O PAPEL DA ESTÉTICA NA TEORIA Estatuto da estética filosófica … · 2020. 3. 16. · Estatuto...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
O PAPEL DA ESTÉTICA NA TEORIA
Estatuto da estética filosófica após o fim da arte
Wesley de Faria Leonel
Ouro Preto
2017
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Wesley de Faria Leonel
O PAPEL DA ESTÉTICA NA TEORIA
Estatuto da estética filosófica após o fim da arte
Dissertação apresentada ao Mestrado em Estética e
Filosofia da Arte do Instituto de Filosofia, Artes e
Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto como
requisito parcial para obtenção do título de mestre
em filosofia.
Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte
Orientador: Prof. Dr. Romero Freitas.
OURO PRETO
2017
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Catalogação: www.sisbin.ufop.br
L576p Leonel, Wesley de Faria. O papel da estética na teoria [manuscrito]: estatuto da estética filosófica apóso fim da arte / Wesley de Faria Leonel. - 2017. 238f.:
Orientador: Prof. Dr. Romero Freitas.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto deFilosofia, Arte e Cultura. Departamento de Filosofia. Programa de Pós-Graduaçãoem Estética e Filosofia da Arte. Área de Concentração: Filosofia.
1. Danto, Arthur C., 1924-2013 . 2. Ontologia. 3. Percepção . 4. Estética. I.Freitas, Romero. II. Universidade Federal de Ouro Preto. III. Titulo.
CDU: 101.1
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AGRADECIMENTOS
A Danto, por ter me mostrado de formas variadas uma maneira tão apaixonada de fazer
filosofia e discutir as questões de arte, cultura e pluralismo que tanto me sensibilizaram.
Aos meus pais, Antônio e Dorotéa, por terem me concedido a vida.
Aos amigos Erinaldo Borges, Paulo Andrade Vitória, Adriano Rodrigues, Victor Freitas,
Alexandre Vidigal, Pedro Lage, Rony Melo, Luís Fernando, Carol Nunes Silva, Sofia
Machado, Eliza, Anderson, Vinícius Sousa, Aninha, Neimar Oliveira e aos companheiros
de mestrado e simpósio mundo a fora.
A Flávia Rocha, pelo amor e confiança reconfortantes.
A André Castro, pela escuta sensível e encorajadora.
A Joana Pessoa e à República Xiboca, onde tudo começou. Aos amigos da Pandiá
Calógeras, 127.
Ao meu orientador, Romero Freitas, pela orientação, confiança, compreensão e
interlocução crítica e cuidadosa.
A Bruno Guimarães, entusiasta, crítico e conselheiro. A Noéli Ramme, pela interlocução e
exortação à estética analítica. A ambos agradeço pela gentileza de terem aceitado o convite
para a defesa desta dissertação, da qual podem se considerar interlocutores. Também a
Giorgia Cecchinato, Rodrigo Duarte e André Abath.
Ao PPG, pelas experiências, oportunidades e compreensão. Aos professores e funcionários
do IFAC, em especial a Cíntia Vieira, Claudinéia Guimarães e ao Toninho. Aos parceiros
da Revista Exagium, Karen França e Maurício Reis.
Aos ―conterrâneos‖ de Sabará e de Bom Despacho. Aos meus alunos do Zorô (e, mais
recentemente, do José Brandão). A Ouro Preto e à saudade de casa.
À CAPES, pelo imprescindível financiamento desta pesquisa.
A todos que contribuíram direta ou indiretamente para este trabalho, meu muito obrigado.
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Antiepopéia
(Conceição Lima - A Dolorosa raiz do Micondó)
Aquele que na rotação dos astros
e no oráculo dos sábios
buscou de sua lei e mandamento
a razão, a anuência, o fundamento
Aquele que dos vivos a lança e o destino detinha
Aquele cujo trono dos mortos provinha
Aquele a quem a voz da tribo ungiu
chamou rei, de poderes investiu
Por panos, por espelhos, por missangas
por ganância, avidez, bugigangas
as portas da corte se abriu
de povo seu reino exauriu
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RESUMO
O papel da estética na teoria: estatuto da estética filosófica após o fim da arte
O trabalho aborda a questão do estatuto da estética no contexto da arte contemporânea. Esta
questão, direcionada ao pensamento de Arthur Danto, importante filósofo da arte
contemporânea, pretende esclarecer as razões sistemáticas e teóricas da suspensão das
pretensões normativa e definicional da estética filosófica. Tal questionamento nasce da
posição incômoda a que fica relegada a estética clássica tanto no que diz respeito ao
declarado fim da arte quanto, consequentemente, ao desincentivo da estética. Assumindo
programaticamente a hipótese do fim da arte e a definição de obras de arte em condições
necessárias e suficientes, esclarecemos a centralidade da ontologia na filosofia da arte de
Danto e como, a partir de um projeto definicional focado na distinção entre termos
observacionais e teóricos, experiência, atitude ou qualquer outra categoria estética
tradicional, estão conceitual e sistematicamente interditadas. Conforme propomos, o cerne
da disputa concentra-se na concepção de arte e de filosofia e a relação entre ambas.
Apresentamos o debate a partir de uma perspectiva metafilosófica na qual é possível traçar
um panorama sistêmico da filosofia danteana, bem como relacioná-lo com a perspectiva
wittgensteiniana e revelar os pressupostos tacitamente operantes na rejeição danteana da
estética. A partir desta perspectiva ampla é que apontamos, ao fim, a possibilidade de
desenvolvimento de uma estética do significado.
Palavras-chave: Fim da arte; estética; antiestética; ontologia; definição da arte; percepção;
termos observacionais; termos teóricos; Arthur Danto; Wittgenstein.
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ABSTRACT
The Role of Aesthetics in Theory: The Statute of Aesthetics After the End of Art
The dissertation deals with the question of the status of aesthetics in the context of
contemporary art. This question, directed to the philosophy of Arthur Danto, that is
important thinker of contemporary art, aims to clarify the systematic and theoretical reasons
for the suspension of normative and definitional pretensions of philosophical aesthetics.
Such problem arises from the uncomfortable position to which classical aesthetics are
relegated, both as regards the declared the end of art, consequently, the disincentive of
aesthetics. Assuming programmatically the hypothesis of the end of art and the definition of
works of art under necessary and sufficient conditions, we clarify the centrality of ontology
in Danto's philosophy of art and how a definitional project focused on the distinction
between observational terms and theoretical terms, the aesthetic experience, aesthetic
attitude or any other traditional aesthetic category are conceptually and systematically
interdicted. As we have proposed, the core of the dispute is centered on the conception of
art and of philosophy, as well as the relation between both. We present the debate from a
metaphilosophical perspective in which it is possible to draw a systemic panorama of
Dantean philosophy, as well as relate it with the Wittgensteinian perspective and thus
reveal the tacitly operative assumptions in the Dantean rejection of aesthetics. From this
broad perspective, we finally point to the possibility of developing an entirely new
aesthetic, the aesthetic of meaning.
Key-words: End of art; Aesthetics; Anti-aesthesis; Ontology; Definition of art; Perception;
observational terms; theoretical terms; Arthur Danto; Wittgenstein.
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SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................................ 7
ABSTRACT ........................................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 ....................................................................................................................... 15
FILOSOFIA E/DA/NA ARTE ............................................................................................. 15
1.1 - Danto e a Filosofia .................................................................................................... 15
1.2 - A concepção filosófica de Danto .............................................................................. 30
1.2.1- Gênese dos problemas filosóficos .................................................................. 32
1.2.2- A filosofia e sua história ................................................................................. 52
1.3 - Conclusão ................................................................................................................. 57
CAPÍTULO 2 ....................................................................................................................... 60
A ARTE NO SISTEMA FILOSÓFICO ............................................................................... 60
2.1- A fórmula de mundo do Materialismo representacionalista ...................................... 60
2.1.1- Ens Representans ................................................................................................ 63
2.1.2- Episódio cognitivo básico como princípio de simplicidade ............................... 69
2.1.3- O ―estrangulamento do representacionalismo‖ e a falácia instrumental ............ 75
2.2 - O lugar da arte na filosofia ....................................................................................... 80
2.3 - Conclusão ................................................................................................................. 90
CAPÍTULO 3 ....................................................................................................................... 93
FILOSOFIA DA ARTE E O DESINCENTIVO À ESTÉTICA .......................................... 93
3.1- Introdução .................................................................................................................. 94
3.2- Filosofia da arte X Estética Filosófica ....................................................................... 97
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3.3- ―A arte na era da teoria‖: ontologia, definição e história da arte ............................. 105
3.4 – O contexto analítico em torno da definição da arte ............................................... 106
3.4.1- Wittgenstein e a estética.................................................................................... 106
3.4.2- Morris Weitz como herdeiro negativo de Wittgenstein .................................... 117
3.4.3- O escopo do projeto de definição essencialista de Danto ................................. 130
3.5- Conclusão ................................................................................................................ 143
CAPÍTULO 4 ..................................................................................................................... 146
INDISCERNÍVEIS COMO DISPOSITIVO ANTI-ESTÉTICO ....................................... 146
4.1- Teoria Transfigurativa da arte ................................................................................. 147
4.1.1- Indiscernibilidade e Indiscerníveis: características e relações com a definição de
arte ............................................................................................................................... 149
4.2- Aspectos técnicos do método dos indiscerníveis ..................................................... 152
4.2.1- Experimentos mentais ....................................................................................... 153
4.2.2- Cláusulas ceteris paribus .................................................................................. 158
4.2.3- Argumentos transcendentais ............................................................................. 161
4.3- Aspectos teóricos do método dos indiscerníveis ..................................................... 166
4.3.1- Os limites entre arte e realidade ........................................................................ 166
4.3.2- Contraparte material: princípios, teses e seu papel na teoria ............................ 170
4.3.3- Externalismo perceptual, o pressuposto tacitamente operante dos indiscerníveis
..................................................................................................................................... 177
4.3.4- Ontologia de Obras de Arte e Ontologia da Linguagem ................................... 184
4.3.5- A natureza ontológico-metafísica do significado ............................................. 187
4.6- Conclusão ................................................................................................................ 193
CAPÍTULO 5 ..................................................................................................................... 197
O LUGAR DA ESTÉTICA NA TEORIA ......................................................................... 197
5.1- Introdução ................................................................................................................ 197
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5.2- Balanço da estética no Opus danteano - inestética .................................................. 199
5.2.1- Pluralismo pós-histórico, mundo da vida, era da estética ................................. 205
5.3- O projeto de uma estética do significado................................................................. 214
6- CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 222
7- REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 230
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INTRODUÇÃO
Qual é o estatuto da estética após o fim da arte? Ou, mais especificamente, se na visão de
Danto a arte chegou ao seu fim celebrando uma vitória na ontologia, como esta conquista
inviabiliza a abordagem estética? Com efeito, este trabalho concentra-se especialmente na
obra A Transfiguração do lugar-comum, acerca da qual pretendemos expor as razões, os
mecanismos e as intuições sistêmicas através dos quais a estética, compreendida como
empresa definicional e normativa, fundada sobre habilidades perceptivas de recognição ou
atitudes proposicionais de reação/experiência sensorial, se encontraria essencialmente
inoperante.
