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DRAFT PAPER – VERSÃO PRELIMINAR – NÃO CITAR SEM PERMISSÃO DOS AUTORES
O PAPEL DA TECNOLOGIA NA CONCEPÇÃO DE
TRANSFORMAÇÃO DO EXÉRCITO BRASILEIRO: CAÍMOS NA
ARMADILHA DA REVOLUÇÃO DOS ASSUNTOS MILITARES? Augusto W. M. Teixeira Júnior1
Ricardo Borges Gama Neto2
Resumo: A concepção de Transformação do Exército expressa um entendimento nacional
sobre Transformação Militar ou incorre na armadilha do determinismo tecnológico
característico do debate sobre Revolução dos Assuntos Militares (RAM)? Desde a publicação
da Estratégia Nacional de Defesa em 2008, o Exército Brasileiro buscou responder aos desafios
de elevar o status da Força Terrestre ao patamar de uma então potência emergente. Iniciativas
como a Estratégia Braço Forte, PROFORÇA e os Projetos Estratégicos do Exército
constituíram importantes passos para a mudança militar desejada. O problema de pesquisa
emerge da percepção sobre uma possível falha na concepção de Transformação, onde
possivelmente se opta por uma leitura reducionista da Transformação, levando a confundi-la
com a RAM. Ilustrativa dessa inferência é o entendimento sobre os Projetos Estratégicos da
Força como indutores da Transformação. Metodologicamente, o desenho de pesquisa do artigo
consiste num Estudo de Caso. Serão usadas fontes qualitativas como documentos do Ministério
da Defesa e do Exército Brasileiro e dados estatísticos sobre gastos militares e orçamento do
Ministério da Defesa.
Palavras-chave: Mudança Militar. Transformação Militar. Tecnologia. Exército Brasileiro.
Projetos Estratégicos.
Abstract: Does the Army Transformation concept express a national understanding of Military
Transformation or it enters into into the trap of technological determinism, characteristic of the
Revolution in Military Affairs debate? Since the publication of the National Defense Strategy
in 2008, the Brazilian Army has sought to respond to the challenges of elevating its status to
the level of an emerging power. Initiatives such as the Estratégia Braço Forte, PROFORÇA
and the Army’s Strategic Projects were important steps for the desired military change. The
research problem emerges from the perception about a possible failure in the concept of
Transformation, where it is possible that it chooses a reductionist understanding of
Transformation, leading to confuse it with the RMA. Illustrative of this inference is the
understanding of the Army’s Strategic Projects as inductors of Transformation.
Methodologically, the paper's research design consists of a Case Study. Qualitative sources will
be used, as documents of the Ministry of Defense and the Brazilian Army and statistical data
on military expenditures and budget of the Ministry of Defense.
Key-Words: Military Change. Military Transformation. Technology. Brazilian Army.
Strategic Projects.
1 Doutor em Ciência Política (UFPE) e Pós-doutorando em Ciências Militares (ECEME). Professor da
Universidade Federal da Paraíba (DRI/PPGCPRI/UFPB). Pesquisador do NEP-CEEEx e do INCT-INEU. 2 Doutor em Ciência Política (UFPE). Professor do Departamento de Ciência Política (UFPE), e do Instituto Meira
Mattos (IMM-ECEME).
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INTRODUÇÃO
A concepção de Transformação do Exército expressa um entendimento nacional sobre
Transformação Militar ou incorre na armadilha do determinismo tecnológico característico do
debate sobre Revolução dos Assuntos Militares (RAM)? O problema de pesquisa emerge de
uma possível falha no processo de concepção de Transformação, onde possivelmente se opta
por uma leitura reducionista da Transformação, na qual a confunde com a RAM.
Não obstante a importância das tradições e da cultura institucional, Forças Armadas de
todo mundo estão sujeitas a processos de mudança militar. Tal como as características e a
conduta da guerra e das operações militares sofrem alterações no espaço e tempo, instituições
castrenses podem se adaptar, modernizar ou se transformar para melhor desempenhar suas
missões tanto em tempos de paz quanto de guerra. De incentivos à mudança advindos de
restrições orçamentárias ou através de choques externos, de ameaças a derrotas militares, o
aparente paradoxo que se constrói pela tensão entre “conservadorismo militar” e as demandas
por mudança é visível na no século presente.
Segundo Farrell e Terriff (2002), eram visíveis no início do milênio evidências de
mudança militar entre importantes Forças Armadas no mundo. Porém, distinto de padrões
anteriores, cuja ênfase recaia no preparo para o emprego da força em cenários de conflito de
alta intensidade, os eventos de mudança militar no século XXI apontavam para a capacitação
simultânea para missões de alta e baixa demanda tecnológica. Um traço marcante do perfil
militar no período é a relevância do aproveitamento das tecnologias de informação,
processamento e informação como subsídio para a condução das operações militares
(FARRELL E TERRIFF, 2002).
A mudança no ambiente estratégico e os impactos orçamentários na Defesa,
especialmente para baixo, são apontados como afetando o planejamento da estrutura das Forças
Armadas no tempo presente (SHURKIN, 2013; COLLINS E FUTTER, 2015). Em vários
países, dentre eles o Brasil, limites orçamentários e o aumento dos custos para aquisição,
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desenvolvimento e manutenção de tecnologias exercem pressões endógenas. Uma segunda
pressão doméstica é a crise de segurança pública instalada no país acompanhada pela requisição
do emprego das forças em operações subsidiárias e constabulares, notadamente as Operações
de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Não obstante não faça parte de nenhuma aliança militar
formal ou esteja envolvido em qualquer conflito armado no exterior, o Brasil sofre os efeitos
das pressões exógenas e endógenas apontadas anteriormente.
