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oo S S I Ê PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL «BEM CULTURAL DE NATUREZA IMATERIAL: QUE É ISSO?» 1 QUESTIONAMENTOS r E interessante obser- var desde logo que, no conjunto da pro- gramação do Semi- nário comemorativo dos 60 anos do IPHAN, esta mesa- redonda é a única cujo tema foi formulado sob o modo de um EDUARDO DIATAHY B. DE MENEZES* RESUMO A partir do questionamento proposto no subtítulo do texto, o autor analisa os equívocos conceptuais que nascem da lógica dicotômica que preside o seu modo de operar por oposições binárias e mutuamente exclusivas. As reflexões críticas apontam para a inconsistência da distinção entre cultura "material' e cultura "imaterial"; para os dispositivos do poder e do sagrado, que configuram a memória coletiva, e para a inclinação conservadora que confunde patrimônio imaterial com "folciore e tradições populares". O artigo esboça uma definição mais consentânea do que seja o conjunto dos bens culturais imateriais. questionamento, visto que contém explícito um desa- fio teórico aos seus parti- cipantes, como se tivéssemos a responsabili- dade de buscar e sugerir uma resposta mais ou me- nos sistemática. As demais mesas-redondas ou são reconstituições de fa- ses históricas de políticas preservacionistas na atuação dessa instituição, ou são apresentações de relatos de experiências diversas. Tentarei, pois, colocar-me na perspectiva em que entendi o convite para participar desta mesa. Assim, começarei por levantar algumas indagações preliminares. A primeira delas, naturalmente, dirá res- peito ao estatuto e à validade da distinção im- plícita no programa deste Seminário, que se propõe como temática a discussão do que seja patrimônio cultural imaterial e dos rumos que deve assumir uma política de preservação des- ses bens. Assim, gostaria de pôr em dúvida esse recurso praxiológico que dicotomiza os bens culturais em "materiais" e "não-materiais". Essa pragmática decorre por certo do legado positivista que opera segundo uma lógica biná- • Doutor, Professor Titular de Sociologia (Universidade Federal do Ceará e Universidade Estadual do Ceará); Pesquisador l-A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), membro do Instrtuto Histórico do Ceará e da Academia Cearense de Letras, membro titular da Association Internationale des Sociologues de Langue Française (AISLF). ria com pares antitéticos, do- minante no pensamento oci- dental. Especialmente no caso de que nos ocupamos, não creio na sua boa valida- de. Com efeito, sem os sím- bolos, sem as significações nele investidas, e sobretu- do sem os agentes culturais interpretantes, o chamado patrimônio cultural ma- terial não passa de um montão de escombros. In- versamente, o patrimônio simbólico ou imaterial não teria existência real se- não imbricado em veículos ou suportes que o tomem objetivado, que forneça a sua concretude. É isso que justifica o esforço de arqueólogos no sentido de inferir a gênese da inteligência humana a partir do exame sistemático de antigos artefatos pro- duzidos ao longo dos tempos pré-históricos.? Do mesmo modo que um bem intangível, como por exemplo "honra", "autoridade", "pu- silanimidade", "bravura" etc., só é possível de ser apreendido, contrastivamente, encar- nados em pessoas reais, interagindo social- mente numa cultura historicamente dada e espacialmente situada, cujo ethos atribui sig- nificação a tais valores e atitudes. Aliás, é bom que se diga que o documen- to que acompanhou o convite enviado pelos coordenadores do Seminário era bastante pru- dente nesse sentido. Daí a questão proposta no título desta mesa-redonda. Portanto, no seu sen- tido mais amplo, tal problemática se insere no plano analítico da produção social do sen- 78 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 31 N. 1 2000

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PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL«BEM CULTURAL DE NATUREZA IMATERIAL: QUE É ISSO?» 1

QUESTIONAMENTOS

r

E interessante obser-var desde logo que,no conjunto da pro-gramação do Semi-

nário comemorativo dos 60anos do IPHAN, esta mesa-redonda é a única cujotema foi formulado sob omodo de um

EDUARDO DIATAHY B. DE MENEZES*

RESUMOA partir do questionamento proposto no

subtítulo do texto, o autor analisa os equívocosconceptuais que nascem da lógica dicotômica quepreside o seu modo de operar por oposiçõesbinárias e mutuamente exclusivas. As reflexõescríticas apontam para a inconsistência da distinçãoentre cultura "material' e cultura "imaterial"; paraos dispositivos do poder e do sagrado, queconfiguram a memória coletiva, e para a inclinaçãoconservadora que confunde patrimônio imaterialcom "folciore e tradições populares". O artigoesboça uma definição mais consentânea do queseja o conjunto dos bens culturais imateriais.

questionamento, visto quecontém explícito um desa-fio teórico aos seus parti-cipantes, como setivéssemos a responsabili-dade de buscar e sugeriruma resposta mais ou me-nos sistemática. As demaismesas-redondas ou são reconstituições de fa-ses históricas de políticas preservacionistas naatuação dessa instituição, ou são apresentaçõesde relatos de experiências diversas.

