O papel dos africanos negros na história do povo de Deus* · de questões de fé. Estudos...

23
5 Resumo A Terra Santa, o Israel bíblico se encontrava bem na encruzilhada do mundo que lingüistas e alguns historiadores designam como Afro-Ásia. O mundo afro e o mundo asiático não foram mundos separados, mas entrelaçados lingüística e culturalmente. Infelizmente, a trajetória inicial (Expedição de Carsten Niehbuhr) dos estudos antro- pológicos e os achados arqueológicos foram longe demais em estabelecer uma ênfa- se mesopotâmica e uma negligência das influências africanas. Além disso, o racismo, tanto explícito quanto implícito, impedia a integração adequada das pesquisas dos povos africanos, e.g. o Egito e a Núbia, nos estudos bíblicos. Este artigo revisa a situação durante o século passado e fornece um exemplo, a história da interpretação européia de 2 Samuel 18.19-33, que não podia aceitar a presença de um africano entre a guarda de elite de Davi. Resumen La Tierra Santa, el Israel bíblico se encontraba precisamente en la encrucijada del mundo que lingüistas y algunos historiadores designan como AfroAsia. El mundo afro y el mundo asiático no fueron mundos separados, estuvieron siempre entrelazados lingüistica y culturalmente. Infelizmente, la trayectoria inicial (Expedición de Carsten Niehbuhr) de los estudios antropológicos y los hallazgos arqueológicos fueron lejos de más al establecer un énfasis mesopotámico e una negligencia de las influencias africanas. Además, el racismo, tanto explícito cuanto implícito, impedia la integración adecuada de las pesquisas de los pueblos africanos, e.g. Egipto y Núbia, en los estudios bíblicos. Este artículo hace una revisión de la situación durante el siglo pasado, y ofrece un ejemplo, la historia de la interpretación europea de 2 Samuel 18:19-33, que no podía aceptar la presencia de un africano entre la guardia de élite de David. O papel dos africanos negros na história do povo de Deus* Peter T. Nash * Este é o texto levemente revisado da Aula Inaugural do 1º semestre de 2002 na Escola Superior de Teologia, proferida em 26 de fevereiro de 2002.

Transcript of O papel dos africanos negros na história do povo de Deus* · de questões de fé. Estudos...

5

Resumo

A Terra Santa, o Israel bíblico se encontrava bem na encruzilhada do mundo quelingüistas e alguns historiadores designam como Afro-Ásia. O mundo afro e o mundoasiático não foram mundos separados, mas entrelaçados lingüística e culturalmente.Infelizmente, a trajetória inicial (Expedição de Carsten Niehbuhr) dos estudos antro-pológicos e os achados arqueológicos foram longe demais em estabelecer uma ênfa-se mesopotâmica e uma negligência das influências africanas. Além disso, o racismo,tanto explícito quanto implícito, impedia a integração adequada das pesquisas dospovos africanos, e.g. o Egito e a Núbia, nos estudos bíblicos. Este artigo revisa asituação durante o século passado e fornece um exemplo, a história da interpretaçãoeuropéia de 2 Samuel 18.19-33, que não podia aceitar a presença de um africano entrea guarda de elite de Davi.

Resumen

La Tierra Santa, el Israel bíblico se encontraba precisamente en la encrucijada delmundo que lingüistas y algunos historiadores designan como AfroAsia. El mundoafro y el mundo asiático no fueron mundos separados, estuvieron siempre entrelazadoslingüistica y culturalmente. Infelizmente, la trayectoria inicial (Expedición de CarstenNiehbuhr) de los estudios antropológicos y los hallazgos arqueológicos fueron lejosde más al establecer un énfasis mesopotámico e una negligencia de las influenciasafricanas. Además, el racismo, tanto explícito cuanto implícito, impedia la integraciónadecuada de las pesquisas de los pueblos africanos, e.g. Egipto y Núbia, en losestudios bíblicos. Este artículo hace una revisión de la situación durante el siglopasado, y ofrece un ejemplo, la historia de la interpretación europea de 2 Samuel18:19-33, que no podía aceptar la presencia de un africano entre la guardia de élite deDavid.

O papel dos africanos negrosna história do povo de Deus*

Peter T. Nash

* Este é o texto levemente revisado da Aula Inaugural do 1º semestre de 2002 na Escola Superiorde Teologia, proferida em 26 de fevereiro de 2002.

6

Abstract

The Holy Land, biblical Israel stood at the crossroads of the world that somelinguistics and historians call Afro-Asia. The African world and the world of AsiaMinor were not separate worlds, but a linguistically and culturally intertwined conti-nuum. Unfortunately, the initial impulse (Carsten Niehbuhr Expedition) of early an-thropological and archaeological studies went too far in establishing a Mesopotami-an emphasis with an accompanying neglect of African influences on the biblicalstory. In addition, racism, both tacit and explicit, impeded the proper integration ofrelevant African peoples, e.g. Egypt and Nubia. This article reviews the situationduring the 20th century and offers one example, a brief history of interpretation of 2Samuel 18:19-33, and the fact that it could not accept the presence of an African in theElite Guard of King David.

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

Este ensaio é parte de um proje-to maior de sistematização1 de anosde pensamento e pesquisa sobre aquestão do papel da raça e da racia-lização na escrita da teologia e dopapel das teologias assim elaboradasna construção das sociedades, espe-cificamente daquelas sociedades queidentificam a si mesmas como cris-tãs ocidentais. Por um lado, ele ofe-rece poucos fatos que sejam novosou originais; por outro lado, é a cons-ciência de que esses fatos e teorias

Introdução

são tão amplamente conhecidos e tãopouco publicados que me levou a de-dicar alguns anos da minha vida pro-fissional a organizá-los de uma for-ma acessível a um público teológicoamplo. Também espero que essesfatos, antigos e mais novos, estejamdispostos de tal maneira que tragamalguma compreensão nova para aquestão da raça no estudo da Bíbliae campos afins.

O projeto foi originalmente con-cebido para abordar dois assuntos

1 Durante a segunda metade de 2001 recebi o direito a um semestre sabático de meus colegas naEST e fui calorosamente recebido pela Faculdade de Teologia Augustana em Neuendettelsau,Alemanha. Expresso a minha profunda gratidão ao Curatório da EST por me conceder essadispensa, a meus colegas do Departamento Bíblico da EST e ao Departamento de Missão Globalda ELCA, que viram valor no projeto como ele foi proposto e continuam a apoiar sua conclusão,bem como aos meus anfitriões em Neuendettelsau.

7

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus

conceito geral de raça nas ciênciasbiológicas, com um breve histórico doconceito e comentários adicionais deantropólogos sobre a posição da ques-tão nesse campo; uma clarificaçãodos três termos “raça”, “cultura” e“etnia” e breves comentários sobreo papel da cultura na formulação dateologia; uma sinopse da história daracialização nos Estados Unidos, naÁfrica do Sul e no Brasil; um debatepara uma cosmovisão afro-judaica;sugestões para a leitura das narrati-vas com um olhar de antropólogo; umresumo da ciência malfeita dos sé-culos XVIII e XIX que levou cientis-tas a propor que os egípcios e todosos outros atores na trama do AntigoTestamento eram caucasóides; umadiscussão da família lingüística co-nhecida como afro-asiática, que vaidesde a Mesopotâmia até a Áfricaoriental, passando pelo Vale GreatRift, e uma avaliação da obra BlackAthena3, de Martin Bernal, na qualele sustenta que a história ocidentalfoi seqüestrada pelos classicistas afim de clareá-la ou contextualizá-lapara as pessoas que nós agora co-nhecemos como a elite européia.

complexos e relacionados: o primei-ro é o uso corrente de métodos e da-dos antropológicos na compreensãodo Antigo Testamento ou da BíbliaHebraica, e a pergunta, ligada a isto,se esses métodos poderiam ou nãoser combinados de tal maneira queincluíssem uma porta de entrada sa-tisfatória para uma discussão dasquestões de presença cultural africa-na no Antigo Testamento. O segun-do assunto é o papel da racializaçãoda interpretação desses textos da for-ma como ela tem sido realizada emtrês enormes e diversos países2 situ-ados em três continentes, cada umcom litoral no Oceano Atlântico, ecada um com uma história singular,mas conectada, de opressão cruel deseus afro-descendentes, sejam elescristãos ou não. Essas nações irmãsgórgones de racialização são os Es-tados Unidos, a África do Sul e oBrasil.