Desde a publicação da Estratégia Nacional de Defesa (2008), o Exército Brasileiro
buscou responder aos desafios de elevar-se à uma força da Era do Conhecimento. Diagnósticos
do Exército apontavam que dado o estágio em que encontrava o Exército, para a elevação do
poder militar em consonância com a estatura político-estratégica do Brasil, apenas a adaptação
ou a modernização da força seriam insuficientes. A resposta para qual caminho de mudança
militar trilhar estava no Processo de Transformação. Iniciativas como a Estratégia Braço Forte,
PROFORÇA e os Projetos Estratégicos do Exército constituíram importantes passos para a
mudança militar almejada. Entretanto, se destacam nos documentos brasileiros supracitados a
dimensão tecnológica, fundamental à concepção de RAM (OWENS, 1996; KREPINEVICH,
1997; COLLINS e FUTTER, 2015) enquanto que de acordo com a literatura (BOOT, 2005;
SLOAN, 2008; DAVIS, 2010) as dimensões organizacional e doutrinária também são centrais
nos processos de Transformação.
O presente estudo tem enfoque qualitativo e emprega o desenho de pesquisa de Estudo
de Caso (GEORGE e BARNETT, 2005). O caso selecionado é o processo de Transformação
do Exército Brasileiro. O trabalho foi realizado utilizando a estratégia da análise documental de
critérios internos de comparação, ou seja, confrontando os diferentes documentos descritos
(quanto sua natureza e objetivos) com os conceitos definidos pela literatura do tema de pesquisa
produzidos em outros contextos. Serão usadas fontes qualitativas como documentos (PND e
END), informações sobre os Projetos Estratégicos (PAED, EBF e PEE RECOP), tal como
dados estatísticos sobre gastos militares e orçamento da pasta da Defesa.
1. REVISÃO DA LITERATURA E HIPÓTESES
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O trabalho em tela operacionaliza em seu estudo de caso as explicações de Revolução
dos Assuntos Militares e de Transformação Militar. Entretanto, se faz necessário antes
descrever o tipo de fenômeno que essas categorias fazem parte. Segundo Farrell e Terriff (2002,
p. 05), mudança militar consiste na alteração dos objetivos, estratégias presentes e/ou na
estrutura das organizações castrenses. Os autores supracitados apresentam três fatores que
contribuem na explicação sobre por que as Forças Armadas passam por processos de mudança
militar no século XXI. Primeiramente, a mudança do ambiente estratégico em virtude do fim
da Guerra Fria. Em segundo lugar, os impactos nos orçamentos de defesa ligados ao fim da
rivalidade Leste-Oeste e consequentemente o downsizing de grande maioria das forças armadas
ocidentais. Em terceiro, o ritmo acelerado no desenvolvimento e inovação tecnológica e suas
possibilidades de provocar mudanças revolucionárias na condução das operações militares
(FARRELL E TERRIFF, 2002, p. 3).
Segundo essa abordagem, três seriam as principais fontes de mudança castrense: normas
culturais, política-estratégia e por fim, novas tecnologias. Central para os fins do presente
artigo, a terceira vertente aposta no peso explicativo das novas tecnologias como fontes da
mudança militar. Primeiramente, a evolução tecnológica e os seus impactos na adaptação
organizacional, estratégica e tática implicam num poderoso vetor de mudança. A capacidade
indutora da tecnologia como elemento da mudança militar (determinismo tecnológico) a coloca
em choque com o conservadorismo militar. Entretanto, autores como Farrell e Terriff (2002),
Howard (2004) e Roberts (apud COLLINS E FUTTER, 2015) convergem na observação de
que a tecnologia e seu impacto na mudança militar não se dão sem mediação social. Por
exemplo, Howard (2004) considerava que as mudanças na conduta da guerra se explicam pela
interrelação entre mudanças socias e tecnológicas (emergência de burocracias do estado,
nacionalismo em conjugação com motor a vapor e telégrafos, por exemplo).
Nos anos 1990 o debate ganhou força dentro da academia especialmente através do
conceito de Revolução Militar. As revoluções militares seriam compostas pelos elementos de
mudança tecnológica, desenvolvimento de sistemas, inovação operacional e adaptação
organizacional (KREPINEVICH, 1994). A perspectiva de Krepinevich sobre mudança militar
endossa um entendimento de que estas se dão fundamentalmente através de rupturas, quebras
paradigmáticas com efeitos revolucionários para o campo militar. Esse tipo de mudança
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castrense é fundamental para entender como se dá a relação entre estruturação das Forças
Armadas e o cumprimento de suas missões.
Segundo Sloan (2008), a perspectiva revolucionária sobre mudança militar estabelece
uma explicação sobre a relação entre como as forças armadas são dimensionadas (sized),
estruturadas e equipadas para enfrentar determinadas ameaças. O panorama sobre mudança
militar descrito nos parágrafos acima deu origem a duas perspectivas do século XX sobre o
objeto em apreço. A primeira, desenvolvida por planejadores soviéticos, partiu da percepção da
distância entre a tecnologia militar ocidental vis-à-vis a soviética. Os primeiros tinham claro
avanço em eletrônica embarcada e em comunicações. Os russos tinham mais quantidade e
menos qualidade. Como resposta, o Marechal Nicolai Orgakov, argumentava a favor de uma
Military-Technical Revolution (MTR) (PROENÇA JUNIOR, RAZA, DINIZ, 1999).
