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O OFÍCIO DO CHARGISTA NA PRODUÇÃO DOS EFEITOS DE SENTIDO Anderson Barcelos dos Santos 1 RESUMO: Ao se inscrever na posição-sujeito porta-voz, agente capaz de mobilizar e “representar” uma massa, o chargista, produz uma discursividade que merece destaque. Isso porque corre pelo sua atividade laboral uma forma-material que é atravessada pelo discurso da mídia e do jornalístico. É nesse atravessamento discursivo que se torna premente analisar como os sentidos se multiplicam, deslizam-se e se ressignificam. Nesse âmbito, cabe trilhar o caminho do chargista como sujeito possível de portar uma materialidade significante que tem algo a dizer não somente de uma forma, mas sobre o prisma de diferentes olhares, ou seja, de diversos efeitos de sentido. Nossa pesquisa tem como suporte teórico a Análise do Discurso, desenvolvida na França por Michel Pêcheux e no Brasil por Eni Orlandi. PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso. Charge. Porta-voz. 1. Introdução São pelos caminhos da Análise do Discurso da linha Francesa que se pôde analisar como o chargista atribui sentidos às suas charges que diariamente circulam na mídia. Para desvendar as condições de produção do chargista foi necessário trilhar pelos dispositivos teóricos da AD, tais como: ideologia, sujeito, porta-voz, formação discursiva, discurso jornalístico e religioso; e pelos dispositivos analíticos, sendo eles a metáfora e memória. O recorte das noções mobilizadas parte basicamente das contribuições de Althusser (1985), Michel Pêcheux (1969-1990) e Achard (1999). Além disso, vale citar também as contribuições das autoras brasileiras Eni Orlandi (2003), Freda Indursky (2011) e Bethania Mariani (1998). As teorias aqui apresentadas permitem olhar para o corpus de modo muito mais amplo e contundente. Elas contribuem para que os possíveis gestos de interpretação ultrapassem as barreiras de uma análise de conteúdos. As discussões teóricas desse ensaio giram em torno das charges que possuem como temática a assunção do pastor-deputado Marco Feliciano ao cargo de Presidente da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias (CDHM). O chargista aproveitando-se dos fatos e dos acontecimentos midiáticos usa-se da charge como porta-voz para expressar seu posicionamento político-social como mecanismo de mobilizar um grupo ou até mesmo uma classe, falando em nome daqueles que ele representa, e, consequentemente, produzindo diversos efeitos de sentido. Nesse discurso chárgico, o ensaio teórico mostra como a charge pode retomar por meio de uma memória , discursos que até hoje se encontram estabilizados e continuam se legitimando. O presente trabalho também mostra como esses discursos legitimados são reavivados; porém, como se estivessem sob a cobertura de outras roupagens. 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina- UNISUL

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O OFÍCIO DO CHARGISTA NA PRODUÇÃO DOS EFEITOS DE SENTIDO

Anderson Barcelos dos Santos1

RESUMO: Ao se inscrever na posição-sujeito porta-voz, agente capaz de mobilizar e “representar” uma massa, o chargista, produz uma discursividade que merece destaque. Isso porque corre pelo sua atividade laboral uma forma-material que é atravessada pelo discurso da mídia e do jornalístico. É nesse atravessamento discursivo que se torna premente analisar como os sentidos se multiplicam, deslizam-se e se ressignificam. Nesse âmbito, cabe trilhar o caminho do chargista como sujeito possível de portar uma materialidade significante que tem algo a dizer não somente de uma forma, mas sobre o prisma de diferentes olhares, ou seja, de diversos efeitos de sentido. Nossa pesquisa tem como suporte teórico a Análise do Discurso, desenvolvida na França por Michel Pêcheux e no Brasil por Eni Orlandi. PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso. Charge. Porta-voz. 1. Introdução

São pelos caminhos da Análise do Discurso da linha Francesa que se pôde analisar como o chargista atribui sentidos às suas charges que diariamente circulam na mídia. Para desvendar as condições de produção do chargista foi necessário trilhar pelos dispositivos teóricos da AD, tais como: ideologia, sujeito, porta-voz, formação discursiva, discurso jornalístico e religioso; e pelos dispositivos analíticos, sendo eles a metáfora e memória.

O recorte das noções mobilizadas parte basicamente das contribuições de Althusser (1985), Michel Pêcheux (1969-1990) e Achard (1999). Além disso, vale citar também as contribuições das autoras brasileiras Eni Orlandi (2003), Freda Indursky (2011) e Bethania Mariani (1998).

As teorias aqui apresentadas permitem olhar para o corpus de modo muito mais amplo e contundente. Elas contribuem para que os possíveis gestos de interpretação ultrapassem as barreiras de uma análise de conteúdos.

As discussões teóricas desse ensaio giram em torno das charges que possuem como temática a assunção do pastor-deputado Marco Feliciano ao cargo de Presidente da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias (CDHM). O chargista aproveitando-se dos fatos e dos acontecimentos midiáticos usa-se da charge como porta-voz para expressar seu posicionamento político-social como mecanismo de mobilizar um grupo ou até mesmo uma classe, falando em nome daqueles que ele representa, e, consequentemente, produzindo diversos efeitos de sentido.

