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O NARCOTRÁFICO NA FRONTEIRA BRASIL – PARAGUAI: CONSIDERAÇÕES SOBRE O MUNDO DO TRABALHO E DO CRIME Caroline Andressa Momente Melo Professora de Sociologia vínculo SEED/PR [email protected] RESUMO Este trabalho encontra-se em fase inicial, visa compreender como se estrutura a economia ilícita correspondente ao narcotráfico, que ocorre na faixa de fronteira entre o Brasil e o Paraguai, abarcando os municípios de Guaíra – PR à Ponta Porã – MS. O narcotráfico se insere no escopo das relações sociais de produção e de trabalho, todavia não se enquadra totalmente nas relações capitalistas clássicas, problematiza-se assim como se constitui e se organiza esta economia paralela, logo, ilícita? E qual a sua relação com a economia lícita? Para tanto serão utilizados como referenciais teóricos (TELLES e HIRATA, 2007); outra discussão que se impõe refere-se as “mercadorias políticas” (MISSE, 1995, 1997 e 2002); há também a necessidade de captar o processo de lavagem de dinheiro (SALAMA, 2002). O método abrange o materialismo histórico dialético, conforme o narcotráfico será abordado na sua determinação econômica, considerando que este método desvela a realidade, por meio da análise das relações de produção, estas por sua vez, constituem o todo social. Inicialmente, ocorrerá a análise de literatura e levantamento de dados oficiais através da Polícia Rodoviária Federal do Brasil e Secretaria Nacional Antidrogas; posteriormente utilizar-se-á um conjunto de técnicas, visando abranger a diversidade de situações. Palavras-chave: Narcotráfico. Fronteira. Economia Ilícita. INTRODUÇÃO A economia ilícita do narcotráfico merece atenção, considerando que ela movimenta cerca de 320 bilhões de dólares anualmente, segundo dados do Relatório Mundial sobre Drogas (UNODC, 2015). Como os entorpecentes são proibidos, o crime organizado apropria-se destas mercadorias de elevada rentabilidade, e obtém a partir delas uma das suas principais fontes de renda. Assim, a compreensão da economia ilícita oferece subsídios explicativos para o entendimento da criminalidade e da violência. Como se pretende analisar o narcotráfico a partir das relações de produção e de trabalho, a pesquisa direciona efetiva preocupação em relação aos “trabalhadores precários da droga” (TELLES; HIRATA, 2007), viabilizando assim contribuições para a sociologia do trabalho, no intuito de propor alternativas a estes sujeitos sociais. O envolvimento com a temática proposta ocorreu inicialmente por meio da realização da pesquisa monográfica intitulada O trabalho infantil em Salto del Guairá/Paraguai (2013), por meio desta, foi possível estabelecer um contato e uma compreensão

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O NARCOTRÁFICO NA FRONTEIRA BRASIL – PARAGUAI: CONSIDERAÇÕES SOBRE O MUNDO DO TRABALHO E DO

CRIME

Caroline Andressa Momente Melo

Professora de Sociologia vínculo SEED/PR

[email protected]

RESUMO

Este trabalho encontra-se em fase inicial, visa compreender como se estrutura a economia ilícita correspondente ao narcotráfico, que ocorre na faixa de fronteira entre o Brasil e o Paraguai, abarcando os municípios de Guaíra – PR à Ponta Porã – MS. O narcotráfico se insere no escopo das relações sociais de produção e de trabalho, todavia não se enquadra totalmente nas relações capitalistas clássicas, problematiza-se assim como se constitui e se organiza esta economia paralela, logo, ilícita? E qual a sua relação com a economia lícita? Para tanto serão utilizados como referenciais teóricos (TELLES e HIRATA, 2007); outra discussão que se impõe refere-se as “mercadorias políticas” (MISSE, 1995, 1997 e 2002); há também a necessidade de captar o processo de lavagem de dinheiro (SALAMA, 2002). O método abrange o materialismo histórico dialético, conforme o narcotráfico será abordado na sua determinação econômica, considerando que este método desvela a realidade, por meio da análise das relações de produção, estas por sua vez, constituem o todo social. Inicialmente, ocorrerá a análise de literatura e levantamento de dados oficiais através da Polícia Rodoviária Federal do Brasil e Secretaria Nacional Antidrogas; posteriormente utilizar-se-á um conjunto de técnicas, visando abranger a diversidade de situações. Palavras-chave: Narcotráfico. Fronteira. Economia Ilícita. INTRODUÇÃO A economia ilícita do narcotráfico merece atenção, considerando que ela movimenta cerca de 320 bilhões de dólares anualmente, segundo dados do Relatório Mundial sobre Drogas (UNODC, 2015). Como os entorpecentes são proibidos, o crime organizado apropria-se destas mercadorias de elevada rentabilidade, e obtém a partir delas uma das suas principais fontes de renda. Assim, a compreensão da economia ilícita oferece subsídios explicativos para o entendimento da criminalidade e da violência. Como se pretende analisar o narcotráfico a partir das relações de produção e de trabalho, a pesquisa direciona efetiva preocupação em relação aos “trabalhadores precários da droga” (TELLES; HIRATA, 2007), viabilizando assim contribuições para a sociologia do trabalho, no intuito de propor alternativas a estes sujeitos sociais. O envolvimento com a temática proposta ocorreu inicialmente por meio da realização da pesquisa monográfica intitulada O trabalho infantil em Salto del Guairá/Paraguai (2013), por meio desta, foi possível estabelecer um contato e uma compreensão

