O papel do narrador de “Cinzas do Norte”, de Milton Hatoum ... · Ranulfo por acaso, ao...
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O papel do narrador de “Cinzas do Norte”, de Milton Hatoum, como representação das
tensões em períodos de transição
Marcia Geralda de Almeida
(Universidade Estadual de Maringá/UEM)
Resumo: partindo da reflexão de Antônio Candido acerca da relação entre o valor estético da
obra literária e o fator social, este trabalho propõe evidenciar como o papel do(s) narrador(es)
de Cinzas do Norte, de Milton Hatoum, pode revelar-se como entrelaçamento entre o externo
(social) e o interno, ou seja, o fator social como constituinte do valor estético. Se por um lado
é pela perspectiva de Olavo que a história chega ao leitor, é por meio das memórias presentes
nas cartas de Ranulfo (sem as quais a história perderia o sentido) que o leitor toma
conhecimento de um passado anterior ao que é narrado por Olavo. Essa dupla perspectiva da
narração, que perpassa todo o romance, parece criar uma tensão em dois sentidos.
Primeiramente, pode representar a dualidade do momento histórico de transição vivido pelos
personagens, isto é, o desejo e a resistência ao progresso econômico a qualquer custo, na
Amazônia, e os conflitos sociais decorrentes desse progresso, bem como a tensão política
devido à opressão militar e à ditadura. Em segundo lugar, há um contraste entre o
posicionamento dos personagens, já que as cartas de Ranulfo revelam apego ao passado,
enquanto a postura de Olavo é de incorporação e até mesmo de apatia diante de um progresso
inevitável.
Palavras-chave: Cinzas do Norte; narrador; fatores sociais; valor estético;
Abstract: based on the reflection from Antonio Candido about the relaction bettween the
aesthetic value from the literary text and the social factors, this study purposes to evidence how
the role of the narrator from Cinzas do Norte (Milton Hatoum) can work as interlancing
betttween external (social) and internal aspects, that is the social fator as constituent of aesthetic
value. If on the one hand, it is through the Olavo’s perspective that the story reacher the reader,
it is through the memories presente in Ranulfo’s letters (without which the story loses its
meaning) that the reader becomes aware of a past that is anterior to what is narrated by Olavo.
This double narration perspective, which runs through the whole novel, seems to create a
tension at different levels. Firstly, it can represent the duality of the historical moment of
transition lived by the characters, that is, the desire and resistance to economic progress at any
cost in the Amazon, and the social conflicts resulting from that progress, as well as the political
tension due to military oppression and the dictatorship. Secondly, there is a contrast between
the positioning of the characters, since Ranulfo's letters reveal attachment to the past, while
Olavo's stance is one of incorporation and even apathy in the face of inevitable progress.
Key-words: Cinzas do Norte; narrator; social factors; aesthetic value.
Valor estético em Cinzas do Norte: inquietações provocadas por Antonio Candido
Este trabalho é fruto de inquietações provenientes do conceito de valor estético proposto
por Antonio Candido (2006), em seu texto Literatura e sociedade, em que evidencia que os
fatores sociais são parte constituinte do valor estético da obra literária. Tal inquietação deve-se
à dificuldade de perceber, de maneira concreta, os mecanismos internos da obra que remetem
ao contexto social. Aliás, de acordo com Candido, mais do remeter ao contexto social, a estética
da obra permitiria (re)construir o contexto social ao qual ela está vinculada. Embora o autor
seja bastante didático, inclusive por meio do exemplo sobre o romance “Senhora” de José de
Alencar, percebemos certa dificuldade em explicar como essa teoria se aplica a outros
romances, o que gerou questionamentos e o desafio de tentar aplicar essa teoria ao romance
Cinzas do Norte, de Milton Hatoum.
Entre os questionamentos suscitados pela leitura do texto de Antonio Candido,
destacamos a dificuldade de distinguir em que medida o fator social constitui valor estético e
quando ele é apresentado na obra como mero pano de fundo ou representação da realidade, ou
ainda extensão metafórica. Nesse sentido, colocamos as seguintes questões: é coerente
considerar que na obra em que o aspecto social aparece como mero pano de fundo, o valor
estético é menor? Por outro lado, a percepção desse valor estético depende do leitor ou é o
crítico que deve fugir da armadilha de uma análise simplista e equivocada dos aspectos sociais?
