Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e...

17
Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central pelo Rio e pela Bahia 1 Pedro Dorneles da Silva Filho 2 RESUMO Este artigo discute as questões sociais, culturais, econômicas e representacionais presentes em duas obras da produção artística brasileira: o romance do século XIX, O cortiço, de Aluísio Azevedo, e o filme de ficção do século XXI (2007), Ó paí, ó. Constitui, assim, um espaço de incursões no campo da Literatura Comparada e dos Estudos Culturais, a fim de politizar as manifestações artísticas, mostrando seu potencial de significação e representação de diversas questões que traduzem, de alguma maneira, nossa noção de realidade. Identidade, representação, arte e interdiscursividade são algumas das chaves de leitura nas quais se ampara essa pesquisa, estabelecendo um encontro entre literatura e cinema na tentativa de compreender melhor os sintomas de marginalidade, pobreza e desigualdade vigentes no Brasil em dois contextos distintos e como que a engenharia dos recursos estéticos dará conta de refletir tais problemáticas. PALAVRAS-CHAVE: Discurso - Estudos Culturais - Literatura comparada - marginalização ABSTRACT This article discusses the social, cultural, economic and representational present in two works of Brazilian artistic production: The literary nineteenth century work, The tenement in Aluísio Azevedo and film production of the XXI century (2007), Father,. A incursions space in the field of literature and comparative cultural studies in order to politicize art forms, showing their potential significance and representation of various issues that translate in some way, our notion of reality. Identity, representation, art and interdiscursivity are some of the keys of interpretation in which it sustains this writing. A meeting between literature and film in an attempt to better understand the symptoms of marginalization, prevailing poverty and inequality in Brazil in two different contexts and how that engineer the aesthetic resources will report to reflect such problems. KEYWORDS: Comparative literature - marginalization - Cultural Studies - Speech neorealism 1 Artigo científico apresentado ao Programa de Pós-Graduação do Instituto Federal Fluminense (IFF) campus Campos-Centro, Campos dos Goytacazes- RJ, em 2015, como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Curso de Pós-Graduação lato-sensu em Literatura, Memória cultural e Sociedade. 2 Autor do artigo e pós-graduando em Literatura, Memória cultural e Sociedade” pelo IFF campus Campos- Centro, Campos dos Goytacazes-RJ.

Transcript of Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e...

Page 1: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO:

um passeio margino-central pelo Rio e pela Bahia1

Pedro Dorneles da Silva Filho2

RESUMO

Este artigo discute as questões sociais, culturais, econômicas e representacionais presentes em

duas obras da produção artística brasileira: o romance do século XIX, O cortiço, de Aluísio

Azevedo, e o filme de ficção do século XXI (2007), Ó paí, ó. Constitui, assim, um espaço de

incursões no campo da Literatura Comparada e dos Estudos Culturais, a fim de politizar as

manifestações artísticas, mostrando seu potencial de significação e representação de diversas

questões que traduzem, de alguma maneira, nossa noção de realidade. Identidade,

representação, arte e interdiscursividade são algumas das chaves de leitura nas quais se

ampara essa pesquisa, estabelecendo um encontro entre literatura e cinema na tentativa de

compreender melhor os sintomas de marginalidade, pobreza e desigualdade vigentes no Brasil

em dois contextos distintos e como que a engenharia dos recursos estéticos dará conta de

refletir tais problemáticas.

PALAVRAS-CHAVE: Discurso - Estudos Culturais - Literatura comparada -

marginalização

ABSTRACT

This article discusses the social, cultural, economic and representational present in two works

of Brazilian artistic production: The literary nineteenth century work, The tenement in Aluísio

Azevedo and film production of the XXI century (2007), Father,. A incursions space in the

field of literature and comparative cultural studies in order to politicize art forms, showing

their potential significance and representation of various issues that translate in some way, our

notion of reality. Identity, representation, art and interdiscursivity are some of the keys of

interpretation in which it sustains this writing.

A meeting between literature and film in an attempt to better understand the symptoms of

marginalization, prevailing poverty and inequality in Brazil in two different contexts and how

that engineer the aesthetic resources will report to reflect such problems.

KEYWORDS: Comparative literature - marginalization - Cultural Studies - Speech –

neorealism

1 Artigo científico apresentado ao Programa de Pós-Graduação do Instituto Federal Fluminense (IFF) – campus

Campos-Centro, Campos dos Goytacazes- RJ, em 2015, como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Curso

de Pós-Graduação lato-sensu em “Literatura, Memória cultural e Sociedade”.

2 Autor do artigo e pós-graduando em “Literatura, Memória cultural e Sociedade” pelo IFF campus Campos-

Centro, Campos dos Goytacazes-RJ.

Page 2: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

LITERATURA, COMPARATISMO E OS ESTUDOS CULTURAIS:

HORIZONTES DE SIGNIFICAÇÃO EXPANDIDOS

Esta seção de abertura dará abrigo às diretrizes teóricas que sustentarão as problemáticas

levantadas na pesquisa. O conceito e a importância da Literatura Comparada, o cotejo

possível entre diferentes sistemas semióticos (no nosso caso, Literatura e Cinema) e a

diminuição das fronteiras departamentais que foi feita pelos Estudos Culturais são os

enfoques aqui propostos.

A Literatura Comparada trata de um campo de estudo que possibilita o encontro entre

obras literárias diferentes, na tentativa de amplificar o conhecimento e as temáticas discutidas

por elas. O comparatismo, segundo Carvalhal e Coutinho (1994, p.15) é “tão antigo quanto o

pensamento humano.” Sempre tivemos a necessidade de estabelecer comparações,

demarcando similaridades ou disparidades entre dois ou mais elementos, na árdua missão de

distinguir o que é do que não é.

Sendo a literatura uma forma de expressão do humano, ou seja, inserida em um tempo,

em um contexto, carregada de tensões e problemáticas, acaba por se tornar uma espécie de

espelho que refletirá nossa própria imagem claudicante. E, assim, tal expressão do humano,

materializada em discurso, pertencente a uma dada época, pode ser analisada pelo viés da

comparação com outra produção de época e contexto diferentes, despertando, dessa maneira,

a possibilidade de enxergarmos melhor suas limitações e avanços.

Estudar a literatura sob uma perspectiva comparada só tem, então, a enriquecer as leituras

e os olhares sobre um dado aspecto, seja ele social, afetivo, cultural etc. Ao comparar, por

exemplo, o clássico da litertura shakesperiana Romeu e Julieta do final do século XVI com o

filme brasileiro Era uma vez (2008), dirigido por Breno Silveira, encontraremos elementos

bastante similares. A impossibilidade amorosa por conta das diferenças familiares, o final

trágico, a disputa de poder, tudo isso aparece em ambas as obras, reservados os contextos e

ambientações. Isso acaba trazendo à tona as mesmas questões e, assim sendo, torna a leitura

do texto-matriz mais ampla, permite a (re)contextualização da obra, a produção de novos

significados e, por conseguinte, de novas leituras.

O estudo comparado teve sua grande legitimação na efervescência das Ciências Naturais

do século XIX, e, na França, em pouco tempo, essa perspectiva cosmopolita e comparatista

chegou também à área dos Estudos Literários, originando, pois, a hoje conhecida Literatura

Comparada. Desde então, aproximar obras nacionais ou de diferentes nacionalidades começou

a ser enfoque não só nas academias francesas, mas em outros países como, Estados Unidos,

Rússia e Alemanha.

