O Neocontratualismo

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    Em homenagem a John Rawls (1921-2002)

    I

    A nfase de Rawls nas questes de justia, e no nas de legiti-midade, nos d uma boa indicao de como o contratualismo inauguradopor este autor traz uma nova agenda de questes para a tradio do contra-tualismo como um todo. Isto corresponde a um turning point no pensamen-to poltico de matriz liberal. Para compreender melhor esse aspecto da con-tribuio rawlsiana para o pensamento poltico contemporneo, vale a penareconstruir os argumentos que fundamentam a nova agenda. Esses argu-mentos aparecem com maior clareza se consideramos a democracia como oterceiro termo das nossas preocupaes, junto com a justia e a legitimi-

    dade. Esto em jogo os deslocamentos e as rearticulaes que Rawls pre-tende estabelecer entre essas trs dimenses fundamentais do pensamentopoltico moderno, ao abrir uma nova etapa na histria do liberalismo.

    Antes de dizer como a democracia e a justia podem estar vin-culadas, seria interessante especular sobre os modos pelos quais aparecemcomo conceitos distintos. Na edio paperbackde Political Liberalism(Columbia University Press, 1996), onde est publicado sua resposta scrticas feitas por Habermas primeira edio do livro (1993), Rawls faz

    uma contraposio entre questes de legitimidade e questes de jus-

    LEGITIMIDADE, JUSTIA EDEMOCRACIA: O NOVOCONTRATUALISMO DE RAWLS*

    CICERO ARAUJO

    * Um rascunho do que est exposto neste artigo foi apresentado no Simpsio de tica, emUberlndia (junho de 2002).

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    tia. O modo de se escolher os governantes num regime democrtico, dizele, pode atender a todos os critrios de legitimao tpicos da democracia

    e suas decises idem. Ainda assim, as decises dos governos democrticospodem ser injustas:

    Dar foco legitimidade em vez da justia pode parecer umponto menor, j que ns podemos pensar legtimo e justocomo idnticos. Um pouco de reflexo mostra que eles noso. Um rei ou rainha legtimos podem governar como umaautoridade efetiva e justa, mas tambm no podem; e por certono necessariamente de modo justo, embora legtimo. O fato

    de serem legtimos diz algo sobre seu pedigree: como vieramao cargo (...) Um aspecto significativo da idia de legitimidade que ela permite uma certa margem no quo bem soberanospodem governar e quanto podem ser tolerados. O mesmo valepara um regime democrtico. Ele pode ser legtimo e de acor-do com uma longa tradio originada quando sua constituiofoi aprovada pelo eleitorado (o povo)... E no entanto ele podeno ser muito justo, ou muito pouco justo, e assim tambm as

    suas leis e polticas. (Political Liberalism, p. 427)1

    As leis podem ser aprovadas com slidas maiorias e atender atodas as exigncias do processo democrtico e, no entanto, serem alta-mente questionveis do ponto de vista da justia. Rawls, contudo, no estnegando que haja uma forte ligao entre o processo democrtico e a

    justia. Apenas est nos alertando de que no so conceitos idnticos ou demesma extenso: Embora a idia de legitimidade esteja claramente rela-cionada justia, deve-se observar que seu papel especial nas instituiesdemocrticas (...) autorizar um procedimento apropriado para tomardecises quando os conflitos e desacordos na vida poltica tornam a una-nimidade impossvel ou raramente esperada. (p. 428).

    Contudo, h um ponto a partir do qual a injustia das decisescomea a corromper a prpria legitimidade do processo democrtico. Arazo que este ltimo funda-se num arcabouo constitucional quedepende de nossas convices a respeito da justia poltica:

    A legitimidade dos atos legislativos depende da justia da cons-tituio (...) e quanto maior o desvio da justia, mais provv-

    el a injustia dos resultados. Para que possam ser legtimas, asleis no podem ser injustas demais. Procedimentos polticos

