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O MUSEU HISTÓRICO DA CIDADE DE CRUZEIRO DO OESTE: UMA DISCUSSÃO DE HISTÓRIA LOCAL E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL Nanci Edilani Correa (SEED-PR PDE) 1 Rosana Steinke (DHI-UEM) 2 RESUMO A inserção da História Local nas Diretrizes Curriculares para o Ensino de História nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio do Estado do Paraná vem ao encontro da necessidade de maior interação entre o aluno e a história da sua comunidade. Tal proposta apresenta inúmeras possibilidades e desafios ao professor de História ao inserir o aluno enquanto sujeito do processo histórico, possibilitando diversos olhares sobre sua localidade. Neste processo, o contato com diferentes documentos históricos é importante para que os alunos possam percebê-los como lugar de memórias e mesmo de contradições. No projeto, cujas reflexões se apresentam neste artigo, foi utilizado o acervo de fotografias de um museu local, bem como o próprio museu edificado, buscando ampliar a discussão sobre o passado e as diferentes memórias da comunidade. A partir de um estudo de caso, ao analisar um acervo local, apontando as leituras de suas diversas memórias, buscou-se ampliar as discussões para se trabalhar a história local, a memória e o patrimônio. Palavras-chave: História Local; Memória; Educação patrimonial. ABSTRACT The insertion of Local History in the Curricular Guidelines for History Teaching in the Final Years of Elementary and High School of Paraná State takes in consideration the necessity of a bigger interaction between students and their community’s history. Such proposal presents various possibilities and 1 Professora de História da Rede Estadual de Ensino do Paraná. Turma PDE 2008. Orientada pela professora Rosana Steinke da Universidade Estadual de Maringá. 2 Orientadora. Profª assistente do Depto de História, Mestra em Arquitetura e Urbanismo(USP). Doutoranda em História (UFPR).

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O MUSEU HISTÓRICO DA CIDADE DE CRUZEIRO DO OESTE: UMA DISCUSSÃO DE HISTÓRIA LOCAL E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

Nanci Edilani Correa (SEED-PR PDE)1 Rosana Steinke (DHI-UEM)2

RESUMO

A inserção da História Local nas Diretrizes Curriculares para o Ensino de

História nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio do Estado

do Paraná vem ao encontro da necessidade de maior interação entre o aluno e

a história da sua comunidade. Tal proposta apresenta inúmeras possibilidades

e desafios ao professor de História ao inserir o aluno enquanto sujeito do

processo histórico, possibilitando diversos olhares sobre sua localidade. Neste

processo, o contato com diferentes documentos históricos é importante para

que os alunos possam percebê-los como lugar de memórias e mesmo de

contradições. No projeto, cujas reflexões se apresentam neste artigo, foi

utilizado o acervo de fotografias de um museu local, bem como o próprio

museu edificado, buscando ampliar a discussão sobre o passado e as

diferentes memórias da comunidade. A partir de um estudo de caso, ao

analisar um acervo local, apontando as leituras de suas diversas memórias,

buscou-se ampliar as discussões para se trabalhar a história local, a memória e

o patrimônio.

Palavras-chave: História Local; Memória; Educação patrimonial.

ABSTRACT

The insertion of Local History in the Curricular Guidelines for History Teaching in the Final Years of Elementary and High School of Paraná State takes in consideration the necessity of a bigger interaction between students and their community’s history. Such proposal presents various possibilities and

1 Professora de História da Rede Estadual de Ensino do Paraná. Turma PDE 2008. Orientada pela professora Rosana Steinke da Universidade Estadual de Maringá. 2 Orientadora. Profª assistente do Depto de História, Mestra em Arquitetura e Urbanismo(USP). Doutoranda em História (UFPR).

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challenges to the History teacher upon inserting the student as subject of the historical process, making possible diverse observations on their localities. In this process, the contact with different historical documents is important so the students can perceive them as place of memories and even of contradictions. In the project, in which we present the reflections of this article, a local museum bank of photographs was used, as well as the whole museum building itself, searching to widen the discussion about the past and the community’s different memories. Starting from a study case, the analysis of a local collection, the widening of different readings of different memories, of memory and heritage were intended. Key-words: Local History; Memory; Heritage education.

1. Educação patrimonial: uma breve introdução.

O presente artigo tem a finalidade de refletir sobre possibilidades

pedagógicas do uso de um museu histórico local a partir do seu acervo

iconográfico. O objetivo é estimular nos alunos e na comunidade em geral o

senso de preservação da memória social coletiva, como condição

indispensável à construção de uma nova cidadania e identidade nacional plural

(ORIÁ, 2005).

A opção em eleger tal temática no Projeto de Intervenção estabelecido

pelo Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE) da Secretaria Estadual

de Educação do Paraná (SEED - PR) reside no fato de que a imagem por si só

tem a capacidade de despertar o interesse imediato do observador, oferecendo

assim inúmeras possibilidades para uma ampla discussão do seu valor como

objeto de estudo historiográfico. Deve-se levar em conta, porém, que “a

fotografia que parecia falar por si, revela que é daquele que a avista que deve

partir os significados que lhes dão sentido. Só assim poderá tornar-se um

relato” (ROCHA JUNIOR, 2007, p.03).