Apesar de oficialmente incorporar variáveis como doutrina e organizações, a ênfase da
MTR dava-se fundamentalmente na tecnologia. Collins e Futter (2015), por exemplo, apontam
como sendo centralidade na tecnologia na MTR como um dos diferenciadores desta para com
a Revolução dos Assuntos Militares, a qual seria sensível a relação tecnologia e doutrina.
A segunda perspectiva sobre mudança militar foi desenvolvida formalmente entre os
anos 1980 e 1990, baseava-se na ideia de Revolution in Military Affairs. Semelhante ao apelo
de mudança radical ou revolucionária defendido por Krepinevich (1994), os defensores da
RAM apostavam que a combinação de novas tecnologias, doutrina e mudanças organizacionais
modificariam a conduta e as características da guerra no futuro. Enquanto a Revolução Militar
de Krepinevich (1994) representava uma interpretação histórica sobre mudança militar, a
Revolução dos Assuntos Militares defendida por planejadores militares como William J. Perry
(1991) e Owens (1996) dava conta de um processo de ruptura paradigmática o qual julgavam
estar em curso nos anos 1990.
Essa ruptura estaria ligada ao impacto da articulação do complexo tecnologia-doutrina-
organização, baseado na mudança do desenho das Forças Armadas em favor de plataformas
mais leves (valor brigada), com ênfase em operações expedicionárias, ancoradas na mobilidade
tática e estratégica. Tão importante como essas características, a jointness (interoperabilidade)
e a substituição de um modelo de força centrado em plataformas para aquele centrado em redes3
3 Ver Network-Centric Warfare (SLOAN, 2012).
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tornava possível consolidar mudanças organizacionais, como a adoção de uma força
profissional (SLOAN, 2008; COLLINS E FUTTER, 2015).
Quadro 1: características da mudança militar na RAM
Fonte: Elaboração propria, baseado em Sloan (2012).
Ambas as vertentes de mudança militar foram desenvolvidas com base na apreciação da
reestruturação da área de defesa e em particular das Forças Armadas dos Estados Unidos em
resposta à “síndrome do Vietnã”. Entre os anos de 1970 e 1980 os EUA passaram por uma
transição organizacional, doutrinária e tecnológica. O modelo de conscrição compulsória foi
substituído pelo voluntariado profissional, emergia a doutrina de Airland Battle (BENSON,
2012) e subjacente a esses processos, em sintonia com a Second Offset Strategy4 os Estados
Unidos incorporava tecnologias ligadas ao complexo C4ISR ao seu desenho de força.
A forma pela qual a vitória foi alcançada na Guerra do Golfo (1990-1991), em especial
por parte dos EUA, elevou o debate sobre Revolução dos Assuntos Militares como a principal
expressão e promessa da mudança militar. Não restrito aos debates acadêmicos, a RAM foi um
tema fundamental para políticas de defesa entre os anos 1990 e 2000 (COLLINS E FUTTER,
2015). No Brasil, o Exército entende Revolução dos Assuntos Militares como conceito que
4 Focadas em ciência, tecnologia e inovação, as estratégias de compensação foram iniciativas para manter a
superioridade dos EUA em relação à URSS.
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“expressa os efeitos multiplicadores da eficácia operacional de novos conceitos [operacionais],
capacidades, técnicas e equipamentos militares” (BRASIL, 2010, p. 46).
Apesar de considerar em seu escopo mudanças radicais de doutrina e a adaptação
organizacional, a variável central na RAM é a tecnologia. Segundo Howard (2004), por
exemplo, os advogados da RAM focam mais nos aspectos tecnológicos do que na dimensão
societal. Somado ao determinismo tecnológico, o RAM foi acusado de ser anti-clausewitziano,
em particular pela promessa tecnológica de superar a “névoa da guerra” tal como a “fricção”
no campo de batalha (PROENÇA JÚNIOR, RAZA E DINIZ, 1999). Contudo, o principal
desgaste da RMA como marca e modelo de mudança militar nos anos 2000 foi a experiência
das guerras do Afeganistão e Iraque. A crença no imperativo tecnológico como fator central
para a produção da vitória sofreu revezes quando da emergência da ameaça insurgente no
Iraque, tal como no Líbano em 2006 (SLOAN, 2012). Politicamente, existia um desconforto
com a concepção de ruptura e quebra paradigmática cara a RAM entre os planejadores de
defesa.
Apesar de ter saído do debate pública na década de 2000, muito em função do
predomínio da guerra irregular e de operações intensivas em pessoal, como a contrainsurgência;
características do debate sobre a RAM ainda estão presentes nos Estados Unidos (Third Offset
Strategy), mas também em antagonistas como Rússia (Reforma Miltiar) e China (Modernização
Militar). Umas das formas pela qual o conceito perpassou o tempo foi através da sua
metamorfose em Transformação Militar. Enquanto a RAM via a mudança militar como rápida,
radical e não controlada, a Transformação abraça a concepção de processo, mas com
consequências de descontinuidade (SLOAN, 2008). Se na RAM a mudança revolucionária
tornava obsoleta as competências anteriores, a Transformação teria a capacidade de manter
aquilo que funciona, mas mesmo assim criar novas capacidades (DAVIS, 2010, p. 11).
Segundo Sloan (2008), a Transformação se apoia no aumento descontínuo de
capacidades (discontinuous increase in capability), já a RAM concebe saltos descontínuos
(discontinuous leap) na efetividade militar. Ao lado dos conceitos de Revolução dos Assuntos
Militares e de Transformação Militar, a ideia de Modernização Militar surge como uma das
modalidades de mudança militar no século XXI (Covarrubias, 2005).
