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    O PENSAMENTO DE HANS KELSEN SOBRE O DUALISMO CAUSALIDADE EIMPUTAO UMA EXPLORAO SOBRE A LEI DE CAUSALIDADE E A

    CINCIA MODERNA

    Revista dos Tribunais | vol. 928 | p. 219 | Fev / 2013DTR\2013\434

    Henrique Garbellini CarnioMestre e Doutorando em Direito pela PUC-SP. Bolsista do Centro de Aperfeioamento de Pessoalem Nvel Superior. Advogado.

    rea do Direito: Fundamentos do DireitoResumo: O presente artigo tem como escopo abordar a interessante investigao kelseneana, muitopouco explorada na doutrina brasileira, sobre a relao existente entre os princpios da retribuio,causalidade e imputao. De forma mais objetiva, a preocupao do texto est centrada no dualismoentre causalidade e imputao que na investigao kelseneana revela como a noo de seuprincpio da imputao est ligada ao conceito de retribuio e, ainda, como o princpio dacausalidade uma concepo moderna que dever ser criticada em sua perspectiva tradicional deanlise cientfica.

    Palavras-chave: Hans Kelsen - Princpio da causalidade - Princpio da imputao - Princpio daretribuio.Abstract: The presente article has as scope the interesting investigation of Hans Kelsen, very littleexplored in the Brazilian doctrine, regarding the relationship between the principles of retribution,caus ality and imputation. Through a direct manner, the concern of the text is centered on thedichotomy between causality and imputation in which the Kelsen's research shows how the notion ofits principle of imputation is linked to the conception of retribution, and also, how the principle ofcausality is a modern conception that should be criticized on its traditional perspective of scientificanalysis.

    Keywords: Hans Kelsen - Principle of causality - Principle of imputation - Principle of retribution.Sumrio:

    1.A LEI DA CAUSALIDADE E A CINCIA MODERNA - 2.O PRINCPIO DA IMPUTAO: ENTRECAUSALIDADE E IMPUTAO - 3.REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    1. A LEI DA CAUSALIDADE E A CINCIA MODERNA

    O desenvolvimento do princpio da causalidade, absolutamente vlido para o pensamento dosatomistas, correu o risco de se perder durante o perodo da Idade Mdia com o triunfo docristianismo em razo da concepo teolgica de mundo que reinou durante esse perodo.

    Com as nuances da nova cincia natural difundida por autores como Bacon, Galileu e Kepler,1 noentanto, o princpio da causalidade foi revivido de tal forma que permaneceu como sendo o nicoesquema de interpretao da natureza at recentemente, sendo questionado atualmente poralgumas vertentes da fsica moderna.

    O ponto de partida da constatao de uma crise no princpio da causalidade na poca modernaidentificada por Kelsen se inicia em Hume. Suas objees se dirigiam, sobretudo, contra a ideiaainda dominante em seu tempo de que existia uma conexo objetiva entre causa e efeito, umaconexo inerente s prprias coisas, um lao ntimo no sentido de que a causa produz de algumaforma o efeito, ou seja, a causa produz algo que traz como consequncia o efeito.

    A proposta de Hume era transferir a conexo entre causa e efeito da esfera do objetivo para a esferado subjetivo, fazendo assim da existncia de um problema ontolgico um problema epistemolgico.2

    Na verdade, Hume prope uma separao do problema da causalidade em componentesontolgicos e epistemolgicos partindo da ideia de que na natureza no h causalidade no sentidode uma conexo necessria, mas apenas uma sucesso regular dos fatos. A ideia de uma lei geralda causalidade conforme a qual causas similares produzem necessariamente efeitos similares erameramente um hbito de pensamento que partindo da observao constante de sucesses regulares

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    acabou se tornando uma imutvel convico.3

    A proposta de Hume trouxe uma revelao importante, mas um pouco exagerada. O costume, por sis, no leva a mente a crer que dessa sucesso no esteja excluda toda exceo. Da a razo pelaqual Kelsen afirma que a teoria daquele filsofo influenciada pela ideia do direito consuetudinrio

    de sua poca, ressaltando ainda que nem sequer o costume estabelece regra sem excees.Com isso se est a afirmar que a constatao de Hume muito eficiente, porm, demonstra-sedesligada do sentido originrio do princpio da causalidade. Ela se apresenta mais como umaideologia da causalidade de seu tempo do que como prprio sentido da razo pela qual estedesenvolvimento no se baseia apenas no costume e no hbito.

    A ligao to forte que o exerccio da vontade da autoridade transcendental era o vnculo objetivoque unia causa e efeito. E, mesmo quando a lei da causalidade se separa do princpio da retribuio,a desmistificao dessa crena dificilmente cumprida porque sempre se manteve metamorfoseadana causa metafsica.4

    Ao transformar a causalidade de uma conexo objetivamente necessria entre causa e efeito,imanente a natureza, em um princpio subjetivo do pensamento humano Hume - e tambm Kant -

    simplesmente libertaram a lei da causalidade de um elemento que ela herdou como sucessora doprincpio da retribuio. Isso denota um desenvolvimento do pensamento humano pronto tambm aser superado.

    Kelsen passa, ento, a se apoiar em sua anlise nos desenvolvimentos da fsica moderna,demonstrando que existem outros elementos do conceito de causalidade que so controvertidos,como o de que todo efeito deve ser igual sua causa, usado nos estudos sobe conservao deenergia de Robert Mayer.

    O princpio de conservao de energia, mediante o qual o desaparecimento de certa quantidade deenergia de um tipo se d pela ocorrncia de certa quantidade de energia de outro tipo, tem umsentido completamente diferente do que possui o princpio de que a causa deve ser igual ao efeito.

    Na realidade, o elemento da teoria da causalidade se originou da doutrina de retribuio, que se

    funda sobre a tendncia substancializadora do pensamento primitivo, que torna todas as qualidades,condies e foras em substncias qualitativamente determinveis a serem ponderadas de maneiraproporcional. O sentido, porm, problemtico dessa proporo sublinha o fato de que as medidasdos elementos no possuem carter objetivo, seno representam meramente uma valoraosubjetiva.