Para Candido, considerar os aspectos sociais de uma obra literária como parte do valor
estético é fazer crítica sociológica que, diferente da sociologia da literatura, tem como foco a
arte literária. Esse é o desafio ao qual nos propomos, isto é, verificar como o conceito de
Candido é, sim, aplicável a outras obras, de um modo concreto, além de demonstrar o valor
estético produzido pelos aspectos sociais no romance Cinzas do Norte. Propomos demonstrar
que o fator social constitui o valor estético do romance, na medida em que há diferentes
perspectivas acerca da mesma história, dentro do contexto ditatorial, o que se reflete na
construção dos personagens e na estrutura da obra. No que se refere à questão estrutural do
romance, partiremos do princípio de que a narração de Olavo não é intercalada pelas cartas de
Ranulfo por acaso, ao contrário, essa estrutura corrobora o contexto social da narrativa de
Milton Hatoum.
O contexto social como constituinte do valor estético
O romance Cinzas do Norte (2005), de autoria do escritor amazonense Milton Hatoum,
é narrado pelo personagem testemunha chamado Lavo (cujo nome é Olavo), mas a sua narrativa
é entremeada por cartas que contam uma parte da história cujas memórias ele não possui. Mais
tarde sabe-se que as cartas são escritas pelo tio de Lavo, Ranulfo (ou tio Ran), o qual era
apaixonado por Alícia Mattoso, mãe de Mundo (Raimundo) e esposa do empresário Trajano
Mattoso (Jano).
Por meio das memórias entrelaçadas desses dois narradores, a história constrói-se, aos
poucos, aos olhos do leitor. Lavo narra a história de seu grande amigo de infância, Mundo, o
qual vive em constante conflito com o pai, Trajano, em virtude de suas divergências de
pensamento e visões de mundo. Jano, um homem autoritário e tradicionalista, deseja que
Mundo seja seu sucessor nos negócios da família, porém, contra as concepções do pai, Mundo
deseja ser artista. Alícia, por sua vez, é apresentada como uma mulher ambiciosa e de gênio
forte, a qual sempre enfrenta Jano para defender o filho; embora seja casada, ela mantém um
romance com Ranulfo, um artista decadente, visivelmente, avesso à dinâmica capitalista que
leva uma vida boêmia. Lavo é órfão, pois seus pais morreram em um acidente de barco, e por
isso vive com os tios Ramira e Ranulfo, mas sempre visita o amigo Mundo e seus pais, os quais
lhe têm grande apreço.
Da maneira como são construídos, esses personagens são muito intensos em suas ações
e sentimentos, o que faz com que a narrativa seja permeada por um clima de tensão; essa tensão
está presente também no contexto histórico da trama, isto é, o período militar.
Em sua dissertação, Flávia Vicenzi pontua que no enredo de Cinzas do Norte
[...] o país está atravessando um momento crítico, o da ditadura militar, o que
leva a acirrar, no plano cultural, a reflexão sobre questões de cunho político-
social. Em 1964, a realidade brasileira sofre uma traumática transformação
com o golpe militar e o fim da democracia. No plano econômico, o país
atravessa uma fase de grande crescimento, foi a época do chamado milagre
econômico, em que o governo incentivou as exportações e atraiu o capital
estrangeiro, permitindo um impulso no desenvolvimento industrial e agrícola.
[...] Para a imprensa e as artes foi um período de forte censura. Os jornais não
podiam publicar nada que fosse inconveniente ao governo. Filmes, peças
teatrais, músicas foram proibidos, só circulavam após alterações. Livros de
Che Guevara e Lênin foram retirados do mercado (VICENZI, 2009, p. 45;46).
O contexto histórico que perpassa a obra, atrelado a aspectos sociais, é relevante para
nossa análise, na medida em que pretendemos verificar a relação dos fatores sociais com o
valor estético de Cinzas do Norte, a partir dos conceitos do crítico literário Antônio Candido.
Previamente, reconhecemos não ser tarefa fácil definir essa relação, que parece ser facilmente
reconhecível, mas traz consigo a armadilha de delimitar-se a uma análise superficial, que
considere o aspecto social como mera representação, ou como extensão metafórica da obra e
não como valor estético.
Antonio Candido (2006) defende a ideia de que uma boa crítica literária precisa
considerar uma fusão entre texto e contexto, de maneira dialética, para que a obra literária possa
ser compreendida em sua totalidade e não esteja restrita a teorias pré-estabelecidas. Nesse
sentido, tanto os aspectos internos quanto os externos são relevantes para a interpretação, e não
há uma primazia entre eles.