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Segundo Sloan (2008), a modernização está no campo das mudanças evolucionárias,
envolve melhoramentos incrementais nas capacidades necessárias para realizar missões já
desempenhadas. O Exército Brasileiro entende modernização como o “processo de
aprimoramento de estruturas organizacionais para que incorporem capacidades, técnicas e
equipamentos, a fim de melhorarem seu desempenho dentro de conceitos já estabelecidos”
(BRASIL, 2010, p. 46). Transformação, por outro lado, passa pela ideia de adquirir novas
capacidades para realizar não apenas missões tradicionais, mas novas. Para o Exército
Brasileiro, Transformação é o,
“processo de desenvolvimento e implementação de novos conceitos e
capacidades operacionais conjuntas, modificando o preparo, o emprego, as mentes, os
equipamentos e as organizações, para atender as demandas operacionais de um ambiente
sob evolução continuada” (BRASIL, 2010, p. 46).
Em síntese, “enquanto a modernização melhora as habilidades de executar missões de
acordo com os padrões existentes, a transformação das capacidades militares redefine os
padrões.” (SLOAN, 2008, p. 8). Ao passo que a RAM pressupõe ruptura via revolução, a
Transformação propõe aumentos descontínuos de capacidade, a Modernização se caracteriza
pela mudança evolucionária, envolvendo melhorias incrementais aptas a melhorar as estruturas
militares já em funcionamento (ANDREWS, 1998; SLOAN, 2008).
Quadro 2: Comparativo entre Revolução, Modernização e Transformação Militar
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Fonte: Elaboração própria, baseado em: Proença Júnior, Raza e Diniz, (1999), Covarrubias (2007), Sloan (2008),
Davis (2010), Collins e Futter (2015).
Historicamente, as Forças Armadas brasileiras, em particular o Exército, não seriam
alheios à Mudança Militar. A Missão Militar Francesa de 1919, a participação da Força
Expedicionária Brasileira na Itália (1944/1945), a reforma militar de Castelo Branco e as
mudanças organizacionais da Força Terrestre nos anos 1970 e 1980 (a FT-90 e FT-2000)
(SILVA, 2013) reforçam essa afirmação.
O anseio pela Transformação Militar está ligado à percepção de que os usos do poder
militar se tornaram mais complexos e múltiplos no pós-Guerra Fria. Atualmente, o Exército
enfrenta dois desafios fundamentais: realizar o seu processo de Transformação com vistas a se
adequar aos requisitos da guerra na Era da Informação e capacitar-se para atuar cada vez mais
em Operações no Amplo Espectro. Esses desafios vão além da modernização militar.
2. A TRANSFORMAÇÃO NOS DOCUMENTOS E PROJETOS DO EXÉRCITO
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O lançamento da Estratégia Nacional de Defesa (BRASIL, 2008) foi um evento
paradigmático para os desenvolvimentos do pensamento e capacidades militares do Brasil, pois,
“Pela primeira vez, o poder político tomou a si a responsabilidade de definir os
parâmetros que balizarão a evolução do segmento militar no contexto da estrutura de
defesa nacional, o que faz recair sobre as Forças renovadas atribuições, principalmente
no sentido de apresentar planejamentos com capacidade de respaldar e motivar decisões
políticas e econômicas por parte do Governo Federal. (BRASIL, 2010, p. 20).
No tocante ao Exército, o documento demandava para a Força a elaboração de planos
de estruturação e equipamentos, o que resultou no desenvolvimento da Estratégia Braço Forte
(BRASIL, 2010, p. 20). Podemos afirmar que é a partir do END que o Exército Brasileiro deu
o impulso inicial ao seu processo de mudança militar, o qual denominou Transformação. A
condição de obsolescência dos equipamentos e a urgente necessidade de incrementar as
capacidades operacionais do Exército foram endereçadas pela END vis-à-vis a um novo papel
que é a transformação das forças armadas como um instrumento de fortalecimento da política
externa soft power, intervenções humanitárias.
Não obstante a retórica de Transformação, em sua maioria, a END apontava caminhos
para cumprir melhor as missões já existentes. O perfil de mudança militar proposta pela END
é melhor caracterizada como modernização. A END consistia num ambicioso programa de
modernização militar, entre seus objetivos o aprimoramento das capacidades de monitorar o
ambiente terrestre, marítimo e aeroespacial, incrementar mobilidade estratégica e em particular
os setores nuclear, cibernético e espacial (IISS, 2010 p. 50). Com exceção do espaço
cibernético, a guisa de atribuições e missões já constavam do rol de ações desempenhadas pelo
Exército na época. A ênfase estratégica na Amazônia foi reforçada com a orientação de
reequipamento e mudança organizacional para melhor atender aos desafios de segurança da
região. Apontou-se a reorganização e reequipamento de unidades militares como forma de
incrementar a dissuasão, a flexibilidade, modularidade e a interoperabilidade (IISS, 2010, p.59).
Entre os objetivos, que denota a ênfase modernizadora mais do que transformação stricto sensu,
consiste no objetivo de com a END promover a capacitação tecnológica e desenvolver a sua
base industrial de Defesa (IISS, 2010, p. 50). Ou seja, a ênfase da Estratégia tem como eixo
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central o desenvolvimento (econômico, tecnológico e de capacidades), muito mais do que na
própria Transformação das Forças Armadas.