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histórica e econômica da faixa de fronteira Brasil – Paraguai. Almeja-se, agora, compreender como está estruturada a organização do narcotráfico, em específico da maconha, cocaína e crack, sendo necessário ampliar o universo de pesquisa, abordando determinada faixa de fronteira Brasil – Paraguai, que envolve os municípios de Guaíra – PR a Ponta Porã – MS. Esta fronteira representa uma das principais entradas de entorpecentes ao Brasil, seja por sua proximidade geográfica aos países andinos, considera-se: Peru, Bolívia e Colômbia, maiores produtoras da folha da coca e da cocaína (SALAMA, 2002); seja pelo fato do Paraguai ser um dos maiores produtores de maconha (SENAD, 2015). Foi realizada uma explanação introdutória acerca da centralidade do trabalho, este é um complexo central e decisivo na formação do ser social (LUKÁCS, 1978), este embasamento teórico legitima-se na medida em que ultrapassa a dimensão, restrita, do crime, viabilizando um aprofundamento da análise no intuito de captar as relações de produção e de trabalho que constituem esta economia ilícita, para tanto optou-se como método o materialismo histórico dialético, considerando que o citado método atinge o conhecimento da realidade, por meio da análise das relações de produção, estas por sua vez, constituem o todo social. No que tange as metodologias de pesquisa, serão utilizados um conjunto de instrumentos, visando abranger a diversidade de situações, inicialmente ocorreu à revisão e análise de literatura concernente ao tema e levantamento de dados oficiais através da Polícia Rodoviária Federal do Brasil (PRF/BR) e da Secretaria Nacional Antidroga (SENAD/PY). No decorrer da pesquisa pretende-se executar a pesquisa documental com a fonte de análise extraída da imprensa escrita, dos municípios Guaíra e Ponta Porã, do período de 2013 à 2015; também, desenvolver-se-ão entrevistas com roteiros semiestruturados aos representantes dos órgãos oficiais. Almeja-se realizar trabalhos de campo e Conversas Qualificadas (CARDIN, 2009) com sujeitos envolvidos com o narcotráfico, recolhidos nas cadeias públicas dos municípios de Guaíra - PR e Ponta Porã – MS. Objetivando conceituar a fronteira, se partirá da perspectiva de fronteira econômica embasando-se em Martins (2009) e Mészáros (2002). No primeiro momento, serão abordadas as políticas de fronteira, em que estas leis oscilaram entre uma proposta militar à civil (CARDIN, 2012 e 2014), diante da diferentes conjunturas políticas e econômicas. Nota-se que, contemporaneamente, a repressão sobre o narcotráfico foi intensificada por meio das políticas de fronteira que mesmo adotando uma perspectiva mais civil, manteve predominantemente sua dimensão militar. Problematizam-se assim os desdobramentos de tais políticas. Em seguida, considerou-se, de modo preliminar, o narcotráfico na fronteira Brasil – Paraguai partindo dos dados da Polícia Rodoviária Federal do Brasil (PRF/BR) verificou-se que em 2014 o maior índice de apreensões de entorpecentes ocorreu na

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faixa de fronteira Brasil – Paraguai, em específico nos estados do Mato Grosso do Sul e do Paraná, comprovando-se que estes Estados são as principais rotas de entradas de entorpecentes no Brasil, e inclusive, o espaço analisado nesta pesquisa. Para além, de uma discussão jurídica que delimita a legalidade ou ilegalidade das atividades, visou-se compreender a relação entre a economia lícita e ilícita, para tanto foram utilizados como referenciais teóricos Telles e Hirata (2007). Sendo necessário destacar que as reestruturações produtivas alteraram as relações de trabalho, emergindo, deste então, formas variadas de trabalho precário que não se enquadram nas dimensões de formalidade e/ou informalidade (TELLES, 2006). Outra discussão que se impõe refere-se as “mercadorias políticas” assim como definiu Michel Misse (1995, 1997 e 2002), ou seja, bens expropriados do Estado por seus agentes e vendidos aos sujeitos envolvidos com tráfico. Há também a necessidade de captar o processo de lavagem de dinheiro (SALAMA, 2002). EXPOSIÇÃO SOBRE MÉTODO E METODOLOGIAS DE PESQUISA Há uma tendência na sociologia, que direciona o pesquisador partir das metodologias da Escola de Chicago para compreender as práticas ilícitas, sendo que esta Escola investigou as interações sociais nos meandros da vida urbana – cidade, no que se refere à pobreza, aos grupos étnicos, comunidades de imigrantes, atividades criminosas, ou ainda aos “comportamentos desviantes de sujeitos marginalizados”. Um dos desdobramentos da Escola de Chicago foi à emergência de um conjunto de instrumentos de pesquisa empírica e qualitativa. Este esclarecimento prévio e sintetizado se faz necessário para apontar que mesmo a presente pesquisa analisando práticas ilegais o método abrange o materialismo histórico dialético, sendo que o narcotráfico será abordado na sua determinação econômica, considerando que o citado método atinge o conhecimento da realidade, por meio da noção de classe, e, do imanente embate entre classes opostas, há também a determinação das relações de produção, estas por sua vez, constituem o todo social. Nesse sentido o objeto será analisado enquanto parte estrutural de um todo “e precisamente esse todo não percebido explicitamente é a luz que ilumina e revela o objeto singular, observado em sua singularidade e no seu significado” (KOSIC, 1995, p. 31). Estabelecendo, assim, uma análise para além dos “comportamentos desviantes” – no qual “o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência

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da aplicação por outros de regras e sanções a um infrator.” (BECKER, 2008, p. 22) – mas sim, visando captar a organização e estrutura da economia ilícita. Desta forma, captar o fenômeno, rastrear suas mediações, e consequentemente desvelar sua essência, que representa a estrutura e dinâmica do objeto. Observando, inclusive, as contradições que permeiam a realidade social, estas são a própria essência da realidade, sendo possível inferir que economia ilícita, ora analisada, representa uma das contradições inseridas nas relações clássicas de produção. Ainda no que abrange o desvelamento do real, partindo das contribuições teórica de Kosic (1995), por meio da práxis a humanidade elaborou representações visando compreender a realidade, isso não significa, que de fato, atingiu-se tal compreensão. O que prevalece é a percepção da pseudoconcreticidade, em outras palavras, a práxis fetichizada, ou o mundo da aparência, ou ainda o fenômeno que mantem a essência oculta, em síntese, para atingir a essência é necessário realizar uma decomposição, em que ocorra: a destruição da pseudoconcreticidade, isto é, da fetichista e aparente objetividade do fenômeno, e o conhecimento da sua autêntica objetividade; em segundo lugar, conhecimento do caráter histórico do fenômeno, no qual se manifesta de modo característico a dialética do individual e do humano em geral; e enfim o conhecimento do conteúdo objetivo e do significado do fenômeno, da sua função objetiva e do lugar histórico que ela ocupa no seio do corpo social. (KOSIC, 1995, p. 61).

No que tange os instrumentos e ou técnicas de pesquisa, serão utilizados de forma simultânea um conjunto de instrumentos, visando abranger a diversidade de situações. Inicialmente, ocorrerá a revisão e análise de literatura concernente ao tema. Buscando contextualizar o narcotráfico na região, adotar-se-á como procedimento técnico a pesquisa documental com a fonte de análise extraída da imprensa escrita, dos municípios Guaíra e Ponta Porã, do período de 2013 à 2015; estando as reportagens disponíveis on-line, este procedimento será realizado no decorrer da pesquisa. Também, desenvolver-se-ão entrevistas dirigidas com roteiros semiestruturados aos representantes dos órgãos oficiais. Evidentemente, serão levantados dados oficiais, por meio da Polícia Rodoviária Federal do Brasil (PRF/BR) e da Secretaria Nacional Antidroga (SENAD/PY).

Não se limitando ao discurso e os dados oficiais, pretende-se realizar trabalhos de campo, e neste aspecto reside a maior dificuldade desta pesquisa. Para tanto há a necessidade de estabelecer uma rede de contatos e informantes. Diante da peculiaridade do tema, caso não sejam alcançados tais objetivos, uma alternativa que se coloca é a realização de entrevistas com sujeitos envolvidos com o narcotráfico, recolhidos nas cadeias públicas dos municípios de Guaíra - PR e Ponta Porã - MS. Levando em

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consideração que todo sujeito é uma expressão do contexto ao qual está inserido, e ao partir da experiência concreta destes atores sociais, atingir-se-á um entendimento desta economia ilícita, sendo realizadas Conversas Qualificadas (CARDIN, 2009), rastreando as trajetórias individuais e seu entrelaçamento ao narcotráfico. Além de considerar que o sujeito da pesquisa não é um mero objeto, vitimizado e passivo, mas sim um sujeito de conhecimento, ativo e histórico (MARTINS, 1993). A seleção dos sujeitos entrevistados será orientada pela compreensão de “incluir representantes das posições as mais diversas” (THIOLLENT, 1987, p. 86), abarcando, assim, sujeitos envolvidos nas diferentes etapas da economia ilícita, considera-se a produção, distribuição e consumo, sendo que:

A seleção de pessoas a serem entrevistadas intensivamente não obedece a regras mecânicas. A seleção supõe a disponibilidade do entrevistado, a qual não e previsível antes de um primeiro contato. A seleção resulta de uma avaliação de relevância ou da representatividade social (não estatística) das pessoas (THIOLLENT, 1987, p. 34).