Ao se discutir educação patrimonial, é imprescindível que se fale da

memória e da história local. Entre os autores que discutem a questão podemos

citar Maurice Halbwachs e Pierre Nora. Halbwachs, ao falar da memória

coletiva, enfatiza a força dos diferentes pontos de referência que estruturam a

memória e que a inserem na memória da coletividade a que o indivíduo

pertence; Nora analisa os monumentos, o patrimônio arquitetônico e seus

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estilos, como lugares da memória, bem como as paisagens, datas e

personagens históricas, de cuja importância se lembra constantemente;

também insere a discussão sobre as tradições e os costumes, por meio do

folclore, música e tradições culinárias, entre outros (POLLAK, 1989, p. 3).

Conforme Saballa:

A proposta da Educação Patrimonial é promover a integração de diferentes grupos societais constituintes de uma dada comunidade, objetivando a motivação de ações que possibilitem a emergência de diferenciadas proposições e estabelecimento da defesa e ativação da memória. O que se busca é a tomada de consciência das comunidades sobre a relevância da geração, valorização e resguardo de patrimônios culturais locais. É a recorrência ao cultivo da sensibilidade da população como forma de instrumentalizá-la dentro de seus universos comuns para identificação, entendimento e préstimo ao patrimônio cultural no seu âmbito de atuação (SABALLA 2007, p. 23).

A educação patrimonial, embora atualmente seja um tema candente,

contemplado direta ou indiretamente nas diretrizes curriculares, é ainda um

assunto novo para os professores do Ensino Médio e Fundamental. Tal valor

pode ser observado na defesa da inserção de temas como a história local e

cultural de diferentes populações/comunidades. No Brasil, tal conceito começa

a ser discutido ainda nos anos de 1970 por alguns segmentos da sociedade.

No entanto, apenas na década de 1980 é que começa a se firmar uma política

cultural de preservação no Brasil.

Segundo Pelegrini:

A educação patrimonial formal e informal constitui uma prática educativa e social que visa à organização de estudos e atividades pedagógicas interdisciplinares e transdisciplinares. O objetivo da interdisciplinaridade centra-se na tentativa de superar a excessiva fragmentação e linearidade dos currículos escolares. A transversalidade, alcançada por meio de projetos temáticos, é um recurso pedagógico que visa auxiliar os alunos adquirir “uma visão mais compreensiva e crítica da realidade”, bem como “sua inserção e participação na realidade” (PELEGRINI, 2009, p. 36).

Conforme Horta, o patrimônio cultural é um conjunto de bens e valores

tangíveis e intangíveis, expresso em palavras, objetos, monumentos e sítios,

ritos e celebrações, hábitos e atitudes (HORTA, 1999, p. 29). Assim, pode-se

dizer que o objetivo da educação patrimonial é colaborar para que os sujeitos

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tomem contato com os patrimônios locais, afirmando sua identidade cultural,

com apropriação e valorização de heranças materiais e imateriais. Portanto, os

fundamentos das mesmas estão vinculados com a preservação dos bens

culturais e resgate da memória, sendo uma ação social na medida em que

colabora na construção da identidade e da diversidade regional, bem como da

manutenção da ativação das tradições locais (SABALLA, 2007, p. 23).

Como uma práxis educativa e social, permite trabalhar com tal conceito,

buscando a consciência cidadã, proporcionando um debate acerca das

memórias, da importância dos sujeitos comuns, bem como da socialização da

memória coletiva, buscando desconstruir a “memória-poder” por meio das

experiências compartilhadas por grupos plurais (SABALLA, 2007;

HALBWACHS, 1990; HORTA, 1999).

2. História local e educação patrimonial: costurando algumas possibilidades.

A valorização da história local tem ocorrido concomitantemente ao

interesse pela história social. Ressalta-se que a produção historiográfica atual

tem buscado recuperar a história das pessoas comuns e apesar das muitas

críticas, entre elas de que as obras sobre história local reportam à história de

pequenas localidades, escritas por pessoas de diferentes segmentos sociais,

não necessariamente historiadores (SCHIMIDT; CAINELLI, 2005, p. 111), esse

interesse, especialmente no que se refere ao ensino de História, tem crescido à

medida que: Trata-se de uma forma de abordar a aprendizagem, a construção e a compreensão do conhecimento histórico com proposições que podem ser articuladas com os interesses do aluno, suas aproximações cognitivas, suas experiências culturais e com a possibilidade de desenvolver atividades diretamente vinculadas à vida cotidiana (CAINELLI, 2005, p.113).

Trabalhar a história da comunidade, do bairro ou pequenos povoados e

cidades, facilita, por parte dos alunos, a compreensão de

mudanças/permanências e (des) continuidades que se estabelece ao longo dos

processos históricos, promovendo a identificação do aluno com o mesmo.

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Estes fatores têm entusiasmado muitos professores a trabalharem sob esse

aspecto. Porém, ao trabalharmos a história local na perspectiva de que ela

aproxima a História do aluno, despertando o seu interesse, devemos estar

atentos para que a realidade imediata não venha a ser a única e importante

fonte de motivação de conhecimentos e instigadora de problematizações. Faz-

se necessário, portanto, sempre que possível, a interação da história local, com

outras localidades e até mesmo com ações históricas mais amplas, só assim a

experiência histórica do aluno ganha significado. É refletindo sobre seus

pressupostos que poderemos nos ater a uma seleção de conteúdos coerentes,

que venha ao encontro dos objetivos centrais da disciplina.