Apóio-me fortemente no traba-lho de amigos e colegas. O projetocomo um todo contém muitas partesque só podem ser tocadas brevemen-te neste ensaio. Listo-as aqui somentepara dar uma orientação ao leitor: o

2 A identidade e mitologia nacional de todos esses países dependem fortemente, ou têm dependidono caso da África do Sul, da reivindicação de que cada um deles é uma nação cristã. Veja AlanMAKER, Something New out of Africa; W. A. deKLERK, The Puritans in Africa, e Anthony W.MARX, Making Race and Nation.

3 Martin BERNAL, Black Athena: The Afroasiatic Roots of Classical Civilization, v. 1: TheFabrication of Ancient Greece 1785-1985, v. 2: The Archaeological and Documentary Evidence,1987 e 1991.

8

tor que opiniões contrárias estão ba-seadas em estereótipos e concepçõeserradas, principalmente na crençaerrônea de que nada de bom vem daÁfrica.

Haverá indicações de cada um des-ses elementos no presente ensaio, maseste texto procura fazer somente umacoisa: ilustrar a clara presença deafricanos no mundo bíblico antigo etornar perfeitamente claro para o lei-

raro, no Ocidente, ver um retrato deMoisés que o represente como afri-cano.

São os simples atos de “contex-tualização” efetuados pelos artistasocidentais que nos têm dado a ima-gem de um “Moisés europeu” e um“Davi caucasóide”. Cain H. Felderpode chamar isso de sacralização daiconografia ocidental. Na verdade,Felder acredita que o problema émais grave. Ele citaria a sacraliza-ção da cultura ocidental com todasas suas imagens e valores, incluindoseu racismo, o qual nos tem feito acre-ditar que a África tinha pouco ou ne-nhum papel na história antiga da in-teração de Deus com o povo de Is-rael5.

Estou sugerindo que o mundo

O papel dos africanos negros noantigo Oriente Próximo é freqüente-mente subestimado e mal entendido,por razões tanto de ignorância quan-to de malícia. A maioria de nossasimagens no Ocidente moderno vêmpela forma como recebemos o Anti-go Testamento ou as Escrituras He-braicas. Essas imagens, por sua vez,são mediadas pelos grandes mestresda arte européia. Assim, os ociden-tais e sua descendência intelectual4

estão mais acostumados a ver, e porisso mais à vontade com, um “Moi-sés europeu”. Aqueles que se consi-deram perspicazes em suas represen-tações históricas do Antigo Testa-mento podem mostrar um “Moisésmediterrâneo”, ou um Samuel comuma pele bem bronzeada. Ainda é

1 - A história da questão

4 Isso inclui as igrejas implantadas pelos empreendimentos missionários pós-renascentistas dequase todas as denominações.

5 Cain H. FELDER, Race, Racism and Biblical Narratives, p. 128. Felder adota o termo como umparalelo ao uso que Mendenhall faz do termo “secularização”. Assim, ele vê processos paralelosduais atuantes na apropriação e adaptação ocidentais da Escritura dos judeus e cristãos. Por umlado, valores religiosos tornam-se ícones seculares e, por outro, ícones culturais assumem o statusde questões de fé.

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

9

de aquecimento antes das notas deabertura do oratório do nascimentoda civilização ocidental. Os israelitas,no currículo teológico, são menciona-dos, mas só funcionalmente na suaatribuição de pré-cristãos.

Ironicamente, a Europa e, sub-seqüentemente, as Américas adota-ram o Egito como parte do Ocidente.O livro Uma história da arte6, deJanson, conhecido por diversas ge-rações de estudantes universitários daAmérica do Norte como arruinadorde orçamento ou destruidor de mo-chila, começa com a arte egípcia. Nostrês volumes da obra de VercoutterA imagem dos negros na arte oci-dental, o primeiro volume é intitula-do Dos faraós à queda do ImpérioRomano7. A Europa da Renascençaficou pasma com as realizações doEgito, e essa fascinação aberta con-tinuou até o iluminismo. Nessa épo-ca, a ciência flertou abertamente coma religião e o misticismo, e o Egitoera um monumento a todas as três

antigo era um mundo consideravel-mente mais escuro do que temos su-posto nos últimos 300 anos. É ummundo que também era consideravel-mente mais complexo do que nosacostumamos a aceitar. Geralmenteisso acontece porque a maioria dosocidentais têm, na melhor das hipó-teses, apenas algumas poucas horasde aula de história da Antigüidadedurante toda a sua educação esco-lar. Para a maioria de nós, a históriacomeçou com os gregos e os roma-nos, que são tidos como os progeni-tores diretos da civilização ocidental.Nessas cadeiras introdutórias pano-râmicas, que pretendem esboçar osdetalhes importantes da história “domundo”, os egípcios recebem umaceno obrigatório de reconhecimen-to como os antepassados idosos evenerados, mas quase irrelevantes,enquanto os cananeus, os fenícios, osetíopes e os líbios são meramentereconhecidos como tendo existidocomo vozes de fundo nos exercícios

6 H. W. JANSON, History of Art. Janson inicia com um curto ensaio, “O artista e seu público”,seguido da parte 1, o mundo antigo, e trata, numa rápida sucessão, de “Mágica e ritual – a arte dohomem pré-histórico”, arte egípcia, o Oriente Próximo antigo, arte do Egeu, arte grega, arteetrusca, arte romana e, finalmente, arte pré-cristã e bizantina, nesta ordem. Das 616 páginas, 10são dedicadas à arte islâmica, e metade dos exemplos considerados estão na Europa. No pós-escrito à segunda edição de 1970 o autor escreve: “Neste livro, expusemos (...) somente oselementos de fora da Europa e da América que contribuíram para o crescimento da tradiçãoartística ocidental: a arte pré-histórica e primitiva, assim como a arte do Egito; o OrientePróximo antigo e o islã. Três áreas principais foram omitidas – a Ásia indiana, a China e o Japãoe a América pré-colombiana – porque suas tradições artísticas indígenas não estão mais vivashoje.” (p. 569).

7 Jean VERCOUTTER; Jean LeCLANT, The Image of the Black in Western Art.

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus

10

Platão quanto Aristóteles desceramao Egito para estudar8. Durante o pe-ríodo romano, o Egito foi uma pro-víncia privilegiada, como tinha sidosob o domínio dos persas. Rituaiscultuais egípcios, que encontraramespaço até mesmo nos templos deAtenas durante o período grego, eramuma ameaça à própria soberania deRoma. Os leitores renascentistas daliteratura clássica eram recordadosregularmente de que os gregos e ro-manos consideravam os egípcios, eocasionalmente os etíopes, como osinventores da civilização9.

Adicionando a isso as tradiçõesde várias interações de matriarcas epatriarcas do Antigo Testamento coma superpotência, adicionando alémdisso afirmações da tradição israeli-ta de que o grande herói, líder e pro-feta do AT, Moisés, foi educado nopalácio do Egito, e adicionando aindaas freqüentes menções nos escritosproféticos que representam o Egitocomo uma ameaça constante à pró-pria soberania de Deus, começare-mos a entender a importância do lu-gar do Egito na imaginação de nos-sos antepassados intelectuais.