    Kelsen parece querer esclarecer esse entendimento a partir da sua comparao com o direito penal.Se no direito penal se abandona a ideologia da retribuio - e com ela a ideia de que delito e castigoso substncias -, e se se aceita no lugar da retribuio a preveno como castigo, perde-se ento osentido equivalente de delito e pena. Nessas condies a pena no teria o papel repressor, mas o deprevenir delitos futuros. Nem o delito, nem a pena so quantidades objetivamente mensuradas. Paraa teoria da preveno a equivalncia do delito e da pena tem uma significao totalmente diferentedo que possui a teoria da retribuio, da mesma forma que o princpio da equivalncia das energias

    difere totalmente do princpio da igualdade de causa e efeito na velha teoria da causalidade.

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    O progresso do princpio jurdico da preveno est muito mais ligado com o progresso do princpioda fsica energtica, que constitui uma superao do princpio da retribuio.

    Kelsen apresenta, ainda, uma extenso do carter problemtico da afirmao de que a causa deveseguir o efeito e vice-versa. Isso derruba a ideia de que uma causa tem somente um efeito e de queum efeito tem somente uma causa. Nesse sentido o princpio da causalidade segundo a concepopopular denota um carter bipartido.

    Essa maneira de atribuir um carter bipartido para o princpio da causalidade se d pelo hbito de seinterpretar a natureza segundo o princpio da retribuio, juridicamente representado pelo princpioum delito, uma pena, que gera a impossibilidade do bis in idem. Na verdade, cada causa tem umnmero infinito de efeitos, do mesmo modo que cada efeito tem um infinito nmero de causas. 6

    Outra maneira condicionada de se considerar o princpio da causalidade em extenso maneira

    moderna

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    como se considera o princpio da retribuio diz respeito ao aspecto cronolgico. A lei decausalidade foi originariamente considerada sob o mesmo aspecto do princpio da retribuioestando suas partes enlaadas numa irreversvel sucesso cronolgica. Kelsen afirma que nessaforma de princpio assimtrico da lei de causalidade foi concebida como forma fundamental da lei danatureza.7

    A questo que a sucesso cronolgica dos fenmenos no , consequentemente, um elementoessencial de uma lei natural. Na realidade a cincia moderna conhece muitas relaes nas quais noaparece a diferena temporal entre os elementos relacionados, pois existem conexes funcionaisentre fenmenos simultneos. Desse modo, pode-se afirmar tranquilamente que h leis da naturezaque no correspondem ao esquema original da causalidade.8

    Com essa concepo moderna da lei da natureza como conceito de dependncia funcional houve aemancipao da noo mais velha da causalidade como concatenao de dois acontecimentosexistentes simultaneamente. Tal modificao no significado da lei de causalidade implica tambmsua emancipao do essencialmente assimtrico princpio da retribuio.

    Nesse desenvolvimento da interpretao do princpio da causalidade, o maior confronto foi dado pelamecnica quntica, que aps a identificao do princpio da indeterminao de Heisenberg, torna um

    tanto desnecessrio o princpio da causalidade ou, no mnimo, esvai-lhe o contedo de certeza. Comela ocorre uma modificao dos conceitos de causalidade no sentido de uma transio de certezaabsoluta a mera probabilidade. Esta a ideia de Reichenbach que interpreta la crisis en la fsicamoderna no como un proceso que implica el reemplazo de la causalidad por leyes estadsticas, sino,ms correctamente, como uma modificacin del concepto de causalidad.9

    Por fim, a ltima anlise de Kelsen sob a concepo das leis da natureza, como esclarecedoras dofuturo parte da relao com as normas jurdicas e a refutao de que as mesmas, comoorganizadoras da sociedade, so esclarecedoras do futuro como as leis da natureza.

    Enquanto normas, as regras de direito expressam atividades motoafetivas, mais do quesimplesmente cognoscitivas. Elas no so juzos sobre acontecimentos futuros. No so, sequer,

    juzos sobre a realidade. So normas que indicam o que deve suceder no podendo ser verdadeirasou falsas. A viso de normas como juzos futuros parte de um reconhecimento de divindadenormativa, o que no possvel entre os humanos. Tenemos propensin a ignorar la diferenciaentre la regla jurdica y la ley de la naturaleza porque sta fu originariamente uma regla de derechoexpresante de la voluntad de Dios.10

    Conforme gradativamente demonstrado, no processo histrico do princpio da causalidade, aomenos at Hume, a ideia de causalidade foi considerada meramente como uma norma, como umaexpresso da vontade divina, pois alm de Deus ser a autoridade moral absoluta determinante dasnormas da vida social tambm o criador do universo.

    O grande ponto em que toca Hume a revelao de renunciar busca da necessidade de nexocausal na vontade de Deus e com essa ideia abandonar, inclusive, toda a noo prvia dacausalidade. Ela deixa de ser uma expresso da vontade divina, uma norma. A sua inviolabilidadeenquanto no sendo um juzo sobre a realidade que no pode ser contraditado modificada pelo

    sentido da prpria realidade. Nesse nvel o conhecimento humano no admite mais como esquemade interpretao uma lei inviolvel, razo que leva Kelsen a afirmar uma revoluo no sentidointerpretativo da lei de causalidade que vem acompanhado da superao da noo de causalidadecomo uma necessidade absoluta por uma simples probabilidade estatstica, conforme previu amecnica quntica. Isso porque se superou justamente o elemento mais importante da lei dacausalidade que estava gravado na sua herana do princpio da retribuio: a necessidade com aqual a deusa da justia, da retribuio, castigava aos malfeitores e mantinha o curso prescrito pelanatureza.