Nesse discurso chárgico, o ensaio teórico mostra como a charge pode retomar por meio de uma memória , discursos que até hoje se encontram estabilizados e continuam se legitimando. O presente trabalho também mostra como esses discursos legitimados são reavivados; porém, como se estivessem sob a cobertura de outras roupagens.

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina- UNISUL

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2. A charge

No Brasil, a primeira charge circulou no ano de 1837 na cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de expor uma crítica política. Até mesmo nos dias atuais, ela ainda circula com vigor. A charge é comumente veiculada tanto na internet quanto nos meios impressos, tais como nos diversos livros didáticos e nos mais conceituados jornais. Ela trabalha com o hipertexto ao misturar imagens (desenhos e caricaturas) com a escrita. É definida como “cartum cujo objetivo é a crítica humorística imediata de um fato ou acontecimento específico, em geral de natureza política.” (RABAÇA & BARBOSA, apud DAGOSTIM, 2009, p. 21).

Figura 1- A primeira charge2

A charge jornalística tende a circular por um determinado tempo, geralmente até

quando se alcança o esgotamento do fato ou acontecimento midiático. Nesse ciclo, novos eventos e acontecimentos são noticiados e, consequentemente, novas temáticas são abarcadas. Além desse aspecto temporal, a charge precisa de outro suporte que a sustente, como uma coluna, uma resenha crítica, uma notícia, uma legenda, etc.

Ela “faz alusão à argumentação, desperta o riso, utilizando-se do deboche, do sarcasmo e da ironia, recursos usados pelo chargista para persuadir o leitor, fazendo-o aceitar as ideias trazidas pelo discurso”. (DAGOSTIM, 2009, p.21). Ela não se sustenta por si só, uma vez que ela leva o leitor a aceitar as ideias trazidas pelo discurso, apresentando-se por vezes sob mais de uma materialidade significante, conforme mencionadas anteriormente.

São nessas condições que o chargista fala, critica, expõe sua opinião, desperta o riso, usa-se do deboche e do sarcasmo, mobiliza a ironia e leva o leitor a concordar com o seu discurso. Por isso que como um discurso logicamente estabilizado “o enunciado chárgico embora constituído de diferentes materialidades, a partir da sobredeterminação de um sentido já-dito, regula a possibilidade de os sentidos serem outros.” (BARONAS, 2009, p.7).

A legitimação do processo histórico da leitura- que sentidos atribuir ao texto, ou, como o texto deve ser compreendido? – se faz de formas variadas, nas diferentes instituições, através de especialistas, de autoridades: na Igreja Cristã, a leitura competente está a cargo do teólogo, no Direito, do jurista, na Escola, do professor. (ORLANDI, 2003, p.214)

2 Fonte: http://impressaodigital126.com.br/2013/04/06/a-historia-das-charges-no-brasil-e-no-mundo/

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Para entender uma charge não é necessário ter uma especialização em uma determinada área ou ser uma autoridade. Basta ser um sujeito antenado aos noticiários que circulam nas mídias. Por outro lado, é interessante verificar como e em quais condições de produção o chargista trabalha para que essa forma de discurso continue a se legitimar e a se estabilizar.

A charge é composta do hipertexto: reúne imagem bem como a escrita, constituindo assim uma materialidade significante bem peculiar. “Aquele que observa uma imagem desenvolve uma atividade de produção de significação; esta não lhe é transmitida ou entregue pronta. Esse estado de coisas abre, como, aliás, insistem em nos fazer observar, a uma liberdade de interpretação”. (DAVALLON, 1999, p. 29). Muito embora a imagem abra as portas da significação, o que talvez determine o direcionamento dos sentidos das charges são as legendas, os efeitos metafóricos e outras evidências ideológicas. Escritas essas que são, em certa medida, capazes de conter a expansão semântica exacerbada das imagens.

3. O chargista é um porta-voz

Da mesma forma que o quadro está para o pintor, assim está a charge para o

chargista. Para que o pintor pinte um determinado quadro é necessário, primitivamente, o pincel e a tinta. Por outro lado, para que o chargista faça o seu trabalho é imprescindível à circulação dos fatos e dos acontecimentos nas mídias.

Se levar em consideração que o pintor para produzir sua arte deva seguir um ritual que já está institucionalizado, assim ocorre também com o chargista. Ele necessita seguir um conjunto de normas para publicar suas charges. Assim como a escola e a igreja, a redação de jornais e revistas fazem parte “desses aparelhos ideológicos” que “submete os indivíduos a uma ideologia” (ALTHUSSER, 1985, p.32).

A exemplo, a academia e a mídia como Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) sujeitam os indivíduos a uma ideologia. É o mesmo que dizer “a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos” (Ibid, p.93). De acordo com Althusser (1985), “...o mecanismo pelo qual a ideologia leva o agente social a reconhecer o seu lugar é o mecanismo da sujeição” (Ibid, p.8). Se a sujeição é o mecanismo ideológico que faz com que o sujeito reconheça o seu lugar é ela também que irá submetê-lo a uma instituição ou a um discurso.

“Todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser agente de uma prática se se revestir da forma-sujeito”. (PÊCHEUX, 1998, p.183) Se a sujeição como mecanismo da ideologia é que leva o sujeito a reconhecer o seu lugar social, isso automaticamente leva o sujeito a se projetar numa forma-sujeito. Ela é definida por Pêcheux (1985), como “forma de existência histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais”. (Ibid, p.183)

De acordo com Orlandi (2012), “com esta forma-sujeito constituída, teríamos, então os modos de individua(aliz)ação do sujeito pelo Estado (instituições e discursos)”. (ORLANDI, 2012, p.228). Ainda segundo ela, daí se resulta “sua inscrição em uma formação discursiva e sua posição-sujeito que se inscreve então na formação social (posição sujeito patrão, traficante, Falcão etc).” (Ibid, p.228). Logo, considerando a tomada de posição do indivíduo na posição-sujeito chargista, ele estará sujeito a (re)produzir a ideologia desses AIE. Pêcheux (1988),afirma que

É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim, sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados. (PÊCHEUX, 1988, p.160).

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Não se pode deixar de mencionar que o chargista produz seu trabalho sob os efeitos da formação ideológica a que ele está vinculado. Se o seu ofício estiver subordinado a uma redação de um jornal, ele como sujeito estará sob o efeito ideológico de uma formação discursiva da instituição jornalística.

Isso se aplica também aos chargistas que publicam seu material em sites e revistas bem como outros meios de comunicação. Por mais que as charges não estejam sempre tão marcadas pelos atravessamentos das FD, uma das evidências ideológicas da qual esses chargistas se submetem é a condição indispensável de que a charge somente se sustenta se houver algum fato ou acontecimento que até então tenha circulado na mídia.

A formação discursiva pode ser entendida como “aquilo que pode e deve ser dito por um sujeito em uma posição discursiva em um momento dado em uma conjuntura dada”. (PÊCHEUX & FUCHS, 1990, p.166-7).

Para entender melhor a formação discursiva jornalística, formação essa em que os discursos se legitimam também pela charge, vale salientar que para compô-la não se pode enunciar do mesmo modo que se diz em uma coluna, em um anúncio, numa sessão de horóscopo, etc.

Para cada seção há um modo de dizer. Para compor uma charge é necessário que o indivíduo se inscreva na posição-sujeito chargista, identificando-se assim na formação discursiva chárgica que também é atravessada pela jornalística. Isso quer dizer que para cada seção do jornal o indivíduo deverá se inscrever numa determinada posição-sujeito. A título de exemplo, na mesma edição do mesmo jornal pode haver um indivíduo que se inscreve numa posição-sujeito chargista, outro que se filia a uma posição-sujeito colunista, etc.

Se o chargista é capaz de veicular sua charge na mídia em geral, falando, criticando, expondo sua opinião, despertando o riso, usando-se do deboche e do sarcasmo, mobilizando a ironia e levando o leitor a concordar com o seu discurso, isso quer dizer que ele possui o poder de mobilizar um grupo de pessoas ao seu favor, assim como um porta-voz.

ator visível e testemunha ocular do acontecimento: o efeito que ele exerce falando “em nome de...” é antes de tudo um efeito visual que determina esta conversão do olhar pela qual o invisível do acontecimento se deixa enfim ser visto: o porta-voz se expõe ao olhar do poder que lhe afronta, falando em nome daqueles que ele representa, e sob o seu olhar. Dupla visibilidade (ele fala diante dos seus e parlamenta com o adversário) que o coloca em posição de negociador potencial, no centro visível de um “nós” em formação e também em contato com o adversário exterior. (PÊCHEUX, 1990, p. 17)

O chargista como porta-voz pode falar em nome de um site, de uma revista, de um jornal ou de qualquer meio de comunicação que ele esteja veiculado ou ainda, pode falar em nome de um partido ou em nome de uma classe ou um grupo social. Considerando o chargista também inscrito na formação discursiva jornalística, por “esse viés, o sujeito enunciador produz um efeito de distanciamento- o jornalista projeta a imagem de um observador imparcial- e marca uma diferença com relação ao que é falado, podendo, desta forma, formular juízos de valor, emitir opiniões, etc.” (MARIANI, 1998, p.60).

Embora o chargista não seja jornalista, suas charges para circularem nas mídias podem necessitar desse veículo jornalístico, o que pode levar o chargista a assumir uma posição-sujeito que o inscreva na formação discursiva jornalística. É nesse ponto que ele, como porta-voz, imprime sob o seu olhar possíveis juízos de valor e opiniões, porém de forma crítica e humorística.

Por outro lado, torna-se evidente de que o porta-voz, na concepção de Pêcheux (1990), é determinado por um percurso de mão dupla. Ele ao mesmo tempo em que age em prol de seus liderados, torna-se também interlocutor do seu próprio dizer do qual Pêcheux denomina de “testemunha ocular do acontecimento” (PÊCHEUX, 1990, p. 17).

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Nesse sentido, abarcam-se marcas de uma tensão na estrutura do seu dizer, tendo em vista que ele está de fronte ao seu adversário. Isso significa que sua posição-sujeito requer diálogo, acordo ou um acerto entre as partes, porque ele está inscrito numa posição que exige muito mais negociação à reivindicação.