Foi somente quando o ideal deprogresso do iluminismo tornou-se do-minante, que o Egito deixou de ser omodelo de grande civilização. Não

formas de sabedoria e “verdade”. Aspirâmides e a grande esfinge eramrealizações de engenharia de primei-ra magnitude, ultrapassando ampla-mente qualquer uma das belezas ar-quitetônicas da Europa. A mumifica-ção do corpo foi entendida como re-presentação de uma profunda cren-ça em uma vida além deste mundo e,assim, como vislumbre de um povoprofundamente religioso, que, embo-ra claramente distinto da Europa cris-tã, mostrava preocupações similaressobre sua finitude e esperanças decontinuação de sua existência alémdo túmulo. Além disso, suas fantásti-cas representações das divindadesegípcias com corpos humanos e ca-beças de animais, e como gatos efalcões, combinavam bem com umpovo europeu que estava somente nametade do caminho da alquimia paraa química. É claro que a grandeza eestabilidade pura do Egito eram va-lores que atraíam a visão européia do-minante de civilização e cultura daelite durante a Renascença.

Essa coincidência dos valores daRenascença com as relíquias egípci-as é importante, mas também estáfundamentada no conhecimento deque os romanos e os gregos conside-ravam os egípcios os seus predeces-sores e professores culturais. Tanto

8 Martin BERNAL, op. cit., v. 1.9 Diodoro da Sicília e Heródoto são dois exemplos.

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

11

nos negros12.A razão para o silêncio da co-

munidade acadêmica é que ela se en-contra entre a faca e a parede. Seela falar dos egípcios como cauca-sóides, os estudiosos individualmentee a universidade em geral serão con-siderados racistas. Se, por outro lado,afirmar que os egípcios eram africa-nos negros, a âncora das âncoras dadisciplina acadêmica, a longa históriado Egito como fundamento das civili-zações ocidentais, poderia ser postaem perigo e a egiptologia, disciplinaque já se vê dotada de poucas ver-bas e marginalizada entre as comu-nidades universitárias por várias ra-zões, poderia ser colocada nas mar-gens da comunidade acadêmica, jun-tamente com o resto dos estudos so-bre a África13.

Proponho uma solução que pro-

obstante, um indício da persistênciado Egito na imaginação da mente oci-dental pode ser encontrado ainda hojeno verso de cada nota de 1 dólar im-pressa nos Estados Unidos. A pirâ-mide coberta com o olho onisciente éuma homenagem dos pais fundado-res estadunidenses às crenças místi-cas na sabedoria, poder e estabilida-de da pirâmide como ícone do Egito.

Como foi mencionado acima, su-punha-se que os atores desse supos-to prólogo à civilização ocidental fos-sem caucasóides. De fato, a opiniãoerudita dominante até os autores10 dadécada de 60 era de que os egípcioseram caucasóides11. Desde essa épo-ca, tem havido um silêncio geral so-bre a etnia dos egípcios. Somente osafro-centristas têm ousado expressaruma opinião. Eles escrevem sem re-servas que os egípcios eram africa-

10 Veja Martin NOTH, Die Welt des Alten Testaments, p. 211-212, e W. F. ALBRIGHT, The OldTestament World, p. 238-239. Estes estudiosos eram os gigantes da geração de estudantes queestavam na escola nas décadas de 70 e 80. Estes são os homens e mulheres que lecionam nasmaiores universidades e pregam hoje.

11 Às vezes eles até foram chamados de arianos, quando alguns autores migraram de uma egitomaniapara uma hindumania. Quando isso aconteceu, sugeriu-se que as grandes obras do Egito foraminspiradas pelo gênio indiano e não pelo talento local (Martin BERNAL, op. cit.).

12 Berlinerblau deu um resumo conciso dos problemas que afligem os afrocentristas e os egiptólogosque estão nas universidades tradicionais, e explica por que o trabalho de Martin Bernal satisfazpoucos deles. Para uma rápida visão das reivindicações dos afro-centristas veja Elisa LarkinNASCIMENTO, As civilizações africanas no mundo antigo, onde essa autora resume parte daliteratura de Diop, um dos proponentes do afro-centrismo que é amplamente lido.

13 Ann Macy ROTH, Building Bridges to Afrocentrism. Roth acredita que há um diálogo muito útilesperando para acontecer nos Estados Unidos e sugere que ele já pode estar ocorrendo na Françaentre aqueles que ela chama de egiptólogos afro-cêntricos. Roth diz que o seu ensaio é umatentativa de facilitar a conversa. A “egiptologia afro-cêntrica” praticada hoje tem uma litera-tura erudita internacional atrás de si. (O movimento é, antes de mais nada, mais proeminente naFrança que aqui, a julgar pelos inúmeros livros e periódicos afro-centristas que vi expostos emlivrarias de Paris no último verão.) Na América, no entanto, a egiptologia afro-cêntrica é menos

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus

12

vavelmente não satisfará nenhum doslados da conversa que não está acon-tecendo. Parece mais provável queos egípcios não fossem caucasóides,porque a designação “egípcios” cla-ramente não designa uma etnia, masuma cultura. É, não obstante, umadesignação de uma cultura africanaque perdurou aproximadamente 3.000

anos14 e afetou todos os povos queentraram em contato com ela; fre-qüentemente pelas mesmas razõesque impressionaram os europeus queprimeiro se defrontraram com seusmonumentos majestosos em Giza emais tarde em Luxor e Abu Simbel:poder, riqueza, estabilidade e sabedo-ria.

tória de apenas 200 a 500 anos15.Além disso, muitos dos termos comu-mente usados para indicar etnia ouraça não têm peso científico, excetopara antropólogos16. Semítico, indo-

Não é intenção deste ensaio re-solver a questão da etnia em geral;ainda assim, é necessário assinalarque termos raciais modernos são defato muito modernos, com uma his-

2 - E Pluribus Unum? (um entre muitos)– quem eram os egípcios senão os “egípcios”?

um campo de pesquisa acadêmica do que um movimento político e educacional, que visaaumentar a auto-estima e autoconfiança dos afro-americanos salientando as realizações dascivilizações africanas, principalmente do Egito antigo. Desta forma, ela é defendida em livrospara o grande público, publicações didáticas e até mesmo em cartazes educacionais patrocinadospor grandes cervejarias. Aparentemente tem até agora logrado um considerável sucesso em seusalvos educacionais. Como resultado disso, ela está sendo ensinada a alunos de todas as escolas atéo nível universitário por toda a América, e suas doutrinas são freqüentemente citadas como fatoconsumado pela mídia e pelos estabelecimentos educacionais.

14 Este estudo aceita a crença amplamente sustentada de que o Egito de fato passou por um longoe lento processo de “mediterranização”, mas isto não deveria ser entendido como se significasseuma desafricanização. De diversas formas, foi o Egito que definiu o tom da afamada cultura“mediterrânea”. É estranho que se possa pensar algo contrário, que a cultura que dominou aregião por dois milênios de repente assumiria os valores de um grupo de pessoas que se pressu-punha serem fundamentalmente diferentes em termos de perspectiva e pensamento.

15 Gould e Bernal vinculam esse termo com Johann Blumenbach e sua obra sobre variedadeshumanas de 1776. Jonathan M. HESS, Johann David Michaelis and the Colonial Imaginary, eid., Sugar Island Jews?, opina que o racismo na forma de anti-semitismo secular iniciou-se como trabalho do colega de Blumenbach, Johannes Michaelis, professor de AT, também na Univer-sidade de Göttingen na mesma época. Hannaford propôs uma data do século XV, após a expulsãodos muçulmanos da Espanha.

16 Stephen MOLNAR, Human Variation, p. 22.

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

13

europeu e banto, por exemplo, são de-signações de grupos lingüísticos, e nãotermos biológicos. Visto que essesgrupos lingüísticos, internamente, sãobasicamente parecidos em sua apa-rência e seus comportamentos cultu-rais, eles fazem parte da mesma po-pulação17.

Deve-se dizer que os egípcios,em sua própria etiologia, considera-vam-se uma nação com dois gruposdistintos. Do Antigo Reino18 até o fi-nal do Egito como potência políticaantiga, era tradicional representar ofaraó com o cocar dual, um branco eum vermelho, ou com os dois coca-res com penas. Em cada caso, os doisícones representavam o Egito Supe-rior e o Inferior. Está claro que oshabitantes do Egito Superior, freqüen-temente conectados com os núbiosdo moderno Sudão, eram, de fato, aforça cultural dominante no início daunidade egípcia; Tebas tornou-se acidade santa, dedicada ao DeusAmon, a divindade criadora de cujoslombos toda a vida fluía.