    Com a separao da lei da causalidade do princpio da retribuio ocorre o divrcio das noes denatureza e sociedade. A natureza fazia parte da sociedade segundo a interpretao que se davapelo princpio da retribuio, e que se estendeu at uma lei universal que se impe de maneiraespecial na teologia crist. A natureza era a sociedade perfeitamente obediente.11

    A ideia crist da impossibilidade de violao dos mandatos de Deus mantm a teologia crist

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    somente com relao natureza, e no com respeito sociedade. Assim que a teologia se vforada a admitir um limite onipotncia de Deus, e para explicar a existncia do mal cria o livrearbtrio, ou seja, somente o homem em sociedade tem livre arbtrio, o que no existe na natureza. 12

    Surge dessa concepo teolgica do mundo nitidamente um dualismo entre natureza e sociedade,

    um dualismo que Kelsen chama de intrassistemtico porque um dualismo de direito natural, nosentido de uma ordem jurdica natural, e sociedade. Isto : um dualismo de direito natural e de direitopositivo. Ele gera a clssica definio de direito natural como uma ordem jurdica natural vinculada aideia de que a natureza uma criao de Deus e de que suas leis so a expresso da vontade deDeus.13

    Esse dualismo de natureza e sociedade se estende, mas no se finda na especulao cientfica. Naanlise crtica de Kelsen da natureza da norma, esse dualismo tambm se torna problemtico. Coma pretenso do dever ser completamente diferente da de ser, ou seja, da pretenso da norma seruma lei da sociedade diferente da lei da causalidade surge uma interpretao considerada por certosautores como ideolgica. Portanto o dualismo sociedade e natureza substitudo pelo dualismorealidade e ideologia.

    Kelsen nota que para a sociedade moderna o fato aparece como parte da realidade determinado

    pelas mesmas leis que um fato natural. No existe diferena social entre leis da natureza e leissociais, mesmo porque a lei natural deixa de ter o carter de necessidade absoluta e passa a ter ocarter de probabilidade estatstica, diferente da especulao religiosa em que a natureza era umaparte da sociedade regida pelo princpio da retribuio.14

    Com a completa emancipao da causalidade do princpio da retribuio, especificamente comrelao noo moderna de lei, h um retorno, agora no mais como mera interpretao animista,pois em parte ela foi substituda pelo prprio conceito de cincia. A sociedade passa, ento, a serconsiderada como uma parte da natureza.2. O PRINCPIO DA IMPUTAO: ENTRE CAUSALIDADE E IMPUTAO

    A investigao kelseniana sobre a cincia jurdica15 se pauta por um esquema rgido de exploraodo direito. Considerando o direito como norma, ou seja, como sistema de normas, e limitando a

    cincia jurdica ao conhecimento e descrio dessas normas jurdicas e s relaes por estasconstitudas, delimita-se o direito em face da natureza e a cincia jurdica, como cincia normativa,em face de todas as outras cincias que visam o conhecimento, informado pela lei da causalidade,de processos reais.16

    Para Kelsen, somente por essa via se alcana um critrio seguro de distino unvoca de sociedadee natureza e de cincia social e natural.

    Primeiramente, Kelsen analisa a natureza como uma determinada ordem das coisas ou um sistemade elementos que esto ligados uns com os outros como causa e efeito, exemplificado com oclssico exemplo do aquecimento do ferro e sua consequente dilatao. Se h uma cincia socialque diferente da cincia natural, ela deve descrever seu objeto diferentemente do princpio decausalidade, ou melhor, no apenas a partir dele.

    A sociedade enquanto ordem normativa da conduta humana no pode ser totalmente negadatambm como elemento da natureza. Nessa afirmao da sociedade enquanto ordem normativa setem claro que na abordagem em que Kelsen se refere conduta humana, verifica-se uma conexodos atos de conduta humana entre si e com outros fatos. Desse modo, nota-se que Kelsen anunciauma relao no apenas formada de acordo com o princpio da causalidade, mas tambm com umoutro princpio que totalmente diferente do princpio da causalidade.

    Apenas com a compreenso e aplicao de tal princpio, a partir da prova de que est presente nopensamento humano e aplicado por cincias que tm por objeto a conduta dos homens entre sienquanto determinada por normas, que se poder fundamentar a diferena da sociedade comouma ordem diferente da natureza. Somente com ele tambm se pode distinguir as cincias naturaisdas cincias que o aplicam na descrio de seu objeto, o que inclusive as determina comoessencialmente diferentes.

    A proposta de Kelsen, com efeito, que somente quando a sociedade passa a ser entendida como

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    uma ordem normativa da conduta dos homens entre si que ela pode ser concebida como um objetodiferente da ordem causal da natureza. Do mesmo modo tambm, s ento que a cincia socialpode ser contraposta cincia natural.

    Somente quando o direito for uma ordem normativa da conduta dos homens entre si, pode ele como

    fenmeno social ser distinguido da natureza e, assim, a cincia jurdica, enquanto cincia social, serseparada da cincia da natureza.17

    O princpio ordenador da ordem normativa da conduta dos homens entre si, diferente do princpio dacausalidade, designado por Kelsen como imputao (Zurechnung).

    Na anlise do seu pensamento jurdico, com relao s proposies jurdicas, no direito aplicadoefetivamente o princpio da imputao, que embora anlogo ao da causalidade se distingue dele demaneira essencial. A analogia entre o princpio da imputao e o princpio da causalidade reside nacircunstncia de que o primeiro tem nas proposies jurdicas uma funo completamente anloga do princpio da causalidade nas leis naturais. Da mesma maneira que uma lei natural, umaproposio jurdica liga entre si dois elementos. Assim pode-se dizer que a diferena que existe deque a ligao que se exprime na proposio jurdica totalmente diferente da lei natural expressapelo princpio da causalidade.

