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07 a 10 de maio de 2013 – Londrina-PR
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O NEGRO:
O OLHAR DE LUIS TRIMANO SOBRE AS FOTOGRAFIAS DE
CHRISTIANO JÚNIOR
Emmanuelle Dias Vaccarini1
A proposta de pesquisar a série de ilustrações intitulada O Negro, do argentino Luís Trimano,
surge a partir de um interesse em conhecer mais sobre a série de 32 pranchas desenhadas com
bico de pena e nanquim. O intuito é apreender os motivos que impulsionaram o artista a cria-
la e qual o discurso presente nos elementos visuais no conjunto da obra. Para a compreensão
específica dessa série, é necessário abranger um pouco o olhar sobre o panorama da produção
de Trimano, justamente para entender quais são os recursos viabilizados para a criação. Ao
pesquisar o modo de ser e fazer do ilustrador, a série O Negro emerge como ponto
interessante da produção do artista, que concebe a obra a partir de um incômodo ao visitar
uma exposição na qual estavam algumas fotografias de negros do século XIX e determinados
objetos referentes a escravidão, como um tronco. Com o incômodo causado, Trimano inicia
suas pesquisas sobre aquelas fotografias e chega ao fotógrafo português Christiano Júnior, que
vive no Rio de Janeiro entre 1863 e 1867, quando muda para a Argentina por problemas de
saúde. Portanto, não tem como falar da série de Trimano sem falar das fotografias de
Christiano e para falar do negro de Trimano, é necessário conhecer o negro de Christiano.
Palavras-chaves: Luís Trimano, Imagem, Negro
1 Doutoranda em Imagem e Cultura pelo PPGAV-EBA-UFRJ. Agência financiadora: CAPES. Eixo temático: Cultura Material e Imagem
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EL NEGRO:
LA VISIÓN DE LUIS TRIMANO SOBRE LAS FOTOS DE
CHRISTIANO JUNIOR
Emmanuelle Dias Vaccarini2
La propuesta de investigar la serie de ilustraciones titulada El Negro, del argentino Luis
Trimano surge de un interés en conocer más sobre la serie de 32 láminas dibujadas con lápiz y
tinta. El objetivo es comprender las razones que impulsionaron el artista a crearlo Y LOS
elementos visuales que contiene la obra. Para entender esta serie en particular, es necesario
conocer un poco el aspecto sobre la producción de Trimano, para entender qué recursos son
utilizados para la creación. Al investigar la manera de ser y hacer del ilustrador, la serie El
Negro emerge como punto interesante de la producción del artista que concibe la obra de una
incómoda visita a una exposición acerca de los negros, com algunas fotografías del siglo XIX
y ciertos objetos refiriéndose a la esclavitud, como un tronco. inconmididad causadas,
Trimano comienza su investigación sobre las fotografías y llega al fotógrafo portugués
Christiano Junior, que vive en Río de Janeiro entre 1863 y 1867, cuando decide transladarse a
la Argentina debido a problemas de salud. Por lo tanto, no hay manera de hablar de la serie de
Trimano, sin mencionar las fotografías de Christiano y para hablar acerca de el negro de
Trimano, debe conocer al negro de Christiano.
Palabras clave: Luís Trimano, Imagen, Negro
2 Doutoranda em Imagem e Cultura pelo PPGAV-EBA-UFRJ. Agência financiadora: CAPES. Eixo temático: Cultura Material e Imagem
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O NEGRO
Ao longo da pesquisa sobre a série de 32 pranchas produzidas por Trimano, a partir das
fotografias do português Christiano Júnior, que veio para o Brasil em 1855, um discurso
semiológico perpassa essa análise, de forma a entender os elementos que são repetidamente
parte dessa história do Negro na sociedade, observada por Trimano.
Antes de entrar propriamente na análise da série, vale compreendermos brevemente a
origem de Trimano e sua produção no cenário nacional, a fim de situar a postura artística de
quem decide caminhar pela ilustração de cunho político-social, como coloca o próprio artista,
em entrevista por email em 19/01/2010.
