o Pensamento de Niklas

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www.lusosofia.net O PENSAMENTO DE NIKLAS LUHMANN José Manuel Santos (Org.) 2005

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O PENSAMENTO DENIKLAS LUHMANN

José Manuel Santos(Org.)

2005

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O Pensamento deNiklas Luhmann

JOSÉ MANUEL SANTOS

UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR

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Colecção - TA PRAGMATADirecção: José Manuel Santos

Design da Capa: Jorge BacelarDesenho da Capa: Luis HerbertoEdição e Execução Gráfica: Serviços Gráficos da Universidade da Beira InteriorTiragem: 500 exemplaresCovilhã, 2005Depósito Legal Nº 235660/05ISBN – 972-8790-46-5

Os textos de Niklas Luhmann foram extraídos e traduzidos da 6ª edição daobra Soziologische Aufklärung 1.ISBN 3-531-11161-2 (original)Copyright © 1970, 1991 Westdeutscher Verlag GmbH, Opladen.

Os direitos de tradução dos textos de Niklas Luhmann para a língua portuguesaforam cedidos por: © VS Verlag für Sozialwissenschaften GmbH, Wiesbaden, 2005.

Copyright da tradução: © Universidade da Beira Interior, 2005.

Tradução: Artur Morão

Apoio:

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Índice

Apresentação, José Manuel Santos ............................... 7

I. Dois artigos de Niklas Luhmann

Niklas Luhmann, Iluminismo sociológico .................. 19

Niklas Luhmann, Sociologia como teoria dos sistemassociais ............................................................................. 71

II. Sobre Niklas Luhmann

José Manuel Santos, A complexidade do mundo.... 123

Mário Vieira de Carvalho, Série, alea e autopoiesis .. 165

Pierre Guibentif, O direito na obra de Niklas Luhmann.Etapas de uma evolução teórica .............................. 185

Edmundo Balsemão Pires, O pensamento de NiklasLuhmann como teoria crítica da moral .................. 253

João Pissarra Esteves, Legitimação pelo procedimento edeslegitimação da opinião pública ........................... 281

João Carlos Correia, Entre o sistema e o mundo da vida:um lugar para a estranheza na análise sistémica dojornalismo ..................................................................... 321

Rudolf Stichweh, The Present State of Sociological SystemsTheory ........................................................................... 347

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Apresentação

José Manuel SantosUniversidade da Beira Interior

Em Outubro de 2003, tiveram lugar na Universidadeda Beira Interior, no âmbito das actividades do Institutode Filosofia Prática, umas jornadas dedicadas ao “Pen-samento de Niklas Luhmann”. Para além de académicosportugueses, vindos de várias universidades do país, esteveainda presente um convidado alemão, professor de teoriasociológica em Bielefeld e ex-assistente de Luhmann. Oobjectivo do encontro foi de reunir os investigadoresportugueses que, por diferentes motivos, se interessarampela obra de Luhmann, confrontar interpretações e avaliara utilidade actual, em diversas áreas disciplinares, dascategorias e instrumentos teóricos desenvolvidos pelosociólogo alemão. Com efeito, a obra de Luhmann, pelasua amplitude, multiplicidade de objectos estudados e,sobretudo, universalidade metodológica e categorial dateoria elaborada, tem incidências em praticamente todasas disciplinas das ciências sociais e humanas, muito paraalém, portanto, da sociologia. A obra de Luhmann exigedo receptor uma prática da interdisciplinaridade a um nívelde reflexão teórica extremamente elevado, para além de

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uma cultura científica enciclopédica em praticamente todasas disciplinas das ciências sociais e humanas, sem esque-cer a filosofia. A diversidade das áreas de investigaçãorepresentadas neste encontro – sociologia, filosofia,musicologia, direito, ciências da comunicação – foi bemo espelho desta faceta da obra luhmanniana.

A presente colectânea de estudos sobre o “Pensamen-to de Niklas Luhmann” teve a sua origem nessas Jornadas,reunindo não apenas simples “actas” das comunicaçõesapresentadas, mas estudos mais extensos, completos eelaborados, relativamente aos quais essas comunicaçõesapenas foram pontos de partida. Para arredondar o volumeforam acrescentados, numa primeira parte, em traduçãoportuguesa, dois artigos de Luhmann do fim dos anos 60,ou seja da primeira fase da obra do mestre de Bielefeld.

Nascido em 1927 em Lüneburg, Niklas Luhmannproduziu, a partir de meados dos anos 60 até à sua morte,em 1998, uma obra que, pela sua dimensão, pluralidadetemática e, sobretudo, colossal ambição teórica, se tornouuma referência incontornável muito para além das fron-teiras académicas habituais da sociologia. O intuito dosociólogo de Bielefeld, cidade onde viveu boa parte dasua vida e em cuja Universidade se desenrolou quase todaa sua carreira académica (mais precisamente, de 1968 atéà jubilação, em 1993), não se limitou à elaboração de umateoria social capaz de tornar visíveis, caracterizar e explicaros aspectos centrais da sociedade moderna e da culturada modernidade. A sua ambição vai ainda mais longe, namedida em que inclui a tentativa de renovar em profun-didade as categorias do modo ocidental de pensar o homeme a sociedade, a que a tradição chamou “filosofia prática”,ou mesmo as categorias do pensar enquanto tal, que seriamigualmente as do ser, e que a tradição tematizou sob onome de ontologia ou metafísica. É, desta feita, uma

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tradição provocadoramente apelidada de alteuropäischesDenken (pensamento velho europeu) que a ambição te-órica de Luhmann desafia. E é um propósito teórico tão“totalitário” que torna compreensível uma afirmação comoa do filósofo Robert Spaemann, para quem «se a teoriados sistemas da Luhmann devesse ser comparada, numacomparação de teorias, com uma qualquer figura filosó-fica, uma tal figura só poderia ser a de Hegel»1.

Mas, sejamos claros, se a “medida” mais óbvia paraavaliar a obra de Luhmann é uma “figura filosófica”, ateoria dos sistemas não é uma filosofia. Spaemann temtoda a razão em considerá-la como «a forma mais modernada não-filosofia»2. Esta afirmação não constitui, de modoalgum, um juízo depreciativo, a denegação de dignidadefilosófica ao pensamento de Luhmann, mas a simplesconstatação factual de uma partilha de tarefas, ou, emtermos luhmannianos, de uma diferenciação funcional. Ateoria como “não-filosofia” apenas tornaria transparente,inteligível, “o que acontece” – was der Fall ist3 – ou seja,de que modo os sistemas sociais resolvem o problemauniversal de reduzir a complexidade do mundo. Estainteligibilidade, contudo, apesar de explicar o complicadofuncionamento dos sistemas sociais que constituem asociedade moderna não é, nem pretende ser, em si, res-posta às interrogações que, desde Sócrates, caracterizam

__________________1 Afirmação que faz parte da Laudatio pronunciada por Spaemann

na altura em que Luhmann recebeu o prémio Hegel da cidade deEstugarda, no ano de 1989. In N. Luhmann; R. Spaemann, Paradigmlost: Über die ethische Reflexion der Moral / Niklas LuhmannsHerausforderung der Philosophie, Frankfurt, Suhrkamp, 1990, p. 62.

2 Ibid., p. 73.3 Expressão frequentemente utilizada por Luhmann, que figura

no título da Última Lição do sociólogo alemão, pronunciada em Bielefelda 9 de Fevereiro de 1993: “Was ist der Fall und” “Was steckt dahinter”?

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o questionamento filosófico. A filosofia cria a expectativade uma resposta final e imediata, fundada numa perspectivauniversal mediatizada pela reflexão, àquilo que devo fazerda minha vida, ou da vida da minha comunidade, em cadaocasião. Ora, na perspectiva da teoria dos sistemas, o mundodeixou de falar a linguagem do ser e, portanto, de darindicações para responder a tais questões. Os sistemas, porseu turno, cujo funcionamento a teoria torna transparente,limitam-se a gerir, por assim dizer au jour le jour, acontingência do mundo. Os fins verdadeiramente finais estãosempre em aberto. É neste sentido que Spaemann tem razão,ao considerar que a obra de Luhmann, justamente por serda ordem da “não-filosofia” constitui, hoje, «um dos maisimportantes desafios da filosofia»4. Sem abdicar do seuquestionamento, a filosofia terá de o prosseguir em con-dições mais difíceis do que antes, ou seja, tendo em contao tipo de Aufklärung, de “ilustração”, de inteligibilidade,trazida por Luhmann à sociedade em que vivemos.

O aspecto hegeliano evocado por Spaemann, não semrazão, para caracterizar a teoria dos sistemas de Luhmannnada tem, portanto, a ver nem com a identificação da filosofiaà “ciência”, nem com o conceito de “sistema” – totalitário,circular e fechado – do velho autor do “Sistema da Ciência”(título global das obras principais de Hegel). Para Luhmann,não só o mundo não é um sistema, mas, além disso, nãohá nenhum sistema que possa abarcar todos os aspectosda complexidade do mundo. Por seu turno, na sociedademoderna, nenhum sistema, e nenhum saber, poderá ocuparo lugar de um arqui-sistema, como acontece com a política,no caso paradigmático da koinonia politikê aristotélica.

O ar de família hegeliano que emana da teoria dossistemas vem, pois, da sua capacidade de conceber uma

__________________4 N. Luhmann; R. Spaemann, Paradigm lost..., op. cit., p. 71.

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forma de racionalidade, a racionalidade sistémica, sufi-cientemente flexível e universal para tornar inteligível ofuncionamento dos mais diversos sistemas sociais, que vãoda economia à arte, passando pelo direito, a política, amoral, a pedagogia e o sistema de ensino, a religião emesmo o mais privado e mais íntimo dos sistemas queé o amor. Convém sublinhar que, nos seus estudos sobrecada um destes sistemas sociais, Luhmann não se limitaa aplicar mecanicamente e de fora uma teoria abstractaa casos concretos. Os especialistas dos diversos sistemasanalisados por ele na perspectiva da sua teoria reconhe-cem geralmente a pertinência e a originalidade das aná-lises, considerando-as amiúde como um contributo impor-tante para fazer avançar a investigação na respectiva área.Mesmo nos casos em que, como é natural e era de esperar,há contestação da parte de especialistas da área, o con-tributo teórico de Luhmann não é desclassificado poramadorismo ou falta de profundidade.

No conjunto dos estudos que compõem a presentecolectânea, uma boa parte são, pois, dedicados a aplica-ções da teoria dos sistemas a diferentes sub-sistemas. Otrabalho de Pierre Guibentif constitui um estudo, bastantecompleto, sobre os contributos de Luhmann, ao longo detoda a sua carreira, para a teoria do direito. O direito foi,sem dúvida, um dos sistemas sociais aos quais Luhmanndedicou mais atenção, o que se poderá talvez explicar,pelo menos em parte, pelo facto de a sua formaçãouniversitária inicial ter sido uma licenciatura em direito,à qual se seguiu uma carreira de alto funcionário judiciale, em seguida, ministerial5. O texto de Edmundo Balsemão

__________________5 Luhmann estudou direito na Universidade de Freiburg de 1946

a 1949. Nos anos 50 exerceu as funções de assistente do Presidentedo Tribunal Superior Administrativo de Lüneburg e de assessor noMinistério da Educação da Baixa Saxónia.

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Pires, por seu turno, é dedicado à análise histórica feita porLuhmann do sistema da moral ocidental. João Carlos Correiadebruça-se sobre a abordagem luhmanniana dos meios decomunicação de massa. João Pissarra Esteves, enfim, dedicao seu trabalho à problemática da “opinião pública”, um objectode estudo que se encontra na confluência de dois sistemassociais: o dos media de massa e o da política.

O trabalho de Mário Vieira de Carvalho não é direc-tamente um estudo sobre a teoria da arte de Niklas Luhmann,embora esta questão acabe por ser abordada. Partindo doconceito de autopoiesis, que Luhmann retoma do biólogochileno Humberto Maturana e do qual faz um conceitocentral da sua teoria a partir de meados dos anos 80, Vieirade Carvalho tenta mostrar as analogias entre a estruturaçãoautopoiética dos sistemas sociais na sua sujeição ao tempo,em Luhmann, e a concepção da obra musical como sistemaautopoiético, tal como ela é pensada por Stockhausen eGoeyverts na primeira metade da década de 50. Trata-seem ambos os casos de pensar a relação entre os elementosdeterminísticos da “estrutura” e os factores aleatórios econtingentes dos “processos” que, do ponto de vista do“sujeito” ou das “consciências”, são vividos como “liber-dade”. É a partir da reflexão sobre a estética destes com-positores, aos quais se acrescenta o caso de Boulez, queo autor aborda a teoria luhmanniana da arte, sistema socialsui generis, sublinhando algo que se poderia considerar comoum anti-humanismo teórico, comum às estéticas dos com-positores referidos e à teoria do sociólogo de Bielefeld. Aarte não seria expressão de uma experiência estética ou deemoções imanentes ao “mundo da vida”, mas de um puro“acontecer no tempo”, de uma “autopoesis da estrutura”,segundo a expressão de Boulez.

O primeiro e o último textos aqui reunidos distin-guem-se dos restantes por não terem por objecto privi-legiado um determinado sub-sistema, ou confluência de

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sub-sistemas (caso, por exemplo, do “espaço público”).O estudo de José Manuel Santos é dedicado à recepçãode alguns conceitos centrais da fenomenologia de Husserl,em particular os de sentido e mundo, na primeira faseda obra de Luhmann. Mostra, além disso, a importânciada antropologia de Arnold Gehlen, no âmbito da géneseda ideia luhmanniana da “redução da complexidade” domundo.

A fechar o conjunto de artigos deste volume, o estudode Rudolf Stichweh é dedicado ao “estado presente”, aostate of the art, da investigação mais avançada que estáa ser feita com base no legado teórico de Niklas Luhmann.Poderíamos distinguir, aqui, duas grandes áreas referidaspor Stichweh: uma investigação mais teórica centrada nadiscussão dos conceitos centrais da teoria dos sistemas– à frente dos quais os de comunicação, media simbólicosgeneralizados e diferenciação funcional – e uma inves-tigação mais aplicada, centrada em problemáticas dasociedade actual, abordadas, ou mesmo lançadas, peloúltimo Luhmann, e que ainda estão longe de poderem serconsideradas fechadas ou não actuais. Estão neste casoa problemática da relação da teoria dos sistemas com osmais recentes desenvolvimentos no campo da teoria daevolução, a temática da inclusão/exclusão, um fenómenosocial que o autor e Luhmann consideram “de algum modoanterior à diferenciação” funcional, e a questão da worldsociety (Weltgesellschaft) – uma ideia teorizada porLuhmann muito antes de a questão da “globalização” estarna moda e ter entrado em regime de banalizaçãodoxográfica – para a qual o próprio Stichweh tem dadoassinaláveis contributos6.

__________________6 Dedicou à questão a obra Die Weltgesellschaft. Soziologische

Analysen, Frankfurt, Suhrkamp, 2000.

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Como já referimos, esta colectânea é completada pordois artigos de Luhmann, da sua primeira fase, ambos de1967. Trata-se em ambos os casos de artigos que, peloseu carácter programático, teórico e introdutório, achámosadequados a um público ainda pouco familiarizado coma obra e o estilo de Luhmann, não deixando de ser, aomesmo tempo, de grande interesse para os conhecedores.O primeiro, intitulado Soziologische Aufklärung(Iluminismo sociológico), é o texto de uma Lição inau-gural, pronunciada aos 25 de Janeiro de 1967, na Uni-versidade de Münster, onde esteve, aliás, apenas um ano,antes de ser nomeado, logo no ano seguinte, professorordinário em Bielefeld, onde se manteve até à jubilação.O interesse do texto reside no esforço do autor para situara teoria dos sistemas, quer numa perspectiva diacrónica,ou seja da história das teorias modernas da sociedade, oque dá ocasião a Luhmann para uma interessante reflexãosobre a temática “sociologia e iluminismo”, quer numaperspectiva sincrónica, ou seja numa comparação comoutras teorias contemporâneas da sua, tais como afenomenologia, a teoria do direito, a teoria da decisão,etc. O segundo texto é a tradução de um artigo de Luhmannintitulado Soziologie als Theorie sozialer Systeme (Soci-ologia como teoria dos sistemas sociais), publicado numadas mais prestigiadas revistas alemãs de sociologia, aKölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie7.O interesse deste texto está na clarificação da diferençaentre a concepção luhmanniana de uma teoria dos siste-mas e a de Talcott Parsons, o mestre da teoria social como qual o jovem Luhmann trabalhou em Harvard, em 1960/61. O texto apresenta igualmente um interesse conside-rável para a problemática do “mundo”, herdada por

__________________7 Vol. 19, 1967, pp. 615-644.

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Luhmann da fenomenologia de Edmund Husserl, sobre-tudo atendendo a que, na sua polémica de 1970/71 comHabermas, Luhmann considera a “complexidade do mundo”como o “problema central” ao qual a sua teoria dos sistemastentaria dar resposta8. Na presente colectânea, esta questãoé abordada no nosso artigo sobre a “complexidade domundo”.

As traduções aqui apresentadas destes dois artigosde Niklas Luhmann foram feitas a partir da 6ª edição,de 1991, da colectânea Soziologische Aufklärung 1,Opladen, Westdeutscher Verlag, cuja edição original datade 1970.

A terminar, cabe-nos, aqui, apresentar os nossossentidos agradecimentos aos autores que deram o seucontributo para este volume. Agradecemos, igualmente, aoProf. Artur Morão, um dos mais competentes e experi-entes tradutores portugueses de textos filosóficos e so-ciológicos (traduziu recentemente Max Weber), pela suarigorosa tradução dos textos de Luhmann aqui editados.Resta-nos, enfim, exprimir a nossa gratidão à SenhoraMonika Bolisega, responsável do departamento de direitosde autor do grupo Bertelsmann (ao qual pertence a editorados artigos de Luhmann reunidos nos 6 volumes daSoziologische Aufklärung), graças à intervenção da qualnos foram cedidos os direitos de tradução dos dois artigosaqui inseridos.

__________________8 J. Habermas; N. Luhmann, Theorie der Gesellschaft oder

Sozialtechnologie? – Was leistet die Systemforschung?, Frankfurt,Suhrkamp, 1971, p. 294.

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I. Dois artigos de Niklas Luhmann

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Iluminismo sociológico*

Niklas Luhmann

I - Clarificação do iluminismo

Iluminismo sociológico – o tema vive de uma tensãointerna. Descobre-se, por vezes, que a sociologia, segundoa sua essência e os seus objectivos, se caracteriza comoilustração. Mannheim1 concebeu a planificação da ciênciasocial como continuação do Iluminismo. Dahrendorf2

rotulou a sociologia americana de “ilustração aplicada”.Gehlen3, na realidade social, lobriga vestígios da ilustra-

__________________* Texto trabalhado da lição inaugural que o autor deu em Münster,

na Faculdade de Direito e Ciência Política da Universidade Guilherminade Westfália aos 25 de Janeiro de 1967.

1 Karl Mannheim, Mensch und Gesellschaft im Zeitalter dêsUmbaus. Trad. alemã da edição inglesa. Darmstadt, 1958, p. 46. Cf.também Jürgen Habermas, “Verwissenschaftliche Politik und öffentlicheMeinung”, in Humanität und politische Verantwortung. Erlenbach-Zurique e Estugarda, 1964, p. 54-73.

2 Ralf Dahrendorf, Die angewandte Aufklärung. Gesellschaft undSoziologie in America, Munique, 1963.

3 Arnold Gehlen, Die Seele im technischen Zeitalter.Sozialpsychologische Probleme in der industriellen Gesellschaft, 2ªed., Hamburgo, 1957, sobretudo p. 75 ss.

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ção que, após a perda das suas premissas, decorre, porassim dizer, às cegas. Schelsky4 tentou apreender numapalavra, “contra-iluminismo”, o consenso e a distânciarelativamente às Luzes. Característico em tudo isto é queos limites do pensamento iluminista são visíveis, mas nãose negam realmente os custos da ilustração. Pelo contrá-rio, enquanto sociólogo, leva-se a cabo uma separação dosprincípios e do ethos específico das Luzes.

A formulação do iluminismo sociológico tem, por-tanto, algo de arriscado, de unilateral e não evidente. Juntaalgo que, antes de mais, se conhece como uma diferençahistórica. Estamos habituados a ordenar os empreendimen-tos da humanidade pensante, aos quais chamamosIluminismo e sociologia, em épocas diferentes. PorIluminismo entendemos o esforço por construir de novo,a partir da razão, as relações humanas libertas de todosos vínculos com a tradição e o preconceito – esforçosque tiveram o seu apogeu no século XVIII e, em seguida,depressa sucumbiram a uma desvalorização céptica. Atri-buímos a sociologia aos séculos XIX e XX. Ela ufana-se da sua cientificidade positiva e procura o seu apoionão tanto nas leis imutáveis de uma razão humana uni-versal quanto nos factos constatáveis e nas condições sociaisdo comportamento. A sociologia pode assim, após o refluxodo optimismo iluminista, afirmar-se como uma ciênciacéptica, que impulsiona as suas investigações segundoregras metodológicas, mas que dificilmente pode invocara plena responsabilidade pelas consequências da suaactividade específica.

__________________4 Helmut Schelsky, Soziologie der Sexualität. Hamburgo, 1955,

p. 8. Cf. também as elucidações de Helmut Schelsky, “Verdunkelungoder Gegenaufklärung in der Soziologie der Sexualität”, Psyche 10(1956), p. 837-855 (854 s.)

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A separação, a tese de uma sucessão do Iluminismoe da sociologia, pode apelar para o facto de uma históriaassim vivida e tornada consciente. O Iluminismo, no sentidovinculado à época, não abriu tematicamente o caminhoà sociologia. Esta não se compreendeu a si como con-tinuação imediata do impulso iluminista e também rara-mente hoje assim se entende. Mas estaremos presos a estaauto-interpretação?

O ethos iluminista foi desmantelado com durasubitaneidade no século XIX. Esta ruptura não deixoutempo nem proporcionou a ocasião para uma clarificaçãodo Iluminismo. Resta, em boa parte, o pragmatismo e aconfiança na ciência; resta sobretudo a humanidade davontade reformista do social, mas esta vontade orienta-se pelos problemas resultantes da nova ordem social,entende-se a partir dela e não depara aí com nenhumabase para um confronto equiparável à antiga tradiçãoeuropeia da filosofia político-social ou tão somente aoIluminismo. Os fios da continuidade, que decerto se podemrastrear, entrosam-se num novo padrão e não se prestama determinar a relação recíproca entre a sociologia e aIlustração. Não se poderia fazer justiça nem à sociologianem ao Iluminismo com a demonstração de pressentimen-tos sociológicos na época das Luzes ou de cintilaçõesiluministas tardias na sociologia.

Não é necessário negar a ruptura da tradição naviragem do século XVIII para o XIX; pode, apesar detudo, levantar-se a questão de se, e em que sentido, asociologia apresenta hoje rasgos iluministas. Sem dúvida,ela não partilha nem os pressupostos imediatos do pen-samento nem os objectivos cognitivos ou éticos da épocadas Luzes. Duas premissas centrais da Ilustração racionalse tornaram sobretudo suspeitas na sociologia: a partici-pação igual de todos os homens numa razão comum que

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eles possuem sem ulterior mediação institucional, e ooptimismo, certo do seu triunfo, em relação ao estabe-lecimento de situações justas. Que o homem singular possa,pela reflexão acerca da sua própria racionalidade, encon-trar algo de comum a todos os homens e alcançar umconsenso, ou seja, a verdade, não clarificará os sociólogos;e também o não fará a opinião de que esta reflexão eeste elemento comum assumiriam a forma de regras práticasde produção, que, uma vez descobertas, poderiam serutilizadas por quem quer que seja. Em ambas as pers-pectivas vem, hoje, à luz uma complexidade muito maior:implantou-se a consciência das diferenças socialmentecondicionadas das “mundividências”, agudizou-se de modoconsiderável a consciência dos entrosamentos complica-dos, causais e axiológicos de toda a acção. Isto separaa sociologia do Iluminismo “ingénuo” de estilo antigo.

E, todavia, parece que não compreendemos plena-mente nem a tentativa de ilustração racional nem osproblemas fundamentais da sociologia actual, e que nemsequer podemos julgar correctamente a dimensão da rupturaentre eles, se partirmos do pressuposto de que se tratade atitudes espirituais heterogéneas, incomparáveis, nãounificáveis. Há uma série de características teóricas muitocentrais e de atitudes inquiridoras na sociologia que sepodem interpretar sob um conceito alargado de ilustração,e este último conceito permite, por seu turno, conhecermelhor o que, em rigor, se perseguiu com a tentativa his-toricamente retrógrada da ilustração racional e porque éque esta tentativa necessariamente fracassou.

Podemos descobrir na sociologia o que não conse-guimos ver e julgamos omitido – a clarificação das Luzes.A sociologia não é ilustração aplicada, mas clarificada;é a tentativa de obter os limites da ilustração.

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II - A sociologia como ilustração

Um rasgo iluminista fundamental da sociologiasobressai, de modo particularmente visível, em quatrolugares. Na tentativa de explicar a acção humana atravésde perspectivas incongruentes, no problema da latência,na transição das teorias factoriais para teorias sistémicase nas dificuldades peculiares dos métodos funcionais. Estesquatro aspectos explicar-se-ão, antes de mais, um apósoutro. Na sua conexão interna reside uma interpretaçãodeterminada do pensamento iluminista, a saber, a inter-pretação como ampliação da capacidade humana deapreender e reduzir a complexidade do mundo.

1. Perspectivas incongruentes

Para todos os esforços em vista do conhecimento daacção, que se reuniram na tradição ocidental sob o títulode “filosofia prática”, foi determinante a intenção de proporao agente a sua acção correcta. Pressupôs-se como evi-dente, qual comunidade do seu mundo e da sua razão,a homogeneidade das perspectivas do sujeito pensante eagente. A ciência olhou-se como ciência conselheira;deveria ela elucidar o agente acerca dos seus fins ver-dadeiros, mostrar-lhe os meios justos, ajudá-lo a alcançara recta constituição fundamental (virtude) de um agentebom. Portanto, a ciência não podia e não devia pensar,em princípio, de um modo diferente do modo que elaesperava do próprio agente e, por isso, deveria acomodar-se às limitações peculiares do horizonte da acção; deve-riam as suas representações tornar-se receitas, o seu sentidoser realizável na acção. Ela sentia essas limitações comoa essência dada do seu objecto.

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Disso – e não, decerto, apenas dos juízos de valor– se libertou a sociologia. Em primeiro lugar, tal acontecequando ela, no século XIX, incorpora a emergente técnicacognitiva alienante e dela se apropria. O sentido da acçãojá não se clarifica pela imersão na sua essência, no seutelos, no seu carácter peculiar, mas, pelo contrário, mediantea aplicação de um critério discrepante, inadequado,extrínseco, para o qual Kenneth Burke cunha a fórmulaoportuna «perspective by incongruity»5: Marx deriva opensamento de condições económicas da vida não inten-tadas, Freud de impulsos libidinosos; Carlysle e Nietzscheutilizam uma simbólica ruinosa para a expressão dodesespero religioso; Spengler coteja culturas historicamenteafastadas como “contemporâneas”; no romance francês erusso mede-se o casamento como instituição pelo amore a religião pelo crime; Bergson e Vaihinger elucidamabstracções mediante a referência ao fluxo temporal e comocobertura de contradições; também se poderiam menci-onar as técnicas artísticas alienadoras do século XX. Tudoisto tem efeito, e decerto um efeito não apenas popular,mas um efeito cognitivo, embora num sentido que nãose pode reconstruir numa perspectiva epistemológica. Apa-rentemente, leva não só à aproximação ao objecto, mastambém ao distanciamento em face do conhecer, e decertoa conhecimentos cuja fecundidade assenta justamente napossibilidade de desvio inerente ao método.

A sociologia nada um bom bocado com esta corrente,ganha uma feição crítica, desmascaradora, rasteja por detrásdas fachadas oficiais, indaga segundas intenções e desa-credita exibições. Nesta ocupação de desmascaramentodescobre ela que a determinação social vai muito maislonge do que, comummente, se supusera e do que o próprio

__________________5 Cf. Kenneth Burke, Permanence and Change. Nova Iorque,

1935, p. 95 ss.

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agente pretende admitir. A determinação social reside jánas percepções e nas necessidades, nos mitos, nas taxasde suicídio e no consumo, na própria linguagem e até,justamente, nas evidências da moral pública. Na clarifi-cação deste contexto social, que escora todo o sentido,perde o próprio sentido o seu carácter compacto, impe-netrável, substancial e, nessa medida, susceptível deverdade, como algo que assim é, e não de outro modo.Por detrás de tanta ilustração faz-se sentir um problemaainda oculto, a contingência social do mundo. A grandeteoria é, agora, ainda possível somente como sugestão paraa resolução deste problema – não já como uma ilustraçãosempre mais desmascaradora, mas como vislumbre doslimites da ilustração, como esclarecimento da ilustração.

De modo característico, a sociologia, com estastentativas iniciais de limitação, inicia o seu caminho comouma ciência teoricamente autónoma, que já não recorrea pontos de partida económicos, psicológicos ou histórico-universais. Constitui-se pelo modo como proporciona umadelonga à ilustração minorativa e desmascaradora cada vezmais universal; em última análise, pelo modo como secontrapõe à complexidade inapreensível de um mundosocialmente contingente. Para tal encontram-se disponí-veis apenas dois reducionismos, subjectivista um eobjectivista o outro, mas ambos entre si inconciliáveis:Max Weber atém-se firmemente ao sentido subjectivamenteexpresso da acção como o único facto dado e tenta construira partir dele tipos ideais de formações sociais e, com asua ajuda, levar a cabo uma investigação comparativa degrande alcance. Emile Durkheim oculta a contingênciasocial por meio da sua tese da coisalidade objectiva dasrealidades sociais. Ambas as posições obtêm a sua posiçãoatravés do problema, que elas elaboram, sem o mencionar,e a sua insuficiência consiste em que o seu problema senão torna a sua teoria.

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2. Funções latentes

Outros desenvolvimentos do pensamento tomam portema o problema da incongruência da ilustração científicae da orientação ingénua da acção, enquanto o redefinemgraças à distinção entre relações conscientes e inconsci-entes de sentido e, ao mesmo tempo, utilizam componen-tes não conscientes de um contexto accional para inter-pretar ou até clarificar incongruentemente a acção. Sem-pre se soube, claro está, que o homem não é omnisciente.Mas é novo o pressuposto de que uma ocultação de certosaspectos, de certas causas ou de certas consequências daacção co-determina o seu sentido. Ela só pode desfraldartodo o seu alcance, após a perda da fé de que o próprioser mostra ao agente aspectos essenciais e não essenciaise, se ele apenas prestar atenção, o orienta de modo objectivoe correcto; e de que cabe somente ao agente reduzir acomplexidade. A problemática desta redução é expressapelo conceito de latência, que deriva da psicanálise6. Elenão indica apenas a pura facticidade do deixar fora deatenção, mas indica que a acção humana deve ocultar asi própria aspectos parciais da sua realidade social, para

__________________6 As formulações influentes e a introdução do conceito freudiano

na sociologia devem agradecer-se a Robert Merton. Cf.: “TheUnanticipated Consequences of Purposive Social Action”, AmericanSociological Review 1 (1936), p. 894-904; IDEM, Social Theory andSocial Structure, 2ª ed., Glencoe, Ill., 1957, sobretudo p. 60 ss.; IDEM,“Social Problems and Sociological Theory”, in: Robert K. Merton /Robert A. Nisbet (Org.), Contemporary Social Problems. An Introductinto the Sociology of Deviant Behavior and Social Disorganisation. NovaIorque-Burlingame, 1961, p. 697-737 (708 ss.). Para outras versõesde ideias semelhantes, ver Arnold Gehlen, “Nichtbewusstekulturanthropologische Kategorien”, Zeitschrift für philosophischeForschung 4 (1950), p. 321-346; Marion J. Levy, The Structure ofSociety, Princeton, N. J., 1952, p. 83 ss.; Dorothy Emmet, Function,Purpose and Powers. Londres. 1959, p. 83 ss.

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não perder a capacidade de orientação e de motivação.Uma certa ignorância, um recalcamento de várias infor-mações seria uma autodefesa necessária dos sistemaspessoais e sociais da acção, sem a qual não estariam emcondições de manter constantemente a identidade própriae a sua estrutura integradora num meio ambiente suma-mente complexo7. Não se trata, portanto, de descurarelementos de pouca monta, mas do recalcamento deaspectos importantes do mundo da acção.

Do reconhecimento de que os recalcamentos sãonecessários à acção ninguém tira, todavia, a consequênciade que não se deve tocar nos tabus sociais ou se hão-de suspender todas as investigações que se estendem àsfunções e estruturas latentes. Pelo contrário: o impulsoiluminista leva a melhor. No entanto, com a mudança dospressupostos de pensamento, alterou-se também a orien-tação dos objectivos. O motivo dominante já não é ainstrução ou a advertência, nem a difusão da virtude eda razão, mas o desmascaramento e o descrédito dasfachadas oficiais, das morais dominantes e dasautoconvicções patenteadas. No desempenho destaautocompreensão, a sociologia interessa-se, com predilec-ção particular, pelos aspectos “suspeitos” e recalcados darealidade social, pelos “problemas sociais”, pelo “com-portamento desviante”, pela organização “informal” emvez da “formal”, pelo modo de produção das manifes-tações sociais, etc., e procura em tudo isso o sentidofuncionalmente latente.

__________________7 Ver, a este respeito, sobretudo Wilbert E. Moore / Melvin M.

Tumin, “Some Social Functions of Ignorance”, American SociologicalReview 14 (1949), p. 787-795; Louis Schneider, “The Role of theCategory of Ignorance in Sociological Theory. An ExplanatoryStatement”, Sociological Review 27 (1962), p. 492-508.

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Tão nítida é hoje a visão desta tendência8, tão obscuraé a sua responsabilidade9. Dificilmente nos poderemoscontentar com as esperanças da psicanálise de que jáa simples consciencialização, a discussão dos problemasaté agora latentes teria efeitos terapêuticos, embora nãofaltem tentativas de transposição desta ideia para ossistemas sociais10. Se as necessidades de latência sãorealmente condicionadas por estruturas sistémicas, entãonão será de ajuda um simples destapar do oculto – anão ser que baste acatar de outro modo a função dalatência. A ciência poderá, pois, apenas elucidar o agenteacerca dos problemas e das estruturas que para ele sãolatentes, acerca dos – “motivos” inconscientes da suaacção, se ela conhecer o seu contexto funcional, se, alémdisso, souber também que função a própria latênciadesempenha para o agente e se para isso conseguiroferecer alternativas funcionalmente equivalentes. Tam-bém nesta medida o programa da sociologia é a clari-ficação da ilustração.

__________________8 Cf., por ex., Peter L. Berger, Invitation to Sociology, Nova

Iorque, Garden City, 1963, p. 25 ss., com inúmeros exemplos.9 A questão é apresentada de modos diferentes, mas não res-

pondida – assim por Merton, op. cit. (1957), p. 51,70; por Alvin W.Gouldner, “Organizational Analysis”, in Robert K. Merton / LeonardBroom / Leonard S. Cottrell, Jr. (Org.), Sociology Today. Nova Iorque1959, p. 400-428 (407 ss.); por Peter M. Blau / W. Richard Scott,Formal Organizations. A Comparative Approach, São Francisco, 1962,p. 196, nota 3. Aparentemente, basta o conceito de latência para formulareste problema, mas não para o resolver.

10 Seguiram nessa direcção sobretudo os interesses investigativosdo Tavistock Institute, Londres. É muito característico o livro de ElliotJacques, The Changing Culture of a Factory, Londres, 1951. Ver aindaCyril Sofer, The Organization From Within. A Comparative Study ofSocial Institutions Based on a Sociotherapeutic Approach, Londres,1961; W. R. Bion, Experiences in Groups and other Papers, Londres-Nova Iorque, 1961.

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3. Das teorias factoriais às teorias sistémicas

Semelhantes condições prévias de ilustração respon-sável só poderão satisfazer-se em desvios, a saber, me-diante a reflexão sobre o tipo de teoria sociológica que,para tal, é exigível. Se desejarmos comprimir numa fórmulasucinta o desenvolvimento teórico da sociologia, desde oséculo XIX até hoje, então pode falar-se de uma transiçãodas teorias factoriais para as teorias sistémicas11.

Teorias factoriais – são tentativas de reconduzir aorigem e as peculiaridades particulares das formaçõessociais a determinadas causas singulares, por exemplo, àsnecessidades económicas e aos modos de produção queas satisfazem, aos impulsos psicológicos como o impulsoda competição ou o impulso de imitação, às diferençasde raças, às condições climáticas ou aos processos bio-lógicos de selecção. Estas tentativas, como hoje se podedizer com segurança, fracassaram nos seus conceitoselucidativos, por excessivamente simplificados. Semdúvida, menos do que nunca se excluirá hoje que atésistemas altamente complexos se podem construir e manterem virtude de processos elementares bastante simples –a cibernética esforça-se por demonstrar semelhantes pro-cessos –, mas isso não passa, então, de abstracções deum tipo completamente diferente, por exemplo, regras emecanismos de selecção, e não apenas causas reais, deconteúdo determinado.

As teorias sistémicas, em comparação com as teoriasfactoriais, têm um potencial muito maior para a comple-xidade. Abrangem formações sociais de toda a espécie–– famílias, empresas de produção, uniões associativas,

__________________11 Como uma exposição global, na concepção teórico-sistémica,

entretanto ultrapassada, desta evolução ver Talcott Parsons, TheStructure of Social Action, Glencoe, Ill., 1937.

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Estados, economias de mercado, Igrejas, sociedades – comosistemas muito complexos de acção, que devem soluci-onar uma multiplicidade de problemas, se quiserem manter-se no seu meio ambiente. Acerca destes problemas e dasrealizações funcionais, que elas resolvem ou poderiamresolver, sobre os problemas consequentes, os “custos” detais realizações e as realizações secundárias com elas re-lacionadas, é possível fazer estipulações, sem uma exactaclarificação prévia das causas singulares a que se devea origem de um sistema. É possível fazer enunciados sobrea função e a estrutura da linguagem – a linguagem é umsistema de acções verbais –, sem conhecer as causas quelevaram ao aparecimento da linguagem. Muitíssimosmecanismos sociais, por exemplo, o dinheiro, o poderpolítico legítimo ou o direito positivo, pressupõem sis-temas sociais tão altamente desenvolvidos que, na prática,é impossível clarificar a sua história causal, para já nãofalar de remontar às leis necessárias. Além disso, umadestrinça das relações causais fracassa também na suainterdependência circular. Todas as causas que sustentamo sistema são necessárias como causas duradoiras, e estascausas duradoiras só persistirão, se o sistema persistir, peloque o efeito a suscitar já está pressuposto na sua cau-salidade.

As teorias factoriais e a metodologia de legalidadecausal estrita estreitariam de modo intolerável a inves-tigação sociológica, no seu poder aglutinante para acomplexidade. Com semelhante instrumento, a sociologianem sequer conseguiria alcançar a compreensão quotidi-ana de situações e de contextos de acção na sua com-plexidade turva, mas multi-estratificada, para já não falarde a ultrapassar. Ficaria absolutamente subordinada aoagente. Em tais situações não se pode falar de ilustraçãosignificativa. A necessidade de um instrumento analítico,

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que pode fazer justiça a objectos muito complexos, pareceser a mola que suscitou a reorientação desde teoriasfactoriais para teorias sistémicas. Esta reorientação colo-cou o estilo iluminista da sociologia sobre fundamentosmelhores e mais sustentadores. As teorias factoriais, aoreagirem de imediato ao colapso das antigas verdades daacção, confinaram a clarificação à demonstração das causas“genuínas” da acção. Desacreditaram assim as estruturasde sentido, em relação às quais o próprio agente secompreende a si mesmo, como simples “superstrutura”,como “ideologia”, como “racionalização” ou “sublimação”de motivos inconfessáveis, em suma, como o mundo deaparências produzido sem direito ontológico próprio. Asteorias sistémicas embatem numa concepção moderna dalatência e, assim, também num novo estilo moderno deilustração. Não descobrem causas latentes, mas funçõese estruturas latentes. Também isto continua a ser uma críticacéptica da acção; ela desmascara as representações doagente não como um mundo de aparências rico em tru-ques, como simples embelezamento de motivos não nobres,mas como selecção incompleta, como simplificação de-masiado drástica e grosseira de uma realidade social muitomais complicada. A auto-apresentação dos sistemas deacção já não se traz à baila inconsideradamente, masremete-se para contradições internas, para pontos de vistaimplícitos, para outras possibilidades. A ciência já nãoaconselha o agente a compreender-se a si como órgão derealização de um motivo fundamental, exige dele, pelocontrário, uma visão muito mais complexa da acção,sabendo bem que ele a não consegue levar a cabo. Oproblema da ilustração não é, agora, o descrédito, masa exigência excessiva.

Obtém-se assim, para o esclarecimento da ilustração,algo de decisivo, a saber, uma formulação do problema

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que assinala à ilustração os seus limites e a intima aassimilar estes limites na sua teoria.

4. Métodos funcionais

Este esticão para uma complexidade intensificada,porventura exorbitante, da concepção sistémica sociológica podetambém ler-se noutro ponto actual da discussão, nas polémicasacerca do sentido e da especificidade dos métodos funcionais.

A crítica do funcionalismo sociológico parte, namaioria dos casos, das posições metodológicas doneopositivismo e tenta mostrar que uma função é ou umarelação causal na acepção vulgar, a saber, uma correlaçãoestatística – ou uma suposição não verificável e, portanto,“sem sentido”12. O principal ponto de ataque é a falta declaridade do objecto, para se referir de modo usual àsproposições funcionais: as fórmulas “estabilidade de umsistema social”, “sobrevivência”, “condições de manuten-ção”, assim se objecta, não podem precisar-se de modosuficiente, excepto mediante juízos de valor teleológicos,inadmissíveis do ponto vista científico13. Estas objecções

__________________12 Cf., por ex., Ernest Nagel, Logic Without Metaphysics, Glencoe,

Ill., 1956, p. 247 ss; IDEM, The Structure of Science, Nova Iorque,1961, p. 401 ss., 520 ss.; Carl Hempel, “The Logic of FunctionalAnalysis”, in Llewellyn Gross (Org.), Symposion on Sociological Theory,Evanston, Ill. – White Plains, N.I, 1959, p. 271-307; Kingsley Davis,“The Myt of Functional Analysis as a Special Method in Sociologyand Anthropology”, American Sociological Review 24 (1962), p. 757– 772; Gösta Carlsson, “Reflections on Functionalism”, Acta Sociologica5 (1962), p. 201-224; Gustav Bergmann, “Purpose, Function, ScientificExplanation”, Acta Sociologica 5 (1962), p. 225-238.

13 Como exemplo desta crítica difundida ver George C. Homans,Theorie der sozialen Gruppe. Trad. alemã Colónia, Opladen, 1960,p. 295 ss; IDEM, “Contemporary Theory in Sociology”, in RobertE. L. Faris (Org.), Handbook of Modern Sociology, Chicago, 1964,p. 951-977 (963 ss.).

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podem reduzir-se a uma outra fórmula: a unidade dereferência da análise funcional é demasiado complexa,contém demasiadas possibilidades para que possam serobjecto imediato de estipulações científicas.

Assim concebida, a crítica ilustra ao mesmo tempoas preferências, mais, as peculiares “funções latentes” dofuncionalismo. As chamadas dificuldades são expressãode um esforço por tomar em consideração a maior com-plexidade dos estados de coisas. Este esforço surge emtodos os aspectos singulares essenciais da análise funci-onal e deve, portanto, figurar como sua nota característica.Revela-se na radicalidade do acto de repensar os estoquesnas necessidades de realização, as evidências nos proble-mas; na abstracção do conceito de sistema, que elapressupõe como conceito fundamental teórico, e na re-latividade sistémica de todas as determinações funcionais,que só são completas se, ao mesmo tempo, se indicar aque sistema se refere uma realização funcional; além disso,no alargamento da pesquisa desde os aspectos manifestosaos latentes, dos funcionais aos disfuncionais e, por fim,na noção central da equivalência funcional, a qual expres-sa que uma só e mesma função se pode levar a cabo devários modos diferentes e reciprocamente permutáveis.

O funcionalismo, desde há muito a tal incitado pelafilosofia14, põe-se a caminho para decompor todas assubstâncias em funções e comparar tudo o que existe comoutras possibilidades. O mundo é assim projectado comoum horizonte de outras possibilidades de extrema com-plexidade. Os sistemas sociais, que no mundo queremexistir, devem revelar uma complexidade própria ainda

__________________14 Ver a propósito Ernst Cassirer, Substanzbegriff und

Funktionsbegriff. Untersuchungen über die Grundfragen derErkenntniskritik, Berlim, 1910, e recentemente Heinrich Rombach,Substanz, System, Struktur, 2 vols., Friburgo-Munique, 1965/66.

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considerável, para se poderem manter. Devem constituirestruturas que conseguem satisfazer exigências contradi-tórias, que possibilitam uma forte diferenciação internae, ao mesmo tempo, permitem ao sistema, graças a umaelevada indeterminação, aceitar muitos estados diferentes.O funcionalismo busca um enquadramento conceptualbásico de referência, com o qual possa fazer justiça a estasexigências de extrema complexidade. A problematizaçãoda estabilidade do sistema tem este sentido. Mas poderáa complexidade assim concebida ser também assimilada?

III - Apreensão e redução da complexidade

1. Princípio e limites do iluminismo

A questão sobre a possibilidade de assimilar exis-tências excessivamente complexas de informação carac-teriza o problema da ilustração ainda oculto. A incongru-ência da interpretação sociológica em relação à acção, anecessária latência de muitas estruturas e funções, atransição desde as teorias factoriais para as teoriassistémicas e a debilidade metodológica da análise funci-onal – tudo isto são apenas aspectos singulares do únicoproblema da complexidade, da profusão do possível, sãotão-só estádios singulares para a sua descoberta e des-dobramento.

A ciência, sobretudo a sociologia, vê-se impelidaa uma distância cada vez maior relativamente à acção,em virtude da sua busca de maior complexidade. Podeestabelecer a acção como conceito, como projecto deinvestigação, como decurso objectivo de acontecimentosno mundo, como “behavior”. Mas, além disso, a acçãoé uma possibilidade apreendida pelo próprio agente.Inclusive, o agente só pode captar aquilo de que se pode

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tornar consciente, o que ele consegue recolher e expe-rimentar concretamente no estreito horizonte da suaconsciência intencional. A complexidade do mundo, amultiplicidade colossal das possibilidades, deve, portanto,ser reduzida a um formato que se possa viver com sentido.Isto acontece espontaneamente no decurso do tempo, poistudo o que se desvanece no passado perde a propriedadede poder ser de outro modo. O problema da ilustraçãoé a questão de como isto acontece.

Um simples coleccionar e armazenar de informaçõescorrectas, um progredir rectilíneo na aquisição de um sabersempre novo, não resolve o problema da ilustração.Demasiado saber não clarifica mais, antes se perde nalonjura do saber presente, mas não consciente. Frente auma utopia da ilustração, que não discerniu os seus li-mites, anunciam-se estes limites sem que a si se conheçame à sua função: como preferência pelo passado e pelacultura, pelo irracional, pelo mistério da vida, pelo medradoe não feito, pela força da decisão ou pelo paradoxo comoprincípio. O Iluminismo da razão desafiou o romantismo.O que se afigurava não unificável, torna-se, porém,unificável, logo que se conhecem os limites da ilustraçãoe se compreendem como parte de si mesma. A comple-xidade do mundo não deve apreender-se só na represen-tação, mas também fazer-se compreender na vivência ena acção, portanto, reduzir-se. Uma intensificação daspossibilidades apreensíveis no mundo torna-se absurda se,ao mesmo tempo, se não desenvolverem paralelamentemecanismos eficientes da redução da complexidade.

2. Complexidade social

A sociologia tem uma oportunidade especial departilhar este dilema do Iluminismo. Pois, com o progres-

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so da ilustração nos seus dois aspectos, ou seja, daapreensão e da redução da complexidade, descurar-se-ácada vez menos a dimensão social. Sim, ela parece revelar-se, cada vez mais, como a variável crítica de que dependetodo o progresso ulterior. A sociologia, quando pretendecompreender-se como parte de uma ciência da realidadeilustrativa do mundo, encaminhará para o centro o pro-blema da complexidade social.

Aqui não se pensou apenas na temática clássica,referida à acção, da filosofia política, na ameaça por outrose na dependência de outros, portanto, nas antigas fórmulasproblemáticas metus et indigentia, ou nas antigas fórmulasteleológicas pax et iustitia. Pelo contrário, está hoje diantedos olhos, de modo muito mais radical, o problema deque o outro homem é outro eu e, por isso, incalculávelpor princípio15. É já a questão de se o outro sentirá em

__________________15 Na sociologia atribui-se um significado fundamental a este

problema das “outras possibilidades”, pelo menos no domínio dasexpectativas comportamentais de Parsons. Este vê no problema da“double contingency” de todas as interacções a razão por que todosos sistemas sociais devem constituir uma estrutura normativa, a fimde assegurar a complementaridade das expectativas de comportamen-to. Ver Talcott Parsons, The Social System, Glencoe, Ill., 1951, p.10 s., 36 ss.; Talcott Parsons / Edward Shills (Org.), Toward a GeneralTheory of Action, Cambridge, Mass., 1951, p. 16. Também na recenteteoria da organização vem à plena luz o problema da “indeterminaçãoracional” de todas as situações em que vários homens participam ou,de modo mais geral, o problema da sobrecarga do homem pelacomplexidade. Ver, por ex. Herbert A. Simon, Das Verwaltungshandeln.Eine Untersuchung über Entscheidungsvorgänge in Behörden undpivaten Unternehmen. Trad. alemã, Estugarda, 1955; IDEM, Modelsof Man. Social and Rational. Mathematical Essays on Rational HumanBehavior in a Social Setting. Nova Iorque-Londres, 1957; JacobMarschak, “Towards an Economic Theory of Organization andInformation”, in Robert M. Thrall / Clyde H. Coombs / Robert L.Davis (Org.), Decision Processes. Nova Iorque-Londres, 1954, p. 187-220; Gérard Gäfgen, Theorie der wirtschaftlichen Entscheidung.

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geral o mesmo que eu, verá as mesmas coisas, apreciaráos mesmos valores, viverá no mesmo ritmo temporal, traráconsigo a mesma história. A sociologia deve aqui recorrera uma teoria transcendental da constituição intersubjectivado sentido, se é que pretende alcançar uma concepçãoda complexidade social, do problema relativo das suasanálises funcionais16.

A metafísica ontológica era – por razões que aquinão podemos elucidar – forçada, no marco e nos pres-supostos do seu pensamento, a minimizar a dimensão social

__________________Untersuchungen zur Logik und ökonomischen Bedeutung des rationalenHandelns, Tubinga, 1963, sobretudo p. 176 ss., e acerca dos funda-mentos da teoria dos jogos John von Neumann / Oskar Morgenstern,Spieltheorie und wirtschaftliches Verhalten. Trad. alemã, Würzburg,1961, sobretudo p. 9 ss. Também neste domínio de investigação secondensa a noção de que a complexidade social se deve, primeiro,reduzir mediante as estruturas sistémicas, antes de dela se poder fazeruma abordagem racional.

16 Estabeleceram-se a este respeito fundamentos essenciaissobretudo na obra tardia de Edmund Husserl, embora nunca tenhamsido completados. Ver em particular Edmund Husserl, Ideen zu einerreiner Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie, Vol.II Husserliana Vol. IV., Haia, 1952; IDEM, Die Krisis dereuropäischen Wissenschaften und die transzendentalePhänomenologie. Husserliana Vol. VI, Haia, 1954, p. 185 ss., 415ss., e passim. Sobre tudo o que se extrai do legado husserliano cf.também René Toulemont, L’essence de la société selon Husserl, Paris,1962. Cf. ainda Alfred Schütz, “Das Problem der transzendentalenIntersubjektivität bei Husserl”, Philosophische Rundschau 5 (1957),p. 81-107 com observações críticas, e IDEM, Collected Papers, 3vols., Haia, 1962-1966, com outras considerações e também deintrodução à sociologia. Além disso, porventura Maurice Merleau-Ponty,Phénoménologie de la perception, Paris, 1945, p. 398 ss.; HermanZeltner, “Das Ich und die anderen: Husserls Beitrag zur Grundlegungder Sozialphilosophie”, Zeitschrift für philosophische Forschung 13(1959), p. 288-315; Remy C. Kwant, Phenomenology of SocialExistence, Pittsburgh, Pa.-Lovaina, 1965; Michael Theunissen, DerAndere. Studien zur Sozialontologie der Gegenwart, Berlim, 1965.