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

3.1 EXPLANAÇÃO INTRODUTÓRIA ACERCA DA CENTRALIDADE DO TRABALHO Conforme o Narcotráfico torna-se um objeto de investigação, é imprescindível ultrapassar a dimensão, restrita, do crime, e aprofundar a análise no intuito de captar as relações de produção e de trabalho que constituem esta economia ilícita, visando apreender “A complexidade da economia das drogas e as condições de formação deste mercado, entendido como ampla cadeia de trocas nos circuitos transnacionais de produção, comercialização e consumo” (TELLES, 2012, p. 21). Nesse sentido, Salama (2002) expõe, em linhas gerais, a estrutura desta economia ilícita, em que se verifica: Nos países latino-americanos pode-se supor que as organizações criminosas pratiquem uma integração na forma de um 8: na base fica a organização e o contingente de camponeses sob contrato que produzem a matéria-prima; em seguida, em dimensão mais reduzida, vem a transformação, sob o controle da organização criminosa propriamente dita. Esta vende a droga no atacado, “lava” as divisas e depois as recicla. Uma ampla base: os camponeses; uma cúpula igualmente ampla: os varejistas; e entre os dois um nó: a organização criminosa. Essas atividades diversas estão totalmente separadas e religadas entre si pela presença do responsável pela organização mafiosa e de seus assessores (SALAMA , 2002, p. 148).

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Conforme apontado anteriormente a licitude ou ilicitude de determinada atividade é uma imposição estatal, sendo que para o capital não há importância acerca da legitimidade jurídica de uma atividade, desde que esta seja provedora de lucratividade, por isso, a presente pesquisa, orienta-se na centralidade as relações de trabalho da economia ilícita. Uma vez que, partindo das contribuições teóricas de Lukács (1978), a distinção da humanidade a animalidade se deu conforme, o humano, diante das necessidades materiais e biológicas, passou a interferir no meio que estava inserido, além de modificar tal contexto, modificou a si mesmo. Ao transformar a natureza através do trabalho o gênero humano produziu o novo, que reverberou na transformação do indivíduo e da sociedade. Desta forma, o trabalho apresenta-se enquanto um complexo central e decisivo do ser social, configurando-se enquanto “base dinâmico-estruturante de um novo tipo de ser” (LUKÁCS, 1978, p.04). Vale acrescentar que o trabalho que possibilitou este salto ontológico, viabilizando a humanização do homem não se manteve estável e igual no decorrer da história humana:

O sistema de metabolismo social do capital nasceu como resultado da divisão social que operou a subordinação estrutural do trabalho ao capital. Não sendo consequência de nenhuma determinação ontológica inalterável, esse sistema de metabolismo social é, segundo Mészáros, o resultado de um processo historicamente constituído, em que prevalece a divisão social hierárquica que submete o trabalho ao capital (ANTUNES, 2009, p.21).

Assim que foi estabelecida a divisão social do trabalho, o sujeito perdeu o controle do processo produtivo, desde então se fragmentou a percepção da totalidade, e este sujeito não mais se reconhece no todo, emergindo assim uma situação de alienação. Dentro desta perspectiva Antunes (2009)1 estabelece que no decorrer do processo histórico da humanidade, coexistem dois mecanismos de mediação entre o homem e a natureza. Enquanto que os mecanismos de primeira ordem propiciaram que a relação entre Homem – Natureza garantisse “a preservação da reprodução individual e societal” (ANTUNES, 2009, p. 21), ocasionando uma formação do sujeito, pois neste momento os objetivos eram justamente satisfazer as demandas humanas. Conforme os mecanismos de segunda ordem são inseridos, além deles se sobreporem aos mecanismos primários, eles também fazem com que o intercambio Homem – Natureza se configure enquanto uma atividade alienante, pois estes mecanismos estão subordinados ao sistema do capital, e visam exclusivamente garantir sua expansão e

1 Partindo dos referenciais teóricos de Mészáros (1995).

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reprodução. Grosso modo, as atividades ilícitas, ora, analisadas, inserem-se nos mecanismos de segunda ordem.

FRONTEIRA: ESPAÇO DO NARCOTRÁFICO

Há uma intrínseca relação entre faixa de fronteira e narcotráfico, sendo que este espaço tende às práticas sociais ilícitas, conforme as vantagens econômicas se sobrepõem ao controle estatal. Além disso, os municípios fronteiriços paraguaios são marcados preponderantemente por atividades comerciais e informais, em decorrência das empreitadas do governo paraguaio na diminuição de taxas aduaneiras. Será analisado o narcotráfico na faixa de fronteira Brasil – Paraguai, com ênfase às cidades gêmeas de Guaíra – PR e Salto del Guaíra – PY e Ponta Porã – MS e Pedro Juan Caballero – PY, circuito, em média, com 330 Km de extensão, conforme imagem abaixo:

Imagem 1 – Vista aérea da faixa de fronteira de desenvolvimento da pesquisa, em vermelho, de Guairá à Ponta Porã. Fonte: http://maps. google.com.br/. Acessado em 20 de abril de 2016. Adaptado pela autora.

