O Paradigma Pós Keynesiano

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    O PARADIGMA PÓS KEYNESIANO

    The Post Keynesian Paradigm

    FERNANDO J. CARDIM DE CARVALHO

    professor do IE/UFRJ e pesquisador do Grupo Moeda

    TEXTO EXPOSITIVO

    Correntes de pensamento econômico se diferenciam pelas hipóteses fundamentais em quecada uma se apóia. Schumpeter cunhou a diferença entrevisão e análise para marcar comprecisão a identi cação de princípios organizadores de uma dada abordagem (algumas vezes,apesar de nem sempre ser possível fazê-lo, referidas como seus axiomas) que constitui a visãodessa escola da construção de instrumentos e ferramentas de trabalho, que constituiriam aanálise econômica. O que opõe escolas de pensamento raramente é a análise no sentido dado.Instrumentos podem frequentemente ser utilizados em diversos contextos teóricos por pesqui-sadores de diferentes a liações. Assim, por exemplo, instrumentos como os conceitos de elas-ticidade-renda da demanda são úteis para várias escolas diferentes. Já outros conceitos podemser especí cos de uma dada corrente, como e ciência marginal do capital, composição orgâni-ca do capital ou preços de produção, sem utilidade fora da visão em que foram desenvolvidos.

    É possível, portanto, ver a economia como um conjunto de ferramentas a serem utilizadasconforme a tarefa especí ca que se estiver cumprindo apenas em um sentido relativamentelimitado. Correntes de pensamento são aproximações do conceito de paradigma, de ThomasKuhn. Há questões comuns a mais de um paradigma, onde a escolha de ferramentas analíti-cas pode obedecer apenas a uma questão de conveniência. Há, por outro lado, questões quesequer podem ser feitas conforme o paradigma que se estiver adotando, ou por não fazeremsentido (violando, por exemplo, axiomas fundamentais daquela corrente), ou por não ter re-levância na hierarquia de temas reconhecida pela corrente.

    Nessa direção, o que caracteriza o paradigma pós keynesiano, ou o opõe a outros para-digmas, é a visão que de ne seus fundamentos. A economia pós keynesiana tem como objeto

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    de estudo o que Keynes chamou deeconomia empresarial ou economia monetária de pro-dução . Esses rótulos designam uma forma especí ca de organização da economia, com suahierarquia própria de processos, diversa da que é proposta por outras correntes. A economia

    walrasiana, por exemplo, como o próprio Walras descreveu de modo muito clara nos seusElementos de Economia Pura, concebe a economia como constituída fundamentalmente defamílias que produzem para seu próprio consumo e trocam produtos movidas pela possi-bilidade de aumentar seu bem estar quando isso é possível. A produção não é movida pelaexpectativa de lucro, e a troca não é um fenômeno essencial, realmente. A atividade de trocaé provável porque a alocação original de bens é suposta ser feita “ao azar”. Apenas por coin-cidência a distribuição original de bens entre os indivíduos corresponderia precisamente aoque maximizariam seu bem estar. Tivesse havido essa coincidência, todos consumiriam seuspróprios produtos. É a improbabilidade dessa coincidência que torna a troca, o comércio,uma atividade mais persistente. Esse paradigma foi apelidado por um autor pós keynesianoque se tornou famoso com a crise econômico- nanceira iniciada em 2007, Hyman Minsky,como o paradigma da feira da aldeia , porque ela concebe a economia como uma feira ondefamílias de camponeses e artesãos trocam seus produtos.

    Outras visões de economia, como a de Marx, são mais próximas do paradigma propostopor Keynes, mas reconhecem uma hierarquia de processos diferente. Para Marx a forma dageração e apropriação do excedente é a principal característica do que chamava de modo deprodução. Para Keynes, essa é uma questão no máximo secundária. O conceito de exceden-te não é inteiramente estranho à corrente pós keynesiana, mas a acepção mais aceita é a de