Atualmente, muitos pesquisadores desenvolvem suas análises usando a perspectiva

comparatista, na interface de duas obras literárias. Porém outros optam por uma leitura

intertextual servindo-se de duas ou mais produções artísticas de diferentes códigos estéticos,

como será o nosso caso. A literatura e o cinema, a literatura e as artes plásticas, a literatura e a

música, entre outros cotejos, são as relações às quais nos referimos quando falamos de uma

atividade crítica da Literatura Comparada mais contemporaneamente.

Há pesquisadores que condenam esses tipos de encontro, mantendo-se numa posição

mais ortodoxa em relação ao que pode ser comparado com a literatura ou não. Geralmente,

quem toma tal postura parte de critérios da Teoria Literária para avaliar a força significativa

da outra arte na sustentação de um encontro ou de uma discussão que se procure levantar. Em

um mundo em que predomina a “Cultura da imagem”, ou seja, a força da visualidade, o

literário influencia e é influenciado por tendências estéticas que não contemplarão somente o

código verbal no processo de significação.

Sendo assim, em contextos em que a proliferação de manifestações estéticas é cada vez

mais acentuada, deve-se considerar pertinente sim o encontro da literatura com os outros

Page 3: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

campos da arte. Ao diferenciar o grupo de pesquisadores que defendem a Literatura

Comparada limitada ao cotejo literatura – literatura dos que se abrem para o encontro da

literatura com outra forma artística (cinema, música, artes plásticas etc), fala-se que o

primeiro grupo segue uma tendência mais voltada para a escola francesa e, já o segundo, para

a escola americana. Como nos aponta Tânia Carvalhal em Literatura Comparada. Segundo

Carvalhal (2006, p.16), “(...) ao lado da orientação francesa, também se costuma designar

como “escolas" a norte-americana e a soviética. A primeira, despojada de inflexões

nacionalistas, distingue-se da francesa por seu maior ecletismo”.3

A literatura e o cinema são dois campos da arte que podem ser aproximados pela

similaridade que possuem: a de narrar. Atualmente já se percebe que não só o cinema se

beneficia da força operacional do texto escrito, mas também a Literatura, principalmente a

contemporânea, tem incorporado técnicas da visualidade do cinema e até mesmo das artes

plásticas (plasticidade) para nos contar suas histórias. Como nos aponta Aguiar e Silva (1990,

p.178):

O texto fílmico narra frequentemente uma história, uma sequência de eventos

ocorridos a determinadas personagens num determinado espaço e num determinado

tempo, e por isso mesmo é tão frequente e congenial a sua relação intersemiótica

com textos literários nos quais também se narra ou se representa uma história.

Segundo Cardoso (2011), se a palavra acaba por nos levar a uma imagem, a imagem

também, para ser apreendida, instala um discurso, traduzindo-se através da palavra. Sendo

assim, palavra e imagem sempre se entrecruzam no processo de significação. O código escrito

e os códigos do cinematográfico acabam por remeter-se mutuamente, redimensionando e

expandindo o processo de leitura.

Contudo fazer uma análise comparatista entre um material literário e um

cinematográfico ainda tem sido desafio para alguns pesquisadores, haja vista que existe uma

avaliação severa cunhada por alguns expoentes da crítica artística. Esses acabam por fazer o

uso de critérios e valores estéticos da crítica literária para avaliar o cinema, que, muitas vezes,

é visto como cópia “infiel” do literário ou cruel demolidor da engenhosidade criativa que a

tessitura do texto escrito é capaz de criar no processo de leitura.

Thais Maria Gonçalves da Silva traz em seu artigo Reflexões sobre adaptação

cinematográfica de uma obra literária uma aproximação de alguns apontamentos feitos por

críticos artísticos em que podemos notar certa resistência para a abertura do encontro entre

literatura e cinema:

Em 1967, Assis Brasil, diferente de Epstein que se propunha a comparar literatura e

cinema no seu campo de significação e no seu meio de comunicação, fala

claramente sobre a adaptação da obra literária para o meio cinematográfico em seu

livro Literatura e Cinema: choques de linguagem.

Nessa obra, o autor defende a tese de que o cinema prejudica-se ao fazer uso da

literatura, porque vai contra sua linguagem particular. Como o cinema é uma arte

que se aproxima da literatura pela narratividade, Assis Brasil diz que algumas vezes

o processo literário serviu ao processo cinematográfico. Mas o filme e o livro são

obras de artes diferentes, que não se manifestam pelo mesmo meio ou para o mesmo

fim. (SILVA, 2012, p.185)

3 Grifo meu no intuito de destacar a palavra “ecletismo”, uma das chaves de leitura para melhor compreender a

perspectiva de Literatura Comparada, cunhada pelos norte-amercianos.

Page 4: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

São várias as questões que tornam conflituoso o namoro entre cinema e literatura.

Quando o filme é uma adaptação de uma obra literária, por exemplo, há uma expectativa de

que se mantenha a fidelidade em relação ao que o discurso literário diz (ou procura dizer).

Espera-se que o escrito ganhe a materialização no audiovisual sem sofrer uma alteração

sequer. Neste caso, o da adaptação, partir do critério “fidelidade” é um equívoco. Sobre esta

questão, Cardoso (2011, p.110) diz ainda que:

Não há como transcodificar uma informação dada em um sistema de signos

específico e (re)codificá-la através de outro sistema semiótico sem que essa

informação, esse discurso sofra interferências, mutações, ainda que mínimas. É

necessário, para que o processo se viabilize convincentemente, que mudemos, por

vezes, o próprio teor da informação, adaptando-a, conformando-a ao novo veículo.

A arte do audiovisual não deve ser avaliada como uma devedora, aquela que possui

contratos incisivos, determinantes, pré-definidos e estanques com o literário. Mas sim, como

um sistema de signos próprios. Afinal, como Cardoso (2011, p.108) diz, o Cinema permuta o

discurso em som, luz, imagem e movimento, desvinculando-se do texto de origem, mas sem

perdê-lo de vista.

Sendo dessa maneira, podemos apreender que a literatura e o cinema são duas formas

de representação estética que dialogam, remetendo-se mutuamente e criando coligações

alusivas. Porém o que deve ser discutido não é o que o texto literário e o audiovisual dizem,

mas sim a forma de recepção dessas duas manifestações. Sobretudo, a recepção do cinema,

que não pode ser visto sob a ótica avaliativa dos critérios da teoria literária.

A linguagem do cinema pode apresentar aspectos similares aos do texto literário,

como por exemplo, as antíteses (oposições ideológicas), metonímias (aspecto contingencial),

ironias (crítica social), caráter metalinguístico (quando o código se autoexplica) etc. Contudo,

é preciso entender que a estruturação desses aspectos se dá pela organização e pelo uso dos

códigos de linguagem específicos de cada sistema semiótico, conforme nos aponta

Napolitano (2003, p. 57):

O conhecimento de alguns elementos de linguagem cinematográfica vai acrescentar

qualidade ao trabalho de análise. Boa parte dos valores e das mensagens

transmitidas pelos filmes a que assistimos se efetiva não tanto pela história contada

em si, e sim pela forma de contá-la. Existem elementos sutis e subliminares que

transmitem ideologias e valores tanto quanto a trama e os diálogos explícitos. [...]