Entre as pessoas que sentaramno trono do Egito e se chamaram fa-raós estavam os núbios da 25a Dinas-

tia. Os núbios, ou kuchitas, eram vi-zinhos dos egípcios logo ao sul, ondehoje é o Sudão. Durante os reinadosantigos e médios, eles foram, semnenhuma ordem específica, rivais,parceiros comerciais e aliados dosfaraós de Tebas e Mênfis.

Os hicsos do Terceiro PeríodoIntermediário são os mais conheci-dos dos leitores da literatura do Anti-go Testamento por causa da sua fre-qüente, mas muito incerta, associa-ção com a partida milagrosa dos fi-lhos de Israel do Egito descrita no li-vro de Êxodo.

Os líbios da 21a Dinastia tambémeram “estrangeiros” no trono do po-deroso faraó. Eles tinham sido rivaisda dinastia de Ramsés desde o rei-nado de Ramsés II. Embora RamsésIII tenha sido o último faraó de suadinastia a ser inteiramente bem-su-cedido na repulsão dos líbios, o fran-co declínio do poder egípcio na Ásiacomeçou durante seu reinado, e foipontuado pelo vergonhoso beco semsaída em que se envolveu ao enfren-tar tropas hititas inferiores em Ka-desh19.

17 Os biólogos e geneticistas definem uma população como o grupo reprodutivo básico dentro deuma espécie. Então, visto que todos os seres humanos são capazes de reproduzir com outros,existe somente uma espécie (id., ibid.).

18 Narmer unificou os dois povos.19 Robert G. MORKOT, The Black Pharaohs of Egypt, p. 97-98.

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus

14

2.1 - Quem era “negro” noAntigo Oriente Próximo

Em certo sentido, como sustentaa maioria dos egiptólogos20, a perguntaé muito anacrônica. Os termos usa-dos hoje, sem muita precisão21, sãocategorias que não parecem ter sidoimportantes para os antigos. Na An-tigüidade há poucas referências à corda pele que podem ser interpretadasclaramente como raciais. Há comen-tários sobre origem nacional ou prá-ticas culturais que um grupo ou outroacha engraçadas ou repugnantes, ousimplesmente não-civilizadas, ou tal-vez ímpias. Quase nenhuma se ba-seia nas características físicas de umpovo. Também podemos reconhecerque a xenofobia foi a norma para amaioria das culturas do mundo anti-go, tanto quanto continua a caracte-rizar muitas nações modernas. Aomesmo tempo, proponho que o queos egípcios e israelitas antigos evita-vam não era a diferença de cor, maso fato de ser estrangeiro. Era o medode que um estranho perturbasse oequilíbrio da sociedade e fragmentas-se o modo de vida que supervaloriza-va a estabilidade. Tendo dito isto, po-demos passar para a pergunta de

quem poderia ser considerado negropelos padrões de hoje. Em outra par-te deste projeto, explico minhas ra-zões para usar os padrões dos Esta-dos Unidos. Resumo essa explicaçãoaqui simplesmente dizendo que não éporque eu ache que eles sejam osmais precisos, não que eu pense queeles sejam os melhores, nem é sim-plesmente porque são a medida coma qual estou mais familiarizado, masporque acho que eles são globalmen-te mais reconhecidos por causa do“imperialismo suave” dos EstadosUnidos, que produz cultura de massae iconografia. Esses padrões são: ouse é, ou não se é. Por toda a históriados Estados Unidos, exceto a maisrecente, ou se era negro ou não, ouse era branco ou não. Outros gruposétnicos eram virtualmente ignoradosaté a segunda metade do século XX22.Tem havido muito pouco espaço parao cinza.

Nos Estados Unidos, as pessoasque se defrontrassem com a maioriados egípcios antigos do AT, até o rei-nado da 26a Dinastia, em uma cidadecomo Chicago, por exemplo, perce-beriam essas pessoas como afro-americanos23. Pelos padrões socio-lógicos dos Estados Unidos, os egíp-

20 Frank YURCO, Egypt and Nubia, é um exemplo.21 Isso é explicado na primeira parte deste projeto, que ainda não está publicada.22 Verifique na abordagem sobre multirraciais nos formulários do censo de 1980.23 Muitas pessoas poderiam ser classificadas como mulato ou moreno ou negro dependendo das

sensibilidades e preconceitos da pessoa em sua percepção da classe socioeconômica desse egíp-

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

15

cios eram africanos. Alguns deleseram pessoas escuras, como os su-daneses e os etíopes, outros erammais claros, como os povos de falaberbere do noroeste da África e osxhosa do sul da África, e alguns deleseram morenos, como muitos dos po-vos “mediterrâneos” e “levantinos”.Adicionando-se a esta confusão o fatode que estamos lidando com povosque viviam sob um sol abrasador, osproblemas de classificação étnica combase na cor da pele tornam-se maiscomplexos quando se procura usar asrepresentações do mundo antigo comoindicador. No entanto, a evidência pa-rece indicar que esses povos sempreviveram juntos, com graus variáveisde cooperação e conflito, e nunca hou-ve uma população pura24. As repre-sentações dos egípcios como cauca-sóides em sua própria iconografia sãobastante tardias em sua história e so-mente começaram depois de sua mis-tura com seus conquistadores indo-europeus, os persas, que tambémeram pessoas mais escuras, e depoiscom os gregos e os romanos25.

Os núbios eram africanos, eeram negros. Com exceção de umcomentário estranho de Martin Nothna edição de 1962 de “O Mundo doAntigo Testamento”26, não tem havi-do contestação da negritude dessesvizinhos e rivais situados ao sul doEgito. Eles foram representadoscomo integrantes do exército desdeas primeiras campanhas egípcias,que viriam a definir o Egito Inferior eSuperior como um só “povo” pelos3.000 anos seguintes. Os núbios é queeram condutores de cavalos e cochei-ros, não somente nos exércitos egíp-cios do final do Médio Reino e NovoReino, mas também a serviço dos reisassírios da metade do século VIII atéquase o final do século VI. Interes-sante é que quando esses mesmospovos são integrados na sociedadeegípcia, eles são representados sim-plesmente como egípcios. Além dis-so, quando sentam no trono, tornam-se defensores ferozes da cultura egíp-cia e igualmente vociferantes na suacrítica aos estrangeiros e, por em-préstimo dos gregos, aos bárbaros.

cio “mítico”. Na África do Sul, a pessoa seria negra ou talvez de cor se uma pessoa que adota asantigas classificações racistas estivesse fazendo a avaliação.

24 Veja Stephen MOLNAR, Human Variation, p. 43.25 Morgens JÖRGENSEN, Egypt III, p. 376. Jörgensen observa que os rostos nos sarcófagos das

múmias do período romano podem nem sempre ter sido uma representação naturalista dapessoa no sarcófago. Ele registra que a reconstrução tridimensional feita por um cientistaforense de um rosto baseado em uma cópia do crânio da múmia “não tem, surpreendentemente,nenhuma semelhança com o retrato da múmia” (p. 38-39, figuras 23 e 24).

26 Martin NOTH, Die Welt, p. 211-212. Noth sustenta que os próprios núbios não eram realmentenegros, mas somente exibiam os efeitos do contato constante com seus vizinhos do sul.