Candido ressalta a importância de compreender que o aspecto externo (social) não pode
ser entendido como mera representação da realidade, mas para além disso, esse aspecto compõe
a estrutura da obra e acaba tornando-se um aspecto interno. Para ele, uma análise que não
considere essas questões não constitui crítica sociológica da literatura, mas sociologia da
literatura, a qual não tem relação com a estética.
A partir dos questionamentos de Lukács, Candido propõe verificar se o aspecto social
apenas oferece elementos que conduzem ao valor estético de uma obra, ou se ele é determinante
para a estética da obra de arte. Pensando a questão, o crítico literário apresenta como exemplo
o romance Senhora, de José de Alencar, pois, segundo ele, o duelo entre Aurélia e o marido
comprado é transposto para a estrutura do livro na forma do mecanismo de compra e venda
(por meio dos recuos e avanços, concessões e restrições). Partindo da mesma ideia de Candido,
Silva (2009) esclarece que afirmar que o casamento por interesse era comum no século XIX,
não se configura como crítica literária, mas sim usar o texto literário como mero exemplo do
fato social, ou seja, é cair na armadilha de tratar o contexto social da obra como mera
representação da realidade, desconsiderando sua relação com a estética da obra.
Candido pontua que a corrupção humana, em virtude dos mecanismos capitalistas, “não
é afirmada abstratamente pelo romancista, nem apenas ilustrada com exemplos, mas sugerida
na própria composição do texto e das partes” da obra (Candido, 2006, p.16). Isso significa
entender o aspecto social como constituinte do valor estético, ou seja, é análise crítica, é a
“dimensão social como fator de arte” (Candido, 2006, p.17); sob esse ponto de vista, o externo
torna-se interno.
Além de Vicenzi (2009), outros pesquisadores se desdobraram sobre as várias
possibilidades de interpretação do romance Cinzas do Norte, que na qualidade de arte literária
não se esgota, mas permite sempre novas reflexões. Assim, Souza (2014) propõe refletir acerca
da fragmentação do enredo no romance que, segundo ela, é evidenciado pela alternância das
vozes narrativas de Olavo e Ranulfo, por meio de suas cartas; essa alternância “[...] promove
quebras cronológicas e cria uma [...] tensão estrutural-cronológica” (SOUZA, 2014, p.6-7).
A perspectiva de Pimentel (2012), por sua vez, parte do princípio de que a narrativa de
Hatoum constrói-se por meio do testemunho, o qual é entendido no trabalho da autora como
uma forma de resistência, isto é, de impedir que uma memória coletiva (como é o caso da
ditadura) ou individual seja apagada. Segundo essa pesquisadora,
[...] O narrador do romance, Lavo, busca recuperar a memória de Mundo,
personagem que, depois de sofrer fortes repressões do pai e da ditadura, falece
sem ter podido, devido à sua dificuldade com as palavras, escrever sobre os
acontecimentos vividos. A narrativa de Lavo, entretanto, é entremeada por
uma outra, redigida por Ranulfo, de forma que a história de Mundo e sua
época é apresentada sob duas perspectivas (PIMENTEL, 2012, p.5).
É certo que muitos outros estudos acerca do romance Cinzas do Norte abordam outros
aspectos da obra, mas, tendo em vista nosso objetivo de análise, por ora, os estudos
mencionados serão utilizados para subsidiar as reflexões deste trabalho. Partiremos dessas
propostas acerca da posição do narrador para corroborar o valor estético do romance, segundo
o conceito de Antonio Candido. A partir dessas observações, propomos que as relações sociais
entre os personagens de Cinzas do Norte são tão intensas que se transfiguram na estrutura
interna da obra; além disso, o contexto histórico presente no romance compõe e intensifica
essas tensões.
A narração de Olavo (e Ranulfo): tecendo a trama e construindo o valor estético de Cinzas
do Norte
Antes de tratar da análise do romance, enfatizamos que o valor estético constituído pelo
aspecto social transcende a extensão metafórica ou representação da realidade. Diferente do
valor estético, a extensão metafórica é apenas um meio de reforçar o enredo. Em Cinzas do
Norte, por exemplo, a destruição do espaço e do ambiente que terminam “em cinzas” (assim
como o campo de cruzes do Eldorado) pode ser entendida como extensão metafórica para a
destruição da família de Trajano e Alícia, mas não constitui valor estético fundado nos fatores
sociais, segundo o conceito de Candido; na condição de extensão metafórica, a destruição do
ambiente apenas reforça a dissolução da instituição familiar (uma das marcas do romance
moderno, segundo Ferenc Fehér), que seria o mote principal da narrativa. Entretanto, diferente
do que propõe Fehér (1972), Cinzas do Norte não parte da dissolução da família, pois a
deterioração das relações familiares é construída ao longo do romance, por meio das crises
entre o casal (Alícia e Trajano) e a relação conturbada entre pai e filho (Raimundo e Trajano).