As questões relativas à linguagem e à realização de um filme podem ser dividias em

três momentos: Do argumento ao roteiro, do roteiro à produção, da edição à

exibição.

Ratifica-se, pois, que a linguagem é o elemento crucial que distingue os dois sistemas

intersemióticos: a literatura e o cinema. É na elaboração e uso dos recursos específicos de

cada linguagem que poderemos avaliar a força expressiva dos enredos por eles narrados. Sem

compreender as configurações das linguagens e usando os mesmos critérios de avaliação para

dois sistemas de códigos estéticos distintos, tende-se a uma análise improdutiva. Portanto, é

necessário especular quais, como e por que usar determinados recursos/instrumentos de

linguagem? Que efeitos de sentido pretendem provocar?

As duas discussões apresentadas até aqui versaram sobre a Literatura Comparada e a

relação entre o Cinema e a Literatura e já prenunciaram, de alguma forma, que a proposta a

ser desenvolvida no percurso deste trabalho está pautada em um olhar híbrido, associativo,

capaz de contemplar diferentes instâncias de significação.

Page 5: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

Neste momento, para encerrar esta primeira seção, onde o arcabouço teórico é em sua

maior parte abrigado, será trazido à tona o encontro entre a Literatura e os Estudos Culturais,

sendo esta última área de pesquisa a grande responsável pela averiguação de diversos

fenômenos/manifestações culturais presentes no mundo contemporâneo.

A ideia de que o termo cultura não se veicula somente à produção material, mas sim

compreende um conjunto de sistemas simbólicos e de significação, é o grande desafio dos

Estudos Culturais, não significando dizer, porém, que a materialidade produzida pelas

sociedades não deva ser analisada e levada em conta. A Antropologia Cultural, por exemplo,

trabalha com essa perspectiva do concreto e, por meio dele, consegue desenvolver suas

análises e tentativas de entender a cultura.

Todavia é de interesse entender a cultura sob o enfoque dos estudos culturais, ou seja,

“como conjunto de sistemas simbólicos e de significação” (WILLIAMS apud RESENDE,

2002, p.31), uma vez que trabalharemos com as questões de representação social, construção

de identidade, e, em alguma proporção, com as negociatas sócio-culturais na perspectiva das

trocas simbólicas.

Os Estudos Culturais não são altamente recentes, pois já vêm se configurando desde a

década de 50 do século passado, XX. Iniciados por estudiosos britânicos e esquerdistas e,

posteriormente, abraçados por estudiosos de outras origens étnicas, essa esfera do

conhecimento tinha como intuito rasurar as fronteiras estabelecidas pela academia.

Antropologia, Sociologia, História, Filosofia e Literatura, por exemplo, em vez de

analisadas como departamentos estanques, poderiam dialogar seus enfoques para dar conta

dos aspectos do principal filtro capaz de revelar o indivíduo em sua inscrição no mundo: a

cultura.

Segundo Resende (2002), os Estudos Literários podem se tornar efetivamente mais

politizados quando neles se procura abarcar questões como gênero, etnicidade, identidades

culturais, marginalidade etc, por serem essas temáticas contempladas pelos Estudos Culturais.

A literatura, sendo assim, se redimensiona e é vista como espaço discursivo capaz de revelar,

efetivamente, as diversas facetas representacionais da sociedade. A literatura passa a ser

entendida como veículo que impulsiona discussões de questões pertinentes à realidade que

nos cerca.

Dessa maneira, vejamos como Resende (2002, p.49) finaliza seus apontamentos sobre

os Estudos Culturais no artigo “A indisciplina dos estudos culturais”:

Finalmente, gostaria de terminar dizendo que, sobretudo, o que me interessa nos

Estudos Culturais é a politização – no sentido grandioso que a palavra deve ter – da

investigação intelectual proposta. É na pluralidade cultural, no reconhecimento das

diversas subjetividades, nas múltiplas identidades e na certeza de que, por exemplo,

existem na literatura brasileira, muitas literaturas brasileiras, que está a possibilidade

de se reconhecer o complexo, o diferente, o outro.

Vimos que os Estudos Culturais realmente politizam os sentidos da Literatura e a

redimensionam, por usá-la como veículo de entendimento acerca de diversas questões.

Entretanto, conforme já nos alertara Bhabha (1998), a diversidade cultural não deve ser

apenas celebrada inocentemente, uma vez que não podemos nem devemos desconsiderar os

acirramentos existentes no interior dos trâmites de negociação das identidades, mas sim

analisar, discutir, desenvolver senso crítico e procurar entender essa multiplicidade de

culturas.

A importância de estabelecer, portanto, o encontro entre a Literatura e os Estudos

Culturais é o caráter cosmopolita desta última esfera – lógica cosmopolita esta em que nos

inserimos na atualidade, conforme nos esclarece Canclini (2005, p. 154): “o que lhes dá maior

Page 6: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

abertura e densidade intelectual é atrever-se a manejar materiais conexos, que não eram

considerados conjuntamente para falar de um tema.”

LINGUAGENS E CENAS: OS CORTIÇOS FALAM

Neste momento da pesquisa, será feita uma abordagem conceitual de forma sucinta

acerca de algumas linhas de pensamento e das estéticas artísticas em que se inserem as obras

analisadas: o Determinismo do século XIX e suas influências nas produções estéticas desta e

de posteriores épocas.

O século XIX foi um momento de intensa produção intelectual na Europa, em que

surgem e são desenvolvidas diversas linhas de pensamento tanto na esfera das Ciências

Humanas quanto das Ciências Biológicas. As artes, neste momento, assim como em todo o

percurso histórico-cultural da humanidade, refletirão essas efervescentes formas de ver e

pensar a realidade. A coleta de dados, a análise, o método, o cunho investigativo e a

formulação de hipóteses são os componentes elementares na observação dos fatos do pensar

cientificista. E é nesse ínterim que se insere a obra literária a ser analisada.

Conceito desenvolvido por Hippolyte Taine (1828-1893), o Determinismo foi uma das

linhas de pensamento bastante influente nesta época e que se fragmentou em subdivisões na

tentativa de justificar os comportamentos individuais e socais das configurações das

sociedades daquele tempo. São algumas dessas subdivisões o determinismo social, o

determinismo geográfico e o determinismo biológico. Apesar de ser considerado atualmente

um pensamento ultrapassado e restrito, teve reverberações significativas na maneira de se

avaliar os fenômenos sócio-culturais de diferentes grupos em todo o mundo.

Nascendo em um determinado grupo e sob condições sociais específicas, o indivíduo é

fadado a um percurso existencial limitado. Isto é, o Determinismo acredita ser o indivíduo o

produto de seu meio. De acordo com esse pensamento, desconsidera-se qualquer

possibilidade de existência que não esteja no planejamento das condições sociais

determinantes. Por exemplo: se o indivíduo nasce em um ambiente hostil, desfavorecido

financeiramente, sem uma formação afetiva saudável, ele estará fadado à brutalidade e à

ignorância, sem nenhuma perspectiva de superação.

Evidentemente sabemos que as trocas simbólicas, a cultura, os núcleos sociais em que

o indivíduo atua em todo seu processo de formação, assim como outros fatores afins, acabam

por influenciar os seus comportamentos. Contudo não serão determinantes a ponto de fechá-lo

na asfixia da não-possibilidade, da não-ocorrência, sendo, pois, o Determinismo pautado em

uma lógica restritiva e, consequentemente, contestável.