No âmbito internacional, dois eventos são percebidos como contribuindo para
desencadear a mudança militar. Primeiramente, percebia-se que a emergência do Brasil como
potência em ascensão e o aumento de seu prestígio internacional demandaria o incremento das
capacidades militares no sentido de lastrear os anseios político-estratégicos do país. O segundo,
entre os principais estímulos para o processo, destaca-se o impacto da liderança brasileira frente
à MINUSTAH como o que explicitou a urgência para o processo entendido pelo Exército
Brasileiro como Transformação. Segundo avaliação do Estado-Maior do Exército,
“A crise vivida no Haiti colocou em evidência a restrita capacidade de a Força
Terrestre projetar força e de fazer face a situações de contingência, o que poderia ter
colocado em risco nossa capacidade de manter o protagonismo entre os demais países
ali presentes […] ”. (BRASIL, 2010a, p. 17).
No âmbito doméstico, outros fatores são apontados como estopins para a mudança. De
um lado, apesar de ser um atributo constitucional, a crescente demanda política por Operações
de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) entre outras missões subsidiárias, por outro; o premente
desafio de adequar a Força aos limites orçamentários que se tornariam crescentes no decorrer
da de 2010. Diante dos estímulos externos e internos mencionados, o Exército Brasileiro, que
vivenciava problemas severos de obsolescência e necessidade de recuperação da capacidade
operacional, viu na Estratégia Nacional de Defesa uma janela de oportunidade para a mudança
militar, cuja tônica central era realizar a transição de uma força da Era industrial para a Era do
Conhecimento.
No esteio do processo de mudança, um conjunto de documentos foram emitidos no
sentido de orientar a Transformação do Exército. Em maio de 2010 foi lançado o “O Processo
de Transformação do Exército” (BRASIL, 2010a). Entre os argumentos que justificavam o
processo, destacamos o objetivo de elevar as capacidades do Exército para respaldar os
objetivos de projeção internacional do Brasil (BRASIL, 2010). Para tal efeito, a mudança
militar era vista como devendo ser perseguida através do conceito de Transformação, pois a “A
solução para a necessidade de manter o preparo e o emprego do Exército à frente dos novos
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desafios é, então, encontrada no conceito de transformação, pois exige o desenvolvimento das
novas capacidades para cumprir novas missões.” [grifo nosso] (BRASIL, 2010, p. 9).
A concepção de Transformação do Exército Brasileiro sobre se inspira diretamente na
reflexão de Covarrubias (2007), segundo o qual existiriam três níveis distintos de mudança
militar: adaptação, modernização e transformação. De acordo com o Estado-Maior do Exército
(BRASIL, 2010, p.10), os “pontos que marcam uma transformação” poderiam ser sintetizados
em: transição da estrutura de paz para guerra; compressão operativa; interoperabilidade;
desenvolvimento dos sistemas de armas e gestão da informação.
O entendimento do Exército sobre transformação se inspira nas experiências chilena e
espanhola. A seleção dos casos para estudo é curiosa. O Chile tem uma força armada orientada
fortemente para a defesa externa, dotada de recursos perenes para a aquisição e modernização
de equipamentos (lei do cobre) e não possui a densidade e profundidade estratégica semelhante
a brasileira. A Espanha, por sua vez, além da diferença territorial, sofre influência da OTAN na
estruturação das suas forças, que, per si é um condicionante de mudança militar. O país ibérico
tem que seguir direções de uniformização doutrinária, equipamentos e formas de emprego da
força, demandados para operações combinadas da aliança atlântica. Ademais, por participar da
aliança militar o perfil expedicionário é fundamental. Um outro fator é que ambos têm
orçamentos mais equilibrados que o brasileiro.
Entre os pontos comuns da análise dessas experiências, evidenciados como aprendizado
para o Exército Brasileiro, apontamos como as principais: Transformação como resposta a
mudança de realidades (política-estratégica); racionalização das “estruturas operacionais”;
“modernização da gestão” e “busca por racionalização administrativa”; doutrina como “motor
da transformação”; interoperabilidade; “diminuição do nível em que se processará a integração
dos sistemas de armas”; logística conjunta; adoção de equipamentos modernos e
desenvolvimento em C&T acompanhado da redução dos efetivos; inclusão das operações de
paz “no conjunto das principais missões dos Exércitos do futuro; investimento e
desenvolvimento nos recursos humanos” (BRASIL, 2010, p. 16).
Com base nas avaliações e diagnósticos do Estado-Maior, em “O Processo de
Transformação do Exército” (BRASIL, 2010) é apresentado como a instituição entende por
transformação:
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“O conceito de transformação surgiu na década de 1970, a partir da discussão
sobre Evolução em Assuntos Militares (EAM) e Revolução em Assuntos Militares
(RAM), combinando dinâmica do progresso gradual com a necessidade de
periodicamente se romper paradigmas na busca da plena capacidade de superar
oponentes e cumprir missões. Com o surgimento das novas tecnologias relacionadas ao
processamento e transmissão de dados, à robótica e aos sistemas de armas, firmou-se a
tendência de sistematizar as ações necessárias para o aproveitamento militar dessas
vantagens potenciais, por intermédio do processo de transformação. Tecnologia da
informação, cibernética, capacidades espacial e nuclear, nanotecnologia, robótica,
C4ISR, biotecnologia, são alguns dos parâmetros com os quais as forças militares estão
se deparando nos conflitos atuais e nos visualizados para o futuro.” (BRASIL, 2010, p.
10).