Vale salientar que é nessa transição de reivindicar para o ato de negociar com o seu interlocutor é que pode ocorrer a visibilidade do acontecimento. Entende-se por acontecimento como o “ponto de encontro entre uma memória e uma atualidade” (PÊCHEUX, 1990b, p.17). Isso remete ao fato de que o porta-voz carrega diante do seu interlocutor um dizer que possivelmente venha a se identificar com o dizer do adversário sendo capazes de se enquadrar numa mesma formação discursiva ou em outra formação.

Daí então a ideia do enquadramento discursivo do porta-voz em um “nós em formação”: o eu do adversário somado ao eu do porta-voz propriamente dito, mas que traz a memória discursiva da sua classe. Mesmo muito embora ocorra no discurso do porta-voz as marcas de um nós em formação isso não garante que haja o advento de um acontecimento.

Até então se torna necessário compreender que o funcionamento discursivo do porta-voz passa pela fase em que ocorre a dupla visibilidade, abarcada pelo encontro de duas vozes discursivas: a voz do porta-voz e a voz do seu adversário.

Ainda sobre a questão, segundo Zoppi- Fontana (1997):

A figura do porta-voz é definida como um funcionamento enunciativo de mediação da linguagem, como forma nova de enunciar a palavra política, através da qual um sujeito pertence a um grupo, e reconhecido pelos outros integrantes como igual, destaca-se do resto como centro visível de um nós em formação, que o coloca em posição de negociador potencial com o poder constituído. (PÊCHEUX , 1982, apud ZOPPI-FONTANA, 1997, p. 20)

Por outro lado, o porta-voz é visto pela autora como um sujeito inscrito em

uma posição com um “poder constituído” que leva consigo o poder da igualdade de ser ouvido pelos outros. Ele já se torna “reconhecido pelos integrantes”, uma vez que tem o poder de mediar a linguagem entre seu grupo e seus novos integrantes políticos.

Ao voltar-se para o discurso jornalístico, “a imprensa tanto pode lançar direções de sentidos a partir do relato de determinado fato como pode perceber tendências de opinião ainda tênues e dar-lhes visibilidade, tornando- as eventos-notícias”. (MARIANI, 1998, p. 59)

Se o funcionamento discursivo do porta-voz parte do movimento da dupla visibilidade ao falar em nome daqueles que ele representa e ao parlamentar com o adversário, a charge é um veículo que a imprensa pode tornar visíveis essas direções de sentido mediadas pelos chargistas.

Por fim, para que haja uma leitura da charge deve ocorrer o efeito derrisório no leitor. O efeito derrisório que o chargista produz no leitor pode ser compreendido como uma visibilidade tênue de uma crítica político- social que leva a outros sentidos. Além disso, o efeito derrisório pode apontar a marca dessa direção de sentido, abrindo fissuras para a entrada de novos efeitos de sentidos e podendo causar rupturas que esburacam ainda mais as paredes porosas das formações discursivas. Segundo Orlandi (2001),

(...) as palavras não ficam paradas no mesmo lugar, movimentam-se, deslocam-se, rompem espaços de sentidos fixados. Tentamos o solo firme único e, no território das palavras, nos defrontamos sempre com as múltiplas versões. E não temos senão versões. Isso é assim porque a língua se estrutura pela falha e todo discurso se produz no equívoco já que a relação fato/linguagem é atravessada por outra: sujeito/história. Não há um dizer único. (ORLANDI, 2001, p.143)

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Por isso vale a pena dizer que a língua não é transparente, ela é opaca e, consequentemente o sentido não pode ser dado a priori. Na charge, essa expansão e direção semântica que causam o efeito derrisório mostram as diferentes versões de sentido.

4. As tomadas de posição de Marco Feliciano

Marco Feliciano “é pastor evangélico e deputado federal por São Paulo. Filiado ao

PSC, o Partido Social Cristão, foi eleito em 2013, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados 3. Sobre essas considerações a respeito de Marco Feliciano, cabe frisar que ele se inscreveu socialmente nas seguintes posições-sujeito (PS):

1) PS1: pastor evangélico; 2) PS2: deputado federal; e 3) PS3: presidente da CDHM.

Sobre a tomada da PS1, pastor evangélico, vale salientar que se trata de uma

posição inscrita na formação discursiva religiosa. Sobre o discurso religioso, vale ressaltar que o discurso religioso é caracterizado “como aquele em que fala a voz de Deus: a voz do padre- ou do pregador, ou, em geral, de qualquer representante seu- é a voz de Deus.” (ORLANDI, 2003, p.243). Isso possibilita afirmar que o pastor Marco Feliciano pode ser considerado como porta-voz do discurso religioso.

Além disso, o discurso religioso (DR) funciona no “que ele diz não só nos seus testamentos, nos seus teólogos, nos seus sermões, mas também nas suas práticas, nos seus rituais, nas suas cerimônias e nos seus sacramentos”. (ALTHUSSER, 1974, p.241).

Antes de abarcar as questões relacionadas à PS2, torna-se premente apontar a noção das modalidades de posição-sujeito. A primeira delas, “Pêcheux designou de superposição entre o sujeito do discurso e a forma-sujeito. Tal superposição revela uma identificação plena do sujeito do discurso com a forma-sujeito da FD que afeta o sujeito.” (INDURSKY, 2011, p.80). Essa identificação plena do sujeito o faz caracterizá-lo como o bom sujeito do discurso no qual ele se identifica com os saberes da FD em que ele está se relacionando.