A literatura, como forte veículo de expressividade da lógica de vida vigente e na

contextualização de uma sociedade que vive em dada época, acaba assumindo, neste

momento, um caráter cientificista. Personagens, ambientes, fatos, influências, (des) pudores,

tudo confabula para uma narrativa preocupada em desnudar o que até então era ocultado e/ou

idealizado na perspectiva romântica.

Bosi (1999, p.173) diz: “(...) Do Romantismo ao Realismo houve uma passagem do

vago ao típico, do idealizante ao factual (...) A prosa de ficção ganhou em sobriedade e em

rigor analítico com o advento da nova disciplina”. Tais palavras do crítico Alfredo Bosi

entram, neste momento do discurso, com intuito de reiterar a passagem da literatura romântica

para a realista e as mudanças cruciais que essa passagem provocara.

Se antes a narração era quase um êxtase, as paisagens idealizadas e a superação das

mazelas era algo certo ao final das obras, o realismo vem esvaziar, com sua práxis descritiva,

objetividade e cientificismo, toda e qualquer tentativa de ocultar os acirramentos e

problemáticas da vida no plano individual e, sobretudo, na coletividade do social.

Page 7: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

Além do clássico Realismo apresentado acima, é fundamental falarmos da linha de

produção literária extensiva a ele: o Naturalismo. Esta linha de produção, certamente, por ser

uma expansão do Realismo, contará com a presença de elementos como: descritivismo,

análise de fatos, experimentação, influência científica. Entretanto o que a torna algo mais

específica e profunda é sua preocupação em demonstrar, por meio da obra literária, teses

científicas, principalmente as de psicopatologia. Assim nos aponta Cunha (1984, p.154):

O Naturalismo assume uma posição combativa na análise de problemas que a

decadência social evidenciava e faz do romance uma verdadeira tese, com intenção

científica. (...) Os naturalistas vão mais longe que os realistas nas descrições

repugnantes e repelentes, movidos pela certeza de seu papel cientifico mais efetivo.

Ao se propor uma análise de qualquer aspecto da obra O cortiço, por exemplo, como é

o nosso caso, é imprescindível apontar para as características do Realismo-Naturalismo. A

citação acima sintetiza de forma clara que, além de todos os aspectos do Realismo já

apresentados aqui, a proposta do Naturalismo vai mais além, no sentido de usar a obra como

uma espécie de laboratório, em que as personagens, nas suas condições irrisórias de

existência, tentam dar conta de sobreviver. As metáforas, símiles, zoomorfismo, descrição

espacial e dos indivíduos, tudo isso assume um caráter biológico; ferida exposta, descrita e

remexida, apresentada na tessitura de uma análise das patologias sócio-culturais da época.

A literatura enquanto linguagem artística elabora enredos, personagens, tipos e tensões

que partem de uma realidade que se faz ressonante na tessitura das tramas, mas que não

necessariamente se revela tal como a vida é. Afinal, segundo Martins (2007, p.1): “Ao recriar

as experiências subjetivas ou coletivas, a literatura fissura o sentido único com o qual se

fundam determinadas verdades históricas (...). A linguagem literária, em vez de subtrair

significados, acrescenta realidades suplementares.”

A produção artística, pois, conta com artifícios específicos da linguagem para falar

acerca do real, sem necessariamente sê-lo. Segundo Castro (1984, pp. 45-46), manifestar

realidades é discursar que, por conseguinte, é significar e, sendo assim, se o real aparece

como realidade significada, já não é o real, sendo o signo sempre “signo de”, nunca o que é.

“Em todo significar há um fingir, um dissimular.” E mais: “Fingir é revelar.”.

Dessa maneira, vimos que é complexa a discussão que aqui se levanta ao pôr em

interface a obra de criação artística e questões sociológicas, culturais e históricas, haja vista

que a linha tênue entre o real e o ficcional se faz presente e pode impulsionar

questionamentos, como: “Se é ressiginificação, que autoridade terá o literário e/ou outro tipo

de manifestação artística para tratar de questões da realidade?”.

A literatura não objetiva ser acúmulo de provas concretas na corrida das constatações

sobre as várias tensões da sociedade. Mas sim e efetivamente um espaço discursivo de

possível leitura e transcodificação acerca dessa realidade. Nisso habita o papel crucial do

investigador do literário: saber identificar como e quais os jogos representacionais utilizados

ali na tessitura das tramas são capazes de dizer da vida em sociedade.

Embora tenhamos visto que o Determinismo se constitui em um pensamento restritivo,

ele está presente na literatura brasileira e tem como exemplo emblemático a obra O cortiço,

de Aluísio Azevedo. O leitor é conduzido a olhar às personagens como produto final de toda

uma fermentação de elementos determinantes, em que o ambiente se destaca.

A obra, escrita no final do século XIX, narra a fundação de um espaço novo no Rio de

Janeiro: os cortiços. Lá era abrigado o proletariado urbano cada vez mais crescente e

indispensável para atender à demanda do desenvolvimento da cidade, que se expandia de

forma significativa tanto demográfica quanto economicamente. Apesar de peças fundamentais

Page 8: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

da engrenagem do desenvolvimento da urbe, tais espaços e pessoas eram acusados pelas

autoridades sanitárias de serem causadoras de focos de doenças e epidemias e, por esse

motivo, eram rejeitados pela elite.

Neste momento da história literária brasileira, as produções eram baseadas em

acontecimentos da época e tinham uma intenção de denunciar as mazelas, os jogos de

interesse e as disputas de poder da sociedade. Este processo de profunda análise, descrição

minuciosa e comprometimento com a denúncia dos fatos da realidade, foi chamado, como

vimos acima, de estética realista.

Além dessa preocupação em descrever com minúcias os fatos no processo narrativo, o

enredo da obra é composto por diversos elementos da prosa naturalista, dentre eles: a

animalização do homem, o discurso sexista, o coletivismo, o desnudamento da hipocrisia e de

suas articulações na corrida do poder, entre outros aspectos.

Clássicos exemplos do Determinismo na obra são as personagens Pombinha, menina

ingênua e pura que, ao ser corrompida pelo meio, cai na prostituição; assim como Jerônimo, o

imigrante lusitano, que antes levava uma vida regrada e tranquila, larga a família para viver

uma paixão sensual por Rita baiana, personagem descrita como objeto sexual e sensual de

todo o cortiço:

Cercavam-na homens e crianças; todos queriam novas dela. Não vinha em

trajo de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver o

pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de

diversas cores. No seu farto cabelo, crespo reluzente, puxado sobre a nuca,

havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espetado por um

gancho. E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de

trevos e plantas aromáticas. Irriquieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril

baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo à mostra um fio de

dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce

fascinador. (AZEVEDO, 1993, p. 55)

A descrição acima revela essa ótica naturalista. A linguagem no processo de

detalhamento, a representação da personagem, de seus comportamentos e aspectos físicos, a

escolha lexical para evidenciar sua postura sensual e de sedução, o uso do recurso da sinestesia

(olfativo e visual), como artifícios de linguagem para descrever a personagem, deflagram os

intentos da prosa biológica, cientificista-naturalista, desenvolvida por Azevedo.