    1 Todas as tradues so de responsabilidade do autor.

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    constitucionais podem de fato ser... puramente procedimentaisquanto legitimidade. Em vista da imperfeio de todos os pro-

    cedimentos polticos humanos, no pode haver tal procedimen-to com relao justia poltica, e nenhum procedimento pode-ria determinar seu contedo substantivo. Logo, sempre depen-demos de nossos juzos substantivos de justia. (p.429)2

    A distino entre democracia e justia pertinente. Porm, somosobrigados a refletir sobre questes de justia quando se trata de traar at ondepodemos tolerar decises procedimentalmente legtimas. A justia traa oslimites da legitimidade democrtica.3 Mais do que isso: se quisermos avaliar

    quo justas so as decises dos regimes democrticos, olhar para os procedi-mentos de legitimao das decises claramente insuficiente, mesmo quandoas consideremos aceitveis, isto , dentro da margem de tolerncia necessria sustentao do jogo democrtico. Pois quando fazemos tal avaliao, sem-pre dependemos de nossos juzos substantivos de justia. Este ponto no sexpe a diferena entre a posio original rawlsiana e a situao ideal dediscurso habermasiana. Mais importante ainda que expe a diferena deperspectivas da teoria da justia e da teoria democrtica. Vejamos.

    Primeiro, a teoria da justia eminentemente normativa,enquanto a teoria democrtica, alm de ser normativa (o que devem serasinstituies polticas), tambm descritiva e explicativa (como as institu-ies democrticas funcionam). Segundo, no plano estritamente normativo,uma teoria geral da justia tem de lidar com o problema da relao entreigualdade e desigualdade entre pessoas ou grupos de pessoas, determinan-do que igualdades so corretas (moralmente justificveis) e que desigual-dades so incorretas (moralmente injustificveis); ou, inversamente, quedesigualdades so justificveis e que igualdades so injustificveis.Terceiro, o problema da igualdade/desigualdade no unidimensional. Eleaparece em diversos nveis: por exemplo, na dimenso da distribuio derecursos materiais, na dimenso da determinao dos crimes e das penas,na do acesso educao e sade, na da participao poltica e assim pordiante. Ademais, o reconhecimento da igualdade numa dimenso noimplica o mesmo reconhecimento em outras dimenses.

    2 Embora Rawls faa uma distino entre justia procedimental e justia substantiva, elevai argumentar, em sua discusso com Habermas, que a justia, no plano em que a est tratan-

    do, nunca puramente procedimental, mas sempre tem alguma base substantiva.3 Os critrios mais abstratos (ou filosficos) que definem o que torna um regime poltico legti-mo podem ser considerados um ramo de uma teoria geral da justia. Repare-se, porm, que: (a)isto j mostra que a teoria da legitimidade poltica no da mesma extenso de uma teoria da

    justia completa; (b) que bem possvel que vrios tipos de regimes polticos sejam compatveiscom os mesmos critrios abstratos de justia poltica.

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    Os tericos da justia, hoje como na Antigidade Clssica, divi-dem-se entre os que acham que possvel integrar esses vrios nveis num

    conjunto sinttico de princpios gerais e outros, que acham que esta perspec-tiva est fadada ao fracasso. Ambos, porm, sabem que a justia se fala emvrios modos. E isso quer dizer, entre outras coisas, que ela no se restringe dimenso estritamente poltica. Contudo, h de fato uma questo especfi-ca de justia no que se refere ao exerccio do poder poltico. E aqui que aparte normativa da teoria democrtica dialoga com a teoria da justia. Este ,por exemplo, o problema de quem pode participar e como deve participar dasdecises coletivas. H uma questo de igualdade neste problema? Todos os

    que so afetados pelas decises polticas, e so obrigados a obedec-las,devem participar igualmente dessas mesmas decises? Naturalmente, esta uma das questes centrais da teoria democrtica.

    Todavia, nenhuma teoria completa da justia afirmar que a cor-reta distribuio de poder poltico transporta automaticamente a justia paraos demais nveis. Vale dizer, conceitualmente possvel, numa comunidadepoltica onde se promova uma razovel e substantiva igualdade polticaentre os cidados, que as decises coletivas sejam injustas em outras dimen-

    ses, tais como a forma da distribuio dos recursos produtivos e naturais,do acesso educao e sade etc. A justia um tema mais amplo e emvrios aspectos independente da teoria do regime poltico legtimo.