Pouco depois do período de estudos, depois de ter conseguido dominar razoavelmente as técnicas, começou a se manifestar em mim, a necessidade de expressar não só os temas do quotidiano, como também a temática social. Neste período as influências foram principalmente os pintores e gravadores argentinos que trabalhavam no chamado Realismo Social. Alguns nomes para você pesquisar na Google: Juan Carlos Castagnino, Lino Enea Spilimbergo, Antonio Berni e posteriormente Carlos Alonso. Todos eles pintores muralistas e também ilustradores literários, e alguns deles gravadores, como no caso de Berni. Também posso citar como influências decissivas, os muralistas surgidos da Revolução Constitucionalista Mexicana iniciada em 1910, a primeira revolução socialista que ouve no mundo (a Revolução Russa se inicia em 1917), foram eles: David Alfaro Siqueiros, Diego Rivera, José Clemente Orozco, e o gravador de temas ligados ao corde José Guadalupe Posadas, famoso pelas suas "caveiras".
Na produção da série O negro, realizada entre os anos de 1998-2001, o artista fez
estudos aprimorados sobre a arte fotográfica de Christinao Jr. e pôde, dessa forma, criar uma
ponte de ligação entre memória, história, arte, cultura e sociedade, o que resulta numa
produção de cunho político e antropológico. Elementos trabalhados por Trimano, que costura
essa história dos negros no Brasil, utilizando informações visuais como arame farpado, fita
adesiva e costuras que mostram a dificuldade de um povo para conseguir seu espaço. Um
trabalho que traz em sua produção, uma parcela de contribuição para meio artístico.
Ao pensar especificamente nessa série, compartilho com Aumont (1995) o interesse
pelo visual e seus pontos específicos em alguns motes das imagens destacadas, que tiveram
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como base as fotografia de Christiano Jr. e de uma certa forma, remetem ao que poderíamos
ver em cenas reais.
A proposta de Luis Trimano trabalhar com o negro a partir da análise das fotografias
do português Christiano Jr. tem ligação direta com seu interesse em pesquisar a cultura do
“outro”, ou seja, um trabalho de cunho antropológico que cria um diálogo entre fotografia,
História da Arte e iconografia do corpo do negro visto na cidade do Rio de Janeiro, desde que
chegou no Brasil em 1968.
Figura 1 - Fotografias de Christiano Jr., datadas de 1865
De acordo com Trimano
Eu já vinha trabalhando na problemática do negro brasileiro desde a minha chegada ao país em 1968. Eu provenho de Buenos Aires, cidade "branca". O negro é outro povo, outra raça, outro mundo, da mesma forma que o oriental. Daí surge o interesse, a curiosidade "pelo outro". E convivendo com pessoas que são os descendentes dos que protagonizaram a escravatura, o envolvimento é muito maior.
Nessa perspectiva, Trimano se coloca como aquele que olha para a cultura do outro
como espectador, analista e relator do acontecido, visto que vem refletindo sobre o fato
representado, em imagens.
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Como levanta Marin (1973), para analisarmos uma imagem, precisamos primeiramente
analisar o discurso descritivo presente. Devemos perguntar a respeito da imagem, sobre sua
inocência ilusória, aparente imediata, para aí sim conseguirmos prosseguir na investigação
dos valores culturais, sociais, afetivos, políticos e históricos presentes.
Para Foucault (2002)
Em todo o caso, há pelo menos uma coisa que deve ser sublinhada: assim entendida, a análise do discurso não vai revelar a universalidade de um sentido, mas trazer à luz do dia a raridade que é imposta, e com um poder fundamental de afirmação. Raridade e afirmação, raridade da afirmação — e de maneira nenhuma uma generosidade contínua do sentido ou uma monarquia do significante.