A natureza investigativa desta dissertação é, pois, teórico-metodológica. A filosofia da arte
danteana, fornecida na obra central deste trabalho, é abordada a partir de uma perspectiva
ampla, destacada e relativamente crítica. A indicação de que os indiscerníveis são a causa
central do afastamento da estética motivou uma incursão pela ideia de sistema de filosofia
originalmente designado por Danto, o qual está fundado numa noção platônica da origem e
da natureza do trabalho filosófico, que seria essencialmente teoria total da representação
humana do mundo da experiência. A representação é, em Danto, a divisa entre o domínio
material inexpressivo e a dimensão ontologicamente relevante para nós, ens representans.
Danto está à procura da interpretação conceitual adequada à especificidade representacional
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da arte, assim como o Wittgenstein do Tractatus fornece as fronteiras e as relações entre o
mundo e a linguagem, entre fatos e proposições. Em sua abordagem, Danto está sempre
―procurando uma cadeia ligando arte e realidade‖1, uma divisa entre arte e vida
2 e, portanto,
entre o estético e o prático e a arte e o útil3. A Transfiguração do lugar-comum toma como
modelo o Tractatus, atualizando, à sua maneira, o espírito filosófico de caracterizar um
domínio a partir de fora.
É possível, então, abordar tal filosofia da arte desenhando um paralelo no qual o olho
geométrico equivalha ao sujeito transcendental como condição de se ter um mundo e uma
linguagem, assim como as teorias ou a atmosfera conceitual da arte são as condições para
que a arte seja vista e que, como tal, o olho não pode ver, não faz parte do campo visual. Os
limites do conceito de arte são os limites entre a arte e a vida e entre a arte e a filosofia.
Esta visão parece coadunar com a tese segundo a qual o fim da arte é o rompimento
derradeiro com qualquer critério ou paradigma visual para ver arte e, antes de tudo, para
que algo seja arte. Assim, desde os fundamentos atribuíveis à obra-objeto deste trabalho, o
lugar necessário à estética tradicional não se credencia a fornecer discurso informativo
sobre a arte, já que ela não satisfaz o atributo fundamental de se edificar, a partir de uma
perspectiva totalizante e externa, um legítimo discurso sub specie aeternitatis. Se ela o
fizer, será por forças de um fundamento ontológico alheio a si. Os termos observacionais
que formam o domínio discursivo da estética estão circunscritos à observação e, portanto,
não podem ser autoevidentes (isto é, expressar autoconsciência). Mas o que justifica
exigência de que em um discurso filosófico que se pretenda consequente não devam figurar
quaisquer termos observacionais?
A principal contribuição que pretendemos oferecer no Capítulo Um trata dos fundamentos
últimos dos indiscerníveis: como problema originário da filosofia, como marca
característica de qualquer problema filosófico específico e como método. É por força da
defesa de Kalle Puolakka de que a obsessão pela distinção entre obra de arte e mera coisa
real deriva das visões metafilosóficas de Danto, e pelo fato de esta fundamentação ser
surpreendentemente ignorada por muitos de seus interlocutores e comentadores, que nos
1 DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p.
2 DANTO, Arthur. Andy Warhol: Arthur Danto. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 53.
3 DANTO, Arthur. Após o fim da arte. São Paulo: Odysseus/Edusp, 2006, p. 96.
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encorajamos a apresentar como as proposições da filosofia da arte não são nem
deontológicas nem juízos de valor, mas ontológicas. Contudo, como em Danto os
indiscerníveis em arte são a garantia do término de sua história, elementos decisivos da
compreensão metafilosófica danteana são apresentados a fim de responder à questão ―o que
é filosofia?‖ e como, a partir daì, podemos distingui-la da arte após o fim da arte. A chave
de leitura aí é o conceito de Representação. Propondo que há uma relação imbricada e
dialética entre arte e filosofia, em que tanto o estado da arte em dada época quanto a
maneira de compreender a atividade filosófica interferem nos resultados finais, apresentam-
se as principais realizações artísticas que exerceram impacto na filosofia da arte de Danto.
Identificam-se também os desafios que partiam do contexto filosófico do qual Danto fazia
parte na época em que escreve A Transfiguração do lugar-comum. Conclui-se que sua
compreensão de filosofia como interpretação sub specie aeternitati do todo da experiência
não apenas projeta sobre a arte a ideia de representação como fórmula de mundo, mas
reconhece na própria arte uma espécie de exemplificação extraordinária deste conceito. É
preciso, mais uma vez, especificar.
Por isso, no Capítulo Dois dedicamo-nos a localizar a arte no sistema filosófico
originalmente concebido por Danto. Ponderamos que este projeto sistemático total não fora
completado, mas em A Transfiguração do lugar-comum ressoam ainda os ecos desta
intenção (que encontrou na dedicação à tarefa de pensar a arte contemporânea um desvio de
rota decisivo). Recorremos à obra Connections to the World (1999), que muito contribui
para as questões sistêmicas apenas apontadas em A Transfiguração do lugar-comum.
Expomos o materialismo representacionalista, doutrina filosófica segundo a qual tudo o que
há é matéria e representações. Propomos que a formação de um quadro ontológico a partir
desta doutrina nos permite localizar o lugar da arte e determinar a especificidade desta em
relação à filosofia. A história progressiva (mas acabada) e a maneira significante como a
arte concebe a relação entre matéria e representação (ou entre a contraparte material e a
conceptualidade) são as fronteiras finais entre arte e filosofia, bem como entre arte e vida.
Nos termos danteanos, a arte é um sonho acordado, a filosofia é um pesadelo repetidamente
encenado.
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O Capítulo Três pretende tornar consequente a ideia segundo a qual uma mudança externa
no estatuto do objeto de estudo força uma mudança interna na forma adequada de a
filosofia interpelá-lo. Entendemos que a modificação terminológica segundo a qual a
investigação adequada à arte deve ser a filosofia da arte, não a estética, é consequência
direta disso e o impacto imediato é a erosão ontológica do estatuto da estética. Motivados
principalmente pelos estudos arqueológicos de Melissa Theriault acerca da herança
wittgensteiniana de Danto, e apoiados também nas análises de Nöel Carroll e Stephen
Davies sobre o debate analítico em torno da autenticidade do discurso filosófico e sua
pretensão de definir a arte, apresentamos as relações e diferenças do projeto filosófico de
Danto, Weitz e Wittgenstein. O trunfo da aposta danteana de ser a filosofia da arte capaz de
gerar um discurso informativo acerca da arte reside na compreensão de seu trabalho como
uma abordagem conceitual que insistentemente se mostra estar informada das conquistas
definitivas ocorridas no mundo da arte. Nesse sentido, o capítulo retoma temas importantes
dos dois primeiros capítulos. Conforme será possível constatar, os indiscerníveis são o
cerne da estratégia danteana de fundar uma filosofia essencialista da arte. Com eles se
pretende fugir das ameaças céticas e quietistas ao mesmo tempo em que se mantenha que o
elemento definidor da arte corresponda à dimensão conceitual insistentemente afirmada por
Danto.
O Capítulo Quatro pretende mostrar como se estrutura a inviabilidade da estética filosófica
enquanto teoria correta para a arte. Pretende-se esclarecer como a experiência, o prazer ou a
atitudes estética são radicalmente desviantes. Neste capítulo são levadas às últimas
consequências as principais indicações da literatura acerca da filosofia da arte danteana em
sua dimensão de negação da estética. Os aspectos e relações dos indiscerníveis enquanto
método e problema filosófico são salientados. Combinamos a estas indicações as análises
metafilosóficas e sistemáticas realizadas anteriormente, donde resulta uma análise própria
dos aspectos técnicos e teóricos envolvidos no método dos indiscerníveis que, segundo
Virginia Aita, são a causa da definição essencialista oferecida por Danto. Ver-se-á que o
comprometimento metafilosófico do método dos indiscerníveis faz com que ele funcione
como um verdadeiro mecanismo de expulsão da abordagem estética. Com ele, todo
discurso pautado em conceitos observacionais está inviabilizado. A caracterização do
significado de obras de arte como um objeto abstrato interpretativo, isto é, independente de
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valor-verdade, sacramenta a inaptidão e descredenciamento estéticos. Ver-se-á, contudo,
que a tese do externalismo conceptualista, que reza que o conteúdo perceptivo lhe é
externo, subjaz os indiscerníveis e não é exaustivamente debatida. Criticamos esta
inconsistência pois, fosse essa tese inoperante, o afastamento da estética não seria
facilmente defendido.