O ensino da história local pode ser extremamente instigante, à medida

que ela cumpre plenamente uma das principais finalidades da disciplina de

história. Assim, um dos objetivos do ensino de história consiste em fazer o aluno como partícipe do processo histórico. Tal compreensão, de um lado, deve levá-lo a entender que sua história individual resulta de um movimento processual e, de outro, a compreender que também ele faz a história (SCHMIDT; CAINELLI, 2005, p.125).

Ao entrelaçar pessoas de diversos segmentos sociais, muitas

aparentemente sem importância, a história local estabelece um vínculo com a

história do cotidiano, trazendo a tona um modo de vida, modo de morar e se

relacionar de pessoas que compuseram a vida de determinada comunidade na

qual o aluno está inserido. Ao perceber o contexto histórico e social em que

desenvolveu a história de sua localidade e a dinâmica desse contexto, o aluno

tem a possibilidade, a partir dessa experiência, de observar, questionar e

comparar os processos históricos de outras sociedades.

Pessoas comuns que compuseram o dia a dia de pequenas localidades

não foram pinçadas do seu cotidiano como meros elementos da curiosidade

alheia. Na verdade, histórias de vida por vezes consideradas singelas demais

para serem alçadas ao patamar de personagem histórico estão entrelaçadas a

um contexto histórico e social que merece uma reflexão sobre o seu papel

naquele espaço e momento histórico que está sendo objeto de estudo.

Falar de história local é falar da memória, como pontua Bittencourt

(2008) “a questão da memória impõe-se por ser a base da identidade, e é pela

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memória que se chega à história local”. A memória oferece elementos para a

construção histórica das localidades, é através do exercício de rememorar que

se faz o elo entre passado e presente “A memória é, pois, imprescindível na

medida em que esclarece sobre o vínculo entre a sucessão de gerações e o

tempo histórico que as acompanha” (ORIÁ, 2005, p.139).

Porém, memória e história não devem ser confundidas e para que se

faça uma reflexão é necessário que haja confronto e análise: “as memórias

precisam ser evocadas e recuperadas e merecem ser confrontadas”

(BITTENCOURT, 2008, p.170). Confrontar memórias individuais e coletivas

com outras fontes historiográficas abre o caminho para a composição da

história local.

Nessa perspectiva, os “lugares de memória” são de suma importância

para uma sociedade que tem perdido os referenciais históricos, que tem

relegado ao esquecimento o seu patrimônio histórico e cultural. Pode-se até

questionar o que tem sido preservado, de que segmentos sociais falam esses

lugares de memória, mas ignorá-los é também ignorar o próprio contexto

histórico e social que fizeram com que esses lugares fossem preservados em

detrimento de outros.

No início deste projeto havia o questionamento: como falar de “lugares

de memória” em uma pequena localidade com uma história recente?

Excetuando-se a bucólica igrejinha, os poucos referenciais históricos não

parecem tão antigos para que mereçam um olhar mais atento. Partiu-se, pois,

do princípio de que a participação da escola, através da educação patrimonial é

de vital importância para que o aluno perceba esses lugares como parte da sua

identidade cultural e exercício da sua cidadania.

O termo Patrimônio Cultural relaciona-se com a cultura e a memória de um povo, sendo os principais fatores de sua coesão e identidade, os responsáveis pelos liames que unem as pessoas em torno de uma noção comum de compartilhamento e identidade, noção básica para o senso de cidadania. (SPIAZZI, 2006, p.02)

Sendo assim, a escola como ambiente propício ao desenvolvimento das

noções de cidadania poderá, através da educação patrimonial, despertar no

aluno o interesse em conhecer não só o patrimônio edificado, mas também

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toda produção cultural, o que inclui o conhecimento, as técnicas, o saber-fazer

das gerações passadas e assim refletir sobre a sua dinâmica. Os estudos dos remanescentes do passado motivam-nos a compreender e avaliar o modo de vida e os problemas enfrentados pelos que nos antecederam, as soluções por eles encontradas para enfrentar esses problemas e desafios, e a compará-las com as soluções que encontramos hoje, para os mesmos problemas (moradia, saneamento, abastecimento de água, iluminação, saúde, alimentação, transporte, e tantos outros aspectos). Podemos facilmente comparar essas soluções, discutir as causas e origens dos problemas identificados e projetar as soluções ideais para o futuro, num exercício de consciência crítica e de cidadania (HORTA; 2003).

O objeto de estudo deste trabalho é um museu localizado na cidade de

Cruzeiro do Oeste, com aproximadamente 20 mil habitantes, região noroeste

do Paraná. Vale ressaltar que escassos são os trabalhos dedicados ao estudo

da memória do município e pouco o uso que se tem feito do acervo fotográfico

do museu da cidade, e da própria casa/museu como local de análise e reflexão

por professores e alunos, justificando o trabalho empreendido.

O município em questão foi um dos maiores, em extensão territorial, do

Paraná e o segundo maior em população. Foi também lugar habitado por

índios e caboclos. A partir de 1950, a região foi loteada e comercializada por

empresas imobiliárias como Companhia Melhoramentos Norte do Paraná e

Companhia Sul Brasileira. A região noroeste foi, a partir de 1930, foco de

abertura de estradas, criação de inúmeras cidades e plantação de cafezais na

área rural. O processo de ocupação capitalista também foi o responsável pela

devastação sem precedentes.