    Nos ltimos desdobramentos de sua obra, Rawls passou a chamarseu novo contratualismo de liberalismo poltico. Como o contratualismomoderno uma das plaformas de inspirao do pensamento liberal clssico,talvez no seja to abusivo feitas as devidas ressalvas chamar o liberalis-mo poltico rawlsiano de novo liberalismo, termo que vamos empregar aquinum sentido mais restrito do que em seu uso popular. Finalmente, esperamosque o contraste entre liberalismo e novo liberalismo que passamos a fazeragora possa nos dizer algo sobre a diferena entre democracia e justia.4

    II

    Costuma-se contrapor o iderio poltico popularmente adjetiva-do como neoliberal ao liberalismo de feitio mais igualitarista, como o deRawls. Porm, se tomarmos o termo ao p da letra, neoliberalismo ou

    novo liberalismo tambm poderia referir-se a um revigorado liberalismo

    4Para uma abordagem do mesmo tema, mas de um outro ngulo e projetando luz sobrequestes que no sero abordadas aqui, ver lvaro de Vita, Democracia e justia. Lua Nova50/2000, pp. 5-23.

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    na teoria poltica contempornea, mais ou menos como falamos de neore-publicanismo, neomarxismo e assim por diante. E de fato o pensamento de

    Rawls um marco na recuperao contempornea do pensamento liberal,e que vai dar origem a outras vertentes de um liberalismo renovado, algu-mas mesmo fortemente adversrias de seu prprio pensamento (por exem-plo, Robert Nozick).

    Liberalismo, sem dvida, um termo muito genrico. Abrangetantas possibilidades e tantas verses que torna difcil dar-lhe uma definio.A dificuldade maior talvez resida no fato de que o liberalismo no apenasuma corrente terica da tradio do pensamento moderno (isto , da filosofia

    e teoria poltica), mas tambm uma prtica e uma ideologia polticas, cujoteor varia de um lugar para outro e de um momento histrico para outro. Paradiminuir a vagueza do termo, vamos tentar trat-lo mais do ponto de vista dafilosofia e teoria polticas do que do ponto de vista da prtica e da ideologiapolticas, embora tenhamos de adiantar que nem sempre ser possvelpreservar essa fronteira com todo rigor. Procederemos do mesmo modo aofalar do novo liberalismo. Isso implica enfrentar a questo de um patamarmais abstrato e conceitual; o que no deixa de ter seu interesse prtico, se

    esse patamar nos ajudar a entender melhor o significado das prticas polti-cas associadas tradio liberal e suas heranas contemporneas. O con-traste, ento, entre o liberalismo clssico e o novo liberalismo.

    Pode-se dizer que a preocupao fundamental do liberalismoclssico relaciona-se com o problema dos limites do poder poltico. ver-dade que todo pensamento moderno se preocupou com os limites do poderpoltico. Mas podemos perceber, nesse tema, uma diferena de nfases. Anfase do pensamento liberal clssico incidia sobre os limites do governo,ou os limites da ao do Estado, para usar a expresso de um dos grandesautores liberais do sculo XIX. Outras correntes, como as republicanas esocialistas, davam nfase aos limites da esfera privada. Enquanto, porexemplo, os socialistas chamavam mais ateno para as tendncias dehipertrofia do poder poltico via propriedade privada, os liberais conside-ravam um tema mais urgente, e mais ameaador para a boa ordem poltica,a hipertrofia do poder estatal, e procuravam pensar em limites nessa esferaexatamente para reservar um lugar ao sol s liberdades individuais e/ou propriedade. Insistimos, diga-se de passagem, neste e/ou porque, mesmo

    no pensamento liberal clssico, no h necessariamente uma ligao entrea defesa das liberdades individuais e a defesa da propriedade. O liberalis-mo norte-americano, por exemplo, sempre fez uma defesa intransigentedas liberdades individuais, mas nem sempre foi to intransigente na