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus

16

fontes secundárias para os últi-mos. Não é surpreendente, en-tão, que a herança de Israel pro-veniente da Ásia ocidental emáreas como mitologia, saltério,coleções de provérbios de teodi-céia, códigos e práticas legais, tra-tados de suserania e anais reaistenha sido mais profundamente in-vestigada. Ainda assim, o legadodo Egito de forma nenhuma é des-prezível, e uma maior apreciaçãodeste fato tem sido alcançadadurante os últimos 50 anos.Israel sempre esteve conscientede seus vínculos com o Egito, eas tradições de sua curta estadalá estavam indelevelmente emsua literatura religiosa. Mas muitoantes de os hebreus se tornaremuma nação o Egito tinha exerci-do uma supremacia econômicasobre a Síria-Palestina durante oMédio Reino (ca. 2052-1786a.C.).28

Williams elabora, então, váriospontos-chaves de contato que são ci-

3 - Influências africanas na vida,literatura e religião israelita

3.1 - Estrutura e atitudes

Sem dúvida, a mais forte influ-ência que uma nação africana tevesobre Israel foi a do Egito. Em 1975,R. J. Williams27 elaborou um bomnúmero de detalhes dessa relação.Desde então tem havido modifica-ções secundárias em detalhes, mas oquadro geral permanece o mesmo: oEgito foi uma presença constante aolongo da costa leste do Mediterrâneoe no sul da Palestina. O egiptólogoWilliams é generoso em sua avalia-ção da situação ao não criticar o cam-po do Antigo Testamento por ignorarevidências valiosas. Escreve ele:

Pela própria natureza de sua for-mação, é mais provável que os es-tudiosos do Antigo Testamento te-nham adquirido um conhecimen-to de primeira mão das fontes ca-nanéias e cuneiformes do que te-nham dominado os materiais hie-roglíficos e hieráticos do Egito. Poresta razão eles têm tido que de-pender em uma escala maior de

27 R. J. WILLIAMS, A People Come out of Egypt. Sou grato ao professor Tryggve N. D.Mettinger pelo gesto bondoso de me enviar uma cópia deste artigo depois de ter ouvido umaapresentação em Lund, durante a preparação deste manuscrito.

28 Id., ibid., p. 231-232.

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

17

tados na Bíblia. Começando com a21a Dinastia (ca. 1085-945 a.C.), naqual Salomão teria casado com umaprincesa egípcia, filha de Siamum, elecontinua até a 22a Dinastia, quandoShoshenk I (ca. 945-924 a.C.) reivin-dica ter capturado 156 cidades naSíria-Palestina, “entre as quais esta-va Jerusalém, onde o templo foi sa-queado (1Rs 14.25s.)”29.

Ainda mais adiante, Williams citaa ajuda dada pela 25a Dinastia deOsorkon II a Acabe na sua batalhacontra os assírios em Qarqar, em 853.O avanço assírio “levou muitos isra-elitas a procurar refúgio no Egito”.Mais tarde, Oséias procuraria a aju-da do faraó, mas sem lograr êxito. Amaré tinha virado, e os assírios domi-nariam a Síria-Palestina por muitasdécadas. Isaías, mais tarde, repreen-deu Ezequias quando este recorreuao Egito em busca de salvamento.Por último, no século final do restan-te estado de Judá, muitos judaítas fo-ram da Palestina para o Egito e cons-

truíram guarnições em várias cidadeslá; Suen (Elefantina) é a mais conhe-cida dessas guarnições. Com o sa-que de Jerusalém em 587, “refugia-dos” partiram para o Egito. Com elesfoi o profeta Jeremias.

Embora a lista acima seja impres-sionante, ela não é nova. Esses deta-lhes são conhecidos da maioria dosespecialistas na história da Palestinaantiga, um grupo que deveria incluira maioria dos especialistas do AT.Williams, ainda usando evidência jápublicada nos anos quarenta, vai maisalém e sugere que a forma de admi-nistração e educação durante o im-pério davídico estava baseada nomodelo egípcio de burocracia. Ele citauma impressionante lista de exemplos:distritos administrativos30, títulos ofi-ciais31, escolas de escribas32, a cu-nhagem de moedas com números hi-eráticos33, terminologia real, o ritualde coroação34 e até mesmo a estru-tura física do trono foram derivadosde modelos egípcios35.

29 Ibid., p. 232.30 Ibid. 1Rs 4.7.31 Ibid., p. 135, citando os títulos mazkir e sofer.32 Ibid., p. 238.33 Ibid., p. 237. O fato de que alguém que tocou uma moeda também tocou o escrito egípcio é

significativo.34 R. J. WILLIAMS, citando von Rad (1947) e a contestação de uma parte dessa reivindicação por

parte de Kenneth Kitchen (1966). Williams reconhece ainda a aceitação e a extensão dasugestão de von Rad de que o título real de cinco partes é a base de Isaías 9.7 feitas por Alt(1960) e Wildeberger (p. 234). Williams sugere que, adotando esses ritos, os israelitas aceitaramtambém a idéia de que neles Deus adotou o rei como seu filho.

35 R. J. WILLIAMS, op. cit. Seguindo Brunner (1958), ele mostra que a expressão bíblica “retidãoe justiça são o fundamento do teu trono”, encontrada nos Salmos e Provérbios, é derivada do

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus

18

Williams conclui que houve doisperíodos de contato especialmentepróximo entre Israel e o Egito. O pri-meiro foi o período de Davi e Salo-mão. O segundo foi sob Ezequias, quefoi, destaca ele, o primeiro rei exclu-sivo sobre Israel (agora limitado aJudá e Benjamim) desde o reinadode Salomão. Williams escreve queEzequias tentou igualar os padrões doimpério anterior. Williams lembra oleitor de que o profeta Isaías censu-rou constantemente os reis de Judá doséculo VIII por causa de sua buscapor unidade com o Egito36. O que elenão menciona é que esses mesmosfaraós da 25a Dinastia eram núbios.

Também é importante mencionarque Williams foca sua discussão na(s)nação(ões) de Israel e em seu rela-cionamento com o Egito, e só ocasi-onalmente menciona os hebreus an-tes de eles se tornarem uma nação.Isto, é claro, significa que ele excluio período “mitológico” de 400 anosde cativeiro e as gerações de conta-to no período patriarcal/matriarcal,durante o qual, de acordo com a tra-dição de Israel, Israel viveu no Egito.Isto é importante porque essa tradi-

ção mostra uma crença profunda-mente enraizada de que muitas dastradições de Israel foram fundadasno Egito, e mostra uma crença igual-mente profunda de que algumas desuas tradições foram desenvolvidasem total contraposição às práticas doamigo e irmão mais velho de Israel.

O leitor deveria, então, pensar emtrês períodos nos quais os filhos deIsrael que mais tarde seriam conhe-cidos como Israel e Judá estavam es-pecialmente próximos do Egito: 1) osanos patriarcais e de pré-êxodo, 2) oimpério davídico e 3) o final do sécu-lo VIII e VII do remanescente esta-do de Judá e Benjamim.

3.2 - Discurso profético

Um outro ponto interessante é ainfluência da literatura egípcia/kuchi-ta37 sobre os próprios profetas. Umexemplo notável se evidencia aqui.Piye, algumas vezes mencionadocomo Pianchi, foi um dos mais co-nhecidos faraós da 25a Dinastia. Elefoi responsável pelos extraordináriosmonumentos de Gebel Barkal38. Seureinado começou por volta de 750.

trono do Novo Reino montado num pedestal com o hieróglifo m3’t, retidão, justiça. 1 Reisenfatiza muito a proveniência fenícia do material, mas Williams quer que seus leitores lembremque os modelos ugaríticos e fenícios devem suas origens ao Egito.

36 Id., ibid., p. 252.37 Neste projeto, a terra de kûsh e os substantivos gentílicos e nomes próprios derivados dele serão

escritos com a letra K, a menos que estejam incluídos numa citação na qual o autor originaloptou pela letra C para representar a letra hebraica kaf.

38 Timothy KENDALL, Discoveries at Sudan’s Sacred Mountain of Jebel Barkal Reveal theSecrets of the Kingdom of Kush.

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

19

Em um desses monumentos escritoem hieróglifos egípcios clássicos,Reisner encontrou a seguinte inscri-ção, na qual Amon, a divindade cria-dora, estabelece a autoridade divinade Piye para governar o Egito.