    Adam Smith, não a de Ricardo/Marx.O que de ne uma economia empresarial para pós keynesianos? Há várias formas de apre-

    sentar os seus princípios fundamentais, propostas por autores importantes dessa corrente,como Paul Davidson, Hyman Minsky, Jan Kregel, dentre outros. Eu vou listá-los de acordocom uma classi cação que eu mesmo propus em um livro publicado há quase vinte anos.1 Éimportante se ter em mente que esses postulados são propostos não por seu particular “re-alismo”, mas pela sua contribuição à criação de uma visão de economia cuja principal carac-terística é a não-neutralidade da moeda . Para Keynes, e os autores que o seguem, essa seriaa característica mais importante dessa forma de organização econômica, responsável pelosaspectos mais distintivos de sua dinâmica. O que se busca, na de nição da visão, é identi carqual o menor conjunto de postulados necessário para permitir que as características privile-giadas possam ser exploradas.

    UMA ECONOMIA MONETÁRIA DE PRODUÇÃO SERIADEFINIDA POR SEIS POSTULADOS

    O primeiro desses postulados seria o de que a produção, vista como a principal atividadeeconômica, é realizada por rmas com vistas à obtenção de lucros monetários com a vendados produtos (e não a troca por outros produtos) em mercado. Fundamentalmente, o que

    1 Mr Keynes and the Post Keynesians , Cheltenham: Edward Elgar, 1992.

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    esse postulado signi ca é que, a abordagem de Keynes, rmas são indivíduos, com objetivospróprios, que não se confundem com os objetivos, por exemplo, de seus acionistas. Isso é pró-ximo da idéia de Marx de que o capital tem desígnios próprios, como, aliás, Keynes mesmoreconheceu. A venda não é eventual, é a essência mesma da transformação de produtos emdinheiro, como, novamente, Marx também sugeriu. Esse é um ponto de contato importantecom Marx, o único, na verdade, que Keynes aceitou em toda a sua obra.

    É importante ressaltar que a elevação do lucro monetário à categoria de m, no caso doindivíduo frma , não implica nenhuma forma de ilusão monetária. O que importa na moedaé sua liquidez , isto é, sua capacidade de representação de riqueza mais exível, transformávelem qualquer outra, segundo a conveniência do momento. O conteúdo real dos valores mone-tários continua importante, mas o indicador de valor real nesse tipo de economia é o volumede riqueza que uma dada quantia de dinheiro pode criar. O meio universal de produção, es-sencial em qualquer setor, é a força de trabalho. Desse modo, o indicador proposto por Keynesdo conteúdo real de valores monetários é o que Adam Smith descreveria como a quantidadede trabalho que se pode comandar com um esse valor. Em outras palavras, para medir o valorreal de um valor monetário o que se deve fazer é dividi-lo pela unidade de salários monetários,e ver qual o volume de trabalho que ele poderia comprar.

    O segundo postulado é o de que apesar das relações de mercado serem relações entre juridicamente iguais, as relações econômicas em uma economia empresarial são hierarquiza-das. Em outras palavras, o poder é distribuído de forma diferenciada entre os diversos grupos,cabendo aos empresários sempre uma posição dominante. Isso se manifesta diretamente nateoria keynesiana, nos momentos em que empresas e trabalhadores ou investidores e poupa-dores se encontram. A primeira se dá no mercado de trabalho, onde tanto o volume de em-

    prego quanto o valor do salário real resultam de decisões empresariais. Trabalhadores têm vozapenas no que tange a salários monetários e, indiretamente, o nível de preços. A segunda apa-rece na relação entre investimento e poupança, em que o primeiro determinada a segunda.

    O terceiro postulado é o da temporalidade da atividade econômica. Basicamente, o quese reconhece aqui é a multiplicidade de assincronias que caracteriza a atividade, separandoespecialmente o momento da tomada de decisões do momento da veri cação de resultados.Essa assincronia em particular torna necessária a consideração especí ca da formação de ex-pectativas por parte dos agentes. Como expectativas são formadas (por que processos), o queé levado em consideração, as características mais gerais dos processos de decisão, tudo isso setorna importante quando se reconhece a temporalidade dos processos econômicos.