No Capítulo Cinco é oferecida uma visão panorâmica da posição inestética de Danto com
vistas a pensar o estatuto da estética a partir de uma posição distanciada e dinâmica.
Apresentam-se alguns argumentos presentes em Após o fim da arte que ratificam a posição
inestética – embora o façam a partir de um ponto de vista sensivelmente distinto. Há um
esboço dos principais itens de tensão de Danto para com a compreensão estética operante
na crítica de arte de Greenberg. Em seguida, levando adiante o balanço do estatuto da
estética na filosofia da arte danteana, apresentamos passagens em que é afirmada a
possibilidade de refundar a estética sobre o signo da interpretação. Com efeito, esboçamos
algumas diretrizes da estética do significado buscando mostrar como conceitos e categorias
tradicionais podem ser reinterpretadas, convivendo com outras novas. Esta proposta poderia
estar disponível desde os primeiros escritos de Danto. Além de um balanço, desejamos
apresentar uma conclusão em que esteja representada a complexidade e a riqueza do tema
do estatuto da estética no pensamento de Arthur Danto, apontando de maneira crítica um
futuro promissor de fundação da chamada estética do significado, uma estética que parece
dialogar de maneira inovadora temas clássicos e contemporâneos da arte.
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CAPÍTULO 1
FILOSOFIA E/DA/NA ARTE
Esta conjunção um tanto quanto incomum de arte e filosofia tem influenciado profundamente
a maneira como tenho pensado sobre ambos os temas.
(Arthur Danto)
Obviamente a investigação acerca da metodologia filosófica não pode e nem deve ser
filosoficamente neutra. Ela é apenas mais filosofia vertida sobre a filosofia mesma.
[...]Pequenas melhorias nos padrões de raciocínio aceitos podem permitir que a comunidade
filosófica chegue a um acordo bem informado sobre o status de muitos outros argumentos.
Fazer filosofia não é como andar de bicicleta, em que se executa melhor quando não se pensa
a respeito – ou se o é, os melhores ciclistas são aqueles que pensam a respeito. [...] Para
tornar nossos instrumentos de raciocínio mais confiáveis, devemos investigar os próprios
instrumentos, mesmo quando eles não são os objetos últimos de nossas preocupações.
(Timothy Williamson)
1.1 - Danto e a Filosofia
O que justifica defender que a filosofia ainda possa edificar um discurso informativo acerca
da arte, se esta se emancipou das formas descredenciadoras que a aprisionaram em uma
compreensão figurativa falsa durante várias épocas?
Passado um ano desde a sua criação, em 1916, a Society of Independent Artists, êmula
estadunidense da francesa Société des Artistes Indépendants, resolve promover uma
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exposição livre com artistas que, contribuindo com a simbólica quantia de seis dólares,
poderiam tornar-se sócios do grêmio e pleitear a exibição de suas obras. Um misterioso
candidato, de nome R. Mutt, inscreve um urinol branco de porcelana com inscrições laterais
―R. Mutt 1917‖. À maneira de sua equivalente europeia, a Society of Independent Artists
pretendia ultrapassar a censura prévia da academia e de críticos que ditavam quem era
artista e o que era obra – as coisas que se prestariam à apresentação ou ao leitmotiv de uma
obra deveriam atender a certa integridade prévia. Parecia que a Society respirava ares
progressistas: o artista exporia a obra, o público daria o vaticínio.
Marcel Duchamp, um dos fundadores da Society, já havia experimentado, em 1913, a
criação de um tipo novo de obra de arte escultural, a ―Roda de Bicicleta‖.
Em Nova York, em 1915, comprei numa loja de equipamentos uma pá de neve na
qual escrevi ‗In Advance of the Broken Arm‘. Foi por esta época que a palavra
‗readymade‘ me veio à mente para designar esta forma de manifestação4.
A ideia era tomar objetos pré-existentes, já prontos, e modificar seu status através de sua
proposição como arte.
À parte as várias discussões geradas em função das versões subsequentes de Roda de
Bicicleta – e mesmo das incursões através de pseudônimos e disfarces –, Marcel Duchamp
sofreu o revés tanto da versão estadunidense quanto da Société, francesa: La Fontaine foi
recusada em 1917, após decisão majoritária dos diretores; cinco anos antes, na França, Nu
Descendant un Escalier também sofrera represálias (embora não fosse uma escultura).
Propor um readymade à exposição parecia um teste de fogo às aspirações progressistas da
mostra. Os fundamentos utilizados para determinar o que é e o que não é arte parecem
pertencer à estética retiniana.
4 DUCHAMP, Marcel. Sobre os readymades. 1961. As referências físicas aos trabalhos O ato criador,
Sobre os readymades e O caso R. Mutt de Duchamp, utilizados aqui, estão disponíveis nas edições físicas
DUCHAMP, Marcel ―O Ato Criador‖ In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo: Perspectiva
(coleção Debates), 1986, p.72-74 [original do artigo de Duchamp: 1957]; DUCHAMP, Marcel. ―O caso
Richard Mutt‖, Blind Man, n°2, New York, 1917; DUCHAMP, Marcel. Sobre os ready-mades [Lecture at the
Museum of Modern Art, New York, October, 19, 1961]. Published in: Art and Artists, n°1, 4, July 1966.
Utilizamos, entretanto, uma versão eletrônica textualmente idêntica disponível em repositório textual ligado
ao departamento de Artes Visuais da UNB: http://ipiunb2012.blogspot.com.br/2012/03/leitura-e-discussao-
marcel-duchamp.html. (Último acesso em 01/04/2017). Fica fixada esta referência para as posteriores citações
destes textos.
http://ipiunb2012.blogspot.com.br/2012/03/leitura-e-discussao-marcel-duchamp.htmlhttp://ipiunb2012.blogspot.com.br/2012/03/leitura-e-discussao-marcel-duchamp.html
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A despeito, entretanto, do sumiço da La Fontaine original, de sua recusa na mostra e de
Duchamp ter desertado a Society of Independents Artists logo após o indeferimento,
estavam lançadas as sementes para um novo futuro no mundo da arte.
Diz-nos Duchamp:
Gostaria de deixar bem claro que a escolha destes "readymades" jamais foi ditada
por um deleite estético. A escolha foi feita com base em uma reação de
indiferença visual e ao mesmo tempo em uma total ausência de bom ou mal
gosto. De fato uma completa anestesia5.
A este respeito, o crítico de arte Steven Zucker afirma:
É compreensível que você pense no ato de Duchamp como um ato cínico. E eu
penso que de certa forma ele realmente é: ele está tentando tornar os aparatos do
mercado da arte transparentes, nos forçando a despertar acerca de ‗como nós
definimos a arte?‘ e ‗como isso é importante?‘ e como talvez tais valores estéticos
estejam deslocados. Mas ele também está interessado em mostrar que a arte, no
século XX, não precisa necessariamente estar focada na técnica de sua produção,
ou focada necessariamente na proficiência do artista com os pincéis, mas está
focada na linguagem simbólica que a arte evoca e na maneira pela qual a arte
pode transformar a maneira como nós vemos o mundo. No século XX, o valor
artístico depende de sua habilidade em transformar a maneira que vemos6.
E a importância deste episódio – e dos demais que a ele se somaram – é realçada pelo fato
do ―quão difìcil é encontrar, em nossa cultura atual, novas formas de nos fazer ver o mundo
de modo distinto‖7. Na visão de Danto, a ideia dos readymades inaugurou uma nova seara
conceitual, crítica e artística no mundo da arte. Marcel Duchamp marcou a história da arte
com os readymades. A reação pouco progressista de ambos os grêmios parece mesmo ter
sido canalizada positivamente por Duchamp, que interpôs à rejeição e à recusa
antidemocrática a criação de uma série de readymades, explorando uma nova seara de
objetos artísticos8. Os artistas que seguirão os passos iniciados por Duchamp radicalizariam
sua mensagem. Estavam estabelecidas as coordenadas para um novo rumo na arte – e os
5 DUCHAMP, Marcel. Sobre os readymades, idem.
6 ZUCKER, Steven. Art as concept: Duchamp, In Advance of the Broken Arm. A conversation with Sal
Khan & Steven Zucker. Vídeo disponível online: https://www.khanacademy.org/humanities/art-1010/wwI-
dada/dada1/v/duchamp-s-shovel-art-as-concept Acesso em 30/09/2015, às 00:35. [Tradução simultânea
pessoal para estudos]. 7 ZUCKER, Steven. Why is this art? Andy Warhol, Campbell's Soup Cans. Vídeo disponível online:
https://www.khanacademy.org/humanities/art-1010/pop/v/andy-warhol-campbell-s-soup-cans-why-is-this-art
Acesso em 30/09/2015, às 00:35. [Tradução simultânea pessoal para estudos]. 8 E muito embora estes ―objetos prontos‖ possuìssem um poder criativo enorme, Duchamp pondera: ―percebi
muito cedo o perigo de repetir indiscriminadamente esta forma de expressão, e decidi limitar a produção dos
readymades a um pequeno grupo anual‖. Duchamp In: 8 DUCHAMP, Marcel. Sobre os readymades. 1961,
p. 4.
https://www.khanacademy.org/humanities/art-1010/wwI-dada/dada1/v/duchamp-s-shovel-art-as-concepthttps://www.khanacademy.org/humanities/art-1010/wwI-dada/dada1/v/duchamp-s-shovel-art-as-concepthttps://www.khanacademy.org/humanities/art-1010/pop/v/andy-warhol-campbell-s-soup-cans-why-is-this-art
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artistas estadunidenses (bem como os radicados nos Estados Unidos) se responsabilizariam
pelos primeiros desenvolvimentos deste novo tempo.