Sinteticamente, a fronteira será concebida enquanto “um desdobramento da teoria da expansão territorial capitalista” (MARTINS, 2009, p. 157), conforme Mészáros destacou o capital “é orientado para a expansão e movido pela acumulação” (2002, p. 100), pois busca essencialmente o acúmulo do lucro, e que uma região limitada não possibilita a total extração de valor, impondo a necessidade de dominar novos territórios constantemente e inserir suas lógicas e determinações em todos os espaços, não respeitando limites, nem fronteiras.

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Em suma, a noção de fronteira econômica orientará a pesquisa, com isso não se desconsidera os demais enfoques sobre a fronteira, tais como o cultural e jurídico-político. Tanto que, no primeiro momento, se partirá das políticas de fronteira, ou ainda, de uma discussão de fronteira jurídica-política, pois:

ao invés de partir da imagem consolidada do estado como entidade política e administrativa que tende a se debilitar ou a se desarticular nas suas margens territoriais e sociais (os confins do estado, vistos como zonas sem lei, territórios do não – direito) é o caso de deslocar o campo a partir do qual as questões podem ser formuladas. Pois é o estado que produz essas “margens” [...]. São nessas margens que “o estado está constantemente redefinindo seus modos de governar e legislar”, justamente nesses pontos de fricção com práticas e outras formas de regulação inscritas nas tramas da vida nesses lugares (TELLES, 2002, p. 18). 4.1 Delineamentos sobre as políticas de fronteira2

As políticas e os investimentos públicos de repressão ao narcotráfico, tanto no âmbito estadual como federal, foram ampliados nos últimos anos. Todavia o narcotráfico ainda é uma realidade constante e os entorpecentes estão em plena circulação, diante disso um questionamento se sobressai: Qual seria o posicionamento, mais adequado, do Estado em relação ao narcotráfico? De modo geral, durante o período da ditadura militar as leis direcionadas a faixa de fronteira apresentavam uma dimensão militarizada, visando combater os grupos guerrilheiros ou comunistas, ou qualquer, suposta, ameaça a soberania nacional. Conforme ocorreu o processo de redemocratização da nação, as políticas fronteiriças foram alteradas e passaram de uma lógica puramente militar, para uma concepção que enfatiza a democracia, desta forma a Política de Defesa Nacional (PND, 1996), em síntese, calcava-se em uma proposta cível. Diferentemente, ocorre com a Política de Defesa Nacional de 2005, que combina os objetivos militares e civis, com ênfase na noção de defesa, conforme “As fronteiras do país são apresentadas como locais de atenção, pois representaria portais para a entrada de drogas e armas no território nacional, exigindo, desta forma, uma maior atenção e investimentos no que se refere à militarização e ao desenvolvimento local.” (CARDIN, 2012, p. 10). Neste contexto, implementou-se o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) e o Programa de Desenvolvimento na Faixa de Fronteira (PDFF). Enquanto o primeiro privilegia as ações militares, o segundo almeja viabilizar o desenvolvimento e a integração na faixa de fronteira, incentivando os arranjos produtivos locais, para assim atingir-se a segurança nacional.

Ainda no que se refere ao posicionamento do Estado à faixa de fronteira, bem como das práticas sociais exercidas nela, evidentemente um governo que direciona-se ao

2 As discussões, ora, desenvolvidas partem das contribuições teóricas de Cardin (2012 e 2014).

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neoliberalismo tende à abertura das fronteiras, ampliando a liberdade econômica, e paralelamente, uma isenção do Estado sobre as demandas sociais. Opondo-se a isso, a gestão do PT, que em linhas gerais, por isso contendo inúmeras limitações, apresenta como projeto político uma orientação à socialdemocracia, atua intensamente no plano paliativo, na relativa garantia de direitos sociais e no exercício concreto de um controle aduaneiro mais intensivo, fato este que se comprova nos objetivos suscitados na Política de Defesa Nacional (2005):

O fortalecimento e o aumento no controle e na fiscalização nas aduanas – inclusive com a construção de novas estruturas – ocorreu de forma simultânea à ampliação de políticas sociais de renda mínima, de escolarização e de qualificação [...]. Não suficiente, acompanhando tais políticas públicas foram desenvolvidas um conjunto de operações policiais no sentido de desmantelar qualquer tentativa de organização e manutenção da população por meios diferentes daqueles aceitos pelo mercado, onde grupo diretamente vinculados a compra, transporte e revenda de mercadoria disponibilizadas no Paraguai foram tratados da mesma maneira que traficantes de drogas e arma, rotulados e criminalizados indistintamente. (CARDIN, 2014, p. 56). De modo sucinto, a repressão sobre o narcotráfico foi intensificada nos últimos anos, através das políticas de fronteira que mesmo adotando uma perspectiva mais civil, manteve predominantemente sua dimensão militar. Ainda é antecipado em estabelecer asserções, todavia é possível perceber à equivocada ação de “Guerra as Drogas” 3, sendo ela “[...] uma luta inglória, e é um fracasso diante das expectativas e dos recursos investidos em seu combate, uma conclusão que a maioria dos relatórios das instituições internacionais e nacionais envolvidas nessa “guerra” reluta em aceitar” (MACHADO, 2011, p. 103). Desta forma, Machado (2011) pontua alguns motivos pelos quais a “Guerra às drogas” está fadada ao fracasso, sendo: a) Lucros elevados da economia das drogas ilícitas; b) A capacidade e rapidez de adaptação das redes de tráfico à repressão; c) Ilegalidade e benefícios colaterais. Todas essas afirmativas serão observadas durante o desenvolvimento da pesquisa, para assim estabelecer qual política seria mais adequada à temática analisada.