Trimano não foi somente produtor da série, ele também foi espectador, de acordo com
Aumont (1995). Trimano precisou analisar as imagens que ele tinha, refletir sobre elas e a
partir disso interagir e trazer para seu tempo uma discussão que era de seu interesse, ou seja,
um olhar nada ingênuo e sim impregnado de sentidos, que resultou na série O Negro.
A concepção
Alguns esperam de nós intelectuais, que nos agitemos a todo momento contra o poder; mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é contra os poderes, e não é um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo estado de coisas (Roland Barthes)
De acordo com Trimano (2010), o interesse específico nas fotografias de Christiano Jr.
surgiu numa visita ao Museu Histórico da Praça XV, local onde foi montada uma pharmacia
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de manipulação do século XIX e algumas salas em que foram mostrados objetos de uso
cotidiano, mobília, armas e ferramentas da época.
Foi numa dessas salas que Trimano se deparou com as fotografias produzidas por
Christiano Jr. e percebeu que ali havia algo que o atraía. Junto a essas fotografias carregadas
de expressão, havia um tronco do tempo da escravidão, que ajudava a compor a exposição.
Ao contemplar todo aquele material visual que não só era testemunha da história, mas fio
condutor da memória de uma época, Trimano ficou muito interessado em analisar e trazer
para a contemporaneidade um diálogo com as fotografias dos negros do século XIX,
moradores da cidade do Rio de Janeiro.
Para Trimano
A série "O Negro" vem a resumir um trabalho temático que vinha desenvolvendo já faz algum tempo. Também significa do ponto de vista da pesquisa visual, uma reflexão sobre o tema da participação da fotografia, na arte contemporânea, principalmente naqueles artistas que ilustramos acontecimentos sociais.
A proposta de Timano foi justamente mostrar a história dos negros na sociedade
brasileira. Uma história construída depois de muitos anos de luta, representados na série
analítica através de costuras, amarras, colagens e montagens que dão vida à criação do artista.
Por isso, a partir daqui cabe uma questão que é discutida por Aumont (1995) e Manguel
(2001) e que faz indagar tanto do ponto de vista do Trimano ao observar as fotografias de
Christiano Jr. como eu própria ao analisar as imagens de Trimano: Até que ponto se deve
acreditar na realidade das imagens? Uma pergunta que está latente ao longo da análise e
permite uma reflexão acerca dessa busca, como aponta Barthes (1990)
Temos, pois, quatro signos para essa imagem, formando presumivelmente um conjunto coerente, pois são todos descontínuos, exigem um saber geralmente cultural e remetem a significados globais (por exemplo, a italianidade), impregnados de valores eufóricos; seguindo-se à mensagem lingüística, veremos uma segunda mensagem, de natureza icônica. Será tudo? Se retirarmos todos esses signos da imagem, restará, ainda, um certo material informativo; privado de todo saber, continuo a “ler” a imagem, a “compreender” que ela reúne, em um mesmo espaço, um certo número de objetos identificáveis (nomeáveis) e não somente formas e cores. Os significados dessa terceira mensagem são formados pelos objetos reais da cena, e os significantes por esses mesmos objetos fotografados, pois é evidente que, na representação analógica, a relação entre a coisa significada e a imagem significante, não sendo mais “arbitrária” (como é na língua), dispensa o relai de um terceiro termo, sob a forma da imagem psíquica do objeto. O que especifica ess
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terceira mensagem é, na realidade, que a relação do significado e do significante é quase tautológica. (p. 29 e 30)
Na série O Negro, a proposta é investigar esses elementos anteriormente levantados, de
forma a transcender os limites do visível, compreendendo os valores que se distanciam ou
aproximam em sua relação com o outro. Certamente não pretendo esgotar todas as
probabilidades e sim chegar ao ponto da minha questão, deixando latentes as demais
possibilidades.