Por outro lado, é importante considerar que, apesar de a construção narrativa de Cinzas
do Norte colocar em evidência os dramas individuais, deixando o contexto social em segundo
plano, isso não nos permite desconsiderar que o indivíduo é constituído a partir do contexto
social no qual está inserido, e isso traz implicações que reverberam no comportamento e
cosmovisão individual. Por esse motivo, ainda que o romance de Hatoum coloque o contexto
histórico entremeado pelo drama familiar, o ponto de vista do crítico Antonio Candido é
coerente, uma vez que estamos tratando de arte literária, e portanto, importa-nos a maneira com
a qual o autor constrói a narrativa (seus personagens, espaço e etc) e os efeitos produzidos por
essa construção artística. Não se trata, pois, de um livro de história, mas sim arte literária, cuja
forma e conteúdo não podem ser dissociadas.
Os pressupostos de Candido podem ser subsidiados pelas considerações de Lukács
(2010), o qual destaca a importância de a obra de arte produzir personagens, tendo em vista os
diversos aspectos que o vinculam ao contexto social da realidade. Ainda sobre a composição
do personagem, o autor acrescenta que
Os fenômenos típicos e universais devem ser, ao mesmo tempo, ações
específicas, paixões individuais de homens determinados. O artista inventa
situações e meios expressivos através dos quais torna-se evidente que as
paixões individuais transcendem os limites do mundo puramente individual.
É este o segredo para elevar a individualidade à tipicidade sem privá-las dos
traços individuais, mas, ao contrário, intensificando-os (LUKÁCS, 2010,
p.191).
Com base nas palavras desse crítico marxista, consideramos que, embora haja uma
focalização subjetiva no romance de Milton Hatoum, os aspectos sociais e históricos estão
presentes na composição e visão de mundo dos personagens. Opostamente a romances que não
fazem menção ao contexto da obra, tal como ocorre com alguns romances psicológicos, em
Cinzas do Norte, esse aspecto perpassa toda a narrativa e transforma a vida desses personagens,
conforme percebemos no excerto a seguir, em que o narrador fala de seu tio Ranulfo, sua visão
de mundo, bem como as consequências do contexto sócio histórico do romance.
Lembro do natal triste de 1960, quando ele chegou calado e, em vez de entrar
em casa, trepou numa castanheira e ficou empoleirado lá em cima, fumando
tabaco de corda e olhando para a ribanceira e para o igarapé dos Cornos. Fora
demitido da rádio Rio-Mar: os padres que dirigiam a estação julgaram que
seu programa semanal Meia-Noite Nós Dois se tornara insensato e obsceno
demais. Mas tio Ran se orgulhava do único trabalho que lhe dera prazer e o
fizera conhecido na capital e no interior do Amazonas. “De qualquer forma”,
disse ele anos mais tarde, “depois do golpe militar iam acabar me demitindo:
os censores dessa panaceia não iam aturar meus comentários políticos, muito
menos minas histórias de amor no meio da madrugada” (HATOUM, 2005,
pp. 27-28).
O romance Cinzas do Norte é contado pelo narrador homodiegético Olavo (Lavo), um
advogado que passou a infância e parte da adolescência ao lado do amigo Mundo e sua família
e, por isso, carrega consigo as marcas e impressões das intensas e conflituosas relações entre
os personagens dessa história que ele se propõe a contar. Embora Olavo seja o narrador, a
narrativa não é desvendada somente a partir da perspectiva dele, visto que outras vozes
aparecem no decorrer da história, contando aspectos desconhecidos por Olavo. A autoria das
cartas é desvelada aos poucos, mas conforme o próprio conteúdo indica, elas foram escritas por
Ranulfo, o tio de Olavo e amante de Alícia.