Tentarei, pois, colocar-me na perspectivaem que entendi o convite para participar destamesa. Assim, começarei por levantar algumasindagações preliminares.

A primeira delas, naturalmente, dirá res-peito ao estatuto e à validade da distinção im-plícita no programa deste Seminário, que sepropõe como temática a discussão do que sejapatrimônio cultural imaterial e dos rumos quedeve assumir uma política de preservação des-ses bens. Assim, gostaria de pôr em dúvida esserecurso praxiológico que dicotomiza os bensculturais em "materiais" e "não-materiais".Essa pragmática decorre por certo do legadopositivista que opera segundo uma lógica biná-

• Doutor, Professor Titular de Sociologia(Universidade Federal do Ceará e UniversidadeEstadual do Ceará); Pesquisador l-A do ConselhoNacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq), membro do Instrtuto Históricodo Ceará e da Academia Cearense de Letras,membro titular da Association Internationale desSociologues de Langue Française (AISLF).

ria com pares antitéticos, do-minante no pensamento oci-dental. Especialmente nocaso de que nos ocupamos,não creio na sua boa valida-de. Com efeito, sem os sím-bolos, sem as significaçõesnele investidas, e sobretu-do sem os agentes culturaisinterpretantes, o chamadopatrimônio cultural ma-terial não passa de ummontão de escombros. In-versamente, o patrimôniosimbólico ou imaterialnão teria existência real se-não imbricado em veículosou suportes que o tomemobjetivado, que forneça asua concretude. É isso que

justifica o esforço de arqueólogos no sentido deinferir a gênese da inteligência humana a partirdo exame sistemático de antigos artefatos pro-duzidos ao longo dos tempos pré-históricos.?Do mesmo modo que um bem intangível,como por exemplo "honra", "autoridade", "pu-silanimidade", "bravura" etc., só é possívelde ser apreendido, contrastivamente, encar-nados em pessoas reais, interagindo social-mente numa cultura historicamente dada eespacialmente situada, cujo ethos atribui sig-nificação a tais valores e atitudes.

Aliás, é bom que se diga que o documen-to que acompanhou o convite enviado peloscoordenadores do Seminário era bastante pru-dente nesse sentido. Daí a questão proposta notítulo desta mesa-redonda. Portanto, no seu sen-tido mais amplo, tal problemática se insere noplano analítico da produção social do sen-

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tido. Nessa perspectiva, insistir na existênciade uma dicotomia do patrimônio cultural pa-rece constituir uma questão inadequada deque se originam certos equívocos que tenta-rei apontar nos questionamentos a seguir.

O segundo ponto reside no fato de aquestão do patrimônio cultural e da produçãosocial do sentido estar intimamente relaciona-da com a memória coletiva. Ora, esta de-pende do nosso imaginário histórico, quemanifesta intrínseca necessidade deruínas ,visto que ele opera segundo a possi-bilidade incessante de atribuir significação aosmateriais que vão compondo nosso cemitériocultural e conforme à organização institucionaldo luto mediante a representação da funçãosimbólica da morte.> Nessa perspectiva, por-tanto, é mister indagar: quais os limites dapreservação? Ou: como cultivar uma concep-ção preservacionista sem recair numa espé-cie de necrofília cultural? Noutros termos,em matéria de memória e de patrimônio his-tórico-cultural, a indagação básica seria: quecoisas preservar e por quê?

O porquê é, aparentemente, de respostamais fácil. A espécie humana parece movidapor uma aspiração de transcendência, de supe-ração das limitações de sua condição, de umimpulso para realizar melhor tudo quanto possatomar-se mais belo, mais perfeito e mais dura-douro. Assim, mediante inúmeros artefatos e pormeio da organização espacial da vida coletiva eindividual, o homem estrutura as marcas de suamemória, assegurando a dimensão social e his-tórica da existência. Mas aí incide também agrande dificuldade em responder ao primeiromembro da indagação: que coisas preservar?