Arthur Danto teve, antes da carreira como filósofo e crítico de arte, uma carreira artística
com relativo sucesso profissional com gravações, xilogravuras e metalogravuras, embora,
conforme ele mesmo diz, possuísse uma ―concepção um pouco romântica [acerca] da
pintura‖, como ―a maioria dos artistas dos anos 50‖9, comprometido com os ―mais altos
ideais da pintura‖10
. Formado na escola filosófica analítica dos Estados Unidos, Danto
sofreu um verdadeiro arrebate com as obras da arte pop. Em avaliação do próprio Danto:
―minha primeira reação [ao ver a arte pop] foi de indignação‖ [...] ―e a verdade é que minha
vida mudou completamente depois de contemplar‖ O beijo, de Lichtenstein, e: ―em 1964,
as embalagens de papelão de Andy Warhol [...] me deixaram estupefato‖11
, ―basta dizer que
fiquei pasmo‖12
.
Muito embora as primeiras experiências de Danto com a arte pop em 1960 tenham levado à
conclusão ―de que aquilo não era arte‖, parece razoável dizer que este encontro com a pop
arte e a arte conceitual é o evento que motivará a guinada mencionada pelo filósofo:
―minhas ideias haviam se originado do confronto direto com os acontecimentos [...] da arte
nova-iorquina da década de 60, [suscitando] questões nunca antes levantadas na
filosofia‖13
. Em Andy Warhol: Arthur Danto – livro que é o ―reconhecimento de uma
dìvida‖ –, o filósofo revela: ―[...] acho necessário explicar a importância que ele [Warhol]
teve para mim‖. Ele continua: ―Ver sua segunda exposição na Stable Gallery, em abril de
1962, foi para mim uma experiência transformadora. Fez com que eu me tornasse um
filósofo da arte‖14
, ―sem Warhol eu jamais teria escrito A transfiguração do lugar-
comum‖15
, emenda. ―Os trabalhos apresentados [nas exposições de Andy Warhol na Stable
9 DANTO, Arthur. A Transfiguração do lugar-comum, p. 15.
10 Ibdem, loc. cit.
11 DANTO, Arthur. A Transfiguração do lugar-comum, p. 16.
12 DANTO, Arthur. Andy Warhol, p. 12.
13 DANTO, Arthur. A Transfiguração do lugar-comum, p. 13.
14 DANTO, Arthur. Andy Warhol: Arthur Danto, p. 12.
15 Ibdem, p. 15.
-
19
Gallery em 1962 e 1964], pareceram-me exigir da filosofia da arte uma abordagem
radicalmente nova‖16
.
Morris Weitz, um dos primeiros filósofos analíticos da arte, argumentou, à maneira anti-
filosófica comum à época da publicação de The Role of Theory in Aesthetics (1956), que
as sucessivas falhas de artistas e estetas em definir a arte devem-se ao fato de ―a arte não
[ser] suscetìvel de definição‖17
. É possível que Weitz estivesse um pouco desorientado
frente à variedade de obras de arte propostas na época. Além da perspectiva positivista-
lógica, a crítica à metafísica da presença e o pragmatismo endossavam a perspectiva de
uma morte da filosofia18
. Questionava-se diretamente a aptidão da filosofia para
empreendimentos cognoscitivos à maneira essencialista. Em última instância, questionava-
se a própria filosofia como atividade séria. Quanto à sua aptidão para tratar a arte
conceitualmente, não seria diferente. Weitz desenvolve os vaticínios quietistas de
Wittgenstein, ―mas não há dúvidas de que um desânimo geral acerca do estado da arte
contemporânea possa ter pontuado sua conclusão‖19
. A absoluta pluralidade e liberdade de
tudo poder ser arte parece inviabilizar – ou ao menos questionar – ―a ideia de que algo é
uma obra de arte porque compartilha com outros de seu tipo uma essência comum‖20
. No
entanto, o filósofo da arte é desafiado a forjar um método desde as origens, consciente do
estado da arte e convencido de sua relevância teórica. Desde esta perspectiva radical, um
―fim da arte‖ seria na verdade uma consequência estatutária para o filosofar, consequência
mesmo do fim da filosofia, de sua morte.
Morris Weitz afirma inicialmente que a ausência de qualquer propriedade necessária da arte
inviabiliza a conjunção entre esta e uma propriedade suficiente21
. Na melhor das hipóteses,
o que a classe de obras de arte nos apresentaria seria uma semelhança de família. À
16
Ibdem, p. 8. 17
WEITZ, Morris. The Role of Theory in Aesthetics (1956). Disponível em: <
http://criticanarede.com/fil_teoriaestetica.html>. Acesso em: 2 junho 2011. Artigo originalmente publicado
em The Journal of Aesthetics and Art Criticism, XV (1956), 27-35. Texto disponìvel também em D‘OREY,
Carmo (org.) O Que é a Arte? A Perspectiva Analítica. Tradução de Vítor Silva e Desidério Murcho. Lisboa:
Dinalivro, 2007. 18
Cf. D‘AGOSTINI, Franca. Analíticos e continentais, Primeira Parte, 1- Fim da filosofia, p. 44-88. 19
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism, pág. 63; In: LAMARQUE, Paul; OLSEN, Stein (ed.).
Aesthetic and the Philosophy of Art: the analitic tradition. Oxford: Blackwell, 2004, p. 63-68. 20
DAVIES, Stephen. Weitz's Anti-Essentialism, p. 63; Idem. 21
Todos estes argumentos serão retomados com mais vagar na seção dedicada à discussão da ontologia e
definição de obras de arte de Danto, que faz um retrospecto desta discussão.
-
20
filosofia restaria apenas uma ―terapia‖ conceitual, bastante restrita. Consequentemente, na
relação entre arte e filosofia, o papel da teoria é não-definicional, desempenha um papel
apenas descritivo. Contudo, de um ponto de vista wittgensteiniano, a estética desempenha
um papel transcendental conforme fora definido por Wittgenstein, isto é, como aplicação
crítica de um sistema: ―assim como a lógica, a ética e a estética baseiam-se em uma
experiência MÍSTICA: admirar-se não de como o mundo é, mas antes que ele seja.
[Quando se tem essa experiência, vê-se] o mundo de fora, como um 'todo limitado'‖22
,
numa ―percepção do mundo sub specie aeterni‖23
. Porquanto o papel da teoria da arte para
Morris Weitz é não-definicional, não-essencialista, o papel possível à estética seria a
caracterização das semelhanças de família.
Ora, Arthur Danto parece seguir os passos de Duchamp quando busca dar à arte
contemporânea um significado filosófico, ao mesmo tempo em que vê nela a origem avant
la lettre de um novo tempo que fora inaugurado na arte. Nesse sentido, Danto pode ser
compreendido como filósofo e crítico de arte cujos esforços estão consagrados à análise e à
interpretação dos movimentos e da significação da arte em sua era mais recente. Talvez
possamos dizer – e de fato há quem diga – que, assim como Clement Greenberg foi eleito o
crítico da arte modernista, analogamente Arthur Danto estaria à procura de atender à
demanda de preencher a lacuna de um crítico para a arte contemporânea. Para este crítico e
filósofo da arte contemporânea, a arte entra em um momento completamente novo e
irreversível após os readymades, donde surgirão consequências significativas, não só para a
arte ela mesma, como também para a filosofia e, portanto, para a estética24
.
O uso artístico de materiais não convencionais (non-standard materials)
certamente remonta aos ready-mades de 1915-1917 de Duchamp, e embora eu
suponha isso como parte da revolução que ele levou a efeito, a distinção entre
materiais convencionais e não-convencionais desapareceu do pensamento crítico
atual. Do mesmo modo que o conceito de gosto desapareceu da avaliação crítica
de obras de arte. Essas duas conquistas (ou desastres segundo Jean Clair) estão
interligadas. Duchamp, sozinho, demonstrou que é inteiramente possível algo ser
arte sem ter qualquer relação com o gosto, bom ou ruim. Assim ele pôs um fim
naquele período do pensamento e da prática estéticos comprometidos, para usar
22
GLOCK, Hans- Johann. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 139. 23
Ibdem, p. 12. 24
Em linhas gerais, esta é a conhecida interpretação de Danto sobre a significação de Duchamp, aqui
apresentada para discutir o estatuto da estética.
-
21
um dos tìtulos de David Hume, com o ―Padrão do Gosto‖ (The Standard of
Taste)25
.
A filosofia da arte de Arthur Danto procurou responder à altura à novidade da arte
contemporânea interpretando-a como significado diferenciado na história recente da arte.
Danto não só rubrica as asserções e o espírito avant la lettre de Marcel Duchamp, mas
também acredita que elas se efetivaram e que, de fato, inauguraram um novo tempo na arte,
conquistando inúmeros prosélitos, gente comprometida com a elevação reflexiva da arte – a
despeito dos revezes iniciais. Acima de tudo as atenções filosóficas de Danto recaem sobre
a significação inaugural dos readymades: todas as intenções de Duchamp com estes objetos
prêt-à-porter se efetivaram e, na visão de Danto, se impuseram de tal forma que uma
espécie de antiestética26
teria se tornado prática corrente e a própria realidade do mundo da
arte após (e principalmente nos) os anos 60. Esta é uma realidade completamente nova
dentro do panorama filosófico em sua relação com a arte. Uma situação em que a filosofia é
obrigada a rever sua clivagem com a arte.