Souza (2014) e Pimentel (2012) afirmam a existência de duas vozes narrativas em
Cinzas do Norte, de maneira que a exclusão de uma dessas perspectivas faria com que a obra
perdesse o sentido. O fato de haver mais de uma voz narrando os fatos, embora uma seja oficial
e a outra não oficial, corrobora a tensão arraigada ao regime militar, os vários pontos de vista
e suas verdades. Esse é um dos mecanismos, por meio do qual ocorre a fusão entre texto e
contexto, se considerarmos que durante a ditadura muitos fatos relacionados à violência, à
tortura de presos políticos, a assassinatos foram silenciados pelo governo; porém as vozes não
oficiais das vítimas e parentes de vítimas da ditadura ainda ecoam das sombras desse período
histórico. Na medida em que o romance apresenta essa dupla perspectiva, por meio do(s)
narrador(es), o contexto ditatorial (externo), assim como a dinâmica capitalista são transpostos
para a estrutura (interna) da obra e configurando-se como valor estético.
Com base no que afirma Silva (2009) sobre o romance Senhora, consideramos que
analisar o aspecto social de Cinzas do Norte como mera representação da realidade seria o
mesmo que afirmar que durante a ditadura o militarismo exercia grande influência sobre a
sociedade, mas isso é também ignorar uma série de outros fatos a respeito dessa época; como
se o leitor pudesse usar a obra como livro de consulta sobre a história, desconsiderando o fato
de que trata-se de ficção, de obra de arte. Em Cinzas do Norte tanto a dinâmica capitalista
quanto o sistema ditatorial, não só compõem os personagens como também determinam suas
visões de mundo e suas ações. Obviamente, essas visões de mundo entram em conflito e
emergem como tensão entre os personagens. Observamos, por exemplo, que a visão dos
personagens a respeito do valor do trabalho e da arte difere bastante, uma vez que Trajano
(empresário) valoriza a meritocracia e inutiliza a arte, assim como a irmã de Ranulfo, Ramira;
por outro lado, Ranulfo, que valoriza e incentiva Mundo, acha que a dedicação incansável de
Ramira pela costura é pura perda de tempo, é deixar a vida passar sem aproveitá-la. Aí
percebemos o quanto o contexto social está arraigado à construção dos personagens, conforme
se percebe no excerto a seguir em que Trajano pergunta por Ranulfo:
“[...] Ele está morando aqui ou ainda vive como um cigano”, Jano perguntou
contrariado.
[...] “Um cigano” repetiu Ramira. “Aparece de vez em quando, depois some.”
[...] “Teu sobrinho promete coisa melhor, bem melhor que o tio e que o meu
filho que até agora não promete nada [...]”
[...] “Arte... quem ele pensa que é?” (HATOUM, 2005, p. 22-23).
Observamos o quanto a postura de Ramira e Trajano se aproxima, na medida em que
dois representam, respectivamente, o detentor dos meios de produção e a mão de obra
assalariada. Embora haja uma diferença de classe entre os dois, eles partilham a mesma visão
de mundo, o mesmo posicionamento dentro do sistema capitalista. O excerto a seguir mostra a
distinção entre as ideias de Ramira e Ranulfo e é preciso entender aqui que os mecanismos do
capital alienam alguns, mas nem todos deixam-se domar, e isso cria essa dualidade que é visível
no romance de Milton Hatoum. Partindo das ideias de Lukács, esses pontos de vista opostos
(sobre a vida, o trabalho e a arte) são reverberações individuais do forte contexto social em que
vivem, isto é, algo que não acontece somente entre esses dois personagens, mas entre os
indivíduos da sociedade trazida na obra.
[...] Ramira o encontrou lendo e fazendo anotações a lápis numa tira de papel
de seda branco. Perguntou por que ele lia e escrevia em vez de ir atrás de
trabalho.
“Estou trabalhando,mana”, disse tio Ran. “Trabalho com a imaginação dos
outros e com a minha” (HATOUM, 2005, p. 24).
Outro ponto que podemos atrelar à discussão acerca do ponto de vista dos personagens
e sua condição de mecanismo de fusão entre texto e contexto é a questão da verdade.
Atualmente tem-se a convicção de que a verdade é um conceito relativo e a verdade sobre
determinada história depende de quem relata, além de ser manipulável. Nesse ponto, sabe-se
que muitos fatos e documentos da ditadura foram, e ainda são, veementemente, negados,
apagados da história, de maneira que o sujeito depende do relato de outros, que nem sempre
são fiéis aos fatos; mesmo na época da ditadura, as informações eram distorcidas devido a
interesses políticos. Analogamente, é interessante observar que Olavo (e o leitor) depende de
outras pessoas para conhecer a história passada e, assim, compor a sua visão da história.