    Enquanto uma lei natural se expressa na frmula se A , B , a proposio jurdica se expressa nafrmula se A , B deve ser, mesmo quando B no seja. A circunstncia que delimita essa separaofaz surgir a ideia da fico jurdica. Para Kelsen, a ligao da proposio jurdica vem de suaproduo por uma norma estabelecida pela autoridade jurdica, por uma vontade, enquanto que aligao de causa e efeito apresentada pela lei natural totalmente independente de qualquerinterveno nesse sentido.18

    A expresso dever ser (Sollen) utilizada como elemento de ligao designa o sentido do princpio daimputao como uma ligao de pressuposto e consequncia.

    O dever ser jurdico, isto , a cpula que na proposio jurdica liga pressuposto e consequncia,abrange as trs significaes: a de um ser-prescrito, a de um ser-competente (ser-autorizado) e a deum ser (positivamente) permitido das consequncias. Quer isto dizer: com o dever ser (Sollen) que

    a proposio jurdica afirma so designadas as trs funes normativas. Este dever ser apenasexprime o especfico sentido com que entre si so ligados ambos os fatos atravs de uma norma

    jurdica, ou seja, numa norma jurdica. A cincia jurdica no pode exprimir esta conexo produzidaatravs na norma jurdica, especialmente a conexo do ilcito com consequncia do ilcito, senopela cpula dever ser (). Em especial, a cincia jurdica no pode afirmar que, de conformidadecom uma determinada cincia jurdica, desde que se verifique um ilcito sem verificar efetivamenteuma consequncia do ilcito (). Em nada altera a questo o fato de as normas de uma ordem

    jurdica a descrever pela cincia do Direito valerem, ou seja, o fato de a conduta por elas fixadasomente ser devida (obrigatria), num sentido objetivo, quando tal conduta efetivamentecorresponda, numa certa medida, ordem jurdica. Esta eficcia da ordem jurdica - como sempretem de ser acentuado - apenas o pressuposto da vigncia e no a prpria vigncia.19

    O fato de uma proposio jurdica descrever algo no quer dizer que esse algo seja da ordem do ser.

    Particularmente a proposio no um imperativo. Ela um juzo que na explorao kelseniana dematriz kantiana recebe o sentido de uma afirmao sobre um objeto dado ao conhecimento, ela uma descrio objetiva, ou seja, uma descrio alheia a valores (wert-frei) metajurdicos e semqualquer sentido emocional, que no se torna prescrio. Ela apresenta, tal qual a lei natural, aligao de dois fatos, uma ligao funcional, que nesse sentido, segundo a analogia com a leinatural, tambm pode ser designada por lei jurdica, e tal como a lei natural apresenta um cartergeral, pois descreve as normas gerais da ordem jurdica e as relaes por ela constitudas.

    A noo de imputao a que Kelsen se refere a mesma que se opera com o sentido jurdico deimputabilidade, a de que imputvel aquele que pode ser punido por sua conduta, aquele que podeser responsabilizado por ela. Inimputvel, de modo contrrio, aquele que por ser menor ou doentemental no pode ser punido pela mesma conduta, no pode ser por ela responsabilizado. 20

    A imputao que se apresenta no conceito de imputabilidade no a ligao de uma determinada

    conduta com a pessoa que assim se conduz, mas a ligao de uma determinada conduta, de um

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    ilcito, com uma consequncia do ilcito. Por isso Kelsen afirma que a consequncia do ilcito imputada ao ilcito, mas no produzida pelo ilcito, como sua causa. Por certo, portanto, que acincia jurdica no busca uma explicao causal dos fenmenos jurdicos, e em suas proposies

    jurdicas que descrevem estes fenmenos ela no aplica o princpio da causalidade, mas sim oprincpio da imputao.

    Essa reflexo sobre o princpio da imputao retoma a reflexo mencionada sobre o princpio daretribuio nas sociedades primitivas. Como pormenorizadamente relatado, o homem primitivointerpreta os fatos que apreende atravs dos seus sentidos segundo os mesmos princpios quedeterminam as relaes com os seus semelhantes, conforme normas sociais, pois fato que naconscincia dos homens que vivem em sociedade, existe a representao de normas que regulam aconduta e vinculam os indivduos e que, por assim ser, apresentam as normas e sanes maisantigas da humanidade.

    Para Kelsen, as normas mais antigas da humanidade provavelmente so aquelas que visam a limitaros impulsos sexuais e agressivos. O incesto e o homicdio so, absolutamente, os crimes maisantigos, como so a perda da paz (Fried-loslegung) e a vingana de sangue as mais antigas sanessocialmente organizadas, as quais possuem em sua base originria a regra da retribuio.21

    Para o homem primitivo, aquilo que a cincia moderna denomina como natureza uma parte de suasociedade como ordem normativa, cujos elementos esto ligados entre si segundo o princpiofundamental da imputao.

    O princpio da imputao no seu significado original conexiona um com o outro dois atos de condutahumana e as normas de uma ordem social no tm apenas de se referir conduta humana, poispodem referir-se tambm a outros fatos. A imputao que se realiza com fundamento no princpio daretribuio e representa a responsabilidade moral e jurdica um caso particular. O mais importanteda imputao, no sentido lato da palavra, a ligao da conduta humana com o pressuposto sob oqual essa conduta prescrita numa norma. Desse modo, toda retribuio imputao, mas nemtoda imputao retribuio.22

    Com esse desenvolvimento que pari passu vem se desdobrando ao longo do trabalho, retoma-se ese refora a grande probabilidade de que a lei da causalidade tenha surgido da norma de retribuio,agora de maneira mais evidente, como resultado de uma transformao do princpio da imputao,em virtude do qual, na norma de retribuio, a conduta no reta ligada pena e a conduta reta ligada ao prmio. Segundo Kelsen esse processo de transformao se inicia na filosofia natural dosgregos.

    Por fim, cabe ento, explicitar algumas diferenas entre o princpio da causalidade e o princpio daimputao.23

    Ao passo que ambos se apresentam como juzos hipotticos nos quais um determinado pressuposto ligado com uma determinada consequncia, revela-se sua primeira diferena justamente nosentido da ligao de cada um. O princpio da causalidade afirma que, quando A , B ou ser, j oprincpio da imputao afirma que quando A , B deve ser.