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    questo da propriedade; e isso explica, em parte, porque naquele pas otermo carrega uma carga semntica diferente da que observamos na Europa

    ou no Brasil.A nfase nos limites da ao estatal fez com que o liberalismo

    clssico formulasse uma teoria normativa de governo: uma teoria do go-verno legtimo. E isso tornou a corrente uma herdeira natural das preocu-paes do contratualismo moderno. Evidentemente, Espinosa e Rousseaupodem ser considerados exceo, embora sempre seja possvel encontrarproblemas afins mesmo nesses autores. Mas tomemos como refernciaprincipal autores como Grcio, Pufendorf ou Locke. Todos eles partem de

    uma concepo de direitos naturais que serve (1) como um guia para pen-sar o correto procedimento para constituir um governo legtimo; (2) comoum delimitador da ao desse governo, uma vez constitudo; e (3) para for-mular um conceito de soberania. Mesmo Hobbes, que posteriormente des-pertar justas suspeitas por parte dos pensadores liberais, tem uma con-cepo de direito natural que, apesar de minimalista, bem poderia servir debase para uma teoria dos limites. J no seu tempo ele deixava, na Inglaterra,menos enfurecidos os assim chamados defensores da liberdade dos sdi-

    tos do que os defensores das prerrogativas reais.Hobbes, alm disso, foi um dos primeiros a formular claramenteuma teoria da liberdade negativa (embora ela ainda no recebesse essenome), to cara aos liberais posteriormente. Isto , a teoria de que a liber-dade no a lei, mas o silncio da lei. Em parte, graas a essa heranaque o liberalismo entrou na histria do pensamento poltico mais conheci-do como uma teoria sobre o que os governos no podem fazer, do que umateoria sobre o que devem fazer. Todavia, dizer que isso foi tudo que essacorrente herdou dos contratualistas seria um tanto injusto para com os li-berais. Porque a outra parte da herana, muito bem assimilada pelo libera-lismo, a concepo de soberania. E a soberania est na base do conceitomoderno de Estado, ou seja, o Estado nacional.

    A soberania liberal tem duas faces. Sua face interna, que dizrespeito aos sditos, inclina-se para uma noo de soberania limitada, emoposio chamada soberania absoluta. Mas sua face externa, que dizrespeito comunidade das naes, endossa inteiramente a noo de sobera-nia como autodeterminao, isto , a afirmao do direito absoluto de um

    Estado de no sofrer interferncia de outros Estados em seus negciosinternos. Alis, no podemos nos esquecer de que o termo liberalismo,como movimento poltico, nasceu na Espanha nas primeiras dcadas dosculo XIX, num contexto de luta dos espanhis, simultaneamente contra

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    o Antigo Regime e o Imprio Napolenico. Em outras palavras, num con-texto de luta pela afirmao e independncia de um Estado nacional.

    Observe-se que, em todas as lutas nacionalistas ocorridas no sculo XIX,vamos encontrar um engajamento terico e prtico favorvel da parte dopensamento liberal. Assim ser na Itlia e na Alemanha, para no falar naAmrica Latina. Graas a esse surto, toda reflexo que encontramos, porparte dos liberais do tempo, sobre o ideal da comunidade poltica vai sereferir inevitavelmente (e positivamente) comunidade nacional.

    Em suma, o liberalismo clssico, tanto quanto outras correntespolticas tericas, foi marcado pelo nacionalismo, e isso independente-

    mente de suas diferenas internas em temas como a abertura comercial, olivre cambismo e outros assuntos controversos da economia poltica. Pode-se dizer o mesmo em relao democracia? Essa uma questo mais com-plicada. Na medida em que o tema da democracia se vinculou ao do sufr-gio universal como foi o caso no decorrer do sculo XIX certo queboa parte dos liberais fazia uma forte objeo democracia. Antes de seuadvento em instituies reais, o regime do sufrgio universal despertavaansiedades a respeito de ser ou no uma nova forma de tirania, a chamada

    tirania da maioria ou tirania da multido, e portanto um perigo s liber-dades. Nessa mesma medida tambm poderia representar, claro, um peri-go propriedade.