Assim, como em outras cidades, Cruzeiro do Oeste também teve uma

rápida ocupação e derrubada da mata. Da mesma forma que outras cidades da

região, uma intensa propaganda foi feita. Os cartazes e propagandas da época

atestam tal histórico, ao reafirmarem Cruzeiro do Oeste como a verdadeira

cidade do futuro. Entre as inúmeras campanhas publicitárias podemos destacar

as frases abaixo, do acervo do próprio museu: “era a cidade que mais cresce

no norte do Paraná” e “com alguns cruzeiros todos podiam ser proprietários em

Cruzeiro do Oeste”. Durante a década de 1960 e até meados da década

seguinte, a cidade cresceu em número de habitantes e foi ocupada pela

cafeicultura de forma muito rápida, até começar seu declínio, cujo marco foi a

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“geada negra” de 1975 e a conseqüente erradicação dos cafezais. Tal como

outros tantos municípios do norte paranaense, Cruzeiro do Oeste entrou em

um processo de empobrecimento e êxodo rural.

A memória da cidade está permeada por alguns mitos e construções que

abarcam a história da região norte paranaense. Na maioria das vezes, o

discurso justifica a derrubada da mata e a implantação da cafeicultura,

mitificando o pioneirismo e corroborando para um discurso sobre o vazio

demográfico (DIAS; GONÇALVES, 1999; MOTA, 1999).

Imagem 1: Propaganda da cidade de Cruzeiro do Oeste. Fonte: Arquivo Museu Histórico Dr. Carlos dos Anjos.

Ao trabalhar com a história de uma pequena localidade, é importante

que se faça o exercício de reflexão sobre o modus vivendis da comunidade em

questão. Por isso, ao utilizar o acervo iconográfico do Museu Histórico Dr.

Carlos dos Anjos para contar parte da história da colonização da região

noroeste do Paraná, é impossível ignorar a própria casa/museu onde se

localiza o referido acervo, pois reconhecer sua identidade sócio-cultural é

essencial para a preservação da memória do modo de morar da sociedade de

então. Mas se os mais velhos podem contar com o recurso da memória afetiva,

como atrair o olhar dos jovens para uma casa modesta, aparentemente sem

grandes atrativos? Como outros objetos, a casa pode ser entendida como um

documento histórico que merece ser investigado, questionado, para que se

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faça um exercício de reflexão sobre a sociedade que o produziu. Sua

arquitetura, seus cômodos, a matéria prima com que foi edificada, trazem em si

a marca do cotidiano de pessoas que por muito tempo não eram percebidas

como agentes históricos pela história tradicional.

Imagem 2: Museu Histórico Dr. Carlos dos Anjos de Cruzeiro do Oeste. Foto: a autora.

É também por meio do acervo imagético do museu que se abre uma rica

possibilidade para que se possa compreender a história da colonização da

cidade e da região, utilizando a imagem como documento para a reflexão sobre

a memória da localidade.

3. Se não me falha a memória...

O uso da fotografia remonta o século XIX, não sendo obra de um só

autor, mas a somatória de processos que evoluíram ao longo do tempo. A

possibilidade de registrar em papel o instante entusiasmou e assombrou a

sociedade da época. Muitos foram os aficcionados por essa invenção, inclusive

o segundo monarca do Brasil- império. D. Pedro II sempre incluía fotógrafos

em suas viagens e deixou vários registros do cotidiano da realeza, inclusive

registros raros seus e de sua família em viagens pelo Egito, Oriente Médio e

Europa.

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Obviamente o imperador fez uso dessa nova tecnologia como forma de

divulgação de sua imagem perante o império, mesmo que essa imagem não

estivesse acessível a toda população. Imagem esta de um homem atento às

inovações técnicas e científicas do século XIX. Buscava-se construir também o

imaginário de uma memória, de uma identidade nacional por meio da

divulgação da vida da nobreza concomitantemente com a elite cafeeira.

A fotografia foi utilizada em expedições científicas dando maior

credibilidade àquilo que estava sendo investigado, à medida em que substituía

o caderno de anotações do viajante informando de forma detalhada aquilo que

poderia custar várias folhas de explicações escritas. Acreditava-se que a

fotografia era um documento frio e objetivo.

Faz-se necessária uma reflexão sobre a imagem fotográfica, como

documento, como formuladora e ativadora da memória. Mas afinal o que deve

ser lembrado? O que deve ser esquecido? A resposta a essas perguntas pode

variar de acordo com a época ou os interesses de grupos sociais. É sabido que

ao longo da história governantes usaram todos os meios e artifícios para

construir ou desconstruir a memória coletiva, exaltando ou renegando fatos ou

acontecimentos que viessem corroborar ou não com seus objetivos, seja na

construção de uma identidade nacional ou na afirmação de uma dinastia.

Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas.(LE GOFF, 2003, p.422)

Assim entende-se que “a nacionalização da memória coletiva e sua

transmissão pelo Estado são fatos importantes de nossa história” (HORTA,

2005; PRIORE, 2005, p.7).

Na interpretação de Mary Del Priore “a fotografia é plural e suas

abordagens são igualmente múltiplas” (DEL PRIORE, 2008, p.91). Assim, da

ideia tão presente no século XIX da fotografia como imagem pronta e acabada

da realidade, até as considerações atuais da imagem, como produto de sua

época, que deve ser questionada dentro de um contexto, a fotografia percorreu

um longo caminho.