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O NARCOTRÁFICO NA FRONTEIRA BRASIL – PARAGUAI A faixa de fronteira Brasil – Paraguai, ora analisada, abrange a extensão de Guaíra – PR à Ponta Porã – MS, representa uma das principais entradas de entorpecentes no Brasil, seja por sua proximidade aos países andinos, considera-se: Peru, Bolívia e Colômbia,

3 Políticas de repressão ao consumo e ao tráfico de entorpecentes, adotadas nos Estados Unidos, no governo Richard Nixon, a partir da década de 1970, sob a justificativa de que os entorpecentes ameaçavam a segurança interna.

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maiores produtoras da folha da coca, em decorrência, inclusive, de seus usos tradicionais (SALAMA, 2002); seja pelo fato do Paraguai ser um dos maiores produtores de maconha (SENAD, 2015). Mesmo havendo esta noção prévia, e generalizada, entre fronteira e narcotráfico, se faz necessário comprovar tal incidência. Para tanto, optou-se, inicialmente, como procedimento técnico o levantamento de dados oficiais, por meio da Polícia Rodoviária Federal do Brasil (PRF/BR) e da Secretaria Nacional Antidroga (SENAD/PY), garantindo, assim, uma maior confiabilidade. Segundo os dados da Polícia Rodoviária Federal do Brasil foram apreendidos as seguintes quantidades de entorpecentes:

Tabela 01 – Apreensão de entorpecentes BR

Entorpecente 2013 2014 Variação % Maconha (Kg) 117.674 168.722 43,4% Cocaína (Kg) 5.863,1 7.819,8 33,4 % Crack (Kg) 1.994,2 815,3 - 59,1%

Dados divulgados pela Polícia Rodoviária Federal do Brasil (PRF/BR). Tabela adaptada pela autora. Acessado em: 01/10/2015. Estes dados evidenciam uma ampliação das apreensões de maconha e cocaína dos anos de 2013 à 2014. Enquanto houve uma diminuição de apreensões em relação ao crack, demonstrando, inclusive, uma atuação mais ostensiva por parte dos órgãos de controle. Mesmo assim, são dados muito gerais que pouco esclarecem a situação na região analisada.

Tabela 02 – Apreensão de entorpecentes por Estado

Posição Estado Quantidade de Maconha

Estado Quantidade de Cocaína

1 MS 74,95 ton MS 2,617,4 kg 2 PR 55,06 ton PR 913,9 Kg 3 SP 12,84 ton SP 869,5 Kg 4 MG 6,14 ton MT 795,0 Kg 5 RJ 3,62 ton RJ 541,5 Kg

Dados divulgados pela Polícia Rodoviária Federal do Brasil (PRF/BR). Tabela adaptada pela autora. Acessado em: 01/10/2015. Já os dados acima evidenciam que em 2014 o maior índice de apreensões de entorpecentes ocorreu na faixa de fronteira Brasil – Paraguai, em específico nos estados do Mato Grosso do Sul e do Paraná, sendo possível comprovar assim que estes Estados

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são as principais rotas de entradas de entorpecentes no Brasil, e inclusive, o espaço analisado nesta pesquisa. A SENAD redirecionou sua postura, e agora “Esta institución seguirá com dicho enfoque consistente em el ataque a las estructuras, consciente de que es el caminho correcto em la guerra contra el crimen del tráfico de drogas.” (SENAD, 2015, p. 37). Considerando que o: Paraguay es el mayor produtor de cannabis en la región y el segundo del continente por detrás de México. El principal mercado de comercialización final de la hierba elícita producida en nuestro territorio es el Brasil. Hasta dicho país va cerca del 80% de la produción. [...] Por sus ubicaciones estratégicas cercanas a las fronteras com Brasil, los Departamentos de Amambay y Canindeyú son las zonas históricas y actuales de mayor concentración de cultivos de marihuana.[...] Así también, se observan cultivos de marihuana, em menos medida, em los Departamentos de San Pedroa, Caaaguazú, Alto Paraná e Itapúa. (SENAD, 2015, p. 47). Os estados apontados como maiores zonas produtoras de maconha abarcam a faixa de fronteira com o Brasil, e será o espaço analisado nesta pesquisa. Além do Paraguai ser o maior produtor de maconha, seu território é utilizado para o tráfico de cocaína (SENAD, 2015). No que tange as apreensões realizadas pela SENAD, observa-se na tabela abaixo