“A segunda modalidade, ao contrário, caracteriza o discurso do ‘mau sujeito’, discurso em que o sujeito do discurso, através de uma ‘tomada de posição’, se contrapõe à forma-sujeito e aos saberes que ele organiza no interior da Formação Discursiva”. (Ibid., p.80). Essa modalidade de tomada de posição também é conhecida como contra identificação do sujeito com a FD.

A diferença da contra identificação para a desidentificação (terceira modalidade) é o fato de que esta chega a romper com a formação discursiva pela qual o sujeito está sendo afetado, fazendo surgir uma nova FD.

A respeito da inscrição da PS2, deputado federal, salienta-se que ela se inscreve na formação discursiva política. Sobre o discurso político, pode-se evidenciar que “o político não só é autônomo em relação à voz do povo como ele pode até mesmo criar, inventar a voz do povo que lhe for mais conveniente. Desde que lhe seja atribuída legitimidade”. (MARIANI, 1998, p. 245).

3 UOL. Leia a transcrição da entrevista de Marco Feliciano à Folha. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/04/02/leia-a-transcricao-da-entrevista-de-marco-feliciano-a-folha-e-ao-uol.htm> Acesso em: 05 mai. 14

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Mesmo estando inscrito numa formação discursiva política, a PS2 de Marco Feliciano é atravessada pelo DR, uma vez que ele é deputado federal filiado e apoiado pelo Partido Social Cristão (PSC).

Se no discurso religioso “a voz de Deus se fala no padre”. e no discurso político “a voz do povo se fala no político”. (ORLANDI, 2003, p.244), pode-se dizer que na tomada de PS2 de Marco Feliciano “a voz do povo cristão se fala no pastor”. Isso vai de encontro ao fato de que o discurso político pode ser moldado conforme a conveniência e condicionado à legitimação.

Interessante é estabelecer um paradoxo das relações sociais que a figura do pastor-deputado Marco Feliciano assume como porta-voz durante as tomadas de posição-sujeito 1 e 2: enquanto na PS1, ele como porta-voz representa a voz de Deus; na PS2, ele como porta-voz representa a voz dos cristãos. Isso quer dizer que ele exclui em seu discurso quaisquer outros possíveis representados que não sejam cristãos.

A filiação ao PSC pode ser entendida como uma prática religiosa que vai além dos testamentos que serve para legitimar o discurso religioso falando no político. Se no discurso político a voz do povo se fala no político, a inscrição de Marco Feliciano na PS2 não o faz dele um sujeito que se identifica plenamente com os saberes da FD política, tendo em vista que ela é atravessada pelo DR e exclui a possibilidade de outros representados que não sejam cristãos. Ainda sobre a noção de porta-voz, Pêcheux afirma:

o que nunca é introduzido no enunciado do porta-voz é aquilo que o povo diz ou disse. O discurso do relatado é estranho ao discurso do porta-voz. A representação do povo como locutor (discurso relatado) está ausente, e a possibilidade de que o povo ocupe um lugar de orador está excluída, pois anularia a função do porta-voz”. (PÊCHEUX, 1990, p. 19)

Para entender a inscrição de Marco Feliciano na PS3, deve-se ter em mente que ele continua a se inscrever na formação discursiva religiosa assim como na PS2. Porém o problema se agrava, pois enquanto que na tomada de posição 2 ele representa o partido social cristão e, consequentemente, o povo cristão, na tomada de posição 3 ele continua representando o povo cristão quando na verdade deveria representar a CDHM.

Para entender melhor essa terceira tomada de posição, torna-se indispensável abarcar a noção de formações imaginárias elaboradas por Pêcheux (1969). Uma vez que o sujeito não é dono do seu próprio dizer e durante o seu discurso ele se projeta na forma-sujeito da formação discursiva em que ele está inscrita, Pêcheux descreve esse processo discursivo num jogo de imagens conforme descrito abaixo:

Expressão que designa as formações imaginárias4

Significação da expressão Questão implícita cuja resposta” subtende a formação

imaginária correspondente5 A

I A (A) Imagem da posição-sujeito Marco Feliciano enquanto presidente da CDHM para os sujeitos da CDHM.

“Quem sou eu para lhe falar assim?

I A (B) Imagem da posição-sujeito “representado” pelo presidente da CDHM para o sujeito presidente da CDHM.

“Quem é ele para que eu lhe fale assim?”

4 As expressões que designam as formações imaginárias foram elaboradas por Pêcheux entre 1969 e 1990. 5 As questões implícitas foram também elaboradas por Pêcheux entre 1969 e 1990.

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B

I B (B) Imagem da posição-sujeito “representado” pelo presidente da CDHM para os sujeitos ativistas do movimento GLBT.

“Quem sou eu para que ele me fale assim?”

IB (A) Imagem do presidente da CDHM para os sujeitos ativistas do movimento GLBT.

“Quem é ele para que me fale assim?”

A I A (R) Imagem da CDHM enquanto instituição sobre os acontecimentos sociais (R)

“De que lhe falo assim?”

B I B (R) Imagem que os representados pelo presidente da CDHM fazem dos acontecimentos sociais.