Enquanto você ainda estava nocorpo de sua mãe, eu ordenei quevocê fosse governante do Egito.Eu conhecia você na semente,enquanto você estava no ovo, eusabia que você deveria ser Se-nhor... Um pai faz o seu filhoexcelente, e sou eu que decretoua realeza para você.39

O leitor atento será instantanea-mente lembrado da vocação de Je-remias, especificamente os versícu-los 4 e 5, onde se lê:

A palavra de YHWH veio a mimdizendo: “Antes que eu o formas-se no ventre eu conhecia você, e

antes que você saísse do úteroeu separei você, eu ordenei vocêcomo profeta às nações”. (Tra-dução do autor).

As semelhanças nessas duasnarrativas de vocação são notáveis emerecedoras de exame adicional. Édigno de nota, no entanto, que na en-xurrada de interesse pelo livro do pro-feta Jeremias, que culminou na im-pressionante publicação de nada me-nos que seis extensos comentários emlíngua inglesa na década de 80 (inici-ando com Bright em 1979 e termi-nando com Craigie em 1991)40, qua-se nenhum levantou a questão do em-préstimo que o profeta tomou do fa-raó. Somente Carroll ousa levantar oassunto41, embora já tivesse sido pu-blicado em materiais facilmente aces-síveis, como o texto de Beyerlin42, p.ex., e ele decide que não vale a penaaprofundar a questão em um comen-tário sobre o profeta chorão.

39 Id., ibid., e Miriam LICHTHEIM, Ancient Egyptian Literature.40 John BRIGHT, Jeremiah; William McKANE, Jeremiah; Roland E. CLEMENTS, Jeremiah;

Walter BRUEGGEMANN, To Pluck Up, to Tear Down; Peter C. CRAIGIE, Page KELLEY eJoel F. DRINKARD, Jeremiah 1-25; e Robert P. CARROLL, Jeremiah.

41 Robert P. CARROLL, op. cit. A falta de uma ocasião para a nomeação de Jeremias nos vv. 4-10 pode ser explicada pela hipérbole no v. 5, que coloca sua formação para ser um profeta àsnações antes do seu nascimento (ou até mesmo antes de sua concepção!). Essa localizaçãouterina, onde ele foi consagrado ou preparado para sua tarefa (qdsh pode refletir seu statussacerdotal, cf. 1.1), tem um paralelo egípcio no qual o deus Amon fala ao rei Pianchi (25a

Dinastia: século VIII) com palavras semelhantes: “Foi na barriga da sua mãe que eu falei sobrevocê que você seria o governante do Egito; foi como semente, enquanto você estava no ovo,que eu conheci você, que (eu sabia) que você deveria ser Senhor” (GILULA, 1967; outrosexemplos em BEYERLIN, 1978, p. 27-30).

42 BEYERLIN, 1978, p. 29.

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus

20

é passada de uma geração à próxi-ma. Primeiro vamos examinar o im-portante papel dos kuchitas comocavaleiros na Antigüidade. Depoisvamos ilustrar a contínua interpreta-ção errônea dos kuchitas como osescravos do mundo antigo nos estu-dos bíblicos.

4.1 - O estado da questão

Lisa Heidorn escreveu um arti-go claro sobre os kuchitas como cri-adores de cavalos e cocheiros45. Elase baseia em fontes assiriológicas eegiptológicas primárias e secundári-as sobre esses africanos. O que seutexto diz sobre os períodos do AT podeser resumido da seguinte forma: 1) aprimeira evidência da presença doscavalos domesticados na África seencontra na Núbia no início do sécu-lo XVII a.C., ou seja, dois séculos an-tes que os primeiros cavalos domes-ticados são evidenciados no próprioEgito46. 2) Os kuchitas tinham orgu-lho de sua equitação, e ficavam irri-

4 - O estranho caso dum negro livreseqüestrado e escravizado por 85 anos

dentro da igreja e da universidade43

Uma porcentagem infelizmentealta dos estudos sobre o Antigo Tes-tamento está gravemente maculadapela racialização44 dos textos e dasnarrativas. A mesma racialização ésubstanciada somente pelo racismodo mundo dos intérpretes. Um exem-plo disso é a forma como Kuche temsido representado como uma terra deescravidão. Este artigo ilustra comoum soldado da guarda de elite do reiDavi foi escravizado injustamente pormais de 80 anos; pior ainda, este coi-tado entrou nesse estado de escravomais de 2.000 anos depois de sua pró-pria morte. Vamos examinar comoesse milagre poderia ter acontecido.

Com base em erros antigos daegiptologia, persiste ainda hoje a su-posição de que os núbios fossem dealguma forma tratados diferentemen-te de outros prisioneiros de guerra emais sujeitos à escravidão do queoutros povos. Nosso exemplo do sol-dado escravizado ilustra como essaracialização do texto tem ocorrido e

43 Uma versão abreviada desta seção foi incluída na revista Palmares em Ação, v. 1, n. 1, 2002,publicação da Fundação Cultural de Palmares, do Ministério da Cultura em Brasília.

44 Racialização é o processo de injetar a consideração da raça numa situação onde ela não estavaanteriormente ou insistir que a raça deve ser considerada um dado importante quando não o é.

45 Lisa A. HEIDORN, The Horses of Kush.46 Id., ibid., p. 105, n. 2.

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

21

tados com aqueles que eram incapa-zes de apreciar ou manter seus pró-prios cavalos47. 3) Os egípcios e osassírios tiraram proveito das habilida-des dos kuchitas dentro dos seus pró-prios exércitos48. 4) Kuchitas viviamem várias partes do mundo antigo,algumas vezes em colônias, mas com-pletamente integrados na vida comer-cial de suas comunidades49.

4.2 - Comentaristas do AntigoTestamento

O/a leitor/a pode comparar porsi mesmo/a a imagem dos kuchitasdo cuidadoso trabalho no qual a Dra.Heidorn apresenta um quadro multi-facetado dos kuchitas com as des-cuidadas pressuposições e rasas ca-ricaturas racializadas dos primeirosautores no campo da interpretação doAntigo Testamento e arqueologia ehistória do Oriente Próximo. Cada umdesses homens inseriu a racializaçãoda sua época nos textos do AntigoTestamento. Não estou sugerindo queessas inserções fossem especialmen-te mal-intecionadas; elas são simples-mente expressões dos tempos em queeles trabalharam e publicaram. Maseu pretendo, sim, que o leitor enten-

da que hoje esses e muitos casos se-melhantes contidos nos comentáriosdo Antigo Testamento estão nas es-tantes das “melhores” bibliotecas deuniversidades e seminários em todoo Ocidente cristão. Alguns dessesoutros comentários estão influencia-dos de modo igualmente óbvio nassuas pressuposições racializadas dasuperioridade ariana sobre os africa-nos (junto com uma pressuposiçãoerrada de que os israelitas e judaítaseram caucasóides), enquanto outrossão mais sutis e requerem um olharmais profundo para ver como o co-mentarista (quase sempre) racializouo texto de acordo com os padrões desua época, classe e subcultura.

O exemplo sob consideração sãoos comentários sobre 2 Samuel18.21-33, a seleção de um mensagei-ro para entregar a notícia de uma vi-tória sobre o rebelde Absalão e a sub-seqüente transmissão dessa notícia,primeiro por Amiaás e, imediatamen-te a seguir, por um soldado africanoanônimo (?)50 da guarda de elite deDavi. O que é notável é que não hánada no texto que sugira que essekuchita seja um escravo. Como Hei-dorn mostrou, nos séculos VIII e VII

47 Ibid., p. 105-106.48 Ibid., p. 107 e 109.49 Ibid., p. 110.50 A palavra hebraica kûshî foi traduzida como um nome próprio na King James Version e ainda é

tomada como tal pela New Revised Standard Version nos casos de Jr 36.14 e Sf 1.1.