Tabela 03 – Apreensão de entorpecentes PY

Entorpecente 2014 2015 Variação % Maconha (Kg) 575.960,181 346.517,092 - 39,9 % Plantação de

maconha destruída (hectares)

1.966 1.656 - 15,8 %

Cocaína (Kg) 1.647,305 2.226,538 35,1 % Crack (Kg) 29,813 1,146 - 96,1 %

Dados divulgados pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD/PY). Tabela adaptada pela autora. Acessado em: 05/01/2016. Os dados ilustram que dos anos de 2014 a 2015 houve uma diminuição nas apreensões de maconha, bem como de plantações, assim como de crack, porém ampliou-se as apreensões de cocaína. Em síntese, a apresentação destes dados visou contextualizar a região fronteiriça enquanto um espaço tanto de produção como de circulação de entorpecentes, considerando a maconha, a cocaína e o crack. Porém, toda a explanação sobre o “movimento” do narcotráfico na faixa de fronteira Brasil – Paraguai, ou seja, a organização local do narcotráfico e a estrutura desta economia ilícita, somente será desvelada por meio do desenvolvimento da pesquisa. 5.1 Relação entre economia lícita e ilícita

Há uma definição desenvolvida por Ruggiero e South (1997), na qual estabelecem que a cidade ocidental, moderna, apresenta-se, metaforicamente, enquanto um “bazar”,

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conforme nota-se a proliferação do trabalho informal, causado basicamente pelas desregulamentações trabalhistas, observa-se que:

[...] alteram as relações entre trabalho e sociedade, seja no registro do trabalho que se descola dos dispositivos do emprego para se desdobrar nas formas variadas de trabalho precário, intermitente, descontínuo, e que tornam inoperantes as diferenças entre o formal e o informal; seja no registro das miríades de expediente de sobrevivência que mobilizam os “sobrantes” do mercado de trabalho, mas que também operam como outros tantos circuitos por onde a riqueza social globalizada circula e produz valor, tornando igualmente indiscerníveis as diferenças entre emprego e desemprego, entre trabalho e não trabalho. (TELLES, 2006, p. 174).

Neste contexto “as fronteiras morais entre legalidade e ilegalidade se atenuem ou são constantemente negociadas.” (MISSE, 2002, p. 13). De modo mais aprofundado, Telles e Hirata (2007) abordam esta intersecção entre os mercados formais, informais e ilícitos, considerando que há uma sobreposição dos mercados lícitos e os ilícitos, mesmo que os preceitos morais neguem tal realidade. Esta dimensão se aprofunda, se amplia, e o trabalho emerge com novos contornos, em que uma linha muito tênue separa suas distintas formas, compreende-se o trabalho precário, o emprego temporário, expedientes de sobrevivência e as atividades ilícitas.

São, precisamente, estas atividades ilícitas o objeto em análise desta pesquisa, sendo necessário a realização de trabalhos de campo e levantamento de dados qualitativos e quantitativos, para assim compreender como o narcotráfico na fronteira Brasil – Paraguai relaciona-se as demais atividades daquele contexto, mas partindo da premissa elencada acima de que as atividades ilícitas não estão desassociadas, nem mesmo são autônomas em relação a economia lícita.

[...] as atividades ilícitas mudaram de escala, se internacionalizaram e se reorganizaram sob formas polarizadas entre, de um lado, os empresários do ilícito, em particular do tráfico de drogas e que, a cada local irão se conectar (e redefinir a) com a criminalidade urbana comum e, de outro, os pequenos vendedores de rua, que operam à margem da verdadeira economia da droga e transitam o tempo todo entre a rua e a prisão. Esses são os ‘trabalhadores precários” da droga [...]. (TELLES; HIRATA, 2007, p. 174).

O que determinada se uma atividade é formal ou informal, lícita ou ilícita, é o maior ou menor grau de subordinação as regulamentações estatais. Mesmo havendo estas distinções, essas atividades, apresentam-se interligadas. Conforme apontado, há o entrelaçamento entre economia lícita e ilícita, e no interior da economia ilícita emerge outro mercado ilícito, que corresponde às “mercadoria políticas” assim como definiu Michel Misse (1995, 1997 e 2002), que em suma, é “o conjunto de diferentes bens ou

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serviços compostos por recursos “políticos” que podem ser constituídos como objeto privado de apropriação para a troca por outras mercadorias, utilidades dinheiros.” (MISSE, 1997, p. 02). Ou ainda, bens expropriados do Estado por policiais e vendidos aos sujeitos envolvidos com tráfico, ou demais atividades ilícitas, podendo ser exemplificado por atividades de suborno, ou até mesmo proteção policial. Por meio desta análise o autor supera a típica relação: drogas – crime, e estabelece a sobreposição entre o narcotráfico e as “mercadorias políticas”, estas, por sua vez, representam proteção, liberdade ou segurança. Em suma, este conceito refere-se a uma das posições que o Estado assume na formação e estruturação da economia ilícita.