Destacamos no trecho acima que apesar do estudo das experiências chilena e espanhola
apresentarem a relevância de mudança nas dimensões organizacional e doutrinária, a ênfase no
entendimento do Exército Brasileiro sobre Transformação se dá na dualidade entre capacidades-
missões, cujo foco recai na tecnologia e meios dela derivados como potencializadores da ação
militar. Dessa forma, a Transformação é concebida de forma reducionista, atrelada a uma
vertente ancorada na tecnologia como indutora da mudança militar. Destaca-se que o
entendimento institucional sobre transformação militar do Exército está muito próximo daquilo
que Sloan (2008) chama de abordagem focada na RAM. Esta interpretação, verifica-se na
Portaria Nº 075 do Estado-Maior do Exército de junho de 2010. Nela foi aprovada a diretriz
para implantação do Processo de Transformação do Exército Brasileiro (BRASIL, 2010b).
Destacamos entre os objetivos os que seguem: “a. Promover a transformação do Exército,
trazendo-o de uma concepção ligada à era industrial para a era do conhecimento.” e “b.
Proporcionar ao Exército o desenvolvimento das capacidades requeridas pela evolução da
estatura político-estratégica do Brasil.” (BRASIL, 2010b, p. 1-2).
Baseada na END (BRASIL, 2008) como antecedente do Projeto de Força, no ano de
2012 foi publicado o PROFORÇA (BRASIL, 2012). O referido projeto foi produzido em
decorrência da Estratégia BRAÇO FORTE (EBF/2009)5, resposta do Exército às demandas de
5 A EBF era “constituída por 02 (dois) Planos – Articulação e Equipamento – desdobrados por sua vez em 04
(quatro) Programas – Amazônia Protegida e Sentinela da Pátria (Articulação); e Mobilidade Estratégica e
Combatente Brasileiro (Equipamento) – dos quais derivaram 824 projetos.” (BRASIL, 2012, p.12).
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modernização da END (BRASIL, 2008). Segundo o Projeto de Força do Exército Brasileiro
(PROFORÇA),
“As novas capacidades a serem adquiridas e as estratégias a serem adotadas
proporcionarão o salto estratégico necessário e devem ser consolidadas em um projeto
de força que estabeleça requisitos militares (capacidades) e proponha arranjos de Força
(estrutura organizacional, articulação, equipamento, logística e preparo), considerando
as limitações orçamentárias. (BRASIL, 2012, p. 3)
A contextualização e justificativa do referido Projeto de Força está ligado a um
determinado entendimento sobre a mudança nos padrões dos conflitos armados na Era do
Conhecimento. Segundo o documento, a evolução dos conflitos armados impulsionaria
modificações na estratégia, especialmente pela necessidade de combater não apenas guerras de
alta intensidade travadas com equipamento de emprego militar de alta tecnologia, como
também guerras assimétricas e irregulares (BRASIL, 2012, p. 5).
Somando-se aos entendimentos da Estratégia Braço Forte e do PROFORÇA foi lançada
em 2013 o documento “Base para a Transformação da Doutrina Militar Terrestre” (BRASIL,
2013a). No âmbito do processo de Transformação, o texto “destina-se a orientar a introdução
de concepções e conceitos doutrinários com vistas à incorporação, na Força Terrestre, das
capacidades e das competências necessárias ao seu emprego na Era do Conhecimento.”
(BRASIL, 2013a, p. 7). Sua principal implicação para as operações terrestres seria a que segue:
“2.2.1 Coerente com o ambiente operacional, o Processo de Transformação do
Exército objetiva dotar a Força de novas competências e capacidades, objetivando
preparar suas tropas para o cumprimento de missões e tarefas na Era do Conhecimento.
A obtenção dessas competências e capacidades é fundamental para que uma Força
Terrestre possa atuar em todo o Espectro dos Conflitos, alcançando o efeito dissuasório
que devem ter as Forças Armadas de um país.” [grifo nosso] (BRASIL, 2013a, p. 12).
No mesmo ano de 2013 foi divulgada a “Concepção de Transformação do Exército
(2013-2022)”, apresentado como “documento orientador do Processo de Transformação do
Exército Brasileiro” (BRASIL, 2013b, p. 8). No documento se consolida o entendimento,
coerente com a visão canônica na literatura, de que transformação consiste em desenvolver
novas capacidades para poder cumprir novas missões em operações de paz ou guerra. O “novo”
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nesta concepção consistiria em converter o Exército a uma força calcada da “Era do
Conhecimento”. Para tal efeito, um elemento que se destaca são os “indutores da
transformação”6, calcados em capacidades, normalmente associadas a programas e projetos
estratégicos focados em equipamentos. Segundo o Catálogo de Capacidades do Exército
(BRASIL, 2015), afirma que “Capacidades Operativas (CO)”7,
“É a aptidão requerida a uma força ou organização militar, para que possam
obter um efeito estratégico, operacional ou tático. É obtida a partir de um conjunto
de sete fatores determinantes, inter-relacionados e indissociáveis: Doutrina,
Organização (e/ou processos), Adestramento, Material, Educação, Pessoal e
Infraestrutura - que formam o acrônimo DOAMEPI.” (BRASIL, 2015, p. 7)
A definição acima é útil para ilustrar como, apesar da concepção de capacidades
comportar vários vetores, dentre os quais ligados a fatores organizacionais e doutrinários, os
programas e projetos prioritários para o processo de Transformação se baseiam no pilar
tecnológico. Por exemplo, a “A Estratégia Braço Forte, em sua estrutura principal, constou de
823 projetos organizados em quatro grandes programas, a serem desdobrados em curto, médio
e longo prazos (2014 – 2022 – 2030). (BRASIL, 2010, p. 43). No tocante aos dois programas
da EBF, o “Programa Amazônia Protegida” se destacava pela implantação do SISFRON, pela
reestruturação das Brigadas de Selva e a modernização de sistemas operacionais. O “Programa
Sentinela da Pátria” voltava-se à reestruturação das Brigadas e Comandos Militares de Área
(BRASIL, 2010, p. 43).