Após Duchamp, poderia-se em princípio fazer arte de qualquer coisa. A era da
terebentina e do gosto tinha chegado ao fim. A era de encontrar uma definição de
arte para substituir a baseada no prazer estético tinha começado27
.
A tarefa definicional e normativa da estética deve ser descontinuada em favor de uma
reflexão ontológica e histórica acerca da arte após o seu fim. Resta saber como será o
desempenho da filosofia nesta nova fase e, principalmente, as repercussões destas para a
estética. Esta é a tarefa que nos toca.
O alinhamento do pensamento filosófico-crítico de Arthur Danto ao artístico-teórico de
Marcel Duchamp – e de Andy Warhol, na esteira revolucionária inaugurada por Duchamp –
se deixa perceber quando se evidenciam elementos relacionados, tal como, no pensamento
de Duchamp, a ideia de readymade que demonstraria uma equivalência entre o objeto do
25
DANTO, Arthur. Marcel Duchamp e o fim do gosto: uma defesa da arte contemporânea, pág. 21. In:
ARS (São Paulo), São Paulo, v. 6, n. 12, p. 15-28, Dec. 2008. Access on 10 Apr. 2017. Available from
http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202008000200002. 26
Enquanto Duchamp designa por ―anestesia‖ a intenção de os readymades não causarem qualquer deleite
estético, a consequência global de não podermos identificar o conceito de arte através de qualquer concepção
estética é designada por Danto pela expressão ―antiestética‖. Optamos por esta grafia tendo em vista sua
consagração em comentadores internacionais (James Meyer e Toni Ross) e a ocorrência de conceito com
grafia semelhante em outros filósofos. 27
DANTO, Arthur. Marcel Duchamp e o fim do gosto, p. 24.
http://dx.doi.org/10.1590/S1678-53202008000200002
-
22
mundo da arte e o do mundo da vida, e de Arthur Danto (na Transfiguração do Lugar-
Comum, principalmente), que argumenta sobre a possibilidade de obras de arte consagradas
possuírem equivalentes físicos idênticos, embora sendo meras coisas reais, dando vazão
assim ao argumento dos indiscerníveis em arte. Soma-se a isso a noção de readymade
recíproco proposta por Duchamp. Esta possibilidade artística que consiste em reverter
objetos do mundo da arte para o mundo da vida, ―usa[ndo] um Rembrandt como uma tábua
de passar!‖, por exemplo, evidencia claramente o apagamento nos limites entre arte e vida,
conforme salientou Danto. Deve-se atentar, pois, ao método aplicado pelo filósofo para dar
cabo às questões ontológicas levantadas pela chamada arte contemporânea. Cito Danto:
Em 1964, as embalagens de papelão de Andy Warhol (...) me deixaram
estupefato. Aceitei-as prontamente como arte, mas depois me perguntei por que
aquelas caixas eram arte enquanto as embalagens comuns dos supermercados não
eram. Compreendi então que esta dúvida tinha a forma de um problema
filosófico28
.
Referindo-se àquela figura que se tornou quase uma obsessão filosófica para Danto – Andy
Warhol-, fica estabelecida claramente a ligação entre readymades e indiscerníveis. Mais:
fica clara qual viria a ser a questão central da arte a partir de Duchamp. Os indiscerníveis
em arte sugerem que qualquer que seja o elemento distintivo entre uma obra e uma coisa
muitíssimo parecida com ela, este elemento não é aparente e, portanto, sua natureza não é
perceptiva. O problema filosófico levantado pela arte teria a forma da indiscernibilidade, a
qual se supõe ser exequível tratar a aparente indiferença entre dois objetos a partir da
assunção de que a característica definidora residiria em algo para além daquilo que os torna
em tudo perceptivamente iguais29
. Saber quando um objeto, em tudo parecido com outro,
mas que não compartilha com ele a mesma natureza, é uma obra de arte, é claramente uma
empreitada conceitual e um chamado ao trabalho filosófico; uma questão na qual a
28
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, p. 16. 29
Esta pressuposição metodológica, presente nos indiscerníveis, permitiria garantir à filosofia uma espécie de
―relação privilegiada‖ para lidar com a problemática artìstica. É uma defesa da filosofia e também um
reconhecimento de direitos de a arte filosofar: ―De repente, na arte avançada das décadas de 60 e 70, arte e
filosofia estavam prontas uma para a outra. De fato, repentinamente elas precisavam uma da outra para se
diferenciarem‖ (Cf. DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, p. 26). Como sabemos, Danto rejeita
a teoria institucional da arte (para ele, uma teoria incompleta e que erra o alvo ao interpretar o contexto como
instituição (sociologismo) e, ainda, por se apegar num pretenso papel da apreciação estética para a ontologia
das obras de arte). Danto nega também qualquer incursão das ciências naturais nesta seara: ―Existem trinta
versões conhecidas da obra Census in Bethlehem, de Pieter Bruegel, as quais formariam uma exibição
maravilhosa se expostas juntas. Entretanto, não há qualquer conexão entre aquilo o que uma ressonância
molecular poderia mostrar e aquilo sobre o que as obras são‖. (Cf. DANTO, A. Indiscernibility and
Perception, p. 322).
-
23
ontologia das obras de arte assume relevância em relação à percepção, à apreciação ou ao
gosto. As questões e categorias da estética tradicional permanecem questões filosóficas,
mas não esgotam a questão filosófica em jogo.
Ao indagar seriamente se a arte é um objeto filosófico de direito, Danto afasta a
possibilidade de a estética dizer algo de informativo sobre a real questão da arte desde seu o
período modernista (a saber, sua natureza). Esta estratégia, contudo, ainda que afaste a
estética da linha de frente das ações da filosofia acerca da arte, não torna clara a resposta
afirmativa acerca da justeza da arte como objeto de investigação da filosofia (que Danto
assume ao cotejar reflexivamente arte e filosofia), apenas (e relevantemente) mostra os
elementos desta relação. Urge mostrar quais questões levam a filosofia até a arte e quais
questões esta última suscita à filosofia em suas investigações, pois:
Não se dá apenas que nem todos os aspectos da arte interessam espontaneamente
à consciência filosófica, e que muito do que torna a arte fascinante, arrebatadora e
importante é não raro irrelevante do ponto de vista filosófico. Além disso, o
filósofo tende a jogar todo o peso do seu sistema de pensamento sobre os pontos
de interseção entre a arte e os demais assuntos de interesse filosófico, e retém da
arte apenas o que é pertinente à sua problemática30
.
Assim, quais as coordenadas do sistema da filosofia de Danto são jogadas sobre a arte e os
demais assuntos que a ele interessam e que, segundo o próprio Danto, ―formam um
conjunto logicamente fechado‖? Ou, noutros termos, qual é a problemática filosófica geral
de Danto? Analisar estas compreensões acerca do método e da atividade filosófica pode
esclarecer se o afastamento e a supressão da estética estão suficientemente fundadas.
Compreender a distância exata estabelecida pela relação entre filosofia e arte permitir-nos-á
esclarecer o lugar da estética neste quadro e a possibilidade de sua volta31
. ―As revoluções
no mundo da arte deixaram as definições bem intencionadas sem quaisquer recursos em
face do arrojo das novas obras de arte‖32
, causando não apenas o declínio de um modelo
teórico e a procura por outro; também dinamizaram internamente disciplinas da filosofia no
ímpeto de atender a esta demanda e dar-lhe resposta. Mudou-se a teoria porque se retirou da
30
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, p. 100. (Grifos nossos). 31
Ao final de sua carreira, Arthur Danto começa a vislumbrar um lugar onde a estética ainda seja relevante.
No terceiro capítulo esboçamos este aceno de Danto à chamada estética do significado. 32
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, Prefácio, p. 26.
-
24
estética a proeminência em sua maneira de teorizar a arte. Noutras palavras: ―a arte é
filosoficamente independente da estética‖33
.
Ainda sobre as paridades artístico-filosóficas, diz Duchamp: ―já que tubos de tinta usados
pelos artistas são manufaturados e produtos ‗readymade‘, poderìamos concluir que todas as
pinturas do mundo são ‗readymades aided‘, bem como trabalhos de assemblage‖34
, pois,
como explica Duchamp sobre sua concepção do ato criador, o artista dispõe de um material
que deve moldar, configurar, reorganizar, dar forma, estabelecer, forjar. O ato de
configurar, forjar, instaura a obra, cria a familiaridade entre a intenção e a sua forma
acabada. Ora, apenas com um pouco mais de sofisticação e terminologia filosófica, Danto
parece operar a mesma estrutura ao descrever, no capítulo dois de A Transfiguração do
Lugar-comum, como se dá a identificação artística, a instauração de uma obra, isto é, o
processo através do qual um significado é instanciado num suporte (segundo Danto, uma
estratégia subtracionista da metodologia dos indiscerníveis possibilitaria identificar as
características pertencentes à obra, por um lado, e aquelas pertencentes ao suporte, por
outro).
Enquanto Duchamp define a transmutação como um fenômeno que consiste na
―transformação da matéria inerte numa obra de arte, um transubstanciado real‖35
que se
processa (na transmutação o público teria um papel de crítico e de complementação ao ato
criador), Arthur Danto teria um conceito equivalente, o de "transfiguração", segundo o qual
a natureza de um objeto qualquer, por ser arte, se eleva a outro patamar, a despeito da
similitude dele com outro objeto36
.