Porém, contraditoriamente a fotografia enfrentou a resistência dos

historiadores quando requisitada como documento histórico. Durante muito

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tempo utilizada em livros didáticos apenas como ilustração, a imagem ficou

relegada ao status de uma espécie de “documento de segunda categoria”, pois

toda credibilidade era dada apenas aos documentos escritos (BURKE, 2004).

Muito se fala sobre a objetividade da fonte documental, porém da

mesma forma que um documento escrito, a fotografia também é produzida com

uma intenção: do enquadramento da imagem, a iluminação, a posição do

fotografado, suas vestimentas, o mobiliário, as habitações, o ângulo que se

busca de determinada rua, enfim, se há intencionalidade na produção de uma

imagem, também existe na produção de um documento escrito e assim como

todo documento devem ser questionado, analisado, dentro do seu próprio

contexto.

Ao explorar as imagens deve-se estar atento aos seus significados e

representações. Entende-se que a imagem “não é neutra”, antes ela fala, tem

um discurso próprio a partir do momento que é entendida como um documento

historiográfico. O próprio ato de escolher entre uma fotografia e outra, aquelas

que fariam parte da pesquisa, percebe-se como a neutralidade é impraticável

dentro de um campo de pesquisa. Os valores, os objetivos, a vivência do

pesquisador professor, refletem indubitavelmente durante o processo de

construção do saber histórico com os seus alunos.

Portanto, para se chegar àquilo que não foi imediatamente revelado pelo olhar fotográfico, há que se perceber as relações entre signo e imagem, aspectos da mensagem que a imagem fotográfica elabora; e, principalmente, inserir a fotografia no panorama cultural, no qual foi produzida, e entendê-la como uma escolha realizada de acordo com uma dada visão de mundo.(CARDOSO; MAUAD, 1997, p.406)

A fotografia tem imensa capacidade de despertar a memória de quem

viveu aquele momento ali “congelado”, muitas vezes quase apagado da

lembrança. E se a memória falha, a fotografia revela. Aquele instante ali

registrado, suas significâncias, suas falas e seus silêncios podem nos ajudar a

compor a sociedade que produziu as imagens em questão. Afinal, como bem

lembra Mary Del Priore “a fotografia, em suas diferentes formas, pode fornecer

informações importantes sobre fatos históricos e, mais amplamente, ajudar a

compreensão da evolução de uma sociedade” (DEL PRIORE, 2008, p.93).

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Toda memória humana, é assim, memória de alguém (HORTA, 2005;

DEL PRIORE, 2005, p.4) a partir desse pensamento, surgiu a ideia de tirar a

memória das paredes do museu, ali esmaecida, esquecida e despertar no

jovem o desejo de conhecer mais, pois segundo Del Priore:

[...] uma das qualidades da imagem fotográfica reside precisamente neste poder de evocação, no fato de que ela pode suscitar, naquele que observa, o desejo de conhecer mais, de imaginar, de reconstituir interiormente, a partir da visão de um desses momentos, o conjunto de uma vida (DEL PRIORE, 2008, p. 94).

É a partir desse momento que se trava o diálogo entre o observador e o

objeto de estudo, e a fotografia se presta bem a esse diálogo “se for investida

por um leitor que lhe dê interpretação, operando desta maneira, uma re-

criação, uma re-escritura” (DEL PRIORE, p.92). É a partir da fotografia como

documento que o professor pode levar o aluno a uma maior percepção daquilo

que está sendo observado. Rocha Junior, em suas reflexões a respeito das

significações das imagens e das suas relações com a história e a memória,

observa que “uma imagem do passado não é um fragmento dele, é um relato,

uma memória. É, portanto uma intervenção do sujeito, no presente, sobre o

passado”. (ROCHA JUNIOR, 2007, p.79).

4. História Local, memória e educação patrimonial: entrelaçando a prática à

teoria.

Foi escolhida para a implementação do projeto uma turma da 1ª série do

curso de Formação de Docentes, com idade entre 14 e 15 anos, estudantes do

Colégio Anchieta de Cruzeiro do Oeste. Esse grupo de alunos, como tantos

outros, trouxe algumas ideias pré-concebidas da História como algo distante e

que certamente não lhe diz respeito; podia-se perceber nos discursos que a

maioria não se sentia um sujeito histórico ou partícipe do processo histórico.

Contudo, ao notar que o projeto tinha como objeto central recuperar a história

da localidade, trabalhando com imagens, notou-se certa curiosidade acentuada

do grupo em questão.

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Primeiramente, foram apresentados à referida turma alguns

questionamentos, tanto na forma de explanação oral, como questionário. Tal

investigação proporcionou ao professor ter uma idéia mais aproximada sobre o

conhecimento dos alunos, por meio de uma resposta mais elaborada ou ainda

por meio do senso comum. Lembranças fragmentadas de relatos dos familiares

logo vêm à tona e a história tantas vezes ignorada passa a fazer algum

sentindo. Tais percepções vêm ao encontro da afirmação de Schmidt e Cainelli

ao destacarem que o trabalho com a história local pode produzir a inserção do

aluno na comunidade da qual faz parte, criar suas próprias historicidade e

identidade (SCHIMDT; CAINELLI, 2005, p.113).

O próximo passo do projeto foi trabalhar com os alunos a imagem como

documento. Em tempos de imagem digital, o uso da fotografia tem se tornado

corriqueiro, fato que pode ajudar a anular a percepção do observador, situação

que complica a leitura das imagens (SCHMIDT e CAINELLI (2005).