No romance Cinzas do Norte, as cartas de Ranulfo sempre aparecem em itálico - e assim
serão transcritas, neste trabalho, para diferenciar a narração de Olavo das cartas do tio,
conforme o texto original - e têm como interlocutor o personagem Mundo, mas apenas são
escritas após sua morte e entregues a Olavo, que recebe a missão de publicá-las como forma
de preservar a memória de Mundo, conforme é possível verificar no excerto a seguir.
Ranulfo estava só de calção, sentado diante de uma mesinha, batendo com a
ponta de um lápis num calhamaço. Perguntei o que estava escrevendo. “O
relato sobre Mundo”, disse, triste, mas orgulhoso. “Histórias... a minha, de
Mundo e do meu amor, Alícia” (HATOUM, 2005, p. 302). [...] Antes de mais
uma viagem ao Rio Negro, ele me entregou o manuscrito, dizendo com
ansiedade: “Publica logo o relato que escrevi. Publica com todas as letras...
em homenagem à memória de Alícia e de Mundo” (HATOUM, 2005, p. 303).
Nessas cartas, Ranulfo conta fatos sobre sua relação com a mãe de Mundo, sobre como
a conhecera e se apaixonara por ela e sobre como ela se casara com Trajano. A primeira carta
aparece após o terceiro capítulo da narrativa, no qual é possível perceber a infelicidade e
decadência do casamento de Jano e Alícia – o descontentamento de Jano e os vícios de Alícia.
Por outro lado, na carta, sob a perspectiva de Ranulfo, o leitor toma conhecimento do passado
e das circunstâncias desse casamento.
[...] Com quem Alícia andava? Algisa não respondeu, mas disse coisa pior:
“Minha irmã...encontrou um rapaz rico, vai casar com ele”. Foi então que,
afogado no corpo da tua tia, que mal conheceste, comecei a odiar teu pai.
Senti ódio e ciúme de Jano, e me arrependo de não ter contado tudo pra ti...
(HATOUM, 2005, p. 54).
Para Souza (2014), haveria ainda uma terceira perspectiva narrativa inscrita nos trechos
de cartas escritas por Mundo e endereçadas a Lavo, porém essas cartas são menos recorrentes
que as de Ranulfo e, portanto, não compõem a estrutura da obra, mas pode ser componente do
valor estético, na proporção que evidenciam a voz do exilado político e daqueles que lutaram
contra as imposições do capitalismo exacerbado e da ditadura. No trecho a seguir, Mundo
afirma ser “menos que uma voz”, o que remete ao silenciamento imposto pelo regime militar,
tanto no que se refere à censura quanto no que se refere às vozes silenciadas pelo medo, tortura
e morte. Conforme propõe Antonio Candido, é contexto social como fator de arte.
[...] Pensei em reescrever minha vida de trás para frente, de ponta-cabeça, mas
não posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, e escrever
é quase um milagre...Sinto no corpo o suor da agonia. Amigo... e não primo.
Este teto baixo, paredes vazias, ausência de cor e de céu... O sol e o céu do
Rio Amazonas... nunca mais...Só essas paredes, e esse cheiro insuportável...
Agora escuto minha própria voz zunindo e escuto fagulhas na cabeça, e a voz
zunindo, fraca, dentro de mim... Não posso mais falar. O que restou de tudo
isso? Um amigo, distante, no outro lado do Brasil. Não posso mais falar, nem
escrever. Amigo...sou menos que uma voz... (HATOUM, 2005, p. 311).
Embora as intervenções narrativas de Mundo sejam menos frequentes, outro motivo
que nos impulsiona a propor que o contexto sócio-político de Cinzas do Norte acaba por
configurar-se como valor estético da obra é justamente uma frase de Mundo, que segundo Lavo
foi escrita em um cartão postal enviado de Londres: “Ou a obediência estúpida, ou a revolta”
(HATOUM, 2005, p. 10). Presente no primeiro capítulo do romance, essa sentença parece ser
decisiva para representar a dualidade que permeia a narrativa, pois no contexto de regime
militar e ditadura, em que a liberdade de expressão foi tolhida da população, permitir que a
história seja conhecida por mais de um ponto de vista, é de alguma maneira, propor que em um
regime ditatorial, há várias perspectivas da mesma história, embora apenas uma prevaleça;
significa que muitas histórias deixaram de ser contadas.