Michael Gerald Lafferty concorda que o uso de readymades desobriga o domínio da técnica
artística e, neste sentido, o aspecto relevante está na proposição de algo como arte. No
entanto, ele questiona a escolha terminológica de Danto pelo conceito de transfiguração em
lugar de transubstanciação, uma vez que, segundo a metáfora cristã do sacramento da
33
DANTO, A. A future for Aesthetics, pág. 109. In: Francis Halsall, Julia Jansen & Tony O'Connor
(eds.), Rediscovering Aesthetics: Transdisciplinary Voices From Art History, Philosophy, and Art Practice.
Stanford, California: Stanford University Press, 2009, p. 103-116. 34
DUCHAMP, Marcel. Sobre os readymades. 1961, p. 4. 35
DUCHAMP, Marcel. O ato criador. 1965, p. 2. 36
LAFFERTY, Michael Gerald. Danto‟s Theory of Art, p. 47. (Tese de doutoramento do Departamento de
Filosofia da Warwick University). University of Warwick, Department of Philosophy, 2006. Repositório
online: http://go.warwick.ac.uk/wrap/42211 . Último acesso em 04/12/2016.
http://go.warwick.ac.uk/wrap/42211
-
25
eucaristia, embora o pão e o vinho permaneçam os mesmos, a crença cristã compreende que
as suas essências se transformaram no corpo e sangue de Cristo. Com efeito, ―o processo é
similar com os objetos cotidianos; sua aparência não mudou, embora eles tenham sido
transubstanciados em obra de arte. É sua essência, não sua aparência que mudou‖37
. A
teoria essencialista da arte de Danto focaliza a dimensão que ultrapassa a perceptiva e que,
desvendada, talvez explique o modo mediado como vemos uma obra. Talvez isso explique
a preferência terminológica de Danto, já que transubstanciação refere-se à mudança da
essência subjacente, não da aparência do objeto transubstanciado. Portanto, transfiguração
torna mais complexo compreender que o que está em jogo é o significado (o conteúdo
representacional) como o elemento responsável pela forma como compreendemos e
lidamos com obras de arte, objetos cotidianos, dentre outros. Assim, seria interessante
especular em que medida a adoção da transubstanciação como terminologia central da
filosofia da arte danteana poderia influenciar, modificar ou arrefecer os impactos sobre o
desincentivo à estética, talvez até mesmo encaminhar tal vaticínio negativo (que vigora em
obras como Após o fim da arte e, especialmente, em A Transfiguração do lugar-comum) a
uma positivação, conforme ocorre em textos como Embodied Meanings, Isotypes and
Aesthetical Ideas, ou The Future of Aesthetics.
A despeito disso, os readymades de Duchamp consistem em escolher um artigo da vida
comum, um ato que redireciona a importância colocada sobre a necessidade de domínio de
uma técnica de produção: ―[...] se o Sr. Mutt fez ou não a fonte com suas próprias mãos,
isso não tem importância. Ele a ESCOLHEU [...] arranjou de forma que seu significado
utilitário desaparecesse sob um novo título e um novo ponto de vista - criou um novo
pensamento para este objeto‖38
. Para Danto, comme mème, os readymades, e a arte herdeira
deste episódio, por consequência, lançaram um desafio filosófico incrível: discutir a
possibilidade do apagamento da fronteira entre arte e vida, e entre arte e filosofia, desafio
este que teria alçado a arte a um nível reflexivo filosófico nunca antes visto.
Com efeito, assim como para Duchamp a escolha, o arranjo, a reconfiguração do
significado utilitário e a criação de um novo pensamento para o objeto da vida comum
muda o seu estatuto, para Arthur Danto a interpretação filosófica correta seria aquela
37
Ibdem, p. 38. 38
DUCHAMP, Marcel. O caso Richard Mutt. 1917, p. 4.
-
26
segundo a qual os fatos são subdeterminados por teorias, por uma atmosfera conceitual,
cultural invisível – o que significa dizer que o estatuto de algo muda se mudou também o
pensamento sobre ele. Mais uma vez, esta conclusão é sustentada pelo argumento dos
indiscerníveis e é uma das mensagens de A Transfiguração do Lugar-comum: não é
possível que objetos aparentemente idênticos possuam naturezas idênticas em contextos
intensional/intencional e extensionalmente diversos.
A tendência igualitária a que tende a inclinar-se aquele que procura considerar o
―coeficiente artìstico‖ antes de empregar adjetivos como ―bom‖, ―ruim‖ ou ―indiferente‖
amplia tal consideração para além daquilo que se convencionou chamar a grande arte.
Conforme Marcel Duchamp afirma em O ato criador, de 1965, ―a arte pode ser ruim, boa
ou indiferente‖, pois ―arte ruim, ainda assim, é arte, da mesma forma que emoção ruim
ainda é emoção‖39
. Arthur Danto procurou levar às últimas consequências aquilo a que
chamou ―igualitarismo em arte‖ ao desenvolver, no campo filosófico, o conceito de
pluralismo. Neste tocante, entretanto, compreendemos que os posicionamentos pluralista e
igualitarista encontram na figura de Warhol sua melhor representação. Na prática de Danto,
enquanto crítico de arte, também é possível perceber o esforço que busca superar os
ímpetos de avaliações críticas polarizadas, a exemplo dos modelos modernistas de Clement
Greenberg, Roger Fry, dentre outros.
Finalmente, não deixa de ser interessante notar que a analogia (irônica) é o tropo retórico
escolhido por Duchamp para rebater as acusações de imoralidade e plágio: ―a fonte do Sr.
Mutt não é imoral, isso é absurdo, não mais do que uma banheira é imoral‖40
. O que
garantiria a identidade da fonte de Mutt/Duchamp frente a um símile seria a nova posição
que ocuparia no quadro ontológico, respeitando o reenfoque teórico operado (isso valendo
tanto para Duchamp quanto para Danto).
Retomando os elementos acima relacionados, os readymades que, enquanto objetos
artísticos, suscitam indiscernibilidade perceptiva são instaurados pelo ato de criação que
cria algo, porque de fato transmuta significado. A aproximação que se dá, por conseguinte,
entre arte e vida, a reação do público imperativamente direcionada ao coeficiente artístico,
39
DUCHAMP, Marcel. O ato criador. 1965, p. 2. 40
DUCHAMP, Marcel. O caso Richard Mutt. 1917, p. 4.
-
27
não à camada sensual de uma percepção estética, levam público, artistas, curadores,
críticos, etc., a finalmente ampliar o horizonte teórico do mundo da arte para uma gramática
crítica e filosófica em que a obra seja antes tratada como tal, inaugurando o que Danto
chamará de pluralismo artìstico, uma espécie de ―significação polìtica‖ igualitária , pois
―tudo pode ser arte‖, inclusive a arte que não se candidata a atender a qualquer gratificação
estética. Por tudo isso, podemos dizer que Duchamp declara a preponderância do
coeficiente artístico, da qualidade artística de uma obra em detrimento da contemplação
estética.
A conclusão a que Danto chega, com o novo tempo que a arte conduziu sua própria história
após a década de sessenta, é também de que a noção de qualidade artística possui uma
gramática mais adequada à descrição e interpretação das obras de arte e do mundo da arte
do que o viés estetizante propunha. Para a estética – o que quer que Danto compreenda com
esta noção – foi vaticinado um futuro ou de desuso ou, ao menos, de uma necessidade
premente de revisão frente à relativização radical a que parece obrigada a se submeter. Se a
arte contemporânea compreendeu que pode existir sem ter de atender a quaisquer
expectativas de deleite estético, resta à filosofia mostrar que pode continuar o seu trabalho
conceitual sem depender da estética. A noção de estética com a qual Danto trabalha em A
Transfiguração do lugar-comum aproxima-se do padrão sensível de gosto e da experiência
de deleite sensível. Resta saber as razões que levam a esta conclusão, bem como se são
suficientes os elementos subentendidos que balizam o método utilizado para chegar a tão
negativa conclusão sobre a estética.
Em parte, esta conclusão se deve à noção de descredenciamento – princípio ao qual Danto
foi fiel. Seguindo as consequências desta ideia, o melhor que a filosofia da arte tem a fazer
é acompanhar, um tanto a posteriori, num ―voo de minerva‖, as modificações, cumulações
e clivagens ocorridas no mundo da arte. Se a filosofia da arte pretende dizer algo
significativo sobre a arte, ela deve abdicar do espírito descredencializador e, aprendendo a
reprojetar sua função crítica e sua análise estética, acompanhar a revolução teórica da arte,
que seria uma revolução autorreflexiva à maneira da filosofia. Obviamente, este
comportamento reconhece as credenciais da arte em relação ao estabelecimento de seu
próprio estatuto.
-
28
No artigo O Mundo da Arte, de 1964, Arthur Danto diz que a arte pós-impressionista,
através dos readymades, ―celebrou uma vitória na ontologia‖41
que deixou clara a natureza
(teórica) da arte e que, portanto, tal condição superaria o estado de indigência e
dependência estatutária frente à filosofia. No entanto, esta vitória, que significa a
autonomia real da arte frente a discursos descredencializadores, repercute sobre a filosofia
de maneira a exigir que esta renuncie a qualquer discurso profético sobre a história da arte
ou outra narrativa que pretenda encarcerar a arte em uma armadilha de minoridade
ontológica ou prática. A autonomização da arte significaria, para a destinação teórica da
filosofia em relação à arte, sua prática e significação, uma revisão da condição e da
natureza da análise e do discurso filosófico sobre a arte ou pelo menos uma compreensão
reflexiva de sua peculiaridade frente a arte enquanto objeto de investigação. Assim, a
estética filosófica deverá ser preterida à terceira posição, ocupando, pois, a filosofia da arte
a dianteira, que seria seguida pela crítica de arte, posicionada em segundo lugar. Desta
maneira, estaria estabelecida corretamente a relação com o mundo da arte. A autonomia da
arte exige da filosofia um discurso cogente, mas esta sobriedade discursiva poderá ser
alcançada somente se reconhecida a maioridade autorreflexiva da arte. Dito em outras
palavras, a autonomia da arte frente ao discurso descredencializador é de tal forma
autêntica, que oferece à filosofia ocasião de rever sua relação com a arte, sua aptidão à
reflexão sobre tal tema (dentre outros); e oferece, portanto, ocasião à estética,
especificamente, o referido desafio radical. ―Decifra-me, ou te engulo‖, protesta a arte
frente à estética, intimidada.