Análise da série O Negro
Quando lemos imagens – de qualquer tipo, sejam pintadas, esculpidas, fotografadas, edificadas ou encenadas -, atribuímos a elas o caráter temporal da narrativa. Ampliamos o que é limitado por uma moldura para um antes e um depois e, por meio da arte de narrar histórias (sejam de amor ou de ódio), conferimos à imagem imutável uma vida infinita e inesgotável.” (MANGUEL, 2011, p.27)
Na série composta de 32 desenhos em preto e branco sobre papel, nas dimensões de
1,00 x 0,80m, encontramos o emprego de técnicas de nanquim em bico de pena, pincel e
caneta esferográfica. Uma produção que possui um teor de política, religião, cultura e
sociedade, tratados de forma caricata pelo artista, que mostra em sua obra um local fantástico
para o corpo.
Em algumas pranchas da série, a ideia é buscar embasamento nas observações de
Roland Barthes sobre a imagem e em Foucault sobre a questão do corpo do negro do ponto de
vista de Trimano ao realizar a série.
Ao analisar a figura 2, composta de duas imagens (a da esquerda uma fotografia de
Christiano e a da direita uma ilustração de Trimano) logo vem uma questão que também
encontro latente em Manguel (2001, p. 230) “Que raça um brasileiro deveria esperar ver
quando se olhava no espelho? De que cor era a alma brasileira?”. Difícil decifrar, pois cada
ser humano pensa de uma forma, mas podemos encontrar possibilidades para responder essa
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pergunta. Através da semiologia podemos, pelo menos iniciar uma discussão a que se propõe
a imagem.
Quem são esses negros? O Negro de Christiano é o mesmo negro apresentado pro
Trimano?
Na ilustração de Trimano, ao analisarmos a imagem de cima para baixo, percebemos
logo de imediato a menção à assinatura de Christiano Júnior no topo da ilustração. Uma
assinatura recortada, mas que remete as fotografias produzidas por Christiano Jr. com negros
do século XIX.
Figura 2 – fotografia de Christiano e prancha da série O NEGRO
Esse escravo foi rasgado, teve sua identidade alterada, sua história impressa por
Cristiano Júnior e revisitada por Trimano. Seus olhos vêem, mas parecem não enxergar, sua
boca fala, mas não emite som. Seu grito está abafado, seu medo está velado, talvez pela
fotografia, talvez pela pose, talvez pelo tempo ou pelo seu senhor ou pelo próprio olhar do
artista. Christiano Júnior mostra um escravo fotografado, Trimano um homem escravizado de
outrora, revisto pelos tempos de agora. Quem é esse homem que vemos em Christiano e que
vemos em trimano? O que ele tem a contar? Sua história, o peso de sua vida, o peso de sua
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bigorna, aquela que pode esmagar um homem ou as correntes que o separa da sociedade que
pretendeu ingressar e que remete a muitos outros homens, negros livres de agora.
De acordo com Trimano (2011)
a bigorna nesse desenho tem o significado de "ferramenta de forja" muito antiga. utilizada para todos os trabalhos de ferraria, incluindo as correntes e os ferrolhos empregados na escravização. No desenho, a corrente que mantem o homem preso pelo pescoço, está ligada (visualmente) a bigorna. O corte da cabeça na altura da boca que se repete mais sutilmente em outros desenhos significa calar o outro. não deixar o outro falar, se expressar os cortes na altura da boca, significam isso a imposição do silêncio.
A história possui fragmentos, possui olhares e compreensões diversas, assim como
aponta Trimano em sua construção, em seu olhar para o outro escravo que pretende pertencer
a sociedade e outro escravo que pretende se libertar dela. Pontos de vistas que hora se
encontram hora se afastam.
Nessa prancha encontramos um ir e vir no tempo, um olhar que invade e outro que
revisita, instiga, questiona e incomoda sem cessar.