“De que ele me fala assim?”

Fonte: Pêcheux, 1969/ 1990 Esse jogo de imagens auxilia a compreender a dimensão das tomadas de posição-

sujeito nas formações discursivas. Uma vez que a Comissão dos Direitos Humanos possui membros em sua composição de diversos partidos, Marco Feliciano na posição-sujeito presidente é visto, na teoria, como um sujeito que representa a todos aqueles que tenham seus direitos humanos restringidos e ouve todas as reinvindicações das minorias.

O sujeito representado pelo presidente da CDHM para Marco Feliciano é o sujeito interpelado pela ideologia religiosa, mais precisamente pelo discurso judaico-cristão. Isso porque ele se inscreve no DR para se filiar ao PSC na qual o mesmo processo ocorre ao tornar-se presidente. É uma forma de legitimar o discurso religioso também usando a via do político.

Para os sujeitos ativistas do movimento GLBT a imagem que o sujeito “representado por Marco Feliciano” transmite é uma imagem de que se trata de uma representação parcial em que apenas uma fatia está sendo representada: aqueles que (re)produzem a ideologia judaico-cristã (que seguem a mesma concepção de família, sexo, crença, estilo de vida, etc.).

É uma imagem de silenciamento da voz do sujeito “representado”. O discurso do porta-voz é um discurso relatado estranho aos ouvidos dos ativistas, que apaga quaisquer possibilidades de visibilidade das suas reinvindicações. Por isso que Marco Feliciano não “representa” todas as fatias da sociedade e muito menos representa sequer uma letra do movimento GLBT.

O grupo gay da Bahia (GGB) criou uma exposição em que foram apresentadas diversas charges que colocam em xeque a representatividade do pastor-deputado Marco Feliciano.

O jogo de imagens permite também entender o porquê ocorreram diversas manifestações em todo Brasil durante a posse do pastor-deputado Marco Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). Além disso, possibilita entender a imagem da CDHM enquanto instituição sobre os acontecimentos sociais.

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Figura 1: Manifestações de ativistas pelo Brasil

Fonte: Revista Isto é

Esses noticiários e outros se tornaram as condições de produção necessárias para que o chargista produzisse os efeitos de sentido. 5. O ofício do chargista na produção dos efeitos de sentido

Até agora se abarcou como ponto central a figura do chargista como porta-voz

do discurso das minorias, em que foi necessário penetrar nas raízes dos dispositivos teóricos sempre vinculando com o fato gerador das charges que circularam em meados de 2013: a posse do pastor-deputado Marco Feliciano como presidente da CDHM que também não deixa de se inscrever como porta-voz.

Vale ressaltar que o chargista trabalha com a produção dos efeitos de sentido nas charges. Ele elabora suas charges cujos respectivos discursos podem retomar uma memória. “A memória vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita”. (PÊCHEUX, 1999, p.52). Isso vai de encontro ao fato de que a charge tem o poder de legitimar discursos ao resgatá-los pela memória discursiva.

A memória também é entendida como “saber discursivo que faz com que, ao falarmos, nossas palavras façam sentido. Ela se constitui pelo já-dito que possibilita todo dizer”. (ORLANDI, 1999, p.64). Durante esse processo de resgate ao que já foi dito, a memória “é sempre reconstruída na enunciação” (ACHARD, 1999, p.17)

Essa reconstrução da memória pela enunciação deve-se ao fato de que a memória está imbricada nos processos de transferência e transporte de sentidos. O fato de transferir ou transportar sentidos tem a ver com a noção de porta-voz. O porta-voz faz isso muito bem devido ao seu caráter de dupla visibilidade, ao negociar com o adversário e falar em nome

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daqueles que representa. Se for possível reconstruir o sentido, ele se comportará de forma polissêmica ou parafrástica.

O papel da memória em reconstruir sentidos está relacionado com a noção de metáfora. Segundo Pêcheux (1988),

uma palavra, uma proposição não têm um sentido que lhes é próprio, preso à sua literalidade e nem sentidos deriváveis a partir dessa literalidade. O sentido é sempre uma palavra, uma proposição por outra e essa superposição, essa transferência (“meta- phora) pela qual elementos significantes passam a se confrontar, de modo que se revestem de um sentido, não poderia ser predeterminada por propriedades (intrínsecas, eu diria) da língua. (PÊCHEUX, 1988, p. 262)

Afirmar que uma palavra possui um sentido que é próprio, é o mesmo que pensar

que a relação da palavra com o a significação é sempre uma relação unívoca (isto é 1 para 1), ou seja, quando na verdade, para cada palavra ou proposição o que pode haver “são versões de sentidos” (ORLANDI, 2001, p.143). Em se tratando das charges, o chargista como porta-voz dos sentidos trabalha também com imagens.

Segundo Davallon (1999), na visão de Benveniste, “a imagem funciona antes de tudo sob o modo semântico” (DAVALLON, 1999, p.29), reforçando a ideia de que o trabalho do chargista na elaboração das charges está preocupado na atribuição dos sentidos e não na atribuição de significados, assim como fazem os dicionários.