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de toda a vivência e acção significativas – a dissolvê-las, em parte, em questões de verdade e problemasmetodológicos, em parte, em questões da recta ordenaçãoético-política da acção. Até à época do Iluminismo ra-cional, ela dissimulava o acesso à plena problemática dadimensão social mediante a tese da repartição igual darazão humana: todos os homens partilhavam a razão emmedida, sem dúvida, diferente, mas de modo idêntico17.Todos se sentiam assim autorizados, e até obrigados, ausar a sua razão para encontrarem o verdadeiro ser, ondetoda a vivência se coaduna e coincide. De modo particular,à metafísica moderna de consciência afigurava-se dispen-sável o assentimento, onde a verdade evidente dá teste-munho da razão18. A ela se atinha o Iluminismo da razão;e a problemática peculiar da complexidade social de quenunca se pode estar certo do consenso na vivência e naacção com os outros homens torna-se assim inofensiva.Retrospectivamente, pode reconhecer-se na metafísica darazão uma atitude defensiva que já pressente o problemada complexidade social, da possibilidade ilimitada de outrasopiniões, mas que procura ainda evitá-lo mediante a retiradapara fundamentos seguros. Também as ciências positivas,que naquela época inauguram a sua marcha triunfal, seaferram rigorosamente ao princípio da certezaintersubjectivamente constritiva, que deve ser garantida peloretrocesso a percepções extremamente simples e a ope-rações ratificáveis do pensamento e da experimentação.E, em não menor medida, a neutralização confessional doEstado enquanto máquina burocrático-militar ou como

__________________17 Ver, em lugar de outros documentos, as elucidaçõess

introdutórias de Descartes, Discours de la Méthode, Oeuvres et Lettres,Bibliothèque de la Plêiade, 1952, p. 126.

18 Cf. a III regra em Descartes, Règles pour la direction del’esprit, op. cit., p. 42.

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dominação racional estava ao serviço do mesmo objec-tivo: obter a segurança social a partir do solo de neces-sidades racionais indubitáveis.

Todavia, este terreno era estreito. Revelou-se, semdúvida, frutífera esta redução para as ciências naturais,mas não conseguiu fazer justiça à complexidade do mundosocial. A sociologia, no seu campo objectal, não podiaignorar a diferença dos pontos de vista subjectivos, dosfins e dos valores, das perspectivas selectivas e até daspossibilidades perceptivas; de outro modo, teria perdidoo seu objecto. Mas, em primeiro lugar, tentou levar a cabo,pelo menos para si mesma, a redução à certezaintersubjectivamente constritiva e negou ao seu objectoimediato, a acção humana, toda a capacidade veritativa.Neste sentido, entende-se a si mesma como ciência positiva.A consequência foi a crescente alienação entre a análisecientífica e a perspectiva própria da acção.

Esta incongruência é inevitável, se a ciência tentaapreender mais a complexidade do que poder actualizar-se na acção. Mas o modo como se concebe esta discre-pância pode carecer de reforma. Uma nítida contraposiçãode ciência “objectiva” e acção “subjectiva”, de objecti-vidade axiologicamente neutra e empenhamentoaxiologicamente vinculado, proporciona poucas possibi-lidades de mediação. A ciência, com semelhantesdicotomias, recua para uma posição contrária a partir daqual já não se pode conceber como ilustração. Quandomuito, interiormente desinteressada, pode permitir ao agentefazer uso dos seus conhecimentos segundo o critério dassuas premissas axiológicas.

Quanto mais intensamente entrar na consciênciaaquela discrepância como problema, como problema daredução da complexidade, tanto mais se imporá uma saídapara clarificar à teoria o próprio problema. Isto, sem dúvida,

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não quererá dizer que a ciência deve ser controlada elimitada pelo fim da sua aplicação, pela sua utilidadeprática. A possibilidade de utilizar a ciência é apenas umcaso particular de uma situação problemática muito maisgeral, que se pode conceber com a fórmula “apreensãoe redução da complexidade”. O mundo é extremamentecomplexo; perante ele, é muito limitada a extensão con-creta da atenção da vivência intencional e da acção. Eiso abismo que vale a pena transpor mediante a constituiçãodo sentido. O Iluminismo é o processo histórico que seesforça por tornar acessíveis à vivência e à acção comosentido as possibilidades do mundo.

3. Problema como teoria

Mas como poderá um problema ser uma teoria? Umproblema não proporciona nenhuma verdade indubitável.Um problema não é um axioma. O estado de coisas, quea nossa fórmula problemática tem em mira – a saber, omundo –, também não facultará uma axiomatização. Todaa axiomática pressupõe que a complexidade foi captadae reduzida mediante uns quantos axiomas. No sistemaproposicional regulado por axiomas ela já não pode serintensificada, mas apenas desdobrada. Por isso, o proble-ma, que nos pomos, é tratado como já resolvido. Umateoria, que toma por fito a apreensão e a redução dacomplexidade, deve reconhecer-se como não axiomatizável,deve, portanto, traduzir-se da linguagem dos axiomas edas suas consequências para a linguagem dos problemase das suas soluções e ser, paralelamente, reestruturada nassuas formas proposicionais e nos seus objectivos cognitivos.

Importantes preparativos para semelhante reorgani-zação foram já fornecidos, sobretudo nos princípios, a uma

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metodologia da análise funcional e a uma teoria do siste-ma social da acção. Estes fundamentos autorizam-nos afalar, com algum optimismo, de ilustração sociológica epossibilitam reconhecer já, nos seus contornos, as difi-culdades de semelhante empreendimento. No entanto, éainda necessária uma reorientação essencial, há que re-conhecer o rasgo iluminista fundamental destes esforçosjá existentes: a análise funcional deve ser libertada dosseus vínculos às representações da lei causal e desfraldar-se como método comparativo, e a teoria estrutural-fun-cional deve ampliar-se em teoria funcional-estrutural, paraque ela se possa referir ao problema da complexidade e,sob este ponto de vista, aprender a indagar a função dossistemas e das estruturas. Ambas as reinterpretações foramjá previamente preparadas pelas discussões e investiga-ções dos últimos anos em medida tal que se afiguramnaturais. Todavia, a sua execução conseguirá clarear queganho cognitivo ficámos a dever à teoria sistémica fun-cional.

Os conhecimentos que são mediados pelas análisesfuncionais nunca se situam, em rigor, na direcção de sentidoda relação causal, no prognóstico seguro de determinadosefeitos ou na clarificação garantida de estados a partir decausas simples, mas, paralelamente, em possibilidades decomparação19. As situações concretas são incomensuráveis.A partir do problema de um efeito representado, pelocontrário, tornam-se comparáveis, como consequência deuma abstracção, diferentes possibilidades de actuação.Surgem como funcionalmente equivalentes. A validade dacomparação não refere se o efeito se deve indagar sobo interesse teórico ou prático como problema de referên-

__________________19 Cf. a este respeito Niklas Luhmann, “Funktion und Kausalität”.

IDEM, “Funktionale Methode und Systemtheorie”.

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cia. Portanto, a análise problemática teórico-comparativapode facultar a acção com possibilidades substitutivas egarantir-lhe assim uma segurança que não assenta nafiabilidade do ser estabelecido, mas na disponibilidade deoutras possibilidades.

Enquanto, no âmbito metódico, se deve alargar ainvestigação de relações causais simples, temporalmentearticuladas ou correlações estatísticas para uma compa-ração de várias, na teoria prepara-se uma transição deteorias sistémicas, que somente consideram a ordenaçãointrínseca do sistema, para teorias sistémico-ambientais.A concepção ontológica do sistema, que definia os sis-temas como totalidades, é cada vez mais substituída poruma teoria sistémico-funcional, que apreende os sistemascomo identidades complexas, que se podem manter, numambiente extremamente complexo, indiscernível e flutu-ante, como ordenamento extremamente valioso. Só quan-do esta transição se levou a cabo de modo consequente20

poderá a teoria sistémica soltar-se do pressuposto de umaordenação interna já determinada e estruturalmente carac-terizada e reconhecer em geral a função da formação

__________________20 A teoria sistémica de Parsons, para mencionar um exemplo

importante, encontra-se na fronteira destas duas concepções, mascontribuiu mais do que as outras para mostrar que a passagem eranecessária. Caracteriza os sistemas como “dotados de fronteiras” eutiliza a diferença entre dentro / fora em lugares centrais para a definiçãodos problemas fundamentais do sistema. Por outro lado, ela é aindauma teoria estrutural-funcional (embora Parsons comece também alibertar-se desta noção) e pode representar o meio ambiente não comomundo extremamente complexo, mas apenas como o sistema englobantede normas impostas, portanto, como complexidade já reduzida. Vera título de sinopse esquemática: Talcott Parsons, “General Theory inSociology”, in Robert K. Merton / Leonard Broom / Leonard S. Cottrell,Jr. (Org.), Sociology Today, Nova Iorque, 1959, p. 3-38 e IDEM, “Diejüngsten Entwicklungen in der strukturell-funktionalen Theorie”, KölnerZeitschrift für Soziologie und Sozialpsychologie 16 (1964), p. 30-49.

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sistémica: consiste ela na apreensão e na redução dacomplexidade do mundo.

4. Sistemas como meio da ilustração

Os sistemas intervêm entre a complexidade extrema,indefinida, do mundo e o estreito potencial de sentido decada vivência e acção concreta. Eles são o meio da ilustração.

A formação sistémica tem lugar através da estabili-zação de uma fronteira entre o sistema e o meio ambiente,em cujo seio se pode manter, de modo invariante, uma valiosacoordenação com menos possibilidades (portanto, comreduzida complexidade). Esta coordenação intrínseca comas suas condições de manutenção serve de fundamento aum projecto selectivo, simplificado, mas comprovável, domeio ambiente, de ponto de apoio a uma acção significativae praticamente realizável. A complexidade indefinida domundo transmuta-se em problemas de automanutenção demais exacta especificação, desloca-se, por assim dizer, emparte a problemática do mundo de fora para dentro, ondeela se pode resolver melhor com métodos teleologicamentemais claros da elaboração da informação.

O modo como tal acontece determina o nível dailustração – no sistema da acção pessoal (estruturado poruma “personalidade”) e também no sistema social. Acomplexidade inerente ao sistema deve estar numa relaçãoadequada à complexidade do meio ambiente21. Quanto mais

__________________21 Neste sentido fala W. Ross Ashby, An Introduction to Cybernetics,

Londres, 1956, p. 206 ss., da “requisite variety”de um sistema. Umaelaboração desta situação encontra-se também em O. J. Harvey / HaroldM. Schroder, “Cognitive Aspects of Self and Motivation” para os sistemaspsíquicos, e em Harold M. Schroder / O. J. Harvey, “ConceptualOrganization and Group Structure”, para os sistemas sociais. Ambosin O. J. Harvey (Org.), Motivation and Social Interaction. CognitiveDeterminants, Nova Iorque, 1963, p. 95-133 e 134-166.

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complexa for a estruturação de um sistema e quanto maisestados ele, por conseguinte, puder receber, tanto maiscomplexo será igualmente o seu mundo, tanto maisadequado será ao meio ambiente, tanto mais significativoe clarificado poderá ele existir, ser experimentado e agir;portanto, tanto mais adaptada ao mundo será a suasubjectividade.

Este ganho em complexidade reduzível obtém-se emvirtude de a selectividade do comportamento humano serintensificada pela formação sistémica. Graças a sistemas,é possível ordenar entre si mais actos de elaboração deinformação, que decorrem ou sucessivamente ou ao mesmotempo, pelo que a realização selectiva de um acto reforçaa dos outros, e vice-versa. Cada acto pode, então, res-tringir-se a uma escolha entre muito poucas alternativase pressupor que, noutros lugares, outras escolhas já foramfeitas ou se farão ainda, que justificam esta restrição –tal como a escolha política entre as personalidades de líderesde menos partidos decide, e pressupõe assim, que, graçasa processos selectivos intrapartidários, estas poucas per-sonalidades visíveis se revelaram como as menos inca-pazes.

Em particular, há que distinguir entre o reforçoselectivo temporal e o social. Umas vezes, podem ela-borar-se informações gradualmente umas após outras sóquando se está seguro de que as regras, segundo as quaisse trabalha, permanecem constantes durante algum tempoe se podem estabelecer resultados de um passo para ospassos ulteriores. Deve, portanto, haver um sistema queesteja em condições de manter uma estrutura relativamen-te invariante e armazenar informações de modo que, emcada passo, não se desintegre tudo novamente, se tenhasempre de começar outra vez e se possam esperar resul-tados utilizáveis só como golpes de sorte de um único

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passo. Além disso, existe uma elaboração simultânea dacomplexidade sob o pressuposto de que as perspectivasdos homens singulares são intermutáveis, de que se podemtransferir resultados de homem para o homem. Confiarna fiabilidade e na receptividade da elaboração da infor-mação dos outros homens só é possível em sistemas sociais;pressupõe uma acção comum – pelo menos na forma dacomunicação segundo regras determinadas, para todas asformas superiores da complexidade, portanto, na formade linguagem.

A partir de começos muitos simples, nos quais sómuito poucos actos seleccionadores se ordenam uns aosoutros deste modo e o potencial para a complexidade é,paralelamente, menor, podem desenvolver-se mediante aformação sistémica construções altamente complexas que,em seguida, sob a pressão da sua própria complexidade,prosperam cada vez mais e tem sempre maior dificuldadeem introduzir uma relação de reforço recíproco signifi-cativo entre os seus actos singulares. A problemática internamuito debatida dos grandes sistemas – eis a forma emque chegamos a experimentar os limites da ilustração.

De facto, só os sistemas podem servir de meios dailustração, não o público em livre discussão22. Esta for-mulação permite ainda uma retrospectiva à diferença entreIluminismo da razão e ilustração sociológica. Uma vezque não se pode pressupor a redução da complexidadecomo capacidade humana inata, como razão, e já nemsequer conjecturar que todos os homens participam de igualmodo dessa capacidade, a abertura à discussão públicanão chega para realizar a ilustração. Não é já a libertação

__________________22 Ver, por ex., a concepção de Kant, típica para a sua época,

no seu ensaio: “Beantwortung dr Frage: Was ist Aufklärung?”, citadode acordo com a edição da “Philosophische Bibliothek”, Vol. 46,Leipzig, s/d.

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da razão para uma comunicação não coagida que clarifica,mas apenas uma intensificação efectiva do potencialhumano para a apreensão e a redução da complexidade.Trata-se da capacidade de considerar significativamentemuitas possibilidades e, também, de agir prontamente: derelações entre uma multiplicidade real e social e umacarestia temporal, que podem ser melhoradas; trata-setambém de uma captação da pressão temporal, que resultadas crescentes interdependências23.

Esta intensificação da realização pode, perante aextensão imutavelmente menor da atenção da vivênciahumana, ter lugar só graças às formações sistémicas quegarantem que as elaborações da informação se seguemnum contexto significativo, que reforça a sua selectividade.Só assim se obtém um estilo praticamente eficaz dailustração, o qual contrabalança e, assim, merece cadaganho de novas possibilidades com uma complexidadecrescente e com uma elaboração reforçada dos seusproblemas consequentes.

IV - Esforços afins e concorrentes

Uma sociologia, que pretende conceber-se comoilustração e tematizar ao mesmo tempo os limites dailustração, tem uma oportunidade especial de reflectir sobreas relações com algumas ciências vizinhas aparentadas econcorrentes. Se se tomar como fio condutor o problemada complexidade e da sua redução, surgem diante dos olhos,nos esforços conexos, os da fenomenologia transcendental,

__________________23 Sobre este problema da civilização ver também Norbert Elias,

Über den Prozess der Zivilisation. Soziogenetische undpsychogenetische Untersuchungen, Basileia, 1939, Vol. II, p. 337 s.Ver, ademais, Wilbert E. Moore, Man, Time, and Society, Nova Iorque-Londres, 1963, p. 16 ss.

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da cibernética, da teoria do direito, das ciências da decisão,bem como os da ciência da história. Em face do estadoactual do desenvolvimento teórico, seria prematuro eperigoso neutralizar a discussão entre estas disciplinasmediante propostas de delimitação. Importa antes desco-brir contextos para estabelecer os possíveis pontos darelação de uma divergência significativa.

1. Fenomenologia transcendental

Onde surgiu a exigência de uma teoria transcendentalda sociedade24, esteve até agora, no centro da atenção,a fundamentação epistemológica que remonta a Kant. Ondese reivindicou uma sociologia fenomenológica, partiu-sedas concepções mais antigas da visão eidética25, aderiu-se simplesmente à tese de um subjectivismo inevitável26

ou, então, optou-se por “análises do mundo da vida” nosentido de descrições da compreensão quotidiana do mundoe esvaneceu-se assim a abordagem transcendental27. Estas

__________________24 Ver sobretudo Max Adler, Das Rätsel der Gesellschaft. Zur

erkenntnis-kritischen Grundlegung der Sozialwissenschaften, Viena,1936, e Helmut Schelsky, Ortbestimmung der deutschen Soziologie,Düsseldorf-Colónia, 1959, p. 93 ss. Cf. além disso, Horst Baier,“Soziologie zwischen Subjekt und Objekt. Zur erkenntnistheoretischenSituation der westdeutschen Soziologie”, Soziale West 14 (1963), p.278-296 (291 ss.) com mais referências.

25 Assim porventura Siegfried Kracauer, Soziologie alsWissenschaft. Eine erkenntnistheoretische Untersuchung, Dresde, 1922.

26 Ver a este respeito a sinopse em Edward A. Tiryakian,“Existential Phenomenology and the Sociological Tradition”, AmericanSociological Review 30 (1965), p. 674-688.

27 Isto é característico nas publicações americanas de AlfredSchütz, agora disponíveis em: Collected Papers, 3 vols., Haia, 1962-66; além disso, Peter L. Berger / Thomas Luckmann, The SocialConstruction of Reality, Garden City, N. I., 1966, e as observaçõescríticas de Hans Georg Gadamer, “Die phänomenologische Bewegung”,Philosophische Rundschau 11(1963), p. 1-45.

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estipulações de significado não incentivam à aplicaçãoampla dos conceitos na discussão sociológica, sob o pontode vista fenomenológico e transcendental. No entanto, aindanão se divisa aí a descoberta decisiva, que, emboraimplicitamente, se anuncia nas análises de Husserl – asaber, a descoberta da constituição intersubjectiva e, assim,da contingência social do mundo em geral28. Se se tomara sério esta descoberta nas suas consequências, ela impõe-se a todas as ciências, também à teoria do conhecimentoe ainda ao positivismo transcendental da fenomenologiahusserliana, na medida em que elas procuram determinarfundamentos e estados de coisas com uma certezaintersubjectivamente constritiva. A reflexão transcendentalsobre aquilo que eu realmente vivo revela-se, então, nãocomo caminho para evidências de saber último, mas comouma técnica metódica de transmutar todas as evidênciasem problemas – inclusive até as do ser do mundo, queagora avulta como um problema de indeterminada eextrema complexidade. Além disso, ela ilumina as estru-turas mais gerais do mundo, por exemplo a diferença entreser e não ser (ser-outro), o tempo e o pressuposto de umapluralidade de Eus – estruturas que não se podem pensarcomo ausentes do mundo e que, ao mesmo tempo,esquematizam a sua complexidade como redutível. Elaopõe-se assim às teorias sistémicas, entre as quais tambémà sociologia, sem as afectar29 e sem conseguir “fundamentá-las”, a não ser mediante a alegação de problemas.

__________________28 Aparentemente, Schütz acolhe, acima de tudo, este achado

como um facto; mas, claro está, não é um facto que algures tenhade certo modo acontecido; é um problema.

29 A intersubjectividade da constituição do mundo nada maisexpressa do que a congruência das perspectivas intencionais da vivênciado sentido dos diferentes sujeitos. Enquanto tal, não é personificável.O próprio Husserl, às vezes, desliza com muita facilidade de estadosde coisas da intersubjectividade garantida para o pressuposto de

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As teorias sistémicas, que aceitam e pretendemelaborar amplamente esta proposta de problemas, devemser teorias não só estruturais-funcionais, que iniciam ainvestigação com os problemas sistémicos de estruturasdeterminadas pré-dadas; devem ser também teorias fun-cionais-estruturais, que pré-ordenam a função da estrutura,investigam a solução de um problema da complexidadedo mundo mediante a construção estrutural e o projectodo meio ambiente, vendo aí a função da disposiçãosistémica e abordam todos os problemas sistémicos comoproblemas já derivados, como problemas mundanosredefinidos com menor complexidade.

No marco de referência de semelhante investigaçãofenomenológico-transcendental dos problemas, a ilustra-ção sociológica já não se pode entender como represen-tação de estados de coisas correctos ou como um esta-belecimento de estados de coisas adequados ao fim,segundo o critério da razão humana comum. O seu sentidoreside, então, numa concepção teórica ou prática, naintensificação do potencial humano para a apreensão e aredução da complexidade do mundo através da organi-zação sistémica.

2. Cibernética

Entre as investigações, que de modo especial seocupam da redução da complexidade, sobressaem aquelasque, desde há algum tempo, se congregam sobre o vocábulo

__________________comunidades sociais de vida no sentido de personalidades de ordemsuperior. Cf. a sinopse rica de conteúdo em Toulemont, op. cit. Elepretendeu resolver os problemas de uma passagem daintersubjectividade da vivência para a teoria dos sistemas sociaismediante um passo dedutívo do universal para o particular; mas oque faz é minorá-la consideravelmente. O mesmo se diga de Adler,op. cit.

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cibernética. Pode ficar por decidir se o seu conceito daentropia, da igual probabilidade de todas as possibilidades,suscita um conceito sociologicamente significativo dacomplexidade, e se a teoria matemática da informação aele referido se poderá transferir para sistemas sociais – umateoria cibernética dos grupos e uma ciência cibernética daorganização existem já nos primeiros começos. Em geral,a autocompreensão desta nova “ciência” mostra ainda rasgospouco criteriosos. Por vezes, ela aproxima-se muito domodelo estrutural do círculo servomecânico de regulação30.Mais interessante do que esta estrutura é, porém, a suafunção. A retroacção de informações sobre os efeitos docomportamento próprio no sistema poupa a previsão epossibilita ao sistema manter-se também em ambientes queflutuam de um modo imprevisível, na medida em que eledispõe de um potencial de reacção assaz variável e de temposuficiente para corrigir as consequências dos seus erros. Alémdesta estratégia da absorção de complexidade excessiva, sãopensáveis e necessárias outras, por exemplo, a diferenci-ação interna em sistemas parciais relativamente autónomos,a organização hierárquica, a incorporação de incertezas,liberdades e contradições internas no sistema, a reflexividadede processos, a selecção auto-reforçada31.

__________________30 Ver em especial Norbert Wiener, Kybernetik. Regelung und

Nachrichtenübertragung im Lebewesen und in der Maschine. Trad.alemã, 2ª ed., Düsseldorf-Viena, 1963.

31 Cf. W. Ross Ashby, Design for a Brain, 2ª ed., Londres, 1954;Além disso, por exemplo, Herbert A. Simon, “The Architecture ofComplexity”, Proceedings of the American Philosophical Society 106(1962), p. 467-482; Herbert A. Simon / Kenneth Kotovsky, “HumanAcquisition of Concepts for Sequential Patterns”, Psychological Review70 (1963), p. 534-546; Stafford Beer, Decision and Control. TheMeaning of Operational Research and Management Cybernetics,Londres-Nova Iorque-Sidney, 1966; Niklas Luhmann, “ReflexiveMechanismen”.

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Se justapusermos estes diferentes mecanismoscibernéticos sob o ponto de vista da sua função para aredução da complexidade, então a sua conexão clarificae ilustra ao mesmo tempo a possibilidade de uma trocafrutuosa de ideias com a sociologia. Não se diz assimque os sistemas sociais se devam conceber como máqui-nas ou como organismos. A sociologia poderá, no entanto,orientar as suas investigações para tais possibilidades dotrato racional com o incógnito indeterminado, sem por issoperder de vista que também formas menos racionais deredução, porventura a magia, a socialização emocional ouas esquematizações de amigo/inimigo, desempenham amesma função. Semelhante comparação poderia pôr-se aoserviço da ilustração sociológica, se ela se orientasse pelaquestão de quão complexo poderá ser o projecto ambientalde um sistema que lida com determinadas formas deredução.

3. Racionalidade

A competência para formular juízos sobre aracionalidade ou a correcção de determinadas acções deixa-a a sociologia hodierna a outras ciências; com Max Webere Karl Manheim esvaneceu-se também das frentes prin-cipais da discussão o grande tema do processo civilizacionalocidental da racionalização32. A razão consiste talvez emque nós associamos ainda demasiado o conceito daracionalidade aos juízos sobre a justeza das acções in-dividuais – na medida em que ainda continuam a estar

__________________32 Ver, porém, o começo de uma reflexão crítica em Dieter

Claessens, “Rationalität, revidiert”, Kölner Zeitschrift für Soziologieund Sozialpsychologie 17 (1965), p. 465-476. Reimpresso in IDEM,Angst, Furcht und gesellschaftlicher Druck, und andere Aufsästze,Dortmund, 1966, p. 116-124.

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sujeitas à ética. As categorias weberianas da racionalidadeteleológica e da racionalidade axiológica33 incluem, demodo muito claro, esta referência à acção individual, etambém a discussão sociológico-organizacional da discre-pância entre modelos sistémicos (modelos físicos) emodelos racionais (modelos teleológicos) sofre destacoordenação34. Todavia, esta discussão ensina justamentea que beco sem saída leva a concepção da racionalidadeenquanto racionalidade da acção. Que, ademais, na so-ciologia desponte um interesse vivo pela racionalidade sub-reptícia do aparentemente irracional, por funções latentes,etc., confirma esta impressão de insuficiência. A socio-logia mudará a racionalidade da acção em racionalidadesistémica e deverá referir-se ao seu conceito de sistema.Como racional surgiria, então, cada vivência constitutivade sentido e cada acção, na medida em que concorre paraa solução de problemas sistémicos e, deste modo, paraa conservação de estruturas redutivas num mundo extre-mamente complexo.

__________________33 Cf. as formulações clássicas em Max Weber, Wirtschaft und

Gesellschaft, 4ª ed., Tubinga, 1956, p. 12 s.34 Cf. a este respeito Alvin W. Gouldner, “Organizational

Analysis”, in Robert K. Merton / Leonard Broom / Leonard S. Cottrell,Jr. (Org.), Sociology Today, Nova Iorque, 1959, p. 400-428, ou AmitaiEtzioni, “Two Approaches to Organizational Analysis. A Critique anda Suggestion”, Administrative Science Quarterly 5 (1960), p. 257-278;IDEM, Modern Organizations, Englewood Cliffs, N. J., 1964, p. 16ss. Encontra-se uma divisão semelhante na teoria dos pequenos grupos,que faz uma distinção entre orientação de tarefas e orientação derecursos, a saber, orientação instrumental e expressiva, onde amanutenção de recursos se olha como coisa das forças expressivase emocionais, portanto não racionais, dos grupos. Ver fundamental-mente, sobretudo Robert F. Bales, Interaction Process Analysis. AMethod for the Study of Small Groups, Cambridge, Mass., 1951, ecomo uma exposição ulterior, por ex., John W. Thibaut / Harold H.Kelley, The Social Psychology of Groups, Nova Iorque, 1959, emespecial p. 274 ss.

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Como racionalidade sistémica, a racionalidade é re-lativa ao sistema; está, portanto, ligada simultaneamente demodo histórico e efectivo a estruturas constituídas daelaboração da vivência. Eis o que é objectável, do pontode vista ontológico. Contudo, esta objecção expressa jus-tamente algo de essencial sobre o sentido, a meta e os limitesintrínsecos do Iluminismo. Diferentemente do Iluminismoda razão, a ilustração sociológica já não buscará verdadesracionais firmes, intersubjectivamente certas, nem delasderivará tudo o mais. Isso restringiria a priori o seu potencialpara a complexidade. Ela toma também mais a sério doque ele próprio o motivo da produção, que actua noIluminismo da razão35. A ilustração efectiva pode apenasser levada a cabo pela construção sistémica, a racionalidadeno mundo promovida somente pela construção e consoli-dação de sistemas mais amplos, mais complexos. De outromodo recorrer-se-ia a representações do mundo cuja com-plexidade permanece indeterminada e indeterminável. Masviolar-se-ia então a lei fundamental intrínseca do Iluminismo:que a apreensão da complexidade do mundo se deveharmonizar com as possibilidades da sua redução e, destemodo, limitar. Enquanto o Iluminismo da razão se orientapor barreiras a priori, por um ordenamento objectivo davivência mundana subjectiva, a ilustração sociológica vê-se a si mesma referida a obstáculos intrínsecos, a limitesda sua própria capacidade de realização.

4. Teoria do direito

Pelo menos desde o fim da antiga filosofia práticaeuropeia e desde o colapso do Iluminismo da razão

__________________35 Ver a propósito Ernst Cassirer, Die Philosophie der Aufklärung,

Tubinga, 1932, p. 15 ss., e em particular Max Horkheimer / TheodorW. Adorno, Dialektik der Aufklärung. Philosophische Fragmente,Amsterdão, 1947, p. 14 ss.

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dispersaram-se os esforços em vista da racionalidade e dacorrecção normativa da acção e repartiram-se por diferentesdisciplinas. A racionalidade, no ponto crucial, vê-se comoracionalidade teleológica corrigida por considerações eco-nómicas; os juízos sobre a justeza normativa da acçãodeixam-se, pelo contrário, para uma ética axiológica ou paraa ciência do direito, a única significativa do ponto vistaprático, que se concentrou na interpretação do direitopositivo. Esta separação levou-se a cabo fora da sociologia.Parece ter as suas razões, mas a evidência de separação– juntamente com o facto de ter levado a uma divisão daciência da acção em disciplinas diferentes – impede quea questão se levante segundo as suas razões.

A separação pode ser significativa no âmbito dasciências da decisão, do qual já iremos falar36. Ela não éobrigatória, a priori, para a teoria sociológica de sistemas.Deverá tentar associar uma teoria da racionalidade sistémicaa uma teoria sistémico-estrutural do direito.

Faltam aqui, na ciência do direito, quase todos ostrabalhos prévios37. O pensamento jurídico, por razões que

__________________36 Muita coisa fala a favor de os reconduzir à oposição entre

programas teleológicos e programas condicionais da decisão e estesao modelo de Input/Output. A este respeito ver Niklas Luhmann, “Lobder Routine”, Verwaltungsarchiv 55 (1964), p. 1-33; IDEM, Recht undAutomation in der öffentlichen Verwaltung. Eineverwaltungswissenschaftliche Untersuchung, Berlim, 1966, p. 35 ss.

37 Uma excepção importante surge em Santi Romano, L’ordinamentogiuridico, Pisa, 1918, 2ª ed., reimpressão Florença 1962. Romano propõeda teoria jurídica, tida habitualmente também por “institucional”, umaversão que identifica o direito com a estrutura de qualquer sistema social,mas que, no seu tempo, ainda não tivera possibilidade alguma de semodelar por uma teoria sociológica do sistema social e, por isso, se viuobrigada a referir expressamente uma caracterização como sociologia.Como outro e raro começo de uma teoria normativa sistémico-estruturalver Jay M. Jackson, “Structural Characteristics of Norms”, in The Dynamicsof Instructional Groups. The 59th Yearbook of the National Society forthe Study of Education, Chicago, 1960, p. 136-163 (149 ss.).

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aqui não podemos investigar com maior pormenor, en-contra-se enredado nas premissas da ética e tornou-se umacomponente da nossa tradição, embora não, decerto, comoteoria estrutural da sociedade. Ele encontra na unidadeindivisível do conceito da norma jurídica, do dever-serjurídico endereçado aos agentes, as suas limitações38. Umasociologia do direito romperá com estas restrições e deveráinterrogar-se sobre a função desta simbólica do dever-ser.Rebenta assim com cada tipo de premissas estruturais e,ao mesmo tempo, transcende a demanda habitual dafundamentação do direito, que se esforça, na base de umconceito normativo unitário, pela derivação das normasjurídicas conhecidas e usuais a partir de um direito decategoria superior, em última análise, a partir de uma oude umas quantas normas fundamentais.

Enquanto a teoria jusnaturalista ou hierárquico-for-mal do direito minimiza o problema da complexidade –poderia, aliás, não tentar legitimar todo o direito mediantealgumas normas fundamentais, portanto, restringi-lo aosentido que se pode construir a partir destas normas básicas–, uma teoria sociológica sistémico-estrutural do direitoleva justamente a este problema. A questão relativa à funçãoda norma jurídica – não de normas jurídicas singulares,mas da normatização jurídica, sem mais – pode elaborar-se no âmbito de uma teoria estrutural-funcional do sistemasocial. Ela desemboca na questão sobre a função dasestruturas e embate assim no problema da redução dacomplexidade. A função do direito deveria, deste modo,conceber-se como redução vinculante e sancionada dacomplexidade social, no domínio das expectativascomportamentais inter-humanas.

__________________38 Cf. a este respeito, mais recentemente, Hans Welzel, An den

Grenzen des Rechts. Die Frage der Rechtsgeltung, Colónia-Opladen,1966, p. 26 ss.

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Enquanto o Iluminismo da razão tentara ainda umavez fundamentar o direito como direito natural – emborasó na forma subjectiva de um direito racional – incumbeà ilustração sociológica proporcionar uma teoria do direitopositivo. O direito positivo já não se pode conceber, durantemais tempo, apenas como grau ínfimo remanescente de umahierarquia de fontes e matérias jurídicas, depois de asuperstrutura praticamente ter colapsado. A positivação tornaa vigência do direito, em princípio, dependente de decisões.Isso significa duas coisas: por um lado, o direito concebe-se assim como produzido e modificado. A validade jurídicajá não depende do facto de as normas se poderem concebersempre já válidas e dotadas de validade eterna. Obtém-seuma nova dimensão da complexidade, a variabilidadetemporal, e isto alarga até ao incomensurável o domínioda regulamentação possível do comportamento. Por outrolado, a validade jurídica depende agora de um processometodicamente realizado, socialmente controlável, de de-cisão. A redução das possibilidades ao sentido vigente jánão se pressupõe como componente da natureza, organiza-se e, em seguida, leva-se explicitamente a cabo.

A positivação do direito é, por conseguinte, uma com-ponente essencial do processo civilizacional universal doIluminismo, a saber, uma redisposição principial do direitoem complexidade intensificada, em apreensão muito mais ricae em redução muito mais eficaz da complexidade social. Sobque pressupostos sociais semelhante redisposição será possívele como, não obstante os seus perigos manifestos, ela se poderáestabilizar numa ordem social complexa, fortemente diferen-ciada – são questões que, em última análise, só podem receberuma resposta a partir de uma teoria sociológica39.

__________________39 Cf., com mais pormenores a este propósito, Niklas Luhmann,

“Gesellschaftliche und Politische Bedingungen des Rechtsstaats”, inStudien über Recht und Verwaltung, Colónia-Berlim-Bona-Munique,1967, p. 81-102.

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5. Ciências da decisão

Paralela e complementarmente aos esforços de trans-formar a psicologia e a sociologia em teorias de sistemascomplexos, depara-se, desde o século XIX, com um se-gundo movimento de ideias de categoria secular, o interesseglobal pela decisão, estendendo-se a todas as ciências daacção e penetrando inclusive na política, na poética, nareligião e na filosofia, na matemática e na teoria dasmáquinas. A multiplicidade irisada deste interesse, que vaidesde a fruição estética do instante e da dança extática dasforças irracionais, passando por um decisionismo politica-mente temperado, até às teorias estatístico-matemáticas daelaboração da informação, precisa de ser aqui somentealudida. Comum a este interesse é apenas uma coisa: osentido atento ao desafio do homem pelo mundo. Brotadaí uma necessidade, cada vez mais consciente pelosprocessos da redução da complexidade – sejam eles vio-lentos, ou racionalmente engenhosos.

Se entendermos a ilustração no sentido amplo aquidefendido, então o processo consciente de decisão é umacomponente essencial em todas as suas formações. Acomplexidade intensificada da concepção do mundo exigemecanismos de redução mais eficazes, ou seja, mormenteconscientes dos problemas. No domínio restrito da inves-tigação científica levanta-se, em seguida, a questão sobrea relação entre teorias sistémicas e teorias da decisão,sobretudo de acordo com a relação da sociologia com osmodelos e as estratégias decisionistas das ciências eco-nómicas e das ciências jurídicas. Sem dúvida, não se podepensar numa amálgama integradora de teorias sistémicase de teorias da decisão. Impõe-se antes o inverso, amanutenção e o alargamento40 dos diferentes marcos de

__________________40 Sobre isto também Niklas Luhmann, Grundrechte als Institution.

Ein Beitrag zur politischen Soziologie, Berlim, 1965, sobretudo 201 ss.

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referência dos conceitos fundamentais e a diversidade deestilo na argumentação dos dois tipos de teoria, mas demodo que esta diferenciação possibilite um trabalho comumde ilustração e intensifique a comum realização.

As teorias sistémicas poderiam encontrar o seu centrode gravidade na análise de sistemas empíricos maiscomplexos ou de tipos sistémicos, no tocante aos seusproblemas físicos, às realizações funcionais e funcional-mente equivalentes, que poderiam evoluir para a soluçãodesses problemas, às consequências disfuncionais de taisrealizações relativamente a outras necessidades sistémicasque, em seguida, constituem problemas sistémicos secun-dários, os quais, por seu lado, exigem realizações fun-cionais, etc. – em suma: teriam de clarificar uma estruturacomplexa de problemas entre si condicionalmente ligadose de possibilidades da sua solução; tal estrutura remontaa problemas sistémicos permanentes e, em última análise,à complexidade do mundo, portanto, nunca se podedesvanecer – a não ser mediante a renúncia ao sistema.

Para as teorias da decisão é característico um outroconceito de problema, a saber, o conceito do problemacomo tarefa da elaboração de informação, para a qual hásoluções correctas, as quais, quando encontradas, elimi-nam o problema. A problemática do problema é aqui járeduzida, reside somente no desconhecimento da soluçãocorrecta41. Para ir das teorias sistémicas às teorias da decisão

__________________41 Olhadas com algum rigor, as teorias de decisão não conhecem,

pois, em geral nenhum conceito próprio de problema. Tornar-se-iamem si mesmas contraditórias se, ao mesmo tempo, quisessem formularo problema não resolvido e a resolução do problema. Ver, a este respeito,também E. A. Singer, Experience and Reflection, Filadélfia, 1959, eMaynard W. Shelly / Glenn L. Bryan, “Judgments and the Languageof Decisions”, in IDEM (Org.), Human Judgments and Optimality,Nova Iorque-Londres-Sidney, 1964, p. 3-36 (23 s.). Mas não se deveignorar que, além de cálculos decisionistas construídos, quer real quer

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é necessário, portanto, modificar a linguagem do proble-ma, traduzir umas para as outras. Se a teoria sistémicaclarificou suficientemente um problema individual, ele deveser reformulado mediante um programa de decisão emproblema decidível, para o qual, em seguida, graças àsregras disponíveis da elaboração de informação, se poderáencontrar a solução correcta. Diferentemente das teoriassistémicas, as teorias da decisão pressupõem fins, normasou, de algum modo, já a complexidade reduzida.

É evidente que as teorias sistémicas e as teorias dadecisão se poderiam temperar, deste modo, umas às outras.Dificilmente se depara ainda com sinais de uma coope-ração incipiente destas disciplinas42. Se a ilustração houverde se tornar programa, também aqui é necessário prestarmaior atenção ao problema da capacidade de contactointerdisciplinar.

__________________presumidamente, com rigor lógico, se desenvolvem, com êxito cres-cente, teorias decisionistas behavioristas; estas investigam a decisãocomo um comportamento humano concreto que precisa de tempo, nasolução de problemas. Ver, a propósito, Herbert A. Simon, The NewScience of Management Decision, Nova Iorque, 1960. Estas teorias,porque partem de diferenças temporais, podem construir o conceitode um problema resolúvel, mas ainda não resolvido.

42 A distinção em si pertinente entre sociologia do mercado elógica da decisão, com que Hans Albert, “Marktsoziologie undEntscheidungslogik. Objektbereich und Problemstellung dertheoretischen Nationalökonomie”, Zeitschrift für die gesamteStaatswissenschaft 114 (1958), p. 269-296; cf. também IDEM,“Nationalökonomie als Soziologie. Zur sozialwissenschaftlichenIntegrationsproblematik”, Kyklos 13 (1960), p. 1-43, tenta clarificara discussão dos métodos e do objecto das ciências económicas, estáconcebida mais em vista da separação do que do consórcio. Pelo menosse a sociologia não se entender, como em Albert, de um modo puramenteempírico-causal, mas sistémico-teórico, ela pode incitar a substituiro cisma intransponível entre ciências da acção empírico-explicativase normativo-racionais pela divisão baseada mais fortemente na co-operação entre teorias sistémicas e teorias da decisão.

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6. História

Ao lidarmos com os problemas da racionalidade, dodireito e da decisão correcta, detinhamo-nos ainda emobjectos, que estavam associados ao Iluminismo da razãoe por ele foram cultivados; chegamos agora, porém, a umtema que, na história do pensamento ocidental, se deveriaimpor contra o racionalismo da ilustração racional. Emrelação ao problema da história é, porventura, muito urgenteuma clarificação do Iluminismo, e para isso exige-se umaelucidação da relação entre a racionalidade e história.

A época, à qual devemos o conceito e o programada ilustração, libertou-se conscientemente da história43. Quisabandoná-la ao passado, considerá-la como encerrada. Narecusa expressa da história e na pretensão de um novocomeço, mas também nos restantes pressupostos dopensamento e da aspiração do Iluminismo, anuncia-se umracionalismo sem história: liberdade significa libertaçãodos grilhões do passado, dos espaços e dos caminhosestreitos e das suas particularidades inumeráveis, irraci-onalmente embaraçosas. Igualdade significa nivelamentodas diferenças, as quais se fundam “somente” de um modohistórico, e não na natureza e na razão. Na sua hostilidadeà história, e só assim, convergem a liberdade e a igual-dade. Contribui, ademais, para isso o facto de a orientaçãose fixar sobretudo nas acções, e não em sistemas de acção.O rasgo pragmático de um pensamento, que concebe oseu objecto no representar e no produzir e reconhece os

__________________43 Que esta hostilidade à história com a sua posição frontal era

também uma hostilidade pedagógica frente ao saber tradicional, foirealçado por Gerhart Schmidt, Aufklärung und Metaphysik. DieNeubegründung dês Wissens durch Descartes, Tubinga, 1965, p. 11ss. Sem dúvida, esta ideia de formação teve, por isso, de ser tambémreformulada, após o fim do Iluminismo da razão.

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sistemas apenas como regulativos, não como instituições,aponta para o futuro, ao passo que um pensamentosistémico não pode ignorar que a construção de sistemasexige tempo e que nas estruturas sistémicas a história estápresente e é sempre activada como fundamento da acção.Com isso está, antes de mais, conexa, em virtude de umaregra geral, a redução da complexidade, também a pre-missa da razão humana igualmente repartida: quem rejeitaa tradição deve criar consenso, quem não legitima as suassimplificações na dimensão temporal deve legitimá-las nadimensão social. Para poder rejeitar a história, o Iluminismoteve de postular uma metafísica racionalintersubjectivamente válida e de deslocar para ela oproblema da complexidade.

Mas este não se detém aí, e menos ainda, se domina.Na história do pensamento que se segue à época das Luzes,podem detectar-se, nas concepções em torno dos funda-mentos, tendências de uma transição da metafísica daconsciência para uma metafísica da história. Elas atingemum primeiro pico na tentativa de Hegel de expor a históriacomo história do Espírito que a si se torna autoconsciente.O intento de uma síntese da consciência e da históriadeixou, todavia, na sombra o eixo daquela viragem, oproblema latente da complexidade social. Nas variaçõesda tentativa de Edmund Husserl de fundar novamente afilosofia como fenomenologia transcendental, assoma jáde modo mais nítido aquela fonte da problemática. A partirdos fundamentos de uma “egologia” transcendental nãoera possível resolver o problema da intersubjectividadeda constituição do mundo e do sentido – embora o próprioHusserl tenha renunciado a esta ideia44. Em seu lugarinsinua-se cada vez mais, na obra tardia do filósofo, como

__________________44 Cf. as referências bibliográficas indicadas acima na nota 16.

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garantia da certeza a história ocidental: a facticidade dodespertar comum da humanidade para a investigaçãoteorética45. Mas também aqui permanece em aberto aquestão seguinte: como satisfazer a pretensão de ver nahistória puramente fáctica o fundamento da meta dofilosofar racional? Acima de tudo, como é que a históriapoderá fundamentar a intersubjectividade da vivência domundo?

No horizonte disciplinar mais restrito da sociologiaesboçam-se possibilidades mais claras de abordar a his-tória como componente da teoria, porque aqui o problemageral da intersubjectividade, enquanto teoria do sistemasocial, recebe uma formulação de maior pregnância. Semdúvida, o funcionalismo moderno surgiu, antes de mais,com um afecto claramente anti-histórico, anti-evolucionistae optou por uma orientação estrutural. As tendências critico-sociais e também as empiristas de muitos padrões soci-ológicos da investigação reforçaram o pensamentoanistórico. Por isso, a sociologia avulta sobretudo comouma ciência que pensa de modo não histórico e, até, inimigoda tradição46. Seria, todavia, precipitado conceber a soci-

__________________45 Ver a propósito também Hermann Lübbe, “Husserl und die

europäische Krise”, Kant-Studien 49 (1957-58), p. 225-237; HubertHohl, Lebenswelt und Geschichte. Grundzüge der Spätphilosophie E.Husserls, Friburgo-Munique, 1962; Hans Blumenberg, “Lebensweltund Technisierung unter Aspekten der Phänomenologie”, Sguardi sula Filosofia Contemporanea, fasc. 21, Turim, 1963.

46 Edward Shils, “The Calling of Sociology”, in Talcott Parsons/ Edward Shils / Kaspar D. Naegele / Jesse R. Pitte (Org.), Theoriesof Society. Foundations of Modern Sociological Theory, Glencoe, Ill.,1961, Vol. II, p. 1405-1448 (1424 ss.), delineia este estado de coisas,não sem um melancólico olhar de lado para o fiasco justamente dasociologia alemã. Um novo volume colectivo, Werner J. Cahnman/ Alvin Boskoff (Org.), Sociology and History. Theory and Research,Nova Iorque, 1964, confirma apenas que a orientação predominantenão consegue ver na história.

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ologia, em relação a esta orientação anistórica, como acontinuação das tendências iluministas, portanto, ver nonegativo o elemento comum. Pelo contrário, a ilustraçãosociológica vai mais além do Iluminismo da razão, jus-tamente em virtude de um princípio teórico que consegueentranhar a história.

Já Émile Durkheim e a etnologia francesa, delederivada, tentaram conhecer o homem e o seu mundo sociala partir dos processos históricos e elementares, queedificaram o que actualmente existe47. Também na soci-ologia funcionalista da organização há bons exemplos daabordagem da história sistémica no sentido de que ossistemas se concretizam mediante o pequeno trabalho dosproblemas consecutivos da sua estrutura e obtêm assimuma complexidade e uma capacidade vital, que só difi-cilmente se deixa, de novo, dissolver e, em geral, subs-tituir por outras soluções48. Mas, hoje, no plano globalda teoria da sociedade, faz-se sobretudo notar areviviscência de uma teoria evolutiva, que, no sentidohistórico ou causal, não adopta nenhuns desenvolvimen-tos, mas trabalha com a noção de soluções vantajosas dos

__________________47 «C’est seulement par l’analyse historique qu’on peut se

rendre compte de quoi l’homme est formè; car c’est seulement aucours de l’histoire qu’il s’est formè», observa Émile Durkheim,“Le dualisme de la nature humaine et ses conditions sociales”,Scientia 15 (1914), p. 206-221 (206). Cf., além disso, Robert N.Bellah, “Durkheim and History”, American Sociological Review 24(1959), p. 447-461.

48 Muito típico para este modo de consideração Philip Selznick,TVA and the Grass Roots, Berkeley-Los Angeles, 1949; IDEM,Leadership in Admnistration. A Sociological Interpretation, Evanston,Ill.- White Plains, N. I., 1957. Cf. ainda Michel Crozier, Le phénomènebureaucratique, Paris, 1963, e Samuel P. Huntington, “PoliticalDevelopment and Political Decay”, World Politics 17 (1965), p. 386-430.

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problemas, as quais, uma vez estabilizadas, aliviam e faci-litam tanto a existência humana que, dificilmente, sofrerãode novo um retrocesso49. A evolução explica assim que, ecomo, o inverosímil no decurso da história se torna provável.

Quando a teoria do sistema social se refere funci-onalmente ao problema, que a precede, da complexidadesocial, é possível clarificar também porque é que, e emque sentido, os sistemas não podem abandonar a sua históriaao passado. Como se afirmou, os sistemas têm a funçãode captar e reduzir a complexidade do mundo. Para issodevem eles próprios tornar-se complexos. A construçãode sistemas complexos exige tempo e torna-se assimhistória, que está pressuposta nas estruturas sistémicas, semque de cada vez se tenham novamente de realizar. Asformações estruturais alcançadas – a construção de hie-rarquias estatutárias, a separação entre a confiança políticae as relações de parentesco, a diferenciação funcional dossistemas sociais, a estabilização das finanças e do direitopositivo, o dom do amor como base do matrimónio oua institucionalização da alternância do poder – tudo istosão aquisições civilizacionais que se podem separar dosprocessos sociais elementares, que foram necessários paraa sua introdução, e que se podem estabilizar pelas suasvantagens50. É possível caracterizar ainda mais esta evo-lução com conceitos como crescente diferenciação, gene-

__________________49 Cf. Talcott Parsons, “Evolutionary Universals in Society”,

American Sociological Review 29 (1964), p. 339-357, e Idem: Societies.Evolutionary and Comparative Perspectives, Englewood Cliffs, N. J.,1966. Ver, ademais, S. N. Eisenstadt, The Political Systems of Empires,Londres 1963, e sobre a tendência em geral Kenneth E. Bock,“Evolution, Function, and Change”, American Sociological Review 28(1963), p. 229-237.

50 Cf. a propósito Arnold Gehlen, Urmensch und Spätkultur.Philosophische Ergebnisse und Aussagen, Bona, 1956, e especialmen-te acerca dos estados de coisas aqui designados como aquisiçãocivilizacional Parsons, op. cit. (na nota 49).

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ralização, especificação e aumento da reflexividade dosmecanismos sociais.

A consequência é que numerosos sistemas sociais,sobretudo o sistema social da sociedade, adquirem uma elevadacomplexidade própria, que já não pode ser justificada a partirde um lado, para não dizer, ser adoptada e elaborada sig-nificativamente por uma acção ou um plano de acções. Todaa acção, que se orienta para a captagem e a redução dacomplexidade nos sistemas, é “programada” pela históriasistémica. A programação pela história não faculta apenasum conjunto complexo de informações rememoradas e deregras de conduta comprovadas, também não apenas um sabermas, além disso, o fechamento muito mais importante dohorizonte das possibilidades, a certeza “de que nada maishá” e de que, por isso, a sua acção se pode escolher semhesitação a partir de um repertório limitado de possibilidades.

A função da história brota, pois, não de uma pre-ferência axiológica da tradição, de uma especial forçavinculatória do passado, mas simplesmente do facto deque o potencial da acção simples para a complexidadeé escassíssimo e a acção não pode, por isso, renunciaraos sedimentos de sentido do passado51. Não se trata deum empenhamento no ser ou nos valores, mas de barreirasimanentes de realização, que tais vinculações pressupõem.O mundo pode ter surgido absolutamente contingente. Tudo,em seguida, se pode modificar – mas não tudo de umasó vez. Estas considerações possibilitam aproximar-nos dofundamento da viragem desde a subjectividade da razãopara a facticidade da história. A história comum,entrosamento activo das biografias do sistema, reduz maiscomplexidade do que a razão comum. Quanto mais

__________________51 Cf. os argumentos sobre a necessidade de elaborar novas

verdades em verdades antigas, em William James, Pragmatism, NovaIorque, Meridian Books, 1959, p. 50 ss.

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complexos se tornam os sistemas sociais, tanto maisfortemente aumenta neles a necessidade da estrutura e,assim, a dependência de realizações passadas; tanto maisfortemente cresce, porém, a partir do mesmo fundamentoa necessidade de técnicas racionais da redução de com-plexidade. A aceitação da história no sentido de umainserção no já disponivelmente presente e a planificaçãoracional são funcionalmente equivalentes, formas recipro-camente referidas da redução de complexidade52.

Não se pode, pois, manter a atitude hostil à históriado Iluminismo da razão, que pretendia remontar à origeme, em seguida, reconstruir tudo a partir da razão. Era ex-pressão de uma transição inconsiderada da complexidade domundo, desconhecimento das barreiras inerentes a toda ailustração, que não só deve apreender, mas também reduzira complexidade. Por outro lado, uma aclaração regressiva,uma reproblematização do passado e justamente uma repe-tição da história inteira, já ocorrida, das realizações subjec-tivas mediante uma reexecução descobridora das origens, comoHusserl tinha em mente53, não é obra da sociologia. O queinteressa aos sociólogos não é o passado enquanto tal, masaquilo que, enquanto história, é presente efectivo e pressuposto

__________________52 Esta ideia poderia ser, entre outras coisas, um ensejo para

examinar a contraposição esquemática entre sociedades tradicionaise modernas, que domina na sociologia e determina, em especial, ojuízo sobre a situação dos países em desenvolvimento. Ver, maisrecentemente, Marion J. Levy, Jr., Modernization and the Structureof Societies. A Setting for International Affairs, 2 vols., Princeton,N. J., 1965, e a crítica justificada de Lucian W. Pye, Politics, Personality,and Nation-Building. Burma’s Search for Identity, New Haven-Lon-dres, 1962, p. 37 s. ou de Reinhard Bendix, Nation-Building andCitizenship. Studies in our Changing Social Order, Nova Iorque-Londres-Sidney, 1964, p. 4 ss.