Além disso, a frase de Mundo parece impor a necessidade de posicionar-se, diante das
condições políticas, já que considera a obediência uma estupidez. Até mesmo o fato de tratar-
se de uma frase nominal é significativo, uma vez que na ausência do verbo, a frase nega uma
ação, ao mesmo tempo em que reforça a ideia de um estado, ou posicionamento em um dos
lados. Parece não haver lugar para meio termo, exceto para Olavo, que na condição de narrador
e personagem afetado por essas relações sociais, parece comportar-se de maneira neutra, como
expectador dessas relações conflituosas. É como se ele fosse recolhendo retalhos da história e
compondo a vida a sua volta.
A respeito do romance Senhora, Antonio Candido afirma a corrupção humana, em
virtude dos mecanismos capitalistas, “não é afirmada abstratamente [...], nem apenas ilustrada
com exemplos, mas sugerida na própria composição do texto e das partes” da obra (Candido,
2006, p.16). Do mesmo modo, em Cinzas do Norte os mecanismos capitalistas do progresso,
bem como os mecanismos de repressão da ditadura compõem o texto e suas partes; ou seja,
esses mecanismos estão presentes na fala dos personagens, nas suas visões de mundo, no
enredo, nas tensões entre os personagens e etc.
Assim como a frase de Mundo, o romance constrói-se sobre a dualidade da opinião dos
personagens acerca do progresso do capitalismo e sobre o regime militar; isso reforça a
dimensão política, pois os personagens assumem seus lados, criando uma tensão dentro da
narrativa; ressaltamos que a dinâmica capitalista fomenta essa divisão de opiniões para poder
continuar existindo, já que a união das massas não lhe é favorável. Se por um lado, Jano é o
grande empresário, amigo de militares que apoia a ditadura, o progresso a qualquer custo e a
exploração dos pobres, Ranulfo abomina os militares e é avesso a tudo que o capitalismo trouxe
consigo. O excerto a seguir, por exemplo, sintetiza bem a ideologia capitalista do personagem
Trajano.
[...] “Treinamento militar”, disse Jano, saldando um oficial. “Falta isso ao
meu filho... correr e saltar com coragem, que nem esses rapazes armados.”
[...] Não se importava com o fato de eu estar ali, contra minha vontade,
presenciando exercícios militares [...] “Não jogo nada fora”, disse Jano. “A
vida do meu pai está arquivada aqui. Ele veio de Portugal sem um tostão no
bolso. Só coragem e vontade de ser alguém. Um homem religioso que
acreditava na civilização, no progresso” (HATOUM, 2005, p. 34;35).
A fim de exemplificar como as diferentes perspectivas são reforçadas pela estrutura do
romance, o excerto a seguir permite verificar, em uma das cartas de Ranulfo, o quanto sua visão
de mundo é contrária à visão de mundo de Trajano. Questão que é corroborada pela narração
de Olavo, em outros momentos.
[...] Descobriram que eu tinha sido o primeiro namorado de Alícia,
perguntaram se era verdade, e eu confirmei: primeiro e único. Aí quiseram
saber o que eu fazia, eu disse: “Nada”, e se eu estudava, eu disse: “larguei
a escola e leio livros emprestados pelo padre Tadeu e pelo dono da livraria
Acadêmica” (HATOUM, 2005, p. 111).
A mesma dualidade é percebida em relação a Mundo e a Arana, uma vez que os dois
são artistas, mas para este a arte é comércio, enquanto para Mundo a arte é uma forma de
expressão e existe para ser apreciada, não para ser comercializada.
Os dois excertos a seguir são exemplos de dois pontos de vista a respeito da mesma
história, isto é, sobre como o tio Ranulfo se casara com Algisa, a irmã de Alícia. O primeiro é
narrado por Olavo, porém é a tia Ramira que conta para ele essa parte da história que ele
desconhece.
Minha tia espetou a agulha num pano vermelho e revelou: “Ranulfo foi
casado com Algisa, irmã de Alícia. O que esta tem de esperta, a outra tem de
lesa. Um casamento besta, sem amor”. [...] Apoiou os cotovelos na máquina
e contou a farsa daquele casamento efêmero. O casal passara um tempo na
Vila Amazônia, e, depois que se separaram, Ranulfo nunca mais pisou na
propriedade. [...] (HATOUM, 2005, p.56).
O segundo excerto, em itálico, é um trecho da terceira carta de Ranulfo e nela ele mesmo
conta sua relação conturbada com Algisa; essa relação foi como uma forma de vingança por
Alícia ter se casado com Trajano. Observamos que ambos os excertos possuem uma visão de
mundo, uma ideologia, bem como sentimentos diferentes em relação aos fatos narrados; a visão
dos irmãos Ranulfo e Ramira a respeito de Algisa é bastante distinta.