    Outra diferena profundamente importante consiste em que toda a causa concreta pressupe comoefeito uma outra causa, e todo efeito concreto deve ser considerado como causa de um outro efeito,de tal forma que a cadeia de causa e efeito interminvel nos dois sentidos. J no princpio daimputao a situao se d de maneira diferente: o pressuposto a que imputada a consequncia,seja numa lei moral, seja numa lei jurdica, no necessariamente uma consequncia que tenha deser atribuda a outro pressuposto, e a consequncia tambm no tem necessariamente de ser outropressuposto a que se deva atribuir nova consequncia.

    A terceira diferena a de que h um ponto terminal na imputao diferentemente do que ocorre nasrie causal. Esse ponto terminal da imputao inconcilivel com a ideia de causalidade.2.1 Entre a necessidade da natureza e a liberdade da sociedade

    Acompanhada a trajetria que aqui se props, resta, por fim, encerrar a anlise kelseneana com uma

    questo que delimitada justamente na afirmao de que h um ponto terminal da imputao, masque no h um ponto terminal da causalidade.

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    Essa oposio sobre um ponto terminal entre causalidade e imputao se baseia entre anecessidade, que prevalece na natureza, e a liberdade, que dentro da sociedade existe e essencialnas relaes normativas dos homens. Afirmar que um homem como parte da natureza no livresignifica dizer que sua conduta considerada como fato natural por fora de uma lei da naturezacausada por outros fatos, ou seja, tem que ser vista como efeito desses fatos e, portanto,

    determinada por eles.24

    Isso algo completamente diferente de dizer que um homem livre moral oujuridicamente.

    A questo se estreita justamente sobre a base estrutural da imputao, pois quando um homem responsabilizado por sua conduta moral ou imoral, jurdica ou antijurdica, so respectivamenteimputados um prmio, um castigo ou uma consequncia qualquer do ilcito, e essa imputaoencontra o seu ponto terminal na conduta do homem interpretada como ato meritrio, como pecadoou como ilcito.

    Evidente, portanto, que o problema da responsabilidade moral ou jurdica est essencialmente ligadocom a retribuio, e nesse sentido a retribuio imputao da recompensa ao mrito, da penitnciaao pecado, da pena ao ilcito.

    Na conduta do indivduo a imputao representa a sua responsabilidade moral ou jurdica e encontra

    seu ponto final. No entanto essa conduta que constitui o ponto terminal da imputao - que, deacordo com uma ordem moral ou jurdica, apenas representa a responsabilidade segundo essaordem existente -, de acordo com a causalidade da ordem da natureza no , nem como causa, nemcomo efeito, um ponto terminal, mas apenas um elo numa srie sem fim.25

    O verdadeiro significado da ideia de que o homem, enquanto sujeito de uma ordem moral ou jurdica livre, significa que ele o ponto terminal de uma imputao apenas possvel com base nessaordem normativa em que ele est inserido.

    A verdade, porm, que o pressuposto de que apenas a liberdade do homem, ou seja, o fato de eleno estar submetido lei da causalidade, que torna possvel a responsabilidade ou imputao estem aberta contradio com os fatos da vida social. A instituio de uma ordem normativa reguladorada conduta dos indivduos - com base na qual somente pode ter lugar a imputao - pressupeexatamente que a vontade dos indivduos cuja conduta se regula seja causalmente determinvel e,portanto, no seja livre (). S atravs do fato de a ordem normativa se inserir, como contedo dasrepresentaes dos indivduos cuja conduta ele regula, no processo causal, no fluxo de causas eefeitos, que esta ordem preenche a sua funo social. E tambm s com base numa tal ordemnormativa, que pressupe a sua causalidade relativamente vontade do indivduo que lhe estsubmetido, que a imputao pode ter lugar (). Por vezes no se nega que a vontade do homemseja efetivamente determinada pela via causal, como todo acontecer, mas afirma-se que, para tornarpossvel a imputao tico-jurdica, se deve considerar o homem como se sua vontade fosse livre, asua no determinao causal, como uma fico necessria (). A imputao no pressupe nem ofato nem a fico da liberdade como uma indeterminao causal, nem o erro subjetivo dos homensque se creem livres.26

    Kelsen muito cauteloso no trato e na percepo da potencialidade jurdica de organizao social doprincpio da imputao, esquivando-se de grande parte dos possveis equvocos que sua estrutura

    enquanto formao - afirmao de que quando A , B deve ser - pode acarretar.Na verdade, a causalidade no exclui a imputao, e a determinabilidade causal da vontade quetorna possvel a imputao, e no o inverso. Para Kelsen no se imputa algo ao homem porque ele livre, mas sim, o contrrio, o homem livre porque se lhe imputa algo. Nesse sentido imputao eliberdade possuem de fato uma conexo. Assim sendo, no existe nenhuma contradio entre aordem da natureza, de um lado, e a ordem moral e jurdica, de outro. O resultado disso a clssicadistino kelseniana de que a primeira uma ordem de ser e as outras so ordens de dever ser,apenas podendo haver contradio lgica entre um ser e um ser e um dever ser e um dever ser, mas

    jamais de ser com dever ser ou de dever ser com ser.27

    O que decisivo nessa relao e diferenciao de causalidade e imputao que a imputao, emcontraposio causalidade, chega a um fim da conduta humana que, segundo uma lei moral,religiosa ou jurdica, a condio de consequncia determinada por aquela lei, como condio darecompensa, da penitncia, da punio.28

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    Para Kelsen, esse o verdadeiro significado da afirmao de que o homem livre, a liberdade geralmente compreendida como iseno do princpio de causalidade, e a causalidade (ou foioriginariamente) interpretada como necessidade absoluta.29 Isso cria o sentido usual de se suporque apenas sua liberdade enquanto iseno do princpio da causalidade torna possvel a imputao,porm, o que se d acertadamente o oposto. Os seres humanos so livres porque se imputa a eles

    recompensa, penitncia ou punio como consequncia s suas condutas; isso no porque aconduta humana no seja determinada por leis causais, mas pelo fato inegvel que ele determinada por leis causais. O homem livre porque sua conduta o ponto final da imputao e elapode ser o ponto final da imputao mesmo se tal conduta for determinada por leis causais.30

    Na esteira da anlise do posicionamento de Max Planck, Kelsen aprofunda a relao que se insereentre a sua conceituao normativa do direito e a liberdade.