A mesma ênfase na tecnologia como indutora da Transformação é observada nos
Programas Estratégicos do EPEx: SISFRON, PROTEGER, ASTROS 2020, GUARANI,
PROTEGER, DEFESA Cibernética, Aviação do Exército e Defesa Antiaérea. No contexto do
Portfólio Estratégico do EB, os programas considerados como “indutores da transformação”,
estão no subportifólio “Defesa da Sociedade”8. Como forma de alcançar autonomia estratégica
6 Os indutores da transformação estão relacionados fundamentalmente a programas e projetos estratégicos capazes
de avançar o processo de transformação. Os “Vetores de Transformação” são de ordem mais ampla, transcendendo
a dimensão tecnológica. São eles: Doutrina; Preparo e Emprego; Educação e Cultura; Gestão de Recursos
Humanos; Gestão Corrente e Estratégica, C&T e Modernização do Material; Logística” (BRASIL, 2010, p. 31). 7 Sugerimos a leitura da lista de CMT e CO em Brasil (2015, p. 21). 8 Abaixo deles, no subportfólio “Geração de Força”, que abarcam outros vetores para além da tecnologia.
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e desenvolver a base industrial de defesa, os programas acima possuem em sua concepção a
produção doméstica e/ou a participação de empresas brasileiras no desenvolvimento e produtos
de defesa. Entretanto, no esteio dos problemas econômicos vividos pelo país, o prazo planejado
para finalização e entrega dos produtos do portfólio sofreu ajustes substantivos.
Figura 1: Recursos dos Programas Estratégicos do Exército (2011-2041)
Fonte: CEEEX, Centro de Estudos Estratégicos do Exército . “A concepção estratégica do exército e os projetos
decorrentes”. XIV CADN, 27.Jul. 2017. Disponível em:
https://www.defesa.gov.br/arquivos/ensino_e_pesquisa/defesa_academia/cadn/palestra_cadn_xi/xiv_cadn/a_con
cepcao_estrategica_do_exercito_brasileiro_e_os_projetos_decorrentes.pdf. Acesso em 15 ago 2018.
O ritmo de aquisições e injeção de recursos nos programas estratégicos vem sendo
afetado pela deterioração das condições econômicas desde 2011 (IISS, 2017). Em 2015, por
exemplo, cerca de 24% do orçamento da pasta da Defesa para aquisições foi cortado9 (IISS,
2015, p. 371-372). No mesmo ano, os fundos para aquisições para o Exército estavam cerca de
56% abaixo do necessário de acordo com o Comandante da força (IISS, 2015, p. 368). O
9 Contudo, destacamos que o orçamento brasileiro não é baixo, mas fortemente impactado pelos gastos
previdenciários.
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orçamento destinado ao SISFRON, por exemplo, sofreu cortes de 42% em 2015. A redução de
recursos disponíveis para a Defesa persistiu na mudança de governo de Rousseff para Temer,
em que em 2017 foram reduzidos cerca de 30% da verba para aquisições militares, levando ao
atraso de vários programas (IISS, 2018, p. 377).
Como se observa, ao discutir os grandes programas da Força, tal como a vertente de
equipamentos, as expressões “modernização”, “reestruturação”, “completar” e “equipar”
evidenciam como o prolongado quadro de obsolescência no tocante a equipamentos induz ao
enfoque tecnológico e material como representativo daquilo que o Exército percebe como
Transformação. Mediante o quadro de dificuldade orçamentária descrito acima, o perfil das
aquisições de grandes sistemas de armas por parte do Exército entre 2009 e 2017 ilustra a
predominância da ênfase modernizadora em detrimento da transformação.
QUADRO 3: Transferência de Armas para o Exército Brasileiro (2009 a 2017) 10.
Fornecedor Designação Descrição Ano de
Entrega
Quantidade
entregue
França EC725 Super Cougar Helicóptero de transporte 2010-
2017
28
Alemanha BPz-2 Veículo blindado de recuperação ( ARV) 2009 7
BrPz-1 Biber Viatura Lançadora de Ponte (ABL) 2009 4
Leopard-1A5 Carro de Combate 2009-
2012
220
Leopard-1 chassis Chassi de Carro de Combate 2009 4
PiPz-2 Dachs
Viatura Blindada Especializada de
Engenharia (AEV)
2009 4
BPz-2 Veículo blindado de recuperação (ARV) 2012 2
BrPz-1 Biber Viatura Lançadora de Ponte (ABL) 2012 1
PiPz-2 Dachs Viatura Blindada Especializada de
Engenharia (AEV)
2012 1
Gepard Viatura blindada de combate anti-aéreo
(SPAAG)
2013-
2015
34
10 Selecionamos no Quadro apenas aquisições posteriores a publicação da Estratégia Nacional de Defesa (BRASIL,
2008).