53 Cf. Edmund Husserl, Erfahrung und Urteil, Hamburgo, 1948,e com maior minúcia em “Krisis…”, op. cit.

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do futuro. A história, para a sociologia, não é nem um domínioda investigação objectiva de factos nem um campo deorientação para a hermenêutica, mas a exposição de pro-blemas e estruturas, portanto, alívio da complexidade.

Esta relação de alívio deve, sem dúvida, tornar-seconsciente no decurso da ilustração progressiva. A históriaapresenta-se, em seguida, de modo funcional e, portanto,revogável. As evidências, as certezas com funções latentestransformam-se assim em soluções de problemas, rece-bidas com o sistema, e cujas interdependências funcionaisse podem, em princípio, perscrutar. Uma transparênciafuncional dos sistemas também nas sedimentações dosentido, que se utilizam respectivamente como estruturae não como problema, é uma componente essencial deum programa de clarificação sociológica. Só deste modose pode aspirar a um progresso, que faz justiça à plenacomplexidade de um sistema em virtude de ele substituirestados dados em todas as suas funções.

A reverência, que o sociólogo deve mostrar para coma história, isto é, para com a complexidade já reduzida,pode, por conseguinte, expressar-se numa única fórmulapara a práxis: nada modificar, a não ser que, para o estadoalterado, todas as suas funções possam ser permutadas.Concepções deste tipo iniciam-se na teoria da mudançade cunho sociológico organizacional54. Também a investi-

__________________54 Uma formulação expressa encontra-se, por exemplo, em Crozier,

op. cit. p. 387. Também a exigência, disseminada na teoria dos grupos,de um modo de consideração “totalizante” nas mudanças equivale areconhecer que a plena complexidade do sistema se deve abordar emcada alteração. Como exemplo oriundo do campo da teoria da decisãover, em especial, a estratégia de Lindblom do “disjointed incrementalism”exposta de modo pormenorizado sobretudo in David Braybrooke / CharlesE. Lindblom,”A Strategy of Decision. Policy Evaluation as a SocialProcess, Nova Iorque-Londres 1963, que, por causa da complexidadeimensa da ordem social, incide no status quo e considera simplesmentecomo possível melhorá-lo em aspectos singulares.

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gação etnológica, ao explicar assim efeitos inesperados deinovações tecnológicas em sociedades simples, se aproximada noção de que funções latentes da ordem existente forampassadas por alto e permanecem, em seguida, não reali-zadas, após a introdução da inovação55. Só quando seconsegue captar plenamente a funcionalidade manifesta ea funcionalidade latente de situações concretas em sistemasdeterminados se pode compreender de que história – e, assim,também de que visão histórica – um sistema precisa paraa redução da sua própria complexidade; e só então seme-lhante apreensão possibilita um juízo sobre se, e em queaspectos, orientações tradicionais podem ser substituídas portécnicas racionais de decisão.

V - Sociologia da sociologia

Como epígona entre as ciências, a sociologia tevesempre o ensejo para a auto-reflexão – também nisto afimao Iluminismo, que, na autoconsciência reflexiva, julgouter o seu motor e o seu controlo da direcção. E, no entanto,ainda não se chegou a uma sociologia da sociologia.Princípios para o auto-exame expressaram-se em inves-tigações critico-metódicas e gnoseológicas e, recentemen-te, de acordo com a autocompreensão da sociologiaenquanto ciência empírica, parecem tomar a forma deinvestigações empíricas sobre o papel do sociólogo, ascondições sociais e organizacionais da sua investigação,ensino e aconselhamento. Tais esforços têm a sua legi-timidade positiva. Mas de nenhum modo se alcançou aanexação do problema da complexidade social, cujassoluções constituem o objecto da teoria sociológica.

__________________55 Veja-se como exemplo típico Lauriston Sharp, “Steel Axes

for Stone Age Australians” in Edward H. Spicer (Org.), HumanProblems in Technological Change, Nova Iorque, 1952, p. 69-90.

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Uma sociologia, que declarasse este problema comosua teoria, encontraria ao mesmo tempo nesta teoria novospontos da partida da sua autocompreensão e fundamentospara uma sociologia da sociologia. Aqui, como outras tantasvezes, há uma renúncia ao lugar correcto da inferênciapara a obtenção de novas intuições. Uma sociologia dasociologia não pode servir para facultar à investigaçãosociológica verdades deduzíveis e fundamentadas atravésda garantia das condições de verdade. Tal seria apenasuma repetição da tentativa antiga de, pela redução doscampos de investigação a uns quantos conceitos funda-mentais e axiomas simples, bloquear o problema dacomplexidade, em vez de o levantar. Se, pelo contrário,a sociologia se conceber como ciência de orientaçãofuncional, uma aplicação desta ciência a si mesma só podesignificar, por seu turno, análises funcionais, isto é, análiseda sociologia como de um sistema particular que apreendee reduz a complexidade.

A complexidade social, juntamente com os esforçosda sua apreensão e redução, é um estado de coisas quea sociologia encontra no mundo e investiga. Se ela sededicar a si mesma e à sua função própria a este problema,ajustar-se-á então ao seu domínio objectivo e compreen-der-se-á a si mesma como um sistema social entre outros.Por outro lado, aos seus objectos não é nem peculiar estaconsciência problemática, nem imanente, sem mais, umatendência iluminista da intensificação do seu potencial paraa apreensão e a redução de complexidade. Aautoclarificação não é conferida aos sistemas do mundopela natureza nem é uma lei da necessária evoluçãohistórica. Quando a sociologia investiga os sistemas sociais,e entre eles a si mesma, com estes conceitos funcionais,posta-se assim a si mesma sob o postulado da ilustração.Todas as evidências são problematizadas graças a esta

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extrema referência problemática, todas as soluções deproblemas entram em concorrência com outras possibi-lidades, funcionalmente equivalentes. A sociologia con-cebe, deste modo, os sistemas sociais em vista da suapossibilidade de intensificar o seu potencial para a apre-ensão e a redução de complexidade. Na medida em queela se constrói a si mesma, amplia a consciência dailustração. E o seu contributo específico para a captageme a redução da complexidade social pode justamente ver-se no facto de ela facultar este processo com reflexividadecrítica.

Por fim, a aclaração da ilustração equivale, pois, aum tornar-se-reflexo do ilustrar. Na sociologia, a ilustra-ção pode clarificar-se a si mesma e, em seguida, orga-nizar-se como trabalho. O avanço desde o Iluminismo darazão para a ilustração sociológica, passando pela ilus-tração desmascaradora, é um progresso na consciênciaproblemática e na distância do Iluminismo a si mesmo.A partir daquilo que, outrora, eram as suas premissas, apartir dos pressupostos sobre a posse comum da razãoe os fins previsíveis da humanidade, a ilustração retiraas suas barreiras imanentes. Encontra assim, na tensão entreo projecto de mundo e a vivência actual, a sua lei interna:a saber, que a complexidade do mundo só é apreensívelquando também se pode reduzir. Só esta lei lhe propor-ciona a possibilidade de reconhecer as condições e asoportunidades de uma ilustração efectiva.

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Sociologia como teoria dos sistemas sociais

Niklas Luhmann

Como ramo do ensino e da investigação, a sociologiatem de se poder fundar. Como disciplina científica nãotem ainda, em grande parte, o carácter de disciplina. Certas“tendências” podem sobressair em análises duplas daspublicações existentes. Mas falta uma concepção teóricaglobal e conjunta, que reflicta a unidade da especialidade.Até pretensões que vão neste sentido são anunciadas apenaspor alguns investigadores e só a custo – e, em seguida,fica-se quase sempre pelo anúncio. A teoria sistémica, queafirma que a sociologia é a ciência dos sistemas sociais– isto e nada mais –, começou simplesmente a elaborara sua concepção e ganhou assim uma forma susceptívelde crítica. Atraiu igualmente sobre si a crítica, uma críticamuito justificada, que põe em causa a sua pretensão deuniversalidade. Esta crítica à concepção corrente, sobre-tudo a crítica à obra de Talcott Parsons, pode prolongar-se, repetir-se e edificar-se, mas não leva à teoria, antesdela afasta. Pode, todavia, reter-se a pretensão à teoriauniversal – como nós aqui fazemos –, se encontrarmoso ponto em que a teoria sistémica até agora fracassa nasua pretensão.

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Para prevenir mal-entendidos, mencione-se ainda outropreliminar: a pretensão à universalidade da teoria significaapenas que a teoria da unidade da disciplina se procurajustificar; apresenta, portanto, a sugestão de um princípiounitário de investigação para a sociologia total. Não existeaqui a pretensão muito diversa à exclusividade, à correcçãoúnica, à verdade absoluta. Pode, pois, tratar-se somente deuma tentativa de construção, que pode também ter êxitoem virtude de ajudar os empreendimentos concorrentes comuma pretensão comparável em vista de uma conceptualizaçãomais consciente. A capacidade crítica é, e permanece, oelemento essencial da teoria científica. Sem dúvida, aaspiração à validade universal da disciplina estabeleceigualmente a medida para a crítica. A teoria sistémica –e tal foi muitas vezes ignorado pela crítica a Parsons nasua pretensão de ter resolvido este problema – será criticada,e ela obrigará os críticos a declarar se ele renunciou à unidadeda disciplina ou sabe sugerir alternativas.

I. Da teoria sistémica estrutural-funcionalà funcional-estrutural

A teoria dos sistemas sociais, constituída por muitoscontributos singulares e representada eminentemente porParsons, é uma teoria estrutural-funcional1. Ou seja, ela

__________________1 Alguns passos titubeantes já, decerto, se deram, mas sem que

se saiba ao certo aonde levam. O próprio Parsons considerou, desde oinício, a teoria estrutural-funcional apenas como um expediente provisórioe, sobretudo após a inserção de perspectivas evolucionistas na sua teoriasistémica, expressa-se com crescente distanciamento em relação a estaconcepção teórica. Cfr., por exemplo, Talcott Parsons, “Introduction”, inMax Weber, The Theory of Social and Economic Organization, Londres,Edimburgo e Glasgow, 1947, p. 20 s., e IDEM, “Die jüngstenEntwicklungen in der strukturell-funktionalen Theorie”, in Kölner Zeitschriftfür Soziologie und Sozialpsychologie, 16 (1964), p. 30-49.

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pré-ordena o conceito de estrutura ao conceito de função.Pressupõe sistemas sociais com determinadas estruturase busca, em seguida, as realizações funcionais que devemser produzidas para que os sistemas se mantenham. Oconceito de função restringe-se, aqui, sobretudo, às ope-rações internas e, de preferência, aos contributos dossubsistemas; torna-se assim uma categoria intrínseca aosistema, que concerne à relação entre as “partes” e o “todo”.

Por causa deste primado do conceito de estrutura,certos momentos de sentido subtraem-se àproblematização2. Eis o ponto onde a crítica começou ese fixou. Pergunta ela: como se pode delimitar o que sepressupõe respectivamente como estrutura? Não se abor-dará, com este pressuposto, a “constituição” dos sistemassociais como injustamente imutável? Não servirá esta teoria,às escondidas, para a justificação do status quo? Serápossível ver toda a realidade social como já sempre integral,estruturalmente integrada, portanto, como harmónica nosrasgos fundamentais3?

Estas objecções têm uma certa razão, mas restaclarificar que razão. A teoria sistémica faz com elas umjogo fácil, talvez demasiado fácil. Poder-se-ia demonstrar

__________________2 Em contrapartida, é uma questão de segundo plano se aquilo

que se tem por estrutura e não se problematiza se vai buscar à realidadeempírica ou se “deduz” da teoria da acção; se se trata, pois, de sistemasconcretos ou analíticos. Não é possível uma fundamentação rigoro-samente dedutiva da teoria sistémica a partir da teoria da acção (ne-cessariamente mais simples). Semelhante derivação refere-se, pois, aosprocedimentos logicamente não controláveis da concretização, da in-terpretação de constelações conceptuais, da denominação, etc. e constituiassim, mediante uma dedução aparente, estruturas analíticas como oesquema AGIL, que como tal se pode ter por certo.

3 Ver as conhecidas formulações de Ralf Dahrendorf, sobretudoin Gesellschaft und Freiheit. Zur soziologischen Analyse der Gegenwart,Munique, 1961.

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que também nos sistemas há lugar para a mudança e parao conflito. Poder-se-ia até desenvolver uma técnica davariação das referências sistémicas e, de acordo com anecessidade e o intento de tematização, refugiar-se emconcepções estruturais de um grau de abstracção quedificilmente ainda exclui algo. Também se mostrou quea crítica, neste plano da discussão, não podia conquistarposições contrárias convincentes. Não leva a re-cunharnuma contra-teoria as conhecidas lacunas ouunilateralidades da teoria sistémica de modo a substituira integração pelo conflito, a ordem pela mudança. Deixa-se assim cair a pretensão de universalidade e obtém-sedo adversário aquilo a cujo respeito tanto se escandalizara:a unilateralidade. A crítica da teoria estrutural-funcionaldeveria, portanto, tentar começar pelas carências e pelarazão destas carências. Só deste modo é possível reter diantedos olhos o fito de uma teoria sociológica unitária emelhorar os meios para a obtenção de tal objectivo.

A razão das carências da teoria sistémica estrutural-funcional reside no seu próprio princípio, a saber, ela pré-ordena o conceito de estrutura ao conceito de função. Ateoria estrutural-funcional priva-se assim da possibilidadede problematizar estruturas e de indagar em geral o sentidoda formação estrutural, de acordo com o sentido daformação sistémica. Semelhante possibilidade surge, to-davia, quando se inverte a relação destes conceitos fun-damentais, portanto, se pré-ordena o conceito de funçãoao conceito de estrutura. Uma teoria funcional-estruturalpode indagar a função das estruturas sistémicas, sem terentão de pressupor uma estrutura sistémica englobantecomo ponto de referência da questão. Poderia, por exem-plo, abordar como problema a função da diferenciaçãosistémica ou da ordem hierárquica em sistemas, e aindaa função de determinadas estruturas da interpretação do

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mundo, por exemplo, do tempo objectivado, da identida-de, da causalidade ou da igualdade. Tal como nas con-troversas passadas entre teoria da integração e teoria doconflito ou entre teoria da ordem e teoria da mudança,também na reinterpretação da teoria estrutural-funcionalem teoria funcional-estrutural se trata da inversão de umaproposição existente. Mas a inversão reside noutro plano:ela não se refere à deficiência da teoria sistémica exis-tente, mas a uma premissa desta deficiência, e pode assimesperar alcançar não apenas um confronto, mas um pro-gresso.

II. Mundo como problema

Toda a análise funcional pressupõe um ponto dereferência, em relação ao qual se leva a cabo uma função.Para a teoria estrutural-funcional, esta unidade de refe-rência era o sistema estruturado, cuja manutenção se divisoucomo problema. Para que esta concepção possa ser ul-trapassada por uma teoria funcional-estrutural, esta deverábuscar outro ponto de referência, que já não impliquequaisquer pressupostos sistémico-estruturais. A questão é,então, em primeiro lugar, como é que este problema dareferência se pode definir e, em seguida, que ganho deconhecimento ele promete.

Por sistema social deve aqui entender-se uma cone-xão de sentido das acções sociais, que se referem umasàs outras e se podem delimitar de um meio ambiente deacções não pertinentes. Se partimos deste conceito desistema, que tem o seu princípio constitutivo numa di-ferenciação de dentro e fora4, e se tentarmos transcendê-

__________________4 A este respeito, com maior pormenor: Niklas Luhmann,

Funktionale Methode und Systemtheorie.

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la, busca-se então uma unidade de referência que já nãotem fronteiras. Pergunta-se pelo mundo. O mundo não podeapreender-se como sistema, porque não tem nenhum “fora”,frente ao qual ele se delimite5. Se quiséssemos pensar omundo como sistema, deveria de imediato econcomitantemente pensar-se um meio ambiente do mundo,e o conceito de mundo, que orienta o pensar, deslocar-se-ia para este meio ambiente. A peculiaridade do mundo dohomem de remeter para o infinito e, no entanto, de actuarcom doação de sentido e de um modo finito, tentou Husserlcaptá-la na imagem do “horizonte”. Contudo, esta metáforatão pertinente não foi de grande préstimo para a análisefuncional. Esta deve formular o problema, aí inscrito, paraem relação ao mesmo poder descobrir e comparar soluçõesdo problema funcionalmente equivalentes6.

__________________5 A separação entre conceito de mundo e conceito de sistema

não era possível enquanto se definisse o sistema à maneira clássicacomo um todo que consta de partes, logo, sem referência a um meioambiente. A este conceito de sistema correspondia um conceito demundo que pretendia conceber este último como a totalidade do ser.A radicalização da abordagem funcional pressupõe uma ruptura destaconceptualidade ontológica; tem de separar os conceitos de mundoe sistema para os inserir numa relação recíproca. (Uma posiçãoantagónica: Heinrich Rombach, Substanz, System, Struktur. DieOntologie dês Funktionalismus und der philosophische Hintergrundder modernen Wissenschaft, 2 vols., Friburgo/Brsg. e Munique 1965-1966). Os estudos preliminares neste rumo foram levados a cabo nafilosofia fenomenológica de Edmund Husserl, sobretudo graças àdistinção entre identidade significativa e intentável e horizonte de todaa vivência, que tornou possível definir o mundo como horizonteuniversal. Cf. a propósito Edmund Husserl, Erfahrung und Urteil.Untersuchungen zur Genealogie der Logik, Hamburg, 1948, p. 23 ss.,e com utilização do espólio Gerd Brand, Welt, Ich und Zeit. Nachunveröffentlichen Manuskripten Edmund Husserls, Haia, 1955, sobre-tudo p. 9 ss.

6 Acerca da concepção metodológica ver Niklas Luhmann,Funktion und Kausalität.

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Lá porque o mundo não tem ambiente algum, elenão pode estar ameaçado. Diferentemente do caso dos sis-temas, a sua existência não está em perigo e, por isso,também não é problemática. Na medida em que algo existe,também o mundo existe. Todo o perigo da existência sedeve pensar, pois, como possibilidade no mundo, toda aaniquilação da existência ocorre no mundo7. O mundotorna-se problema, não sob o ponto de vista do seu ser,mas sob o ponto de vista da sua complexidade.

Por complexidade deve aqui entender-se, numa pri-meira abordagem a este conceito difícil, a totalidade dosacontecimentos possíveis. Esta definição, como toda adefinição que utiliza o conceito de possibilidade, é in-completa; mas tal não é uma deficiência, antes umareferência ao problema que com este conceito se assinala.O conceito de possibilidade pressupõe que, além disso,se podem aduzir condições e limites da possibilidade.Semelhante especificação deve, todavia, referir-se a sis-temas cuja estrutura possibilita o possível enquanto de-terminado ou, pelo menos, determinável8. O conceito decomplexidade designa sempre uma relação entre sistemae mundo, nunca um estado do ser.

__________________7 Este resultado fenomenológico da certeza do mundo deixa

aparecer claramente que a metafísica ontológica poderia partir do sere indagar o ser do ente. Nesta questão, porém, havia ainda umainterpretação que hoje já não poderíamos aceitar sem exame, a saber,a interpretação do ser como exclusão do não-ser e, assim, como exclusãode outras possibilidades. Sobre esta interpretação do mundo como umaentre outras ver também: Magoroh Maruyama, “Metaorganization ofInformation, Information in Classificational Universe, Relation Universeand Relevantial Universe”, in General Systems, 11 (1966), p. 55-60.

8 Neste sentido, também a gnoseologia pressupõe a estruturade um sistema cognitivo, em que radicam as condições de possibi-lidade do conhecimento. Ela torna-se metafísica logo que enxerga ofundamento do ser do ente nas condições de possibilidade assimestipuladas e postula o sistema cognitivo como sujeito do ser.

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A complexidade do mundo depende dos sistemas nomundo; também se pode dizer: o que pode acontecerdepende das existências. Ao mesmo tempo os aconteci-mentos ameaçam as existências. Esta interdependência, apartir de um certo limiar da evolução, pode ser vantajosaao propor no sistema possibilidades como outras possi-bilidades da vivência e ao eliminá-las através de processosselectivos da auto-regulação. Mas os sistemas orgânicosque fazem isto sobrecarregam-se a si mesmos. Projectampara si um mundo de possibilidades que ultrapassa a suacapacidade de atenção concreta e de elaboração da in-formação, e guiam-se justamente por esta sobrecarga, porprocessos da redução da complexidade excessiva9. Pre-cisam para isso de sistemas de controlo de tipo particularque se baseiam numa ligação significativa de aconteci-mentos, numa forma de associação que remete para outraspossibilidades e lhes ordena o acesso. Sistemas de sentidodesta índole são, por exemplo, a linguagem e outrossistemas simbólicos culturais, as personalidades individu-ais que se podem obter através da auto-identificação eos sistemas sociais – sistemas da relação significativa entreas acções de diferentes homens.

Entre as carências da teoria estrutural-funcional,projectada com base na teoria da acção, conta-se o pres-suposto impensado do conceito de sentido. O sentido surge-

__________________9 Com Arnold Gehlen, Der Mensch. Seine Natur und seine

Stellung in der Welt, 6ª ed., Bona, 1958, poderia também dizer-se:por processos de “descarga”; todavia, haveria que acrescentar: dedescarga da complexidade do projecto próprio. Em geral, a teoria dossistemas sociais aqui esboçada coincide em pontos essenciais comuma sociologia antropológica, a qual faz da “abertura ao mundo” eda correspondente insegurança do homem o ponto de referência deanálises, em última análise, funcionais. Ver também Helmuth Plessner,Conditio Humana, Pfullingen, 1964.

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lhe como uma propriedade (embora subjectiva) das ac-ções. A referência ao mundo de todo o sentido permaneceencoberta10. Mas o sentido constitui-se apenas no hori-zonte do mundo como identidade com referência reali-zável a outras possibilidades. Sentido é selecção a partirde outras possibilidades; é portanto, ao mesmo tempo,referência a outras possibilidades. O donde da selecção,a complexidade reduzida, permanece preservado no sen-tido. O mundo, apesar da redução, persiste como domíniode outras possibilidades e não se encolhe no imediata-mente relevante. Só através da selecção mediada pelosentido podem os sistemas constituir para si um mundo

__________________10 Cf., a este respeito, a introdução e a utilização indefinidas

do conceito de sentido em Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft,4ª ed., Tubinga, 1956, p. 1 ss., que orienta a vertente teórica crucialpara as construções típico-ideais de sentido e para uma metodologiada compreensão. Parsons nunca esquadrinhou por detrás deste pontode partida, antes dele se afasta (cf. a propósito John Finley Scott,“The Changing Foundations of the Parsonian Action Scheme”, inAmerican Sociological Review, 28 (1963), p. 716-735). Inclusive, oconfronto expresso da sociologia compreensiva de Max Weber coma filosofia fenomenológica de Edmund Husserl através de Alfred Schütz,Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt. Eine Einleitung in dieverstehenden Soziologie, Viena, 1932, foi, nesse ponto decisivo, passadopor alto, presumivelmente porque ela ainda não podia ter de todopresente a obra tardia de Husserl, e Jürgen Habermas, Zur Logik derSozialwissenschaften. Beiheft 5 der Philosophischen Rundschau,Tubinga, 1967, sobretudo p. 79 ss., critica, com razão, na teoriaestrutural-funcional, a ausência do problema do sentido, embora elepróprio não explicite assaz o seu conceito de sentido; deve, pois,permanecer em aberto o grau de coincidência entre o seu conceitohermenêutico de sentido e o conceito selectivo de sentido aquirepresentado. 10ª A formulação “redução da complexidade do meioambiente” encontra-se em passagens fundamentais também em JeromeS. Bruner, J. Goodnow e George A. Austin, A Study of Thinking, NovaIorque e Londres, 1956, p. 12. Também aí ela serve, ao referir-sea sistemas psíquicos, como ponto de partida para o estudo de pro-cessos selectivos.

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e, nesta acepção, ser “sujeito”. Se problematizarmos omundo do modo aqui elucidado como extrema comple-xidade, então também se poderá dizer: o sentido servepara a apreensão e redução da complexidade do mundoe, só assim, serve para a orientação da vivência e da acção.

III. A apreensão e a redução da complexidade

Os sistemas sociais têm por função a apreensão ea redução da complexidade. Servem para a mediação11 entrea extrema complexidade do mundo e a capacidade muitomenor, dificilmente alterável por razões antropológicas,do homem para a elaboração consciente da vivência. Estafunção é, pois, levada a cabo, em primeiro lugar, mediantea estabilização de uma diferença entre o dentro e o fora.Os sistemas sociais constituem ao mesmo tempo, graçasao seu sentido, as suas fronteiras e possibilidades deimputação das acções12. Esta imputação não precisa deser exclusiva. Um funcionário que, em serviço, come oseu pão com manteiga age no sistema da administração

__________________11 Este conceito é aqui proposto, de modo consciente, como tema

de discussão, perante aqueles que, na tradição fundada por Hegel,usam um conceito de mediação que pressupõe uma relação “dialéctica”de sujeito e objecto. Depois da crítica de Husserl, dificilmente se podedefender ainda este tipo de contraposição entre sujeito e objecto. Nolugar do sujeito encontra-se agora o sistema, em vez do objecto omundo, em vez do problema da contradição o problema da comple-xidade (que encerra contradições) e, no lugar da dialéctica, aselectividade do comportamento. Naturalmente, não se afirma nenhu-ma igualdade de sentido destes conceitos entre si opostos, mas simque, para a elaboração de uma teoria sociológica, seria vantajososubstituir uns pelos outros.

12 A este respeito e de modo excelente: Erving Goffman,Encounters, Indianapolis, 1961, sobretudo p. 19 ss.

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estatal, quer ele aproveite uma pausa quer actue de modoilegítimo, e, além disso, no sistema da sua família. Podetambém distinguir estes diferentes sistemas. Não expres-sará, sem mais, na presença do seu superior ou dos seuscolegas, a sua irritação porque a mulher lhe deu nova-mente queijo e não salsicha, embora haja regras de trans-formação que permitem transferir o sentido de um sistemapara outro. Em grande medida, a imputação e a separaçãodas referências sistémicas podem e devem, de qualquermodo, levar-se a cabo na vida quotidiana; tal faz partedas exigências normais da vida social e não é apenas umarealização analítica da ciência13.

A diferença-entre-dentro-e-fora torna possível formare preservar constantemente ilhas de menor complexidadeno mundo. O sistema social “aprende” a distinguir-se doseu meio ambiente e, assim, a discriminar também a suacomplexidade peculiar em relação à complexidade domundo. Os sistemas são complexos, quando podem aco-lher mais de um estado, portanto, quando têm umapluralidade de possibilidades que se podem coadunar coma sua estrutura. Mas a complexidade do sistema excluimais possibilidades do que a do mundo; assenta, pois,numa ordem mais “elevada” (mais inverosímil).

A complexidade do mundo e a complexidade dosistema podem conceber-se na teoria como variáveis eencontram-se (porque a complexidade das formaçõessistémicas está já sempre pressuposta) entre si numa relaçãode correspondência. Para os sistemas físicos e orgânicos

__________________13 Assim reza, todavia, uma opinião muito difundida. Ver, por

exemplo, Hubert M. Blalock e Ann B. Blalock, “Toward a Clarificationof System Analysis in the Social Sciences”, in Philosophy of Science,26 (1959), p. 84-92 (85); Alfred Kuhn, The Study of Society. A UnifiedApproach, Homewood, Ill., 1963, p. 48 ss.; David Easton, A Frameworkfor Political Analysis, Englewood Cliffs, N. J., 1965, p. 65.

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(adaptativos) isto significa que a sua complexidade pró-pria deve bastar para possibilitar as reacções preservadorasdo sistema às alterações do meio ambiente, que afectamo sistema. O sistema deve poder aceitar estados bastantenumerosos para conseguir persistir e adaptar-se num meioambiente que se altera14.

Além disso, nos sistemas que utilizam o sentido, entreos quais estão os sistemas sociais, deve abordar-se avariabilidade do projecto do meio ambiente, ou seja, daquiloque para o sistema se pode captar como possibilidade.Neste caso, a lei da correspondência significa então queo mundo, o qual é apreendido significativamente nasestruturas do sistema através da referência, devecorresponder ao potencial selectivo do sistema. Um sis-tema social pode referir-se apenas a um mundo limitado,e a complexidade do seu mundo depende da sua com-plexidade própria, sobretudo do modo e do grau dediferenciação estrutural e da capacidade performativa dosprocessos selectivos15. Sociedades mais simples têm ummundo mais simples do que as sociedades diferenciadas.Tal é o ponto de vista sob o qual a teoria dos sistemassociais pode acolher e prolongar a temática da “sociologiado conhecimento”.

As vantagens de semelhante diferenciação entre odentro e o fora só se podem obter, garantir e intensificar,

__________________14 W. Ross Ashby, An Introduction to Cybernetics, Londres, 1956,

p. 206 ss., fala, a este respeito, da “requisite variety” de um sistema.15 De modo semelhante, postulam para os sistemas psíquicos

e sociais uma relação de correspondência entre complexidade internae externa: O. J. Harvey e Harold M. Schroder, “Aspects of Self andMotivation”, e Harold M. Schroder e O. J. Harvey, “ConceptualOrganization and Group Structure”, in O. J. Harvey (dir.), Motivationand Social Interaction. Cognitive Determinants, Nova Iorque, 1963,p. 93-133 e 134-166.

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quando se conseguem manter relativamente invariantes,frente ao meio ambiente, as fronteiras do sistema, de modoque as estruturas e os processos se possam ajustar a estasfronteiras. Isto pode ocorrer em sistemas sociais não pelaneutralização dos processos físico-causais e informacionais,mas somente através do seu controlo; portanto, não porautarcia, antes apenas pela autonomia. As fronteiras dossistemas sociais, por conseguinte, não se podem definircomo estados invariantes do substrato físico – à maneira,porventura, das paredes que limitam, ou segundo objectosfísicos enumeráveis, por exemplo homens, que lhe per-tencem ou não; só podem conceber-se como fronteiras desentido, como elementos de um complexo de informações,cuja actualização permite que se possam abordar infor-mações de acordo com determinadas regras internas aosistema16.

Os sistemas sociais relativamente autónomos podeminstitucionalizar regras próprias de apreensão e reduçãoda complexidade. Obtêm assim a possibilidade de estra-tégias produtivas de novo tipo, que se podem aplicar em

__________________16 No desenvolvimento desta concepção é possível distinguir,

pelo menos, quatro estádios:1. a teoria ontológica do sistema que definia os sistemas pelos

conceitos de todo e parte e não tinha nenhum conceito parao meio ambiente;

2. a teoria do equilíbrio, que postulava um ordenamento estável,interno, cuja legalidade definia os efeitos e influências doambiente como “perturbações” que podiam, ou não, sercompensadas no sistema (equilíbrio dinâmico e/ou estático);

3. A teoria dos sistemas “abertos”, nos quais a dependência causalrelativamente ao meio ambiente se concebe como normal ecomo condição de estabilidade;

4. A teoria dos sistemas cibernéticos que, perante um meioambiente excessivamente complexo e imprevisível, se com-portam selectivamente, portanto, desenvolvem, por assim dizer,uma técnica frutífera de lidar com o desconhecido.

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relativa independência do meio ambiente. Duas destasestratégias parecem ser particularmente importantes paraos sistemas sociais: a estratégia da deslocação do pro-blema e a estratégia da dupla selectividade mediante adiferenciação de estrutura e processo.

IV. Deslocação do problema

O problema do mundo, a extrema complexidadedaquilo a que o sentido se refere como possível, nãoproporciona por si mesmo nenhum fundamento de deci-são. Não se pode elaborar de um modo intrínseco aosistema. Não é, em sentido algum, um problema solúvel.Também como problema de referência de análises fun-cionais é de extrema abstracção e, por isso, pouco ins-trutivo. Nada exclui, mas possibilita comparar tudo comtudo. Para fins de análises sistémicas mais concretas epara fins da racionalização da conduta em sistemas deve,pois, redefinir-se este problema. Com a sua crescentecomplexidade própria, os sistemas estão cada vez maisna situação de constituir problemas próprios. O problemada complexidade do mundo pode, assim, traduzir-se paraproblemas sistémicos e utilizar-se numa forma que nãosó vigora relativamente ao sistema, mas pode induzir auma elaboração selectiva da informação. Referir-se-á, porassim dizer, ao sistema, deslocar-se-á de fora para dentroe assim se concretizará.

Embora mecanismos transformadores, que originameste deslocamento, se elucidem já na sociologia17, falta

__________________17 Muito material pertinente se oculta, por exemplo, por detrás

do conceito de “structural strain”. Niklas Luhmann tenta uma cons-trução desta ideia no domínio da sociologia da organização: Funktionenund Folgen formaler Organisation, Berlim, 1964.

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ainda uma exposição sociológica geral de semelhantedeslocação problemática18. Ela pressupõe uma consi-derável complexidade própria do sistema e do seu pro-jecto de mundo. Graças à sua complexidade peculiar,um sistema pode, cada vez mais, introduzir em siproblemas do ambiente, dar-lhes uma versão diferente,muitas vezes incomparável, e criar assim um marcode referência simplificado para a inserção, conscienteou inconsciente, de técnicas de resolução de proble-mas internos ao sistema, que não se encontram àdisposição no meio ambiente e que também não sepodem aplicar sem mediação ao meio ambiente. Nãoé que deste modo a relação ao ambiente se desvaneçae que o sistema se ocupe só consigo próprio! O meioambiente, porém, será categorizado e elaborado emvirtude de semelhante deslocação do problema devidoaos critérios da relevância, da proximidade, do inte-resse, da capacidade axiológica, que são internos ao

__________________18 Em contrapartida, aproxima-se muito das nossas consi-

derações o conceito de “internal motivation” de Robert L. Markus,“The Nature of Instinct and the Physical Basis of Libido”, inGeneral Systems, 7 (1962), p. 133-156. A ideia fundamental dizo seguinte: quando o mundo se torna excessivamente complexopara um sistema orgânico em virtude do seu equipamentoperceptivo e da insegurança instintiva, o sistema deve desenvol-ver novos mecanismos internos de redução, a saber, uma estru-tura motivacional própria, que não se apoie imediatamente nosdesencadeadores ambientais. Portanto, estes mecanismos devemser e permanecer internos, porque o mundo é excessivamentecomplexo e como tal deve permanecer. A redução externa anulariaa complexidade do mundo e, deste modo, eliminaria também apossibilidade do comportamento selectivo para o sistema, junta-mente com as vantagens a ele associadas. Esta ideia básica éaflorada sob vários aspectos na antropologia de Gehlen, e mostraclaramente as vantagens de uma teoria sistémica frente a umaorientação teórico-accional.

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sistema19. A própria transformação permanece, na maioriados casos, latente e subtraída à consciência, pois atematização concomitante do problema da origem alarga-ria o horizonte do problema, admitiria uma infinidade dealternativas e sabotaria, assim, a acção redutora, de quese está dependente.

Isto pode tornar-se mais manifesto nos exemplos demaior relevância: há diferentes problemas de substituiçãopara a complexidade, na dimensão temporal, sobretudo oproblema da existência; na dimensão objectiva, o proble-ma da escassez e, na dimensão social, o problema dadissensão20.

O mais corrente entre eles é o problema da exis-tência, pois serviu à teoria estrutural-funcional comoproblema de referência e, nesta qualidade, desencadeounumerosas controvérsias. Em contrapartida, na teoriafuncional-estrutural já não aparece como o último, mascomo um dos vários problemas penúltimos e pode, se fornecessário, indagar-se. A questão da existência deve pôr-se sempre num horizonte temporal a limitar e referir-se

__________________19 Muitas vezes, este processo descreve-se também como subs-

tituição da construção objectiva da realidade por uma construçãosubjectiva da mesma. Como exposição algo superficial cfr. KennethBoulding, The Image. Knowledge in Life and Society, Ann Arbor, Mich.,1956. Ver, ademais, James G. March e Herbert A. Simon, Organizations,Nova Iorque e Londres, 1958, passim, p. 151; Peter L. Berger eHansfried Kellner, “Die Ehe und die Konstruktion der Wirklichkeit”,in Soziale Welt, 16 (1965), p. 220-235; Geoffrey Vickers, The Artof Judgment. A Study of Policy Making, Londres, 1965, p. 65 ss.

20 A importante diferença entre dimensão temporal, dimensãoobjectiva e dimensão social não se pode aqui fundamentar de modomais pormenorizado. Trata-se de dimensões do mundo, que estãoimplicadas em todo o sentido. A sua tessitura constitutiva, a suaseparabilidade e a sua interdependência só podem clarificar-se me-diante amplas análises fenomenológico-transcendentais, para as quaisnão há aqui espaço algum.

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a um sistema determinado. Assim, quase todos os acon-tecimentos do mundo se tornam irrelevantes afora aquelesque fomentam ou afectam a preservação deste sistema. Aredefinição do problema da complexidade em problema daexistência serve, portanto, para a redução da complexidade.Sem dúvida, também a questão da existência é ainda, nossistemas sociais, extremamente indeterminada e deve es-pecificar-se para fins da análise, mediante a deslocaçãoulterior do problema. Isto acontece, por exemplo, atravésda determinação das propriedades sistémicas concretas, cujamanutenção deve ser um problema21, ou mediante aespecificação de determinados efeitos ambientais do sis-tema como seus fins, com a suposição de que a obtençãodesses fins preserva a existência do sistema22.

Em contraste com a problemática da existência, muitopouco se discutiu até agora, na sociologia, e neste planode abstracção, a problemática da escassez. Descobre-sea orientação da escassez implícita em numerosos argu-mentos23; mas o problema carece ainda de elaboração. A

__________________21 Cfr. a tentativa de precisar esta ideia em Ernst Nagel, “A

Formalization of Functionalism”, in IDEM, Logic Without Metaphysics,Glencoe, Ill., 1956.

22 Com a ajuda de uma teoria da deslocação dos problemaspoderia, pois, validar-se a coexistência opaca de modelos teleológicose de modelos de existência, que se pode observar sobretudo nainvestigação dos pequenos grupos (por exemplo desde Kenneth D.Benne e Paul Sheats, “Functional Roles of Group Members”, in”Journalof Social Issues, 4 (1948), p. 41-49) e na sociologia da organização(ver, por exemplo, Amitai Etzioni, “Two Approaches to OrganizationalAnalysis. A Critique and a Suggestion”, in Administrative ScienceQuartely, 5 (1960), p. 257-278).

23 Assim, por exemplo, quando Parsons salienta, uma e outravez, que não é possível levar a cabo, ao mesmo tempo, uma soluçãomaximalista de todos os problemas sistémicos, ou do modo comoShmuel N. Eisenstadt, The Political Systems of Empires, Nova Iorquee Londres, 1963, utiliza o conceito de “recursos”.

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escassez económica não é o único caso; há ainda outros,por exemplo a escassez da energia, dos meios físicos decoacção, do consenso, do tempo, do número de votos, etc.

O cálculo da escassez pressupõe que o sistema socialdispõe de meios abstractos de estimativa, que em si mesmosnão são escassos, portanto, devem ser, em princípio,concebidos como infinitos, mas são limitados por cons-tâncias de somas artificiais, modificáveis por decisão eque, neste marco, se podem quantificar e partilhar. Nemo dinheiro nem o tempo são, por exemplo, escassos pornatureza, mas apropriam-se como meios, porque as razõesda escassez devem buscar-se sempre fora delas próprias.A institucionalização de tais meios e, assim, também aredefinição de valores, perigos, carências da “natureza”no problema da escassez apresentam-se com pretensõeselevadas à estrutura sistémica. Pressupõem uma alta com-plexidade sistémica. Os problemas da escassez são, por-tanto, um produto tardio da evolução civilizacional24 que,no decurso da evolução, não diminui, antes aumenta25.

Também esta versão problemática é aindaindeterminada em alto grau e deve, pois, especificar-se.Isto acontece sobretudo mediante a “programação” daacção, ou seja, através da decisão sobre as premissas dadecisão, em cuja consideração a acção é correcta e emcujo erro é falsa. O problema originário da complexidade

__________________24 Assim, com razão, acerca da escassez económica Karl Polanyi,

Conrad M. Arensberg e Harry W. Pearson, Trade and Market in theEarly Empires, Glencoe, Ill. , 1957. As objecções de Neil J. Smelser,“A Comparative View of Exchange Systems”, in Economic Developmentand Cultural Change, 7 (1959), p. 173-182, subavaliam a diferençaessencial entre simples problemas do meio ambiente e problemas dosistema.

25 Cfr. a propósito também Geoffrey Vickers, The UndirectedSociety. Essays on the Human Implications of Industrialization inCanada, Toronto, 1959, sobretudo p. 106 s.

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do ambiente resolve-se e limita-se assim a problemas decoordenação do programa e evitar “erros”.

Por fim, na dimensão social, a complexidade domundo reduz-se ao problema da dissensão. Nem tudo oque os outros experimentam, experimentaram ou pode-riam experimentar é problemático para o sistema, masapenas aquilo que se desvia das opiniões seleccionadasatravés do sistema. Assim, a complexidade da dimensãosocial estrutura-se sob o ponto de vista do dissentimentopossível e, em relação a tal, podem em seguida projectar-se estratégias de comportamento, por exemplo estratégiasde influência nas opiniões de outros ou estratégias daalteração das opiniões próprias, da aprendizagem.

Um ulterior estreitamento das possibilidades podealcançar-se quando o âmbito das outras relevantes se definede modo mais exacto e se faz concordar com a posiçãosocial e os interesses do sistema. Mediante investigaçõesde psicologia social e de sociometria, tal como atravésdo conceito de grupo de referência, esta estruturalidadedo campo de consenso ou dissentimento relevante é umfenómeno conhecido.

O conceito de deslocação do problema poderia, assim,ilustrar-se. Não indica que as posições problemáticas maisconcretas se poderiam deduzir logicamente das maisabstractas. Só que não fornece nenhuma clarificaçãosuficientemente empírica das posições ou soluções maisconcretas de problemas. Especifica apenas como, com aajuda de formações sistémicas, os problemas se podemestreitar e, deste modo, com a eliminação da complexi-dade, mudar em problemas resolúveis; e permite, ao mesmotempo, inquirir cada solução e cada posição do problema,chegar a resolver problemas mais fundamentais, em úl-tima análise, a converter toda a evidência e até o própriomundo num problema, em relação ao qual se podem

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comparar as soluções de problemas. Como se afirmou,não se proporciona assim nenhuma explicação, antes seleva a cabo um pressuposto necessário de cada explicação.Pois, toda a explicação de como algo é como é, e nãoé de outro modo, pressupõe uma prévia apreensão eexclusão de todas as outras possibilidades.

V. Estrutura

Segundo a concepção universalmente dominante e,também, na teoria estrutural-funcional, distingue-se entreestrutura e processo mediante uma diferença essencial e,claro está, como o firme e o fluido. E não nos libertámosdesta metáfora, mesmo quando se admite que também asestruturas são apenas relativamente firmes e também sepodem alterar26. A cada concepção está subjacente umainterpretação do tempo não clarificada, presumivelmenteinsustentável, mediante o conceito de movimento. Pelocontrário, a teoria funcional-estrutural pode inserir adiferença entre estrutura e processo num ponto de vista

__________________26 Esta concessão fazem-na, naturalmente, todos os estrutura-

listas. Ver, em vez de outros, Talcott Parsons, The Social System,Glencoe, Ill., 1951, p. 480 ss., ou IDEM, “Some Considerations onthe Theory of Social Change”, in Rural Sociology, 26 (1961), p. 219-239. Sobre as incertezas desta delimitação, sobretudo no plano empírico,ver, por exemplo, Florian Znaniecki, “Basic Problems of ContemporarySociology”, in American Sociological Review, 19 (1954), p. 519-524;Friedrich Fürstenberg, “Das Strukturproblem in der Soziologie”, inKölner Zeitschrift für Soziologie und Sozialpsychlogie, 8 (1956), p.623-633; Ernest Nagel, The Structure of Science. Problems in the Logicof Scientific Explanation, Nova Iorque, 1961, p. 529 s.; GeorgesGurvitch, La vocation actuelle de la Sociologie, Vol. I, 3ª ed., Paris1963, p. 403 ss. Em contrapartida, pode, com Parsons, fazer-se umareferência à necessidade de semelhante distinção, mas este argumentosó obtém força de convicção na medida em que se clarifica a funçãoda distinção.

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funcional, vê-la como diferenciação funcionalmente sig-nificativa da realidade e referi-la ao problema da com-plexidade. Vê a função da diferenciação entre estruturae processo na redução da complexidade mediante umadupla selectividade.

Ao lidar-se com uma elevada complexidade, revela-se como vantajoso, mais, como necessário, levar a caboa eliminação, num processo gradual, das outras possibi-lidades; primeiro, seleccionar um “código” sólido gerale relativamente invariante de significações; em seguida,escolher concretamente, no seu marco, entre alternativaspré-estruturadas27. Deste modo, o potencial humano paraa complexidade, do qual a linguagem é talvez o melhorexemplo, pode sofrer uma imensa intensificação. A es-trutura é, por conseguinte, projecto de sentido para oincerto, é já realização selectiva e não apenas directiva28.Justamente como selecção, tem sentido informativo e, destemodo, directivo. Obtém o seu sentido em virtude de nãoter em conta a incerteza englobante do mundo e de definirum restrito volume de possibilidades, ajustado ao horizontetemporal e à capacidade consciente do homem. O risco de

__________________27 Com esta formulação não se tem em vista, naturalmente,

nenhuma sequência histórica de acontecimentos constitutivos de sentido.As estruturas não começam por surgir de forma histórica, antes deo homem iniciar as suas condutas, mas constituem-se primeiro nocomportamento concreto como marcos de orientação, como exposiçãode significado e justificação. As decisões estruturais especializadassão um produto tardio do desenvolvimento civilizacional. Supõem quea necessidade de estrutura se reconhece já como variável. Não se temem vista, portanto, uma sequência histórica, mas uma sucessão naedificação do horizonte vivencial, em que cada movimento da vivên-cia, cada decisão, depende de que outra coisa se possa realizar comopano de fundo, como não problemática naquele momento.

28 Cfr. a propósito também Wendell R. Garner, Uncertainty andStructure as Psychological Concepts, Nova Iorque/Londres, 1962.

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viver no mundo fica assim repartido: é absorvido essen-cialmente por estruturas e, nos restantes casos, esgota-se.

Em certo sentido, toda a estrutura assenta, pois, nailusão – na ilusão acerca da verdadeira complexidade domundo. Para a construção estrutural é, pois, duplamenteessencial: uma certa medida de latência funcional queneutraliza uma reproblematização da estrutura e um for-necimento de mecanismos que regulam o trato com asinevitáveis decepções – sejam eles mecanismos de escla-recimento da ilusão e de desvio dos sentimentos deinsegurança para sendas que não põem em questão aestrutura; sejam eles mecanismos de alteração das estru-turas que, com base em competências particulares, olhampela regular adaptação da estrutura às probabilidades deacontecimentos. Em toda a construção estrutural deve, pois,deparar-se sempre ao mesmo tempo com a cautela frenteà desilusão. Deve ser permitido supor que a maior com-plexidade da ordem social exige, em geral, uma mais fortevariabilidade das estruturas (assim, por exemplo, a tran-sição do “direito natural” tradicional para o direito po-sitivo), pelo que para isso é necessária uma transposiçãode mecanismos simplesmente explicativos e inferenciaispara mecanismos transformadores (adaptativos ou inova-dores); para isso, igualmente, as funções latentes devemser cada vez mais “clarificadas” e transformar-se emfunções manifestas29. Seja como for, a formação estruturalnão é, em cada caso, uma decisão “arbitrariamente”possível, mas pressupõe, se ela conseguir realizar a suafunção, mecanismos sociais concomitantes de perfilamento,de interpretação, de manipulação das desilusões e deadaptação, com os quais ela constitui um todo comple-xamente institucionalizado.

__________________29 Sobre o papel da sociologia neste contexto ver Niklas Kuhmann,

Soziologische Aufklärung.

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VI. Generalização das expectativasde comportamento

Em virtude da diferença entre o fora e o dentro,que se estabelece com toda a formação sistémica, háque distinguir entre estruturas do meio ambiente eestruturas sistémicas; graças àquelas, apreende-se ereduz-se a complexidade do mundo; por meio destas,a complexidade do sistema. Segundo a lei da corres-pondência entre complexidade do mundo e complexi-dade sistémica, é de esperar uma conexão de ambasas estruturas, pelo menos no sentido de que a estruturasistémica estabelece a medida e as fronteiras para acomplexidade própria do sistema e, deste modo, tam-bém para a complexidade do mundo apreensível nosistema. A análise das estruturas sistémicas tem, nestecontexto, a primazia, porque delas depende que estru-turas mundanais serão possíveis para um sistema.Concepções, como a de um tempo objectivo, aberto aofuturo, de um contexto causal do mundo em princípioinfinito ou de um ser-sujeito de todos os homens sãopossíveis só em sociedades bastante complexas, porqueevidenciam a dimensão temporal, a dimensão física ea dimensão social como muito complexas. Não pode-mos aqui desenvolver mais estas ideias, mas temos denos limitar à problemática das estruturas sistémicas.

Os sistemas sociais adquirem uma estrutura sistémicaque vai além da situação e definem as fronteiras do sistema,mediante a generalização das expectativas para o com-portamento peculiar ao sistema. A generalização significa,no essencial, uma indiferença inofensiva perante as di-ferenças, uma simplificação e, nessa medida, uma redução

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de complexidade30. Pela generalização das expectativas docomportamento é facilitada a sintonização concreta daconduta social, porquanto se encontra tipicamente deter-minado, já de um modo prévio, o que se pode esperare que comportamento faria explodir as fronteiras do sistema.Esta escolha prévia do possível no sistema ocorre no planoda expectativa, e não da acção imediata, porque só assimse pode transcender a situação, na antecipação do futuro.

A ética, tal como a ciência jurídica, supõe normal-mente a unidade e a homogeneidade do dever-ser, davalidade normativa31. Com a ajuda do conceito de gene-ralização das expectativas de comportamento pode inda-gar-se esta unidade e fazer dela um problema, em relaçãoao qual se podem levar a cabo análises funcionais.Semelhante generalização tem lugar em direcções dife-rentes, numa relação temporal, objectiva e social; não é,portanto, evidente que os símbolos e os mecanismos sociais,que fomentam a generalização numa dada direcção, sepossam combinar com os de outra dimensão32. A gene-ralização congruente, tanto temporal como objectiva outambém social, é um problema.

__________________30 Este aspecto do conceito, a admissão da indiferença, é o

fundamento da sua utilização na teoria behaviorista da aprendizagem;ela libertou-o das antigas controvérsias sobre o teor mais elevado doser, da verdade ou da essência do geral e possibilita a sua aplicaçãonuma teoria sistémica funcional-estrutural. Ao mesmo tempo, este marcoconceptual mostra que a especificação não é o oposto, mas um casosubordinado de generalização; pois ela baseia-se igualmente na in-diferença inócua. Seria, porventura, melhor falar de abstracção, e nãode generalização.

31 Ver, por exemplo, Hans Welzel, An den Grenzen des Rechts.Die Frage nach der Rechtsgeltung, Colónia/Opladen, 1966.

32 Leo Postmann, “Toward a General Theory of Cognition”, inR. Rohrer e Muzafer Sherif (dir.), Social Psychology at the Crossroads,Nova Iorque, 1951, p. 242-272, esboça, numa direcção afim, uma teoriado reforço da expectativa com uma maioria de factores relevantes.

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No plano temporal generalizam-se as expectativasem virtude de lhes ser conferida uma validade de duração,firmemente decepcionante e, se for necessário,contrafactual. Em semelhantes expectativas expressa-seuma pretensão comportamental que se pode defendertambém em face do comportamento desviante. Para talquem espera deve aprender a prever uma desilusão, massem se deixar enganar na sua expectativa de comporta-mento. A investigação psicológica mostrou que isto épossível e que expectativas concebidas a contar com adecepção são, sem excepção, mais estáveis do que asexpectativas puramente factuais33. Toda a norma é, nestesentido, um aguardar ambivalente – e, justamente por isso,estável. Mas esta estabilização pressupõe regras para otrato com as desilusões: quem espera não deve surgir comoridicularizado no caso da desilusão, deve prosseguir nasua expectativa e poder continuar a agir significativamentenesta base, deve clarificar a sua desilusão e, se fornecessário, poder dar uma expressão aos seus sentimentos.Para isso exige-se um repertório solidamenteinstitucionalizado de símbolos, de modos de imputação,de ajudas sociais e de oportunidades de acção, o qual pode,por exemplo, entrar em conflito com necessidades degeneralização objectiva da expectativa.

No plano objectivo, as expectativas generalizam-seem virtude da identificação situacionalmente dependentedo seu sentido e fundamento. Para isso existe uma sériede possibilidades que, segundo a respectiva complexidade

__________________33 Ver, a propósito, a experiência muito discutida de Lloyd G.

Humphreys, “Acquisition and Extinction of Verbal Expectations ina Situation Analogous to Conditioning”, in Journal of ExperimentalPsychology, 25 (1939), p. 249-301, e como panorama acerca dadiscussão mais recente Ralph M. Stogdill, Individual Behavior andGroup Achievement, Nova Iorque, 1959, p. 59 ss.

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do sistema social, se tornam em medida diferente por-tadoras de estrutura. Acima de tudo, há que pensar naidentificação de pessoas concretamente conhecidas, depapéis, de programas de decisão (fins ou normas condi-cionais) e de valores abstractos, que, de modo muitodiverso, servem de critério para aquilo que se pode esperar.