Entendendo a fotografia como uma representação do real, foi necessário

juntamente com os alunos desconstruir as imagens para que pudessem refletir

a sociedade que as produziu, despertando no educando não só o olhar de

curiosidade, mas também de múltiplo interesse pela sociedade ali retratada.

Como material didático pedagógico foi utilizado um CD-ROM com imagens da

ocupação do município, material esse produzido (dentro deste projeto) também

como parte do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE). Dentre as

inúmeras fotografias e recursos propagandísticos que cobrem as paredes da

casa/museu, optou-se em escolher aqueles mais significativos para a

percepção do discurso oficial em contraposição aos meandros do discurso.

Entre as imagens eleitas, toma-se aqui como exemplo fotografias de índios

Xetá, cujas imagens colocam em xeque o mito do “vazio demográfico”

construído pelas companhias colonizadoras, ao reafirmarem o discurso de que

a região era uma “imensa floresta despovoada” quando as terras foram

loteadas e vendidas para os colonos que chegaram posteriormente. O silêncio

sobre os povos que habitavam a região antes de meados do século XX foi uma

informação com a qual os alunos se sentiram visivelmente intrigados à medida

em que tomaram conhecimento da existência de várias etnias ao longo de

milhares de anos nesta região.

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Muitos estudiosos que contribuíram para o conhecimento da região norte-paranaense, e mesmo aqueles que apenas se referem a ela, entregaram-se ao discurso dominante que omite ou desqualifica a presença indígena na região.(TOMAZI, 1999, p.52)

A imagem abaixo é extremamente simbólica: um representante dos

primeiros habitantes da região, ladeado por representantes da Igreja Católica e

de uma Companhia que colonizou a região.

Imagem 3: Fotografia que registra o 5º aniversário de Cruzeiro do Oeste. Destaque para o índio Natal, no meio de Paulo Bittencourt, Diretor da Companhia Sul Brasileira e um auxiliar do Frei Gaspar. Fonte: Acervo: Museu Dr. Carlos dos Anjos.

Sobre isso, é oportuna a reflexão a respeito da memória: afinal, o que

interessa ser lembrado ou ser esquecido? Como a memória coletiva pode ser

construída de acordo com o interesse de diferentes grupos sociais? É visível,

por meio da análise da iconografia disponibilizada no referido museu, que a

permanente construção de memórias foi recurso largamente utilizado ao longo

do processo de ocupação da região.

Utilizar a imagem como fonte documental amplia as possibilidades de

uso de outros documentos, além dos escritos, no processo de aprendizagem

da história. Como instituem as Diretrizes Curriculares de História, diversos tipos

de fontes devem ser contempladas para ampliação da visão histórica por parte

de alunos e professores.

Ao confrontar fotografias antigas e atuais de uma mesma localidade, os

alunos puderam perceber as mudanças e permanências de sua comunidade.

Hábitos os mais costumeiros, festas locais, os tipos de habitação, com uma

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arquitetura singular, os meios de transportes, entre outros aspectos, puderam

ser comparados e analisados com a paisagem rural e urbana atual de Cruzeiro

do Oeste. No entanto, sempre tomando o cuidado para que o aluno percebesse

essas mudanças – ou permanências - não como “atraso”, mas fruto de uma

época em que sua localidade estava inserida.

Nas imagens acima observam-se dois momentos de um mesmo local: o

hotel que reflete o grande afluxo de pessoas na região naquele período e hoje

substituído pelo banco, instituição financeira símbolo da sociedade capitalista a

qual a sociedade de Cruzeiro do Oeste está inserida.

Como parte das atividades do projeto, os alunos também participaram

da Semana Nacional dos Museus organizada pela Secretaria Municipal de

Cultura de Cruzeiro do Oeste. Entre esses eventos, estava o Museu Itinerante

nas escolas. Os alunos do projeto participaram efetivamente, organizando as

peças expostas e também atuando como monitores. Essa experiência serviu

para que refletissem a respeito de algumas questões sobre os museus: Quem

escolheu os objetos a serem expostos? Quais os critérios dessa escolha? Que

leitura os colegas, ao visitarem a exposição, fizeram desses objetos?

Os alunos envolvidos no projeto e que participaram do Museu Itinerante

puderam perceber entre outras coisas que o mesmo conceito que tinham

formado de que museu é um depósito de coisas velhas e ultrapassadas,

também se fazia presente na cabeça dos colegas que vinham visitar o museu.

O olhar desinteressado pelas peças foi a princípio decepcionante para os

monitores que estavam ali prontos para acompanhar e informar a respeito dos

Imagem 4: Hotel Marília. 1955.Rua Peabiru. Fonte:Museu Histórico Dr. Carlos dos Anjos.

Imagem 5: Banco Bradesco. 2008. Rua Peabiru (mês(mesmo local). Foto: a autora.

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objetos e imagens em exposição. Logo, porém, ao atuarem como monitores,

conseguiram expressar de forma satisfatória a noção de construção da

memória num sentido plural, da qual todos faziam parte, de alguma forma.

Nota-se, com tal experiência, que é de suma importância que a visita ao

museu seja preparada com antecedência pelos professores e, no caso do

Museu Itinerante, é interessante que se faça um trabalho em conjunto com

todos os educadores, não só com o professor de História ou de Artes. Para que

isso ocorra, é indispensável um trabalho de educação patrimonial envolvendo

toda a comunidade escolar, para que as pessoas possam rever sua visão pré-

concebida a respeito do museu e seu acervo.