Para mim, a descoberta filosófica de Duchamp foi que a arte pode existir, e a
importância disso foi que ela não tinha qualquer distinção estética sobre a qual
falar, em um tempo em que, acreditava-se, o deleite estético era tudo sobre o que
a arte era. (...) Ele aclarou a atmosfera filosófica para que se pudesse reconhecer
que, desde de que a arte a-estética possa existir, a arte é filosoficamente
independente da estética. Isso é uma descoberta significante somente para
aqueles que, como eu, estavam preocupados com uma definição filosófica da
arte. (...) A questão era se a diferença entre a arte e a realidade pode consistir em
tais diferenças detectáveis. Eu penso que não, mas desde o início minha
estratégia foi descobrir como pode haver diferenças que não fossem diferenças
perceptíveis. Minha ideia era que deveria haver uma teoria da arte que pudesse
explicar a diferença (...) Minha opinião era que deveria haver razões para chamar
a Brillo Box de arte42
.
41
DANTO, A. O mundo da arte. Revista Artefilosofia, Ouro Preto, n.1, p. 13-25, jul. 2006, p.16. 42
DANTO, A. A future for Aesthetics, p. 109. (Grifos nossos).
-
29
Ironicamente, a ―descoberta filosófica de Duchamp‖ e a contribuição decisiva de Andy
Warhol tornariam ―problemática até mesmo [a] suposta indefinibilidade da arte‖43
por parte
da filosofia, conforme reivindicam Wittgenstein e seus seguidores em filosofia da arte. A
diversificação ocorrida na classe de obras de arte foi tamanha que o acesso de forma direta
se tornou inviável. Como se fosse necessário, os modos de apresentação das obras se tornou
absurdamente complexo, problematizando até mesmo a relação – até então decidida – entre
arte e filosofia, conforme preconizou o quietismo wittgensteiniano a respeito da
possibilidade, e mesmo necessidade, de a filosofia definir a arte. Em outros termos, Danto
interpreta a autonomização radical da arte como um desafio ao vaticínio daqueles filósofos
analíticos da arte que questionavam a investigação essencialista. Danto, como um deles,
aponta para a estética como a mais atingida, mas propõe que é viável outra abordagem.
Por um lado, a filosofia deverá readequar a importância e finalidade das áreas de
investigação destinadas à arte, pois são ―maus tempos para a estética‖; por outro lado, não
devemos nos esquecer que a filosofia da arte de A Transfiguração do Lugar-comum está
fortemente situada no contexto da filosofia analítica. Havia, portanto, um duplo desafio:
superar o desafio que vinha da arte autoconsciente e o impedimento que ainda ecoava no
contexto analítico, vindo da antifilosofia de Wittgenstein. Se Weitz tem ou não razão, a
questão é que Danto teria agora dois problemas, mas que podem ser resumidos num único
obstáculo: mostrar o que pode a filosofia dizer de relevante e de informativo sobre a arte,
uma vez que o próprio Arthur Danto bloqueou o discurso estético. Se a estética está
impedida de seu labor definicional, de quais razões filosóficas pode Danto lançar mão para
defender a operação de uma filosofia da arte?
É inegável o impacto que a arte vanguardista e pós-vanguardista (principalmente)
imprimiram sobre a filosofia da arte, seja ela "analítica" ou não. A filosofia de Arthur
Danto foi edificada sobre este episódio e buscou desenvolver suas significações. A questão
"o que é a arte?" elevou a questão "como podemos definir a arte?" até o patamar reflexivo
no qual a filosofia se preocupa com as estratégias adotadas e os locais e tipos de pistas
procurados para lograr sucesso em tais empreendimentos. A questão, dinamizada
internamente ao mundo da arte sobre o seu quid, replica à filosofia a questão pelo seu
43
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, Prefácio, p. 26.
-
30
próprio quid. A conquista da autoconsciência da arte oferece um duplo desafio à filosofia,
que deve se empenhar em encontrar métodos imunes à nova série de obras criadas e não
pode mais, num tom de arrogante supremacia, prescindir da arte para saber qual tipo de
atividade é a filosofia e o que cabe a cada uma de suas subdisciplinas: ―[arte e filosofia]
precisa[am] uma da outra para se diferenciarem‖44
.
No entanto, como a arte é o produto do que a filosofia projeta sobre ela (ou, melhor
dizendo, ―a maneira como sistematicamente um filósofo chega a compreender a arte‖),
iremos a seguir efetuar o que se provou necessário e útil desde as últimas páginas: mostrar
o sistema de filosofia pressuposto por Danto, a maneira como ele compreende a atividade
filosófica, como e por que se dá a implicação da arte na agenda da filosofia e, por fim, os
efeitos, as analogias e as co-implicações sistêmicas entre coordenadas metafilosóficas e a
definição da arte. Se, contra os impedimentos antidefinicionais, existe um lugar no qual a
filosofia se torna possível e imprescindível, em que consiste o fundamento sistêmico (e
sempre idiossincrático) da reflexão filosófica sobre a arte? Essa definição da arte, que se
pretende teórica, não comprometida com qualidades sensoriais, tem razões profundas e
paralelos interessantes; e, como sabemos, ela significa o afastamento (e em uma situação
honestamente ambígua) da estética da arte. Por conseguinte, de qual mal a estética sofre,
mas que não atinge a filosofia da arte? Adiantamo-nos em dizer que a filosofia da arte
danteana, por seu pretenso fundamento ontológico, não está fundada sobre termos
observacionais. Assim, a filosofia da arte é dotada, desde o início, de uma intuição gerativa,
sistêmica, de qualidades que faltam à estética. Estas razões metafilosóficas e sistemáticas
que afastaram a estética do contato (por que não dizer, do domínio?) privilegiado que teria
com a arte foram decisivas para a postura de Danto em sua reflexão sobre a arte. Assim,
vale a pena apresentá-las e analisá-las.
1.2 - A concepção filosófica de Danto
Como justificar a filosofia frente à autonomização de seu objeto ou frente ao discurso
antifilosófico? Nesta perspectiva, o que vem a ser a filosofia? Como distinguir arte e
44
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum, p. 26.
-
31
filosofia, se a autonomia da arte se efetivou graças à conquista de uma autoreflexividade
compatível com a filosófica?
Como nota Danto, é um ―fato surpreendente que haja uma disciplina cuja natureza é um
problema interno para ela mesma‖45
. Mas reflexividade ou auto-referencialidade não são
características apenas da filosofia – há poemas sobre poesia, filmes que versam sobre o
cinema e uma forma de arte que passou a perseguir obstinadamente sua identidade. Para
Danto, ―...a arte evolu[iu] de tal forma que a questão filosófica de seus status quase se
converteu em sua própria essência‖46
. Em todo o caso, como nota Óscar Nudler, para a
filosofia ―a reflexão sobre sua própria condição é um componente constitutivo‖47
, enquanto
que, se na física é perguntado o que é o tempo, abandona-se neste instante a ciência natural
e se põe a filosofar. Seja em questões ―internas‖ (acerca do método, da sua história ou da
linguagem) ou em questões ―externas‖ (acerca das relações entre filosofia e outras esferas
do saber), a questão que se coloca a filosofia a respeito de sua própria natureza não a faz
evadir-se de seu domínio – antes, constitui o seu ofício.
A despeito da centralidade da questão, nem todos os filósofos se dedicaram à pergunta
direta e detidamente; praticaram, isso sim, uma concepção tácita ou não sistematizada. ―O
trabalho filosófico revela, de forma ativa ou passiva, a ideia de filosofia que o inspira‖48
.
Mas mesmo entre aqueles que das concepções metafilosóficas se ocuparam, não há
compreensão unânime. Danto se dedicou à questão pelo menos duas vezes49
, e levou
adiante esta prática refletida. É possível encontrar, na quase totalidade de sua obra, uma
reflexão metafilosófica (destaque especial aos escritos que tratam da arte e que relacionam,
de maneira relevante para nós, arte e filosofia). ―[S]eja qual for o objeto do meu
pensamento, aprendo ao mesmo tempo sobre o objeto e sobre o próprio pensamento‖50
,
recorda-nos Danto. Esta ―simbiose lógica entre a filosofia e seu(s) objeto(s)‖ pode,
especialmente no caso da filosofia da arte de Danto, dar a conhecer ―sua própria imagem no
45
DANTO, Arthur. What Philosophy Is : a guide to the elements. New York: Harper & Row, 1968, p. 2. 46
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 101. [Grifos nossos]. 47
NUDLER, Óscar (ed.). Los problemas de la filosofía de la filosofía. Madrid: Editorial Trotta, 2010, p. 20. 48
Ibdem, p. 21. 49
Há dois escritos dedicados exclusivamente ao assunto: What Philosophy Is (1968) e Connections to the
World: The Basic Concepts of Philosophy (1989/1997). 50
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 99.