Mas também aqui se repetem os típicos problemasestruturais. O problema da complexidade não se desva-nece sem resíduo, antes se redescobre de uma formamodificada, diminuída. O esforço de apreender a com-plexidade leva à especialização das estruturas generali-zadas de sentido e daí nascem contradições imanentes aosistema – assim também entre pessoas que se individu-alizam, entre papéis, programas, valores e ainda dentrodo contexto de expectativa respectivamente identificado.Com a complexidade crescente deve aumentar a tolerânciaperante tais contradições, devem institucionalizar-se ro-tinas mais eficazes para a solução dos conflitos e devemgeneralizar-se fixações de sentido de modo decidível,portanto, variável. As estruturas de sentido com maiorpotencial para a complexidade, a saber, papéis e progra-mas, constituem em seguida os planos de sentido em quea sociedade se diferencia, constituem a camada genuina-mente portadora de estrutura, em relação à qual as pes-soas, depois, se mobilizam e os valores se ideologizam.

A generalização social das expectativas efectua-seatravés da institucionalização. Na medida em que umaexpectativa é institucionalizada, quem espera pode partirdo acordo, sem ter comprovado opiniões e motivos in-dividuais. Isto, em geral, dispensa levantar e discutir aquestão do consenso e possibilita assim um rápido en-tendimento sobre temas selectos da situação. Quem, naspremissas deste entendimento, é de outra opinião devecontradizer, tomar iniciativas, suscitar motivos e razões,

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agir contra a opinião presumida dos circunstantes, expor-se e tomar sobre si o risco da exibição e imputação pessoais.Isto, como comportamento regular, é tão difícil quesemelhante provocação se leva a cabo, quase sempre, nainstituição, e as instituições também podem sobrevivermuito tempo ao esmorecer lento do consenso factual34.

A discutível selectividade da estrutura, na crescentecomplexidade do sistema, mostra-se no facto de as ins-tituições se tornarem indignas de crédito. Podem, então,permanecer como convenções patentes, que “apesar de tudofuncionam” ou restringir-se a um consenso operativomínimo, no qual existe entendimento apenas sobre oprocedimento e já não sobre o conteúdo, somente sobreos meios e já não sobre os fins últimos. Outra saída édinamizar as instituições de modo que os temas dacomunicação possível se sujeitem à mudança, à moda, àpressão da novidade, e se institucionalizem de modo quesó possa participar na vantagem das suposiçõesinstitucionalizadas de consenso quem se mantiver nacorrida35. Por fim, também a formação de subsistemas éum caminho para intensificar o consenso em sistemasparciais e, ao mesmo tempo, elaborar a dissensão entresistemas parciais na forma de conflitos regulados.

Só este breve esboço já mostra a diversidade dosprocessos sociais, que constituem e estabilizam umaestrutura, a multiplicidade dos problemas que neles ocor-rem e a multiplicidade dos meios “equifinais” pelos quais

__________________34 A este respeito é muito interessante: Richard L. Schanck, A

Study of a Community and Its Groups and Institutions Conceived ofas Behaviors of Individuals, Psychological Monographs, Vol. 43, Nº2, Princeton, N. J. e Albany, N. I., 1932.

35 Do ponto de vista da institucionalização de temas variáveis,que são possíveis politicamente, pode, por exemplo, interpretar-se aactual função da opinião pública.

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eles podem ser solucionados. Uma certa medida degeneralização (temporal, objectiva e social) congruente deexpectativas comportamentais é de esperar em cada sis-tema social, unicamente porque a generalização de ex-pectativas numa dimensão pressupõe as outras nas res-tantes, num âmbito determinado. A esta existência deexpectativas generalizadas de modo congruente num sentidoelementar poderia chamar-se o direito do sistema36. Per-manece, no entanto, a questão de que modo se obtém estacongruência e se para a necessidade de estrutura dossistemas sociais bastará o direito que por si se instaura(e, por isso, se concebeu como “direito natural”).

Na questão principal parece haver dois modos degeneralização congruente: história e organização.

A história recordada é, porventura, o meio maisimportante, pelo menos um meio indispensável, de redu-ção da complexidade. O passado já não tem mais pos-sibilidades. É complexidade já reduzida37 e não pode, porisso, abandonar-se inteiramente ao passado, mas devemanter-se presente como história recordada a fim de, comodirectiva de expectativa e ajuda da decisão, simplificaro futuro. Como história das auto-descrições recíprocas doshomens e dos sistemas sociais, o passado já sempre ratificoue tipificou expectativas, providas de consenso. Esta re-alização não se deve desvanecer de instante para instante;é um valioso capital de orientação. Por isso, o passadoadquire um valor simbólico para o que é correcto; por

__________________36 Residiria também aqui, pois, o ponto de ligação para uma

sociologia do direito, que uma teoria sistémica funcional-estruturaldeveria proporcionar.

37 Isto não exclui que o passado, enquanto história digna derememoração, se torne novamente complexo, isto é, do ponto de vista,referido ao futuro, da questão sobre que dados passados se devemselectivamente lembrar, responder ou investigar.

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isso, cada qual exige que o seu passado se mantenhaem si, se represente como idêntico e permaneça naquiloque ele expôs – a não ser que se possam aduzir razõespara determinadas alterações que não abalam a certeza,quanto aos princípios, da continuação de um dadoordenamento.

A organização, sob este ponto de vista, é o equi-valente funcional da história, embora nunca a possasubstituir. A organização fornece uma generalizaçãocongruente de expectativas em virtude de estabelecer oreconhecimento de determinadas expectativas como con-dição para se ser membro de um sistema38. A validadeaté um conteúdo ulterior, determinado, e o domínio socialdo reconhecimento são estabelecidos mediante uma de-cisão. Ao mesmo tempo, pode institucionalizar-seconcomitantemente uma técnica da alteração destas ex-pectativas formalizadas, em virtude de o reconhecimentoexigido se referir a normas acerca da normalização, sobreprocedimentos, sobre competências. A organização podecriar certezas novas, sem história e, de acordo com o famosodito de Kirchmann, reduzir a lixo, de uma penada, bi-bliotecas inteiras, mas isto só mediante decisões que setornam história nos sistemas sociais organizados e nuncase podem alterar de uma só vez39. Posta sobre o panode fundo destas considerações, a tese da “anistoricidadedas sociedades modernas” surge ao mesmo tempo como

__________________38 A este respeito, e com maior pormenor, Niklas Luhmann,

Funktionen und Folgen formaler Organisation, Berlim, 1964, emparticular p. 59 ss.

39 Esta é a tese central da sociologia da organização de Selznick.Cfr. Philip Selznick, TVA and the Grass Roots, Berkeley e Los Angeles,1949; IDEM, Leadership in Administration. A SociologicalInterpretation, Evanston, Ill. E White Plains, N. I., 1957; além disso,Samuel P. Huntington, “Political Development and Political Decay”,in World Politics, 17 (1965), p. 386-430.

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justificada e injustificada, segundo a medida com que semedir a necessidade da história40.

VII. Diferenciação

Graças à generalização das expectativas de compor-tamento, a complexidade de um sistema social podeintensificar-se e, deste modo, também o seu potencial decomplexidade do meio ambiente. Estruturas mais forte-mente generalizadas admitem, comparativamente, maisacções. Todavia, uma construção significativa de sistemassociais depressa embate em dificuldades, sobretudo por-que as expectativas se tornam ou demasiado indefinidasou demasiado contraditórias, e porque surgem excessivase demasiado mutáveis, para ainda encontrarem consenso.De um certo limiar (bastante menor) da complexidade sópodem derivar ainda sistemas sociais, como de resto todosos sistemas, na medida em que se diferenciam, isto é,formam partes, que têm carácter sistémico, portanto,mantêm estavelmente as suas fronteiras e, nestas frontei-ras, possuem uma certa autonomia. Os sistemas comple-xos devem, por conseguinte, desenvolver uma ulteriorestratégia da apreensão e redução da complexidade: a dadiferenciação interna41.

__________________40 Como nova exposição desta controvérsia ver Jürgen Habermas,

“Zur Logik der Sozialwissenschaften”, in Philosophische Rundschau,Beiheft 5, Tubinga 1967, p. 19 ss. Em nenhum dos dois lados selevanta a questão sobre a função da história e se aproveita a ocasiãopara saber de quanto de história e de que história certas sociedadesnecessitam na base da sua estrutura e da sua complexidade.

41 É corrente esta concepção na sociologia. Antes de mais, ateoria estrutural-funcional parece desenvolver-se, no essencial, comoteoria da diferenciação funcional. Ver, em vez de outros, Talcott Parsons,“Inroduction to Part Two”, in Talcott Parsons, Edward Shils, KasparD. Naegele e Jesse R. Pitts (orgs.), Theories of Society, Glencoe, Ill.,

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Graças à diferenciação, os sistemas obtêm “ultra-estabilidade”42. Podem estabilizar fronteiras internas entresistemas parciais, no sentido de limiares que restringemuma transferência de efeito – quer porque apenas filtramperturbações extraordinárias, geradoras de crise, mascaptam as normais; quer porque encaminham apenas efeitosfuncionais específicos. Podem, assim, encapsular-se eneutralizar-se efeitos perturbadores do ambiente nos sis-temas parciais; outras realizações fomentadoras podemincentivar-se sem que cada acontecimento diga respeitoa todas as partes e tudo tenha de se harmonizar com tudo.Aqui reside uma considerável aceleração dos processosadaptativos intrínsecos ao sistema, um ganho temporalcrítico para a sobrevivência, que possibilita em geral onascimento e a preservação de sistemas complexos nosestádios mais elevados da evolução.

Também os sistemas sociais devem servir-se destatécnica e institucionalizar, com complexidade crescente,limiares internos desta natureza. Nas sociedades modernasnão faltam exemplos para isso: o poder político não sedeve comprar, embora não possa ignorar-se na políticaa concentração de capitais muito grandes. Há limites para

__________________1961, Vol. I, p. 239-264. Todavia, quanto ao confronto entre dife-renciação e generalização, chegou-se até aqui, num só aspecto, aoreconhecimento de que também os sistemas parciais são sistemas empleno sentido; e que, portanto, devem prestar o seu contributo comouma realização sistémica, sem jamais poderem absorver-se totalmentena sua função. Uma relação da teoria da diferenciação com o problemada complexidade está, pelo contrário, a abrir o seu caminho nasinvestigações da cibernética e da teoria da organização. Ver W. RossAshby, Design for a Brain, 2ª ed., Londres, 1954, e Herbert A. Simon,“The Architecture of Complexity”, in Proceedings of the AmericanPhilosophical Society, 106 (1962), p. 472-482.

42 No sentido de Ashby, op. cit., (1954).

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a politização de toda a sociedade43, embora não se possadefinir previamente que problemas e temas se devempolitizar como necessitando de decisão. A família deveestar protegida contra as flutuações do sistema económico,embora, por razões financeiras e motivacionais, se ponhamlimites à segurança dos desempregados. As famílias, comofamílias reduzidas, devem separar-se por gerações, emvirtude da liberdade da escolha de parceiros, embora nãose possa excluir que muitos parceiros não se amam sematenção ao estatuto social, à adaptabilidade familiar e àsfinanças. Os exemplos mostram que a preservação de umacerta autonomia dos sistemas parciais é uma exigênciainevitável das sociedades altamente complexas, e que sedeve repetir ainda nos seus sistemas parciais mais com-plexos.

Há, em particular, que distinguir entre a diferenci-ação segmentadora, que divide as unidades iguais, e adiferenciação funcional, que especializa sistemas parciais.A distinção é conhecida44, deve apenas ser elaborada nateoria sistémica funcional-estrutural. De facto, as duasformas de diferenciação têm uma relação diferente como problema da complexidade.

A diferenciação segmentadora verifica-se sobretudona protecção das perturbações. Inclusive a destruição departes leva aqui apenas à diminuição, não à destruiçãode todo o sistema. Ela toma-se, por isso, em consideraçãosobretudo quando o meio ambiente varia de uma forma

__________________43 Sobretudo em virtude dos direitos fundamentais. Para a sua

interpretação do ponto de vista da teoria da diferenciação da sociedadever Niklas Luhmann, Grundrechte als Institution. Ein Beitrag zurpolitiscen Soziologie, Berlim, 1965.

44 Cfr. Emile Durkheim, De la division du travail social, 7ª ed.Paris, 1960, p. 149 ss.

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incontrolável e não se deixa influenciar essencialmentepelas realizações do sistema, pelo que este se encontraligado, antes de mais, ao meio ambiente de um mododefensivo. Para semelhante mundo é que foram criadasas sociedades arcaicas segmentadoras e, em virtude dasua estrutura, conseguiram apenas utilizar meios muitodrásticos da redução, por exemplo a magia, a luta ouum comportamento prescrito de modo rigoroso. Paraos sistemas funcionalmente diferenciados vale o con-trário. As suas partes estão dependentes umas das outrase do todo. Isto torna o sistema, por um lado, sensívelàs perturbações, por outro, produtivo, visto que, destemodo, se obtêm as vantagens da especialização. Nosistema haverá, decerto, perturbações, mas tambémcontributos eficazes com efeito potenciador que serãorepercutidos. Tais sistemas pressupõem um ambientemuito complexo, mas domesticado, o qual é influenciávelem aspectos especificamente relevantes para o sistema,podendo encarregar-se de tarefas e garantir apoio. Ambasas formas de diferenciação sistémica estabelecem umarelação equilibrada de complexidade sistémica e com-plexidade do mundo; ambas possibilitam a sobrevivên-cia dos sistemas sociais. Na diferenciação sistémica,porém, pode e deve intensificar-se consideravelmenteo nível da complexidade, pois só em sociedades amplasse podem criar os pressupostos ambientais para talnecessários; nesta possibilidade de estabilizar sistemasmais complexos num mundo mais complexo assenta,em última análise, a vantagem desta forma de diferen-ciação.

Esta vantagem da maior complexidade é tão signi-ficativa que é vista por muitos investigadores, na evoluçãodesde a diferenciação segmentadora para a funcional, como

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o critério genuíno do progresso social45. Um conceitosingular, porém, não chega decerto para interpretar aestabilidade sistémica ou até a evolução. Mas, na reali-dade, muita coisa fala a favor de que, no decurso da históriamundial que se pode abranger com o olhar, a diferen-ciação segmentadora mais antiga foi, pouco a pouco,dissolvida pela diferenciação funcional46, e que estareestruturação é que pressupõe e obriga às modificaçõesmais profundas nas estruturas do mundo, nas formas dageneralização das expectativas do comportamento e, porfim, também nos processos de redução da complexidade.

A teoria da diferenciação sistémica aplica a ideia deestrutura – dupla selectividade através do estabelecimentode fronteiras e da generalização de expectativascomportamentais – aos vários sistemas no sistema e, destemodo, a potencia. In praxi é muito difícil de manipular,porque obriga, em todas as proposições, a pensar sempre__________________

45 Cfr. além de Parsons, op. cit., (1961), por exemplo, Fred W.Riggs, “Agraria and Industria”, in William J. Siffin (org.), Toward theComparative Study of Public Administration, Bloomington, Ind., 1957,p. 23-116, e com restrições essenciais IDEM, “Administrative Development.An Elusive Concept”, in John D. Montgomery e William J. Siffin (orgs.),Approaches to Development. Politics, Administration and Change, NovaIorque, Londres, Sydney, Toronto, 1966, p. 225-255; Neil J. Smelser,Social Change in the Industrial Revolution. An Application of Theoryto the Lancashire Cotton Industry 1770-1840, Londres, 1959, p. 1 ss.;Shmuel N. Eisenstadt, “Social Change, Differentiaiton and Evolution”,in American Sociological Review, 29 (1964), p. 375-386, e várioscontributos em Joseph LaPalombara (org.), Bureaucracy and PoliticalDevelopment, Princeton, N. J., sobretudo p. 39 ss., 122 ss.

46 Isto não quer dizer, naturalmente, que a segmentação estejaem vias de desaparecimento. Mas ela transferiu, sem dúvida, o primadode uma lei estrutural social para a diferenciação funcional e, ondeainda existe – em empresas ou entre famílias, no campo da preparaçãodas decisões políticas ou na organização territorial de sistemas políticosou económicos, no exército – precisa de uma justificação mediantea função específica do sistema assim organizado. E, por isso, tambémjá dificilmente se pode entender porque é que o mundo deve estarsegmentado em várias sociedades.

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de um modo relativo ao sistema e a ter diante dos olhosuma multiplicidade de referências sistémicas47. Quanto maisfortemente os sistemas sociais, e entre eles sobretudo aprópria sociedade, se diferenciam funcionalmente e quan-to mais fortemente os seus sistemas parciais se distinguem,por isso, segundo a função e a estrutura, tanto maisimportante se torna tomar consciência desta dificuldade,em última análise, um problema da complexidade da teoria.A maioria das “sociologias especiais”, que no ensino ena investigação se tornaram frutíferas, ligam-se a sistemasparciais da sociedade funcionalmente diferenciados – assim,por exemplo, a sociologia política, a sociologia da reli-gião, a sociologia económica, a sociologia da família, asociologia da ciência, a sociologia da arte, a sociologiada medicina, a sociologia militar. A sua coerência só sepode garantir ainda por meio de uma teoria dos sistemassociais, que inclui uma teoria da diferenciação sistémica.

VIII. Processo

A redução da complexidade tem lugar, de modoinevitável, no decurso do tempo mediante o traslado dofuturo, que ainda está aberto nas suas possibilidades, parao passado imutável. É este um acontecimento factual deirresistível necessidade que, enquanto tal, não está àdisposição48. Não pode ser poupado, mas apenas controla-

__________________47 Esta técnica de pensamento e de argumentação foi sobretudo

desenvolvida por Talcott Parsons, que julga poder lidar com um modelosistémico extremamente simples, centrado apenas em quatro proble-mas; tem, por isso, de construir toda a ulterior problemática dadiferenciação sistémica e das relações intersistémicas.

48 Esta indisponibilidade depende, porventura, do facto de queos homens convivem necessariamente numa mesma época (cfr. AlfredSchütz, op. cit., p. 111 ss.), pelo que não há possibilidade algumade se subtraírem ao presente através da comunicação com outras eras.

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do mediante estruturas que, com relativa invariânciatemporal, se cristalizam. O processo, enquanto aconteci-mento fáctico, é redução da complexidade.

Se quiséssemos designar o processo como algo de“fluido” e distingui-lo assim do “fixo” da estrutura oudo sistema estruturado, ontificar-se-ia a diferença comouma oposição de exclusão recíproca. A relação entreestrutura e processo ou entre sistema e processo tornar-se-ia então incompreensível. A controvérsia desatinada entreteorias da ordem e teorias da mudança ou entre estáticae dinâmica revela o erro desta concepção do problema.A coisa não se melhora, se admitirmos que, na realidade,ocorrem ambos e apenas as perspectivas analíticas daciência se podem assim separar. Permanece, pois, em abertoporque é que se utilizam, lado a lado, estas duas pers-pectivas, que não se reduzem à unidade, e qual, sobretudo,a função desta diferença.

Processo e sistema são aspectos diferentes deselectividade. O conceito de processo caracteriza afacticidade do acontecer selectivo e, portanto, a neces-sidade de um estabelecimento de fronteiras; o conceitode sistema designa o necessário estabelecimento de fron-teiras. Processos são sistemas. Têm uma estrutura. Namedida em que conseguem a constituição de estruturasgeradoras de sentido obtêm elas um espaço de acção parauma dupla selectividade. Conseguem assim transformarem liberdade a sombria necessidade de que, presentemen-te, algo acontece, ganham tempo para a liberdade de umaescolha cheia de sentido.

Isto não significa que toda a ampliação do potencialde complexidade e todo o reforço selectivo seriam pro-porcionados por estruturas sistémicas, as quais definemas fronteiras do sistema e determinam a existência domesmo: mediante a generalização de expectativas

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comportamentais. Uma sociologia que não se limitasse àinvestigação sistémica neste sentido estreito, normativo-institucional, permaneceria incompleta. Além disso, háestruturas de outra natureza que ordenam com sentido osprocessos como sequências de acontecimentos e, graçasa esta espécie de ordenação, intensificam a capacidadede realização dos processos49. Cresce a complexidade deum sistema por meio da generalização das suas expec-tativas de conduta e através da diferenciação funcionalem sistemas parciais, cresce também a necessidade da forçaselectiva dos processos. Aumenta o número das possibi-lidades e, em tempo mais breve, torna-se necessário, emseguida, eliminar mais possibilidades. Semelhante reforçode selectividade é possível, sobretudo, em duas direcções:pela aplicação de processos a si mesmos (reflexividade)e pela garantia da transferibilidade das realizações se-lectivas (meios de comunicação).

Numerosos processos sociais podem intensificar-sena sua capacidade de realização em virtude de antes seaplicarem a si mesmos ou a processo de tipo análogo,portanto, adquirem nesse sentido uma estrutura reflexiva50.Os exemplos seriam, porventura, falar da linguagem nouso linguístico conceptualmente consciente, decidir sobredecisões na burocracia, aprender a aprender na pedagogia,a aplicação do poder ao poder em complexos sistemas

__________________49 Talcott Parsons, Robert F. Bales e Edward Shils, Working

Papers in the Theory of Action, Glencoe, Ill., 1953, p. 167, descobremuma distinção semelhante entre diferenciação de padrão e diferen-ciação de fases. Mas o termo diferenciação é, neste âmbito, menosfeliz e deveria ser substituído pelo conceito de estrutura.

50 Como introdução deste conceito ver Niklas Luhmann,“Reflexive Mechanismen. Als Anwendung auf besondere Arten vonProzessen” ver igualmente IDEM, “Politische Planung”, in Jahrbuchfür Sozialwissenschaft, 17 (1966), p. 271-296, e Positives Recht undIdeologie, p. 184 ss.

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políticos, a troca de possibilidades de troca sob a formade dinheiro, o normalizar da normalização como fundamen-to da realidade positiva do direito ou a avaliação dos valoresno âmbito de uma ideologia. Em todos estes casos e noutrossemelhantes a acção selectiva potencia-se em virtude deo mecanismo selectivo ser, antes de mais, pré-seleccionadopor outro de índole semelhante. Aumenta assim o númerodas possibilidades sobre aquelas que se podem referir, decidir,aprender, influenciar, trocar, normalizar, avaliar. Portanto,processos bem equipados podem, pois, estar à altura deum ambiente de maior complexidade.

Com a ajuda de mecanismos reflexivos parece tornar-se praticamente solúvel o problema da alteração de es-truturas, uma e outra vez apresentado como objecçãoperante a teoria estrutural-funcional – pelo menos emsistemas muito complexos, que podem regular semelhan-tes mecanismos e mantê-los capazes de função. Para afunção das estruturas não se pode exigir a validade eternaou a invariância onticamente estabelecida; basta que elas,no cumprimento da vivência e da acção, que as mesmasestruturam, não sejam postas em causa. Tal não excluique elas, noutros contextos, se possam alterar – mediantea decisão sobre premissas decisionais, em virtude dapredominância dos detentores do poder, pela inversão devalores, etc. O mecanismo que altera as estruturas nãoprecisa então nem de ser – “mais elevado”, nem “maisforte”, nem “mais consistente” do que a conduta modi-ficada. Os antigos modelos hierárquico-transitivos, quepressupunham isto, devem abandonar-se em prol demodelos circulares51. Só então se pode compreender que

__________________51 Assim, por exemplo, a concepção hierárquica do “Estado”

por meio de um modelo circular do “sistema político”. Cf. DavidEaston, A Systems Analysis of Political Life, Nova Iorque, Londres,Sydney, 1965.

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a parte instável de um sistema (por exemplo, a política)possa controlar a parte mais estável (por exemplo, aadministração), quando ela opera num contexto de maiorcomplexidade e pode converter esta complexidade deindeterminada em determinada ou, pelo menos,determinável, portanto, dar estrutura.

Uma outra forma do reforço da selectividade, pelomenos, de igual significado é a garantia da transferibilidadede realizações selectivas. Cada homem tem um acessooriginário ao mundo. Mas nenhum homem pode, só porsi, constituir sentido e viver referido ao mundo; sozinhonão conseguiria reduzir a complexidade revelada. Cadaum, na sua vivência e acção, deve apoiar-se em realiza-ções selectivas de outros. Mas isto significa: as realizaçõesselectivas devem transferir-se intersubjectivamente, devempoder transferir complexidade reduzida sem que a reduçãose deva, de cada vez, novamente levar a cabo.

Em sociedades relativamente simples, funcionalmen-te indiferenciadas, esta transferibilidade pode ser assegu-rada, em grande parte, por uma comum “construção darealidade”, por suposições sobre o ser e a natureza domeio ambiente, sobre uma determinada ordem previamen-te dada52. Numa diferenciação funcional mais forte, se-melhantes pressupostos naturais, sobretudo no domíniosocial (direito natural), já não convencem, o projecto demundo deve tornar-se mais complexo e oferecer maisespaço às contradições e às possibilidades de variação.

__________________52 A ideia de uma análise fenomenológica dos mundos quoti-

dianos da vida, derivada de Edmund Husserl e Alfred Schütz e, maisrecentemente, de Peter L. Berger e Thomas Luckmann, poderia teraqui as suas mais frutíferas possibilidades de aplicação. Ver sobretudoPeter L. Berger e Thomas Luckmann, The Social Construction ofReality. A Treatise in the Sociology of Knowledge, Garden City, N.I., 1966.

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Isto obriga também a uma diferenciação das formas emque a complexidade reduzida se transfere. Sobretudo naevolução das sociedades modernas pode observar-se queos diferentes meios de transferência se separam, e quecada qual ganha a sua especificidade de serem interpre-tados, limitados e atribuídos a diferentes sistemas parciaisda sociedade. Os mais importantes destes meios parecemser: a verdade, o poder, o amor e o dinheiro.

A verdade especifica-se na transfusão do sentido sobdeterminadas condições restritivas da certezaintersubjectiva. Verdadeiro é todo o sentido a que ninguémpode recusar o reconhecimento, sem se excluir da comu-nidade dos homens racionais, que vivem no mundo real.A especificação deste meio tem lugar através da precisãodas condições sob as quais cada um pode fornecer a sideterminadas representações ou percepções cujo sentidodeve, em seguida, reconhecer. Estas condições formulam-se como regras operacionais e são independentes de outrascaracterísticas estruturais do sistema social que, por outrosmodos, poderiam mediar a força da convicção, por exem-plo, a proximidade social, a pertença a grupos, a lingua-gem, o estatuto social do participante, a concordância comopiniões preconcebidas, etc53. Estas condições facultamtambém a diferenciação da verdade como meio e dasciências como seu sistema portador, suscitam uma auto-nomia relativamente elevada e uma capacidade de exe-cução dos mecanismos veritativos para a abordagem deconteúdos significativos altamente complexos. Por outrolado, a capacidade veritativa dos temas contrai-se consi-

__________________53 A propósito do carácter inabitual desta concepção moderna

de verdade encontram-se observações certeiras em Ithiel de Sola Pool,“The Mass Media and Politics in the Modernization Process”, in LucianW. Pye (org.), Communication and Political Development, Princeton,N. J., 1963, p. 234-253 (242 s.)

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deravelmente pelo rigor das condições, exclui-se, porexemplo, todo o domínio dos juízos de valor, pelo quese tornam, ademais, necessários meios, de tonalidadediferente, da mediação da complexidade reduzida quedevem adquirir o seu próprio perfil54.

O poder possibilita a transferência e, deste modo,a potenciação da realização redutora das decisões indi-viduais55. Nelas permanece consciente tanto a selectividadecomo também o modo redutor “decisão”; todavia, aosmotivos particulares que constituem o poder vai-se buscara selecção de outros como premissa do próprio compor-tamento. Semelhantes motivos consistem em que o de-tentor do poder dispõe permanentemente de alternativasmais relevantes do que os sujeitos ao poder: possibilidadesde coacção física, possibilidades de recompensa, possi-bilidades de se retirar da cooperação e, portanto, de asdestruir. Diferenciação, autonomização e, deste modo, a

__________________54 Há que duvidar se uma “convergência de razão e decisão”

– assim Jürgen Habermas, Theorie und Praxis. SozialphilosophieStudien, Neuwied e Berlim, 1963, p. 231 ss. – será, nestas circuns-tâncias, um postulado significativo. Valia mais a pena investigar ascondições sob as quais é possível investigar uma separação funcional,estrutural e operativa de verdade e poder, e regular em seguida, sepossível, as interdependências inevitáveis, sem que se estreitasse, pelaamálgama, o potencial alcançável de complexidade.

55 Numa elaboração mais pormenorizada desta teoria do poder,haveria que substituir todas as premissas explícitas e implícitas dateoria clássica do poder por conceitos teórico-sistémicos, por exemplo,a causalidade (em sentido clássico) pela selectividade, a informaçãoplena pela complexidade excessiva, necessidades determinadas porfórmulas socialmente variáveis dos problemas, a orientação no casode conflito pelo conceito funcional de generalização da influência,o título à posse do poder pelo problema da transferência de serviçosselectivos, o sistema fechado por um sistema referido ao meio ambiente,a premissa da constância das somas pelo pressuposto de grandezasvariáveis do poder e a transitividade do poder pela reflexividade.

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legitimidade deste mecanismo de poder tornam-se, apóso final das guerras confessionais, na Europa do início dostempos modernos, um problema principal da filosofiapolítica da sociedade. O mecanismo do poder separa-seda verdade e concentra-se na sua própria ratio. Por fim,isto obriga, por seu lado, a limitá-lo segundo a sua funçãoespecífica e a atribuir lugar ao sistema político para funçõesdeterminadas. A sociedade já não pode constituir-sepoliticamente como societas civilis, mas o sistema políticodeve, enquanto sistema parcial da sociedade,institucionalizar-se, portanto, conceber-se como socialmenteconstituído.

O amor, diferentemente da verdade e do poder, assentana simpatia do vínculo pessoal. Dá a alguém ou a outroshomens competências particulares diferentes das de co-intérpretes do mundo56. Por meio do contacto íntimo reduz-se o mundo universal a um mundo próximo, interpretadode modo mais estreito e, todavia, garantido pelo consenso,em que se torna possível uma orientação imediata da acção.Para isso é essencial que este mundo próximo não tenhavalidade (como no caso da verdade) para todos e que aselecção não seja imputável (como no caso do poder) comodecisão individual, antes seja vivido como comum57.

__________________56 Dignos de nota são Peter L. Berger e Hansfried Kellner, “Die

Ehe und die Konstruktion der Wirklichkeit”, in Soziale Welt, 16 (1965),p. 220-235, que à conversação, e não ao entendimento tácito, atribuemuma importância excessiva e, por isso, não valorizam adequadamenteo significado da selecção individualmente não imputável. TambémFriedrich H. Tenbruck, “Freundschaft. Ein Beitrag zur Soziologie derpersönlichen Beziehung”, in Kölner Zeitschrift für Soziologie undSozialpychologie, 16 (1964), p. 431-456, fornece ideias relevantes nestecontexto.

57 Por isso, os restantes meios – verdade, poder e dinheiro –puderam justamente, no pensamento moderno, inserir-se na categoriado “poder”, mas não o amor.

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Também no caso do amor se observará, desde a IdadeMédia tardia, um abandono dos controlos sociais gerais.O amor ganha autonomia, pois o amor interpreta-se comopaixão individual, portanto, como afecção não imputável,que aceita a função de uma garantia mágica da felicidade(portanto, não racional ou técnica, responsável pelasconsequências) e aclimata-se como instituição, primeirosob sintomas utópicos, em seguida cómicos, depois trá-gicos e, por fim, triviais58.

O dinheiro, finalmente, transfere uma complexidadequantitativamente limitada, mas que, de resto, permaneceindeterminada, a saber, uma porção do potencial socialdas possibilidades económicas de satisfação. Também aquio reforço da selectividade assenta na elevada autonomiada conduta facultada pelo meio: graças a uma limitaçãoquantitativa pré-seleccionada, a decisão sobre a aplicaçãodo dinheiro pode abandonar-se quanto ao conteúdo, aomomento temporal, à parceria e à discrição, portanto, àadaptação concreta às mutáveis e imprevisíveis situaçõesda necessidade e às circunstâncias. Esta liberdade, que seobtém com a aquisição do dinheiro, assenta no princípiode que outros tomaram decisões selectivas e dispõem decomplexidade reduzida.

Todas estas formas do reforço da selectividade têma função de estruturas e estão ligadas, de múltiplos modos,a estruturas que tiveram lugar mediante a generalizaçãode expectativas comportamentais. Elas estruturam proces-

__________________58 Não se contesta assim, naturalmente, toda a possibilidade social

de influência. Autonomia pode aqui querer dizer, como no caso daverdade, do poder e do dinheiro, apenas uma autonomia relativa, emborasignifique que as possibilidades de influência têm de se orientar pelotipo de meio influenciado e o devem respeitar. Ver, a propósito, parao caso do amor também William J. Goode, “The Theoretical Importanceof Love”, in American Sociological Review, 24 (1959), p. 38-47.

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sos, portanto, a redução fáctica da complexidade, comoconsequências de acontecimentos. Desempenham a funçãode reforço da selectividade, justamente como estruturasde expectativa, em virtude de a redução da complexidadeser facultada e de se pôr à disposição da vivência e daacção um fundamento de sentido; mas a complexidadereduzida permanece, enquanto tal, preservada, a saber, comoexistência de possibilidades. O mundo, pela redução aosentido, não se perde. A selectividade de todos os passosda vivência e da acção permanece assim preservada deum duplo modo: como redução e como complexidade,como sentido e como mundo.

IX. Causalidade e selectividade

O esboço de uma teoria sistémica, que aqui, porincompleta, interrompemos, tornou fácil, de certo modo,a sua tarefa. Ela deixou de lado as expectativas que asdoutrinas positivistas da ciência associam ao conceito dateoria. Busca os seus fundamentos em “problemas derelação” de alcance último, que permitem comparaçõescom outras possibilidades, e não num sistema axiomático,do qual se possa deduzir que o mundo existe num estadodeterminado, e não noutro. Também não possibilita, porisso, quaisquer prognósticos inequívocos de acontecimen-tos determinados. A modéstia nestas expectativas inspi-radas, em última análise, ainda de modo ontológico é, narealidade, o seu princípio construtivo, e este pressupostodeve, por fim, tornar-se patente e fundamentado.

As restrições, que o positivismo na sua concepçãoactual a si impõe, com a sua certeza metódica, permitemquestionar se, na sua base, será possível descobrir umaconcepção global da sociologia. Sem dúvida, não se recusaàs investigações de inspiração positivista a relevância para

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temas sociológicos; tal significaria minimizar os êxitosexistentes da investigação. A questão é apenas se, destemodo, se poderá alcançar uma teoria unitária da socio-logia. Nesta lida-se, em parte, com sistemas da acção muitocomplexos, edificados sobre o sentido. Sabe-se que taissistemas não se podem reduzir, de modo legal e etiológico,a causas específicas e que a sua estrutura causal internaé tão complexa e tão variável que cada tentativa decorrelacionar causas determinadas com efeitos determina-dos deve fazer suposições ceteris paribus, que, de ante-mão, apenas podem apelar para uma verosimilhançamínima. Se já para sistemas mais pequenos investigaçõeshá que se devem ter por quase fúteis59, então para asociedade tornam-se sem sentido. Perante sistemas sociaisde complexidade muito elevada, devem, pois, encontrar-se outras estratégias de investigação.

Semelhantes considerações poderiam motivar umdeclínio radical do positivismo e uma mudança parapostulados metódicos de todo diferentes, por exemplo, osda hermenêutica. Mas, provavelmente, bastará umareinterpretação da categoria causal. Em todas as ciênciasempíricas a categoria causal associa teoria e representa-ções metodológicas. Se uma teoria se ajusta a um método,e vice-versa, deve revelar-se na interpretação pressupostada causalidade.

Nem a interpretação ainda meio mítica da causali-dade como efeito de determinadas “forças” nem a concep-

__________________59 Os especialistas em organização, que se reuniram em Junho

de 1963 num seminário de Verão em Pittsburgh, estimaram em 200as variáveis necessárias para a apreensão e o conhecimento de umaorganização. Apesar de tudo, não desistiram da tentativa de ascorrelacionar por pares (e de estabelecerem constantemente 198, ceterisparibus). Cfr. James D. Thompson (org.), Approaches to OrganizationalDesign, Pittsburgh, 1966, sobretudo p. 88 s.

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ção hoje dominante de uma relação linear unívoca entredeterminadas causas e determinados efeitos, que se con-servam invariantes sob condições aduzíveis, ou seja, quese podem repetir, são suficientes para a investigação desistemas muito complexos. Ambas as concepções nãoconseguem apreender a própria causalidade, nem sequerpodem levantar a questão de porque é que há apenas doisfactores causais diferentes, “causa” e “efeito”, e não mais.

Se partirmos do pressuposto de que cada processoé a redução fáctica da complexidade, é óbvio apreendera causalidade como uma interpretação deste processo, aqual, por razões determinadas, privilegia uma estruturabinária. Com a ajuda de uma decomposição do acontecerfactual em causas e efeitos, pode conceber-se a reduçãoda complexidade como acontecer selectivo, isto é, não sóvivenciar ou levar a cabo a actualidade do decurso, mastambém conceber o “donde” da selecção, o fundo depotencialidades, a partir do qual o processo realiza umapossibilidade. Se fixarmos um efeito determinado (porexemplo como fim), pode perguntar-se que causas pos-síveis, combinadas ou alternativas, o poderiam suscitar;se fixarmos uma causa determinada, permanece em abertoque efeitos esta causa, nesta ou naquela constelação comoutras causas, poderá ter. Em ambas as perspectivas divisa-se o acontecer factual como selecção e, a partir daí, eleganha sentido. O sentido do processo entendido causal-mente não é nem energia nem legalidade, mas informação.Não reside nem na “força” da causa nem na necessidaderígida com que determinados efeitos se seguem a deter-minadas causas, mas em que estas causas (e não outraspossíveis) produzem estes efeitos (e não outros possíveis).A causalidade é uma categoria heurística, estratégica,comparativa, que patenteia o acesso a outras possibilida-des. Só por isso é que, com a ajuda desta categoria e

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num caso limite, se podem estabelecer também relaçõesnecessárias entre causas determinadas e efeitos determi-nados, a saber, quando, mediante condições sistémicasdeterminadas (porventura numa experimentação expressa-mente organizada e isolada) se conseguem eliminar, porparte das causas e dos efeitos, todas as outras possibi-lidades. Então, porém, o sentido do decurso não resideem que ele tem lugar como previsto, mas em que todasas alternativas, que são possíveis num sistema mais amplo,puderam ser eliminadas no mais restrito.

Se o sentido de um decurso causal resulta de eleinformar sobre a selecção, então a apreensão deste sentidodepende do facto de as “outras possibilidades” se torna-rem patentes em número limitado, previsível. Aplicada aopróprio mundo, a causalidade é apenas uma outra fórmulapara a complexidade infinita. Só pela construção sistémicaganha o contexto causal limites concebíveis do possível.Em todos os sistemas de sentido é indispensável a re-alização estrutural “dupla selectividade”, para conferirsignificado determinável às causas e aos efeitos – tantopara a práxis como para a ciência60. Por isso, a causalidadesó tem sentido sob o pressuposto de sistemas, e isto vale,com particular acutilância, quando se lida com a demons-tração de relações causais necessárias; se, pois, já acausalidade possível se deve pensar apenas relativamenteao sistema, então ela é verdadeiramente necessária. As leis

__________________60 É por isso que, de vários modos, se vê o sentido da estrutura

justamente na limitação das possibilidades causais de um sistema. Cfr.por exemplo (com fundamentos mais antigos) Bronislaw Malinowsky,“Art. Culture”, in Encyclopedia of the Social Sciences, Vol. IV, NovaIorque, 1931, p. 621-646 (626 s).; Robert K. Merton, Social Theoryand Social Structure, 2ª ed. Glencoe, Ill., 1957, p. 52; FrancescaCancian, “Functional Analysis of Change”, in American SociologicalReview, 25 (1960), p. 818-827 (820 s.).

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causais nunca podem explicar os sistemas, porque ossistemas são necessários para clarificar as leis causais.

Semelhante reinterpretação da categoria causal nãopermanece sem consequências na relação entre ciência eexperiência. A relação entre causa e efeito, na teoriafuncional-estrutural, já não é utilizada apenas como formade conhecimentos definitivos, portanto, não apenas como“hipótese” que se deve “verificar” na experiência, mascomo instrumento da análise e da interpretação de ex-periências existentes – quer de experiências no mundo davida, que se lhe antolham por si mesmas; quer de ex-periências do investigador, intencionalmente procuradas,construídas. A experiência já não tem assim apenas a funçãojudicial de uma instância derradeira, que decide sobre overdadeiro ou o falso, após a realização do trabalhocientífico – e, porventura, é levada a cabo em vão61.Funciona antes como solo, que possibilita em geral otrabalho científico e lhe fornece o acesso à realidade domundo e garante à possibilidade determinados decursos.

O que a própria experiência proporciona é apenasa actualidade de acontecimentos que, de imediato, sedesvanecem no passado. Só a interpretação de experiên-cias, com a ajuda da análise teórico-sistémica e funcionaldas conexões causais, pode iluminar o sentido dos acon-tecimentos, a saber, o domínio estruturalmente delineadode possibilidades, das quais uma se torna acontecimento.Somente uma análise assim pode fornecer a justificação

__________________61 No fundo, causa surpresa ver como o positivismo empirista

atribui à experiência um papel tão estreito e como, por isso, tão restritoé o seu conceito de empiria. Sem dúvida, a experiência apresenta-se-lhe como o último juiz ou como senhor absoluto; mas, por issomesmo, tem de movê-la para uma posição à qual, em grande parte,se retira a influência factual.

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para abordar o experimentado, não apenas como algo depassado, mas compará-lo como possibilidade futura, quepermanece presente, de um sistema determinado com outraspossibilidades. A ciência deve garantir a si, através daestabilidade dos sistemas, o significado permanente daexperiência, que ela investiga e em cujo marco de refe-rência interpreta as experiências. Que assim se “verifi-quem” apenas possibilidades, e não necessidades, assentano carácter significativo dos sistemas sociais. Esperar algode diferente significaria minimizar a função de sentido;consiste ela em preservar o mundo como domínio extre-mamente complexo de possibilidades e em orientar, apesarde tudo, a vivência e a acção selectivas.

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II. Sobre Niklas Luhmann

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A complexidade do mundo

José Manuel SantosUniversidade da Beira Interior

À crítica de Habermas, que vê na teoria dos sistemasuma simples tecnologia do social susceptível de ser postaao serviço da “razão instrumental”, Niklas Luhmannresponde, num tom de profundo lamento, que o filósofode Frankfurt passou completamente ao lado do problemacentral ao qual a teoria luhmanniana tenta dar resposta,o problema da complexidade1. Preocupado sobretudo pelaherança normativista do iluminismo, Habermas apenas vêna complexidade um puro problema técnico, uma questãoda esfera da “razão instrumental” e, portanto, indiferenteaos únicos problemas que para ele contam, os da “práxishumana”. Para Luhmann, ao contrário, a complexidadeconstitui o problema central revelado e legado à poste-ridade pela modernidade iluminista, um problema tãoprofundo e estrutural que nunca poderá ser completamente

__________________1 Jürgen Habermas; Niklas Luhmann, Theorie der Gesellschaft

oder Sozialtechnologie – Was leistet die Systemforschung?, Frankfurt,Suhrkamp, 1971, pp. 295-296. Esta passagem encontra-se no iníciodo texto de Luhmann intitulado: “Argumentação sistémica. Umaresposta a Jürgen Habermas”, pp. 291-404.

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“resolvido”. Com efeito, aquilo que é verdadeiramentecomplexo, que representa a “extrema complexidade”, énem mais nem menos do que o “mundo”. Estar-no-mundopara Luhmann é fazer face à constante “pressão dacomplexidade”, e pretender “resolver” definitivamente umtal “problema” equivaleria a sair do mundo e a organizá-lo, ou, melhor dizendo, programá-lo, como um bem-in-tencionado Deus leibniziano, isto é, como o “melhor dosmundos possíveis”. Tal é a versão metafísica da questãodo mundo. Não sendo possível, contudo, a quem “estáno mundo” observar o mundo a partir de uma posição“extramundana”, a única coisa a fazer é tentar limitar osdanos, ou seja, regular ou “reduzir” a complexidade deum mundo que, segundo Luhmann, «desde o terramotode Lisboa», deixou de ser «o melhor dos mundos pos-síveis» para passar a ser «um mundo de muitas melhorespossibilidades»2. Manifestamente, esta situação “pós-ter-ramoto” coloca o homem moderno perante uma novaproblemática do mundo: não se trata apenas de conhecera sua posição ou função num mundo pré-dado ou pre-viamente criado, mas de decidir entre múltiplas “melhorespossibilidades” do mundo. A questão que se põe, e quetentaremos formular, dirá respeito às repercussões destanova situação, inédita consciência do mundo, na reflexãofilosófica a que se dá o nome, na tradição ocidental, defilosofia prática.

A problemática da complexidade do mundo apresentavários níveis. O mais elevado e mais abstracto é, semdúvida, a formulação de um problema pós-metafísico, ouseja que vem ocupar o lugar deixado vago por umametafísica posta em causa na sequência da “revoluçãocopernicana”, de Kant e das sucessivas vagas de “pen-

__________________2 Ibidem, p. 297.

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samento crítico” que esta inicia. Vamos ver que, no pontoem que Luhmann pega na questão da complexidade domundo, ela já não é um terreno inteiramente a desbravar.A problematização pós-metafísica, ou seja pós-kantiana,do mundo levada a cabo pela fenomenologia de Husserlconstitui um ponto de partida que, em nosso entender,se revelará indispensável à reflexão luhmanniana sobre aquestão”– mesmo se, à primeira vista, o construtivismoda teoria dos sistemas parece estar nos antípodas dametodologia fenomenológica da recuperação de uma“experiência original”.

Mas, para além da problemática estritamente filosó-fica e pós-metafísica, há muitos aspectos concretos epalpáveis, na experiência da modernidade, nos quais serevela a “complexidade do mundo”. Um dos principaisé, sem dúvida, a questão da explosão da “informação”,que está ligada ao aumento constante das quantidades desaber e de informação que, na sequência do aparecimentoda imprensa e, mais recentemente, das técnicas electró-nicas de armazenamento, transmissão e produção automá-tica de dados do mundo, se encontram disponíveis. Tambémeste desenvolvimento técnico induziu um importanteaspecto da “complexidade do mundo” na modernidade.Compreende-se, pois, que Luhmann veja no «problemade saber como podem ser tratados blocos terrivelmentecomplexos de informações», um aspecto central da «ques-tão do iluminismo»3. A ideia iluminista de que o aumentoconstante dos saberes tornaria o mundo proporcionalmen-te mais transparente e, em consequência, as decisõestomadas pelos homens mais acertadas e evidentes, reve-lou-se ilusória. Ela ignorou os efeitos entrópicos,

__________________3 Niklas Luhmann, Soziologische Aufklärung 1, Opladen,

Westdeutscher Verlag, 1970, p. 72. O artigo de que é retirada estacitação encontra-se traduzido neste volume.

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desorientadores, do excesso de informação a que sãosubmetidos os sujeitos relativamente isolados e “livres”,não enquadrados por instituições fortes, das sociedadesmodernas.

Todavia, o objectivo do presente trabalho não é fazero inventário de todos os aspectos do problema da com-plexidade na teoria luhmanniana dos sistemas. Uma taltarefa ultrapassaria em muito as dimensões de um simplesartigo. Trata-se, apenas, de mostrar como é que, partindodo problema fenomenológico do “mundo”, que Husserltenta resolver a partir da metáfora do “horizonte” – essainterface entre finitude e infinito – Luhmann vai mais longeao integrar na problemática as duas principais dimensõesda “complexidade do mundo”, o sentido e o tempo, aomesmo tempo que aprofunda, actualiza e coloca ao ser-viço de uma teoria da sociedade moderna estes doisimportantes conceitos, igualmente herdados dofenomenólogo de Freiburgo. A linha de fuga deste tra-balho aponta para a questão da decisão, isto é, para aquestão central da filosofia prática, colocada num mundoda complexidade e da contingência. Mesmo se Luhmannrejeita liminarmente a possibilidade de toda e qualquer“filosofia prática”, em paralelo com a rejeição, no planoteórico, de toda e qualquer “ontologia”, isso não nos deveimpedir de utilizar os resultados das suas análises,conceptuais ou históricas, que considerarmos válidos.

Do ponto de vista de um sujeito ou de um sistema,o mundo é dificilmente tematizável por não ser acessívelna sua totalidade, por não aparecer de uma só vez na suaunidade. Esta dificuldade, à primeira vista de ordemespacial e perspectiva, devida à situação do observadorhumano “no mundo”, é, para Luhmann, acentuada por doisfactores que a tornam mais aguda: o fenómeno do sentido,a semantização do mundo, e a dimensão do tempo, a

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temporalização da experiência. Para além da dimensão doespaço, da pluralidade das coisas, a complexidade domundo terá de ser pensada nas dimensões do sentido edo tempo.

Se a fenomenologia husserliana considera que é osujeito que confere sentido ao mundo, dá sentido às coisas,a Systemtheorie, generalizando e transformando a noçãode sujeito, interessa-se por “sistemas” que “operam comsentido”: “sistemas psíquicos” (consciências) e “sistemassociais”. Só do ponto de vista dos sujeitos ou dos sistemashá mundo e sentido, e deste ponto de vista não há nadano mundo sem sentido. Ora, longe de tornar o mundotransparente, de permitir desvelar as ideias ou os pensa-mentos de um hipotético criador, que estariam por trásdas coisas (versão metafísica do problema do mundo), éjustamente o processo de formação de sentido que tornao mundo “complexo”. Luhmann aprendeu com afenomenologia que a experiência humana está estruturadade tal modo que a intuição presente de uma dada coisa“remete” (verweist) para conteúdos de experiência(Erlebnisse), possíveis e futuros, dessa e de outras coisas.Tudo o que é dado na experiência actual “remete”, demaneira mais ou menos próxima, mais ou menos directa,para tudo o que possa ser dado noutras experiências. Ofenómeno originário do sentido reside nestas remissões.Assim, a diferença fundamental presente numa “experi-ência semântica” (Sinnerfahrung) é a «diferença entre odado actualmente e o possível baseado nesse dado»4. Darsentido ou operar com sentido é extravasar o presente actual

__________________4 «Wir gehen [...] davon aus, daß in aller Sinnerfahrung zunächst

eine Differenz vorliegt, nämlich die Differenz von aktual Gegebenemund auf Grund dieser Gegebenheit Möglichem». IDEM, Soziale Systeme,Frankfurt, Suhrkamp, 1987, 5ª ed., 1994, p. 111.

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e o que nele é dado, relacionar o dado com o não dado,abrir o campo das vivências e, por conseguinte, tambémdas acções possíveis. O mundo torna-se “complexo” devidoa este processo de constituição de sentido, de semantização,o qual é também, necessariamente, uma experiência dotempo e da contingência – o presente é constantementeprojectado num futuro expectado, aberto a muitos pos-síveis. Sentido, tempo e contingência são os três elemen-tos constituintes da complexidade do mundo.

Tal como a vivência do tempo, a inapeláveltemporalização da experiência, o fenómeno dasemantização, com a qual, aliás, coincide, apresenta umduplo aspecto: por um lado, é explosivo, destrutivo e,enquanto tal, incontrolável e dissolvente; por outro,construtivo, criador de novidade e diferença. Na medidaem que tudo “remete” para tudo, a experiência semânticado mundo é proliferante, «o fenómeno do sentido é vividocomo um excedente de remissões (Überschuß vonVerwseisungen)»5 cujo correlato é a «infinita abertura domundo»6 e do tempo. Se o aparecimento do sentidorepresenta, para os sistemas que o vão usar (consciênciase sistemas sociais), uma «conquista da evolução»7, sema qual, como pensa Luhmann, não existiriam, o passo emcausa é de algum modo uma prenda envenenada. Ditoisto, o remédio possível do mal, do “excesso” semântico,só pode vir do próprio sentido, o qual, como escreveLuhmann, «serve para o registo e regulação da comple-xidade do mundo»8. Tal como na fenomenologia, paraLuhmann, sentido e mundo são as duas superfíciesinseparáveis da experiência. A mais ínfima parcela do

__________________5 Ibidem, p. 93.6 Ibidem, p. 96.7 Ibidem, p. 92.8 Ibidem, p. 94.

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mundo tem sentido; o sentido que conta é mundano.Todavia, a metáfora das “superfícies” talvez não seja amais apropriada; a relação entre mundo e sentido não éespecular ou mimética mas, por assim dizer, em quiasma.Como já acontecia na fenomenologia, o mundo ofereceao sentido proliferante a perspectiva de uma “unidade”e, portanto, um possível remédio para o mal do “exce-dente” semântico. «Um sentido remete para outro, paramais sentido. O fechamento circular destas remissões(Verweisungen) aparece na sua unidade como últimohorizonte de todo o sentido: como mundo»9. O mundopromete, portanto, a unidade de todas as Verweisungensemânticas, só que esta unidade é, por seu turno, pro-blemática, visto que o mundo é aberto e a experiênciahumana, que a fenomenologia tematiza, finita. Como lidarcom o infinito a partir do finito? Tal é o problema queHusserl formula a partir da metáfora do “horizonte” – quedesigna uma interface entre finito e infinito – e que seráherdado pela teoria luhmanniana dos sistemas. Nestaperspectiva, o objectivo teórico de Luhmann seria o dedesenvolver um conceito de “sistema” susceptível deresolver os problemas de um “sentido” e de um “mundo”que uma fenomenologia da consciência e do sujeitotranscendental tornou visíveis na “metáfora do horizonte”,como diz Luhmann, mas não foi capaz de resolver. Nãoé por mero acaso que este problema se torna mais agudonuma “sociedade de sistemas funcionais”, um modelo socialque se realiza historicamente, segundo Luhmann, nasociedade ocidental moderna. Com efeito, a “diferenci-ação” dos sistemas na modernidade seria a prova de quea sociedade deixou de se conceber a si própria comomimesis (Abbildung) da ordem do mundo e da sua comple-

__________________9 Ibidem, p. 105.

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xidade10 – modelo que ainda seria o da “correlatividade”fenomenológica. A “sociedade moderna” produz umaordem sem referência ontológica. A hipertrofia semân-tica e hermenêutica da cultura tardo-moderna – “nãohá factos, só há interpretações” (Nietzsche) – é dissoum sintoma.