“Pelo processo de produção de sentidos, necessariamente sujeito ao deslize, há sempre um possível ‘outro’, mas que constitui o mesmo”. (ORLANDI, 1998, p.81). A dupla visibilidade do porta-voz tem a ver com o possível outro que se gera por esse efeito metafórico. Nessa dupla visibilidade, além de haver o porta-voz como representante daqueles que ele fala em nome de, há um “nós” em formação. Esse “nós” pode ser entendido como um possível “outro”, atravessando e sendo atravessado por outras formações discursivas.

6. Davi & Golias

Carlos Henrique Latuff de Sousa é chargista e participou do Concurso Internacional de Caricaturas sobre o Holocausto ocorrido em 2006. Suas charges circulam na internet, mais precisamente nos blogs. Do seu blog, foi retirada a seguinte charge:

Figura 2: Charge Davi & Golias

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/tag/homofobia/

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A charge mostra o desenho de um duelo entre Jean Willys e Marco Severiano. Jean Willys com uma vestimenta greco-romana que, ao segurar um bastão, desfere um golpe em Marco Feliciano. Este, por sua vez, está vestido com uma armadura, portando espada e escudo. Jean Wyllys aparece de forma proporcionalmente menor, sem armaduras. Lendo o título “Davi & Golias” percebe-se que o chargista se inscreveu na formação discursiva religiosa para enunciar-se como porta-voz.

Ele atribui a Jean Wyllys a posição-sujeito Davi e a Marco Feliciano, Golias. Davi, de acordo com a bíblia, vence o gigante Golias ao acertá-lo com uma pedra durante um ataque com sua funda. O bastão segurado por Jean Wyllys representa a funda de Davi, as cores do respectivo bastão trazem a memória o movimento GLBT no qual ele como deputado federal o representa. O coração que atinge Marco Feliciano faz alusão à pedra usada por Davi para derrotar o gigante. A presença da armadura em um e a ausência dela em outro produz o efeito de sentido de que quem está na presidência da CDHM possui maior proteção e poder.

Além disso, a cena da batalha está estampada nas páginas de um livro que seria a bíblia. A memória do discurso religioso é reconstruída pelo chargista com base no efeito metafórico.

Além de ser chargista, o site de enciclopédia livre, wikipedia, relata que Latuff é ativista do Partido dos Trabalhadores (PT). Vale salientar que o último presidente da CDHM antes da assunção do presidente Marco Feliciano foi Domingos Dutra, também do PT, no ano de 2012. Isso revela que Lattuf como chargista se inscreveu numa PS militante para falar em nome de sua classe usando-se do discurso religioso.

Como gesto de interpretação, o chargista está colocando em voga a briga política entre a bancada evangélica liderada pelo pastor-deputado Marco Feliciano e os políticos que apoiam o movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transexuais). Nesse embate político, quem parece estar vencendo é o movimento GLBT. Um dos efeitos de sentido que a charge está mostrando, é que o deputado Jean Wyllys assim como Davi representa o lado do bem e assim como Golias, o pastor-deputado Marco Feliciano representa o mal.

Além disso, outro efeito de sentido é possível depreender: se Jean Wyllys está vencendo Marco Feliciano ao atacá-lo com um coração, logo, não se pode vencer uma batalha contra a homofobia de forma armada. O efeito derrisório está justamente no ponto em que o a pedra está sendo ressignificada pelo coração do qual por si só não tem poder suficiente para derrubar um gigante.

Outro sentido possível que a charge produz é de que se o presidente da CDHM perder uma batalha para um representante do movimento GLBT, sua função de porta-voz estará completamente amaeaçada. O chargista produz um efeito de sentido que sugere a troca do presidente da CDHM por um político que se inscreve no movimento GLBT. Vale salientar que o deputado Jean Wyllys é do PSOL, partido político brasileiro de esquerda assim como o PT do qual Latuff é ativista.

Por fim, vale salientar que Lattuf para produzir os efeitos de sentido dessa charge se enquadrou nas seguintes posições-sujeito:

PS1- chargista do blog latuff cartoons; PS2- ativista do PT; PS3- ativista do movimento GLBT; e PS4- religioso.

Sobre a PS1 e a PS2, o chargista se comporta da mesma maneira como um político

se comporta diante das câmeras, das propagandas, das campanhas eleitorais, etc. A diferença é que ele usa o humor para buscar aceitação do seu discurso e usa a charge para dar visibilidade a ele.

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Ainda sobre a PS2, a escolha de Jean Wyllys para “parlamentar” com Marco Feliciano na charge tem dois pontos em comum: o primeiro, porque se trata de um político da mesma coligação do qual o chargista Latuff é membro; segundo, porque Jean Wyllys tem força política para mobilizar um grupo social minoritário, capaz de fortalecer a coligação e, consequentemente, o próprio partido político do qual Latuff pertence.

A respeito da PS3, o chargista como porta-voz fala em nome dos membros do seu partido bem como em nome dos que pertencem ao movimento GLBT e simpatizantes, propondo um novo nós pecheuxtiano que está em formação.

Acerca da PS4, o chargista para veicular seu discurso reconstrói a memória do discurso religioso, embora trouxesse novos sentidos eles não são capazes de desestabilizar a FD religiosa. Esse resgate traz um mecanismo que continua a legitimar esse discurso embora atravessado pelo político.