    Como o centro do pensamento liberal era a defesa das liberdadese/ou da propriedade, a questo fundamental para o liberal clssico no erasaber se deveramos ter democracia, mas se a democracia era compatvelou no com aquele objetivo. A democracia era uma questo condicionada,e no condicionante. Como os liberais geralmente no viam como resolveresse problema a priori e com razovel margem de segurana, no de sur-preender-se que boa parte deles se distribusse entre a resistncia e aindiferena ao sufrgio universal. Por certo, houve excees eloqentes aessa regra: pensemos num John Stuart Mill, apesar de todas as suasprprias ressalvas ao sufrgio indiscriminado; ou no utilitarismo liberal deBentham, um dos grandes defensores do sufrgio na Inglaterra, j no inciodo sculo XIX. (Note-se que algumas dessas excees j representavamtambm um distanciamento crtico do modo de pensar contratualista.)

    Contudo, conforme o prprio tempo foi esclarecendo que o

    sufrgio universal no tendia a fazer dos governos democrticos as tiraniasprevistas, e nem mesmo uma ameaa propriedade, os liberais foram nos diminuindo sua resistncia como se convertendo tese exatamenteoposta: que a democracia era o regime poltico que propiciava a melhor

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    defesa possvel das liberdades. Deixando de ser um problema, a democra-cia passou at a ser uma soluo para o problema liberal. Chegamos desse

    modo ao sculo XX com um liberalismo que se via em condies de con-ciliar o ideal da soberania estatal e nacional, para o qual sempre se incli-nou, com o ideal democrtico, ao qual aderiu gradativamente.

    III

    Que aproximaes e contrastes podemos fazer entre essa carac-terizao do liberalismo clssico e o novo liberalismo? Em primeiro lugar,

    a herana do contratualismo, o modo de pensar contratualista. Mas essa uma aproximao mais de forma do que de contedo. Tomemos a obramais influente do novo liberalismo, a de John Rawls. Nela o contrato pen-sado para construir, no uma teoria do governo legtimo, como aparece emGrcio, Hobbes, Locke etc; mas para pensar, como vimos, uma teoria da

    justia. E essa uma diferena crucial. Pois no centro da teoria do governolegtimo est o conceito de soberania, portanto de Estado nacional. Mas asoberania no central na teoria de Rawls. Alis, no central em nenhum

    dos grandes novos liberais, porque todos vo se inspirar neste ponto de par-tida do pensamento rawlsiano. Por conseguinte, vo tratar de defender oucriticar os princpios de justia que o filsofo norte-americano deriva deseu contrato.

    De certo modo, essa grande novidade do pensamento rawlsianoimps a seus interlocutores, inclusive os outros novos liberais, a necessi-dade de apresentar teorias alternativas de justia. s pensar, por exemplo,na concepo mais radical no campo novo-liberal, representada pelo livrode Robert Nozick,Anarchy, State, and Utopia(Basic Books, 1974). Apesarda referncia palavra Estado no ttulo do livro, a tese que constri arespeito da origem dessa entidade serve essencialmente para gui-lo na dis-cusso sobre se a justia deve ser redistributiva ou no. No h nenhumadiscusso sobre a comunidade poltica especfica que deveria justificar esustentar o Estado em questo. A noo de Estado nacional, nesse sentido, completamente alheia sua reflexo.

    E aqui chegamos segunda aproximao/contraste entre os doisliberalismos. certo que novos liberais como Rawls, ao contrrio de

    Nozick, possuem um conceito de comunidade poltica. A ausncia desseconceito em Nozick , por sinal, explicitamente criticada por Rawls(Political Liberalism, p. 264). Porm, a comunidade poltica rawlsiana antes concebida, racionalisticamente, como um sistema cooperativo no

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    sentido quase econmico de uma associao cujos membros, ao dar suacontribuio para a preservao ou sucesso de um empreendimento

    comum, tm o direito de esperar que seus frutos tambm sejam repartidoseqitativamente do que como uma nao: uma comunidade ligada porlaos histricos, afetivos, lingsticos, de nascimento ou de lutas polticascomuns. O pretendente participao na comunidade rawlsiana no pre-cisa apresentar nenhum desses credenciais, digamos, prosaicos, parareivindicar seus direitos de membro. O critrio de participao maisobjetivo, e diz respeito exatamente noo de cooperao:

    A idia organizadora fundamental da justia como eqidade,

    dentro da qual outras idias bsicas esto ligadas sistematica-mente, a da sociedade como um sistema eqitativo de coope-rao ao longo do tempo, de uma gerao para outra.... Os ter-mos eqitativos da cooperao especificam uma idia de reci-procidade: todos os que esto engajados na cooperao e quefazem sua parte, como as regras e procedimentos exigem,devem se beneficiar dela num modo apropriado, de acordocom um padro adequado de comparao. Uma concepo de

    justia poltica caracteriza os termos eqitativos de coope-rao. (Political Liberalism, p. 16).Do conceito de comunidade poltica como um sistema coopera-

    tivo podemos derivar a noo de um governo que administra imparcial-mente princpios de justia distributiva, mas no necessariamente o gover-no de um Estado nacional, com o conceito de soberania que lhe peculiar.Note-se, contudo, que no estamos afirmando que Rawls fosse desde sem-pre avesso noo de Estado nacional. Sugerimos simplesmente que suaarmao conceitual no est voltada para essa questo.

    Rawls tambm fala, verdade, da comunidade poltica comouma sociedade fechada. Mas fechada para quem? Certamente para osque no cooperam. Contudo, na medida em que nos vemos como partici-pantes de qualquer atividade cooperativa, inclusive e especialmente aeconmica, mais ampla do que aquelas que ocorrem nas tradicionais fron-teiras nacionais, por que esse sistema cooperativo no poderia ser consi-derado a comunidade poltica, nos termos de Rawls? No por acaso, emsuas reflexes mais recentes sobre justia internacional, ele procura ques-

    tionar a noo tradicional de soberania estatal, pois esta fecha qualquerpossibilidade de entidades extra-nacionais, em nome de uma comunidademais ampla, interferirem nos assuntos internos dos Estados. Da sua dis-tino entre povos e estados:

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    Uma outra razo para usar o termo povos distinguir meupensamento do modo como os Estados polticos so tradi-

    cionalmente concebidos, com seus poderes de soberania...Esses poderes incluem o direito de ir guerra em prol de obje-tivos de Estado... Os poderes de soberania tambm garantem aum Estado uma certa autonomia... para lidar com seu prpriopovo. Da minha perspectiva, essa autonomia errada. (The

    Law of Peoples, pp.25-6. Harvard University Press, 1999).Como se v, a questo da justia reduz a importncia do proble-

    ma, anteriormente crucial no pensamento liberal clssico, da soberania e da

    identidade nacional que a especifica. Quando a justia passa para o centro dareflexo, menos importante saber se pertencemos a esta ou aquela nao,do que se fazemos parte de uma comunidade que normatizada por regrasde cooperao justas, e se temos um governo que se esfora para conserv-las. Isto pode ser pertinente a pases, ao Brasil ou Sucia por exemplo, mastambm poderia s-lo ao mundo como um todo, se o concebssemos comouma s sociedade em cooperao. Em face dessa nfase, no surpreendenteque certos autores comeassem a suspeitar que a comunidade pensada pelo

    novo liberalismo, ao prever laos pouco quentes entre seus membros,poderia significar a imploso da prpria idia de comunidade. E esse omote de toda uma nova corrente contempornea do pensamento poltico, quecresceu precisamente em reao a essa tese.

    Finalmente, se pensarmos que a progressiva identidade entreEstado e nao trouxe para o centro da poltica moderna o tema dasoberania popular e democrtica, fica claro por que o contraste entre o li-beralismo clssico e o novo liberalismo, aqui exposto, tambm joga luzsobre o contraste entre a questo democrtica e a questo da justia. Comomostra R. Dahl5, as regras do jogo democrtico s podem ser aceitas porseus participantes se a identidade da comunidade que o joga estiver previa-mente determinada. exatamente essa carncia que a identidade nacionalde uma comunidade vem a suprir. Em ltima instncia, ela empresta legi-timidade s decises democrticas, especialmente quando as questes aserem decididas so muito controversas, exigindo para sua resoluo os pro-cedimentos democrticos tpicos nesses casos, como a regra da maioria.