O mesmo problema de um “excesso” de possíveis,surgidos na constituição do sentido, também pode ser postoem evidência a partir de uma análise da temporalização,e consequente modalização, da experiência. É nestaperspectiva que a “complexidade do mundo” começa porser analisada, num texto programático central do fim dosanos 60, como “problema para os sistemas”. O mundoé “complexo”, não por ser constituído por muitas coisas,por ser uma universitas rerum, que seria necessário or-denar e combinar, mas por ser constituído por elementostemporais, por acontecimentos, dispostos nessa dimensãoque nunca está fechada, o tempo, e se abre a cada instantesobre novos possíveis.

«O mundo torna-se um problema, não do ponto de vistado ser, mas do ponto de vista da sua complexidade. Porcomplexidade deve-se entender [...] a totalidade dosacontecimentos possíveis. [...] O conceito de complexi-dade designa sempre uma relação entre sistema e mundo,nunca um estado ontológico (Seinszustand)»11

Que o mundo não seja um “problema do ponto devista do ser” significa, em primeiro lugar, que, tal comopara a fenomenologia, para a Systemtheorie deixou de secolocar a questão ontológica ou metafísica da origem domundo – “pourquoi y a-t-il quelque chose plutôt que rien?”

__________________10 Ibidem, p. 602.11 IDEM, Soziologische Aufklärung 1, op. cit., p. 115.

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(Leibniz) –, mesmo sob a sua forma moderna do cálculodo “melhor dos mundos possíveis”, da melhor organizaçãodos seres dentro da totalidade fechada do mundo, naperspectiva de um “arquitecto”, de um “relojoeiro” ou,como se diria hoje, de um programador do sistema-mundo.Para a Systemtheorie, tal é o seu primeiro axioma, o mundonão é um sistema12, mas o Komplexitätsdruck, a «pressãoda complexidade»13, o «problema dos sistemas»14, acontingência, a pura negatividade que leva à formação desistemas e às suas operações.

Em segundo lugar, que o mundo deixe de ser vistocomo um problema do ponto de vista do ser, tambémsignifica que o problema fundamental que o mundo colocaaos sistemas não é o da existência do mundo ou dospróprios sistemas, do “perseverar no seu ser” (conatus insuo esse perseverare, Espinoza), da sua Selbsterhaltung.Dito de maneira simples: tal como na fenomenologia deHusserl o problema do sujeito transcendental não é a suamorte (o ego transcendental é “imortal”), mas a consti-tuição semanticamente coerente da experiência, na teorialuhmanniana o problema que o mundo representa para ossistemas que operam com sentido não é primordialmenteo problema da duração de uma estrutura física ou “ideal”(como, por exemplo, as “normas puras” na teoria jurídicade Kelsen) no tempo, mas o da organização de uma ordemou forma temporal susceptível de diferenciação e trans-formação. Enquanto que em Husserl a solução passavapelo recurso ao apriorismo eidético, às idealidades e

__________________12 «O mundo não pode ser entendido como sistema, visto que

não tem nenhum “exterior” por oposição ao qual possa ser delimi-tado». Ibidem.

13 IDEM, Soziale Systeme, op. cit., p. 602.14 N. Luhmann, J. Habermas, Theorie der Gesellschaft oder

Sozialtechnologie, op. cit., p. 300.

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essências intemporais ou omnitemporais (Allzeitlichkeit), àtranscendentalidade do sujeito e à constituição de identidadesestáveis no “mundo da vida”, numa palavra, à constituiçãodo tempo a partir de enquadramentos exteriores ao tempo(Blumenberg fala de um “platonismo dinâmico”), no pen-samento de Luhmann a ordem é imanente ao próprio fluxotemporal, estando os próprios enquadramentos temporais(estruturas) sujeitos ao tempo e à contingência.

É, pois, no carácter radicalmente temporal da ordema constituir que reside o passo suplementar da teoria dossistemas relativamente à abordagem do mundo dafenomenologia transcendental clássica. Nesta última, afenomenalidade do fenómeno, em particular a constituiçãode identidades no campo da percepção, constitui uma baseontológica, um “solo”, uma “origem” que garante arealidade do mundo. Na Systemtheorie, o facto de oselementos do mundo não serem coisas ou objectos mas“acontecimentos” tem um efeito a que Luhmann chamaDe-ontologisierung (des-ontologização), o qual vemmodificar bastante e, sem dúvida, complicar, aquilo queera o problema do mundo para o sujeito fenomenológico.Na fenomenologia clássica, pode-se dizer que, pelo menosao nível da proximidade, o mundo é estabilizadoontologicamente; tal é o objectivo perseguido por Husserlcom o famoso conceito de Lebenswelt, “mundo da vida”,que visa dar um “solo” a toda e qualquer experiênciamundana, com base na constituição de identidades de últimainstância na esfera da percepção. Na perspectiva deLuhmann, a De-ontologisierung faz com que o sistema,que assume o lugar do sujeito constituinte dafenomenologia, não possa dispor de um “solo”, de umaterra firme ontológica, de identidades reificadas comduração no tempo; a identidade a construir é a do “acon-tecimento”, ou seja, a identidade de um instante que tem

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de ser constituída numa série temporal, a partir de umadiferenciação, de acontecimentos posteriores recorrentes,que o repetem, relembram, mas são outros. Se quisermosprolongar a metáfora husserliana do “solo”, que garanteao sujeito uma identidade em cada um dos seus lugares,poderemos dizer que na perspectiva do sistemaluhmanniano a tarefa passa a ser como que a construçãode uma embarcação em pleno mar.

Mas também no que toca ao “mar”, Husserl deixouum legado frutuoso que, ao contrário da ideia do “solo”,será retomado por Luhmann. Num mundo assim conce-bido, a “consciência”, tal como é pensada pelofenomenólogo alemão, como fluxo temporal de actos,fornece o modelo paradigmático de um sistema «cons-tituído exclusivamente por acontecimentos, ou seja porelementos que com o seu aparecimento desaparecemimediatamente». «Os elementos da consciência [a queLuhmann chama “pensamentos” e Husserl “actos inten-cionais”] são obtidos a partir de elementos da consciên-cia»15. O principal problema de um tal sistema não residefundamentalmente no risco de desaparecimento ou de mortepor desagregação de uma estrutura fixa, em última análisede ordem física, que lhe serve de substrato. Todavia, énesta perspectiva estreita que Jürgen Habermas desenvol-ve o essencial da sua crítica à teoria dos sistemas. Elaconsiste em reduzir toda a problemática do mundo e dasua complexidade, todos os “problemas” dos sistemas, aoúnico e simples problema da Selbsterhaltung, da sobre-vivência de cada sistema no interior do sistema-mundo16.

__________________15 N. Luhmann, “Die Autopoiesis des Bewußtseins”, in Soziale

Welt, p. 403.16 J. Habermas, “Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie?

Eine Auseinandersetzung mit Niklas Luhmann”, in J. Habermas; N.Luhmann, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie, pp. 147 ss.

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A partir daqui é muito fácil “criticar” globalmente aSystemtheorie como uma “tecnologia social”(Sozialtechnologie) ao serviço do Mal, que, na perspectivada moral da escola de Frankfurt, tem por nome “razãoinstrumental”.

Esta crítica é bastante injusta e injustificada, não sóporque ignora a problemática de fundo, da complexidade,mas porque, com as metáforas do “instrumental” e da“tecnologia” imputa à teoria luhmanniana dos sistemas umavisão mecanicista do mundo que, na linha do tecnicismode Helmut Schelski (o sociólogo alemão que, nos anos60, orientou os primeiros passos da carreira académicade Luhmann), proporia soluções “técnicas” tidas comoúnicas, necessárias e definitivas, para os problemas dasociedade moderna. Acontece que a teoria luhmannianados sistemas, ao sublinhar, antes de mais, a complexidadee a contingência do mundo, está nos antípodas de umadoutrina mecanicista ou necessitarista.

Para Luhmann, o “problema” mais interessante decada sistema não é o da sua Selbsterhaltung mas, antesde mais, a necessidade de produzir a cada instante novosacontecimentos, ou seja, seleccionar entre todos os acon-tecimentos possíveis, nesse instante, uma pura vivência(Erleben), isto é, em linguagem husserliana, um “acto daconsciência”, ou uma acção. A “complexidade do mundo”reside, assim, na dimensão do tempo. Um sistema queopera com sentido, e que está sujeito ao tempo, concebeconstantemente o mundo como um “mundo de possibi-lidades” de “viver” (erleben) e de agir, projectadas nofuturo. Sendo a “complexidade” do mundo a “totalidadedos acontecimentos possíveis”, o “problema” a resolverpor tais sistemas consiste em “reduzir a complexidade”,reduzir as possibilidades do acontecer ou, dito de outramaneira, preencher e regularizar o tempo com conteúdos

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minimamente pré-determinados por regras que limitem acontingência absoluta do acontecer. Numa palavra: trata-se de seleccionar possíveis, de decidir.

Na perspectiva de uma filosofia da cultura damodernidade, a teoria luhmanniana dos sistemas traduzà sua maneira a situação do homem moderno. Na sequên-cia da “perca do mundo” (como diz Hannah Arendt), e,portanto, da possibilidade de ocupar um “lugar natural”num cosmos primordialmente espacial, em que o tempoé, apenas, a pura dimensão vazia onde se desenrolamteleologias, o problema do sujeito moderno põe-se emtermos de decisões absolutas, de escolhas fundamentais,de estruturação de uma vida num tempo desancorado, semreferências ontológicas evidentes. Já não se escapa ao tempopensando na perspectiva de uma eternidade. O máximoque se pode esperar nem sequer é a estabilização de ummovimento mecânico, mas o esforço de produzir novosactos que constituam cada instante.

Do ponto de vista dos sistemas, ser-no-mundo sig-nifica, primordialmente, estar sujeito à “pressão da com-plexidade”, ou seja, à multiplicidade dos possíveis e aoimperativo da sua selecção. Cada selecção representa umaredução da complexidade; cada acto elimina as restantespossibilidades. Além disso, as selecções formam sériesencadeadas de acontecimentos que restringem opçõesfuturas. Os sistemas, de que são exemplo as consciências,«acumulam uma história»17. Cada operação do sistema fazreferência, de determinada maneira, às anteriores – cha-ma-se a este traço essencial dos sistemas semânticos etemporais “auto-referência”. Quanto mais história umsistema acumula, quanto mais avança na vida, mais pos-sibilidades e potencialidades elimina, mais reduz a sua

__________________17 N. Luhmann, “Die Autopoiesis des Bewußtseins”, in Soziale

Welt, Vol. 35, 1985, p. 403.

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complexidade (e, no reverso da medalha, mais problemá-ticas se tornam as suas decisões). Neste sentido, os sis-temas representam no mundo, como diz Luhmann, «ilhasde menor complexidade»18. A metáfora da “ilha” não deveser entendida, porém, como um isolamento hermético dosistema em relação ao mundo, como se fosse possívelsuspender a omnipresente “pressão da complexidade” quedele emana. Não é. Justamente por ter por correlato a“complexidade do mundo”, a “totalidade dos acontecimen-tos” e, finalmente, o tempo, os sistemas não se podemrefugiar numa espécie de autismo. Põe-se aqui um pro-blema semelhante ao da “imanência” da consciência emHusserl – a qual levaria, de acordo com os críticos, auma perca do mundo –, que Luhmann resolve, de certomodo, à maneira de Merleau-Ponty: a “auto-referência”não exclui, antes implica, a “hetero-referência”, a refe-rência ao mundo, a começar pela perspectiva do mundoque se perfila do ponto de vista do sistema, aquilo a queLuhmann chama Umwelt, mundo circundante ou mundo-ambiente – que vem ocupar o lugar da Lebenswelt deHusserl, embora não sendo, obviamente, um “solo” masapenas o correlato funcional do sistema. O sistema en-contra na respectiva Umwelt os materiais e conteúdosnecessários para a sua renovação. A “história” de umsistema exige, portanto, uma entrosagem constante entreauto-referência e hetero-referência.

Resta que, à semelhança do que acontece nafenomenologia, a diferença ou correlação System/Umwelt(sistema/mundo circundante) não resolve o problema domundo, Welt, como “complexidade extrema” (äußersteKomplexität), o qual pretende ser mais que uma simplesUmwelt, visto que afirma, como veremos, conferir uma

__________________18 IDEM, Soziologische Aufklärung 1, op. cit., p. 116.

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“unidade” aos mundos circundantes ou ambientes(Umwelten). E não resolve, além disso, o problema a quepoderíamos chamar da “decisão”, que se coloca quer aossujeitos quer aos sistemas num mundo semantizado etemporalizado feito de múltiplas possibilidades. Na dis-cussão com Habermas, em 1970, Luhmann chamou àcolação, não por acaso, um acontecimento natural ehistórico para tornar simbolicamente visível este aspectoda problemática da complexidade:

«Como sabemos desde o terramoto de Lisboa, nãovivemos no melhor dos mundos possíveis, mas nummundo cheio de melhores possibilidades. As questõescolocam-se, desde então, de outra maneira – de umamaneira que, mesmo a filosofia, ainda não ponderousuficientemente»19

À primeira vista, esta crítica da “filosofia” podeparecer algo injusta. Pense-se, por exemplo na antropo-logia filosófica alemã da primeira metade do século XX.A menos que o “ainda não suficiente” queira apenassublinhar que a teoria luhmanniana dos sistemas pretendedar um passo decisivo na situação pós-terramoto ou pós-leibniziana. Evocaremos brevemente, no âmbito destareferida tradição filosófica antropológica, duas respostasà questão da “decisão” que, como veremos, apresentamvários pontos comuns com Luhmann na análise dospressupostos, para tentar ver o que acrescenta, ou o quediferencia, a Systemtheorie.

A primeira dessas respostas, mais especificamentefilosófica, é a “analítica do Dasein” do primeiro Heidegger;a segunda, de certo modo simétrica da primeira e de carácter

__________________19 IDEM, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie, op.

cit., p. 297.

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mais antropológico e sociológico, é a teoria das institui-ções de Arnold Gehlen.

Vários traços distintivos do modo de ser dos “sis-temas” já se encontram na descrição heideggeriana doDasein levada a cabo em Sein und Zeit (1927). Sempretendermos ser exaustivos, basta lembrar a auto-refe-rência, o enfoque na dimensão do tempo, a modalizaçãodo “ser” (ou seja, a interferência constante dos possíveisfuturos no presente actual) por oposição à ontologiatradicional, a orientação da análise para o acontecimentoe não para o objecto. A “diferença ontológica” entre “ser”e “ente”, o carácter verbal e temporal, isto é, não subs-tancial, do “ser” heideggeriano levam a uma Destruktionder Ontologie que corresponde em boa parte, abstracçãofeita dos métodos e objectivos doutrinais, ao gesto da De-ontologisierung de Luhmann. Como quer que seja, tam-bém o imperativo luhmanniano da “selecção”, universal-mente imposto aos “sistemas”, a necessidade de decisão,tem o seu análogo na “analítica existencial” de Heidegger.

Todos estes traços são bem visíveis na estruturanuclear do Dasein que é o Zu-sein, o «ter-de-ser»20. ODasein é o «ente para o qual, aquilo que está constan-temente em causa é, a cada instante, o seu próprio ser».Mesmo se na sua actividade habitual o Dasein estásobretudo ocupado e preocupado com as coisas queencontra no mundo que o rodeia – na sua Umwelt –, comas quais tem uma relação primordialmente instrumentale manual (a maior parte das coisas são vistas no mododo Zeug, do utensílio), ele tem sempre presente umaordenação do seu tempo, da sua vida, no seu “modo deser”. Também aqui, auto-referência e hetero-referência são

__________________20 Todas as citações que se seguem de Heidegger remetem para

Sein und Zeit (1927), Tübingen, Max Niemeyer, 1978, § 9, pp. 41-43.

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complementares. Um tal ente, o Dasein, não é susceptívelde ser fixado num conjunto de “propriedades” objectivasprovisoriamente resistentes à corrupção do tempo, comoum simples objecto, nem integrado numa taxinomia degéneros e de espécies (como “animal” e “animal racio-nal”). A relação original a si, auto-referência, abre “a cadainstante, para ele”, uma multiplicidade de “possíveis modosde ser” (je ihm mögliche Weisen zu sein). Nesta situaçãofáctica, o Dasein só pode “ser” por ter-de-ser, ou seja,encontra-se submetido à situação inescapável da escolha,ou, como dirá Luhmann em termos sistémicos, da “se-lecção” dos possíveis.

A solução perspectivada por Heidegger para o pro-blema da proliferação dos possíveis, e correspondentenecessidade de uma estabilização da contingência tempo-ral, é existencial ou “ética”, no sentido lato deste termo.Consiste na procura de uma pretendida “possibilidadeprópria” (je eigene Möglichkeit) de cada existência. Umatal solução corresponde ao programa de uma “filosofiaprática” por assim dizer renovada, ou seja, elaborada àluz dos instrumentos da hermenêutica moderna, na era dasemantização da experiência. Com efeito, não se trata,agora, e apenas, de encontrar a “melhor possibilidade” naperspectiva de uma phronesis que faria o balanço dasituação num mundo contingente (como acontece na “ética”ou filosofia prática de Aristóteles), mas de hierarquizaro sentido com vista à fixação de uma Bedeutsamkeit, deum sentido significativo, que conte realmente. O duploproblema do excesso de sentido e do excesso de possíveisdo mundo é resolvido por uma hermenêutica existencial.

Se a descoberta da “complexidade do mundo” já éfeita pela analítica existencial de Heidegger, as soluçõesque esta apresenta não podem ser aceites por uma teoriasociológica ou antropológica, por assim dizer, realista. Os

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problemas do excesso de informação, de sentido e depossibilidades não se resolvem à maneira da filosofiaprática, através de uma phronesis que determina a “melhorpossibilidade” (Aristóteles) ou a “possibilidade autêntica”(Heidegger), mas por técnicas sociais que transcendem aperspectiva do sujeito ou do Dasein. Estas técnicas nãovisam encontrar a melhor possibilidade, ou o sentido maispróximo da verdade do “ser”, mas, mais profanamente,reduzir o excesso de possibilidades, limitar os efeitosnegativos da contingência e da modalização da experi-ência que caracterizam a modernidade.

Um projecto deste tipo é o da teoria das instituiçõesde Arnold Gehlen. O ponto de partida da antropologiadeste autor é a ideia do homem como “ser deficitário”(Mangelwesen). Este défice não diz apenas respeito à faltade órgãos especializados, adaptados ao meio (garras, pêlo,etc.), mas sobretudo a uma falta de programação docomportamento através do instinto. Se a essência da técnicareside na especialização das funções orgânicas e naampliação da força e capacidades de órgãos fracos,deficientes e não especializados – os instrumentos, fer-ramentas e aparelhos técnicos são, para Gehlen, prolon-gamentos ou próteses do corpo –, aquilo que vem com-pensar a desorientação do agir resultante da falta de instintosão as “instituições” da sociedade humana, as quaisconferem ao agir dos homens um enquadramento e umaforma, canalizam as acções dos homens para procedimen-tos estruturados. Tanto a técnica mecânica como a ins-tituição, técnica social, têm uma função caracterizada porGehlen com a categoria central da sua antropologia: ambasconstituem uma Entlastung, um imenso alívio, uma fa-cilitação das tarefas mundanas; ambas contribuem pararetirar o peso (Last) do mundo dos ombros do animal

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deficitário. No caso da técnica, o peso retirado é literalmentefísico. No caso das instituições, elas são uma Entlastung,um alívio das faculdades que sustentam as decisõeshumanas; dispensam o sujeito agente de equacionar in-tegralmente, a cada instante, uma infinidade de dados(passados e presentes) e de possíveis (futuros). Mesmose não fazem de todas as decisões puros procedimentosrotineiros ou automatismos, reduzem os possíveis aomínimo, amiúde a uma pura alternativa, ou seja, numapalavra, como dirá Luhmann, “reduzem a complexidadedo mundo”.

Tal como Luhmann, já Gehlen considerava (emtrabalhos que remontam aos anos 40) que os problemascentrais, sociais e culturais, da modernidade derivam daWeltoffenheit, da “abertura” do mundo que ela, se nãorevelou, pelo menos acentuou bastante21. Esta aberturasignifica, para o homem moderno, um aumento quanti-tativo da informação e a multiplicação das “interpreta-ções” da experiência, decorrentes do papel acrescido da

__________________21 Este conceito é estudado e largamente utilizado na principal

obra de Gehlen, Der Mensch. Seine Natur und seine Stellung in derWelt, publicada em 1940 em Berlim. A Weltoffenheit surgiu e tornou-se corrente no âmbito da antropologia filosófica alemã dos anos 20.Ver, por exemplo, a explicação do conceito em Max Scheler, DieStellung des Menschen im Kosmos, (1928), Berna, A. Francke, 10ªedição, 1983, pp. 38-39. O conceito começa por ser puramenteantropológico, ou seja, é traço distintivo do homem em relação ao“animal”. Como dizem Scheler e Heidegger, nos anos 20, o homemdistingue-se do animal por “ter um mundo”. Mas um conceito quecomeça por ser puramente antropológico terá uma aplicação históricaou “epocal”: a ciência, a técnica e os meios de informação modernosdão à “abertura do mundo” uma dimensão tal que o homem, o enteque protagoniza essa abertura mas que é finito, deixa de estar à alturado desafio; a modernidade poria, assim, a nu uma contradição quejá estaria contida na essência mundana do homem tal como ela épensada pela antropologia filosófica.

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linguagem (a modernidade tende para uma inflação her-menêutica, para uma cultura das interpretações). Aconteceque o aumento considerável da complexidadepercepcionada pelos sujeitos entra em discrepância coma sua capacidade de tratarem essa complexidade ao níveldo agir. A Weltoffenheit provoca um desequilíbrio entrea complexidade apreendida no mundo e a complexidadeoperativamente dominada. Gehlen duvidava que mesmoas instituições conseguissem atenuar esta discrepância.Assim, o homem moderno teria cada vez mais de agirno escuro, estaria submetido à pressão crescente deimperativos de agir, de tomar decisões em situaçõeshipercomplexas que não domina. Decorre desta dúvida umcerto pessimismo cultural da parte de Gehlen, que con-sidera, por um lado, que as decisões tomadas em taissituações são arriscadas e, por outro, que ahipercomplexidade do mundo acaba por motivar reacçõesde hipersimplificação, que já estariam patentes na culturade massa da modernidade tardia, desprovida de sensibi-lidade e verdadeira beleza22.

Como nota Habermas, com toda a razão, «a “reduçãoda complexidade” em Luhmann corresponde à categoriado alívio (Entlastung) em Gehlen»23. O próprio Luhmannreconhece esta herança, quando escreve que, em vez de«processos de redução do excesso de complexidade»,«também se poderia falar, com Arnold Gehlen [...], de“Entlastung” (alívio) da complexidade; mas, neste caso,seria necessário acrescentar: alívio da complexidade dopróprio projecto»24.

__________________22 Esta crítica cultural aparece sobretudo no livro Die Seele im

technischen Zeitalter, Hamburgo, Rohwolt, 1957.23 J. Habermas, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie,

op. cit., p. 157.24 N. Luhmann, Soziologische Aufklärung 1, op. cit., pp. 115 e 131.

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Mas apesar de partir de uma intuição próxima deGehlen, Luhmann não cai no pessimismo cultural deste,na medida em que considera que os elementos constitu-intes da sociedade moderna, os “sistemas funcionais”, sãobem mais flexíveis e fortes para resistirem à “comple-xidade” ou “abertura” do mundo do que as instituições.Na Systemtheorie, os sistemas sociais vêm ocupar o lugardas instituições de Gehlen na função de “reduzir a com-plexidade” do mundo. Tal como estas, os sistemas sociaistêm uma função de orientação, de pilotagem (Steuerung)das acções dos homens. Do ponto de vista do mundo,o que representa a “complexidade extrema” (äußersteKomplexität), ou seja, o conjunto das puras possibilidadeslógicas e físicas de ocorrência de acontecimentos, numdado momento numa dada situação, é a possibilidade deuma infinidade de selecções de pensamentos, experiênciasou acções. A instituição ou o sistema limitam estaspossibilidades a acções que fazem sentido, ou seja, “re-duzem a complexidade”, constituindo, assim, no mundo,quer a instituição quer o sistema, dentro dos seus limites,«ilhas de menor complexidade»25.

A maior flexibilidade do sistema luhmanniano rela-tivamente à instituição deve-se em grande parte àsemantização e à temporalização da experiência queLuhmann herdou na sua recepção da fenomenologia deHusserl. A rigidez da instituição deve-se à sua natureza,por assim dizer, semi-física. Um dos casos talvez maisparadigmáticos, o Estado moderno, define-se, entre outrascoisas, por um território físico (geográfico) e por umconjunto de membros (cidadãos) fisicamente determina-dos. Por esse motivo, as instituições padecem de umfenómeno comparável à morte dos organismos. Luhmann

__________________25 Ibidem, p. 116.

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insiste, pois, na sua discussão com Habermas – que con-sidera um “problema” o facto de os sistemas sociais nãoapresentarem fronteiras físicas! – no facto de as fronteirasentre sistemas serem de ordem puramente «semântica»26.Mas a diferença decisiva entre instituição e sistema está,sem dúvida, na respectiva relação ao tempo. As instituiçõesopõem à mudança temporal invariantes e a prioris estru-turais, finalidades teleológicas, normas intemporais deenquadramento das acções (Kelsen) – numa palavra: formasatemporais. Sem excluir o recurso a tais formas, os sistemasluhmannianos submetem-nas ao tempo. Dito de outro modo:a auto-referência dos sistemas faz com que as formasestruturais sejam, a cada instante, reflectidas. A consequênciadisto é a contingência das estruturas aparentemente maiscristalizadas ou “necessárias”.

Voltando à questão da “complexidade do mundo”,pode-se, assim, dizer que semantização e temporalizaçãosão os seus dois eixos fundamentais de referência. Atemporalização abre sobre uma série ilimitada de acon-tecimentos, cuja “totalidade” é o mundo. Paralelamente,a semantização abre sobre um número ilimitado deVerweisungen (remissões), de possibilidades de vivênciase acções. Perante um tal conceito de “mundo” colocam-se duas questões, de certo modo ligadas, ou mesmocomplementares: Como lidar com o infinito? Como con-ceber a unidade do mundo?

Também para responder a estas questões Luhmannvai recorrer a conceitos husserlianos centrais, que lhes dãoum início de resposta e que, em seguida, vão ser traba-lhados ou «forçados»27 no sentido da Systemtheorie. Trata-

__________________26 IDEM, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie, op.

cit., p. 300.27 Como diz o próprio Luhmann a propósito do conceito

husserliano de “horizonte”, Ibidem, p. 301.

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se, neste caso, dos conceitos de mundo e de horizonte.O conceito de horizonte já serviu a Husserl para rebateruma ontologia naturalista do mundo, em que este é sim-plesmente pensado como uma universitas rerum. O te-órico dos sistemas acompanha nesta causa o fenomenólogode Freiburgo. Nenhum ser finito pode ter uma experiênciaactual da “totalidade”. Todavia, o não dado, e não actual,do mundo anuncia-se, a cada instante e em toda a parte,na experiência sui generis de um “horizonte” que podeser transcendido. «O conceito de horizonte exprime bema idiossincrasia (Eigenart) do mundo humano de remeterpara o infinito e, apesar disso, mostrar-se finito e doadorde sentido»28. O horizonte «mostra um fim e um plusultra»29, constitui, como se diria numa metáfora actual,uma interface entre o finito e o infinito. Do ponto de vistado sujeito husserliano, o horizonte apela a uma tarefa de“transcender” cada horizonte, sendo esse movimentocoincidente com a “auto-constituição” da temporalidadeda consciência. Desta forma seria possível conferir uni-dade ao mundo e dominar o infinito. Enquanto a unidadedo mundo seria assegurada pelo sujeito transcendental,extramundano mas “constituinte” do mundo, a continui-dade da experiência do mundo é assegurada, no últimoHusserl, por um “solo” (Lebenswelt), que garante a pertençaa um mesmo mundo de toda a experiência e, por con-seguinte, de todo o “transcender” de horizonte. Tudo istosão meios para articular o infinito do mundo e do sujeitocom a finitude da experiência.

Ora, para Luhmann, nenhuma destas condições da“unidade” do mundo é admissível. O sujeito transcendental,extramundano, não o é. No lugar do sujeito: os sistemas__________________

28 IDEM, Soziologische Aufklärung 1, op. cit., p. 115.29 «Der Horizont zeigt ein Ende und ein Darüberhinaus», IDEM,

Soziale Systeme, op. cit., p. 283.

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são realidades do mundo, produzem acontecimentos nomundo. O sistema não é “extramundano”, transcendental,mas, simplesmente, uma «auto-descrição do mundo nomundo»30. Por seu turno, o carácter de “solo” do mundoda vida seria um último resto de “ontologia”, um últimovinculum substantiale, e não escapa, portanto, ao princípiode De-ontologierung, de «des-ontologização»31.

Luhmann é, assim, obrigado a «forçar a compreen-são husserliana de horizonte, descrevendo o mundo comotranscendibilidade e substituibilidade (contingência) detodos os horizontes»32. A doação, a continuidade domovimento do transcender, a simples percepção, o mundoda vida na sua função de “solo” não são garantes da unidadedo mundo e de um tratamento de uma “complexidade”resultante da dissolução das coisas em “acontecimentos”,da abertura do mundo a um infinito de “possibilidades”.Em consequência, Luhmann alarga a metáfora husserlianado horizonte para nela integrar a semantização e atemporalização como princípios de “selecção” ou, sequisermos, de “construção” do mundo. O primado dapercepção ou, mais propriamente, da doação impede afenomenologia de ir tão longe.

Sem dúvida que a unidade do mundo já é, nafenomenologia husserliana, essencialmente semântica: jápara a fenomenologia o mundo não é uma universitas rerummas um Verweisungszusammenhang, um complexo deremissões entre coisas, vistas ou matizes (Abschattungen)das coisas, experiências vividas (Erlebnisse). Estas remis-

__________________30 Ibidem, p. 105.31 Sobre a crítica do conceito de Lebenswelt, cf. Niklas Luhmann,

“Die Lebenswelt – nach Rücksprache mit Phänomenologen”, in Archivfür Rechts- und Sozialphilosophie, Vol. 72, Wiesbaden, 1976, pp. 177-193.

32 IDEM, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie, op.cit., p. 301. Sublinhado por JMS.

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sões formam, por assim dizer, a substância do sentido.Luhmann é um fiel intérprete de Husserl, quando escreveque todo «o sentido remete para um novo sentido» e que«o fechamento circular destas remissões aparece na suaunidade como último horizonte de todo o sentido, ou sejacomo mundo»33. O mundo começa, pois, por ser a unidadede todo o sentido, mas uma unidade por assim dizerdemasiado amorfa, indeterminada. Não há nada no mundoque não seja do mundo ou não tenha sentido, que nãoseja abrangido por essa unidade. Mas o sentido só porsi não chega para “reduzir a complexidade”, mesmo seLuhmann já o considera uma grande «conquista da evo-lução» e, para a teoria, «o conceito fundamental dasociologia»34. Para a tarefa da redução são necessários“media” ou “sistemas” que efectuem as selecções no tempo,ordenem o fluxo dos acontecimentos. Os “sistemas” queoperam com sentido surgem para ordenar no tempoacontecimentos possíveis, induzir uma ordem que, sem sernecessária (no sentido do determinismo), constitui umacomplexidade temporal muito mais reduzida do que a queseria de esperar a partir da pura “possibilidade lógica”.Para tal, aquilo que os sistemas fazem é criar “fronteirassemânticas” (Sinngrenzen) entre acontecimentos, vivênciasou acções possíveis. É neste sentido que o conceitohusserliano de horizonte é objecto de um alargamento:a linha do horizonte não marca apenas uma fronteira entreum definido hic et nunc (dado na intuição) e um inde-finido transcendente (intenção de actualizações de con-teúdos possíveis), mas, sobretudo, uma “fronteira semân-tica” (Sinngrenze) entre sistemas35. Um mesmo objecto,

__________________33 IDEM, Soziale Systeme, op. cit., p. 105.34 IDEM, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie, op.

cit., p. 25.35 Ibidem, p. 300.

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suponhamos um quadro de um pintor famoso, pode serfruído pela sua beleza, tendo então lugar uma experiênciapossibilitada pelo sistema da arte, ou encarado como umbom investimento, e comprado, numa acção que tem lugarno âmbito do sistema da economia. Cada sistema“percepciona e reduz” a complexidade do mundo à suamaneira, de acordo com um código binário próprio (belo/feio, no sistema da arte; detentor de “valor de troca”/semvalor, ou com valor negativo, no sistema económico, enos outros sistemas da mesma maneira com os respectivoscódigos).

Cada sistema é uma perspectiva semântica sobre omundo, dá sentido a tudo e fornece orientação (ou um“alívio”, uma Entlastung, como diria Gehlen), graças aocódigo, para a “selecção” dos possíveis. Ao mesmo tempo,existe uma equivalência funcional entre sistemas, visto quetodos contribuem para reduzir a complexidade do mundo.É como se a complexidade do mundo tivesse de ser atacadapor vários lados, o que explicaria, ao nível da “evoluçãohistórica”, a “diferenciação” (Ausdifferenzierung) e amultiplicação dos sistemas sociais que faz com que asociedade moderna seja caracterizada por Luhmann comouma sociedade dos sistemas funcionais. Como quer queseja, a Systemtheorie aparece armada de um formalismomais potente do que a fenomenologia no tratamento daquestão do infinito – e é neste sentido que Luhmann afirma“forçar” Husserl ao reformular o conceito de “horizonte”.Ou seja, a continuidade do sensível, o phainestai dos“fenómenos”, deixa de ser o fio ontológico condutor; éneste sentido que todos os horizontes semânticos (fron-teiras dos sistemas) são “substituíveis” e “contingentes”.Nesta perspectiva, na sua relação à fenomenologia, a teorialuhmanniana dos sistemas aparece um pouco como asgeometrias de n-dimensões em relação a Euclides.

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Resta saber o que se ganha com esta generalização.Ela vai, sem dúvida, no sentido daquilo a que Luhmannchama “des-ontologização” (De-ontologisierung) e apre-senta, como tal, uma vantagem descritiva relativamenteaos aspectos da experiência moderna caracterizados comosemantização e temporalização. Os “horizontes” da ex-periência moderna são de facto semânticos – o problemado homem moderno, na sequência da perca de um mundofechado e estático, de um “cosmos”, concentra-se, deci-didamente, na organização da complexidade, no tempo,e no domínio de grandes quantidades de “informações”e de “interpretações” na dimensão do sentido. Na visãopolitizada de um Foucault, os sistemas seriam vistos comodispositivos disciplinares, na de Deleuze como sistemasde “controlo”, na de Luhmann apenas como indispensá-veis meios de navegação, mais adaptados aos infinitosrevelados pela modernidade do que as instituições deGehlen, mas tendo, como estas, uma função de Entlastung,alívio e mediação do infinito numa experiência finita.

Resta a questão da unidade do mundo. O ponto departida de Luhmann começa por consistir em adoptar asemantização fenomenológica da ontologia, ou seja, emconceber o mundo como unidade semântica dasVerweisungen que se constituem na experiência do sen-tido. Ao mesmo tempo, obviamente, não pode aceitar oreforço ontológico conferido à experiência do sentido eà unidade do mundo por Husserl na “viragemtranscendental”, a «existência de um sujeitoextramundano»36. Quer se esteja a falar de consciênciasou de “sistemas”, aquilo que se passa na experiência dosentido é uma «auto-descrição do mundo no mundo»37.

__________________36 IDEM, Soziale Systeme, op. cit., p. 105.37 Ibidem.

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Nesta rejeição, Luhmann está acompanhado porfenomenólogos da segunda geração – como, por exemplo,Sartre ou Merleau-Ponty38. Ora, tendo em conta amultiplicidade dos sujeitos, corporalmente e historicamen-te centrados em diferentes pontos de vista (Merleau-Ponty),ou dos “sistemas”, que, segundo Luhmann, se inserem numprocesso evolutivo que tende para a “diferenciação”, umtal mundo é, à primeira vista, «acêntrico» ou«multicêntrico»39. A unidade do mundo – o problema jáé central em Merleau-Ponty – torna-se problemática: cadaponto de vista, cada sujeito incarnado num corpo mun-dano, pode pretender à centralidade, o mesmo acontecen-do, segundo Luhmann, com cada sistema. Sem dúvida quedo ponto de vista de cada sujeito, ou de cada sistema,o mundo adquire a unidade que lhe é conferida pelo “pontode vista”, no caso do primeiro, ou pelo “código” operativodo sistema, no segundo. No sistema económico, porexemplo, todas as coisas são tratadas à luz do “código”binário baseado no valor de troca; a invenção do dinheirofoi uma conquista notável da evolução, pois esse repre-sentante de todas as coisas passou a constituir, literalmen-te, a substância visível da unidade do mundo. Todavia,há que distinguir, como faz Luhmann, entre Welt e Umwelt,entre o “mundo” no sentido absoluto que lhe confere afenomenologia, sentido de “meta-certeza” constantementepresente do único mundo, que Luhmann parece aceitar,e o “mundo circundante” correlativo de cada sistema. «Noinício não está a identidade mas a diferença»40 – tal éo axioma central da teoria dos sistemas, que Luhmann

__________________38 O caso de Heidegger é, sem dúvida, mais complexo. Entre

os comentadores discute-se a questão de saber se a sua “ontologia”é ou não uma versão de filosofia transcendental.

39 Ibidem, p. 284.40 Ibidem, p. 112.

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imputa igualmente à fenomenologia. Neste último caso,a diferença inicial é entre a “consciência” e o Etwas, ocorrelato intencional, o “qualquer coisa” de que ela éconsciência; na teoria dos sistemas, entre System e Umwelt.Uma Umwelt é a perspectiva de um dado sistema sobreo mundo; em termos metafóricos poder-se-ia dizer queé o aspecto da totalidade tratada por ele. Essa perspectivanão é, por conseguinte, quantitativamente redutora, incluia totalidade e, portanto, todos os outros sistemas. Ela jáé, em si e para si, uma unidade. Ora, dada a autonomiados sistemas, a sua tendência para o fechamento auto-referente e para a neutralização semântica dos acidentesda Umwelt, o mais natural seria que uma tal teoriaenveredasse por uma tese da pluralidade dos mundos,sobretudo tendo em conta a já referida preocupação teóricade fundo que se exprime no conceito de “des-ontologização”. Abolir-se-ia, assim, a diferença, queLuhmann mantém, entre Welt e Umwetl; pelo menos osprincipais sistemas (economia, arte, direito, política, etc.)constituiriam semanticamente múltiplos mundos, sem quefosse necessário colocar a velha questão – perigosamente“ontológica” – da unidade desses “mundos”. Acontece,porém, que Luhmann não vai no sentido de uma teoriada pluralidade dos mundos. Para ele há um mundo, «omundo não é apenas a soma de todas as remissões comsentido, mas a unidade destas possibilidades»41.

Como pensar esta “unidade”? Há quem veja nestainsistência de Luhmann um resto de – ou retorno à –ontologia42. Talvez seja, no entanto, mais apropriado ver

__________________41 Ibidem, p. 106.42 Tal é, por exemplo, a crítica de Günter Thomas, no artigo

“Welt als relative Einheit oder als Letzthorizont? Zur Azentrizität desWeltbegriffs”, in Werner Krawietz, Micahel Welker (org.), Kritik derTheorie sozialer Systeme. Auseinandersetzung mit LuhmannsHauptwerk, Frankfurt, Suhrkamp, 1992, p. 345.

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nela uma “fidelidade” à fenomenologia, ou seja, umatentativa de resolver através da teoria dos sistemas umproblema legado pela fenomenologia e que esta nãoestaria em medida de resolver pelos seus meios. Comefeito, Luhmann retoma a ideia husserliana de que estaunidade do mundo se manifesta numa «convicção defundo», (Hintergrunüberzeugung) ou numa «meta-cer-teza» (Meta-Gewißheit), que «suprime as diferençasde todas as perspectivas singulares dos sistemas».Todavia, a teoria dos sistemas «apenas» vê nesta«produção de unidade» o simples «fechamento»(Geschloßenheit) do processo de remissões semânti-cas43. É neste “apenas” que a teoria dos sistemas seafasta da fenomenologia. Para a fenomenologia, aefectuação do sentido não tem lugar sem uma expe-riência de doação do mundo. O “fechamento” doprocesso de semantização não pode ser tomado poruma “unidade” do mundo, sob pena de o mundo setransformar completamente em “sentido”, coisa queLuhmann, com toda a razão, quer evitar. Assim, estepasso não representa tanto um retorno à ontologia, masalgo como uma fuga para a frente formalista. Como,para Luhmann, não há sujeitos “transcendentais” sus-ceptíveis de unificarem as experiências ou os “siste-mas”, só o processamento das Verweisungen, a formaabstracta da produção de sentido, “une” os sistemas44.

Este formalismo não teria grande importância se setratasse apenas de uma questão teórica e não fosse a

__________________43 N. Luhmann, Soziale Systeme, op. cit., p. 106.44 A “ontologia da carne” do último Merleau-Ponty representa

uma tentativa de abordar o problema do mundo para além destaalternativa entre transcendentalismo e formalismo semântico (soluçãoda teoria dos sistemas), assim como, obviamente, para além da ontologiaclássica posta em causa por Luhmann.

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complexidade do mundo um problema prático, de “selec-ção de possíveis” (na linguagem de Luhmann) ou dedecisão, que Heidegger e Gehlen, cada um à sua maneira,tentaram resolver e para o qual a Systemtheorie pretendeter a melhor solução. Como vimos, Heidegger resolve oproblema do excesso de possíveis e de sentido numaperspectiva a que poderíamos chamar “ética”, se dermosa este termo o sentido largo de uma auto-constituição dosujeito cristalizada numa escolha originária, o mesmo édizer de “filosofia prática”45. A dificuldade do viver nummundo “aberto”, de múltiplas “melhores possibilidades”(como diz Luhmann), viria da ausência de um orthos logos,uma recta ratio, um telos do “melhor”, susceptível deguiar os sujeitos. Num “mundo de possibilidades” o Daseinteria, assim, de encontrar a sua “possibilidade própria”a partir de uma analítica existencial e histórica da suaexperiência mundana original. Outras correntes do pen-samento moderno, no entanto, duvidam da promessasemântica da experiência original, o mesmo é dizer dascapacidades do “Dasein” para descortinar a sua “propri-edade” (Eigentlichkeit). É nesta perspectiva que podemossituar a antropologia de Gehlen, o qual equaciona oproblema num âmbito antropológico decididamentemoderno (hobbesiano ou neo-hobbesiano, se quisermos).Num mundo cada vez mais complexo – em contraste coma simplicidade do “estado de natureza” – o sujeito in-dividual é impotente para equacionar a decisão; o simples“medo da morte” como motivo central da acção racional

__________________45 Sobre a leitura de Sein und Zeit como um projecto de “filosofia

prática” directamente moldado pela filosofia prática de Aristóteles verFranco Volpi, «Dasein comme praxis: L’assimilation et la radicalisationheideggerienne de la philosophie pratique d’Aristote», in Franco Volpi,(org.), Heidegger et l’idée de la phénoménologie, Dordrecht, Kluwer,1988.

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já não chega. A Steuerung, a condução do agir, a selecçãodos possíveis é remetida para o dispositivo supra-indivi-dual, “objectivo”, da instituição, que funciona como umautêntico artefacto, uma técnica da relação ao outro e aocolectivo, doador de forma temporal ao agir, ordenadordas acções no tempo. A instituição dá forma ao tempoe ao agir, retira ao sujeito uma boa parte do “peso” daselecção – efeito de Ent-lastung –, é um quadro que reduzos possíveis e, portanto, a complexidade do mundo. Doponto de vista do sujeito, as suas acções ganham um sentido“institucional”, com a vantagem de não deixarem de servividas como “livres”. Idealmente a instituição produz umamediação harmoniosa do sujeito individual com os outrossujeitos e com o mundo.

Acontece, porém, que a temporalização aumentadrasticamente a complexidade do mundo. E também noplano do tempo há uma exigência de “unidade”, até porque,na perspectiva da teoria dos sistemas, o mundo deve serpensado, como vimos, como “totalidade dos acontecimen-tos”. É a este nível que, do ponto de vista de Luhmann,se manifesta a fraqueza da teoria das instituições de Gehlen.A instituição é uma forma quase física que tenta resistirao tempo, opondo-lhe uma estrutura fixa que se mantémpara além dos processos. O conceito luhmanniano de“sistema” constitui, se quisermos, uma temporalizaçãoradical da instituição. Forçando os conceitos por peda-gogia, poderíamos dizer que o sistema é uma instituiçãoabsolutamente temporal. Longe de resistir ao tempo, osistema trabalha com ele, é suficientemente flexível paraabsorver todas as mudanças. Todavia, a novidade do sistemanão é completamente revelada pela metáfora da flexibi-lidade, a qual apenas faz supor que as «estruturas devemser suficientemente flexíveis e mutáveis, afim que o sistemase possa adaptar a novas condições do mundo ambiente

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(Umwelt), em caso de necessidade»46. O tempo intervémde uma maneira muito mais profunda e radical na essênciaou, se quisermos, na arquitectura crono-lógica do sistema.«Antes de toda a adaptação, o tempo já está presente naforma da constante desintegração (Zerfall) dos elementosno fluir do sistema. O sistema é obrigado a tornar-se asi próprio irreversível através da constante formação denovos elementos, ou seja obrigado a acumular uma his-tória»47. O sistema integra, logo à partida, a mutabilidade,a morte e o nascimento de novos elementos – e é assimque, teoricamente ou por definição, se torna formalmenteimortal.

Há, todavia, um preço a pagar por esta adaptaçãoàs exigências do tempo. Do ponto de vista dos sistemasde tipo “consciência” existe a necessidade de uma “in-clusão” em sistemas mais potentes na absorção da com-plexidade do mundo, os “sistemas sociais”, os quaisconstituem uma “ordem emergente”, inescapável, que osprimeiros não dominam. Esta situação contribui para umdéfice de sentido significativo, de Bedeutsamkeit, do ladodas consciências individuais, coisa que não acontecia coma instituição. Por mais “dominadora” que esta fosse,cumpria a função de mediação da totalidade, da “unidadedo mundo”, e, portanto, de conferir Bedeutsamkeit às acçõesdos homens.

Como quer que seja, a teoria dos sistemas tentaresolver o problema da “unidade do mundo” tendo emconta a complexidade trazida pela temporalização. Oprincipal traço distintivo da modernidade teria sido arevelação de um mundo que se apresenta como “extremacomplexidade” (äußerste Komplexität) e de uma existên-__________________

46 Niklas Luhmann, “Die Autopoiesis des Bewußtseins”, op. cit.,p. 403.

47 Ibidem.

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cia temporalizada que se apresenta como constante reac-ção à “pressão da complexidade”, Komplexitätsdruck.Numa tal situação não haveria filosofia prática que nosvalha – mesmo com as adaptações, por assim dizerdecisionistas, à nova situação introduzidas pela hermenêu-tica heideggeriana da facticidade – nem instituição quenos ponha ao abrigo da temporalização.

Na sua reflexão sobre a “unidade do mundo”, o pontode partida de Luhmann começa por ser a formulação doproblema em termos fenomenológicos: «original efenomenologicamente o mundo é dado como unidadeinapreensível (unfaßbare Einheit)»48. O mesmo é dizer quea fenomenologia não tem solução para o problema, a nãoser por recaída na ontologia.

A teoria dos sistemas começa por avançar umadefinição puramente formal do conceito. O mundo podeser definido como «unidade da diferença entre sistema eUmwelt», uma unidade que, segundo Luhmann, «englobadois infinitos, o interior [do sistema] e o exterior [da Umweltou da Welt]»49. Esta unidade, portanto, nunca é dada numErlebnis, numa experiência discreta, mas pode ser, comoescreve Luhmann, “reflectida”, o que significa, concre-tamente e tendo em conta que se trata da dimensão dotempo, projectada no futuro. Uma tal unidade, escreveLuhmann, «ao contrário do mundo fenomenologicamentedado, não é nada de originário, nada da ordem de umaarchê, mas uma unidade terminal (Abschlußeinheit)»50.Assim, no plano da temporalização, o problema da “uni-dade” do mundo é resolvido por uma espécie de inversãoda fenomenologia: a unidade do mundo não é dada numpresente vivo, mas “reflectida”, “construída” e projectadanum futuro indefinido, futuro imperfeito.

__________________48 Luhmann, Soziale Systeme, op. cit., p. 283.49 Ibidem, p. 284.nSublinhado por JMS.50 Ibidem.

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Com este conceito de “unidade terminal”, Luhmannnão pretende, obviamente, reintroduzir qualquer teleologia,motivo pelo qual acrescenta imediatamente, para que nãorestem quaisquer dúvidas, que a «Abschluß-Einheit» nãoé mais do que uma «Anschluß-Vorstellung an eineDifferenz», uma «representação de ligação a uma diferen-ça». Ao contrário das instituições, os sistemas não têmfins, só têm meios, procedimentos recorrentes de ligaçãode cada acontecimento ao seguinte.

É importante notar que a unidade em causa «englobadois infinitos». Esta solução do problema da “unidade domundo” permite-nos igualmente compreender como é quea Systemtheorie resolve a questão da mediação entrefinitude e infinito legada por Husserl na famosa metáforado “horizonte”. A Unfaßbarkeit do mundo na sua unidadesignifica que ao nível da experiência, fenomenologicamente,não há mediação possível. Face à complexidade do mundo,ao “infinito exterior”, os sistemas do tipo “consciência”estão relativamente desarmados, ou seja, não estariam àaltura dessa complexidade.

Para resolver o problema husserliano, Luhmannrecupera a intuição da teoria das instituições de Gehlen.Da mesma maneira que a instituição é um instrumento,uma técnica, de produção de ordem social geograficamen-te localizada, os “sistemas sociais” são os dispositivossupra-individuais que produzem uma “ordem emergente”universal, tendencialmente “mundial”, e fundamentalmen-te temporal, à altura da “extrema complexidade” de ummundo moderno sujeito ao “excedente do sentido” e àtemporalização.

Só um infinito “interior” de uma certa potência poderiafazer face a um infinito “exterior”. Neste ponto centraldo problema do mundo, Luhmann é de uma extremafidelidade a Husserl. Os fenomenólogos mais influentes

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da segunda geração, e das seguintes, não se limitaram arecusar a “viragem transcendental” do mestre de Freiburgo;consideraram a fenomenologia, enquanto descrição einterpretação do sentido da experiência humana, umafilosofia da finitude, ou seja, abandonaram as especula-ções infinitistas de Husserl, intimamente ligadas, aliás, àdoutrina da subjectividade transcendental. LudwigLandgrebe disse-o, ainda nos anos 40, da maneira maisclara: a ideia do infinito é demasiado moderna, datadae “científica”, para ser usada numa descriçãofenomenológica do “mundo da vida”, a qual deveria serlevada a cabo sem tais “pressupostos”51.

Husserl abordou o problema do infinito com adesenvoltura e o à-vontade do matemático que ele foi noinício da sua carreira. O “horizonte” é a metáfora quedesigna a zona da experiência em que um sentido finitoremete para uma efectuação infinita. Aplicada a um mundotemporalizado, essa ideia leva Husserl a atribuir à“intersubjectividade transcendental” a “tarefa infinita” daconstituição da complexidade do mundo. Historicamente,a “ciência europeia” seria a representante de facto de umatal tarefa. Todavia, no âmago da ciência moderna, nopensamento matemático que é doravante a chave da ciênciareitora, a ciência da natureza, Husserl encontra o problemada “técnica”. O raciocínio matemático recorre a “técnicas”que “aliviam”, como diria Gehlen, a intuição humana, finita,de percorrer séries infinitas de operações. Ao défice deintuição que tais técnicas implicam, e que teria despoletadoaquilo que Husserl considera uma “crise das ciências eda cultura europeias”, isto é, modernas, o mesmo Husserlresponde, no texto da Krisis, com uma “terapia”

__________________51 Cf. Ludwig Landgrebe, Phänomenologie und Metaphysik, Ham-

burgo, Marion von Schröder Verlag, 1949, p. 131.

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fenomenológica: a tentativa de pagar a hipoteca de taisoperações através de uma espécie de compensação intui-tiva, ou seja, do seu enraizamento intuitivo no “mundoda vida”. Num ensaio decisivo sobre “Mundo da vida etecnicização”, dedicado à problemática da Krisis, HansBlumenberg52 mostrou como são vãs as esperanças tera-pêuticas de Husserl, ou seja, dito positivamente, mostrouaté que ponto a discrepância entre a finitude humana ea infinitude do “mundo” está no centro da experiênciada modernidade e no âmago do pensar.