7. Considerações preliminares

Ficou bastante marcado que para entender os efeitos de sentido que a charge

proporciona tornou-se necessário analisar de quais espaços e para quem o chargista estava falando. Além disso, percebe-se que para compreender os efeitos de sentido da charge foi premente o estudo de dois porta-vozes: o chargista propriamente dito e sua personagem representada na charge “Davi & Golias” e o segundo pelo pastor-deputado Marco Feliciano.

Permaneceu muito evidente de que ocorreram vários atravessamentos discursivos durante as tomadas de posição-sujeito de ambos porta-vozes.

O porta-voz chargista não pôde produzir os efeitos de sentido desejados sem antes mobilizar as propriedades da metáfora. Para isso, ele reconstrói a memória do discurso religioso. Muito embora o chargista confronte vários elementos significantes do discurso religioso, tais como a funda e a pedra usada por Davi e a própria ressignificação das personagens ao propor a inclusão dos dois políticos numa cena bíblica, esse transferência de sentidos não são capazes de inaugurar um acontecimento discursivo.

Isso porque, independentemente do sentido que ele está atribuindo à charge “Davi e Golias”, percebe-se que o discurso religioso volta a se legitimar, porém sobre outra versão de sentido. Nesse efeito dominó, o chargista fala pelo DR para legitimar também o seu discurso. Se o discurso político pode ser inventado e criado da forma que seja mais conveniente ao povo, o chargista como porta-voz opta para falar com seu interlocutor por meio da charge, mais precisamente pelo DR.

Além disso, ele, ao parlamentar com o seu interlocutor, sugeriu um novo “nós” em formação (ativista do PT como porta-voz + movimento GLBT como interlocutores). Essa sugestão se materializa com o efeito metafórico produzido na charge, ao propor a vitória de Jean Wyllys sob Marco Feliciano: se ele vencer a batalha será ele o novo porta-voz a representar a minoria do movimento LGBT. E é isso que parece estar ocorrendo.

Do mesmo modo que o porta-voz pode propor um nós em formação, por outro lado, seu discurso pode ser estranho ao relatado em que a voz dos seus representados pode estar ausente: e é isso que ocorre nas tomadas de posição-sujeito do pastor-deputado Marco Feliciano até chegar à presidência da CDHM enquanto porta-voz.

Se na posição-sujeito pastor a voz do povo cristão se fala nela, a voz do povo cristão continua a se falar tanto na posição-sujeito deputado federal quanto na posição-sujeito presidente da CDHM, quando na verdade, a voz do cidadão em geral deveria estar presente na PS2 como também a voz das minorias do movimento LGBT na PS3.

Isso ocorre porque o DR em Marco Feliciano vai além das fronteiras dos sermões e dos testamentos bíblicos. O DR se manifesta também nas suas práticas políticas, tanto na PS2 quanto na PS3. Essas tomadas de posição-sujeito por parte de MF a partir de uma mesma

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FD (a religiosa) faz dele a se desidentificar com a posição-sujeito da CDHM, motivo da qual vem a ocorrer diversas manifestações no Brasil, intensificando a legitimidade do discurso da charge de Lattuf.

Por fim, percebe-se que o movimento das posições-sujeito em ambos porta-vozes o faz se atravessarem no DR. O discurso do chargista é um discurso onde ocorre maior visibilidade, legitimando discursos: o religioso e o chárgico; enquanto o discurso de MF, há uma menor representatividade política. Quanto às versões de sentido, diferentemente desse, o chargista reconstrói a memória do DR. Como porta-voz, ele transfere sentidos, mas MF, nas tomadas de posição, somente os transporta. 8. Referências ACHARD, P. et al. Trad. NUNES, J. Papel da memória. Campinas, SP: Pontes, 1999. ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de Estado, 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. ENCICLOPEDIA LIVRE. Carlos Lattuf. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Latuff> Acesso em: 05 mai. 14 ENCICLOPÉDIA LIVRE. Partido, socialismo e liberdade. Disponível em: <Phttp://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Socialismo_e_Liberdade> Acesso em: 05 mai. 14. FACOM. Impressão digital. Disponível em: <http://impressaodigital126.com.br/2013/04/06/a-historia-das-charges-no-brasil-e-no-mundo/> Acesso em: 05 mai. 14. INDURSKY, F. Da interpelação à falha no ritual: a trajetória teórica da noção de formação discursiva In: BARONAS, R. L. (Org). Análise do discurso: apontamentos para uma história da noção-conceito de formação discursiva. 2 ed. rev. Amp. São Carlos, SP: Pedro & João, 2011. MARIANI, B. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Campinas, SP: Unicamp, 1998. ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4 ed. Campinas, SP: Pontes, 2003. ______. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. 2ª ed. Campinas, SP: Pontes, 1999. ______. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Campinas: Pontes, 2004. ______. Discurso em Análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas, SP: Pontes, 2012. PÊCHEUX, M. Tradução: Eni Orlandi. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 1990. ______. Tradução: Eni Orlandi et al. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, SP: Editora da Unicamp. 1988. UOL. Leia a transcrição da entrevista de Marco Feliciano à Folha. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/04/02/leia-a-transcricao-da-entrevista-de-marco-feliciano-a-folha-e-ao-uol.htm> Acesso em: 5 maio 2014.