Outra atividade do projeto que merece destaque foi a visita dos alunos a

alguns pontos históricos da cidade, em parceria com a Secretaria da Cultura do

Município. A ideia de visitar in loco alguns lugares que eles tinham visto nas

fotografias foi bem recebida por todos. A igrejinha construída na década de 50

e a Estrada Boiadeira, carregada de simbologia na construção da identidade

local, fizeram, entre outros sítios históricos, parte deste roteiro. A proposta era

que os alunos pudessem desenvolver um “olhar histórico” sobre lugares até

então despercebidos no seu cotidiano. Ao voltarem, muitos alunos

comentavam como foi interessante conhecer a história de lugares que eles

nunca tinham observado, inclusive, aspectos históricos do bairro onde alguns

residiam.

Imagem 6: Capela Imaculada Conceição, localizada no Bairro Cafeeiros, em Cruzeiro do Oeste,

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Paraná. Foto tirada no dia da implementação do projeto PDE. Foto: da autora.

Esse olhar, essa percepção dos “lugares de memória” foi possivelmente

uma das grandes contribuições que o projeto trouxe para a ampliação da

consciência histórica dos jovens alunos.

Segundo Saballa

Aos indivíduos é permitida a realização da leitura do mundo no qual se inserem, percebendo-se como parte integrante de um grupo. A noção de pertença leva à mobilização, concebendo o sentido da participação e integração pelo elaborado e projetado na coletividade, pelo valor partilhado, restabelecendo assim, o passado através de objetos pertencentes ao seu universo, percebendo-se sujeitos da História. Como agentes transformadores elegem os patrimônios que tem sentido para o conjunto e buscam o sentido coletivo do reconhecimento da similitude (SABALLA, 2007).

5. GTR - Grupo de Trabalho em Rede

O crescente interesse por uma história social, a busca pelo

conhecimento de uma “história dos anônimos”, fez com que a produção

historiográfica atual lançasse um novo olhar sobre a história das localidades.

O reflexo desse novo enfoque está contido nas DCEs (Diretrizes

Curriculares Estaduais) da disciplina de História, que destaca a importância da

história local em suas páginas “O estudo das histórias locais é uma opção

metodológica que enriquece e inova a relação de conteúdos a serem

abordados, além de promover a busca de produções historiográficas diversas”

(PARANÁ, 2008). Como estratégia pedagógica possibilita ao aluno uma melhor

análise dos diferentes níveis da realidade: social, político econômico e cultural

(SCHIMDT; CAINELLI, 2005, p.113).

A ideia de que o trabalho com espaços menores possibilita a

compreensão histórica por parte do aluno, a importância de se valorizar o seu

entorno, de criar uma identidade com o assunto abordado, são razões

suficientes para que o professor de História se sinta entusiasmado e desafiado

a trabalhar sob essa perspectiva. Porém, esse entusiasmo tende a se arrefecer

à medida em que encontra a sua disposição pouco ou nenhum material nem

mesmo fontes historiográficas que o amparem em seu cotidiano escolar.

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Foi dentro desse contexto que nasceu o projeto de utilizar o acervo

fotográfico do museu de uma pequena cidade paranaense, como ponto de

partida para o estudo de sua história. Mais uma forma de abordar a história

local e oferecer ao professor uma pequena contribuição na abordagem de um

tema tão complexo.

Compartilhar esse trabalho com os professores da rede pública de

educação do Paraná estava entre os objetivos traçados pelo PDE (Programa

de Desenvolvimento Educacional), através do GTR (Grupo de Trabalho em

Rede). O grupo formado a princípio por oito professores (sete professoras e um

professor) foi extremamente enriquecedor e desafiador. O interesse em utilizar

a imagem como documento historiográfico, o desafio em trabalhar com a

história local logo ficaram patentes, bem como as dificuldades em se encontrar

fontes diversas e material de apoio sobre o assunto.

“Ao trabalhar com vestígios na aula de História, é indispensável ir além dos documentos escritos, trabalhando com os iconográficos, os registros orais, os testemunhos de história local, além de documentos contemporâneos, como: fotografia, cinema, quadrinhos, literatura e informática” (PARANÁ, 2008).

Dentre os professores que faziam parte do grupo, apenas três eram

moradores de Cruzeiro do Oeste. No entanto, o que a princípio poderia parecer

um entrave dada a especificidade da pesquisa, tornou-se um diálogo

extremamente fecundo: as dificuldades foram postas, as experiências

compartilhadas, o debate aberto, o que contribuiu posteriormente para o

enriquecimento na aplicação do projeto em sala de aula.

A importância da abordagem da história local em criar um sentimento de

pertença, de reavivar a memória de recriar vínculos pode ser sentido no relato

de uma professora participante do GTR o qual transcrevemos a seguir:

“Fiquei maravilhada com a proposta, pois revivi tantos acontecimentos da minha própria história local, principalmente ao ver aquela foto dos caminhões de toras. Pois pude reconstruir uma história adormecida na minha memória, que por falta de tempo ou simplesmente por comodismo deixei de compartilhar com meus entes queridos. Olhando aquela foto, pude ver claramente meu pai contando sobre seu trabalho de motorista de um caminhão de transporte de madeira (seu primeiro trabalho aqui na região, quando veio de São Paulo,

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1954). Percebi que quando nos identificamos com a história, ela se torna presente,nova,intensa...É isso que preciso despertar nos meus alunos!!!!!”.( professora de História).