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Israel UT-25/UT-30 Torreta de veículo de combate de infantaria
(IFV)
2014-
2016
30
Itália VBTP Guarani
Veículo blindado de transporte de pessoal
(APC)
2012-
2017
314
Rússia Igla-S/SA-24
SAM Portátil11 2010-
2012
300
Igla-S/SA-24 SAM Portátil 2015-
2016
130
Suécia RBS-70 Mk-3 Bolide SAM Portátil
Suiça Fieldguard Sistema de Controle de Tiro Ativo 2014-
2017
5
EUA S-70/UH-60L Helicóptero 2011 4
S-70/UH-60L Helicóptero 2012 6
6V-53 Motor a Diesel 2013-
2015
150
-M-109A5 155mm Obuseiro autopropulsado 2017 4
M-109A5 155mm Obuseiro autopropulsado 2015 4
6V-53 Motor a Diesel 2015 ---
M-113 Veículo blindado de transporte de pessoal
(APC)
2016 46
M-88 Veículo blindado de recuperação (ARV) 2016 4
M-109A5 155mm Obuseiro autopropulsado 2017 ----
Fonte: SIPRI, SIPRI Arms Transfers Database, 2018. Disponível em:
http://armstrade.sipri.org/armstrade/page/trade_register.php.
Empreendimentos como o “Projeto Estratégico do Exército de Recuperação da
Capacidade Operacional” (PEE RECOP) expressam bem a vertente de modernização e
recomposição de capacidades. Essa inferência é reforçada ao se observar que os “três
Pressupostos Básicos condicionarão a transformação”, apesar da retórica de Transformação,
consiste apontam apenas em fazer melhor aquilo que já consta como missão: a valorização do
11 Surface-to-air missile), míssil superfície-ar.
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Serviço Militar Obrigatório, a manutenção da Estratégia da Presença e a preservação dos
valores e tradições do Exército.” (BRASIL, 2010, p. 43).
Enquanto que os estímulos externos para a transformação apontam para a necessidade
de criação de capacidades de projeção de poder, os estímulos domésticos impõem mais
enfaticamente a adaptação e modernização do Exército para o cumprimento de missões outras
que não a guerra. Ao passo que o Exército pensava e estruturava aquilo chamada de
Transformação, aumentavam as demandas domésticas para o emprego da força em operações
de segurança interna e segurança pública. Como evidenciado pelo “Plano Estratégico de
Fronteiras” de 2011 (IISS, 2014), ao invés de considerar a ênfase das fronteiras oeste e norte
no escopo de “novas missões”, as ações de vigilância e monitoramento de fronteiras estão mais
no escopo já existente das missões subsidiárias e constabulares das forças. Mudanças
organizacionais, como o desmembrando do Comando Militar da Amazônia para o Comando
Militar do Norte, atende mais a requisitos da potencialidade do emprego da força para operações
de law-enforcement do que a sua transformação num Exército da Era do Conhecimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme pudemos averiguar, desde o lançamento da Estratégia Nacional de Defesa
(BRASIL, 2008) o Exército Brasileiro tem buscado pensar a sua Transformação Militar em
termos estratégicos e doutrinários. Contudo, predomina nos documentos orientadores do
processo uma visão que aponta a um peso desproporcional da vertente tecnologia-meios-
equipamentos como esteio central do processo de Transformação, confundindo-o com a
perspectiva reducionista de RAM (SLOAN, 2008). Somado a essa questão da aposta
tecnológica como salvação, a própria preocupação na reposição de equipamentos em estágio de
obsolecência e recuperar a capacidade operacional afeta o processo de mudança militar no
sentido de modernizar, e não transformar.
Não obstante seja possível detectar várias iniciativas no sentido de reequipar e
reorganizar o Exército desde a END, a busca pela capacitação tecnológica se destacacou,
inclusive pela própria conexão estabelecida na END entre defesa e desenvolvimento. Apesar de
importante, a preocupação com a aquisição de expertise em ciência, tecnológia e inovação no
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âmbito da Base Industrial de Defesa afastou o Exército da urgência em dotar a força de
capacidade operacional nos termos daquilo que considera como Era do Conhecimento. Embora
nos documentos analisados a relação entre novas capacidades e novas missões esteja presente
no sentido retórico, as missões elencadas não são novas em sua essência.
Enquanto que a preocupação com a tecnologia foi central na concepção de
Transformação do Exército, a doutrina foi vista como produto do processo de transformação,
discutida no documento “Bases para Transformação da Doutrina Militar Terrestre” (BRASIL,
2013) e mais recentemente na “Concepção Estratégica do Exército” (BRASIL, 2017), ambas
parte do SIPLEx. No campo doutrinário, o Processo de Transformação do Exército evidencia o
seu aspecto modernizador quando confrontamos a doutrina da força e as plataformas previstas
nos programas estratégicos. Se de um lado preferem-se plataformas pensadas para promover
efeito dissuasório com meios convencionais, cada vez mais se adapta a doutrina e meios para o
emprego da força em desgastantes operações outras que não a guerra, como GLO, pacificação
entre outras.
A dimensão organizacional, fundamental na literatura sobre Transformação Militar,
recebeu uma ênfase marginal nos documentos analisados. Isso não é menos importante, pois a
pressão por recursos no contexto de escassez tem na mudança organizacional possíveis
respostas para criar condições efetivas para a transformação. Países como EUA, China, Rússia
entre outros realizam processos profundos de mudança organizacional (Downsizing,
profissionalição, racionalização, entre outros) como forma de possibilitar as dimensões
tecnológicas e doutrinárias da transformação. Na experiência brasileira, mesmo no contexto de
severas restrições orçamentárias, que impactam na redução do ritmo de processos de
modernização e aquisição, a estrutura de gastos do Exército (pessoal ativo e reserva) não foi
seriamente enfrentada (IISS, 2017).
Concluímos que apesar do uso do conceito de Transformação, os pressupostos que
sustentam o processo de Transformação do Exército implicam predominantemente em fazer
melhor aquilo que já é feito. Em síntese, a concepção de mudança militar predominante
encontrada na análise não é nem de Transformação ou RAM, mas sim de modernização.
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