei muitasfotografiasdessepanorama.”Comoestávamosfalandodefotosetalveztambémemhomenagemaseusvisitantes,CeydaHanım

admitiuquepoucosdias antes tinha encontradouma fotografia queKemalBeynunca tinha visto.“Estávamos muito animadas”, disse ela. A foto, tirada durante a final do concurso de beleza doMilliyetem1973,mostravaHakanSerinkancochichandoparaFüsunasperguntassobreculturaqueiriam lhe fazer quando subisse ao palco. O famoso cantor, hoje deputado por um partidofundamentalista,ficaraencantadocomFüsun.“Éumapenaquenemelanemeutenhamosvencido,OrhanBey,masnofinalnoscomportamos

comoasboasestudantesdeliceuqueéramos,edepoisrimosdechorarnofimdanoite”,disseCeyda.Numsegundo,afotografiadesbotadaapareceunamesinhadecentrodemadeira;nomomentoemqueaviu,KemalBeyficoumuitopálidoerecaiunumlongosilêncio.Como o marido de Ceyda não tinha o menor gosto pela história do concurso de beleza, não

ficamosmuitomaistempoolhandoparaaantigafotografiadeFüsun.Mas,nofinaldanoite,Ceyda,compreensivacomosempre,deu-adepresenteaKemalBey.DepoisdedeixaracasadeCeydaemMaçka,caminheiatéNişantaşıcomKemalBey,atravessando

osilênciodanoite.“VoucomvocêatéoedifícioPamuk”,disseele.“Hojeànoitenãovoudormirnomuseu,mascomminhamãe,emTeşvikiye.”PoucoantesdechegarmosaoedifícioPamuk,bememfrenteaoedifícioMerhamet,eleparoue

sorriu.“OrhanBey,liseulivroNeveatéofim”,disseele.“Nãogostodepolítica.Entãoporfavornãose

ofenda se eudisser que achei o livroum tantopenoso.Mas gostei do final.No fimdonosso livrogostariadefazeromesmoqueacontececomopersonagemdeNeveefalardiretamentecomoleitor.Tenhoodireito?Quandoolivrovaificarpronto?”“Depois do seu museu”, respondi. A essa altura, esta era uma piada frequente entre nós dois.

“Quaissãosuasúltimaspalavrasparaoleitor?”“Nãovoudizer,comooseupersonagem,queosleitoresnãotêmcomonosentenderdefora.Pelo

contrário, os visitantes do museu e as pessoas que lerem o seu livro haverão certamente de nos

Page 394: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

entender.Masháoutracoisaqueeuqueriadizer.”Tiroua fotografiadeFüsundobolsoe,à luz fracado lampiãoemfrenteaoedifícioMerhamet,

contemplou-acomamor.Aproximei-medele.“Elaélinda,nãoé?”,disse-me,assimcomoseupailhedisseratrintaetantosanosantes.E lá estávamos nós, dois homens lado a lado, olhando com amor, admiração e respeito para a

fotografiadeFüsundemaiôpretobordadocomonúmeronove—paraseusbraçoscordemel,eseurosto (quenão traíanenhumaalegria, só tristeza), e seucorpoesplêndido, ambosparalisadospelaprofundidadedesuacondiçãohumana,paraoesplendordesuaalma,adespeitodostrintaequatroanosquetinhamtranscorridodesdearevelaçãodaquelafoto.“Porfavorincluaestafotoemseumuseu,KemalBey”,disseeu.“Minhasúltimaspalavrasnolivrosãoestas,OrhanBey,porfavornãoseesqueçadelas…”“Nãomeesquecerei.”Beijouamorosamentea fotografiadeFüsuneaguardoucomcuidadonobolsoda frentedeseu

paletó.Eentãosorriuparamim,comarvitorioso.“Quetodomundosaibaquetiveumavidamuitofeliz.”

2001-2,2003-8

Page 395: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

ORHANPAMUKmanifesta suagratidãoaSilaOkurporcuidarda fidelidadeao texto turco;a seueditoreamigoGeorgeAndreou,porsuapreparaçãometiculosadatraduçãoparaoinglês;eaKiranDesaipordoargenerosamenteseutempoàleituradotextofinaleporsuasvaliosasideiasesugestões.

Page 396: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

SPENCERPLATT/GETTYIMAGES

ORHANPAMUKnasceuem1952,emIstambul,naTurquia.PrêmioNobelde literaturade2006,éautorderomanceseensaios,efoitraduzidoparamaisdequarentaidiomas.Desuaautoria,aCompanhiadasLetraspublicou,Ocastelobranco,Istambul,Olivronegro,Amaletadomeupai,MeunomeéVermelho,NeveeOutrascores.

Page 397: O Museu da Inocência - le-livros.comle-livros.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Museu-da-Inocencia... · 51. A felicidade é estar perto de quem você ama, e mais nada 52. Um filme

Copyright©2008byOrhanPamukApresentetraduçãofoifeitacombasenatraduçãoinglesaTheMuseumofInnocence,deMaureenFreelyGrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990,queentrouemvigornoBrasilem2009.TítulooriginalMasumiyetMüzesiCapawarrakloureiroFotodecapaAhmetIsikciMapaMirayOzkanPreparaçãoJanePessoaRevisãoAnaMariaBarbosaErikaNakahataISBN978-85-438-0264-0TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORASCHWARCZLTDA.

RuaBandeiraPaulista,702,cj.3204532-002—SãoPaulo—SPTelefone:(11)3707-3500Fax:(11)3707-3501www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.br