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus

22

os kuchitas desfrutavam de boa re-putação51 por suas habilidades comoguerreiros, treinadores de cavalos ecocheiros. Eles eram membros res-peitados da sociedade assíria, sendoaté mesmo conhecidos por nomesassírios52. O fato de a narrativa men-cionar que o kuchita (aparentementeum membro da divisão de Joabe datropa de elite de Davi) se curva dian-te de Joabe depois de receber suatarefa, enquanto Amiaás (que apa-rentemente não está sob o comandodireto de Joabe) não o faz, pode serentendido como uma simples ques-tão de linha de comando. Este argu-mento é apoiado pelo fato de queAmiaás insiste e finalmente induzJoabe a permitir que ele corra. Umaoutra explicação é o seu nascimentonobre. Como Amiaás era filho de umsumo sacerdote, pode ser que elesomente precisasse prostar-se peran-te o rei, como o faz no versículo 28.Ironicamente, o kuchita não se pros-tra perante o rei Davi quando chegapara entregar a notícia.

O primeiro comentarista proble-mático a ser considerado é o inglêsSir Henry Preserved Smith, um dis-

tinto colaborador do InternationalCritical Commentary (ComentárioCrítico Internacional)53, uma série decomentários em tamanho de livro,exegeticamente baseados, de livrosindividuais e, ocasionalmente, agru-pamentos de livros, que foi iniciadano século XIX. O ICC continua a serimpresso hoje, pois a editora T & TClark está engajada num processoparalelo. Um deles é a conclusão dasérie publicando comentários de livrosque até agora não foram objeto des-sa honra. Simultaneamente, os edito-res estão selecionando comentáriosque se tornaram obsoletos e contra-tando autores para escrever novos vo-lumes a fim de substituir os mais ve-lhos. No catálogo da T & T Clark, ocomentário de Smith sobre I e II Sa-muel, publicado pela primeira vez em1899, tem uma edição com data de1971. A edição de 1961 continha es-tas infelizes palavras: “Joabe chamaentão um negro (naturalmente, umescravo) e ordena-lhe: ‘vá contar aorei o que você viu’, uma mensagemde luto dada por um mensageiromenosprezado.” 54 Quero reafirmarao/à leitor/a que não há menção de

51 Por uma questão de justiça para com os autores do século XIX e início do século XX, deve serdito que grande parte do material de Heidorn vem da segunda metade do século XX. Os estudossobre os núbios tiveram um incremento na esteira das campanhas da UNESCO para salvar AbuSimbel. Não obstante, ainda não havia nenhuma razão em meio a essa vasta ignorância legítimasobre Kuche para supor que eles fossem os inferiores do Egito.

52 Lisa A. HEIDORN, op. cit., p. 110.53 Henry Preserved SMITH, The Book of Samuel.54 Id., ibid., p. 359 (o grifo é meu).

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

23

e mais tarde deVaux58 sugerem quea cor da pele do mensageiro deveriaser vista como um indicador de quetipo de notícia ele é portador. Comcerteza, Davi, com esperanças de queo seu amado filho ainda esteja vivo,sugere que, como o primeiro corre-dor é o filho de um amigo e aliadopolítico, “ele é um homem bom, e vemcom boas notícias”. Isto não tem nadaa ver com a cor da pele, mas, como afamosa frase sugere, com “o conteú-do de seu caráter” ou, pelo menos,com sua lealdade política a Davi. Ésomente com o comentário de 1984de Kyle P. McCarter, publicado nasérie Anchor Bible, que a absurdida-de das interpretações racializadas dokuchita no exército de Davi é colo-cada de lado:

Assim, Joabe designa um outrocorredor, um integrante do exér-cito, no qual se pode confiar parainformar a vitória e a morte deAbsalão como boas notícias.Não há razão para supor que ofato de que o camarada é um cu-chita tenha significado especial. Adesignação sugere que sua linha-gem era etíope ou núbia, e uns

escravidão e nenhuma indicação depouca consideração pelo kuchita naBíblia. Isto só existe na mente deSmith e, infelizmente, de seus leito-res por mais de um século agora. Seulivro continua sendo publicado e ain-da está nas estantes hoje.

Hertzberg55, que é alemão, es-creve que o kuchita submisso nãochegou a refletir quando aceitou atarefa de contar ao rei o que tinhavisto. Parece que Hertzberg prefereum homem insistente de nascimentonobre a um soldado obediente que secompraz em ver o término do confli-to e a preservação da soberania doreino. Ao receber a ordem de infor-mar, ele faz o que lhe foi ordenado.Amiaás, por outro lado, se recusa aaceitar a decisão do seu comandantede campo, dá um jeito de chegar atéa frente e, no momento em que per-cebe que Davi poderia consideraresse informe como má notícia e po-deria associar essa má novidade comele pessoalmente, finge falta de co-nhecimento para evitar ser o porta-dor de uma má notícia56.

Os franceses parecem ter apro-veitado sua oportunidade no hospícioda racialização, também. Dhorme57

55 Hans W. HERTZBERG, Samuelbücher, p. 279. O autor escreve que o kuchita é “wenigergeistesgegenwärtig” (“tem menos presença de espírito”).

56 McCarter acredita que Amiaás realmente não tinha como saber o que acontecera com Absalão.57 Paul DHORME, Les Livres de Samuel. “D’aprés le v. 27, on voit que la personne du messager

était un indice de bonne ou de mauvaise nouvelle.”58 Roland de VAUX, Les Livres de Samuel.

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus

24

poucos comentaristas (Dhorme edeVaux) concluem que sua pelenegra era, para Davi, um sinal dasmás notícias que ele estava tra-zendo. Mas, claramente, tantoJoabe quanto o cuchita pensa-vam que a notícia era boa e que-riam que Davi pensasse assimtambém. A tradição por trás daintrodução ao salmo 9 sustenta-

59 Kyle P. McCARTER, II Samuel, p. 408. McCarter, no entanto, cai na mesma armadilha desupor que a linha kuchita deva ser da mãe e ignorando a possibilidade de que os judaítas tenhamaceitado a africanidade patrilinear. Williams, como vimos, sustenta com veemência que Ezequiasfoi aquele que dos três reis estava estreitamente alinhado ao Egito. Já destacamos que os egípcioscom os quais ele lida são da 25a Dinastia.

60 R. J. WILLIAMS, op. cit. Williams esboça dois milênios da influência egípcia em Israel e Judá.61 Robert G. MORKOT, The Black Pharaohs of Egypt. Neste texto os termos “núbio” e “kuchita”

são sinônimos.

va que o cuchita (“Cuche”, vejaa Nota textual no v. 21) era ben-jaminita, e isto não era impossí-vel: Cuche, o pai do profeta So-fonias, era bisneto de Ezequias(Sf 1.1); presumivelmente a mãede Cuche era etíope, de modo queele era kûsî, negro, e ao mesmotempo judaíta.59

prendemos em nossa imaginação.Existem diversos exemplos de

como os egípcios serviram de mode-lo para muitas práticas religiosas, po-líticas e sociais de israelitas e judaí-tas60. Há muito tempo se sabe queos kuchitas tomaram conta do Egitono século VIII a.C. O ano 2000 tes-temunhou a publicação de um livrointitulado Os faraós negros do Egi-to, que relata a história da 25a Dinas-tia61. Não pode mais haver nenhummotivo razoável para negar que es-ses egípcios, pelo menos muitos de-les e certamente aqueles durante o

Foi uma longa aflição até chegar,finalmente, aquela justa liberdade dokuchita “escravo” de sua escravidãono exército de Davi. Mas agora queele foi libertado pelo decreto de KyleMcCarter com o reconhecimento deque ser judaíta (ou benjaminita) eafro-descendente eram estados exis-tenciais perfeitamente compatíveispara o habitante típico do mundo bí-blico, talvez nós possamos passar alibertar outros que são especificamen-te mencionados como sendo kuchi-tas, e muitos outros que não o são, daescravidão mental na qual nós os

Conclusões

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

25

período das reformas de Ezequias, aépoca da 25a Dinastia, eram africa-nos negros.

Na Europa, muitos teólogos ta-cham as teologias americanas (emuitos mal distinguem entre teologi-as norte-americanas e sul-america-nas, e muito menos reconhecem asdistinções nacionais que nós todossentimos entre nós) e as teologiasafricanas e asiáticas (novamente compoucas distinções) de contextuais, ouseja, regionais e efêmeras, teologiasque ameaçariam dividir a Igreja uni-ficada.