    Kelsen apresenta que a questo da liberdade de arbtrio parece ser sustentada pela moderna fsica,especialmente pelos resultados da mecnica quntica, na qual seriamente criticada a suposio deuma lei universal da causalidade. Mesmo antes da descoberta desse novo campo da fsica j sepodia argumentar sobre a inexistncia de uma causalidade estrita da realidade, pois pelainsuficincia de nossos sentidos e pela inevitvel inexatido de nossas observaes delesresultantes, no existe nenhum evento na realidade que possa ser previsto com certeza absoluta.

    De qualquer maneira, opondo-se a essa ideia, o princpio da causalidade estrita pode ser sustentado,sendo relacionado no somente com a realidade tal como dada imediatamente aos sentidos, mascom o retrato ideal do mundo construdo pela cincia da fsica.

    A fsica diz Planck coloca um novo mundo no lugar do que nos dado pelos sentidos ou pelosinstrumentos de medio usados para auxiliar os sentidos. Esse outro mundo a chamadarepresentao do mundo fsico. Ele uma mera estrutura intelectual. At certo ponto, arbitrrio. uma espcie de modelo ou idealizao criada para evitar a inexatido inerente a todas as mediese para facilitar a definio exata. Enquanto a previso de qualquer evento no mundo dos sentidosest sempre sujeita a certa inexatido, todos os eventos da representao do mundo fsicoacontecem em conformidade com certas leis definidas que podem ser formuladas e, portanto, socausalmente determinadas. Contudo, existe na mecnica quntica um fenmeno que parece

    escapar a essa interpretao. a chamada relao de incerteza, originalmente formulada porHeisenberg. Essa relao afirma, entre outras coisas, que a medio da velocidade de um eltrontanto mais inexata quanto mais exata a medio de sua suposio no espao, e vice-versa. A razodisso que s podemos determinar a posio de um eltron em movimento se pudermos v-lo epara v-lo, devemos ilumin-lo, isto , devemos permitir que a luz incida sobre ele. Os raios queincidem sobre ele chocam-se com o eltron, e assim, alteram sua velocidade de uma maneira que impossvel calcular (). Isso significa que o objeto da observao modificado pelo prprio ato daobservao, por mais exata que possa ser essa observao. Ela constitui uma interferncia causalno processo observado e, assim, torna impossvel o discernimento do nexo causal do fenmenoobservado. Muito fsicos, entre eles Heisenberg e Bohr, concluem a partir dessa impossibilidade queo comportamento do eltron individual pode ser previsto apenas com certo grau de probabilidadeestatstica, que, consequentemente, no pode ser interpretado como sujeito lei da causalidade, queessa lei no se aplica nesse caso, que no h causalidade estrita na realidade da natureza, que aschamadas leis da natureza so meramente leis de probabilidades sujeitas excees.31

    Essa constatao criou duas interpretaes entre os fsicos e filsofos. A primeira de que com oprincpio da incerteza a natureza no , como supunha a fsica clssica, governada por leis, sendoassim organizada e compreendida. A segunda, refutando a primeira, bem representada naafirmao de Planck, que entende que o abandono da lei da causalidade se estrutura numa confusoentre o mundo dos sentidos e o da representao fsica.

    Por fim, abalizando sua cautelosa anlise, Kelsen expe a sustentao do princpio da causalidadeestrita interpretando-o como um postulado epistemolgico. Nessa interpretao, esse postuladoapresenta-se como uma norma dirigida cognio humana que exige a procura de uma ligaoentre os fenmenos observveis no mundo dos sentidos. Desse modo, ele determina a concepodesses fatos como causa e efeito e, assim, obtm uma explicao da realidade.32 Tal como a norma

    jurdica, o princpio da causalidade no verdadeiro nem falso. Na interpretao epistemolgica

    importa apenas se ele til ou no.

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    Enquanto concebido como norma epistemolgica, no relacionado com o mundo dos sentidos, mascom a representao ideal do mundo da cincia da fsica, sua validade estrita inquestionvel. Poroutro lado, se concebido como implcito nas leis pelas quais a cincia natural, na sua presentecondio, descreve o mundo dos sentidos, essas leis da natureza podem ser consideradas leisestatsticas de probabilidade. Passam, portanto, a permitir excees.33

    A assero de que o arbtrio livre no se refere esfera da realidade natural, mas esfera devalidade de normas jurdicas. A liberdade de arbtrio est ligada responsabilidade jurdica, isto , imputao, tanto que no existe algo como responsabilidade na realidade natural. Ela constitudapor uma ordem normativa, tanto na moral quanto no direito.

    Para Kelsen, no possvel extrair de uma observao da mecnica quntica qualquer conclusoquanto liberdade de arbtrio, pois esse conceito no tem o sentido negativo de que a vontadehumana no determinada causalmente, mas o sentido positivo de que a vontade humana e aconduta humana causada por essa vontade so o ponto final de uma imputao normativa. 34

    A proposta reconciliatria de Kelsen caminha nesse sentido. Para reconciliar a ideia de liberdade,dominante na sociedade como ordem normativa, com a lei da natureza como ordem causal, no necessrio se apoiar numa ideia metafsico-religiosa sustentada na base do indeterminismo. Isso

    possvel no campo da cincia racional, se, ao mesmo tempo em que se aceite o princpio daimputao como um princpio diferente do da causalidade, considere-o anlogo a este.