Sumariamente, pode-se dizer que o po-der constitui um dos eixos estruturadores damemória coletiva. O outro é o sagrado, queconfigura a significação da existência por meiode um desejo de transcendência. Entre esteseixos, situa-se o da morte, que estabelece umafinitude, acarretando a busca da superação pelaconsciência de nossa temporalidade transitóriae portanto por meio de lembranças acumula-das. Os dispositivos de poder constituem, po-rém, o elemento primordial para a resposta a

essa questão. Eis por que Jacques Le Goff cha-ma a atenção para a importância da memóriacoletiva na luta das forças sociais para dominaro corpo social. Desse modo, assegurar a posi-ção de senhores da memória e do esquecimen-to tem sido uma preocupação constante dasclasses, dos grupos e dos indivíduos que domi-naram e dominam as formações sociais. E ossilêncios da história são reveladores desses dis-positivos de manipulação da memória coletí-va." Ora, numa ordem social hierarquizada eexc1udente, é fácil de supor como sãodiscriminatórios os mecanismos de seleção, deconsagração e de preservação da memória e dopatrimônio. Por outro lado, nas sociedades ar-caicas e tradicionais, ou mesmo nas camadasespoliadas das sociedades modernas, à margemdas tecnologias da escrita e correlatas, a memó-ria é assegurada sobretudo pelos recursos danarratividade oral (lendas, mitos, epopéias, con-tos e cantos, etc.) e também mediante artefatose marcas iconográficas.

Antes de passar à segunda parte, ondetentarei esboçar uma resposta à indagação pro-posta a esta mesa, um derradeiro questionamentovai reter a minha reflexão aqui. Várias pistas,vários indicadores, a maioria das manifestaçõesaqui feitas, inclusive o documento a que mereferi no início, o qual se orienta abertamentenesta direção, e mesmo o logotipo que vem nocartaz deste Seminário Conde aparece a foto deuma cerâmica popular representando doiscantadores), todo esse conjunto de indicaçõesanuncia claramente uma confusão ou uma as-sociação automática entre patrimônioImateríal e "cultura popular" tal como esta éentendida pelos folcloristas.> Por outro lado,parece legítimo inferir que, dessas tomadas deposição configurando uma pretendida nova ori-entação, tudo se passa como se a anterior polí-tica do IPHAN em matéria de preservaçãoestivesse voltada exclusivamente para opatrimônio material, visto como o acervo demonumentos e bens culturais de alto valor esignificação cuja perenidade era sua tarefa asse-gurar, e que, agora, numa como grande inflexãode rumos, dever-se-ia voltar para o patrimônioimaterial, entendido como o conjunto de ex-

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pressões da cultura popular, cuja perecividadee fragilidade necessitasse de apoio oficial ur-gente antes que essas sobrevivências desapa-reçam. Ou seja, não se trata mais de preservarruínas, mas de preservar coisas, atos e gestosviventes - o que me parece uma contradiçãonos termos. Algo como restaurar no interior doIPHAN o velho Instituto Nacional do Folclore,espécie de UTI da cultura popular.

Mas de onde vem essa nostalgiapaternalista com odores do estilo estadonovista?Por que essa insidiosa inclinação dos represen-tantes de nossa tradição letrada no sentido deencerrar as classes subalternas dentro do círculohermenêutico das chamadas "tradições popu-lares", que devem ser preservadas a todo cus-to? Por que esses setores de nossa inteligênciajamais propuseram projetos para estimular trans-formações populares? Qual a significação maisfunda dessa operação ideológica do dissimula-do conflito presente no plano da cultura?

No meu entendimento, gostaria- de subli-nhar com ênfase que essa atitude equivocadacomporta um etnocentrismo, acrescido demauvaise conscience que não se reconhece, epor isso oculta uma posição seriamente reacio-nária. Seria bom não esquecer, a propósito, aarguta observação de Roger Bastide segundo aqual o Folklore surge, na Europa, como ciência,no momento em que ele desaparece como rea-lidade. Portanto, é preciso refletir com serieda-de sobre a real significação dessa proposta, vistoser legítimo indagar: por que preservar cficial-mente simulacros de representações popularesque corresponderam a outras matrizes socio-culturais de fases ultrapassadas de sua história,como se fossem coisas que devessem eternizar-se num congelador da cultura? Por que esse in-teresse bondoso e paternalista, que na verdadetende a retirar o povo de dentro da História,ossificando as diferenças e o exótico das mani-festações folclóricas, ao invés de propiciar me-lhores condições de vida para um povo que setransforma, e estimular a sua inventidade nabusca de novas formas de expressões estéticas''Por outro lado, é claro que essas manifestaçõespopulares constituem também um dos dados aserem registrados como dimensões da memória

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coletiva e do patrimônio cultural da nação, masnão podem ocupar o espaço central de uma novafase de nossa política de preservação.