A partir daqui há dois caminhos possíveis: ou bemfazer da fenomenologia uma filosofia radical da finitudee abandonar a “ideia reguladora” do infinito, ou bemabandonar a fenomenologia e conservar a problemáticahusserliana do infinito. Esta segunda opção foi a deLuhmann, ao fazer da “complexidade do mundo” ocorrelato problemático do conceito de sistema e, portanto,a questão central da Systemtheorie. Nesta, não é só à ciênciamoderna, como pensava Husserl, que está incumbida a“tarefa infinita” de absorver a “complexidade do mundo”,mas a todos os “sistemas sociais”, actuais e a vir, sus-ceptíveis de surgir no processo da Ausdifferenzierungsistémica. A ciência é apenas um “sistema” entre outros.

Observações

Só um infinito suficientemente potente pode fazer faceao infinito “exterior”. Daí que só os sistemas do tipo dosgrandes “sistemas sociais” pareçam suficientemente fortespara fazer face ao desafio do mundo. Tudo se passa comose só a “ordem emergente” dos grandes sistemas da__________________

52 Hans Blumenberg, “Lebenswelt und Technisierung unterAspekten der Phänomenologie” (1963), in IDEM, Wirklichkeiten indenen wir leben, Estugarda, Reclam, 1981.

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sociedade moderna, que tendem, aliás, a fundir as soci-edades até agora territorialmente segmentadas numaWeltgesellschaft (sociedade mundial), estivessem à alturada “complexidade do mundo”. A consequência disto é umadesqualificação dos sistemas do tipo “consciência”, osúnicos com que Husserl trabalhava, os quais são relegadospara a Umwelt, para o mundo ambiente, ou seja, para asmargens dos grandes sistemas. A teoria dos sistemasconduz, assim, a um anti-humanismo programático – ohomem está longe de ser “a coroação da criação”. Nummundo complexo, absolutamente temporalizado, os homensdelegariam nos “sistemas sociais”, esses macro-disposi-tivos da sociedade moderna, a redução da complexidadedo mundo, ou seja, a absorção de um infinito que, doponto de vista da “consciência”, na sua limitada e finitaexperiência, apenas é indiciado sob a forma de “horizon-te”. Só os “grandes sistemas” poderiam ir além desta“metáfora” na mediação do infinito.

Apesar de se poder considerar a teoria dos sistemascomo uma das descrições mais plausíveis, ou talvez mesmoa mais plausível, da sociedade tardo-moderna, na medidaem que põe em evidência vários dos seus traços distintivos– tais como a organização de diferentes tipos de activi-dades humanas em “sistemas” (cujo negativo é a percade importância ou a decadência das “instituições”), asdinâmicas radicalmente temporais dos diferentes sistemas(cujo negativo é a “perca do mundo”), o construtivismoespontâneo e imparável dos sistemas (cujo negativo é adesvalorização das experiências do sentir e da doação),a obsessão do futuro, ou seja, a projecção constante dafinalidade das acções num futuro indefinido, infinito,sempre por vir (cujo negativo é a impossibilidade de viverplenamente um presente, fruir de equilíbrios e de esperarpor um futuro verdadeiramente significativo) – não pode-

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mos partilhar a sua confiança absoluta em alguns dos ins-trumentos conceptuais centrais da teoria, como é o caso do“infinito” e da “complexidade”. As perspectivas infinitistasobliteram o carácter constitutivo da finitude. Tal como decerto modo já acontecia em Husserl, na teoria luhmannianados sistemas encontramos um modo de operar de tipo, porassim dizer, matemático com o infinito, ou seja, que passapela infinita repetição ou recorrência do acto ou da operaçãofinitos. Daí que, como vimos, a “Abschlußeinheit” (unidadeterminal) do mundo seja, no fundo, uma “Anschlußeinheit”(unidade de ligação ao acto seguinte). Esta concepção damediação do infinito não tem em conta os processos po-sitivos de produção de forma que ocorrem do lado da finitudeconstituinte, os quais acabam por interferir na repetiçãoproduzindo diferença. Assim, a unidade do mundo, não é“fenomenologicamente unfaßbar”, inapreensível, como pre-tende Luhmann, mas constitui-se a cada instante e apreende-se em momentos privilegiados da experiência. Que a finitudeseja constituinte significa que, na sua perspectiva, operemprocessos de síntese do múltiplo ou da “informação” quereduzem a complexidade sem a aumentar “interiormente”.Entre eles, a um nível que englobaria sistemas “psíquicos”e “sociais”, o fenómeno das Stimmungen (disposiçõesafectivas), por exemplo, estudado por Heidegger, é, semdúvida, um dos mais espontâneos. A constituição deBedeutsamkeiten, significações significativas, fenómeno se-mântico centrípeto que se opõe às forças centrífugas do Sinn-Überschuß, “excedente do sentido”, seria outro.

A teoria dos sistemas compraz-se no paradoxo de uma“redução da complexidade” cujo preço seria o aumentoda complexidade “interna” dos sistemas. Não há dúvidaque, até um certo ponto, este paradoxo descreve correc-tamente uma realidade. Os “sistemas” da sociedademoderna dão a imagem de uma espécie de corrida aos

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“armamentos”, técnicos e organizacionais, destinada a“resolver problemas”, ou seja a diminuir a complexidade,mas que acaba por se traduzir num aumento efectivo dacomplexidade desses sistemas. Face a isto, contudo,colocam-se algumas questões que o carácter infinitista eformalista da abordagem de Luhmann, ou seja, a ideiacondutora de que os sistemas têm por adversário a “com-plexidade extrema” do “mundo”, o impedem de formular.Pode-se perguntar se o aumento de complexidade “inter-na” não pode atingir uma massa crítica, a partir da qualse assistiria à inversão do movimento, ou seja à aplicaçãode estratégias de simplificação, de descomplexificação oude terminação, sem aumento de complexidade. No mesmosentido, pode-se perguntar se não há limites àAusdifferenzierung dos sistemas, isto é, ao surgimento ouà génese de novos sistemas funcionais.

Um dos modos de pôr fim à corrida à complexidadee de inverter, pelo menos provisoriamente, os seus pro-cessos seria a centralização do mundo a partir da pers-pectiva de um sistema dominante – uma perspectiva queLuhmann, com as suas teses correlativas do “fechamentooperacional” dos sistemas e do “mundo multicêntrico”,quer a todo o custo evitar. Como quer que seja, as críticasdos que consideram que estas teses são excessivamenteformais, na medida em que contrastam com a realidadede uma sociedade tardo-moderna, na qual se verificariammanifestas relações de “dominação” entre sistemas53,apresentam uma forte plausibilidade.

__________________53 Relações de dominação, e, portanto, centralização, de um dado

sistema, e não apenas de «strukturelle Kopplung» (articulação estru-tural) entre sistemas como prevê a teoria de Luhmann. Uma críticadeste tipo é, por exemplo, a de Richard Münch, no artigo “Autopoiesisper Definition”, in Gerhard Preyer; Georg Peter (Org.), Protosoziologieim Kontext. “Lebenswelt” und “System” in Philosophie und Soziologie,Würzburg, Königshausen & Neumann, 1996.

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Uma última observação diz respeito a uma dasconclusões centrais da Systemtheorie, que atravessa todaa obra de Luhmann: a impossibilidade de todo e qualquerprojecto de “filosofia prática”. Os processos de Steuerung,de orientação e pilotagem, das decisões e acções queemanam dos sistemas sociais seriam de tal maneiradominantes e coactivos que os “sistemas psíquicos”, ouseja, os sujeitos humanos acabariam por ser relegados paraa Umwelt e, no fundo, para as margens de um mundovisto na perspectiva dos grandes sistemas sociais. Sendoa filosofia prática uma reflexão sobre a vida (individualou colectiva) e os seus fins, levada a cabo na perspectivado sujeito individual, ela perderia, numa sociedade do-minada pelo funcionalismo dos grandes sistemas, o seuantigo significado orientador e reitor de ordem ética epolítica.

À primeira vista esta tese não deixa de apresentaruma grande plausibilidade, decorrente da evidência dediversos fenómenos da sociedade tardo-moderna, como aaparente perca de peso do político face aos sistemaseconómico e dos media de comunicação social, ambos,aliás, bastante bem tematizados por Luhmann. Acontece,porém, que, se a perspectiva da finitude for de algum modoconstituinte, colocar-se-ão problemas de forma que nãopoderão ser resolvidos através de uma corrida sem fimà vista à complexidade, ou por delegação em sistemasmais potentes do que a consciência. Se já em face deum infinito a perspectiva da finitude não pode prescindirde uma filosofia prática, visto que a questão de saber oque fazer de uma vida finita é inalienável, a situação nãomudará em nada face ao espectáculo de “dois infinitos”que medem as respectivas potências de “complexidade”na arena do “mundo”. Longe de tornar vã uma “ética”,a consciência aguda da complexidade do mundo e o

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aparente triunfo de sistemas sociais detentores de umapotência cada vez maior de complexidade “interna” tor-nam-na mais necessária do que nunca.˙

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Série, alea e autopoiesis

Mário Vieira de CarvalhoFaculdade de Ciências Sociais e Humanas

Universidade Nova de Lisboa

Num texto publicado em 1991, o biólogo chilenoMaturana conta como chegou à sua teoria dos “sistemasvivos”. A questão decisiva, que ele se colocara em 1960,era a seguinte: «Que há de peculiar nos sistemas vivosde tal modo que, se ocorre num sistema, todos os fenó-menos biológicos virão como consequência?».

Dos resultados da sua pesquisa Maturana extraiu aconclusão:

«…sistemas vivos eram entidades autónomas, onde tudoacontece com referência a si próprias. Assim, em 1961comecei a falar de sistemas vivos como sistemas auto-referenciais. No entanto, eu queria evitar termos funci-onais e referenciais porque queria evitar a confusão entreas condições de constituição de um sistema com a suaaparição no meio ambiente em que é observado»1

__________________1 Humberto R. Maturana, “The origin of the Theory of Autopoietic

Systems”, in H. R. Fischer (ed.), Autopoiesis. Eine Theorie imBrennpunkt der Kritik, Frankfurt, Suhrkamp, 1991, p. 121 (…livingsystems were autonomous entities in which everything happened in

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O desenvolvimento da sua teoria levou finalmenteem 1972 ao conceito de autopoiesis, cujos traços prin-cipais significam o seguinte:

a) que os sistemas vivos são unidades de interacções;b) que são constituídos como unidades porque con-

sistem em sistemas circulares de produçõesmoleculares;

c) que a forma como actua esta circularidade dasproduções moleculares pode mudar, mas não a suacircularidade, porque, quando tal acontece, elasmorrem;

d) que tudo quanto acontece dentro e com sistemasvivos, acontece e tem de acontecer na realizaçãoda sua constituição, de acordo com a qual elessão, enquanto unidades de interacções, sistemascirculares de produções moleculares2.

Importando este conceito para a sua teoria dos sis-temas sociais, Luhmann salienta «que um sistema só pelarelacionação dos seus elementos se pode constituir e alterar,mas não através da dissolução e reorganização deles».Elementos seriam «elementos só para os sistemas que os

__________________reference to themselves. Thus, in 1961 I began to speak of living systemsas self-referring systems. Yet, I wanted to avoid functional andreferential terms because I wanted to avoid the confusion betweenthe conditions of constitution of a system with its appearance in theenvironment in which it is observed).

2 Como fase intermédia, Maturana (1991: 122s.) menciona umadefinição formulada em 1964 de “sistemas vivos” como «sistemasconstituídos como unidades ou entidades de interacções como sistemascirculares de produções moleculares em que tudo poderia mudar menosas produções que os constituem» (systems constituted as unities orentities of interactions as circular systems of molecular productionsin which everything could change but the productions that constitutedthem).

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usam como unidade». Isto era formulado «com o conceitode autopoiesis»3.

Relativamente aos «sistemas sociais de complexidadetemporalizada», que terão porventura maior analogiaconceptual com a obra musical como ocorrência no tempo,Luhmann restringe o conceito de estrutura à sua funçãode «tornar possível, de evento para evento, a reproduçãoautopoiética do sistema»4. O «processo» (ao lado da «es-trutura», uma componente da «autodefinição reprodutiva»)consistia «no sair de um actual momentâneo através datransição para um elemento (novo) que lhe é passável masdiferente dele». Ambas as ocorrências em acção aqui —uma, a «exclusão», determinada pela «estrutura», a outra,a «busca de conexão» (Anschlußsuche), determinada pelo«processo» — podiam «trabalhar de mãos dadas» e reduzirao mínimo «a contingência da outra respectiva componen-te». Os «horizontes do passado e do futuro» eram destemodo «estruturados» e «limitados», verificando-se com issoum ganho de liberdade face ao tempo (gegenüber der Zeit):

«A pontualização temporal dos elementos como eventossó é possível no tempo e graças ao tempo; mas ela realizaatravés do desaparecimento e da modificação global ummáximo de liberdade face ao tempo. Este ganho emliberdade tem de ser pago com a constituição estrutural;já que em consequência disso é necessário regular atra-vés de eventos a reprodução de eventos»5

__________________3 Niklas Luhmann, Soziale Systeme. Grundriß einer allgemeinen

Theorie, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1988 (1984), p. 43.4 Ibidem, p. 388.5 Ibidem, p. 390 (Die zeitliche Punktualisierung der Elemente

als Ereignisse ist nur in der Zeit und nur dank der Zeit möglich;aber sie realisiert durch Verschwinden und durch Gesamtmodifikationein Maximum an Freiheit gegenüber der Zeit. Dieser Freiheitsgewinnmuß durch Strukturbildung bezahlt werden; denn es wird daraufhinnötig, die Reproduktion der Ereignisse durch Ereignisse zu regulieren).

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Não é senão de uma semelhante auto-referencialidadeda obra musical como sistema autopoiético que se falana correspondência trocada entre 1951 e 1954 porStockhausen e Goeyvaerts. Suprimir a relação de sentidoque resultava da ocorrência no tempo — suprimir, enfim,aquilo que Adorno6 considerava ser a essência dinâmicada música «enquanto [ela] decorrer de facto no tempo»— eis o que é formulado por Goeyvaerts em termos taisque parecem uma antecipação da definição de Luhmanndos «sistemas de complexidade temporalizada». Referin-do-se ao último Webern, que para Adorno «por vezes jáse aproxima bastante da desistência dos meios da lingua-gem musical e reduz a música às ocorrências nuas nomaterial, ao destino das séries enquanto tais»7, Goeyvaertscensura-lhe, pelo contrário, que ele não tenha levado essecaminho «até ao fim»:

«O aspecto ‘projecção no espaço e no tempo’ reduz-seem Webern […] a curtos fragmentos […]. O todo, porém,revela-se sempre ainda uma construção, uma justaposi-ção, ou seja, um ‘ocorrência no tempo’»8

O princípio, postulado pelo próprio Schönberg, «daabsoluta e una experiência do espaço musical» devia ser,

__________________6 Cf. Theodor W. Adorno, “Das Altern der Neuen Musik”, in

IDEM, Dissonanzen. Einleitung in die Musiksoziologie. GesammelteSchriften, vol. 14, Frankfurt, Suhrkamp, 1998, p. 151.

7 Ibidem.8 Goeyvaerts citado por Herman Sabbe, “Die Einheit der

Stockhausen-Zeit...”, in Heinz Klaus Metzger; Rainer Riehn (eds.),Karlheinz Stockhausen...wie die Zeit verging..., Musik-Konzepte, Bd.19, München, Edition Text und Kritik, 1981, p. 16 (Der Aspekt‘Projektion im Raum und Zeit’ beschränkt sich bei Webern [...] aufkurze Fragmente [...]. Das Ganze aber zeigt sich noch immer eineKonstruktion, ein Nebeneinanderstellen, also ein ‘Geschehen in derZeit’).

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pois, consequentemente realizada, o que para Goeyvaertssignificava «não uma ‘ocorrência no tempo’, não um tempo,em que a música se desenrola, mas sim um ser no tempo,um tempo em que a música é colocada»9.

A supressão do “acontecer no tempo” na obra musicalentendida como sistema autopoiético relacionava-se coma supressão da História. Sabbe fala, com referência aStockhausen, do «ponto temporal nulo como lugar douniversal»10. Este compreendia «uma legitimação históri-ca» fundamentalmente apenas como «problema pós-composicional». Também para Maturana «a ideia de umaevolução» bem como «a de uma finalidade» nasciam «nocontexto da observação» e pertenciam, por isso, a «umaesfera que é separada da esfera da organização autopoiéticado sistema vivo»11.

Separada também do compositor, da vontade própriadaquele, a composição tinha de ser toda ela deduzidaexclusivamente dos seus respectivos pressupostos oupremissas, isto é, de uma estrutura serial não «construída»,mas sim «dada» — como em Goeyvaerts12 —, ou de «leisnaturais que transcendem a pessoa singular» (über deneinzelnen Menschen hinausgehenden Naturgesetzen), e não«feitas pelos humanos» — nas palavras ainda em 1985repetidas por Stockhausen:

«Procura-se […] considerar estas leis naturais e, de acordocom as leis naturais de novo descobertas, dar forma anovos sons e compor novas formas a partir de sons. Esta

__________________9 Ibidem.10 Ibidem, p. 70.11 Maturana citado por Doris Könnecke, “Revolutionierung der

Wissenschaft? — Zur (Selbst)-Täuschung der Theorie autopoietischerSysteme”, in H. R. Fischer (ed.), op. cit., pp. 132 ss.

12 Cf. Sabbe, “Die Einheit der Stockhausen-Zeit...”, in HeinzKlaus Metzger; Rainer Riehn (eds.), op. cit., p. 17.

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racionalidade leva naturalmente a uma nova ideia deordem, a de que já não queremos fazer nada que nãoseja claro para nós próprios, nada que não seja dedutíveldas premissas de uma composição. E por isso pode surgir,por vezes, a impressão de um sobredeterminismo quedesemboca no facto de, por momentos, a vontade própriado compositor, do intérprete e dos ouvintes parecerreprimida»13

A Peça para Piano n.º 11 (Klavierstück XI) (1956)de Stockhausen é, neste sentido, o melhor exemplo demúsica como autopoiesis. De facto, os princípios assu-midos por Stockhausen são aqui tornados extensivos àprópria performance. Isto significa que o compositor evitatomar decisões até mesmo sobre a realização final dasequência e dos parâmetros da “estrutura serial”. Assim,em vez de apresentar a obra como um percurso pré-determinado que cabe ao intérprete executar, o compositordispõe numa larga folha de papel (53 x 93 cm) dezanovesequências ou grupos de notas, representando diferentesprojecções da “estrutura serial” no espaço. Requere-se doexecutante que proceda tal como o compositor, isto é, querespeite o que podia chamar-se agora a reprodução

__________________13 Stockhausen, in Hans Heinrich Eggebrecht (ed.), Karlheinz

Stockhausen im Musikwissenschaftlichen Seminar der UniversitätFreiburg i. Br. 3 bis 5 Juni 1985, Murrhardt, MusikwissenschaftlicheVerlags-Gesellschaft, 1986, p. 20 (Man versucht [...] diese Naturgesetzezu berücksichtigen und im Einverständnis mit den neu entdecktenNaturgesetzen neue Klänge zu formen und neue Formen aus Klängenzu komponieren. Diese Rationalität führt natürlich zu einer neuenOrdnungsvorstellung, man möchte dann nichts mehr machen, was nichtfür einen selber klar ist, was sicht nicht aus den Voraussetzungeneiner Komposition ableiten läßt. Und deshalb kann zeitweilig derEindruck eines Überdeterminismus entstehen, der darauf hinausläuft,daß der Eigenwille des Komponisten, des Interpreten und derjenigen,die zuhören, für eine Zeit fast unterdrückt zu sein scheint).

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autopoiética da estrutura serial. Também a nível daexecução não são, pois, permitidas nem heterogeneidade,nem intervenção externa, nem desenvolvimento no cursodo tempo. Decisão consciente, intencionalidade e teleologiasão banidas da performance. Para que tal aconteça e,portanto, a ordem sequencial da execução dos dezanovediferentes blocos ou grupos de notas não resulte senãodo mero acaso, Stockhausen pré-define paradoxalmentecom extremo cuidado o modo de execução. O executante«lança um olhar casual para a folha de papel e toca qualquerdos grupos que tenha visto primeiro» e é este «olhar casualde um grupo para outro» que constitui a única intervençãopermitida ao executante. O primeiro grupo que se deparaao executante deve ser tocado livremente — nomeada-mente com livre escolha da intensidade, tempo e ataque.Mas o grupo seguinte (qualquer sobre o qual tenha recaídoacidentalmente o olhar do pianista) terá de ser tocado deacordo «com as indicações impressas no final do primeirogrupo». O procedimento repete-se para os grupos seguin-tes, cuja execução deve obedecer às indicações queaparecem no final do grupo imediatamente precedente.Algumas regras abrem possibilidades infinitas de repro-dução autopoiética (dir-se-ia hoje): por exemplo, «quandoo executante se depara pela segunda vez com o mesmogrupo» deverá respeitar as indicações dadas entre parên-teses, «que darão ao grupo um aspecto novo». Se, poracaso, o seu olhar voltar ao mesmo grupo pela terceiravez, já não tocará mais e a obra acaba aí. Por isso, aduração da execução é indeterminada14.

Esta peça para piano era considerada por UmbertoEco15 como paradigma da obra aberta. Retrospectivamen-

__________________14 Cf., por exemplo, Karl H. Wörner, Stockhausen: Life and Works,

London, Faber & Faber, 1993, pp. 39-40; 104-105.15 CF. Umberto Eco, L’oeuvre ouverte, Paris, Seuil, 1965.

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te, pode ser hoje considerada paradigma da obra musicalcomo sistema autopoiético. Na verdade, foi concebida edeve ser tocada de tal maneira que pode ser dito, comoLuhmann16 a respeito dos sistema autopoiéticos, que ela«reproduz a sua reprodução e as suas condições de re-produção» — qual organismo vivo que se reproduz a sipróprio tornando-se sempre diferente e, ao mesmo tempo,sempre igual (de acordo com a “informação genética”veiculada no processo da reprodução). Sobredeterminismoe aleatório transformam-se aqui um no outro: em cadarealização, a obra organiza-se a si própria de maneiradiferente, auto-reproduz-se como se as suas diferentesformas de manifestação outra coisa não fossem senãoresultados necessários da unidade dos seus elementos.Conexões estruturais com o meio (e deste faz parte,enquanto sistema auto-refencial, o próprio executante) sósão admissíveis quando, como hetero-referências, sãotraduzidas internamente, pelo sistema-obra, em auto-re-ferências. Caso contrário, ao trazer para a performanceelementos de intenção, decisão consciente ou telos, oexecutante acabaria por dissolver as fronteiras entre osistema (a obra, na especificidade da sua concepção porStockhausen) e o meio do qual ela se diferenciava: meioque incluía, neste caso, o próprio executante, de que aobra auto-referencialmente se servia para se auto-repro-duzir. Se as fronteiras se dissolvessem, a obra desapareciana auto-referência do intérprete que, por hipótese, se serviadela para se exprimir e — se continuássemos a seguirLuhmann — constituiria assim uma nova forma de di-ferenciação sistema-meio, bem diferente da pretendida porStockhausen, que pensara a peça avant la lettre comosistema autopoiético.

__________________16 N. Luhmann, Die Kunst der Gesellschaft, Frankfurt a. M.,

Suhrkamp, 1995, p. 86.

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Em síntese, para além da supressão da dimensãohistórica, eram excluídas da composição musical qualquerideia ou elemento heterogéneo e qualquer intervençãoexterna do artista. Uma das condições de emergência dacomposição musical que também a aproximava do con-ceito de sistema autopoiético era, com efeito, ahomogeneidade do material sonoro — por oposição à suaheterogeneidade. E isto porque a adição de elementos àmatriz inicial ou a sua modificação por intervenção externanão eram compatíveis com o princípio de “desenvolvi-mento orgânico”. Na medida em que as séries relativasaos diferentes parâmetros — altura, duração, timbre,dinâmica (intensidade), tempo, etc. —, uma vezestabelecidas, tinham de permanecer imutáveis comodispositivos organizacionais de toda a obra, elas compor-tavam-se como uma espécie de material genético. Emconformidade com a noção de sistema auto-referencial,já implícito na teoria do serialismo integral dos anoscinquenta, a obra só podia progredir se os seus elementosfossem capazes de salvaguardar o que lhes permitiaconstituirem-se em sistema, diferenciando-se de um de-terminado meio. A introdução de elementos heterogéneosdestruiria o sistema ou criaria um novo sistema ao qualnão era reconhecida validade estético-musical.

Do mesmo modo, não era permitido ao compositortomar decisões quanto à “estrutura” da obra. Como mero“observador” dos princípios seriais geradores em que aobra assentava, devia pôr de lado — durante o processode composição — qualquer ideia construtiva que contra-riasse esses princípios ou deles se desviasse. O desen-volvimento da obra como sistema autopoiético impunhauma estrita consequencialidade. A obra, ou emergia destemodo da matriz serial, ou era destruída como sistema.Mais: sendo a própria série “dada” (Goeyvaerts) ou as

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leis da natureza que regiam a obra “descobertas”(Stockhausen), pode dizer-se que o compositor se colo-cava na posição de observador antes mesmo de formulara série: ou seja, em rigor, a actividade de compor consistiana observação de sistemas emergentes e na criação decondições para o seu desenvolvimento autopoiético. Nestesentido, as fórmulas (Formeln) com que Stockhausensempre compôs podiam ser comparadas a uma espécie degenoma musical pré-existente que cabia ao compositordescobrir e cultivar de forma similar às observações deum biólogo no seu laboratório.

Este ideal de obra, formulado por compositores seriaisque partiam de um pensamento determinista, aparecia comnão menor coerência na música aleatória de John Cage,na qual, muitas vezes, nada era pré-definido, nem mesmoo material sonoro em que a obra iria ser configurada.Algumas das suas peças eram inteiramente criadas — auto-produzidas — pelo acaso, cabendo ao compositor definirtão somente a moldura ou quadro em que a obra musicalpodia acontecer (happening). Em Music of Changes, asoperações aleatórias, a partir de tabelas pré-fixadas paraos diferentes parâmetros, estabeleciam «o caminho de notapara nota» — como explica Cage, numa das suas palestrasproferidas nos Cursos de Darmstadt em 1958. Mas, estaobra representava no seu percurso apenas uma etapa natransição que fizera de «ideias de ordem» para «nenhumasideias de ordem». O facto de haver naquela obra aindauma estrutura, mas «indefinida», tornara claro para eleque «não era necessária estrutura». Assim, a partir da peçaMusic for Piano a estrutura deixara de fazer parte do seu«método de composição». O que se pretendia era «umaactividade que consistisse essencialmente num processodesprovido de objectivo» ou finalidade (zweckfrei). Emboraexistente, «o espírito» era «privado do seu direito de

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controlo». Que fazia «um espírito inactivo»? Cageexemplificava com o seu conceito de silêncio, diferente devárias das acepções tradicionais do termo: nem «separaçãoentre sons ou grupos sonoros» para proporcionar uma«experiência de oposição ou de concordância», nem «ex-pressão» ganha através de uma «pausa», nem ainda «ele-mento construtivo» que contribuisse para dar «forma»(Gestalt) a uma «estrutura pré-definida ou desenvolvidaorganicamente». Silêncio, para Cage, era «outra coisa»:designadamente, não era silêncio, mas sim «ruído, ruídoambiental» — ruído esse cujo carácter era «imprevisívele mutável», ruído de que o mundo estava cheio fosse ondefosse, até mesmo numa câmara anecoica, onde se ouviampelo menos dois sons, um agudo, o outro grave, corres-pondentes respectivamente à actividade do sistema nervosoda audição e à circulação do sangue17. Tal é a concepçãoque está subjacente à sua obra 4’ 33”, na qual durante esselapso de tempo não se ouve qualquer som produzido porinstrumentos, mas apenas silêncio, ou melhor, imprevisível«ruído ambiental»… Na sua primeira execução com piano(a escolha do instrumento ou instrumentos não é pré-fi-xada), o intérprete, David Tudor, limitou-se a abrir e voltara fechar a tampa do teclado no início de cada um dos trêsandamentos, onde, na partitura, apenas está escrito TACET.

Numa outra das palestras proferidas em Darmstadt,onde compara os graus de liberdade de execução permi-tidos respectivamente pela Arte da Fuga de Bach e pelaKlavierstück n.º 11 de Stockhausen, Cage, reconhecendoembora que, nesta, a «indefinição» não era meramente«colorística» mas sim «formal», distinguia-a claramentede uma modalidade de aleatório na execução quecorrespondesse verdadeiramente a uma sequência de

__________________17 Cf. John Cage, “Komposition als Prozeß (1958): Drei Studios”,

in Darmstadt-Dokumente I — Musik-Konzepte Sonderband, I (1999),pp. 139-141.

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operações imprevisíveis18. Ou seja, para Cage, dir-se-iahoje, a Peça para piano n.º 11 de Stockhausen não erasuficientemente autopoiética.

Entretanto, no artigo Alea, publicado no ano anterior,Boulez19 já tomara posição quanto ao papel do acaso nacomposição musical. Distinguia entre «o acaso por inad-vertência» e «o acaso por automatismo». No primeiro,identificava três modalidades:

a) uma, porventura influenciada por uma «filosofiatingida de orientalismo», era suspeita de mas-carar «uma fraqueza fundamental na técnica decomposição», lançava o indivíduo, que deixavade se sentir responsável pela sua obra, numa ex-periência de «magia pueril», com a desvantagemde ser ambígua face à «inadvertência natural»,que não carecia de instrumentos para se mani-festar;

b) outra, «uma forma mais venenosa e subtil deintoxicação», postulava a perfeita «objectividade»da composição, isto é, a eliminação do «arbitrá-rio» (considerado o novo diabolus in musica), oque significava que a «esquematização» passavaa tomar o lugar da «invenção» e que a «imagi-nação» se limitava a engendrar um «mecanismocomplexo» que se encarregava, esse sim, de gerartodas as combinações possíveis, nos planosmacroscópico e microscópico;

c) uma terceira modalidade, resultante do facto deo diabolus («o arbitrário odiado e repudiado»)transformar numa miragem a pretendida «objecti-

__________________18 Ibidem, pp. 153-155.19 Pierre Boulez, “Alea”, in IDEM, Relevés d’apprenti, Paris,

Éditions du Seuil, 1966, pp. 41-54.

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vidade», consistia na fuga para o oposto, para asubjectivização radical, isto é, na «demonização»do todo ou recuperação do arbitrário, através datransferência para o intérprete-medium das esco-lhas que o compositor — lançando mão de uma«notação meticulosa na imprecisão» — se recu-sara a fazer20.

Quanto ao «acaso por automatismo», manifestava-se, ora numa variante «pura», ora numa variante em queera introduzida a noção de «bifurcação vigiada». Chegadoa este ponto, Boulez21 começa por reconhecer que podiahaver razões «justificáveis» para, na composição, subs-tituir «o que deve acontecer» pelo «que pode acontecer»:designadamente, por um lado, «a recusa duma estruturapré-estabelecida», «a vontade legítima de construir umaespécie de labirinto com vários circuitos»; por outro lado,«o desejo de criar uma complexidade em movimento»(complexité mouvante), «renovada», «especificamente ca-racterística da música tocada, interpretada, por oposiçãoà complexidade fixa e não renovável da máquina».Buscava-se «uma forma que não se fixa, uma formaenvolvente que, rebelde, se recusará à sua própria repe-tição», em suma, «uma virtualidade». Esta «ideia-força»comportava, porém, um risco: o de levar à «necessidadede destruir toda a estrutura imanente». Por isso, Boulezremetia para a sua própria experiência de compositor, quelhe ensinara ser impossível prever «todos os meandrose todas as virtualidades contidas no material de que separtia» e que o fizera dar valor à «mais eminente virtude»do acto de compor: «a surpresa». Mas se, não obstante«o esforço árduo» de dominar o material, o acaso acabava

__________________20 Ibidem, pp. 41-44.21 Ibidem, pp. 44-46.

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sempre por se manifestar, então era preciso lidar com elenoutros termos, isto é, absorvendo-o, «aprisionando-o»,«introduzindo-o na composição», numa palavra, «conci-liando composição e acaso».

O nível mais elementar de absorção do acaso con-sistia, ou em conferir apenas maior liberdade ao execu-tante, permitindo-lhe uma espécie de «rubato generaliza-do», aplicável a vários parâmetros, ou em «instaurar», noplano da mise en jeu das próprias estruturas, «um certoautomatismo de relação entre diversas redes de probabi-lidades previamente estabelecidas». Tal automatismo, assimintroduzido na fase da composição, não se confundia coma «objectividade» ou «fetichismo do número» (que Boulezcondenara anteriormente) desde que «a proliferação destasestruturas automáticas» fosse «vigiada com atenção», tendoem vista evitar que «uma anarquia de aparência ordenada»acabasse por «corroer completamente a composição e privá-la de todos os seus privilégios». A «manipulação dosconjuntos de características», organizadas em séries (porexemplo, frequência, intensidade, duração) exigia «umatotal ausência de escolha na mise en jeu». A escolhainsinuava-se no plano das probabilidades geradas por essamise en jeu, que compreendiam a chance única, na qualo encontro das diferentes séries determinava um único«ponto sonoro» possível, não havendo lugar para a es-colha do compositor, e a chance múltipla, em que já haviaescolha. Nesta, quanto mais se escolhia, tanto mais o«evento» dependia do «coeficiente de acaso implicado pelasubjectividade do compositor»22.

A este «estádio mais elementar de automatismo,voluntariamente não orientado», Boulez contrapunha umestádio mais complexo, no qual o acaso era «integrado

__________________22 Ibidem, pp. 44-49.

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na própria noção de estrutura dentro de um conjuntoorientado», havendo então lugar para «diferenciações maissubtis» como as de «estrutura definida» ou «indefinida»,«amorfa» ou «direccional», «divergente» ou «convergen-te». Num conjunto orientado, estas diversas estruturasdeviam ser «obrigatoriamente controladas por um“fraseado” geral, comportar necessariamente um signoinicial e um signo final, fazer apelo acessoriamente aespécies de plataformas de bifurcação». Caso contrário,perdia-se o «sentido global da forma» ou desembocava-se numa «improvisação» entregue ao «livre arbítrio». Paraobstar ao «desvanecimento da composição» importavarecorrer a «uma nova noção de desenvolvimento, que seriaessencialmente descontínua, mas de uma descontinuidadeprevisível e prevista». Daí a necessidade de introduzir«formantes» e «fraseado» que assegurassem a «inter-relação» e o «encadeamento» de «estruturas de naturezadiversa», as quais, por sua vez, seriam marcadas porfenómenos «envolventes» (envellopants), tais como otempo, o timbre e o tipo de escrita, que, «no seu aspectoexterior», podia obedecer a uma «concepção horizontal,vertical ou oblíqua»23.

Embora Cage não fosse nomeado, era claro ondeambos divergiam: na questão da estrutura. Para Boulez,sem estrutura não havia arte. Por isso, e porque eranecessário evitar o perigo de o compositor fugir «à suaprópria responsabilidade», havia que disciplinar rigorosa-mente o acaso, «adaptando à composição no seu todo anoção de série». Deste modo, encarada como uma sériede conjuntos ou grupos, a estrutura «podia ser dotada danoção mais geral de permutação». Boulez24 chegava assim

__________________23 Ibidem, pp. 49-51.24 Ibidem, p. 53.

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ao clou da sua construção teórica: o conceito de «auto-determinação da estrutura», que impunha à permutaçãouma restrição dos seus poderes, mantendo-a dentro delimites rigorosamente definidos. Ou, por outras palavras:o aleatório tinha de ser ao mesmo tempo estruturaestruturada e estrutura estruturante.

Também em Boulez encontramos, pois, no contexto dadiscussão do aleatório na composição, uma aproximaçãolatente ao conceito de autopoiesis — neste caso «autopoiesisda estrutura». Na verdade, embora Boulez sublinhe as res-ponsabilidades do compositor, também lhe impõe ao mesmotempo a submissão ao princípio da «autodeterminação es-trutural». O compositor pode ter maior ou menor liberdadede escolha, mas essa liberdade só pode ser exercida dentrodos limites pré-estabelecidos para as permutações. Asubjectividade do compositor não intervém autonomamenteno processo, segundo uma qualquer modalidade de interacçãosujeito-objecto. É implicada no «coeficiente de acaso», apenascomo um dos vectores, entre outros, através dos quais aquelese manifesta, em conformidade com a dinâmica da auto-determinação (autopoiesis) da estrutura. Neste sentido, poderiadizer-se que a Klavierstück XI de Stockhausen, composta noano anterior, mas omitida no texto de Boulez (no qual, deresto, nenhuma obra concreta é mencionada), resolvia de umaforma mais consequente o dilema da relação entre acaso edecisão subjectiva do compositor, na medida em que esta,a partir do momento em que se haviam constituído ospressupostos da «autoderminação estrutural» (autopoiesis),era banida do processo de composição e substituída pelo livrejogo das permutações decorrentes da execução não-intenci-onal do intérprete.

Assim, embora Luhmann, na sua obra A arte dasociedade, publicada em 1995, insista em que «da inven-ção bioquímica única da autopoiesis da vida não se segue

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ainda que tem de haver vermes, aves e pessoas humanas;da autopoiesis da comunicação que formações sociais(Gesellschaftsformationen) vão aparecer no curso daevolução; e da autopoiesis da arte que obras de arte serãocriadas»25, a sua teoria parece adequada somente a rarassituações sociocomunicativas da história da arte europeia.Em particular, e embora ressalve que o conceito deautopoiesis é somente aplicável à arte como sistema decomunicação, o postulado segundo o qual «a essência daarte é a auto-programação das obras de arte»26 parecedestinado a caracterizar especificamente o pensamento eas obras de alguns compositores seriais dos anos cinquen-ta assim como algumas manifestações de música aleatória.

As homologias entre a teoria de composição deGoeyvaerts, Stockhausen e Boulez e a teoria da arte deLuhmann são manifestas até mesmo no plano da meta-teoria: trata-se, em ambas, de eliminar da experiênciaestética a “ideologia” e, num sentido mais lato, a remissãopara ideias e emoções ou para o mundo vivido. Luhmann27

fala especificamente da necessidade de escrever uma novateoria da sociedade que deixe de fora a «ética» de certospostulados (tais como o da felicidade como possibilidadepara todos os seres humanos de acordo com o ideal desolidariedade), cujas «componentes utópicas» se tinhamtornado «cada vez mais óbvias no final do século XX».Do mesmo modo, também a maior parte dos compositoresdo círculo de Darmstadt achava que a nova música deviadeixar de fora todas as referências exteriores, consideradasestranhas ao material sonoro. Pressupunha-se um tipo decomunicação centrada no objecto, que correspondia exac-tamente à definição de Luhmann do artista, do receptor

__________________25 N. Luhmann, Die Kunst der Gesellschaft, pp. 86-87.26 Ibidem, p. 332.27 Ibidem, p. 8.

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e do crítico como observadores (de primeira, de segundaou de terceira ordem) e por detrás da qual estava a mesmarejeição de qualquer intervenção ética ou ideológica a partirdo meio ou do mundo vivido. Fosse no capítulo da ciência(Luhmann), fosse no da arte (e, mais precisamente, nateoria da composição musical), os conceitos de auto-referência e de autopoiesis, num caso já elaborados, nooutro apenas pressentidos como categorias, excluíam ainteracção crítica com o social ou com os indivíduos comoeus sociais, baniam dos respectivos sistemas sócio-comu-nicativos a pretensão a uma hermenêutica crítica respec-tivamente do discurso científico e do discurso estético.À privação da obra de qualquer intenção expressiva ouhetero-referência explícita correspondia, do lado do recep-tor ou do crítico, a expectativa de que este reconhecessecomo observador no objecto sonoro as suas qualidadesestruturais, e não que a experiência da música remetessepara algo que lhes fosse «exterior»… Mas é claro quenem Luhmann, nem a corrente dominante em Darmstadtpodiam escapar à ideologia — ao acto político dedespolitizar a música que, na teoria de Luhmann, podeser lido igualmente como o acto político de despolitizarsimultaneamente a teoria da sociedade e a teoria da arte28.Não havia aí lugar para uma teoria crítica29.

__________________28 Sobre «o acto político de despolitizar a música», cf. Bohlmann

(1993).29 Cf ainda, sobre as questões abordadas neste texto, Mário Vieira

de Carvalho “No hay caminos? — Luigi Nonos Verhältnis zurGeschichte”, in Das aufgesprengte Kontinuum. Über dieGeshichtsfähigkeit der Musik (Studien zur Wertungsforschung), vol.31, ed. Otto Kolleristch, Viena/Graz, Universal Edition, 1996, pp. 187-219; “New Music between Search of Identity and Autopoiesis, or: The‘Tragedy of Listening’ ”, in Theory, Culture & Society, 16/4 (1999),pp. 127-135; “Art as Autopoiesis? A critical approach beginning withthe European musical avant-garde in the early 1950s”, in Journal ofSociocybernetics, II/1 (2001), pp. 33-40.

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O direito na obra de Niklas LuhmannEtapas de uma evolução teórica

Pierre GuibentifISCTE, Instituto Superior das Ciências

do Trabalho e da Empresa

Niklas Luhmann formou-se inicialmente em direito.Antes de iniciar uma carreira de sociólogo, trabalhou váriosanos como jurista na administração pública e, mais tarde,como investigador em temas jurídicos num instituto deciências administrativas. Este percurso (I) explica que odireito tenha ocupado um lugar destacado nas suas re-flexões teóricas. Mais, toda a sua teoria geral da sociedadeé marcada pelo facto de o direito ter sido um dos seusprincipais objectos ao qual foi aplicada. Reveste, logo,particular interesse, na abordagem deste autor, a análiseda sua conceptualização do direito (II). Esta, no entanto,evolui consideravelmente ao longo dos anos. Uma evo-lução que revela o carácter dinámico do pensamento deLuhmann, uma característica que tende a ficar ocultadapela amplitude da obra e o rigor da argumentação. Aodar conta desta evolução, somos também conduzidos areflectir, em termos mais gerais, sobre o estatuto dasdiferenças entre os trabalhos de um mesmo autor, uma

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questão que tem sido nalguma medida negligenciada, talvezsob a pressão das necessidades do ensino. A discussãoda obra de Luhmann constitui uma boa oportunidade dea aprofundar (III).

I

Recordemos1, em primeiro lugar, que Luhmann inicioua sua carreira de sociólogo relativamente tarde. Depoisda licenciatura em direito, em 1949, trabalhou primeiro,durante cerca de dez anos, na administração pública,sucessivamente nos serviços de um tribunal administrativo(onde participou na reorganização do sistema de referên-cia das sentenças) e no Ministério da Educação e Culturada Baixa Saxónia (onde tratou de pedidos de indemni-zação consecutivos ao período nazi). Já nessa fase, noentanto, estava interessado, mais do que nesta actividadeadministrativa em si, na reflexão mais abstracta sobre ofenómeno administrativo em geral, uma reflexão, aliás,de inquestionável pertinência numa altura em que se tratavade reconstruir o Estado alemão depois da Segunda Guerramundial. Este interesse concretizou-se, por um lado, emcontribuições para uma revista de ciência administrativae, mais discretamente, no desenvolvimento de um ficheirode trabalho, organizando os seus apontamentos de refle-xão, os seus mais tarde famosos Zettelkästen.

__________________1 Poderão encontrar-se informações mais detalhadas no volume

André-Jean Arnaud; Pierre Guibentif (orgs.), Niklas Luhmannobservateur du droit, Paris, Librairie générale de droit et dejurisprudence, 1993, nomeadamente na entrevista a Niklas Luhmann“Itinéraire d’un auteur, itinéraire d’une discipline”, entretanto tambémpublicada na sua formulação original em alemão, na revista Zeitschriftfür Rechtssoziologie, 2000, pp. 217-245.

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A qualidade deste trabalho analítico chamou a aten-ção de dois professores que tiveram um papel determinantena entrada de Luhmann no mundo das ciências sociais.Carl Hermann Ule convidou-o para o Instituto Superiorde Ciências Administrativas de Speyer, onde trabalhoudurante cinco anos como investigador. Por sua vez, HelmutSchelsky animou-o a doutorar-se para poder ingressar nauniversidade e convidou-o, poucos anos depois de Luhmannter cumprido estas provas, para a Universidade de Bielefeld,em 1969.

Com a preocupação de se situar num contexto in-telectual suficientemente aberto, Luhmann posicionou-seexplicitamente, logo nestes anos de transição da adminis-tração para a investigação, como sociólogo. Não quislimitar-se a estudar de fora a actividade jurídica e admi-nistrativa. Quis estudá-la no âmbito de um quadroconceptual à partida mais abrangente. Como se sabe, estaestratégia intelectual inspirou-se nomeadamente em TalcottParsons, junto de quem Luhmann estudou durante algunsmeses no início dos anos da década de 60. Afirmou-sena lição inaugural que proferiu no início da sua carreiraprofessoral, em Münster em 1967, e que intitulou“Iluminismo sociológico”2, assim como, nomeadamente,pela sua participação, em 1968, no congresso da Asso-ciação alemã de sociologia, onde apresentou a conferênciaque esteve na base do debate que travou pouco mais tardecom Jürgen Habermas3.

Ao longo desta transição continuou, no entanto, adedicar-se em particular a temas jurídicos. Vários con-ceitos essenciais para o seu futuro trabalho teórico surgi-

__________________2 Ver a tradução deste texto no presente volume.3 Sobre este debate, ver a contribuição de José Manuel Santos,

no presente volume.

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ram no contexto da elaboração de um estudo sobre osdireitos fundamentais4. A obra que mais polémica susci-tou, consagrando-o como um dos autores de referênciana sociologia alemã, foi Legitimação pelo procedimento5,dedicada às estruturas das actividades políticas, adminis-trativas e judiciais nas sociedades modernas.

A partir destes anos, afirmou-se claramente comoteórico generalista, publicando os sucessivos volumesintitulados Iluminismo sociológico. Não deixou, porém, dese interessar pelo direito, que reconhecia como um ele-mento autónomo da realidade social. Esta autonomiaexplica o seu empenho no desenvolvimento de uma sub-disciplina da sociologia, a sociologia do direito. Produziuo que se poderia qualificar de manual teórico destadisciplina, o seu livro Rechtssoziologie6, e participou nolançamento da revista alemã de sociologia do direito, aZeitschrift für Rechtssoziologie, na qual publicou váriosartigos. Quando, mais tarde, empreendeu a sua linha detrabalhos sobre os vários sistemas sociais, iniciada pelolivro introdutório Soziale Systeme7, dedicou um volumepróprio ao direito, Das Recht der Gesellschaft (O Direitoda Sociedade)8, ao lado dos volumes sobre a economia,a ciência, a arte, a política, a religião, o sistema educativoe a sociedade em si.

__________________4 Cf. Niklas Luhmann, Grundrechte als Institution. Ein Beitrag

zur politischen Soziologie, Berlim, Duncker & Humblot, 1965.5 IDEM, Legitimation durch Verfahren, Darmstadt/Neuwied,

Luchterhand, 1969.6 IDEM, Rechtssoziologie, Reinbek bei Hamburg, Rowohlt, 1972.7 IDEM, Soziale Systeme. Grundriss einer allgemeinen Theorie,

Frankfurt, Suhrkamp, 1984.8 IDEM, Das Recht der Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp, 1993.

Acaba de se publicar uma tradução inglesa desta obra: Law as a SocialSystem, Oxford, Oxford University Press, 2004.

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II

Niklas Luhmann publicou numerosos livros sobre odireito9, entre os quais se destacam os dois que acabamde ser referidos; a Sociologia do Direito e O Direito daSociedade. A Sociologia do Direito retoma e sistematizareflexões que surgem ao longo de várias das obras an-teriores, em particular Grundrechte als Institution (Direi-tos fundamentais como instituição) e Legitimation durchVerfahren (Legitimação pelo Procedimento). Em 1981,organizou uma colectânea de artigos sobre o direito,Ausdifferenzierung des Rechts (A diferenciação do direi-to)10. Ao reunir este conjunto de artigos, assinalou im-plicitamente que os seus trabalhos recentes o conduzirama uma reapreciação em profundidade do fenómeno jurí-dico. Este passo qualitativo foi anunciado de maneira maisexplícita em 1983. Com efeito, reeditou-se nesse ano aSociologia do Direito11 e Luhmann, embora sem quererrever o texto no seu conjunto, redigiu um novo capítulofinal. Existem, desta maneira, duas conclusões diferentesdeste livro, uma de 1972 – “Perguntas para a teoria dodireito” – e outra de 1983 – “Sistema do direito e teoriado direito”. Caso único, salvo erro, na sua obra, NiklasLuhmann explicita aqui uma evolução, ao permitir umacomparação linear entre dois momentos do seu pensamen-to. Mais tarde, Luhmann publicou ainda numerosos textossobre o direito, documentando uma evolução que não parouaté à sua morte. Entre estes, o livro O Direito da Soci-

__________________9 Ver a bibliografia das obras de Luhmann sobre o direito em

A.-J. Arnaud; P. Guibentif (orgs.), Niklas Luhmann observateur dudroit, op. cit., pp. 241 ss (que careceria agora de ser actualizada).

10 N. Luhmann, Ausdifferenzierung des Rechts, Frankfurt,Suhrkamp, 1981.

11 IDEM, Rechtssoziologie, Opladen, Westdeutscher Verlag, 19832.

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edade retoma várias das ideias lançadas nos restantes artigossobre este mesmo tema, mas o propósito principal do livroé contribuir para uma comparação entre sistemas sociaise para o desenvolvimento de uma teoria geral dos sistemassociais.

Antes de abordar as concepções do direito defendidaspor Luhmann nestas obras, convém sublinhar a evoluçãodas suas motivações teóricas. Existe, convém recordá-lo,uma inegável continuidade: a sua preocupação central éo melhor entendimento da sociedade moderna, o que passapor uma conceptualização apropriada da sua característicaprincipal: a diferenciação funcional. Evoluem, emcontrapartida, as finalidades mais concretas do seu tra-balho académico. Uma evolução no sentido de um pro-gressivo distanciamento, poderia dizer-se, em relação àspráticas sociais e, talvez, de um certo desencanto. Nasobras dos anos 60, exprime a vontade de contribuir paraum conhecimento da diferenciação funcional que possa,directamente, favorecer um melhor funcionamento dossistemas sociais. Mais tarde, afirma-se cada vez maiscéptico quanto a qualquer utilidade directa. Dá cada vezmais importância à finalidade primária do trabalho: con-seguir uma teoria dos sistemas sociais. As esperançasanteriores transformam-se numa aposta: que esta teoriados sistemas sociais, alcançando uma existência própria,se torne numa das instâncias onde a sociedade contem-porânea, radicalmente diferenciada, possa reencontrar umavisão global de si própria. Mas uma visão entre outras,apenas uma visão, e cujos efeitos são imprevisíveis.

A primeira finalidade exprime-se da maneira maisclara em 1965. Em Direitos fundamentais como institui-ção, Luhmann verifica primeiro que o “pensamento es-tatal” (Staatsdenken), isto é, o pensamento dos que exercemresponsabilidades no Estado ou são formados nesta perspec-

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tiva, se fechou face aos desenvolvimentos das ciênciassociais e, nesta circunstância, afirma que

«uma análise dos direitos fundamentais com os meiosda teoria estrutural-funcionalista dos sistemas poderiafertilizar a dogmática dos direitos fundamentais»12

Em conclusão desta mesma obra, faz um balanço daspossíveis utilizações da teoria estrutural-funcionalista peladogmática jurídica, introduzido nos seguintes termos:

«(…) contradiria a intenção fundadora da nossa pesquisaaceitar aqui qualquer fusão. O aparelho conceptual dainvestigação sociológica, orientado para a descoberta ea comparação sistémica, tem outras tarefas do que oaparelho conceptual da dogmática, que deve facilitar etornar previsível a tomada de decisão.Recusar uma harmonia sem qualquer desnivelamento(stufenlose) não significa, no entanto, recusar qualquercontacto. Quem vê a complementaridade das tarefas dasociologia e da dogmática, promoverá estes contactos.São a própria especificação da função científica e aautonomia dos aparelhos conceptuais que, aqui como nocaso de qualquer diferenciação, tornam os contactospossíveis e lhes dão o seu sentido»13

Esta atitude ainda se exprime na conclusão daSociologia do Direito de 1972, cujo próprio título, “Per-guntas para a teoria do direito”, sugere um relacionamentodirecto entre as abordagens:

«A ciência do direito – nisto reside a diferença com asociologia – é uma ciência da decisão. Daí que possa

__________________12 IDEM, Grundrechte als Institution. Ein Beitrag zur politischen

Soziologie, op. cit., p. 13.13 Ibidem, p. 205.