A relação entre narcotráfico e “mercadorias políticas” potencializa a violência, pois “não há como dissociar, funcionalmente, a expansão regular do comércio de mercadorias ilegais, o emprego da violência na base das relações de poder e a expansão do mercado potencial de mercadorias políticas.” (MISSE, 1997, p. 15). Neste contexto, as políticas de criminalização de determinadas atividades e mercadorias, viabilizam o desenvolvimento de um conjunto de atividades criminais, que se relacionam e se sobrepõe as já existentes.

Em congruência, Telles (2012) aponta que estas fronteiras porosas entre o ilegal e o legal, ou ainda, entre a economia ilícita e o Estado, sustentam-se em “campos de força”, que são reconfigurados constantemente “oscilando entre a tolerância, a transgressão consentida e a repressão.” (TELLES, 2012, p. 10). Conforme as leis, contraditoriamente, possibilitam a criação de “zonas de ambiguidade e de ilegalidade, que criam por sua vez todo um campo de práticas e agenciamentos que se ramificam por vários lados, também mercados alternativos e oportunidades para bens e serviços ilegais” (TELLES, 2012, p. 20).

Outra dimensão que viabiliza a relação entre a economia ilícita à lícita condiz à lavagem de dinheiro, ou seja, quando a riqueza gerada pelo narcotráfico é inserida na economia formal, as possibilidades de investimentos são amplas, perpassando tanto o setor especulativo, quanto de geração de empregos (SALAMA, 2002). Captar como se dá este processo na região analisada é indispensável para atingir uma apreensão acerca da economia ilícita, uma vez que:

As despesas dos narcotraficantes são de uma ou outra forma geradoras de empregos e criadoras de riquezas. A importância dos seus efeitos sobre o crescimento depende de múltiplos fatores: se se trata de despesas suntuárias ou diretamente especulativas, como a compra de terrenos, os efeitos sobre a criação de riquezas são pequenos ou até nulos. Se se trata de despesas no setor de construção, os efeitos em cadeia podem ser importantes e gerar novas atividades produtivas graças à ampliação dos mercados. Portanto, os efeitos indiretos sobre o emprego e a criação de riquezas dependem ao mesmo tempo da parte investida nas despesas dos narcotraficantes e do lugar em que esses investimentos são realizados. (SALAMA, 2002, p. 148).

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Em suma, é possível inferir sobre a imanente combinação estabelecida entre economia lícita e ilícita, conforme a riqueza gerada por meio da economia ilícita se estende à economia lícita. Sendo imprescindível rastrear a importância econômica do narcotráfico na realidade local, considerando como são investidos os recursos provenientes destas atividades. Visa-se identificar como está estruturado o narcotráfico, verificando a possível existência das “mercadorias políticas” e das atividades de lavagem de dinheiro, já que: “Múltiplas e complexas redes sociais se desenvolvem a partir dessas diferentes estratégias aquisitivas, legais e ilegais, relacionando “mundos” que o imaginário moral prefere considerar como inteiramente separados entre si.” (MISSE, 1997, p. 2).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho, que ainda encontra-se em fase de desenvolvimento, objetivou oferecer uma explanação introdutória acerca da economia ilícita, correspondente ao narcotráfico de entorpecentes, que ocorre em determinada faixa de fronteira entre o Brasil e o Paraguai, em específico, de Guaíra – PR à Ponta Porã – MS, a existência do narcotráfico nesta região foi comprovada através dos dados da Polícia Rodoviária Federal do Brasil (PRF/BR) e da Secretaria Nacional Antidroga (SENAD/PY), verificando-se que a região analisada configura-se enquanto uma das principais entradas de entorpecentes ao território nacional.

Verificou-se também que as atuais políticas de fronteira intensificaram o controle aduaneiro, calcando-se nos princípios de militarização destes espaços, fato que se comprova nos objetivos suscitados na Política de Defesa Nacional (2005), tais esclarecimentos foram obtidos através de Cardin (2012, 2014).

Neste momento, restringindo-se à análise de literatura, observou-se que a economia ilícita está intrinsecamente articulada a economia lícita, principalmente após as reestruturações produtivas, havendo uma fronteira porosa que separa o trabalho precário, o emprego temporário, expedientes de sobrevivência e as atividades ilícitas, conforme Telles e Hirata (2007) estabelecem. Porém, é imprescindível a realização dos trabalhos de campo, das entrevistas e a análise da imprensa escrita para compreender, de fato, como esta relação entre o lícito e o ilícito se manifestam no espaço em análise, verificando-se assim a ocorrência ou não das Mercadorias Políticas (MISSE, 1997) e os processos de lavagem de dinheiro (SALAMA, 2002).

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Em síntese, a demonstração da centralidade do trabalho, enquanto um complexo central e decisivo na formação do ser social (LUKÁCS, 1978), impõe a determinação das relações de produção, na constituição do todo social (KOSIC, 1995), portanto para o efetivo desvelamento do narcotráfico na fronteira Brasil – Paraguai o caminho a ser percorrido perpassa, além do mundo do crime, o mundo do trabalho.

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