    Um realiza nas cincias sociais o que o outro realiza nas cincias naturais. Kelsen, assim, acreditaestar dando soluo ao antigo problema de uma antinomia alegadamente insolvel entre anecessidade natural e a liberdade social.35 Essa diviso, que parece ser uma contradio entre duasfilosofias, acaba sendo um paralelismo de dois modos diferentes de cognio. Sendo um plenamentecompatvel com o outro, eles se apresentam num dualismo. O dualismo de causalidade e imputao.3. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    KELSEN, Hans. Aufstze zur Ideologiekritik mit einer Enleitung herausgegeben von Ernest Topitsch.Berlin: Luchterland, 1964.

    ______. General theory of law and state. Trad. Anders Wedberg. Cambridge:Harvard Universty Press, 1949.

    ______. O que justia? A justia, o direito e a poltica no espelho da cincia.

    Trad. Lus Carlos Borges. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2001.

    ______. Sociedade y naturaleza: una investigacin sociolgica. Trad. Jaime

    Perriaux. Buenos Aires: De Palma, 1945.

    ______. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Fabris, 1986.

    ______. Teoria pura do direito. Trad. Joo Baptista Machado. 7. ed. So

    Paulo: Martins Fontes, 2006.

    1 KELSEN, Hans. Sociedade y naturaleza: una investigacin sociolgica. Trad. Jaime Perriaux.Buenos Aires: De Palma, 1945. p. 385.

    2 Idem, p. 384.

    3 Nesse sentido Kelsen faz uma importante aluso a Kant: Partiendo de este punto, y continuandoen la direccin indicada por Hume, lleg Kant a su propria doctrina. Afirm que la mera observacinde la realidad no podia establecer la necesidad de uma conexin entre dos hechos, como causa eefecto; consecuentemente, senl el concepto de causalidad en uma nocin innata, uma categora a

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    explorao sobre a lei de causalidade e a cincia

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    priori, uma forma inevitable y necesaria de la cognicin mediante la cual coordinamos mentalmenteel material emprico de la percepcin sensria. Idem, ibidem.

    4 Idem, p. 386.

    5 Idem, p. 389.

    6 Idem, p. 391.

    7 Idem, ibidem.

    8 Idem, p. 392.

    9 Sobre esse ponto h ainda uma severa crtica por alguns pensadores que negam que osresultados da mecnica quntica so uma concepo dbil da lei na natureza como meraprobabilidade. Este argumento repousa inclusive na afirmao de que a prpria mecnica qunticapressupe o princpio estrito da lei da causalidade com postulado epistemolgico. Kelsen estendeesse pensamento do uso da lei da causalidade para predizer eventos futuros com um clculo deprobabilidade. Com base no Essai philosophique sur les probabilitsde Laplace, ele evidencia a

    ideia de uma inteligncia absoluta: todo lo que se capta del futuro por medio del conocimiento es, enel fondo, meramente el pasado. Si se percibe la esencia de la ley da causalidad en el hecho de quedetermina el futuro, aun si fuera slo para uma inteligncia laplaceana, entonces se confirma, tal vezinconscientemente, el origen normativo de la ley de causalidad. Idem, p. 398.

    10 Idem, p. 399.

    11 Idem, p. 408.

    12 Idem, ibidem.

    13 Idem, ibidem.

    14 Idem, p. 410.

    15 Na segunda edio de sua obra mais afamada, Reine Rechtslehere, entre ns traduzida comoTeoria Pura do Direito, Kelsen no terceiro captulo se dedica ao sentido do estudo do direitoenquanto cincia jurdica e retorna noo a que anteriormente se referiu sobre a retribuio e acausalidade, implementadas agora, pelo conceito jurdico da imputao. Surgem nessa produokelseniana elementos importantssimos para a compreenso do tema. Nela so apresentadas asconsideraes sobre o sentido da cincia jurdica, as teorias esttica e dinmica e os conceitos denorma e proposio jurdica, para, aps se retornar ao campo de distino de uma cincia causal ede uma cincia normativa. Na afirmao que o objeto da cincia jurdica o direito, de maneiramenos evidente est a de que normas jurdicas so o objeto do direito e a conduta humana s o namedida em que determinada nas normas jurdicas como pressuposto ou consequncia, isto , namedida em que constitui contedo de normas jurdicas. Conforme o desenvolvimento desse sentido

    da cincia jurdica enquanto reguladora da conduta humana, Kelsen apresenta duas teorias: umaesttica, em que o direito entendido com um sistema de normas em vigor, e uma dinmica, quetem por objeto o processo jurdico em que o direito produzido e aplicado, o direito em seumovimento. De acordo com a maneira estrita com que Kelsen explora o objeto da cincia jurdicasurgem dois importantes conceitos: o de norma jurdica e o de proposio jurdica. As proposies

    jurdicas so juzos hipotticos que enunciam ou traduzem que de conformidade com o sentido daordem jurdica, nacional ou internacional, dada ao conhecimento jurdico, sob certas condies oupressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas consequncias pelo mesmoordenamento determinadas. So exemplos de proposies jurdicas: se algum comete um crime,deve ser-lhe aplicada uma pena, se algum no paga uma dvida, deve ser procedida a execuoforada. J as normas jurdicas no so juzos, elas so mandamentos, imperativos, comandos,permisses ou atribuies de poder ou competncia, so prescries.

    16 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. Joo Baptista Machado. 7. ed. So Paulo: MartinsFontes, 2006. p. 84.

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    17 Idem, p. 86.

    18 Kelsen a partir da distino mencionada faz uma crtica pontual ao jusnaturalismo: Esta distinodesaparece nos quadros de uma mundividncia metafsico-religiosa. Com efeito, por fora dessamundividncia, a ligao de causa e efeito produzida pela vontade do divino Criador. Portanto,tambm as leis naturais descrevem normas nas quais se exprime a vontade divina, normas queprescrevem natureza um determinado comportamento. E, por isso, uma teoria metafsica do direitocr poder encontrar na natureza um direito natural. Idem, p. 87.