Enfim, dou um exemplo para ilustrar omeu argumento. Recorro por isso ao belo e for-te momento de fruição estética que foi o BaléKõi-Gíiera, apresentado pela EDISCA, justamen-te na solenidade de abertura do Seminário. Sig-nificativamente, o título desse balé se traduzpor «Oque será Morto». Que dignidade e quebeleza expressas nos corpos e nos movimentosde suas crianças e adolescentes! Que diferençaem relação à cultura da miséria e da resignação!Esse espetáculo, por acaso, tem algo a ver coma chamada cultura popular dos folcloristastadicionais? E, não obstante, é feito por artistasoriundos das camadas populares. A sua grande-za e o impacto emocional que nos proporcionaresidem no fato de fusionar na sua elaboraçãoestética todos os níveis culturais enraizados emnossas origens, e por isso aponta no rumo deuma criação universal. Se eu quisesse resumirnum dístico a sua definição, eu inverteria o co-nhecido verso de Mário de Andrade: é um tupitangido por um alaúde!

E já que significativa parte do Semináriose faz sob a égide de uma vertente de interpre-tação tradicionalista da obra de Mário deAndrade, proponho à nossa reflexão esta defi-nição maliciosa e provocadora que Oswald deAndrade dá, em seu Dicionário de Bolso, paraseu companheiro de modernismo:

Mário de AndradeMacunaíma traduzido. Autor de uma cançãopara fazer o seringueiro dormir em vez de serevoltar. De outra, para quando encontrar ocapitão Prestes, engabelâ-lo com nomes depei-xes e atrapalhar assim a revolução social?

Ou então estes versos de António Aleixo,poeta popular português, referindo-se à suacondição de artista subalterno:

Tu não tens valor nenhum,Andas debaixo dospés,Até que apareça algumDoutor que diga quem és.8

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TENTATIVA DE RESPOSTA

Se aceitarmos provisoriamente e para efei-tos didáticos a dicotomia que submeti aquestionamento na primeira parte, poder-se-iatentar responder, no interior dessa distinção, aindagação que desafia esta mesa-redonda: queseriam bens culturais imateriaís?

Sirvo-me de uma distinção mais subtil deOrtega y Gasset para refinar a reflexão sobre otema. Lembra ele que quando se quer entenderum ser humano, a sua vida, procuramos antesde tudo averiguar quais são suas idéias. Desdeque o homem ocidental acredita possuir um"sentido histórico", é esta a exigência mais ele-mentar, visto que influem fortemente sobre suaexistência as suas idéias e as idéias de seu tem-po, os pensamentos que lhe ocorrem acercadisto, daquilo, do próximo, do mundo, ete. Elaspodem comportar diversos graus de verdade,inclusive podem ser "verdades científicas". Viveré haver-se com tais idéias em relação a algo -em relação com o mundo ou consigo mesmo.Mas tudo isso já lhe aparece sob a espécie deuma interpretação.

Aqui nos deparamos com outro estratode idéias, porém mui diferentes das que umhomem tem. A essas "idéias básicas" o filósofoespanhol chama de crenças, que não nos che-gam numa hora ou numa data de nossa vida,não são, em suma, pensamentos que temos,mesmo aqueles de grande rigor lógico. Ao con-trário, as "crenças" constituem o continente denossa vida e, por isso, não possuem o caráterde conteúdos particulares dentro desta. Portan-to, não são idéias que temos, mas sim, idéiasque somos?

Assim, grosso modo, a configuração maisou menos sistêmica de idéias e sobretudo decrenças que compõem a cultura, e que se tradu-zem em atos e interações, constituem o elemen-to fundante de nossa ontologia social. Não sãopropriamente um domínio ou um campo entreoutros. Mas sim, a dimensão ôntica de socieda-des humanas e seus indivíduos. Portanto, nonível de análise em que me situo, é quase im-possível, conforme tenho insistido, distinguiruma faceta material e outra intangível dessa

constelação a que chamamos 'cultura' ou'patrimônio cultural'. A não ser para fins prag-máticos de exposição.