Não restam dúvidas de que esta obra narra a pobreza e a marginalização do Rio de

Janeiro do século XIX, a partir de uma perspectiva determinista, engessada e potencialmente

negativa. Atrelada a isso, a questão étnica de depreciação dos negros e “mestiços” também é

evidenciada, haja vista que a obra fora escrita numa época em que fervilhavam teorias acerca

do elemento negro como constituinte da formação da identidade nacional, revelando, na maior

parte das vezes, uma postura declaradamente pejorativa por parte de tais discursos raciológicos.

A saga individual de algumas personagens da obra nos ajuda a discutir uma série de

elementos de nosso interesse neste trabalho. Dentre eles, a proposta determinista, a disputa de

poder, a hipocrisia, o adultério, os ideais burgueses da época, a marginalização de negros e

mestiços, entre outros tantos aspectos. Isso, porém, será mais bem desenvolvido

posteriormente.

Para antecipar esta ocorrência, é interessante citar um trecho do pesquisador da área

sociológica, Renato Ortiz, ao nos apresentar a noção de mestiçagem e formação da identidade

cultural do Brasil, na visão dos discursos raciológicos de final do século XIX, que acabam

sendo expressos pela literatura da época.

Page 9: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

No capítulo “Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional”, de seu livro Cultura

brasileira e identidade nacional, em uma associação entre Determinismo e propostas

raciológicas de depreciação do negro vigentes à época, Ortiz (1994, p.39) diz que:

O destino que Aluísio Azevedo reserva a um dos personagens centrais da

trama literária, Jerônimo, é exemplar. Jerônimo, imigrante português, chega

ao Brasil com todos os atributos conferidos à raça branca: força, persistência,

previdência, gosto pelo trabalho, espírito de cálculo. Sua aspiração básica:

Subir na vida. Porém, ao se amasiar com uma mulata (Rita baiana), ao se

“aclimatar” ao país (troca a guitarra pelo violão baiano, o fado pelo samba),

ele se abrasileira, isto é, torna-se dengoso, preguiçoso, amigo das

extravagâncias, sem espírito de luta, de economia e de ordem.

Neste trecho em que Ortiz analisa o destino reservado a Jerônimo dentro da obra,

deixa-nos bastante clara a perspectiva determinista (o meio determina os comportamentos

sociais) e a visão negativa que se configura na trama de Azevedo em relação ao elemento

negro (Rita baiana) e a mestiçagem. Como se o fato de ser brasileiro e, por conseguinte,

possuir contribuições fortemente ligadas à matriz negra, fosse sinônimo de improdutividade,

irracionalidade e desordem.

Sem dúvidas, neste sentido, a obra funciona como espécie de reflexo de um

pensamento altamente negativo em relação às contribuições do negro para a formação da

identidade nacional, pensamento este expresso por várias tentativas racistas de constatar a

incompetência biológica-genética do negro frente ao homem branco na realização de várias

atividades.

Embora essa não seja talvez a questão central da obra O cortiço; a de portar-se com

uma obra emblemática dos preconceitos étnicos, ela acaba por revelar um pensamento comum

da época: o eugenista. O destino dado aos personagens de Azevedo, dessa forma, condiz com

a postura tomada por certos intelectuais da época frente ao conceito de negritude, mestiçagem

e ideia de brasilidade.

Ainda na mesma página supracitada do texto de Ortiz, podemos encontrar uma

observação contundente do autor sobre o racismo científico presente no romance experimental

de Azevedo:

No início do romance, ocupa a mesma posição social que João Romão, outro

português que participa também das qualidades étnicas da raça branca. É

bem verdade, que Aluísio Azevedo apresenta João Romão com grande

desprezo; ele não se deixa seduzir pelo caráter alegre e sensual do mulato

brasileiro. No entanto, o desfecho do romance é parabólico. João Romão,

calculista e ambicioso, ascende socialmente no momento em que se distancia

da raça negra (ele se desvencilha da negra Bertoleza, com quem viveu grande parte de sua vida); Jerônimo, ao se abrasileirar, não consegue vencer

a barreira de classe, e permanece, “mulato”, junto à população mestiça do

cortiço. (ORTIZ, 1994, p.39)

Acima constatamos a ratificação do que falamos até agora: a denúncia da

marginalidade do negro e do mestiço, operada pela narrativa de Azevedo, ao associar o peso

da culpa por atrapalhar ou desvirtuar a prosperidade daqueles que a eles se vinculam. O

português João Romão só ascende socialmente depois de desvencilhar-se de sua companheira

negra, ex-escrava, Bertoleza; enquanto que Jerônimo se desqualifica e não consegue tal

Page 10: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

ascensão por conta de seu envolvimento, de sua inscrição na cultura e de sua vinculação à

população marginalizada e mestiça do cortiço.

Esses aspectos étnicos, a postura eugenista e determinista são apenas algumas das

marcas da proposta experimental de O cortiço, reveladora obra acerca do uso da literatura na

demonstração e constatação das convicções vigentes da época. A proposta de Aluísio não é

somente fazer uma denúncia social dos jogos de poder da época e das condições de vida da

marginalidade negra e mestiça do cortiço, mas é também, mesmo que não tão explicitamente,

revelar seu posicionamento sobre o racismo científico.

O filme Ó paí, ó (2007), dirigido por Monique Gardenberg, é classificado em sua ficha

catalográfica como comédia musical. No entanto apresenta traços de tragédia e Realismo que

subvertem, de alguma maneira, esta classificação. Há em diversas cenas a abordagem de

questões sociais, culturais e de identidade que apontam para um caminho muito mais amplo

do que a simples representação caricatural de baianidade, como nos aponta a diretora filme

em entrevista ao jornal A TARDE:

A gente aborda diversas condições delicadas de forma muito cômica e

divertida, mas está o tempo inteiro tocando em assuntos complicados. A

grande beleza de “O Pai, Ó” é que você é conduzido ao riso o tempo inteiro,

no entanto, aquela obra toda é para lhe causar espanto diante do seu próprio

riso. (A TARDE, 2007) 4

Neste sentido, cabe-nos aqui apresentar o potencial discursivo desta produção na

empreitada de questionar os constructos do imaginário social acerca da identidade da Bahia e

de seu povo. A dissertação de mestrado apresentada por Bárbara de Lira Bezerra, para

obtenção do título em Mestre em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi – SP,

cujo título é A representação do baiano no filme Ó paí, ó (2011), traz logo em seu resumo

uma síntese altamente consonante com a proposta de nosso enfoque de análise:

Apesar de a Bahia ter a sua imagem associada à terra da felicidade, onde

festas, praia, sol e axé music configuram uma convivência na base da

tolerância racial, cultural e religiosa, o filme expõe problemas relacionados à

violência, prostituição, turismo sexual e racismo, estabelecendo novos

parâmetros para uma reflexão sobre o cotidiano do baiano. Dentro da

perspectiva da comunicação contemporânea, o cinema e o audiovisual

percebem e constroem formações que vêm da política, da literatura e do

turismo resultando em representações da vida social. (BEZERRA, 2011, p.6)

A vida em sociedade no cotidiano do último dia de carnaval (recorte temporal em que

se situa a trama do filme) apresenta as dificuldades da população marginalizada do Pelourinho

(Salvador-BA) em sua luta pela sobrevivência. Os locais por onde as personagens transitam,

suas atividades diárias, a falta de uma moradia digna, os conflitos entre os moradores do

cortiço de Dona Joana, o racismo declarado e combatido em duas cenas específicas da obra, o

turismo sexual, o aliciamento de menores para o tráfico de drogas, a execução de aborto

caseiro como forma de ganhar a vida, a comercialização religiosa, a arte como forma de

denúncia das desigualdades gritantes da sociedade em questão, tudo isso salta à vista pela

linguagem mista (verbal e não-verbal) do audiovisual.