    19 Idem, p. 87-88.

    20 Sobre esse ponto referente responsabilidade e a possibilidade de sua imputabilidade relevante a anlise de Kelsen na obra Teoria geral do direito e do Estado quando se refere ao termoUnzurechnungsfhigque em alemo tem o sentido de inimputvel: no sanction can be directedagainst him because He does not fulfill certain personal requirements, conditions for a sanction ()The English term irresponsible is equivalent to the German unzurechnungsfhig, wich literallymenos incapable of being a subject to whom something can be imputed. KELSEN, Hans. Generaltheory of law and state. Trad. Anders Wedberg. Cambridge: Harvard Universty Press, 1949. p. 90.

    21 KELSEN, Hans. Teoria pura cit., p. 92.

    22 Idem, p. 111.

    23 Nesse sentido, importante tambm a anlise dos captulos 6 e 7 da obra Teoria geral das normasde Kelsen, escrita mais para o final de sua produo e vida, referentes a Lei Natural e Social e arelao e diferenciao entre causalidade e imputao. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas.Porto Alegre: Fabris, 1986. p. 29-33.

    24 KELSEN, Hans. Teoria pura cit., p. 102.

    25 Idem, p. 104.

    26 Idem, p. 105-107.

    27 Esse dualismo de matriz kantiana a que se reporta Kelsen recebe algumas crticas no sentido deque dever ser, cuja expresso a norma, s vezes considerada sem sentido ou to somente umailuso ideolgica. Nesse sentido, tambm cf. KELSEN, Hans. Aufstze zur Ideologiekritik mit einerEnleitung herausgegeben von Ernest Topitsch. Berlin: Luchterland, 1964.

    28 KELSEN, Hans. O que justia? A justia, o direito e a poltica no espelho da cincia. Trad. LusCarlos Borges. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 333.

    29 Idem, ibidem.

    30 No artigo de Kelsen a que nos referimos publicado originalmente na Ethicsdenominadocausalidade e imputao, ele exclusivamente relaciona a questo do livre arbtrio e da causalidade apartir da tentativa mais importante de harmonizar a lei universal da causalidade com a liberdade dearbtrio feita por Max Planck. Ele pressupe a validade de uma lei universal da causalidade,segundo a qual existe uma ligao causal fixa em todos os eventos da natureza e do mundoespiritual, e considera como critrio decisivo do fato de um evento poder ser previsto com certeza porum observador que possui o conhecimento necessrio das circunstncias anteriores ao evento e queno interfere nesse evento. Ele admite que seria tolice falar de uma causalidade universal seexistissem excees a ela, se, em outras palavras, os eventos da vida consciente ou subconscienteda alma, os sentimentos, as sanes, os pensamentos e tambm a vontade no estivessem sujeitas lei de causalidade (). No obstante, ele insiste na liberdade de arbtrio porque pensa que talliberdade uma condio essencial da responsabilidade moral do homem; e por essa razo, afirmaque no h contradio entre a suposio de uma lei universal de causalidade e a ideia de um

    livre-arbtrio; que possvel sustentar a segunda sem renunciar suposio de uma lei universalestrita de causalidade (). Ele afirma que a lei de causalidade, por um lado, e a liberdade de

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    arbtrio, por outro, referem-se a questes totalmente diferentes. A lei da causalidade a resposta dacincia questo da estrutura da realidade. A questo quanto a ser ou no livre a vontade unicamente uma questo de conscincia individual; pode ser respondida apenas pelo ego. A nooda liberdade do arbtrio humano pode significar apenas que o indivduo sente-se livre, e s ele podesaber se assim se sente. () se Planck no demonstrasse nada ale do fato evidente de que no hcontradio entre a lei de causalidade e o sentimento de ser livre de um homem, no contribuiriacom nada justamente para o problema que est no centro do grande antagonismo entredeterminismo e indeterminismo: o problema de poder ou no a vontade humana ser concebida - eno sentida - como causalmente determinada. Na verdade, essa questo que Planck tentaresponder afirmativamente () Planck afirma que a questo de se a vontade ou no causalmentedeterminada tem de ser respondida negativamente do ponto vista subjetivo da conscincia individual,porque o homem nunca pode prever seu comportamento futuro (). O homem como observador desi mesmo no pode prever sua conduta futura porque o ato de observao interfere no objetoobservado. Mas desse fato no decorre que o objeto da observao seja causalmente determinado.A situao similar descrita pelo chamado princpio de incerteza da fsica quntica (). H duasquestes. A primeira se a vontade humana ou no determinada causalmente, e a resposta queela determinada causalmente. A segunda se o indivduo pode compreender seu ato de vontadefuturo como causalmente determinado, e a resposta que no pode. Isso, porm no significa queseu ato de vontade no seja determinado (). Outro argumento de Planck, no menos falacioso,

    para demonstrar a compatibilidade da lei causal com o livre arbtrio a afirmao de que logicamente impossvel aplicar a lei de causalidade vontade humana, j que essa vontade partedo prprio ego, e que o ego, como sujeito de cognio inacessvel a qualquer cognio - portanto,tambm a uma cognio causal. Idem, p. 334-339.

    31 Idem, p. 340.

    32 Idem, p. 341.

    33 Idem, p. 342-343. Nesse ponto, Kelsen afirmando a validade estrita do princpio da causalidaderetoma e se afasta novamente da ideia sobre a inteligncia transcendente de Laplace e a comparacom Planck como que tambm recorrente a essa concepo, ao passo que abandona a tentativa desustentar o princpio estrito da causalidade relacionando-o com a representao ideal do mundo

    construdo pela fsica. A suposio de Planck, analisa Kelsen, de uma inteligncia ideal etranscendente influenciada por sentimentos religiosos, sendo evidente que a crena em Deus estpor trs da suposio de uma inteligncia ideal e transcendental e da liberdade de arbtrio.

    34 Idem, p. 344.

    35 Idem, p. 345.

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