Neste nível, pois, e no limite, os bensculturais imateriais seriam os registros de pa-drões de percursos duradouros em nosso siste-ma nervoso central. Mas aí também se revela asua inelutável materialidade, pois que tais pa-drões se inscrevem em estruturas bioquímicas.Do mesmo modo que uma canção ou uma ima-gem só podem ser percebidas se objetiva das emregistros sonoros ou visuais, em ritmos ouplasticidades, etc. Senão, cairíamos numsubjetivismo fantasmático ou solipsista.

Sumariamente, portanto, bens culturaisimateriais são um momento do incessante pro-cesso sociocultural e se compõem de coisas como:

• Um estoque de conhecimentos ou sa-beres, intimamente ligados a

• Um estoque de fazeres, e ambos me-diados por

• Tecnologias cognitivas, sistematiza-das pela experiência coletiva:

Ler,Escrever,Calcular,Desenhar,Pintar,Ritmar,Cantar,Dançar, etc....Tudo isso regulado por

• Normas, crenças e valores; e pelos• Códigos e sintaxes de nossas dife-

rentes linguagens, expressas em• Imagens, formas e constelações, que

se constroem mediante• Imaginários múltiplos, apoiados sobre• Técnicas e lugares da memória.

Em conclusão, bens culturais imateriaisse compõe de tudo aquilo que se incorpora econstitui nossas atitudes e condutas. Analitica-mente, são um momento do processo culturalque não necessita de outros registros, pois fa-zem parte dos códigos que instituem os homenscomo seres semióticos, são parte integrante denossa estética-em-uso.

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Qualquer outra forma de registro, comosuportes da memória - fotos, filmes, gravações,CD-Rom, DVD, etc. - são exteriorizações quematerializam o patrimônio cultural. E o que épior: no caso das criações populares, tendemquase sempre à sua "folclorização", no sentidopejorativo do termo.

Mas, enfim, qualquer empreendimentonessa direção implicará também a sua necessáriateorização: identificação, definição, inventário,classificação, thesaurus, hermenêutica, ete. Eiso rumo que me parece válido para a reflexão.

NOTAS

Comunicação apresentada no Simpósio Internaci-onal.PATRIMÔNIO CULTURALIMATERIAL-,nos60 Anos do IPHAN,sob o patrocínio da UNESCO,Fortaleza, de 10 a 14 de novo de 1997.CL, entre outros, LEROI-GOURHAN, André: LeGesteet Ia Parole- t. I: Technique et Langage. Pa-ris: Albin Michel, 1977.Cf.:JEUDY,Henri-Pierre: Mérnoires du Social. Pa-ris: PUF, 1986.CL LE GOFF, Iacques: Histoire et Mémoire. Coll.Folio-histoire. Paris: Gallimard, 1988, p. 109.v., por exemplo, o texto da comunicação apresen-tada por Fernando Augusto GO ÇALVES:Patrimônio Imaterial, uma questão mundial quetoca profundamente o Brasil, onde o autor su-

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põe nitidamente tal definição e faz declaraçõespatéticas tais como: -Tesouros Humanos Vivosc...), Obras Primas do Patrimônio Oral da Hu-manidade, são denominações dadas a sistemasde proteção e salvaguarda da cultura e tradiçãopopular no mundo [sic].Cabe ao Brasilcriar o seu ...O que não se pode é perder o privilégio dessaoportunidade criada pelo IPHAN, deixando que onosso riquíssimo patrimônio imaterial continue àmercê das intempéries políticas, administrativas,ou mesmo factuais, posto que [sic] o desapareci-mento de um mestre ocasiona a perda de um ines-timável acervo de saber, que não foi registrado ...Cada mestre que morre e que - por falta de umsistema que assegure condições de transmissãodo seu conhecimento, a um novo sucessor -levaconsigo uma parte da tradição oral do povo brasi-leiro- Tal retórica pode ser emocionante, porémé analiticamente indigente.Para uma crítica bem informada desse "espírito deantiquário" ver ORTIZ, Renato: Românticos eFolcloristas.São Paulo: Olho d'água, 1992.Cf.: A -DRADE, Oswald: Dicionário de Bolso.-Obras Completas de Oswald de Andrade-. SãoPaulo: Globo / Secretaria de Estado da Cultura,1990, p. 106.Apud GUERREIRO,M.Viegas: Para a História daLiteratura Popular Portuguesa. Lisboa: Instituto deCultura Portuguesa, 1978, p. 24.Cf.:ORTEGAY GASSET,José: Ideas y Creencias.Madrid: Revista de Occidente, 1959, pp. 3-5.

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