Figura 3 – fotografia de Christiano e prancha da série O NEGRO
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Na figura 3, encontramos na prancha da série O Negro um estudo sobre a fotografia de
Christiano Júnior (a esquerda). Nessa imagem uma criança com sua mãe. Para Christiano
Júnior eram modelos posando para seus timbres-poste3, ou seja, eram miniatura dos cartões
de visita, comumente conhecido na Europa daquela época, como Victoria ou mingnon. Esses
retratos possuíam o formato 6,4 cm x 3,2cm e podiam ser colocados no alto das cartas. Para
Trimano, essa imagem possui representação cultural outra que não é aquela na qual foi criado
na década de 1950 em Buenos Aires, uma cidade tipicamente com costumes europeus e
formada por uma sociedade dita branca, pois seguia os moldes europeus.
No olhar de Trimano encontramos adesivos que tentam pregar, juntar e (re)construir a história em fragmentos. Ele passa fita adesiva desenhada para juntar o quebra-cabeças dessas vidas.
Ele desconstrói a fotografia de Christiano Júnior produzida no século XIX e reconstrói um novo olhar, permitindo uma (re)significação de valores que lhe são apreciados. Valores políticos e sociais, que fazem parte de suas obras.
De acordo com Burke (2004)
(...) contar a história através de imagens seria impossível sem a utilização de fórmulas visuais. Sua função é a de facilitar a tarefa do espectador bem como a do narrador, tornando certas ações mais reconhecíveis, ao custo da eliminação de algo da sua especificidade. É também necessário contextualizar a narrativa. Em outras palavras, historiadores – como de costume – têm de se questionar sobre que estava contando a história, deste modo, e para quem; e quais poderiam ter sido suas intenções ao assim fazê-lo. (p. 193)
Na prancha encontramos o fim de uma época de escravidão, um rompimento com as amarras que separam negros da sociedade que vive livre de algemas, bigornas e outros elementos visíveis, mas que permanece nas amarras de outros poderes implícitos em discursos políticos arraigados e inflamados de ‘prometo se eleito’ e nada cumpro se eleito.
Para Trimano (2011)
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esta quem sabe seja, a prancha menos tensa da série. Retrato de uma moça de "poncho" listrado e um menino em cima de um banco de palha, do seu lado. a imagem é bem "caipira", aleás, esse ar, todos eles tem gente muy telúrica essa. (sic)
Mesmo com o tempo, com as mudanças sociais e políticas, podemos perceber uma permanência de postura na imagem, tanto na de Christiano Júnior, quanto na de Trimano. Uma postura que mantém certo zelo pela infância, um zelo com a criança, que fica um pouco mais atrás da outra figura.
Na prancha 4 encontramos a figura de uma senhora vendendo frutas ou legumes e um
menino comprando. Na construção do ilustrador percebemos uma aproximação das
personagens e lacunas na história, apreendidas pelos rasgos do papel, representados através de
desenho. A senhora olha e tem sua boca recortada, o que ela vê ela não fala, não passa a
diante, guarda pra si, não tem voz ativa em sua própria história. São modelos que representam
a história e a memória de uma época e de um povo.
Figura 4 – fotografia de Christiano e prancha da série O NEGRO
O menino não questiona, não comenta, ele tem o olhar baixo. Para Trimano o menino
está ali para ajudar, para servir sem indagar. Que menino é esse? Qual menino não tripudia?
Qual menino não brinca? Esse está sério, tem um propósito e um dever, que não sabemos,
mas podemos perceber em sua feição, em seu gesto.
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Será que ele representa de acordo com as orientações do fotógrafo somente? Ou será que tem
algo velado que esse menino traz para a imagem? Trimano o retrata como aquele que não tem
voz, aquele que não pode ser ouvido, pois não tem permissão para falar. A parte que lhe
caberia dizer não é permitida.