    Mas a simples consideração de temporalidade não é su ciente para de nir uma economiaempresarial. Aparentado, mas diverso do terceiro postulado, é proposto um quarto princí-pio, o postulado da incerteza ou, como preferiu chamar Paul Davidson, da inergodicidade.Trocando em miúdos, processos inergódicos são aqueles que não tendem a uma posição pré--determinada no futuro, não gravitam, portanto, em torno de uma posição de equilíbrio. In-certeza no sentido proposto por pós Keynesianos signi ca que processos econômicos estãosujeitos a rupturas e inovações que impedem a concretização de qualquertendência de longo

    prazo . A incerteza aqui não signi ca apenas a di culdade de prever o futuro, mas a existênciade inovações signi ca que mesmo o universo de eventos possíveis não é conhecido, porque ele

    pode ser alterado em resultado das próprias decisões dos agentes. Nesse tipo de economia, ostomadores de decisão criam o futuro ao invés de simplesmente descobri-lo. A incerteza que

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    cerca as decisões mais importantes, chamadas de decisão crucial por G.L.S. Shackle, o maisimportante teórico de expectativas sob incerteza nessa corrente, obriga os agentes a de nircomportamentos defensivos face à incapacidade não apenas de prever o quevai acontecer,mas até mesmo de prever o que pode acontecer. Nessas circunstâncias, não há a possibili-dade de contratação da proteção tradicional, os seguros. Outras formas são necessárias. Aeconomia pós keynesiana, em certo sentido, é a exploração dos comportamentos defensivosemergentes em economias empresariais e suas implicações. Entre esses comportamentos de-fensivos estão, por exemplo, a preferência pela liquidez, a poupança precaucional, o compor-tamento convencional e outros conceitos importantes na teoria econômica keynesiana.

    O quinto postulado é o da coordenação. A atividade econômica dos indivíduos e rmasem economias empresariais são coordenadas de duas formas. A mais tradicional e intuitiva éa coordenação ex-post por tentativa e erro nos mercados. Produz-se, tenta-se vender e vê-se oque acontece. Se não é possível escoar a produção, altere preços e depois reveja suas decisõesde produção. Caso contrário, faça o oposto. Essa forma de coordenação não é ctícia, masé muito menos importante do que normalmente se assume. Poucos produtos de valor maiselevado, por exemplo, são produzidos desse modo. Certamente o próprio processo produtivonão é organizado assim. Nesses outros casos, há uma forma de coordenação ex ante, atravésdo sistema de contratos monetários. Fatores de produção são contratados por períodos relati-

    vamente longos através de contratos. Bens de capital de maior valor também. Esses contratosreduzem a incerteza que cercaria as decisões de produção e viabilizam a extensão do processoao nível que veri camos nas economias mais avançadas. Mas a existência de contratos de-manda a disponibilidade de uma moeda de conta estável, que permita o acordo em torno de

    valores monetários a ser registrado. Por outro lado, a existência de um sistema de contratos

    denominados em moeda contribui para reforçar a estabilidade da própria moeda. Além disso,a moeda, como meio de pagamento, vê sua utilidade aumentar porque agora se torna tambémum meio seguro de liquidação de dívidas em meio a um conjunto de atividade que, como vi-mos acima, são inerentemente incertas.

    Para assegurar o caráter da moeda como representação estável de poder de compra, énecessário que algumas condições sejam cumpridas, dentre elas, notavelmente, restriçõessobre sua criação e disponibilidade. Keynes de niu essas condições, que constituem o sextopostulado como sendo a baixa ou negligível elasticidade de produção e igualmente negligívelelasticidade de substituição da moeda. Desse modo, a oferta de moeda não é necessariamenterígida, como visto nos modelos IS/LM, por exemplo, mas certamente não pode ser inteira-mente acomodativa, respondendo passivamente à demanda do público, como sugerem teóri-cos monetários conhecidos como horizontalistas.

    Com esses postulados, de ne-se uma forma de organização econômica marcada pelapossibilidade de de ciência de demanda efetiva e pela normalidade de níveis de emprego in-feriores ao pleno, entre outras características. Para chegar a isso, contudo, é preciso ir alem da

    visão e construir os instrumentos de análise adequados a esse paradigma. Para isso, contudo,o único caminho é o estudo dos trabalhos que povoam esse paradigma.