    Contudo, no sobre esse princpio de legitimao (a identidade

    prvia da comunidade) que incidem as reflexes dos novos liberais. Antes,elas voltam-se para o contedo normativo das decises de governo se so

    5 R. Dahl,Democracy and Its Critics. Yale University Press, 1989, captulos 10 a 14..

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    justas ou no. Ainda que esse exame venha a requerer um artifcio de repre-sentao, tal como a posio original de Rawls, que pode ser pensado como

    um procedimento, trata-se de um procedimento completamente distinto dalegalidade democrtica. Enquanto esta ltima constitui um processodecisrio real, materializado em instituies polticas concretas, o procedi-mento da justia antes uma ferramenta para pensar, um thought experiment.

    Esse procedimento ideal nos libera de privilegiar, quando se tratade fazer uma apreciao normativa das instituies polticas, a forma con-creta, histrica, com que essas instituies so constitudas e forma comque os ocupantes de seus governos chegam a esses postos. Em outras

    palavras, nos libera de privilegiar as questes de legitimidade, ainda que elascontinuem a ter sua pertinncia. E permite, portanto, pensar diretamentesobre a justia das decises para uma variedade de nveis e tipos de governo,seja ele o de um Estado democrtico nos moldes atuais, ou de qualquer outroformato histrico que venham a ter as instncias governamentais no futuro.

    Por que a nfase na justia politicamente to importante nasteorias do novo liberalismo? Aqui temos de retornar citao com queiniciamos este texto. Como vimos, Rawls havia ressaltado a distino

    entre legitimidade e justia: nem todos os atos legtimos de governo soatos justos; portanto, questionar a justia das decises no implica, neces-sariamente, questionar sua legitimidade. Porm, ao mesmo tempo, elelembra que a partir de um certo limiar decises injustas contaminam alegitimidade dos atos de governo. Isto , a partir deste limiar, a democra-cia e a justia, que so, abstratamente falando, conceitos distintos, passama estabelecer uma relao defeedback, a determinar-se mutuamente. Esta a regio em que as questes polticas reencontram-se com as questesticas ou morais. Neste nvel, os procedimentos polticos no so julgadosapenas pela sua correo formal, mas tanto pelos valores morais que osembebem quanto por seus resultados.

    verdade que o liberalismo clssico tambm se preocupou comessas regies de interseo entre a poltica e a moral. Porm, a moral desseliberalismo, inspirada outra vez nos cnones do contratualismo moderno,aparece como pouco ou nada problemtica, pois que diretamente acessvelao senso comum ou intuio racional. Sua moralidade dada pelasleis e direitos naturais, e essas leis so geralmente tratadas como

    axiomas da razo, isto , como proposies to auto-evidentes como anoo de que o menor caminho entre dois pontos uma reta. Essa moralintuicionista, pouco problemtica, fez com que o liberal clssico se pre-ocupasse menos com a fundamentao das proposies morais e mais com

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    o problema seguinte de seu esquema conceitual, o da constituio de go-vernos em conformidade com esses axiomas.

    No contratualismo que inspirou o liberalismo clssico, a questocrucial a seguinte: desde que os indivduos so detentores de direitos na-turais (uma proposio auto-evidente), como os governos podem se cons-tituir sem violar esses direitos? E a resposta padro esta: volenti non fitiniuria (o que voluntrio no injusto). Se houver consentimento volun-trio por parte do sdito, obedecidos os rituais prescritos pelo direito natu-ral, o soberano legtimo, e tambm suas decises. A legitimidade de umgoverno baseada na atitude voluntria, no consentimento. Este um pres-

    suposto central da fico do contrato, que est na base do modo destavez no ficcional, mas real de construir a legitimidade democrtica dosgovernos e de suas decises.