[...] Ela olhou para mim, disse: “E tu, seu chifrudo? Tu roubavas dos gringos
e davas tudo pra Alícia... e olha só o que ela fez contigo”. Algisa levantou
para me estapear, eu a empurrei e ela caiu na rede, caí em cima dela,
agarrando-lhe as mãos e sentindo os dedos calosos e a pele áspera de tanto
esfregar roupa e arear panelas na época em que era criança e escrava, talvez
sem saber que era as duas coisas ao mesmo tempo (HATOUM, 2005, p. 116).
Percebemos no decorrer da análise que o valor estético de Cinzas do Norte é visível não
só pela dualidade marcada na fala de dois narradores, mas também pela frequente dualidade
dos pontos de vista dos personagens acerca do momento histórico do romance, conforme citado
anteriormente, a ditadura militar e o milagre econômico. A esse respeito apresentamos um
trecho da fala de Mundo e outra de um amigo de Trajano, a fim de exemplificar a tensão em
relação ao progresso a qualquer custo.
Mundo me puxou para um canto da cozinha, apontou os convidados e
cochichou: “Aquele grandalhão ali é o Albino Palha... Amigo e conselheiro
do meu pai. Exporta juta, castanha e borracha. Se dependesse dele, exportaria
até os empregados da Vila Amazônia. Palha é um solteirão...se derrete todo
na frente dos militares. Olha como bajula os caras. Só falta pentear o bigode
do mais alto, o coronel Zanda, que o Jano vive dizendo que é o preferido do
Comando Militar da Amazônia” (HATOUM, 2005, p. 46).
Observa-se, no excerto anterior, a opinião de Mundo sobre os militares e sobre a
maneira como se concebe o progresso, já que sugere que os empregados são desvalorizados
em nome do desenvolvimento econômico. Já no excerto a seguir, observamos o ponto de vista
de um militar pouco apreciado por Mundo, o coronel Zanda. E assim a tensão vai tomando
forma no romance, atrelando texto e contexto, o externo torna-se interno.
O coronel Zanda emergiu de um círculo de oficiais, cruzou a sala e
interrompeu o discurso de Heródoto com firmeza: “O senhor tem razão, o
decreto do finado marechal vai atrair muitas indústrias para Manaus”. Pôs a
mão no ombro do orador e continuou: “Mas a morte do presidente não é o fim
do mundo, muito menos do nosso governo. Temos grande generais, o senhor
não concorda?” (HATOUM, 2005, p. 48).
Por fim, ressaltamos a importância da concepção de Antonio Candido acerca do valor
estético, compreendendo que ele é constituído também pelos aspectos sociais. Enfatizamos que
diferente da proposta de Lukács apud Candido (2006), o fator social não é determinante do
valor estético, mas conforme conclui o próprio Candido, ele é parte constituinte desse valor
estético que confere à literatura o estatuto de obra de arte. Nesse sentido, Escarpit (1974) afirma
que o valor literário não pode ser definido por um único critério de especificidade, uma vez
que muitos são os elementos que compõem a obra literária tais como: a linguagem (e a interação
entre significante e significado), processos de acomodação e enfrentamento, além dos aspectos
sociais.
Considerações Finais
Ao término deste trabalho, concluímos que a aplicação da teoria de Antonio Candido a
outras obras é possível, na medida em que oferece pressupostos teóricos para perceber o
aspecto social na estrutura da obra de maneira menos abstrata.
O valor estético fundado no aspecto social é perceptível, principalmente, pela estrutura
da narrativa que intercala as vozes de Olavo e Ranulfo. Para além da estrutura, há também, no
romance, outras vozes e suas perspectivas de mundo que colaboram na composição estética da
obra, vozes que emergem não como mera representação, mas como posicionamento social e
ideológico, ou seja, marcas subjetivas provenientes de uma constituição social do indivíduo. É
provável que o próprio título deste trabalho seja revisto em outra oportunidade, uma vez que o
uso do termo ‘representação’ já não se adequa às reflexões que se seguiram à proposta inicial
de pesquisa. Mas essa discussão ficará para um trabalho posterior.
Sendo assim, os aspectos sociais podem ser percebidos no romance Cinzas do Norte,
para além da extensão metafórica ou representação da realidade. Por ser obra de ficção utiliza-
se de mecanismos linguísticos e estruturais que permitem construir obra de arte, cuja estética
pode ser percebida por meio de vários aspectos, inclusive os sociais.
Referências
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