De acordo com Trimano (2011)
nesta composição, o turbante da mulher também chama a atenção logo. Aquí se trata de uma escrava ya alforriada, mas não livre, pois a sua condição de pessoa "levada a misêria" não lhe permitiria escolhas, como não lhes são, de um modo geral, permitidas escolhas aos negros até hoje. É esses turbantes majestosos, tem a aparência de roupas de nobres. Ou gente distinta. Se levarmos em consideração as condições extremamente brutais em que estas pessoas eram forçadas a viver, esa elegancia, é uma virtude que eles traziam consigo. Que faziam parte do seu cuotidiano, antes da invasão escravócrata. O asterisco de número no ángulo inferior esquerdo significa, (neste trabalho e nos outros retratos) a vendilhagem, asteriscos desse tipo, são utilizados para denominar mercadorias, ou indicativos urbanos. Tudo assossiado ao comercio. As barras listradas são porteiras. Significam espaços onde pessoas são proibidas de transitar. Este elemento, assim como as orelhas dos jogos de armar de antigamente, se referem sempre que os tenho utilizado, apontam para a exclusão. (sic)
Sabemos que no século XIX as fotografias eram muitas vezes realizadas em estúdio,
com auxílio de um suporte, para manter o modelo na pose desejada. Porém, as expressões e os
olhares, ou a ausência deles, nos levam a indagar a história e mais especificamente nesse caso,
as produções fotográficas desses negros. As produções em série com as carte de visite, um
formato fotográfico que poderia ser reproduzido em série e que é devidamente representado
nas ilustrações de Trimano.
Encontramos um número no canto inferior esquerdo, que representa mais uma
marcação, algo feito em série, relacionado a dinheiro e a troca de valores, como aponta o
próprio Trimano em entrevista por email.
Com elementos como papel, adesivo, cortes e recortes Trimano critica, argumenta e
insitiga o espectador para conhecer e questionar o mundo que ele vê e reproduz. Para ele o
negro não tem voz, ele precisa obedecer, ele não está livre, mesmo que tenha alforria. Em sua
prancha e em seu discurso, ele mostra que o negro não tem livre escolha, que ele não pode ser
expressar livremente, que ainda hoje, ele luta para libertar as correntes invisíveis que amarram
sua história.
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Para Barthes (1978)
É sem dúvida, na exata medida da nossa atual alienação, que não conseguimos ultrapassar uma apreensão instável do real; nós caminhamos incessantemente entre o objeto e a sua desmistificação, incapazes de lhe conferir uma totalidade: pois, se penetramos no objeto, libertamo-lo, mas destruímo-lo; e, se lhe deixamos o peso, respeitamo-lo, mas devolvemo-lo ainda mistificado. Parece que estamos condenados, durante certo tempo, a falar excessivamente do real. (p. 251)
Ao mergulhar na produção da série O Negro, existe a necessidade de desvelar algumas
questões, de entender algumas observações, algumas pontuações que Trimano traz para a
discussão.
Aqui foram apresentadas somente três das trinta e duas ilustrações da série, bem como
algumas observações acerca dessa análise de imagens. Apreensões que perpassam o processo
histórico do negro na sociedade brasileira, mais especificamente na carioca, o processo de
formação de Trimano enquanto ilustrador voltado para temas sociais e políticos e o trabalho
fotográfico e comercial de Christiano. Um encontro entre diferentes séculos, diferentes
técnica e suportes que ligam a história do negro na cidade do Rio de Janeiro. Uma história
impregnada de dor, luta e busca por espaço.
Associada a essa produção fotográfica do século XIX de Christiano Jr., a arte
contemporânea de Luis Trimano vem contribuir como parte fundamental da construção de um
mosaico cultural que une cultura, antropologia, arte e política. Sua proposta valoriza o
conceito autoral de ilustração. Com produções que possuem traços expressionistas, refletindo
sua opinião e seu ofício através do aprimoramento técnico e conceitual da imagem, une
elementos das artes plásticas e artes gráficas, apreendidos nos ateliês dos pintores neo-
realistas freqüentados por ele adolescente em Buenos Aires.
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