4 Entrevista concedida para o Jornal A tarde online, no dia 12 de Março de 2007. Disponível em:

http://www.carnasite.com.br/v4/noticias/noticia.asp?CodNot=7031 Acesso em: 29 de Set. 2015.

Page 11: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

Vale ressaltar que o filme é uma ressiginificação da peça teatral lançada em 1992,

criada como forma de protesto contra a atitude política de Antônio Carlos Magalhães (ACM),

então prefeito da cidade, que expulsou os moradores do Pelourinho para restaurá-lo. A peça e,

posteriormente o filme, dão voz a esta minoria marginalizada que, em seu modus vivendi,

deflagrou uma rasura na maneira de se narrar5 e de se imaginar6 a “perfeita” sintonia da

Bahia e seu povo.

Sendo o filme uma obra de denúncia, de revelação da “marca suja” da desigualdade

social, racial e econômica da sociedade baiana, acaba remetendo à proposta da literatura

realista-naturalista de Aluísio Azevedo do século XIX; o que não significa dizer que são obras

equânimes. Até porque o Determinismo declarado da literatura experimental de Azevedo

aprisiona as personagens às condições imputadas pelo ambiente de degradação e a uma

conformidade com os seus destinos incisivamente delineados.

Enquanto que em Ó paí, ó, apesar da grande influência das limitações geradas pela

desigualdade (em todos os sentidos supracitados), as personagens questionam e têm

consciência dessas diferenças. Em uma cena, por exemplo, em que o personagem Roque

(Lázaro Ramos) - negro, artista plástico, poeta, músico, e principal questionador de seus

direitos e das mazelas sociais nas quais está inserido - discute acaloradamente com Boca

(Wagner Moura) - branco, aliciador de menores para o tráfico de drogas, além de envolvido

com outras atividades ilícitas -, fica clara a demarcação e a conquista do espaço discursivo do

personagem negro frente à postura discriminatória e racista proposta pelo seu oponente.

Esta é apenas uma constatação da maneira utilizada em Ó paí, ó para abordar as

tensões sociais, diferente do que faz Azevedo em O cortiço. A seguir, no momento da análise

dos recursos de linguagem presentes nas cenas selecionadas de cada obra, perceberemos

também as consonâncias e dissonâncias entre elas, no que tange à proposta estética realista-

naturalista da literatura do século XIX e suas reverberações na representação cinematográfica

do século XXI.

5 No capítulo “DissemiNAÇÃO : o tempo, a narrativa e as margens da Nação moderna” do livro O local da

cultura, o estudioso cultural, Homi Bhabha, nos aponta duas maneiras de se narrar a Nação: uma

pedagógica/teleológica e a outra performativa: a primeira engessada na construção de um sistema simbólico e

representacional da Nação, cujo intuito é de explicar a fundação da nação, e o segundo como uma espécie de

rasura das fronteiras estabelecidas do que foi legitimado como o tipicamente nacional. O performático é o

aparecimento de desestabilizadoras vozes sucumbidas até então pela unidade identitária nacional. Bhabha

(1998, p. 211) diz: “As contra-narrativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras

totalizadoras – tanto reais quanto conceituais – perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais

‘comunidades imaginadas’ recebem identidades essencialistas.”.

6 Benedict Anderson (2008) cunhou o conceito das “comunidades imaginadas”, em que analisa o fato da

criação de imagens pelo povo de uma determinada comunidade e de si mesmo, em sua integração dentro

desse espaço. O imaginário que se cria, por exemplo, do povo e da comunidade baiana, é, de alguma forma,

“rasurado” pela narrativa fílmica de Ó paí, ó. “Povo alegre, receptivo, sem capacidade de refletir sua condição

existencial, dado às extravagâncias da diversão, tão-somente só.”

Page 12: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

A ESTÉTICA DAS OBRAS

Neste momento quase concludente do artigo, alinhavaremos conceito, prática e objetos

de análise. E, neste encontro, averiguaremos como e quais são as marcas/ferramentas

discursivas que, potencializadas em cada produção, servem de substrato para a correlação

com o aporte teórico eleito em nossas discussões. Quais similaridades, disparidades,

denúncias e aspectos estilísticos são possíveis de serem identificados graças ao discurso

instaurado por cada corpus?

Tanto o título da obra literária quanto o do filme funcionam como paratextos

importantes nos encaminhamentos de leitura. O cortiço, na verdade, pode (e quase que deve)

ser lido como a personagem central da trama. Na evidente proposta determinista de Azevedo,

o ambiente se destaca de tal modo que não apenas representa um espaço por onde transitam as

personagens, mas, sobretudo, como o determinador do destino e das relações de poder

existente entre elas. O funcionamento do ambiente é, na verdade, o responsável por revelar as

disputas de poder, a animalização do homem e as mazelas da sociedade marginalizada

carioca.

A expressão “Ó paí, ó”, por sua vez, usada pelos baianos, significa “Olhe para isso aí,

olhe”, e não por acaso intitula a obra cinematográfica, cuja proposta central é denunciar,

(“apontar para...”), por meio das vozes marginalizadas do Pelourinho, as mazelas e

desigualdades da sociedade soteropolitana. O título é um convite, um apontamento para a

realidade obscurecida pelo imaginário caricatural do ser baiano, revelando, de antemão, o

caráter da obra.

Além do título, as duas produções são compostas por personagens que, a partir de seus

comportamentos e histórias, muito nos dizem sobre a sociedade em que se inserem. No

capítulo “A personagem do romance”, do livro A personagem de ficção, Candido (2009, p.

55) aponta o seguinte fato:

A personagem é um ser fictício, - a expressão que soa como paradoxo. De

fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No

entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da

verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício,

isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão de

mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se

baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser

fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste.

Em síntese, o crítico problematiza e depois ratifica a importância crucial da

personagem na efetivação da narrativa, pois só é possível encaminhar o enredo com a

presença deste intermediador entre o ficcional e a realidade. Embora seja este um

apontamento feito sobre a personagem do romance, podemos também assim entendê-lo e

estendê-lo para a personagem da ficção cinematográfica.

Já foram citadas algumas personagens de O cortiço, como Rita Baiana, Pombinha,

Jerônimo, Bertoleza e João Romão. A primeira é descrita como uma mulher mulata, sedutora,

festeira, mas que também tem fome de vida e se contrapõe às idealizadas e idolatradas

mulheres alvas e “suspirantes” dos romances anteriores da historiografia da literatura

brasileira. Vejamos uma passagem que aponta para essa descrição:

Page 13: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele

recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor

vermelho das sestas de fazenda; era o aroma quente dos trevos e das

baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras, era a palmeira virginal e

esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar

gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre

feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta

viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do

corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras,

embambecidas pela saudade de terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir

dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela

música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas

que zumbiam em tomo da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa

fosforescência afrodisíaca. (AZEVEDO, 1993, p.68)

Mesmo que o autor tenha trazido para o centro da obra uma personagem que não

pertence à elite da época, isto é, cede um espaço dentro da narrativa para uma figura até então

marginalizada (algo aparentemente louvável), a descrição e o olhar desenvolvido acerca dela é

libidinoso, sexista, como se a mulher afrodescendente estivesse condicionada a ser apenas a

centralidade das atenções por seus atributos físicos e poder de sedução, sempre pronta para as

servidões dos desejos. Os termos adjetivos ou adjetivados usados pelo narrador constroem

essa imagem da personagem, capaz de atiçar os instintos indomáveis dos homens

animalizados. Nítida demonstração do zoomorfismo na obra de Azevedo.