Acho que está claro que os an-tepassados desses que mais recla-mam hoje começaram a praticar agrande pré-textualização dos textos,inconscientemente. Foram eles queacreditavam, na sua inocência renas-centista e iluminista, que há somenteuma forma de entender cada textoou que há somente uma experiênciagenuína do divino e que esta seriamelhor organizada e explicada pelaIgreja ocidental e, mais tarde, pelauniversidade ocidental.

Talvez esse seja o ponto princi-pal desta reflexão. Há muitas formasde experimentar a Deus e muitas per-guntas a serem feitas ao longo docaminho até seu bacharelado e seuposterior serviço na Igreja de Cristo.Alguns de vocês vieram procuraruma resposta. Prometo que, durante

o tempo que passarem aqui, nós per-turbaremos vocês com muitas res-postas, às vezes para a mesma per-gunta. Pior ainda, cada resposta tra-rá consigo novas perguntas e novaspossibilidades para entender dimen-sões ainda inéditas da vida de fé.

Os gregos contavam loucas es-tórias sobre um deus mulherengo quefreqüentemente caminhava por aí emestranhos disfarces a fim de seduzirjovens mulheres mortais. Lutero es-creveu sobre um Deus escondido; umDeus que nunca é bem reconhecívelaos seres humanos. Zeus aparecenuma peça como um etíope forastei-ro, e Homero sugere que ele deixavasuas tarefas divinas de lado por umtempo a cada ano para visitar os afri-canos, porque, como os brasileiros,eles tinham as melhores festas. Eusugiro que uma das respostas que estenosso trabalho tem a dar aos/às lei-tores/as é que o “deus absconditus”,o Deus escondido de Lutero, estáescondido em parte porque nós esta-mos procurando um deus branco queprefere falar com pessoas brancas,preferivelmente numa certa línguaeuropéia. Será que, entendendo queo Deus do Antigo Testamento é umDeus de pele morena ou negra, queoptou falar com africanos, nós pode-ríamos vislumbrar algo do Todo-Po-deroso que seja um pouquinho maisautêntico?

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus

26

Bibliografia

ALBRIGHT, William Foxwell. The Old Testament World. In: Interpreters’ Bible. Ed.por Buttrick. Abingdon, 1956.

BERNAL, Martin. Black Athena: Afroasiatic Roots of Classical Civilization. Vol. 1:The Fabrication of Ancient Greece 1785-1985. New Brunswick, NJ/USA: RutgersUniversity, 1987.

BEYERLIN, Walter. Near Eastern Religious Texts relating to the Old Testament.Philadelphia: Westminster, 1978.

BRIGHT, John. Jeremiah: A New Translation with Introduction and Commentary.Garden City, NY: Doubleday, 1979. 372 p. (The Anchor Bible).

BRUEGGEMANN, Walter. To Pluck Up, to Tear Down. Grand Rapids, 1988.(International Theological Commentary, ed. por Frederick Carlson Holmgren eGeorge A. F. McKnight).

CARROLL, Robert P. Jeremiah. Philadelphia: Westminster, 1986. 874 p. (Old TestamentLibrary).

CLEMENTS, Roland E. Jeremiah. Atlanta: John Knox, 1988. 276 p. (Interpretation: ABible Commentary for Teaching and Preaching).

CRAIGIE, Peter C.; KELLEY, Page; DRINKARD, Joel F. Jeremiah 1-25. Waco, TX:Word, 1991. 389 p. (Word Biblical Commentary, 26).

deKLERK, W. A. The Puritans in Africa: A Story of Afrikanerdom. London: RexCollins, 1975.

DHORME, Paul. Les Livres de Samuel. Paris: Librairie Victor Lecoffre, 1910.FELDER, Cain H. Race, Racism and the Biblical Narratives. In: Id. (Ed.). Stony the

Road We Trod. Minneapolis: Fortress, 1991. p. 127-45.HANNAFORD, Ivan. Race: The History of na Idea in the West. Washington DC/

Baltimore: Woodrow Wilson Center/Johns Hopkins, 1996.HEIDORN, Lisa A. The Horses of Kush. JNES, v. 56, n. 2, p. 105-14, 1997.HERTZBERG, Hans W. Samuelbücher. 1965. (Das Alte Testament Deutsch).HESS, Jonathan M. Johann David Michaelis and the Colonial Imaginary: Oriental

Studies and the Emergence of Racial Anti-Semitism in 18th Century Germany.Jewish Social Studies, v. 6, n. 2, p. 56-101, 2000.

—. Sugar Island Jews? Jewish Emancipation and the Rhetoric of “Civic Improvement”in Eighteenth Century Germany. Eighteenth Century Studies, v. 32, n. 1, p. 92-100,1998.

JANSON, H. W. History of Art. 2. ed. Ed. por Milton S. Fox. New Jersey / New York:Prentice-Hall / Harry N. Abrams, 1970 (1. ed.: 1962). 616 p.

JÖRGENSEN, Morgens. Egypt III: Coffins, Mummy Adornments and Mummies fromthe Third Intermediate Period, Late, Ptolemaic and Roman Period. Ed. por AnnMarie Nielsen. Copenhagen: Ny Carlsburg Glytotek, 2001. 376 p.

Estudos Teológicos, 42(1):5-27, 2002

27

KENDALL, Timothy. Discoveries at Sudan’s Sacred Mountain of Jebel Barkal Revealthe Secrets of the Kingdom of Kush. National Geographic, p. 96-124, nov. 1990.

LICHTHEIM, Miriam. Ancient Egyptian Literature: The Late Period. London:University of California, 1980.

MAKER, Alan. Something New Out of Africa: Christian and African Spirituality Meetand Give Hope for World Humanity. Princeton Seminary Bulletin, v. XXII NewSeries, n. 2, p. 185-201, 2001.

MARX, Anthony W. Making Race and Nation: A Comparison of the United States,South Africa and Brazil. Cambridge: Cambridge University, 1998.

McCARTER, Kyle P. II Samuel: A New Translation with Introduction, Notes andCommentary. Garden City: Doubleday, 1984. (Anchor Bible, ed. por William FoxwellAlbright e David Noel Friedman).

McKANE, William. Jeremiah: Introduction and Commentary on Jeremiah 1-29. T & TClark, 1986. V. I, 658 p. (International Critical Commentary).

MOLNAR, Stephen. Human Variation: Races, Types and Ethnic Groups. 2. ed. En-glewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1983. (1975: Races, Types and Ethnic Groups:The Problem of Human Variation).

MORKOT, Robert G. The Black Pharaohs of Egypt: Egypt’s Nubian Rulers. London:Rubicon, 2000.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. As civilizações africanas no mundo antigo. In: Thoth: escri-ba dos deuses. Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, 1997. p. 224-48.

NOTH, Martin. Die Welt des Alten Testaments. Berlin: Alfred Töpelmann, 1962.ROTH, Ann Macy. <[email protected]>, Building Bridges to Afrocentrism: A

Letter to My Egyptological Colleagues. ftp://oi.uchicago.edu/pub/papers/AMRoth_Afrocentrism.ascii.txt, 26 January 1995.

SMITH, Henry Preserved. The Book of Samuel. [1899, 1961] Edinburgh: T & T Clark,1861. (International Critical Commentary).

VERCOUTTER, Jean; LeCLANT, Jean. The Image of the Black in Western Art: Vol I:From the Pharaohs to the Fall of the Roman Empire. Ed. por Jean Vercoutter, JeanLeClant. London: Harvard University, 1976.

WILLIAMS, R. J. A People Come Out of Egypt: An Egyptologist Looks at the OldTestament. SVT, Leiden: Brill, p. 231-52, 1975.

YURCO, Frank. Egypt and Nubia: Old, Middle and New Kingdom Eras. In: YAMAUCHI,Edwin (Ed.). Africa & Africans in Antiquity. East Lansing/Michigan: MichiganState University, 2001. p. 28-112.

Peter NashEscola Superior de Teologia

Caixa Postal 1493001-970 São Leopoldo – RS

[email protected]

O papel dos africanos negros na história do povo de Deus