-
32
espelho‖51
ao propor uma definição de arte. Contrariando Wittgenstein (mas, ainda assim,
mantendo um debate próximo ao vienense), a proposição desta definição estabelece uma
relação entre filosofia da arte e a arte ela mesma, na visão de Danto, possível a despeito do
quase apagamento das fronteiras entre arte e filosofia. Faz-se necessário evidenciar porque
a arte oferece problemas, isto é, esclarecer as vias através das quais ―a arte se presta
espontaneamente ao tratamento filosófico‖52
, e que tornam a filosofia da arte possível,
portanto. Esta simbiose, pois, é a especificidade do sistema danteano: as suas concepções
sobre a arte são, em alguma medida, as suas concepções de filosofia.
1.2.1- Gênese dos problemas filosóficos
Conforme explica Paul K. Moser, metafilosofia é uma teoria sobre a natureza da filosofia.
Consiste num discurso de segunda ordem (meta) que busca identificar os objetivos,
métodos e pressupostos de uma atividade filosófica. Os tópicos tradicionais desta
investigação versam acerca das condições que tornam um discurso filosófico e não outra
coisa, além das condições sob as quais um discurso filosófico de primeira ordem seja
significativo, verdadeiro ou mesmo desejável. A epistemologia, a ontologia e a ética são as
disciplinas filosóficas que tradicionalmente figuram em investigações metafilosóficas, que
teorizam acerca da natureza e fundamento/validade do conhecer, do ser e dos valores, a fim
de determinar o objetivo, o método e os pressupostos de uma dada teoria do conhecimento,
ontologia, ética ou estética53
.
Neste sentido, como Danto justifica a distinção entre filosofia e arte? Em que medida a
caracterização da filosofia justifica a ontologia de obras de arte – e não a estética – a
abordagem adequada para a arte? Vejamos como Danto caracteriza a filosofia.
O apelo aos problemas filosóficos como característica absolutamente singular da filosofia –
assim como o apelo à sua história e à questão de seu método – tem sido uma abordagem
bastante usual no debate metafilosófico. Procura-se reunir elementos que caracterizem
51
NUDLER, Óscar. Los problemas de la filosofía de la filosofía. p. 20. 52
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 99. 53
Cf. verbete ‗metaphilosophy‘ In AUDI, Robert. The Cambridge Dictionary of Philosophy. 2nd
Ed.
Cambridge University Press, 1999, p. 561-2.
-
33
suficientemente o fazer filosófico quanto ao seu objeto, seu itinerário e/ou à forma pela
qual se estrutura seu discurso.
Nöel Carroll lembra a influente contribuição de Danto à metafilosofia: ―de acordo com
Danto, questões genuinamente metafilosóficas surgem quando há uma necessidade teórica
de diferenciar duas coisas que são perceptualmente indiscernìveis‖54
. Assim, dirá Danto:
―Os problemas filosóficos originam-se em conexão com pares de indiscernìveis‖55
. De
outra forma: problemas filosóficos são bem caracterizados pela indiscernibilidade, isto é,
quando se torna urgente distinguir coisas aparentemente idênticas, mas cujo ser é
radicalmente diverso. Entretanto, como ―nem todo assunto [..] é pertinente [à filosofia]‖56
,
ela se configura como uma atividade que se debruça sobre problemas, não sobre um
seguimento qualquer de fatos, sendo os problemas filosóficos o ―lugar‖ privilegiado do
exercício da filosofia. Assim, todos os problemas filosóficos são problemas que envolvem
indiscernibilidade ou que pelo menos se deixam tratar em termos de pares de indiscerníveis.
Indo ao cerne da questão, tratar um problema pelo viés da indiscernibilidade significa lidar
com uma diferença interpretada de um ponto de vista essencialista e não-perceptivo.
Conforme nos lembra Carroll de forma muito pertinente, pressupõe-se a ―distinção entre
aparência e realidade‖57
, na qual, se a ―necessidade teórica de diferenciar duas coisas‖
nasce apenas quando o par em questão é ―perceptualmente indiscernível‖, a dimensão
perceptual aí é de qualquer forma filosoficamente irrelevante. Nem mesmo se discute
tamanha generalidade e recorrência de equivalências perceptivas. Tampouco é investigada
esta pretensa inexpressividade do perceptivo. Ainda assim – e mesmo por isso –, diz-se que
não há ontologia possível na dimensão perceptiva ao afirmar que a distinção
filosoficamente relevante há de brotar daquilo que em todos os sentidos ultrapassa esta
dimensão. Deve-se ser capaz de determinar o ser, a mesmidade e a alteridade, a despeito do
encantamento exercido pelas semelhanças. Mas como não brota filosofia de qualquer
distinção, sobre qual diferença radical Arthur Danto pretende fundar a filosofia? Qual seja o
54
CARROLL, Nöel. ‗DANTO, Arthur Coleman‘. In: AUDI, Robert. The Cambridge Dictionary of
Philosophy. Second Edition. Cambridge University Press, 1999, p. 204. 55
DANTO, Arthur. Connections to the World: The Basic Concepts of Philosophy. First Edition. University of
California Press, 1997, p. 11. 56
DANTO, A. A Transfiguração do lugar-comum, p. 99. 57
DANTO, Arthur. Connections to the World, p. 14.
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34
fundamento mais longínquo do tão estudado método dos indiscerníveis em arte é o que em
seguida exporemos.
Existiriam em Danto duas classes diversas de distinção, duas maneiras de estabelecer
diferenças: uma ―ordinária‖, digamos, e outra filosófica. Com efeito, diz ele, é vital que
aprendamos distinguir ―entre plantas e animais, entre as diferentes espécies de árvores e
peixes, entre o que é útil e o que é perigoso‖58
. A ―distinção ordinária‖, que aprendemos
desde tenra infância, opera, como podemos ver na passagem citada, entre coisas (objetos e
animais), fatos e até mesmo sobre conceitos práticos vitais (como plantas venenosas e não
venenosas) e morais (como certo e errado). Trata-se de distinguir entre isto e aquilo.
Contudo, Arthur Danto diz que ―dentro mesmo da experiência, um tipo de distinção entre
aparência e realidade irá naturalmente surgir‖, de tal sorte que ―é importante que sonhos,
imagens, sombras, reflexos e ilusões sejam distinguidas das coisas reais‖59
. A possibilidade
do erro e do engano entra na cota mesma que qualquer sistema de filosofia parece reservar
ao funcionamento duvidoso de nosso aparato perceptivo ou sensorial. Mas Danto propõe
que, quanto à ilusão ordinária (engano ocorrido no domínio cotidiano quando tomamos
como mesmo aquilo o que é outro), o equívoco de tomar por real a aparência é dirimido por
simples inspeção da materialidade do objeto que causa a suspeita. Assim sendo, podemos
interpretar a distinção ordinária de Danto como relacionada abertamente a um realismo
materialista. Adota-se a inspeção direta como meio para dirimir o erro, cujo antídoto final é
qualquer coisa de fatual ou perceptivamente disponível.
Não está em questão o que faz com que cada coisa seja o que é ou venha a ser o que é; o
que garantiria que o que parece ser o seja de fato e seguramente. A distinção de que
falamos é operada na (within) experiência. Qualquer ilusão ordinária poderá apelar para os
meios disponíveis (visuais, de competência linguística ou de reconhecimento) para que seja
dirimida. Tratar-se-iam, no limite, de ―defeitos‖ pontuais, nos quais o recurso às distinções
ordinárias estaria disponível. Parece que devemos apenas ser hábeis o bastante para evitar
confusões pontuais, não uma confusão generalizada. Na distinção ordinária, aprenderíamos
a identificar a contento uma coisa com sua ideia, sem que nos enganemos facilmente com
possíveis engodos. Ora, ao que parece, o mencionado salto não é o bastante para nos levar
58
Ibdem, p. 15. 59
Ibdem, p. 16.
-
35
até aquilo que caracterizará a filosofia mesma, pois estas distinções ocorrem ―sem que
nenhuma delas deem vazão à filosofia‖, mesmo que tais distinções ―forneçam os modelos
de que os filósofos precisarão para suas especulações de que exista uma distinção
comparável entre (beetwen) a experiência e algo mais real que ela‖60
.
Assim, embora importante, a distinção ordinária é culturalmente contingente61
, não implica
qualquer problema filosófico e, portanto, qualquer confusão entre o que é da esfera da mera
aparência com aquilo que diz respeito à esfera da identidade mesma (―pictures of animals
and animals themselves‖62
, por exemplo) envolve uma ilusão diferente daquela que ocorre
quando filosofias diferentes disputam um ponto. Tratar de aparência e realidade na
―distinção ordinária‖ consiste em uma operação horizontal, isto é, uma distinção que se dá
dentro da experiência mesma. Ou seja, o domínio da experiência mesma (o que quer que
isso signifique para Danto) é o domínio no qual se distingue ordinariamente aparência e
realidade; entre as coisas, fatos e valores práticos e suas ideias, seus conceitos, suas
representações, enfim. Mesmo na ordinariedade, contudo, é sempre algo para além da
experiência (e, portanto, da percepção, conforme caracterizada este domínio) que dirimirá
as ilusões. Este elemento, contudo, é contingente.
Com efeito, parece razoável deduzir do que até aqui explicamos que há uma íntima relação
entre experiência e percepção, de tal forma que o contato com o domínio da experiência se
daria, em parte, através da percepção (as distinções ordinárias completam a interação). É
um tanto difícil, contudo, fixar o que Danto compreende por tais termos – e a percepção
permanece não completamente determinada. Segundo Danto, a experiência é como ―uma
trama de tapeçaria tecida de tal maneira que mundo e sujeito não possam ser separados do
tecido que os une‖63
. Assim, ta