Apesar de se situar em outro contexto, a personagem Pisilene (Dira Paes) de Ó paí, ó

também representa traços dessa visão sexista acerca do corpo e da mulher baiana. Voltando

do estrangeiro, é interpelada pela irmã Carmem (Auristela Sá) sobre o marido gringo e, assim,

sempre desconversa, deixando implícito o real motivo que a levou ao exterior: a prostituição.

E em outro diálogo com Lúcia (Edvana Carvalho), a baiana funcionária da loja de seu

Jerônimo (Stenio Garcia), Pisilene afirma que para “ir para o estrangeiro” não se precisa falar

inglês, basta ter “bundão e peitão” para obter êxito lá fora. Nessa perspectiva, a mulher

baiana/brasileira é representada de tal modo que vê no gringo uma possibilidade de vida

melhor, enquanto este a enxerga como objeto de prazer, conferindo à imagem da brasileira

(no corpo da mulher) uma noção sexista.

Mariano (2009) diz como a cordialidade e a receptividade também são consideradas

características baianas. Somando-se isso à sensualidade, ocorre muitas vezes uma

caracterização dos baianos como sexualmente disponíveis, acessíveis e lascivos.

Assim, podemos ver que, reservadas suas proporções, tanto a obra literária quanto o

filme trazem similaridades na maneira de apresentar suas personagens e nas temáticas a que

se propõem discutir.

Os recursos expressivos da linguagem de cada obra devem ser considerados como

constituintes fundamentais do jogo representacional das questões culturais e sociológicas por

elas abordadas, pois são eles que produzem os arranjos discursivos capazes de delatar tais

questões.

O filme, por exemplo, inicia-se com a personagem Roque (Lázaro Ramos) dançando

ao som de “É d’Oxum”, cujo refrão é: “Nesta cidade todo mundo é D’Oxum. /homem,

menino, menina, mulher.”, fazendo movimentos referentes ao Orixá maternal das águas doces

e requebrando ao som da canção. A música eleita para iniciar a trama dá um tom totalizante

da imagem do baiano: como se todos da cidade de Salvador estivessem ligados, de alguma

forma, ao Candomblé, em que tal divindade é cultuada.

Sem camisa, a câmera focaliza em close o movimento dos quadris, os músculos

rígidos e o corpo suado da personagem que dança de maneira envolvente e distraída. Esse

Page 14: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

recurso, por ser recorte, pode ser considerado uma metonímia visual, uma vez que intenciona

reforçar uma ideia mais abrangente: a de sensualidade. E tem similaridade com a sensualidade

da baiana Rita de O cortiço, descrita de maneira associativa com elementos atraentes da

natureza, de cunho metafórico.

Logo após esta cena, um bloco de rua com homens bêbados passa pelas ladeiras

cantando alto, consumindo drogas, em ritmo desregrado no último dia de carnaval. Ao

passarem em frente ao cortiço onde moram, acenam para Raimunda (Cássia Vale), mãe-de-

santo, que os cumprimenta da janela debochando de suas fantasias e embriaguez, e esta é

recriminada pela Dona do prédio, D. Joana (Luciana Souza), por suas práticas ritualísticas e

religiosas.

Neste momento, a câmera focaliza outra janela de onde desponta mais uma moradora,

a baiana de Acarajé (Rejane Maia), aos gritos, cobrando que a proprietária ligue a transmissão

de água, pois queria tomar banho e Joana, por puro moralismo contra o carnaval e filosofia de

vida de seus inquilinos, deixa o prédio todo sem água. Uma cena que demarca

expressivamente as relações de detenção de poder, hierarquia, desorganização e a

precariedade da moradia, o que também se encontra claramente na descrição animalizada do

cortiço de Azevedo.

Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas

a sua infinidade de portas e janelas alinhadas [...] das portas surgiam cabeças

congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, forte como o marulhar

das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a

tilintar [...] No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de

vozes que se altercavam, sem se saber onde, um grasnar de marrecos, cantar

de galos e cacarejar de galinhas. Daí a pouco, em volta das bicas era um

zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns,

após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que

escorria da altura de uns cinco palmos [...] o rumor crescia, condensando-se

o zunzum de todos os dias acentuava-se; já se não destacavam vozes

dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam

a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se

gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela

fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras em que

mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer

animal de existir, a triunfante satisfação de respirar sobre a terra.

(AZEVEDO, 1993, pp. 35-36)

Acima, a descrição da vida em coletividade e a (des)organização dos moradores de O

cortiço mostram claramente um ritmo acelerado das pessoas que, desprovidas de recursos,

acomodam-se e compõem um ambiente precário, sem conforto e com confronto. As vozes

sobrepostamente alvoroçadas as quais o narrador nos apresenta na obra literária do século

XIX assemelham-se às dos moradores do prédio de Dona Joana, apresentado na produção

cinematográfica do século XXI. A coletividade, os ruídos, o desentendimento e a acirrada luta

pela sobrevivência desenham-se, pois, em ambas as produções.

Há uma personagem no filme designado como “negócio-torto” (Cristóvão Silva),

morador de rua, sujo, mudo (sem voz) e sem referenciais, a personagem é discriminada pelos

próprios moradores do prédio; isto quer dizer: marginalizado dentro da própria

marginalização dos moradores, o que acaba revelando sua condição de miséria e de pobreza

extrema. Contudo, Roque, negro artista, é seu amigo e lhe dá abrigo, apoio e dignidade.

Aparecem outras personagens, comportamentos e discursos dentro das obras que lhes

conferem um traço em comum: a presença do marginalizado como centro da narrativa, não

Page 15: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

necessariamente como detentor de poder, mas com espaço discursivo de se fazer significar.

Bertoleza, “ex-escrava”, negra do cortiço e braço direito do proprietário João Romão, é

enganada, servil, entrave para a ascensão social tão almejada pelo português que a explora.

“[...] e a Bertoleza sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, lá estava ao

fogão, mexendo as panelas e enchendo os pratos.” (AZEVEDO, p. 1993, p. 55)

Diferente do negro Roque, dono da criatividade artística e, acima de tudo, consciente

da necessidade de se lutar por seu espaço de inscrição no mundo com dignidade e equidade,

Boca (Wagner Moura) tenta ofendê-lo, chamando-o de negro, mas este se contrapõe dizendo:

“Sou negro sim...”, afirmando sua identidade, pondo-se em pé de igual humanidade e

desconstruindo o projeto de discriminação e ofensa arquitetado pela “entonação valorativa”7

de seu opositor que, ao final da fala, fica sem argumentos e desconstruído discursivamente.

A representação da etnicidade do negro na obra de Azevedo aponta-o como entrave,

atraso e incapacidade, em consonância com a época em que a obra foi produzida, o final do

século XIX. Em contrapartida, o cinema do século XXI, em tempos de conquista e de

surgimento de políticas afirmativas, traz uma personagem combatente dos resquícios de

desigualdade e discriminação étnico-racial em relação ao elemento negro no Brasil.