    Que mudanas, a esse respeito, ocorrem nas teorias polticas donovo contratualismo liberal? A idia do consentimento voluntrio continua,certamente, a ser um elemento importante. Porm, mais importante do que asano da vontade o tema da fundamentao de sua moralidade. No novocontratualismo liberal as questes ticas ou morais so altamente complexas

    e problemticas. H uma profunda desconfiana do pressuposto de que asidias morais podem ser intudas diretamente. Da que o contrato, o artif-cio de representao, tenha de ser deslocado do nvel da constituio dosgovernos para o nvel da elaborao das proposies morais. Elas j no somais axiomticas, mas tm de ser submetidas a exame crtico, comparadas,balanceadas e continuamente revisadas. (Essa tomada de conscincia dacomplexidade e do carter movedio das questes morais, ressalte-se, estmuito bem expressa na idia do equilbrio reflexivo de Rawls.)

    Numa teoria normativa que trabalha com critrios ideais, todoprocesso decisrio real um procedimento imperfeito. No h como garan-tir com certeza que seus resultados sero justos, ainda que houvesse totalacordo a respeito das caractersticas gerais de uma deciso justa. senquanto um processo de argumentao racional que a justia um pro-cedimento puro. Ou seja, se o artifcio de representao com o qual seorganiza o argumento corretamente construdo, ento o que sai do argu-mento no caso, os princpios de justia tambm ser correto. O resulta-do no concebido como independente, separvel, do modo como se ela-

    bora o artifcio de representao, a situao contratual. O que justo ouinjusto, portanto, no depende do consentimento real das pessoas, mas danatureza e da qualidade da argumentao. O teste de validao dos princ-pios de justia no se mais ou menos pessoas votam nesses princpios,

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    mas sim os critrios que nos fazem distinguir um bom e um mau argu-mento. Enfim, os critrios usuais do debate racional.

    bastante compreensvel, portanto, que o novo liberalismo nose satisfaa com o consentimento voluntrio que sanciona um governo leg-timo. Por isso, no s os atos dos governo eleitos, mas dos prprioscidados-eleitores ao consenti-los, passam agora a estar fortemente vincu-lados, de uma forma que jamais estiveram no liberalismo clssico, a seuscontedos substantivos. Eis tambm por que Rawls vai lembrar, em seudebate com Habermas, que em todo procedimento poltico vale o lemagarbage in, garbage out: se no processo decisrio democrtico algo ruim

    entra no incio, inevitavelmente algo ruim tambm sair dele, como resul-tado.6 claro que o modo como os procedimentos polticos sero julgados,com base nesse mtodo, vai variar de autor para autor. De qualquer forma,Estados democrticos podem agora ser considerados mais ou menos justos,pouco ou excessivamente igualitrios, dependendo do modo como asquestes morais de fundo so articuladas e justificadas.

    CCERO ARAJO professor no Departamento deCincia Poltica da USP. Sua publicao mais recente em

    Lua Nova Repblica e democracia (n.o 51/2000).

    6 Reply to Habermas, in Political Liberalism, pp.430-1.

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    LEGITIMIDADE, JUSTIA E DEMOCRACIA:

    O NOVO CONTRATUALISMO DE RAWLS

    CCERO ARAJOO autor discute por que o Liberalismo Poltico de John Rawls

    representa uma virada na tradio contratualista. Oferecem-se argumentospara mostrar que a nfase na justia, em vez da legitimidade (inclusive alegitimidade democrtica), inovou o aparato conceitual do Contratualismo,na qual temas clssicos da teoria poltica passam a confrontar complexos

    problemas de justificao moral.

    Palavras-chave: Democracia; justia; Rawls.

    LEGITIMACY, JUSTICE AND DEMOCRACY:RAWLSS NEW CONTRACTARIANISM

    The author argues why John Rawlss Political Liberalism is aturning point in the tradition of Contractarian thought. Some reasons aregiven to show that the focus on justice, rather than legitimacy (includingdemocratic legitimacy), has brought conceptual innovations to Con-tractarianism, in which classical topics of political theory face intricate

    problems of moral justification.

    Keywords: Democracy; justice; Rawls.

    RESUMOS/ABSTRACTS