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retirar da sociologia uma ajuda imediata para a decisãoapenas em constelações particulares, atípicas. Mas pode,pela cooperação com a sociologia, ser conduzida areflectir a sua própria selectividade, e a entender assuas próprias decisões de princípio como resultando deuma escolha significativa (sinnvolle) entre outras pos-sibilidades»14

Já em O Direito da Sociedade (1993), afirma emtermos muito mais categóricos a separação entre as dis-ciplinas:

«Com a determinação do objecto, dá-se também, numcontexto científico pluralista, a possibilidade, ou até aprobabilidade de diferentes teorias, e mais ainda dife-rentes disciplinas, determinarem o seu objecto de ma-neira diferente e, por isso, não poderem comunicar umascom as outras. Falam então, mesmo que utilizem a mesmapalavra – no nosso caso ‘direito’’– em coisas diferentes.Poderão então encher-se páginas e páginas com–‘deba-tes’ (Auseinandersetzungen), mas sem nenhum resultado,a não ser eventualmente a melhoria das suas própriasarmas. Não se fala a mesma língua (Man redet aneinandervorbei)»15

Poucas linhas mais adiante, no entanto, volta a umaapreciação mais optimista:

«Talvez haja hoje um entendimento mínimo sobre oseguinte: que não vale a pena discutir sobre a ‘natureza’ou a essência do direito, mas que a questão interessanteé a das fronteiras do direito»16

__________________14 IDEM, Rechtssoziologie, 1972, p. 355.15 IDEM, Das Recht der Gesellschaft, op. cit., p. 14.16 Ibidem, pp. 14 s.

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A estas duas finalidades correspondem duas proble-máticas diferentes. Quando se trata ainda de contribuirpara a percepção que os próprios juristas têm do seutrabalho, Luhmann procura dar conta do que, numaperspectiva sociológica, se revelou como a principalparticularidade do direito moderno, a sua positividade.Considera relevante, para a própria prática do direito,entender em que consiste, quais são as funções, quais sãoas condições de manutenção desta positividade. E, parafundamentar esta reflexão, procura reconstituir o processohistórico que conduziu a esta positividade, isto é apositivização do direito (A). Já quando o objectivo écontribuir para uma teoria geral dos sistemas sociais, trata-se, através da observação do direito, de perceber melhorem que consiste um sistema social diferenciado, e o quedistingue, entre outros sistemas, o sistema jurídico.Empreende este trabalho mobilizando o conceito deautopoiesis dos sistemas e mostrando como, num processoautopoiético, se produz a distinção entre o que é jurídicoe o que não o é (B). São assim identificados os doisconceitos que, sucessivamente, vão dominar a reflexão deLuhmann sobre o direito.

A - A positivização do direito

O tema da positivização do direito surge nos primei-ros trabalhos sociológicos de Niklas Luhmann. Como outrossociólogos da modernidade, de Weber a Parsons, admiteque o direito desempenha nesta um papel essencial. Acaracterística do direito moderno, que considera poderrelacionar directamente com as características da socie-dade moderna, é a sua positividade.

Esta ideia central exprime-se no título de um artigopublicado em 1970: “A positividade do direito enquanto

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condição da sociedade moderna”. É trabalhada, também,em vários textos desta época. Depois de alusões maisbreves, nomeadamente no livro Direitos fundamentais comoinstituição, uma primeira exposição deste tema é propostano artigo “Direito positivo e ideologia”, publicado em 1967,precisamente no ano em que também publica o textoprogramático “Iluminismo sociológico” (SoziologischeAufklärung). Um capítulo de Legitimação pelo procedi-mento é lhe expressamente dedicado. Mais significativa-mente, todo o livro Sociologia do Direito (1972) é or-ganizado em função desta problemática. A primeira partedesta obra17, conceptual e histórica, culmina com a dis-cussão do processo de “positivização”; a segunda tratados aspectos actuais e das potencialidades do direitopositivo.

A reflexão de Luhmann sobre a positividade(Positivität) do direito, assim como sobre a evolução queconduziu a esta forma de direito, a positivização(Positivierung), apoia-se numa constatação simples. E parteda força da argumentação de Luhmann deve-se à maneirapregnante com que formula esta constatação:

«Com efeito, baseamos a solidez da validade já não numavalidade superior mais sólida, mas, precisamente aocontrário, num princípio de variabilidade: o facto de quealgo pode ser alterado é o fundamento de toda estabi-lidade e, logo, de toda validade»18

__________________17 A primeira edição da Rechtssoziologie de 1972 (Rowohlt) era

dividida em dois volumes, individualizando materialmente as duas partesaqui referidas (divisão também adaptada pela tradução brasileira de1983 e 1985, baseada no texto alemão de 1972). Esta grande divisãoperdeu visibilidade na reedição de 1983 (Westdeutscher Verlag) queconsiste num volume único.

18 IDEM, “Positives Recht und Ideologie”, in SoziologischeAufklärung 1, Opladen, Westdeutscher Verlag, 1970, p. 180.

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«O direito vale como positivo não apenas quando a ex-periência jurídica (Rechtserleben) tem um acto históricode legislação na memória – no pensamento jurídico tra-dicional, a historicidade do direito pode servir precisa-mente de símbolo da sua inalterabilidade – mas apenasquando o direito é vivido como valendo por força destadecisão, como escolhido entre várias possibilidades e,desta maneira, como alterável»19

Esta constatação, a partir da qual Luhmann vaidesenvolver a teoria da positividade que procurarei sin-tetizar a seguir, merece, em si, dois comentários. Primeiro,trata-se de um ponto de partida empírico. Quer-se dar contade experiências que “todos nós” podemos fazer: por umlado, a experiência da validade (a lei adoptada deverá,em princípio, ser cumprida); por outro lado, a daalterabilidade da lei (sabemos que várias alternativasestiveram em discussão; sabemos que, num futuro quepoderá ser próximo, a lei poderá ser substituída por outra).Poderá pôr-se este ponto de partida em causa neste mesmoplano empírico, em particular em dois aspectos: existirãopessoas que não têm uma experiência de procedimentoslegislativos que lhes permita reconstituir facilmente a noçãode alternativas, ou de alterabilidade; a percepção da validadepoderá relacionar-se menos com a antecipação de umaalteração do que com outras razões (a pura legalidade?o reconhecimento da legitimidade de quem decidiu?).Teremos, no entanto, que reconhecer que, embora suscep-tível de ser relativizado, este ponto de partida não carecede pertinência: os que não têm experiência da legislaçãosão os que têm menos capacidade de intervenção nasdinâmicas sociais; os outros motivos em que poderíamospensar em abstracto poder-nos-ão aparecer como maisquestionáveis ainda do que o sugerido por Luhmann.

__________________19 IDEM, Rechtssoziologie, 1972, p. 209.

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Segundo comentário: o conceito de positividade deLuhmann aproxima-se do conceito usual em ciênciajurídica, mas existem diferenças importantes. Os princi-pais pontos comuns são a referência à lei “posta” (geseztesRecht) e a noção de decisão, isto é, o acto pelo qual alei (ou a sentença) foi estatuída. O elemento mais im-portante na definição de Luhmann, a “alterabilidade” dodireito positivo, também se encontra nas definições dodireito positivo de autores de teoria ou filosofia do direito,onde não ocupa, no entanto, uma posição tão central. Assim,Bobbio20 menciona a “antítese imutabilidade/mutabilidade”para distinguir o direito natural do direito positivo. Existem,no entanto, várias diferenças entre os argumentos de Bobbioe de Luhmann. A mais importante é que Bobbio se refereà evolução lenta das leis humanas no tempo pela mudançados costumes, e não ao facto da possibilidade de alteraçãodo direito por uma decisão actual. A problemática visadatambém não é a mesma: Bobbio recorda a oposição entredireito positivo e direito natural, enquanto Luhmann, comoveremos mais adiante, pretende distinguir o direito po-sitivo, moderno, de formas mais arcaicas do direito.Finalmente, poderá sustentar-se, embora esta diferença nãoseja tão óbvia, que Bobbio visa uma característica intrín-seca do direito, enquanto Luhmann pretende ter em contauma experiência subjectiva que têm os destinatários dodireito. Por sua vez, Latorre21 opõe o estudo do direitopositivo ao trabalho de reforma do direito, o que sugereuma definição do direito positivo (lex lata) por oposiçãoà lex ferenda. Aqui também, a diferença reside no pontode vista adoptado. Torres refere-se à relação entre os juristas

__________________20 Norberto Bobbio, O positivismo jurídico. Lições de filosofia

do direito, São Paulo, Ícone, 1995, p. 22.21 Angel Latorre, Introdução ao direito, Coimbra, Livraria

Almedina, 1974, p. 152.

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e o direito, enquanto Luhmann utiliza uma noção maisvasta de experiência jurídica.

A partir da breve definição acima citada, convém,em primeiro lugar, precisar, em si, a noção de positividadedo direito proposta por Luhmann (a). Em segundo lugar,Luhmann relaciona o direito positivizado com a sociedademoderna, numa lógica funcionalista (b). Em terceiro lugar,no plano de uma discussão mais específica, examina váriosfactores que considera como tendo contribuído para queo direito possa cumprir a sua função (c).

(a) Como ficou dito, o direito positivo é o direitoreconhecido como válido porque alterável. Nesta defini-ção, a noção que carece de ser especificada é a de validade.Embora exista uma definição jurídica aparentemente sim-ples desta noção (facto de uma norma ter caráctervinculativo, por oposição a uma norma abrogada, ou nulaporque padecendo de um vício formal), Luhmann tem apreocupação de dar às suas reflexões, neste ponto crucial,bases propriamente sociológicas. Estas são-lhe fornecidaspor dois raciocínios distintos.

Um primeiro consiste em dotar-se de um conceitoque vai permitir uma nova definição abstracta da noçãode validade, sem referência a noções jurídicas. Trata-sedo conceito de “expectativa normativa”. Neste raciocínio,Luhmann parte de uma concepção interaccionista dasrelações sociais. Poderemos falar de interacção socialquando o comportamento de uma pessoa (ego) é orientadopela ideia que tem do comportamento do outro (alter),e pela noção de que este comportamento de alter, porsua vez, também é orientado pela ideia que alter tem docomportamento de ego. Na formação das suas intençõesde acção, ego, a todo momento, vai, simultaneamente,formar um certo projecto de comportamento e anteciparcomportamentos de alter, nomeadamente comportamentos

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que irão reagir ao seu próprio comportamento, ou com-portamentos aos quais considera que será necessário ele,ego, reagir. Ou seja, a interacção social pressupõe queos intervenientes tenham determinadas expectativas, istoé, imagens antecipadas do que vai acontecer. Luhmannpropõe distribuir estas expectativas em duas categorias,em função do desenrolar posterior da interacção. O quevai acontecer poderá, ou não, corresponder às expectativasdos intervenientes. Quem tinha uma determinada expec-tativa, verificando que os factos não lhe corresponderam,pode ter duas reacções: pode mante-la (se se reencontrarnuma situação semelhante, voltará a esperar da parte dosoutros o que esperou desta vez, embora tenha agora feitouma experiência decepcionante); ou pode abandoná-la (sese reencontrar numa situação semelhante, não voltará aabordá-la com a mesma antecipação). Expectativas queestaríamos dispostos a rever em função das nossas ex-periências são chamadas cognitivas; expectativas quequeremos manter são chamadas normativas22.

Este raciocínio parte, nomeadamente, de dois pres-supostos que merecem ser explicitados. Um primeiro éque podem existir expectativas conscientemente diferen-ciadas, isto é: suficientemente detalhadas e estáveis nosseus elementos para que possa ter lugar uma comparaçãoentre o esperado e o que se experienciou. Convirá admitirque nem sempre abordamos uma situação com tais an-tecipações claras. Deve, no entanto, reconhecer-se – esteé o ponto de partida da sociologia funcionalista – quea vida social seria difícil, ou melhor dizer, que não se

__________________22 Ver o capítulo II. 2. de Rechtssoziologie, 1972 (pp. 40 ss).

Luhmann já tinha abordado este tema em “Normen in soziologischerPerspektive”, Soziale Welt, 20 (1969), pp. 28-48, texto que não reeditou,em alemão, em livros posteriores, provavelmente por considerarsuficiente a reformulação de 1972.

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poderia falar em vida social, se não dispuséssemos pelomenos de algumas possibilidades de antecipar os com-portamentos dos outros. Assim, por exemplo, a comuni-cação verbal, componente essencial da vida social, assentanum vasto conjunto de expectativas que poderíamosqualificar de semânticas: para referir um exemplo trivial,se alguém diz “Olha, um gato!” teremos a expectativaclara de encontrar, olhando para onde olha quem falou,de ver um gato.

O segundo pressuposto é que, tratando-se de expec-tativas conscientemente diferenciadas, saberemos, a priori,qual será a nossa reacção em caso de não correspondênciaentre estas e a realidade. Isto verifica-se em certos con-textos institucionalizados. Assim, na actividade científica,formulam-se hipóteses que são, tipicamente, expectativascognitivas (um enunciado explícito do que se espera,associado à predisposição em reformulá-lo se a experi-ência não o confirmar). Diferentemente, um regulamentoadministrativo fundamentará, nos que participam na suaaplicação, expectativas tipicamente normativas, das quaisos envolvidos sabem que serão mantidas, mesmo que, emcertas circunstâncias, tenham sido decepcionadas. Osuperior hierárquico que verifica um incumprimento porparte de um subordinado esperará que, da próxima vez,a tarefa seja cumprida. Poder-se-ia, considerando estes doisexemplos, admitir que a nitidez com a qual Luhmann opõeestas duas figuras tem a ver com a experiência concretaque fazia, precisamente nestes anos, da diferença entrea actividade administrativa a que se tinha dedicado noinício da sua carreira e a actividade científica, na qualse envolveu a partir do início dos anos 60. É questionávelque, em contextos menos estruturados (vida de família,encontros ocasionais, actividade de grupos de pessoasconhecidas, etc.), as expectativas tenham um estatuto tão

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claro. No entanto, deveremos também reconhecer que, namedida em que se formularão expectativas algoespecificadas, também se lhes dará alguma relevância (paraquê enunciar uma perspectiva de futuro para a esquecerlogo que não for correspondida?). Esta relevância poderávariar consideravelmente, mas teremos provavelmente queadmitir que esta variação se deixará caracterizar adequa-damente num contínuo entre os dois tipos identificadospor Luhmann. Empiricamente, encontraremos váriasmodalidades de expectativas, entre as normativas puras(não as abandonamos, quaisquer que sejam as decepções)e as cognitivas puras (reformuladas com naturalidade emcaso de decepção): expectativas que estávamos à partidadispostos a abandonar, mas cuja reformulação nos “custa”(a nossa equipa preferida não ganhou o jogo; a criança,afinal, está com febre); expectativas de que não queríamosabdicar, mas que se revelam na realidade mais maleáveisde que nós próprios esperávamos (não esperávamos talatitude da parte de um amigo, mas acabamos por con-tinuar a tratá-lo como amigo apesar desta decepção). Ouseja, a distinção de Luhmann talvez não permita delimitardois universos claramente delimitados de expectativas, maspermite, sim, avançar na análise das várias modalidadesdas nossas expectativas.

Recorrendo a estes conceitos, dir-se-á, numa primeiraabordagem, que uma regra é válida quando corresponde,na perspectiva de quem a conhece, a uma expectativanormativa. Isto é: esta pessoa, mesmo que se passe outracoisa, vai continuar a pensar que, no futuro, aconteceráo que a norma enuncia. Aprofundando a análise dassituações nas quais recorremos à noção de validade, noentanto, verificaremos que se acrescenta uma dimensãosocial a esta primeira definição. Dizer que uma regra éválida implica não só que uma pessoa deriva desta regra

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uma expectativa de que não prentende abdicar, mas tam-bém que esta pessoa espera que outras pessoas derivarãouma mesma expectativa e que estão também dispostas amantê-la. Ou seja: a pessoa que fala em validade de umaregra espera normativamente que esta regra corresponda,para as outras pessoas, a uma expectativa normativa.Afirmar que uma regra vale é afirmar que os outros devemconsiderá-la como uma regra obrigatória.

Estes dois planos de expectativas normativas deixam-se distinguir quando se pode distinguir, para retomar umalinguagem de juristas, a forma do conteúdo (deixarei aquiaberta a questão de saber se outros mecanismos poderãopermitir um desdobramento equivalente das expectativas).Isto aplica-se tanto no direito como noutros campos sociais.No direito, porque existem múltiplos enunciados querevestem a mesma forma de lei, podemos separar a noçãoabstracta, segundo a qual a lei tem que ser cumprida, danoção mais concreta segunda a qual um determinadocomportamento deve ser adoptado. Mas verifica-se algosimilar nos jogos: estes são organizados por “regras”. Quemparticipa num jogo tem, por um lado, a noção abstractade “ter que cumprir as regras” e de que apenas poderãojogar com ele os que “reconhecem as regras”, e terá, poroutro lado, determinadas expectativas normativas concre-tas, que poderão, ou não, pertencer ao conjunto das regras.Em tais contextos (jogo, legislação), a forma de uma regra(a sua pertença “às regras do jogo”, “à lei”) significa,para o seu destinatário, não apenas que ele próprio poderábasear expectativas normativas nesta regra, mas tambémque outros (parceiros, adversários, espectadores) terão amesma expectativa.

A separação entre forma e conteúdo, no entanto,representa na realidade apenas uma primeira condição paraa validade. A segunda condição torna-se óbvia se ima-

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ginarmos a seguinte situação: existe um conjunto iden-tificado de regras, mas, empiricamente, pode constatar-se que são poucos os que as cumprem, ou muitos os quemanifestam que as suas expectativas são outras. Quemtestemunha uma tal situação desistirá naturalmente deatribuir um sentido normativo à forma comum das regrasque muitos outros ignoram. Formulando agora esta con-dição pela positiva, dir-se-á que as condições concretasda validade de um conjunto de regras consistem, por umlado, no revestimento por parte dessas regras de uma formacomum que facilite a sua identificação como regras acumprir, mas também, por outro lado, que as regras querevestem esta forma, numa certa proporção, sejam ma-nifestamente reconhecidas por uma certa proporção depessoas, uma experiência necessária para que uma pessoadê à forma destas regras o sentido de “regras que os outrostambém reconhecem”. Para designar esta situação deaparente adesão de muitos outros a uma regra, que fun-damenta a adesão de uma pessoa a determinadas regras,Luhmann fala em legitimidade, dando à palavra um sentidoalgo distinto do que lhe dão outros autores, em particularJürgen Habermas23.

Podemos agora voltar à definição do direito positivodefendida por Luhmann. Pressupõe, em primeiro lugar,uma determinada “forma”. Referimo-nos a um conjuntode regras identificado como conjunto – a ordem jurídica– ao qual podem ser atribuídas determinadas caracterís-ticas. Uma característica essencial é que todos podemderivar das regras que pertencem a esta ordem expectati-

__________________23 Cf. P. Guibentif, “La légitimité des mouvements sociaux. Un

exercice conceptuel dans le prolongement de Habermas et Luhmann”,in Michel Coutu; Guy Rocher (dirs.), La légitimité de l’État et dudroit. Autour de Max Weber, Québec, Presses de l’Université Laval[no prelo].

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vas normativas, podendo considerar – aqui é que está oponto crucial – que os outros vão fazer o mesmo. Atéaí, não fizemos mais que propor mais uma definição, umtanto mais abstracta do que outras, do que é uma ordemjurídica. É sobretudo uma definição mais prudente do quemuitas outras. Com efeito, até aqui, o raciocínio apenasteve em conta as expectativas de pessoas observadas ou,como talvez convenha melhor dizer, imaginadas a títuloexperimental. Admite-se que um grande número de pes-soas estará disposto a esperar determinados eventos, coma convicção de que muitos outros esperam o mesmo. Nãose falou em comportamentos. Podem admitir-se desvios,até em proporções significativas. E não se falou emconvicções. Pode-se estar à espera de algum evento previstopela lei, e saber que muitos outros também o esperam,sem ter razões substanciais de desejar este evento.

Nesta base, Luhmann procura caracterizar a ordemjurídica moderna. Distingue-se pelo facto de se poder alteraros seus conteúdos e as expectativas que neles se apoiam.Isto é, a pessoa que, num determinado momento, retirade uma regra jurídica uma expectativa normativa, sabendoque os outros poderão ter a mesma expectativa normativa,também sabe, desde já, que a regra poderá, no futuro,ser alterada e que isto levará todos, ela incluída, a alteraras suas expectativas normativas. Ou ainda, visto numaperspectiva objectiva, pode, em qualquer momento, alte-rar-se uma regra de tal maneira que, efectivamente, asexpectativas normativas da população acompanhem estaalteração. Noutras palavras, o direito positivizado permiteproduzir novas expectativas normativas e alterar as queem certo momento vigoram.

(b) Na discussão geral das relações entre direitopositivo e sociedade moderna, Luhmann propõe um ar-gumento circular: o direito positivo torna a sociedade

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moderna possível; mas, inversamente, a sociedade moder-na fornece as condições necessárias ao direito positivo.O primeiro termo desta argumentação é mais valorizado(veja-se o título do artigo já referido, de 1970, assim como,precisamente, as primeiras linhas do capítulo “Positivizaçãodo direito” na Sociologia do direito, 1972). Talvez, porum lado, porque quer mostrar aos seus novos colegassociólogos a importância que há em incluir o direito noâmbito de observação da sociologia e, por outro lado,porque quer sugerir aos seus (antigos?) colegas juristaso que está em jogo na sua prática, para além de interpretarleis, produzir contratos e regulamentos, gerir litígios, etc.

Luhmann retoma neste ponto a tese que domina todaa sua obra: a sociedade moderna caracteriza-se pela suadiferenciação funcional. Apenas se pode entendê-la se sereconhecer que nela vários âmbitos de actividade sediferenciaram, cada um com características próprias edesempenhando uma função específica necessária à repro-dução da sociedade no seu conjunto. Em termos breves,poder-se-á dizer que as necessidades normativas de umasociedade assim diferenciada se tornaram completamenteimprevisíveis. Com efeito, por um lado, a diferenciaçãodos vários sistemas tornou possível, no seio de cada umdeles, novas alternativas de acção (exemplos: a diferen-ciação do dinheiro torna possível actividades económicasmais diversificadas do que nas economias tradicionais; adiferenciação do sistema político favorece a contraposiçãode projectos políticos em competição, etc.). Luhmann falaneste ponto de “sobreprodução de possibilidades”24. Poroutro lado, dado que cada sistema evolui segundo a sualógica própria, podem surgir dificuldades na conciliaçãoentre os seus desenvolvimentos respectivos (Luhmann cita

__________________24 N. Luhmann, Rechtssoziologie, 1972, p. 191.

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nomeadamente o exemplo de constatações científicas quecolidem com objectivos políticos ou económicos25). Numtal contexto, é indispensável poder criar novas normas,para novas actividades, e face a novas possibilidades deincompatibilidade entre diversas actividades. Daí a neces-sidade do direito positivizado, isto é, sempre mutável.

Directamente na linha deste argumento, sustenta queo passo determinante no sentido de um direito plenamentepositivizado, isto é, valendo porque mutável, se deu coma produção, ao longo do século XIX, de legislação em novosdomínios, tais como o trabalho ou o alojamento26. Acodificação do direito privado, no início desse mesmo século,teria sido, antes de mais, uma experiência de sistematizaçãode normas já reconhecidas. A este propósito, Luhmannqualifica de ainda imperfeito o conceito de direito positivode Hegel, que não deixa no entanto de qualificar de passoimportante no processo de positivização27.

Inversamente, a diferenciação funcional torna pos-sível a positivização, em particular por um processo: adiferenciação do sistema político. Com efeito, o sistemapolítico moderno, com a sua capacidade de produzirdecisões vinculativas, poderá assumir, entre as suas fun-ções, a de produzir o direito positivo de que a sociedade,na sua globalidade, carece.

Convém registar um ponto conceptual importante. Nostrabalhos aqui discutidos, o direito necessário para asociedade moderna é expressamente qualificado de estru-tura social, e não de sistema (veja-se o título da parteIII da Rechtssoziologie, 1972: “O direito como estruturada sociedade”). E estabelece-se um vínculo privilegiado

__________________25 Cf. Ibidem.26 Cf. Ibidem, p. 201.27 Cf. Ibidem, p. 195.

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entre este direito-estrutura e um sistema social em par-ticular, o sistema político. Esta arquitectura teórica serárevista em profundidade nos anos seguintes, com aqualificação do direito como sistema social, entre um amploleque de outros sistemas sociais, tendo com todos estesrelações de uma comparável complexidade.

A circularidade do argumento que se acaba de sin-tetizar pode causar alguma perplexidade: como pode surgiresta sociedade moderna, que necessita de um direitopositivizado, que, por sua vez, apenas se pode desenvolvernuma sociedade…moderna. Esta circularidade desfaz-se coma tomada em conta de vários processos históricos que teriam,na perspectiva de Luhmann, favorecido a positivização dodireito. Na transição para a modernidade, a sociedade teria,desta forma, encontrado um direito quase positivizado,estando assim reunidas condições favoráveis para uma co-evolução de um tipo de direito e de um tipo de sociedadeque se correspondem um ao outro. Este componente noraciocínio de Luhmann conduz aos fenómenos que, paraalém da diferenciação funcional (que poderá, no entanto,ser relacionada com alguns deles), favorecem a positivizaçãodo direito. Entre estes, pode distinguir-se entre processoshistóricos e mecanismos que continuam a actuar hoje emdia. Esta distinção justifica-se na medida em que os pro-cessos históricos são causas possíveis, enquanto os meca-nismos contemporâneos podem ser abordados como deven-do a sua manutenção às funções que desempenham namanutenção da positividade do direito (perspectiva “fun-cional-estruturalista”: a noção da função orienta a interpre-tação das estruturas observadas28).

__________________28 Sobre a diferença, no entendimento de Luhmann, entre a sua

perspectiva funcional-estruturalista e a perspectiva estrutural-funcionalista de Parsons, ver nomeadamente: IDEM, “SoziologischeAufklärung”, in Soziologische Aufklärung 1, op. cit., p. 78; Legitimationdurch Verfahren, op. cit., p. 39 e 41.

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Os processos históricos relevantes, discutidos breve-mente na Rechtssoziologie, são principalmente:• A “jurisdição com propósito de manutenção da ordem”:

as compilações de leis sob a iniciativa de monarcas quequeriam unificar a prática dos tribunais no seu reinadoe preservar os tribunais de influências locais (p. 193).

• A recepção do direito romano que possibilitou a dis-cussão de conteúdos normativos sem referência directaa um contexto social e que favoreceu o surgimento deuma noção de validade distinta da vigência óbvia doscostumes (p. 196).

• Os esforços, desde a Idade Média até ao Iluminismo,em determinar uma hierarquia entre “direito divino,natural e positivo” (p. 197), que condiziu progressiva-mente à noção abstracta de validade.

• A oposição, na Idade Média, entre direito antigo e direitonovo. Inicialmente formulada para justificar a aplicaçãodo direito antigo, teria criado as categorias necessáriaspara pensar a ordem inversa, privilegiando o direito novo(p. 198).

• Os rituais que se desenvolveram na Idade Média paradar solenidade a novos compromissos (p. 199).

• Finalmente – e aqui reencontramos claramente o pro-cesso de diferenciação funcional, em particular dosistema político – o surgimento de processos de decisãopolítica complexa, nos quais já não se trata apenas decumprir a vontade do soberano mas de formular ob-jectivos políticos. Seria no contexto de tais processosque se teria progressivamente aprendido a distinguirentre, por um lado, infrações, a considerar como gestosde resistência ao soberano, aos quais se reage por umarevalorização das normas postas em causa, e, por outrolado, a oposição contra a legislação, susceptível de serinterpretada como candidata ao fundamento de umalegislação alternativa (p. 200 s).

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Estes vários processos históricos concorreram, emparticular, em delimitar um universo identificável de leis(compilações, recepção das codificações romanas), emproblematizar, ou seja, fazer surgir, a noção da sua validade(debate sobre as fontes divinas e humanas do direito), eem relativizar a noção de imutabilidade do direito.

(c) Luhmann dedica exposições mais extensas aosmecanismos que contribuem actualmente para a manuten-ção da positividade do direito. Distingue aqui dois aspec-tos. Por um lado, manter a positividade significa garantirque se mantenha, na população, apesar das alterações dosconteúdos jurídicos, uma experiência de validade da normajurídica (I). Por outro lado – aspecto que será tratado aquimais sumariamente ––, a positividade exige que o direito,pelas suas características intrínsecas, possa ser facilmentealterado (II). Distinguir estes dois aspectos não significaque se deva presumir que mecanismos específicos serãodedicados a cada um29. Luhmann não procura estabeleceraqui relações bi-unívocas entre funções e mecanismos. Umavez identificada, a função inspira várias possíveis inter-pretações das estruturas.

(I) Quanto à manutenção das experiências de vali-dade, a tese mais conhecida é exposta em Legitimação

__________________29 Para uma boa ilustração desta maneira de relacionar funções

e estruturas, ver IDEM, Soziologische Aufklärung. Aufsätze zur Theoriesozialer Systeme, Opladen, Westdeutscher Verlag, 1970, p. 138, onde«variabilidade e capacidade de aprendizagem no domínio das expec-tativas normativas» são ambas relacionadas com «coacção física e(...) programação condicional». Luhmann, de alguma maneira, adoptaperante os fenómenos sociais que observa uma atitude semelhante àque atribui às pessoas que observa: estas não podem conhecer osmotivos daqueles com quem interagem e, logo, operam na base deinterpretações mistas. Luhmann não pretende conhecer funções queseriam unicamente e intrinsecamente atribuídas a determinadas estru-turas; logo, trabalha a partir da hipótese de um misto de funções.

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pelo procedimento30. Nesta obra, como já foi acimaassinalado, Luhmann utiliza um conceito particular delegitimidade. Não se interessa pelos motivos substanciaisque se pode ter em aderir a determinadas regras ou decisões,mas sim pelas aparências de adesão que proporcionamdeterminados comportamentos, aparências que contribuempara a orientação dos comportamentos dos outros. Aaceitação de uma norma não se prenderia com argumentosde fundo. Resultaria da composição de várias experiên-cias, todas elas favorecidas pelo procedimento: de con-formidade e aparente adesão de outras pessoas; do iso-lamento a que uma pessoa ficaria votada se adoptasse umaatitude de contestação; do facto de a decisão ter sido tomadapor outros e não dizer directamente respeito à pessoa queassiste de longe ao procedimento, etc. Esta aceitação semmotivo de fundo que Luhmann chama legitimidade é umdos possíveis sustento sociológicos da positividade dodireito: a experiência de uma norma jurídica poder serproduzida por decisão e sempre poder ser alterada surgena participação em sucessivos procedimentos jurídicos, noassistir de longe a numerosos processos jurídicos e noconhecimento que se tem do facto de um sem númerode procedimentos jurídicos (decisões em tribunais eparlamentos) terem lugar com a aparente aceitação dosque participam e dos que assistem.

Este mecanismo é favorecido pela distinção entreprocedimentos legislativos e procedimentos judiciais. Porum lado, reservar as decisões individuais para procedi-mentos posteriores facilita a aceitação dos resultados de

__________________30 Ver também IDEM, Rechtssoziologie, 1972 / 1985, p. 218

/ 18, pp. 259 / 61 ss; uma formulação muito sintética do modeloda legitimação pelo procedimento também se encontra em IDEM,Soziologische Aufklärung. Aufsätze zur Theorie sozialer Systeme, op.cit., p. 133.

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um procedimento em que são discutidas as regras abs-tractas. Inversamente, a discussão dos casos particularesé facilitada pelo facto de várias questões poderem serconsideradas como resolvidas e insusceptíveis de novadiscussão, por já terem sido tratadas noutra sede.

Desta maneira, a positividade do direito derivaria daexperiência que temos dos “procedimentos”. Resta, noentanto, captar melhor esta realidade dos procedimentos.Aqui, voltamos a encontrar um argumento à primeira vistacircular: procedimentos são encadeamentos de situações,que percepcionamos como ligadas umas com as outrasdevido a determinadas estruturas. A primeira estruturareferida é...o próprio direito positivo: «normas jurídicasgerais, valendo para muitos procedimentos jurídicos»31. E,no entanto, não estamos num simples círculo fechado (oprocedimento produz direito positivo que, por sua vez,produz o procedimento). Para já, porque, como se diz naprópria citação, contemplam-se aqui regras aplicáveistambém noutros procedimentos. Logo, a percepção da suapositividade não depende apenas do que se está a passarnum procedimento em particular. A experiência da ma-neira como identificaram e estruturaram eficazmente outrosprocessos contribui para os reconhecer como estrutura doprocedimento em que estamos actualmente envolvidos. Paraalém, disto, Luhmann acrescenta a este factor vários outros,sem relação directa com o direito: os rituais de aberturade momentos processuais32, os dispositivos materiais dasua identificação e delimitação (refere o exemplo suges-tivo de um restaurante transformado em local de voto,transformação imediatamente perceptível “até pelo pesso-al de limpeza”: mesas deslocadas, cabinas, cartazes, etc.33),

__________________31 IDEM, Legitimation durch Verfahren, op. cit., p. 42 / 40.32 Cf. Ibidem, p. 39 / 38.33 Cf. Ibidem, p. 43 / 40.

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ou, ainda, o facto de cada processo dar lugar à uma“história” própria.

Um segundo mecanismo de garantia da positividadeé a estreita relação entre o direito positivo e a possibi-lidade do uso da força para a sua execução. O argumentoinicial, neste ponto, é simples:

«Só pelo meio de um poder que tenha como base [os

meios da coacção física] pode o direito atingir esta

margem de variabilidade e esta independência interna em

relação a instituições concretas preexistentes que pos-

sibilitam a positivização»34

Luhmann pretende, no entanto, distanciar-se do modeloconvencional segundo o qual a coacção aumentaria a proba-bilidade das regras jurídicas serem cumpridas. Pretende mostrarque duas evoluções estão relacionadas: as possibilidades cadavez mais sofisticadas de usar a força simultaneamente sãofacilitadas pela positivização do direito e contribuem para esta.É na primeira parte deste modelo que incide principalmentea sua reflexão (é lícito admitir que a segunda é mais óbvia).Podem encontrar-se em particular dois raciocínios.

Por um lado, a capacidade de constrangimento deuma autoridade torna-se mais fácil de se percepcionar e,logo, é mais intimidante, em virtude do mecanismo dadecisão, nomeadamente a decisão jurídica. Este raciocínioparte de um pressuposto sociológico em que Luhmanninsiste em vários trabalhos dessa época: para compreenderprocessos sociais, temos que ter em conta o facto de os

__________________34 IDEM, Soziologische Aufklärung. Aufsätze zur Theorie sozialer

Systeme, op. cit., p. 139.

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motivos de acção de uma pessoa não serem acessíveisaos outros35. Logo, em situações concretas, cada um temque actuar na base de presunções sobre estes motivos,que terá que construir a partir dos indícios que a situaçãolhe fornece. Uma decisão, quando formulada em termoscondicionais (tal comportamento, ou, inversamente, o nãocumprimento de tal ordem, terá como consequência aaplicação de tal medida de coacção) facilita esta recons-trução hipotética, por parte de uma pessoa, dos motivosde outras pessoas. Se vir alguém abster-se de um com-portamento proibido, ou executar um comportamentoordenado por uma tal decisão, poderá presumir que estaatitude se deve à decisão. Se, para além disto, comoindivíduo moderno, tem a noção de que se obedece a umadecisão porque existe uma razão de obedecer, poderápresumir que esta atitude de obediência se deve, ou aoreconhecimento de “boas razões” da decisão, ou porquese receou o uso da força. Esta última presunção, segundoa qual as atitudes dos outros de conformidade às decisõesda autoridade se deve ao receio que os outros tem da força,dá, por assim dizer, força à noção de força da autoridade36.

Por outro lado, a questão da efectividade da forçasusceptível de ser mobilizada para a execução do direitocoloca-se em termos novos no contexto das nossas ordensjurídicas modernas complexas, que se aplicam a socieda-des complexas37. Com efeito, no contexto de uma sociedade

__________________35 Ver nomeadamente IDEM, Grundrechte als Institution. Ein

Beitrag zur politischen Soziologie, op. cit., p. 134; IDEM, “Normenin soziologischer Perspektive”, Soziale Welt, 20 (1969), p. 28.

36 Existe alguma complementaridade entre esta teoria do efeitoda força pelo efeito do direito e as reflexões de Michel Foucault sobreas relações fluidas entre as medidas de coacção fortes (prisão) e asmedidas mais “suaves” (acompanhamento social) tecidas em Vigiare Punir, Petrópolis, Vozes, 1977.

37 Este raciocínio é desenvolvido em particular em Luhmann,Rechtssoziologie, pp. 272 ss / 75 ss.

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complexa, ninguém pode ter uma visão de conjunto sobre oscasos de aplicação do direito e sobre as reacções das autoridades.Neste ponto, Luhmann inverte radicalmente a abordagem dofenómeno bem conhecido da criminologia e da sociologia dodireito, a saber a “cifra negra”38 (a aproximar do conceito de“pirâmide da litigiosidade”39). Numa interpretação funcionalista40,considera que a opacidade causada por estruturas sociais com-plexas – não é possível conhecer todos os ramos do direitoe acompanhar as medidas da sua implementação – favorecea experiência de validade do direito, na medida em que apenasresta ao cidadão comum presumir que, nos domínios dos quaisnão temos experiência directa, a autoridade intervém efectiva-mente cada vez que isto é necessário.

Para o leitor de hoje, este raciocínio não pode deixarde levantar alguma dúvida. A complexidade da sociedadepoderá também contribuir para o sentimento de inseguran-ça41. O próprio Luhmann tem a intuição deste fenómeno:

__________________38 Cf. Jorge de Figueiredo Dias; Manuel da Costa Andrade,

Criminologia — O homem delinquente e a sociedade criminógena,Coimbra, Coimbra Ed., 1984

39 Boaventura de Sousa Santos; Maria Manuel Leitão Marques;João Pedroso; Pedro Lopes Ferreira, Os tribunais nas sociedades con-temporâneas: o caso português, Porto/Coimbra/Lisboa, Afrontamento/ CES / CEJ, 1996, p. 50.

40 N. Luhmann, “Systemtheoretische Beiträge zur Rechtstheorie”,Ausdifferenzierung des Rechts, op. cit., p. 275.

41 Sobre as representações sociais da complexidade social, se-gundo as posições sociais, ver P. Guibentif, “A comunicação jurídicano quotidiano lisboeta. Proposta de abordagem empírica à diferen-ciação funcional”, Forum Sociológico, nº 5/6 (II série), 2001, pp. 129-161 e Guibentif et al., Comunicação Social e Representações do Crime,Lisboa, CEJ, 2002. As conclusões destes trabalhos poderiam sersintetizadas da maneira seguinte: para poder aproveitar o potencialde redução da complexidade das sociedades modernas, é necessárioter alguma experiência concreta da diferenciação social, participandonos seus mecanismos. Para quem fica de fora destes mecanismos,esta complexidade torna-se opacidade e fonte de insegurança.

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«A necessidade de segurança jurídica – bem como opróprio tema – apenas surge como consequência dapositivização do direito, isto é, como consequência dofacto de o indivíduo se poder sentir ameaçado, já nãoapenas por comportamentos não autorizados, mas tam-bém por alterações do direito, ou seja, por comporta-mentos autorizados»42

Outro factor de positivização tratado com algumpormenor por Luhmann é a reformulação do direito emtermos de programa condicional, factor ao qual dá umrelevo equivalente ao que dá à coacção física43. Quantoa este fenómeno, deve notar-se que o seu estatuto nostextos aqui analisados não é fácil de determinar. Luhmannrelaciona-o explicitamente com dois aspectos dapositividade: “capacidade de aprendizagem” e “variabili-dade estrutural”. O primeiro aspecto prende-se directamentecom a questão da validade, cujos factores sociológicosprocuramos aqui inventariar (a positivização do direitosignifica que os destinatários estão dispostos a aceitaralterações dos conteúdos jurídicos, ou seja, aprender novosconteúdos). O segundo diz respeito a outra característica:a facilidade com a qual o direito, pelas suas própriascaracterísticas técnicas, se deixa alterar. Face aos argu-

__________________42 Luhmann, Soziologische Aufklärung. Aufsätze zur Theorie

sozialer Systeme, op. cit., p. 143; no mesmo sentido, IDEM,Rechtssoziologie, 1972 / 1985, p. 253 / 54 s.

43 A distinção entre programação condicional e programação fi-nalizada, na discussão das características do direito positivo, surgejá em IDEM, “Positives Recht und Ideologie”, in SoziologischeAufklärung 1, op. cit, p. 191; ver também IDEM, Zweckbegriff undSystemrationalität. Ueber die Funktion von Zwecken in sozialenSystemen, Tübingen, Mohr (Siebeck), 1968, p. 99 ss. O tema édesenvolvido em termos muito semelhantes em IDEM, SoziologischeAufklärung. Aufsätze zur Theorie sozialer Systeme, p. 138 s. e nocapítulo IV.3. da Rechtssoziologie, 1972, pp. 227 ss.

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mentos que Luhmann constrói à volta da programaçãocondicional, poderá sustentar-se que, em definitivo, rela-ciona-a mais estreitamente com a variabilidade do que coma validade. E, no entanto, são também sugeridas ideiasque têm a ver com o tema da validade.

Quanto a este, pode retirar-se das exposições deLuhmann dois raciocínios. Um baseia-se na ideia segundoa qual a figura da norma condicional constituiria ummecanismo que tornaria “sustentáveis” as incertezas44

quanto aos comportamentos dos outros e à efectivaaplicação de uma sanção em caso de comportamentosdesviantes. Face ao futuro próximo, deixamos de ter queestar abertos a qualquer hipótese. Esta incertezaindiferenciada transforma-se em duas alternativas que nosvão permitir qualificar os acontecimentos: corresponderáo comportamento à norma ou não? Na negativa, haveráuma sanção ou não? Será que este “aliviar” da incertezapode favorecer uma aprendizagem da validade das nor-mas? Luhmann, neste preciso ponto, não é explícito45.Poderia sustentar-se que esta estruturação da experiênciapode favorecer a construção de uma experiência devalidade, isto é, de cumprimento generalizado de umadeterminada norma, da seguinte maneira. Admite-se que,face a um desenrolar concreto dos acontecimentos quesempre terá aspectos opacos ou indefinidos, uma pessoapreferirá, segundo o pressuposto luhmanniano de tendên-cia para a conformidade, testemunhar um cumprimentoda regra e não um desvio. Ou seja, admite-se – numalinguagem sociológica mais usual – uma tendência emproduzir uma realidade de conformidade. Graças à pro-

__________________44 Cf. IDEM, Rechtssoziologie, 1972 / 1985, p. 229 / 29.45 Remeto o leitor interessado para a leitura de IDEM,

Soziologische Aufklärung. Aufsätze zur Theorie sozialer Systeme, pp.140-143 e Rechtssoziologie, 1972 / 1985, pp. 229-230 / 29-30.

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gramação condicional, uma tal construção de uma rea-lidade de conformidade já não tem que se fazer de raiz,eventualmente perturbada, ou até impedida, por algumasensação de decepção ou de indignação. Poderá elaborar-se através do “jogo” que consiste, face a um aconteci-mento que poderia configurar um acto contrário à norma,ou a uma aparente ausência de reacção por parte daautoridade, em procurar, alternativamente, reconsiderar aqualificação inicial do acto observado (pensando bem, nãoera tão grave) ou a apreciação que se fez da reacção (Oque me pareceu uma não reacção ou uma reacção dema-siado mansa talvez tenha escondido uma reacção muitomais incisiva)46. Posso até, eventualmente, deixar em abertoesta alternativa. Nos três casos, uma percepção que sepoderia ter transformado numa experiência de transgres-são, tornou-se numa experiência – fraca talvez, massuficiente – de validade.

A programação condicional poderá favorecer a ex-periência de validade através de outro mecanismo, ao qualLuhmann dedica mais atenção. Este tipo de programaçãotem consequências no plano da avaliação das decisõestomadas e dos seus efeitos. Em princípio, face a umadecisão tomada em aplicação de uma norma condicional,examinar-se-á em primeira linha se as condições enun-ciadas eram realmente cumpridas; sendo o caso, examinar-se-á se a decisão foi efectivamente cumprida. Nada, naprópria norma condicional, nos compromete em ir alémdestes dois passos e, em particular, em apreciar as con-

__________________46 Em apoio a este raciocínio, poder-se-ia também recorrer à

teoria da “redução da dissonância cognitiva” elaborada em psicologiasocial. Quanto à interpretação dos factos, ver Théodore Ivainer,L’interprétation des faits en droit. Essai de mise en perspectivecybernétique des “lumières du magistrat”, Paris, L.G.D.J.,1988, que,no entanto, se centrava no raciocínio dos juristas.

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sequências mais longínquas das normas. Diferente seriaa avaliação de uma medida tomada em aplicação de umprograma “finalizado”, definido por alguma finalidade.Uma avaliação orientada por finalidades é mais complexae mais susceptível de revelar desvios ou insuficiências,que poderão “roer” a legitimidade da instância que tomoua decisão. Uma avaliação baseada numa norma condici-onal tem mais hipótese de ter um resultado positivo. Emrelação a esta diferença, Luhmann chama a atenção paraas virtualidades, nas sociedades modernas, da separaçãoentre esfera política e esfera judicial, funcionando a primeirapor programação finalizada, a segunda por programaçãocondicional. Evita que o Estado seja submetido em todasas suas actividades às mesmas exigências de apreciação.Separa um âmbito de acções mais limitadas e previsíveis,às quais será mais fácil de dar aparências de efectividade(a actividade dos tribunais e de certos sectores da admi-nistração), e um âmbito de actividades mais variadas eflexíveis, mas exigindo um maior esforço na demonstra-ção da sua eficácia (o âmbito político).

Temos aqui mais um ponto em relação ao qualLuhmann propõe uma imagem que se afasta de experi-ências mais recentes. Também neste ponto, no entanto,alude aos desenvolvimentos que entretanto se verificaram,assinalando em particular a dificuldade que poderá haver,a longo prazo, em não contemplar os efeitos diferidos dasleis. Evoca até a possibilidade de se desenvolveremprocedimentos específicos de decisão finalizadas sobre aaplicação de normas condicionais47. Antecipava assim aproliferação de procedimentos avaliativos à qual se assistehoje em dia. Estávamos ainda no início dos anos 70, aindaalguns anos antes do surgimento do tema dos efeitos

__________________47 Cf. N. Luhmann, Rechtssoziologie, 1972 / 1985, p. 234 / 33 ss.

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perversos das leis e, pouco mais tarde, com fortíssimasafinidades com este, do tema da crise do Estado-providência.

Finalmente, para terminar este ponto, sem, no en-tanto, pretender ter tratado exaustivamente os possíveisfactores de produção de experiências de validade abor-dados por Luhmann, lembremos este factor referido naspróprias definições iniciais do fenómeno: aceita-se o direitopositivo no seu estado actual, em parte, porque se sabeque é susceptível de ser alterado48.

(II) Quanto ao tema da variabilidade, lembremos queLuhmann insiste nas virtualidades da programação condici-onal: facilitaria consideravelmente o trabalho de elaboraçãolegislativa, ao impor à partida a distinção entre condiçõese dispositivo, sugerindo assim a formulação tanto de alte-rações das condições como de alterações do dispositivo49.

O principal mecanismo é a distinção entre a legis-lação e a actividade dos tribunais. Esta distinção lida, poder-se-ia dizer, com esta característica paradoxal do direitopositivo, estabilizado, porque susceptível de ser alterado.Os tribunais devem aplicar o direito como válido actu-almente, sem contemplar a sua evolução no tempo, ou

__________________48 Luhmann mantém-se num plano de discussão interpretativa

destes fenómenos (embora apoiando-se em numerosas referências atrabalhos empíricos nos campos da sociologia, ciência da adminis-tração, psicologia social, etc.). Seria no entanto perfeitamente pos-sível, a partir deste modelo bastante pormenorizado, construir umquestionário, referindo-se de preferência a determinados textos legais,e convidar as pessoas questionadas a indicar os motivos da sua adesão/ da adesão de outras pessoas, propondo um leque de argumentos,tais como: “porque está de acordo”, “porque quer evitar uma multa”,“porque pensa que não vai vigorar muito tempo”, etc. Diferenças nasrespostas, entre categorias sociais, entre países, poderiam oferecer umvalioso material para aprofundar, com bases empíricas, a questão dolugar do direito positivo nas nossas sociedades.

49 Cf. Ibidem, 1972, p. 230.

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seja, proporcionam a experiência de um direito estável.Nesta perspectiva, não podem ter em conta eventuaissituações de inefectividade; não se preocuparão comeventuais efeitos imprevistos das suas sentenças, etc. Porsua vez, as instâncias legislativas abordam o direito comosusceptível de ser alterado. Nesta perspectiva, poderãotomar em consideração todo o universo de reacção à leique os tribunais tiveram que ignorar.

Um terceiro fenómeno que Luhmann relaciona emparticular com a variabilidade do direito é a sua“reflexividade”50. O direito regulamenta-se a si próprio. Estaregulamentação prevê, em particular, as modalidades dealteração da lei, isto é, a variabilidade do direito. A diferençaentre normas substanciais e normas de procedimento é maisuma forma de lidar com a característica paradoxal do direito,estabilizado porque variável. Sempre que se empreende aalteração de determinadas normas, isto é feito na base deoutras normas, processuais, as quais, durante o processo derevisão do direito substancial, não serão alteradas. Pela maneiracomo o direito define os processos da sua alteração, há sempre,por definição, um conjunto de normas que se mantém estável,garantindo melhores condições de variabilidade às restantes.

Para concluir a apresentação desta etapa do pensamentode Luhmann sobre o direito, deve insistir-se na atitude deLuhmann face aos fenómenos observados. Não é uma atitudede pura produção de conhecimento. Luhmann tambémexprime, muito claramente, uma valoração, e uma valoraçãomuito positiva do fenómeno da positivização. Um fragmentoparticularmente claro neste sentido, retirado de um dosprimeiros textos onde desenvolve o tema, é o seguinte:

__________________50 Ver nomeadamente IDEM, “Reflexive Mechanismen”, in

Soziologische Aufklärung 1, op. cit., em particular p. 96; IDEM,“Positives Recht und Ideologie”, in Soziologische Aufklärung 1, op.cit., pp. 184 ss.

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«A complexidade do que pode, desta maneira, ser for-mulado em normas e os resultados que se podem obter,com uma razoável previsibilidade (ziemlich zuverlässig),é espantosa e admirável, mesmo que o aparato estejaa gemer, debaixo da complexidade secundária das suasnormas, e a reivindicar alívio»51

A convicção de Luhmann é que a sociedade do seu temponecessita do direito positivo e que, logo, o direito actual temque se tornar plenamente positivo. Neste sentido, parece-lheque, em particular, a teoria do direito (nomeadamente pelasua maneira de insistir na noção de hierarquia das leis) nãoestá à altura de um direito plenamente positivizado. A suaambição é de contribuir para a necessária renovação desta teoria,através de uma nova teoria sociológica do direito:

«Um estilo tão instável e oportunista do direito requerum elevado grau de abstracção do controlo do pensa-mento e de transparência das estruturas e relacionamen-tos – exigência que, actualmente, não são cumpridas, delonge, nem pela ciência do direito nem pela sociologia.Devem ser identificados quais os problemas que devemser solucionados nos sistemas sociais de uma sociedademoderna, quais as soluções funcionalmente equivalentesque são alcançáveis e como as soluções podem interferirumas com as outras ou até se bloquear umas às outras.Para isto, a dogmática jurídica deveria ser ligada a umasociologia dos sistemas suficientemente elaborada»52

É nesta perspectiva que a Sociologia do Direito, nasua edição de 1972, se conclui com o capítulo intitulado:“Perguntas à teoria do direito”53. Capítulo que desaparece

__________________51 IDEM, “Reflexive Mechanismen”, in Soziologische Aufklärung

1, op. cit., p. 96.52 IDEM, Soziologische Aufklärung. Aufsätze zur Theorie sozialer

Systeme, op. cit., p. 146.53 E não à “sociologia do direito”, como se escreve erradamente

na tradução brasileira.

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na reedição de 1983. Para entender o alcance desta al-teração temos que abordar a etapa seguinte na evoluçãodo pensamento de Luhmann sobre o direito.

B – A autopoiesis do direito

A teoria de Niklas Luhmann nunca deixou de evoluir.O próprio autor costuma insistir na continuidade desteprocesso. Tratava-se, desde o início, de desenvolver umateoria que desse adequadamente conta da sociedademoderna, e este objectivo manteve-se ao longo do tem-po54. O seu método de trabalho – as famosas “caixas defichas”55 – favorece esta continuidade: os novos conceitoselaboram-se em boa parte numa reflexão sobre a suapossível inserção no universo complexo de conceitospreexistentes. Luhmann reconhece, no entanto, umareorientação mais radical, para não falar de uma ruptura,entre o fim dos anos 70 e os primeiros anos de 80,qualificando este momento de “mudança de paradigma”56.Passa a reorganizar toda a sua conceptualização dossistemas sociais à volta do conceito de “autopoiesis”.

Nos estudos sobre o direito que se seguem àRechtssoziologie, Luhmann dá uma importância crescenteao tema da unidade do direito. Tem a convicção de que

__________________54 Neste sentido, ver em particular o prefácio de Die Gesellschaft

der Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp, 1997, pp. 11 ss.55 Sobre estas, ver as duas entrevistas incluídas em Arnaud;

Guibentif, (orgs.), Niklas Luhmann observateur du droit, op. cit.56 Esta expressão é utilizada no prefácio da nova edição da

Rechtssoziologie, de 1983, p. VII e, sobretudo, no título da introduçãoa Soziale Systeme (1984): “Mudança de paradigma na teoria dossistemas”. No ano anterior, Luhmann tinha publicado um artigo como mesmo título numa revista búlgara e numa revista italiana, artigoque refere num breve texto de introdução à tradução italiana daSoziologische Aufklärung, que data também de 1983.