Em determinada cena do filme, a voz consciente de Roque se faz ouvir quando se põe

a cantar, sozinho em sua oficina, uma composição que fala de esperança pela chegada do

amor e da dignidade para seu povo tão lutador, tão injustiçado e tão guerreiro na arte de

sobreviver no redemoinho da marginalização. A sonoplastia aliada à plasticidade das micro-

cenas de cada personagem, em suas atividades econômicas improvisadas para garantir o

sustento, representam e apresentam uma baianidade dos bastidores, quase inexistente em

outras produções ambientadas “na terra onde só imperam a satisfação esfuziante e a alegria

receptiva”.

Pensar e representar o pobre/marginalizado como aquele incapaz de refletir questões

complexas, universalizantes e de questionar sua condição existencial no mundo foi uma

postura recorrente em alguns autores, sobretudo os descritivistas do Realismo brasileiro. O

cinema do século XXI, todavia, aponta para outra direção. Em pelo menos três cenas de Ó

pai, ó podemos notar a presença de uma consciência de sua condição marginalizada e a

tentativa de superação por parte de quem nela vive.

Carmem, ao confidenciar à sua irmã Pisilene sobre o ofício informal e ilícito (aborto

caseiro) que pratica, diz não ter culpa se Deus põe em seu colo a tarefa de consertar o destino

torto que ele mesmo reservou para aquela gente miserável que procura seus serviços.

Ratifica-se desta maneira que, apesar de executar abortos, a personagem apresenta postura de

quem tem consciência dos olhares depreciativos por tentar garantir a sobrevivência por meio

deste ofício. Algo que Bertoleza não detinha: consciência de seu papel fundamental para a

manutenção do cortiço e do enriquecimento de João Romão.

A partir disso, podemos concluir que ambas as obras, apesar de tratarem das questões

de marginalidade, pobreza e etnicidade, são diferentes em suas formas de abordagem, haja

vista que, na literatura do século XIX, determinista e experimental de Azevedo, as

personagens são postas como condicionadas à brutalidade que o meio lhes imputa e, acima de

tudo, não refletem sobre sua condição. Enquanto que em Ó paí, ó, o comportamento das

personagens e suas atitudes revelam um caráter de desalienação e consciência de ser e estar no

mundo.

7 Bakhtin (2011, p.290) aponta que “um dos meios de expressão da relação emocionalmente valorativa do

falante com o objeto da sua fala é a entonação expressiva que soa nitidamente na execução oral. A entonação

expressiva é um traço constitutivo do enunciado”.

Page 16: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

As similaridades entre as produções no que tange às temáticas e o fato de ambas

produzirem um discurso margino-central foi o que mobilizou esta análise. Até porque,

segundo Bakhtin (2011), todo discurso é um interdiscurso, pois abriga vozes precedentes que

serão confirmadas ou contestadas a partir da prática comunicacional concreta e discursiva8. E,

neste caso, pelo fato de o filme ser mais recente que a obra literária e por remeter a diversas

abordagens presentes nela, é que surge o interesse de aproximá-los para analisar suas

possíveis consonâncias e dissonâncias ao tratar dessas questões: pobreza, marginalidade,

margino-centralidade do discurso, coletivismo, ruídos do Realismo-Naturalismo e suas

ressignificações, representação artística de questões de identidade, imaginário e desconstrução

deste imaginário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como referencial teórico a perspectiva comparatista da literatura

(Literatura e Cinema) e sua politização a partir do encontro com os Estudos Culturais,

disciplina que amplifica as possibilidades de interconexões de materiais aparentemente

distantes. Literatura e Cinema, século XIX e século XXI, determinismo e contestação, tudo se

aproxima para pôr em pauta o real papel da arte: revelar as tensões da realidade. Tensões

essas sociais, culturais, econômicas, interpessoais e filosóficas. Em síntese, vimos o poder da

arte para nos desautomatizar da lógica excessiva de informações, para que finalmente

possamos questionar e refletir melhor nossa própria existência e, além disso, nossa inscrição

no mundo.

REFERÊNCIAS

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão

do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Moderna, 1993. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. São Paulo:

WMF Martins Fontes, 2011.

BEZERRA, Bárbara de Lira. A representação do baiano no filme Ó paí, ó. 2011. 108f.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Anhembi Morumbi, Programa de Mestrado em

Comunicação, área de concentração Comunicação Contemporânea, 2011.

BHABHA, HOMI. DissemiNAÇÃO: O tempo, a narrativa, e as margens da Nação moderna. In:

O local da cutura. Belo Horizonte: UFMG editora, 1998.

BOSI, Alfredo. O Realismo. In: História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix,

1999.

8 Bakhtin (2011, pp.296-297) diz: “Todo enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação discursiva de

um determinado campo [...] Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados

precedentes de um determinado campo: ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os

conhecidos. [...] Cada enunciado é repleto de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado

pela identidade da esfera de comunicação discursiva [...]”. Eis, em outras palavras, o processo a que designamos

interdiscursividade.

Page 17: Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO um passeio margino-central pelo Rio e ...bd.centro.iff.edu.br/bitstream/123456789/934/1/ARTIGO_OFICIAL_PEDRO... · Ó PAÍ, Ó E O CORTIÇO: um passeio margino-central

CANCLINI, Néstor García. Diferentes, Desiguais e Desconectados: Mapas da

interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.

CÂNDIDO, Antônio. A personagem do romance. In: A personagem de ficção. São Paulo:

Perspectiva, 2009.

CARDOSO, Joel. Cinema e literatura: correspondência e intersemioticidade entre as

artes. In: ARAÚJO, Rodrigo da Costa; OLIVEIRA, Wilbett Rodrigues de. Literatura e

interfaces. Grande Vitória (ES): Opção, 2011.

CARVALHAL, Tania Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2006.

CASTRO, Manuel Antônio. Natureza do fenômeno literário. In: SAMUEL, Rogel [org.].

Manual de Teoria literária. Petrópolis: Vozes, 1984.

COUTINHO, Eduardo de Faria; CARVALHAL, Tania Franco. Literatura comparada:

Textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

CUNHA, Helena Parente. Periodização e História literária. In: SAMUEL, Rogel [org.].

Manual de Teoria literária. Petrópolis: Vozes, 1984.

GARDENBERG, Monique. Entrevista A tarde (2007). Disponível em: < http:

http://www.cineinsite.com.br/materia/materia.php?id_filme=33048&id_materia=6095>.Acess

o em: 29 de set. 2015.

GONÇALVES DA SILVA, Thais Maria. Reflexões sobre adaptação cinematográfica de

uma obra literária. Anuário de Literatura (UFSC), v. 17, p. 181-201, 2012

.

MARIANO, Agnes. A invenção da baianidade. São Paulo: Annablume, 2009.

MARTINS, Analice de Oliveira. Literatura para quê?. In: Congresso da ABRALIC, 2008,

São Paulo. Anais do Congresso da ABRALIC, 2010.

NAPOLITANO, Marcos. Elementos de linguagem e História do cinema. In: Como usar o

cinema na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003.

ORTIZ, Renato. Da raça à cultura: a mestiçagem e o nacional. In: Cultura brasileira e

identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.

RESENDE, Beatriz. A indisciplina dos Estudos culturais. In: Apontamentos da crítica

cultural. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

SILVA, Vitor Manuel Aguiar e. Teoria e metodologia literárias. Lisboa: Universidade

Aberta, 1990.