Existe, portanto um vastíssimo campo de possibilidades a serem

exploradas quando o assunto é história local e ensino de História. A utilização

de fontes variadas só vêm a acrescer esse trabalho como ponto de partida para

a compreensão, por parte do aluno, do processo histórico que tem se

desdobrado ao logo do tempo.

A possibilidade do aluno se sentir parte integrante da história e não

apenas um mero expectador, perceber que aquela história ali recuperada é

parte integrante da vida dos seus pais e avós, também foi bem definida nas

palavras de uma professora participante do GTR:

“Todos somos produtores de memória e temos histórias para contar". Na maior parte das vezes lembrar não é apenas reviver, mas sim refazer, reconstruir, repensar com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A ideia de valorização da história local, aproxima o aluno da nossa disciplina, pois nesse trabalho destaca-se o processo histórico que é marcado por nomes anônimos, números e patrimônios que também ajudaram na construção da História de um povo.Transformar os anônimos da comunidade em construtores e protagonistas de sua própria história, é fundamental para que o interesse pela História seja algo prazeroso”.

A troca de experiências, o debate, os questionamentos feitos ao longo

do trabalho em grupo permitiu que o GTR cumprisse o seu objetivo de travar

um diálogo interessante e necessário sobre a história local bem como a

utilização da iconografia como opção enriquecedora desse tema.

A importância da educação patrimonial também foi um assunto que

possibilitou vários questionamentos, pois ao trabalhar o entorno de uma

pequena localidade, consequentemente falou-se de “lugares de memória” e de

sua importância na preservação da história local. Lugares antes pouco

percebidos passam a ter um significado autêntico à medida em que ele está de

alguma forma ligado aos acontecimentos e fatos vividos pela comunidade em

questão.

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CONCLUSÃO

Uma História que desperte o interesse de quem ouve, um documento

que nos fale através dos seus silêncios, tudo o que pode fazer da História algo

mais que uma “disciplina do passado” é o que tem permeado a mente da

maioria dos professores de História em seu cotidiano na sala de aula.

As novas abordagens históricas tem por sua vez oferecido um leque de

opções na procura de uma História mais “palpável” e significativa. Mas, com

tantas possibilidades que se desenham a frente do professor, é natural certa

angústia ao buscar novos caminhos e sentir-se um tanto desamparado na

carência de fontes e material de embasamento teórico que o auxiliem em seu

trabalho na sala de aula. Nesse sentido, o trabalho que ora se conclui procura

ser uma pequena contribuição na reflexão que se faz da história local, da

memória e do patrimônio histórico- cultural.

O desafio de trabalhar esse assunto com uma turma de adolescentes

com idades entre 14 e 15 anos se fez sentir ao longo da implementação do

projeto: as ideias pré-concebidas sobre museus e memória, o pouco

conhecimento sobre a história da sua localidade foram sendo substituídos por

questionamentos, curiosidades e construção de um conhecimento mais

elaborado dos assuntos abordados. Destaca-se aqui o interesse pela história

da etnia xetá, pouquíssimo conhecida por parte dos alunos. Ao confrontarem

as imagens fotográficas de alguns representantes dessa etnia com o discurso

do “vazio demográfico” criado em parte pelas companhias colonizadoras da

região, os alunos puderam ter consciência de que entre uma memória oficial

que se impõe, existem outras memórias, ignoradas, prontas a serem

recuperadas desde que feita a análise e reflexão sobre documentos muitas

vezes esquecidos e pouco valorizados. Esse confronto entre a história oficial e

aquilo que eles puderem observar e analisar, através dos documentos, a leitura

que se fez para além dos recursos propagandísticos dos quais lançavam mão

os organismos colonizadores, foi de extrema importância para a percepção por

parte do aluno do processo de construção histórica. Percepção essa que

extrapola os limites regionais e leva o aluno a uma reflexão de como se dá a

construção histórica, de que matéria ela se compõe, a quem ela tem se

prestado e talvez o mais importante, a percepção de que a história é feita por

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pessoas reais, “de carne e osso”, de vidas que se entrelaçaram em

determinado momento, influenciaram e foram influenciadas por

acontecimentos, circunstâncias muitas vezes alheias a esses indivíduos.

Por se tratar de uma região com uma história de ocupação relativamente

recente existe ainda uma ampla possibilidade de estudos mais aprofundados

da história que aqui se desenrolou. Seus personagens, seus lugares de

memória, a leitura que a sociedade tem feito do seu passado recente, as

implicações atuais na configuração social, política e econômica dos municípios

que compõem a região conhecida como norte novíssimo do Paraná, merecem

ainda que mais pesquisadores possam se debruçar sobre sua história e com a

utilização de fontes variadas possam contribuir na composição das várias

nuanças de uma história que ainda está para ser desvendada.

Assim, acredita-se que ao se eleger a história do lugar como objeto para

discutir a memória e a educação patrimonial, dá-se um passo adiante nos

estudos sobre os processos históricos, abarcando novas perspectivas nesta

temática e colocando a mesma como um importante instrumento na discussão

e preservação das identidades locais.

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Museu Histórico Dr. Carlos dos Anjos de Cruzeiro do Oeste