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esta unidade é necessária ao desempenho das funções dodireito. Mas ao mesmo tempo, vê-a como desafiada pelocrescimento e pela compartimentação da matéria jurídica57.Procurando dar conta do que, apesar destes fenómenos,garante uma certa unidade real ao direito, é conduzido adar uma importância crescente à noção de sistema jurídico(recorde-se que, até aí, o direito era abordado como umaestrutura social). No esforço de desenvolver um conceitode sistema jurídico que se distinga do que utilizam os teóricosdo direito, vai, nomeadamente passando por uma discussãocrítica da noção de justiça (em alemão: Gerechtigkeit),identificar como um dos mecanismos garantindo estaunidade, a distinção entre Recht e Unrecht, uma termino-logia em alemão algo ambivalente, que, no contexto dosartigos dessa época, ainda pode ser lido como remetendopara a oposição justo / injusto58. Em artigos de meadosdos anos 70, afirma-se também a ideia segundo a qual o“sistema jurídico” é constituído pelo conjunto das comu-nicações sobre o direito, abordado quer positivamente, quernegativamente (em comunicações que têm como tema amaneira de contornar ou de infringir o direito)59.

A estas reflexões sobre o direito correspondem, nestesmesmos anos, trabalhos mais gerais sobre os sistemas

__________________57 Cf. N. Luhmann, Rechtssoziologie, 1972 / 1985., p. 268 /

71; “Gerechtigkeit in den Rechtssystemen der modernen Gesellschaft”,in”Ausdifferenzierung des Rechts, op. cit., p. 401.

58 Cf. IDEM, “Gerechtigkeit in den Rechtssystemen der modernenGesellschaft”, in Ausdifferenzierung des Rechts, op. cit., pp. 386 e 411;1974a, p. 21. É também em 1974 que Luhmann fala da distinção “con-servador / progressivo” como “código” do sistema político: Cf. IDEM,“Der politische Code: ‘Konservativ’ und ‘progressiv’ in systemtheoretischerSicht”, in Soziologische Aufklärung 3, op. cit., pp. 267-286.

59 Cf. IDEM, Rechtssystem und Rechtsdogmatik, Stuttgart,Kohlhammer, 1974, p. 52; IDEM, “Ausdifferenzierung desRechtssystems”, in Ausdifferenzierung des Rechts, op. cit., p. 37.

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sociais, nos quais Luhmann dá conta de uma preocupaçãoem completar um instrumentário conceptual que lhe pareceainda insuficiente. Na busca de formulações mais adequa-das do seu modelo de sistema social vai encontrar oconceito de “autopoiesis” proposto por Humberto R.Maturana e Francisco J. Varela, conceito que cita pelaprimeira vez, salvo erro, em 198060.

Precisamente na fase em que empreende areformulação da sua teoria, 1981,—Luhmann publica arecolha de artigos Ausdifferenzierung des Rechts. Estevolume reúne trabalhos originalmente publicados entre1965 e 1980, isto é, todos anteriores à recepção do conceitode autopoiesis, mas alguns anteriores, outros posterioresà reconceptualização do direito como sistema social. Otítulo poderia assim merecer duas leituras: textos sobrea diferenciação do direito nas sociedades modernas; textosdando conta da diferenciação do conceito de sistemajurídico no pensamento de Luhmann. Poder-se-ia tambémsustentar que Luhmann quis reunir neste livro um con-junto de textos que, apesar desta evolução, tinham aindauma certa unidade, antecipando uma ruptura mais pro-funda e sinalizando assim o fim de uma etapa.

Luhmann considera o modelo elaborado a partir doconceito de autopoiesis como suficientemente consistentepara poder iniciar a redacção da parte principal da suaobra, uma sociologia da sociedade moderna, abordada apartir dos seus sistemas funcionalmente diferenciados.Trabalho que, como se sabe, iniciou com

Soziale Sisteme61, discussão geral do conceito desistema social, seguido de um conjunto de obras dedicadas

__________________60 Cf. IDEM, “Theoretische Orientierung der Politik”, in

Soziologische Aufklärung 3, op. cit., p. 291.61 IDEM, Soziale Systeme. Grundriss einer allgemeinen Theorie,

Frankfurt, Suhrkamp, 1984.

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a vários sistemas funcionalmente diferenciados: a econo-mia (1988), a ciência (1990), o direito (1993), a arte (1995),e concluída por um trabalho sobre a própria sociedade62,tal como se experiencia a si própria principalmente atravésdos sistemas funcionalmente diferenciados que a compõem.

O principal texto sobre o direito publicado depoisda “mudança de paradigma” é o volume que se inserena série de trabalhos que se acaba de referir63. Publicatambém, no entanto, numerosos artigos sobre este mesmotema antes e depois deste livro.

Tem crescido consideravelmente, nestes últimos anos,a bibliografia sobre a teoria dos sistemas autopoiéticosde Luhmann, nomeadamente a sua aplicação ao direito64,

__________________62 IDEM, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp, 1997.63 IDEM, Das Recht der Gesellschaft, Frankfurt, Suhrkamp, 1993.64 Ver em particular François Ost, “Le droit comme pur système”,

in Pierre Bouretz (dir.), La forçe du droit. Panorama des débatscontemporains, Paris, Éditions Esprit, 1991, pp. 139-162; João PissarraEsteves, “Apresentação”, in Niklas Luhmann, A improbabilidade dacomunicação, Lisboa, Vega, 1992, pp. 5-38; José Engrácia Antunes,“Prefácio”, in Gunther Teubner, O direito como sistema autopoiético,Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993; Juan António GarciaAmado, “La société et le droit chez Niklas Luhmann”, in A.-J. Arnaud;P. Guibentif (orgs.), Niklas Luhmann observateur du droit, op. cit.,pp. 101-145; A.-J. Arnaud; Fariñas Dulce, Sistemas jurídicos: Ele-mentos para un análisis sociológico, Madrid, Universidad Carlos III/Boletin Oficial del Estado, 1996; Jean Clam, Droit et société dansla sociologie de Niklas Luhmann. Fondés en contigence, Paris, PUF,1997; Evaristo Prieto Navarro, “La teoria de sistemas de NiklasLuhmann y el derecho”, in Juan António Garcia Amado (dir.), Eldeerecho en la teoria social, Madrid, Dykinson, 2001; P. Guibentif,“A comunicação jurídica no quotidiano lisboeta. Proposta de abor-dagem empírica à diferenciação funcional”, Forum Sociológico, nº 5/6 (II série), 2001, pp. 129-161; Michael King; Chris Thornhill, NiklasLuhmann’s theory of Politics and Law, Basingstoke/New York, Palgrave,2003; Jiri Priban; David Nelken (eds.), Law’s New Boundaries,Aldershot, Ashgate, 2001.

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pelo que me cingirei aqui a uma exposição sucinta, emcinco pontos65:• Luhmann define a sociedade como composta por

comunicações. Isto é, quer distinguir claramente os factossociais, comunicacionais, dos factos de consciência, doforo individual e psicológico. O raciocínio subjacentea esta opção é que os factos de consciência nunca podemser apropriadamente conhecidos pelos outros indivíduose que, logo, não podem fundamentar uma actividadesocial. Esta, pelo contrário, necessita de mecanismosque sejam tão independentes quanto possível das cons-ciências das pessoas envolvidas.

• Para caracterizar esta realidade da sociedade-comunica-ção, Luhmann utiliza o conceito de autopoiesis. Qualqueracto de comunicação produz-se pelo facto de respondera outro acto de comunicação, e possibilita, por sua vez,comunicações futuras. A sociedade não é mais que oconjunto das comunicações actuais, que, pelo seu acon-tecer, a reproduzem, isto é, actualizam o facto de acomunicação poder permanentemente produzir comuni-cação. Com este conceito, Luhmann pretende escapar àsconcepções que se poderiam qualificar de substancialistasdas realidades sociais. Não existe uma sociedade comouma vasta entidade que, por assim dizer, pairaria sobreindivíduos que incluiria. Apenas existe o que aconteceagora. Mas o que acontece agora tem uma virtualidadede conexão com o imediatamente anterior e o imedi-atamente posterior que faz existir, aqui e agora, algo maisque os actos momentâneos.

__________________65 Para referências precisas aos trabalhos de Luhmann que

abordam estes cinco pontos, ver P. Guibentif, “A comunicação jurídicano quotidiano lisboeta. Proposta de abordagem empírica à diferen-ciação funcional”, Forum Sociológico, nº 5/6 (II série), 2001, pp. 129-161.

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• Na sociedade, isto é, no universo das comunicações,fazem-se e desfazem-se em permanência agrupamentosde comunicação dotados de uma unidade; uns maisefémeros, outros mais estáveis.Entre estes, Luhmann distingue três categorias. Os queconsidera como característicos das sociedades moder-nas, e aos quais dedica, logo, mais atenção, são ossistemas sociais funcionalmente diferenciados. Ao lon-go do seu percurso, Luhmann identificou, entre estes,a política, a economia, a ciência, a religião, o direito,a arte, o sistema educativo, o sistema de tratamentode doenças. Trata-se de universos de comunicação quetêm em particular duas características: evoluiram nosentido de cumprirem uma função muito específica; eestendem-se a toda a sociedade-mundo. Uma segundacategoria de sistemas sociais são as organizações. Oseu estatuto na obra Luhmann é notável. Iniciou a suacarreira universitária com um doutoramento sobre ofenómeno organizacional66, que inspirou profundamenteos seus primeiros trabalhos de sociologia dos sistemassociais. Durante anos, as organizações passam clara-mente para o segundo plano, embora Luhmann as refiraocasionalmente como elementos de grande importâncianum modelo completo da realidade social67. Nos seusúltimos anos de vida, volta a abordar este tema, fina-lizando um livro que será publicado já depois da suamorte: Organisation und Entscheidung (2002)68. As

__________________66 Cf. N. Luhmann, Funktionen und Folgen formaler

Organisation, Berlim, Duncker & Humblot (Schriftenreihe derHochschule Speyer, Band 20), 1964.

67 Um exemplo: IDEM, Rechtssystem und Rechtsdogmatik, op.cit., pp. 73 ss.

68 De assinalar neste contexto, em 1994, uma quinta edição deFunktionen und Folgen formaler Organisation, com um novo “epílogo”.

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organizações, ao contrário dos sistemas funcionalmentediferenciados, definem-se pelas suas limitações espa-ciais, materiais e pessoais, e estas limitações são maisrelevantes na sua definição do que eventuais funçõesespecíficas, que podem evoluir ou diversificar-se. Nassociedades modernas, sistemas funcionais e organiza-ções completam-se. A diferenciação da economia e dosistema educativo possibilitou o surgimento de orga-nizações com meios humanos e materiais consideráveis.Estas, por sua vez, sustentam materialmente o funci-onamento dos sistemas funcionais. No caso do direito,trata-se dos tribunais, dos parlamentos, das profissõesjurídicas, etc. Uma terceira categoria de sistemas so-ciais que Luhmann evoca frequentemente, mas aos quaisdedicou apenas poucos textos, são as interacções. Sãosistemas sociais efémeros, que se podem tecer tanto noquotidiano do funcionamento das organizações e dossistemas funcionais, como fora deste. Além destas trêscategorias Luhmann procura, através dos conceitos deautopoiesis e de diferenciação social, reconceptualizara própria sociedade, isto é, o universo da totalidade dascomunicações, que tem, assim entendida, um âmbitonecessariamente planetário.

• Face à diversidade dos sistemas sociais, a principalinterrogação da teoria dos sistemas auto-poiéticos incidenos mecanismos pelos quais se mantém a unidade decada um destes sistemas. Ou, por outras palavras, comose mantém a autopoiesis de cada sistema, considerando,como ficou exposto no segundo ponto, que cada sistemaexiste pela maneira como, no imediato, comunicaçõesacontecem como resultando de anteriores e gerandoposteriores, relacionando-se umas com as outras, sendoesta relação simultaneamente possibilitada por econstitutiva de uma determinada característica. Mencio-

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nar-se-á aqui apenas dois mecanismos possibilitadores deautopoiesis, que se podem considerar como os mais im-portantes. Um é, na terminologia de Luhmann, o «códigobinário». Observa este mecanismo, em particular, nos sis-temas funcionalmente diferenciados e na sociedade emgeral. Um sistema funcionalmente diferenciado é cons-tituído pelo conjunto das comunicações que fazem interviruma determinada distinção, distinção que (1) dinamiza aautopoiesis, na medida em que a invocação de um termoconvida a responder pelo outro termo, (2) identifica osistema, pois a distinção é diferente para cada sistemadiferenciado, (3) existe, é reproduzida, é estabilizada notempo, pelo facto de intervir nas comunicações que geramum determinado sistema. Entre estes códigos binários,recordar-se-ão em particular as oposições seguintes: ter/ não ter (economia), verdadeiro / falso (ciência), conse-guido / não conseguido (arte), e recht / unrecht, de acordocom o direito / contrário ao direito (direito). Um outromecanismo é a auto-observação, através da qual, nasoperações de um sistema, se pode fazer a diferença entreo que pertence ao próprio sistema (operações da mesmanatureza) e o que lhe é exterior. É a este ponto que Luhmanndedicou os seus últimos e mais ambiciosos esforços teóricos.Trata-se, resumidamente, de dar conta desta contradição:os sistemas sociais existem e subsistem, o que significaque conseguiram estabelecer mecanismos efectivos de auto-observação; mas, por outro lado, a auto-observação éimpossível, porque um observador nunca se pode observara si próprio. Existe aqui um paradoxo; logo, entender arealidade social significa entender como se conseguemreduzir paradoxos.

• Os sistemas sociais, assim entendidos, são universos decomunicações formados pelo facto de certas comuni-cações identificarem outras como pertencendo ao mesmo

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universo por mobilizarem a mesma distinção, isto é,propondo uma mensagem que faz sentido. O que nãose baseia nesta distinção não faz sentido. Na termino-logia sistemista, será qualificado de ruído, ou de irritação.Mais uma vez, a teoria conduz aqui a uma modelizaçãoque é contradita pela realidade e que obriga a umraciocínio complementar. Com efeito, podemos verifi-car que existe algum grau de articulação entre, porexemplo, os sistemas jurídico, político e económico. Facea estes fenómenos, a teoria dos sistemas constrói oconceito de “acoplamento estrutural” (strukturelleKopplung; structural coupling)69. Admite-se que, emboraos acontecimentos de um determinado sistema não sejamdirectamente relevantes para um outro sistema, este vaidesenvolver, no processo de evolução da sociedade,mecanismos facilitando uma atenção focalizada paradeterminados aspectos do outro sistema e, por assimdizer, uma tradução entre os dois sistemas. Luhmanninterpreta neste sentido a importância de diversosconceitos jurídicos, que considera dever-se ao facto deserem também relevantes noutros sistemas, facilitandoassim a articulação estrutural do direito com estessistemas. Analisa neste sentido, em particular, os con-ceitos de constituição (articulação com o sistema político)e de interesse (articulação com o sistema económico).

III

Tendo sumariamente apresentado as duasconceptualizações desenvolvidas sucessivamente por

__________________69 Sobre este conceito, ver nomeadamente Edmundo Balsemão

Pires, “Diferenciação funcional e unidade política da sociedade. A partirda obra de N. Luhmann”, Revista Filosófica de Coimbra, nº 23 (2003),pp. 139 ss.

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Luhmann, trata-se agora de apreciar pontos comuns ediferenças (A), e de nos interrogarmos sobre o significadoque pode ter para a recepção teórica do trabalho desteautor a transição conceptual observada (B).

A - Elementos de comparação

Examinaremos aqui sucessivamente os pontos comunsentre as duas conceptualizações (a) e algumas diferençasparticularmente significativas (b).

(a) A constante mais patente é o lugar central do temada diferenciação funcional na argumentação de Luhmann.Para além disto, encontram-se em vários lugares nostrabalhos anteriores à “mudança de paradigma” motivosque se aproximam de conceitos que serão elaborados depoisdesta transição, mas que ainda não são aprofundados.Assim, a”“reflexividade” dos sistemas, discutida nos anos60-7070, evoca a noção de auto-observação desenvolvidamais tarde. Várias formulações sobre a realidade do direitona Rechtssoziologie poderiam ser descrições concretas dosprocessos autopoiéticos. Um exemplo: «O critério (dapositividade) reside na experiência jurídica actual tal comose processa em permanência»71. A noção de opacidade,na perspectiva de uma pessoa, dos motivos das outraspessoas anuncia a distinção entre sistemas psíquicos esistemas sociais. Inversamente, vários conceitos centraisda primeira etapa são retomados na segunda etapa; emprimeira linha os de expectativas normativas72 e de

__________________70 Cf. N. Luhmann, “Reflexive Mechanismen”, in Soziologische

Aufklärung 1, op. cit., pp. 92-112; IDEM, Sociologia do Direito, op.cit., vols. 1 e 2, pp. 217 ss.

71 Ibidem, p. 209: «im laufend aktuellen Rechtserleben».72 Cf. IDEM, Das Recht der Gesellschaft, op. cit., pp. 131 ss.

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positividade73. Apesar destas afinidades entre as teorizaçõesdas duas fases, no entanto, existe em regra geral um certodesfasamento. É este desfasamento que se trata agora demedir mais precisamente.

(b) Uma primeira diferença reside na delimitação doobjecto “direito”. Quanto à primeira fase, a definiçãoseguinte, retirada da Rechtssoziologie, é particularmenteclara:

«Vamos designar expectativas de comportamentocongruentes e generalizadas como o direito de um sis-tema social. O direito fornece congruência selectiva eforma desta maneira uma estrutura de sistemas sociais»74

O direito, desta maneira, é constituído por um conjuntode expectativas normativas de comportamento. Já no iníciodo que designamos aqui a segunda fase, o direito é definidonos termos seguintes:

«O sistema jurídico de uma sociedade é constituído pelatotalidade das comunicações sociais que são formuladascom referência para o direito»

Antes, expectativas que devem ser produzidas, quepodem ser tidas em conta em determinados comportamen-tos. Depois, determinados comportamentos: comunicaçõessobre o direito.

Esta diferença no que poderíamos chamar a matéria-prima para a qual remete o conceito de direito prende-se directamente com a qualificação mais abstracta quemerece o direito nas duas fases. Recordemos que, na

__________________73 Cf. Ibidem, pp. 38 ss. Ver o índice temático de’Das Recht

der Gesellschaft.74 IDEM, Rechtssoziologie, p. 99.

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primeira fase, o direito é uma estrutura (as expectativasnas quais se pode apoiar o funcionamento de um deter-minado sistema social). Na segunda fase, é um sistemasocial próprio, constituído, como todos os sistemas so-ciais, por comunicações.

A segunda definição capta uma realidade de algumaforma mais ampla, ou, dito por outras palavras, remetepara algo de mais completo, mais directamente observável:não apenas uma “expectativa”, que necessita de compor-tamentos concretos (de formulação, de reacção a outroscomportamentos) para se actualizar, mas uma comunica-ção, isto é, o próprio acto na qual a expectativa se actualiza.Na conceptualização da segunda fase, aliás, a noção queintervém aqui em primeira linha é a noção de código binário“de acordo com o direito / contrário ao direito”. Atravésdo conceito de comunicação jurídica reúne-se assim numaunidade dois fenómenos que, na primeira fase, erampensados separadamente, o acto (a comunicação) e aexpectativa normativa, tratando-se, no entanto, de um tipoparticular de expectativa, que se fundamenta especifica-mente no direito positivo (referência a algo quecorrespondeu ou não a esta expectativa).

O preço da unidade acto comunicacional / expecta-tiva estabelecida, por assim dizer, é o estabelecimento deuma divisória na qual os trabalhos da primeira fase nãoinsistiam: a diferença entre sistemas sociais e sistemaspsíquicos. Ao observar as comunicações, nomeadamentejurídicas, Luhmann pretende fazer abstracção das pessoas.Verifica-se assim uma clara deslocação da tónica, nasexposições de Luhmann, entre a primeira fase, na qualse refere frequentemente às pessoas e às suas experiências,e a segunda, na qual se refere a acontecimentoscomunicacionais.

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Identificada esta mudança, pode perguntar-se qual éo equivalente, na segunda fase, à noção de experiência,central na primeira fase. Um possível candidato é a noçãode “horizonte da comunicação”75: comunicação é selecçãoe, ao seleccionar, está sempre a reproduzir, emboraimplicitamente, as alternativas não seleccionadas. O quedá a sua “espessura” ao que actualmente acontece, nãosão recordações ou motivações de pessoas envolvidas noacontecimento, é o que não aconteceu (exemplo: umadeterminada reforma legislativa optou por uma solução,em detrimento de outras).

Uma reconstituição mais precisa do quecorresponderia na segunda fase, segundo este raciocínio,à experiência do direito positivo referida na segunda fase,exige que se tenha em conta a diferença, claramenteenunciada na segunda fase76, entre o sistema jurídico eo sistema político. Na primeira fase, Luhmann fala dapositividade como correspondendo à experiência daalterabilidade do direito. Esta definição é enunciada numcontexto em que se fala de legislação (ver supra secçãoI), pelo que se associa a noção de alterabilidade do direitoà noção de reforma legislativa. A noção de reformalegislativa, no entanto, não se deixa relacionar com obinómio “de acordo com o direito / contrário ao direito”.Para reencontrar o direito, no sentido mais preciso do termo,temos, aplicando a conceptualização elaborada porLuhmann na segunda fase, que distinguir o jurídico dopolítico. Com efeito, face a uma determinada lei, podemevocar-se dois leques de alternativas. Por um lado, umalei actualmente em vigor pode ser confrontada com os

__________________75 IDEM, Soziale Systeme. Grundriss einer allgemeinen Theorie,

op. cit., p. 194.76 Ver em particular, IDEM, Das Recht der Gesellschaft, op.

cit., pp. 417 ss.

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projectos de leis, recentemente rejeitados, ou actualmenteem preparação, que actualizam o que se poderia qualificarde “oposições” face à lei. O código binário que está emjogo é assimilável, embora possa carecer de algum ajus-tamento, ao código “governo / oposição” que identificao sistema político77. Por outro lado, a lei actualmente emvigor destina-se a ser confrontada com situações concre-tas, às quais terá que ser aplicada. Em muitos casos, estaaplicação não conduzirá a soluções unívocas, mas obri-gará a confrontar várias interpretações. Estas várias in-terpretações são confrontadas em discussões nas quais estáem causa a conformidade / não conformidade em relaçãoao texto legal. Aqui reencontramos a codificação jurídica.

A experiência jurídica da primeira fase é, destamaneira, substituída por uma conceptualização mais sub-til. Pode eventualmente admitir-se uma “experiênciasubjectiva”, uma “consciência do direito” na perspectivado indivíduo78. Esta, no entanto, não tem relevância directapara a actividade social. Relevante para a actividade socialsão dois “horizontes de comunicação”, isto é, a possibi-lidade, objectivada em comunicações, de se distinguir entrevárias alternativas legislativas e entre várias interpretaçõesda lei actualmente em vigor. O segundo horizonte decomunicação poderia ser qualificado, se se quisesse adoptaruma terminologia que faça a ponte entre as duas fasesde Luhmann, de “experiência social do direito”.

__________________77 Ajustamento eventualmente concebível se um governo actual

quer alterar uma lei adoptada por um governo anterior, sustentadopor partidos actualmente na oposição. Nesta situação, o governo se“opõe” ao status quo jurídico estabelecido por um “governo” anterior.Mas a “reforma” é uma iniciativa do governo, face à qual a oposiçãovai tentar resistir. O binómio luhmanniano pode também, portanto,ser aplicado linearmente.

78 Para uma conceptualização da experiência como pano de fundodos sistemas sociais, ver IDEM, Soziale Systeme. Grundriss einerallgemeinen Theorie, op. cit., pp. 161 s.

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Pode assim dizer-se que o conceito de comunicaçãojurídica, em primeiro lugar, capta de uma maneira maiscondensada a realidade social do que anterioresconceptualizações, que distinguiam, por um lado, expe-riência e acção e, por outro lado, diferentes indivíduos.Em segundo lugar, permite lidar com a diferenciação entresistemas psíquicos e sociais, e entre o sistema jurídicoe o sistema político.

Uma diferença de outra ordem entre as duasconceptualizações diz respeito ao que se poderia chamaro seu tema dominante. Com o conceito de positivizaçãodo direito, Luhmann pretendia dar conta de uma evoluçãosecular. Quis mostrar como formas antigas de direito sãoprogressivamente substituídas pelo direito positivo, neces-sário a uma sociedade funcionalmente diferenciada. Como conceito de autopoiesis do direito pretende, fundamen-talmente, dar conta do funcionamento actual das socie-dades funcionalmente diferenciadas. Esta mudança temáticatem, nomeadamente, duas implicações. Por um lado, aquestão das causas que conduziram à formação do direitomoderno passa para um lugar secundário. Por outro lado,são marginalizadas, na exposição de Luhmann, as outrasformas do direito. Aliás, a própria palavra direito, que,na Rechtssoziologie, ainda tem um sentido amplo, e quecarece, para designar o direito moderno, de ser incorpo-rada na expressão “direito positivo”, mais tarde designaimplicitamente apenas o direito moderno, o “Direito daSociedade” (moderna, como é óbvio). Trata-se, no entan-to, apenas de uma ambivalência, nos trabalhos de Luhmannna sua segunda fase, do termo “direito”. O termo quedesigna mais precisamente o seu objecto de estudo é otermo “sistema jurídico”. E, ao falar de sistema jurídico,assume que não existe nas sociedades anteriores formasde direito que alcançam o modo muito peculiar de auto-

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nomia que Luhmann qualifica de autopoiesis. À volta destetema central, não deixa de abordar a evolução que con-duziu a este sistema79, nem de aludir, embora mais bre-vemente, ao facto de o sistema jurídico não ser hoje nema única, nem a última forma concebível do direito. Veja-se, a este respeito, a frase final de Das Recht derGesellschaft:

«Pode perfeitamente ser que a actual posição destacadado sistema jurídico e a dependência da própria sociedadee da maior parte dos seus sistemas funcionais no fun-cionamento do código jurídico não seja mais do que umaanomalia europeia, que, com a evolução de uma soci-edade-mundo, vai enfraquecer»80

A tonalidade desta última citação evidencia tambémuma outra diferença entre as duas fases aqui discutidas.Recorde-se que, nos textos contemporâneos daRechtssoziologie, Luhmann afirma claramente uma posi-ção normativa: a positividade do direito é necessária aum progresso valorizado positivamente e o próprio NiklasLuhmann pretende contribuir para uma melhorpositivização do direito. Nos últimos anos, já não encon-tramos afirmações voluntariosas, mas antes cepticismo,quando não preocupação face às evoluções em curso. Asua contribuição limita-se a participar num esforço demelhor entender estas evoluções81. O que, dada a com-plexidade da sociedade contemporânea, não é pouco.

__________________79 Cf. IDEM, Das Recht der Gesellschaft, op. cit., pp. 239 ss.80 Ibidem, pp. 585 s.81 Um texto particularmente pessimista quanto à possível con-

tribuição do investigador para a prática é a conclusão de Organisationund Entscheidung, Opladen, Westdeutscher Verlag, 2000.

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Para terminar este ponto, deve abordar-se ainda asdiferenças entre as duas fases aqui delimitadas que dizemrespeito às modalidades do trabalho teórico. Em termossintéticos, assiste-se a uma integração e sofisticação doaparelho conceptual, acompanhada de uma progressivaalteração do estatuto das referências empíricas. Ilustrareiesta evolução a partir da relação entre direito (positivo)e procedimentos, discutida por Luhmann nas duas fasesconsideradas.

Na primeira fase, o ponto de partida do raciocínioé um dado histórico: o desenvolvimento paralelo de umtipo de direito (experimentado como mutável) e de umtipo de procedimento (assente em papéis diferenciados eele próprio constituído em instância diferenciada deexperiência). Para Luhmann, trata-se de interpretar a relaçãoentre os dois fenómenos (como acabei de recordar: naperspectiva de contribuir para um melhor aproveitamentodestes dois dispositivos). Poder-se-á reconstituir o modode construção desta interpretação nos termos seguintes.Luhmann aplica à realidade observada dois esquemasinterpretativos gerais, que considera como complementa-res. Um é a noção de função: fenómenos que adquiriramalguma estabilidade num determinado contexto históricopodem ser presumidos como contribuindo para o funci-onamento efectivo da sociedade deste tempo. Intervém aquiuma tese mais específica: um desenvolvimento funcionalde ordem superior é a diferenciação funcional da soci-edade (que permitiu o progresso); nesta circunstância, umfenómeno que se mantém deverá ser abordado à luz daquestão: qual o seu contributo para a diferenciação fun-cional? O outro esquema interpretativo é o modelo dainteracção como experiência de dupla contingência (egonunca sabe precisamente o que alter vai fazer, com quemotivações, sabendo no entanto que alter vai antecipar

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ou reagir ao comportamento de ego, mas, também, semsaber precisamente o que vai ser e que motivações terá)82.Estes dois esquemas interpretativos vão orientar a formu-lação de um relato dos factos observados, procurando darplausibilidade à noção de um estreito relacionamento entreeles: procedimentos criam as condições necessárias paraque cada um possa interpretar os comportamentos dosoutros como sendo de aceitação das regras procedimentaise de progressiva adesão às questões substanciais emdiscussão (pelas condições que criam para as interacções);sendo possível interpretar desta maneira o efeito dosprocedimentos, é plausível que a generalização destemecanismo se prenda com a necessidade de multiplicarexperiências de validade social (legitimidade na termino-logia de Luhmann) do direito positivo. Ou seja: os es-quemas interpretativos dão um rumo geral a uma expo-sição que elabora uma formulação mais específica domodelo a partir da descrição dos fenómenos observados.

Na segunda fase, a teoria de Luhmann funciona demaneira muito diferente. Em primeiro lugar, os doisesquemas interpretativos são substituídos por um únicoconceito: a autopoiesis dos sistemas sociais. Este modelofundamenta a seguinte abordagem da realidade: se eu possoobservar um fenómeno social (inteligível para mim ob-servador, que sabe que não é apenas uma criação do meuespírito, mas algo que se impõe a outros, é que – formu-

__________________82 De realçar que Luhmann, ao adoptar este ponto de partida,

combina as duas grandes correntes sociológicas que dominam os anos60: o funcionalismo e o interaccionismo. Se são notórias as afinidadesda sua teoria com a de Talcott Parsons, não se costuma dar a devidaatenção às referência que faz ao interaccionismo. Revelando umposicionamento quase equidistante, ver a nota em pé de página 2 emIDEM, Soziologische Aufklärung. Aufsätze zur Theorie sozialer Systeme,op. cit., p. 114, com referências à Mead e Parsons.

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lação sofisticada do facto desta consistência da realidadesocial ser independente das interpretações do sociólogo– há autopoiesis. Trata-se, a partir daí, de recolher ele-mentos de observação que ilustrem e, eventualmente,possam alimentar a noção que se têm da autopoiesis. Nestetrabalho, Luhmann socorre-se de quantidade de noçõesdirectamente derivadas do conceito de autopoiesis, taiscomo, por exemplo, a de código binário e a de programa(estrutura que facilita a aplicação do código binário e criaeventualmente condições para a auto-observação desteprocesso). Este modelo permite estabelecer uma relaçãosignificativa entre, nomeadamente, comunicações concre-tas debatendo da validade de determinadas pretensões,rotinas procedimentais, práticas argumentativas, etc. Aqui,o relacionamento entre os fenómenos observados não éjá construído por assim dizer ad hoc, a partir de umaorientação geral; é derivado directamente e precisamentedo modelo e, eventualmente, confirmado pelos factos.

O resultado desta evolução deixa-se facilmenteenunciar nos próprios termos da teoria dos sistemas. Porum lado, os conceitos adquiriram autonomia. São eles queproduzem o sistema do seu relacionamento. Será que istoimplica um fechamento da teoria ? Pelo contrário, namedida em que se continua a confrontar os modelosconceptuais com a realidade, modelos suficientementeprecisos para que possam surgir claras discrepâncias emrelação aos factos, discrepâncias que estimularão o de-senvolvimento de novos conceitos. O exemplo mais óbviode um tal desenvolvimento é o conceito de acoplamentoestrutural.

B - Elementos de interpretação

O trabalho sobre clássicos da sociologia, em muitoscasos, tende em evidenciar “a teoria” (no singular) dos

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autores, procurando reconstituir um sistema de conceitoscoerente, correspondendo a uma problemática. Este pro-cedimento pode justificar-se pela necessidade de compararautores, comparação que é facilitada pela equação “umautor = uma teoria”, ou por inserir-se num trabalho temáticono qual interessa principalmente uma parte mais especí-fica da obra do autor, cuja exposição será naturalmenteprivilegiada. Porém, a leitura atenta de obras que foramproduzidas ao longo de várias décadas revela, não rarasvezes, alterações nas conceptualizações. Umas vezes maisvisíveis (o “Jovem Marx”; a viragem ético-hermenêuticade Foucault), ou até sublinhadas pelo próprio autor (olinguistic turn de Habermas), outras vezes mais discretas(a emergência do conceito de campo em Bourdieu) outratadas como fazendo obviamente parte do desenvolvi-mento da teoria (Parsons).

Quaisquer que sejam as justificações práticas e cir-cunstanciais que podem existir de fazer abstracção destasevoluções, relegá-las sistematicamente para o segundoplano significaria um grave empobrecimento do pensamentosociológico. Em abstracto, podem invocar-se três razõespelas quais estas evoluções devem imperativamente sercontempladas tanto no ensino como no momento de referirum autor em relação a um determinado tema.

A primeira é que, ignorando as evoluções, se correo risco de relacionar conceitos em versões não contem-porâneas, isto é, que não são relacionadas pelo próprioautor. Os desajustamentos que daí advêm poderão con-duzir o comentarista ou a reajustamentos que deturpamos conceitos originais, ou a críticas quanto a incoerênciasdos modelos analisados que existem efectivamente nomaterial reunido, mas não no pensamento que o autorelaborou concretamente em determinada altura.

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Uma segunda razão parece, à primeira vista, rela-cionar-se mais directamente com o ensino, mas tem umalcance muito mais amplo. Neste tempo em que éconsensual a exigência da aprendizagem ao longo da vida,seria estranho que as personalidades modelares apresen-tadas aos alunos sejam identificadas com um pensamentoimobilizado. Impõe-se, pedagogicamente, mostrar comoestes autores evoluíram, lidando com as circunstâncias emque trabalharam, aprendendo com as realidades encontra-das e reflectindo sobre a experiência do seu próprio trabalhoem curso. Esta análise pode levar o aluno ou o inves-tigador individual a uma reflexão individual sobre o seuprocesso de aprendizagem e sobre a construção do seupercurso de trabalho. Mas também pode alimentar umareflexão colectiva sobre as condições de desenvolvimentode uma disciplina.

A terceira razão prende-se com as características darealidade social que observamos. Tornou-se num lugarcomum afirmar que esta realidade se transforma num ritmocada vez mais rápido (uma afirmação que mereceria, aliás,ser devidamente justificada e especificada). Nestas circuns-tâncias, o nosso pensamento tem, necessariamente, queacompanhar esta evolução. Um observador do nosso tempoque o quisesse abordar com uma teoria, eventualmenteum pouco retocada no decorrer dos anos, condenar-se-ia a uma rápida perda de contacto com o real. E, de facto,as evoluções teóricas que podemos observar nos autoresque mais marcaram os debates recentes têm a ver comevoluções sociais, face às quais procuraram reagir. Umadiscussão cuidadosa destas evoluções teóricas poderá nãosó permitir aproveitar melhor os elementos teóricos maisrecentes e, por hipótese, mais imediatamente úteis. Tam-bém nos pode dar a ocasião de desenvolver métodos detrabalho teórico simultaneamente adequados a uma reali-

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dade em mutação e dotados de um grau suficiente dereflexividade para que possamos continuar, apesar destasmutações, a produzir para nós próprios ferramentas depensamento.

A evolução teórica de Luhmann que se acaba dereconstituir permite ilustrar estas afirmações. Não reto-marei aqui a primeira razão – a necessidade de reconstituiros conceitos prioritariamente no contexto da etapa inte-lectual em que foram elaborados – pois toda a exposiçãoanterior o deveria ter ilustrado. Vale a pena, emcontrapartida, reflectirmos sobre as leituras acima propos-tas à luz das duas outras razões.

Tivemos a oportunidade de ver como uma teoria podeevoluir por uma dinámica interna. Ao precisar os con-ceitos e as relações entre estes, Luhmann conseguiu alterara relação entre a teoria e a realidade observada, possi-bilitando novas dinâmicas internas à teoria e confronta-ções mais frutíferas entre esta e a realidade. Este fenó-meno mereceria ser aprofundado em relação ao segundomotivo dos que se acabam de invocar. Poderá inspirarreflexões sobre os factores susceptíveis de favorecer umtal desenvolvimento interno das nossas categorias soci-ológicas. Alguns podem ser desde já brevemente assina-lados:• A importância que Luhmann concede ao trabalho te-

órico como um âmbito próprio do trabalho científico,reflectindo-o não apenas nos seus aspectos mais abs-tractos (a teoria como instância de auto-observação dedeterminados sistemas), mas também nos seus aspectosmais técnicos (atenção para com as distinções, cons-trução dos textos, noção dos vários possíveis estatutosdos textos (exploratórios ou apresentando versões maisacabadas). Uma reflexão que é estimulada pela expe-riência do trabalho teórico em vários domínios, nomea-

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damente a comparação entre a teoria do direito e a teoriada ciência.

• O instrumento de trabalho de que Luhmann se dota,as “caixas de fichas”, que lhe forneceram condiçõesmateriais para gerir os seus conceitos com um mínimode desperdício e para os relacionar segundo configu-rações menos previsíveis.

• Num plano mais abstracto, a maneira como procura,a partir dos anos 80, já não tanto escrever enquantoautor, mas antes fazer o possível para que “a teoriados sistemas” se faça através dos seus textos. Utilizan-do as suas caixas de fichas, aliás, Luhmann faz aexperiência concreta desta teoria que se pensa a siprópria. Mas também pode verificar como os conceitos– que, aliás, muitas vezes retoma de outros autores –são, por sua vez, reutilizados por outros e funcionameficazmente na escrita destes outros autores83. É, assim,não apenas por uma questão de estilo que Luhmannrefere nos seus textos a teoria como “sujeito” do tra-balho de que dá conta.

A evolução teórica descrita também se deixa rela-cionar com evoluções históricas das quais Luhmann procuradar conta, o que permite ilustrar o terceiro motivo evo-cado. Assim, a passagem da positivização do direito, queainda evoca em primeira linha, de leis susceptíveis de seremrevistas, para a autopoiesis do direito, que realça os vínculosentre actos jurídicos sucessivos, deixa-se relacionar comos efeitos da globalização sobre o direito e com o pesocrescente do pensamento jurídico anglo-saxónico na culturajurídica. A separação mais nítida entre o sistema políticoe o sistema jurídico pode relacionar-se, nomeadamente,

__________________83 Ver nomeadamente Gunther Teubner, Recht als autopoietisches

System, op. cit.

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com a experiência do protagonismo crescente dos tribu-nais nos nossos espaços públicos. O cuidado em melhorcaptar simultaneamente a possibilidade e a improbabilidadede articulações entre sistemas pode relacionar-se com aexperiência da distância que observa, nos anos maisrecentes, entre os vários sistemas sociais, distância queo levou a abandonar completamente a visão parsonianade uma sociedade que tenderia para a integração e a insistirnos riscos inerentes à diferenciação funcional. É preci-samente face a estes riscos que sente urgência em melhorestabelecer uma teoria, também ela autopoiética, que possa,simultaneamente, garantir a si própria um fundamento emanter-se aberta às transformações da realidade, pelo menosenquanto houver uma sociedade, isto é, possibilidadeselementares de comunicação.

Poder-se-ia avançar ainda uma terceira explicação paraa evolução do pensamento de Luhmann. Poder-se-iarelacioná-la também, simplesmente, com a complexidadeda realidade social e o tempo necessário, seja qual foro grau de redução desta complexidade que se conseguir,para a percorrer com o necessário rigor. Neste sentido,poder-se-ia interpretar as evoluções no pensamento nãoapenas como impostas por alterações da realidade, mascomo dando conta de momentos sucessivos na trajectóriado pensador à volta desta realidade.

Com vimos, Luhmann trata sucessivamente as“experiências jurídicas”, tal como podem ser nalgumamedida generalizadas num determinado país e numadeterminada época, e a “comunicação jurídica” tal comose identifica em todo o domínio do sistema jurídico, istoé, à escala da sociedade-mundo. Desta maneira, Luhmann,depois de se centrar num plano de realidade intermédioque poderíamos chamar a cultura jurídica (pensando emprimeira linha na cultura jurídica alemã), afasta-se deste

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plano para, por um lado, subir ao plano da sociedade-mundo (reflectindo nomeadamente as relações entre sis-temas sociais funcionalmente diferenciados) e, por outrolado, descendo até à escala das comunicações, que procuracaptar independentemente das acções às quais as costu-mamos associar e dos indivíduos que levariam a cabo estasacções.

Não há, para Luhmann, motivo de recuar atrás daconceptualização elaborada na segunda fase. Emcontrapartida, a quantidade de observações e intuições quetecem o seu trabalho na primeira fase remetem pararealidades que o próprio Luhmann relegou por algum tempopara o segundo plano, mas não esqueceu. Neste sentido,os seus últimos escritos podem ser lidos como a conti-nuação de um percurso que aceitou necessitar de uma vidainteira para visitar – e não completamente–– a sociedade.E revisitar certos dos seus aspectos mais essenciais.Exemplo disto são as reflexões sobre a evolução queconcluem Die Politik der Gesellschaft. Mais directamenterelevantes para a sociologia do direito é o regresso aotema das organizações em Organisation und Entscheidung.Neste livro formula de maneira particularmente clara anecessidade de se pensar a realidade de fenómenos comoa ciência e o direito no cruzamento entre sistemas fun-cionalmente diferenciados a âmbito mundial, mas exis-tindo apenas no plano improvável da comunicação, e asorganizações, sistemas mais precários na sua definiçãocomunicacional mas ganhando a sua consistência no seuenraizamento pessoal e local. Este percurso cíclico à voltado social revela-se ainda mais claramente no regresso aoindivíduo nas últimas obras. O tema já tinha sido abor-dado em Grundrechte als Institution e na conclusão deLegitimation durch Verfahren. Nos anos que se seguiram,no entanto, os indivíduos foram explicitamente excluídos

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da sociedade, terreno de trabalho prioritário da teoria dossistemas sociais. O indivíduo regressa na reflexão deLuhmann nos anos 90, repensado nomeadamente a partirda noção de acoplamento estrutural entre sistemas sociais.E abre a Luhmann novas pistas de reflexão sobre o papeldo direito entre indivíduos, por um lado, sistemas eorganizações, por outro, e sobre a importância da dife-renciação social, e do direito que nela se reproduz, paraos Einzelmenschen, uma reflexão que o leva a formularo seu prognóstico mais pessimista:

«O pior cenário imaginável seria que a sociedade dopróximo século aceitasse o meta-código de inclusão /exclusão. E isto significaria que certos seres humanosseriam pessoas, e outros, apenas indivíduos; que algunsserão incluídos nos sistemas funcionais através das suascarreiras (exitosas ou não) e que outros serão excluídosdestes sistemas, tornando-se corpos procurando sobre-viver até ao dia seguinte; que certos serão emancipadosenquanto pessoas, outros enquanto corpos»84

Infelizmente, aqui também, a própria realidade evo-luiu num sentido que obrigou Luhmann a realçar umproblema que adquire novas proporções. Mas o que faza força do diagnóstico não é apenas a pertinência daconstatação actual, é também a acuidade de palavras quese forjaram em quarenta anos de um longo périplo in-quieto por regiões muito diversas da sociedade-mundo.

__________________84 N. Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, op. cit., p. 26.

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O pensamento de Niklas Luhmann como teoriacrítica da moral

Edmundo Balsemão PiresFaculdade de Letras,

Universidade de Coimbra

Para o desenvolvimento das hipóteses que vou for-mular de seguida tive como referências mais directas naobra de N. Luhmann dois textos integrados nas recolhasTheorietechnik und Moral (Soziologie der Moral) eGesellschaftstruktur und Semantik 3 (Individuum,Individualität, Individualismus).

Os problemas que servem de guia podem ser enun-ciados da seguinte forma: Em que medida a concepçãofilosófica da moral encontra os seus limites na observaçãosociológica da moral e na suspensão por esta última dovalor de crença dos enunciados morais sobre o homem ea sociedade? Que tipo de evolução semântica esteve em causano nascimento deste tipo de observação da sociedade?

No ensaio de reconstrução destes problemas partolivremente da obra de N. Luhmann, e em especial dostextos já assinalados, e pretendo descobrir que consequên-cias para o discurso moral podem ter as teses do soci-ólogo.

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1.

Um dos possíveis pontos de partida de uma “teoriada moral” pode residir no problema da função da moral.É este o ponto de partida das análises de N. Luhmannsobre a moral. Parece inegável a utilidade e mesmo aurgência deste ponto de partida. Mas a admissão da sualegitimidade implica que os filósofos façam um acto decontrição para reconhecerem que nem a tradição da “velhaEuropa” nem a formulação da moral na filosofiatranscendental colocaram o problema da “função da moral”.Este reconhecimento é necessário para situar com clarezaa capacidade de compreensão da moral por parte dafilosofia, até hoje, e isto frente ao projecto do sociólogo.

O sociólogo coloca-se na posição de poder fazer elepróprio uma narrativa em que explica as insuficiênciasda Filosofia neste aspecto. Segundo se conclui destanarrativa aquelas duas tradições não formularam o pro-blema da função da moral porque uma tal formulação seafasta por completo de uma qualquer subordinação a juízosmorais. E o modo como a tradição filosófica encarou amoral não foi independente da moral e constituiu, em simesmo, uma moral.

O que torna especialmente pertinente a formulaçãoda questão sobre a função da moral? A possibilidade daquestão relativa à função da moral está dependente daexistência de “equivalentes funcionais da moral” nasociedade moderna, lemos em Soziologie der Moral, quepodem ser, entre outros, a “racionalidade conexiva”, oDireito e o Amor. Se pretendêssemos traduzir esta for-mulação de um modo mais antropocêntrico poderíamosquestionar do modo seguinte: Porque é que não supor-tamos mais respostas morais aos problemas complexosque a nossa vida nos coloca? Ou seja, abreviando um

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longo argumento, podemos perguntar pela função da moral,porque deixamos de estar dependentes do carácter tota-litário da moral para compreender a própria sociedade eporque a evolução social produziu uma multiplicidade deordenamentos normativos e de ordens simbólicas quesubtraíram à moral um território em que era hegemónica.

A discussão sobre a função da moral do ponto devista sociológico tem de tomar em linha de conta o papelintegrativo da moral mas também a sua especificidade aolado dos chamados “meios de comunicação simbolicamentegeneralizados” que, em larga medida, suplementam a moralneste valor integrativo. O facto de a filosofia não ter sabidocolocar o problema da “função da moral” levou a quea sua interrogação sobre a moral ficasse presa do debatemoral sobre a moral.

Depois de T. Parsons, um dos méritos da análise deN. Luhmann residiu em fazer recuar, sem a reduzir, adefinição do que chamamos “moral” a uma experiênciaparticular: aquela que se dá na situação de dupla con-tingência entre ego e alter. A evidenciação da experiênciada dupla contingência revela uma preocupação do soci-ólogo no sentido de descobrir um ponto de partida quenão esteja contaminado nem pela visão do moralista nempela estratégia de análise mais típica das “doutrinaseconómicas sobre a sociedade” e sobre o papel damaximização racional do lucro individual na formação dossentimentos morais e das virtudes.

Na Soziologie der Moral é a noção do “taking therole of the other”, introduzida por M. Mead, que servepara ilustrar a necessária integração do outro na consti-tuição da imagem de si do ego. Este “taking the role ofthe other” é a fórmula-mãe da dupla contingência. É nocontexto da dupla contingência que tem lugar a discussãodo conceito de Achtung (respeito), que podemos tomar

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como o conceito nuclear da moral. O que é e como seexplica o respeito é um problema ético (filosófico) esociológico, mas não é, curiosamente, um tema da moral.Sendo o respeito o conceito nuclear da moral, ele nãoé, em si, nada de “moral”. O respeito supõe a simbólicaintersubjectiva que assegura a construção da moral, de talforma que o sociólogo afirma mesmo que o respeito éo “fundamento da moral”, na situação da dupla contin-gência.

A totalidade das condições do respeito ou do des-respeito, produzidas de facto, constitui a moral de umasociedade e a função da moral para com a sociedadereside no relacionamento entre a generalização das re-gras do respeito e a integração social.

Deste ponto de vista, a moral não se traduz por umimperativo categórico ou por uma qualquer norma queindique o que deve ser. Em vez disso, a moral estáarticulada com as condições comunicativas de reproduçãodo respeito/desrespeito nos laços que ligam ego e alter-ego na interacção. A dualidade da orientação prática nadiferença do código moral bem/mal e o seu carácterdisjuntivo revelam, na situação concreta, as condições dorespeito interpessoal que se articulam com a síntesesimbólica ego – alter, resultante da dupla contingência.Este cruzamento entre as diferenças morais binárias (bem/mal, virtude/vício) e as condições do respeito é essencialna descrição sociológica. Deste modo, as condições so-ciais não podem ser analisadas como crescentemente moraisou crescentemente imorais, mas o que é histórica esocialmente variável é a diferenciação, generalização eespecificação das condições de que estão dependentes orespeito/desrespeito.

No ponto III. 6. de Soziologie der Moral é enunciadauma tese nuclear em articulação com as análises do respeito

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na situação da dupla contingência. Trata-se da aproxima-ção entre o conceito de liberdade e o de dupla contin-gência. A relação entre liberdade e moral, entre liberdadee respeito não é fácil nem imediata, mas exige váriosesclarecimentos, na medida em que a liberdade “instabiliza”sempre a moral. Na medida em que a liberdade pode sertomada como fonte problematizadora da moral, ela podeser tida como uma “fórmula da contingência” e da duplacontingência em especial. Neste sentido, a dupla contin-gência tanto é base do respeito e última responsável peladistribuição binária bem/mal como ainda é a fonte da suainstabilidade. Então, é possível apreender a liberdade comoum resultado da experiência da dupla contingência e nãocomo predicado moral absoluto, anhistórico, característicainterna das acções ou “propriedade” (essência) da von-tade.

Esta ideia é um desafio para a Filosofia. Para extrairtodas as consequências daqui é necessário continuar eafirmar que a teoria moral que conceda valor ao aumentode liberdade entre os membros de uma sociedade é umaidealização das condições sociais dessa sociedade e nãouma imposição normativa alheia às condições de repro-dução da sociedade e da dupla contingência. É por issoque nas sociedades modernas e no processo histórico daconstituição da modernidade não é possível uma análiseda moral sem ter em linha de conta os chamados “equi-valentes funcionais” da moral, ou seja, o grau de liberdadeque a forma da sociedade concede à integração social emcomparação com a indiferenciação e totalização anteriordo código da moral.

Na ausência de equivalentes funcionais da moral, aanálise da acção moral e das condições do respeito numasociedade tinha de partir de noções uniformes,indiferenciadas, como aconteceu ao longo da chamada

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tradição da “velha Europa” que N. Luhmann identificacom o marco simbólico que foi a Ética aristotélica.

A tradição do humanismo clássico e moderno dá poradquirida a fundação da moral na unidade do “humano”para, a partir dela, repartir o grau de respeito e de li-berdade na sociedade. Continuando a sua referência aoestagirita, mostra-nos o sociólogo como na Ética aquiloque na sociedade moderna tomamos como “equivalentesfuncionais da moral” se encontrava unido num únicoconceito, a saber, o de philia. A tripartição aristotélicado amor-amizade no bom, no agradável e no útil é umatripartição segundo as disposições e finalidades do ho-mem. E é de facto em torno do destino histórico destadoutrina integradora, que se traduziu ao longo de séculoscomo “filosofia prática”, que o sociólogo tece conside-rações importantes.

Na tradição que parte de Aristóteles é a moralentendida como discurso sobre a finalidade do bem, queacaba por predominar sobre todas as restantes esferas,dando com isso origem à Ético-Política. O bem aparecenesta mundivisão como o próprio sentido do todo, emboraseja, ao mesmo tempo, uma parte da tipologia moral.

Todavia, segundo a narrativa de Soziologie der Moral,o esquema do predomínio do bem em relação à sociedadenão é exclusivo da longa tradição aristotélica da “filosofiaprática” e continua mesmo na análise da intersubjectividadena “filosofia transcendental”. De acordo com a narrativade Soziologie der Moral encontramos na formação dasociedade moderna alguns tópicos e uma históriaterminológica que confirma em parte mas já prepara oafastamento desta visão indiferenciada da moral, no quepodemos chamar a história contraditória do humanismomoderno.

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Prosseguindo nesta genealogia, na modernidade, amoral encontra-se articulada com o “conhece-te a timesmo!” na sua condição de possibilidade subjectiva ecom o chamado “amor próprio”, inicialmente tomado comoum sentimento de si que é querido pelo próprio Deus esubordinado, por conseguinte, ao “amor de Deus”.

Independentemente da sua controvertida evoluçãoulterior, o “amor próprio” conheceu uma tripartiçãoconsoante se tomou o sujeito como homem sensível (etemos então o prazer); o homem como ser racional (eencontramos o respeito) e, por fim, o homem como serreligioso (e aqui encontramos a consciência, no sentidode consciência moral). A consciência regula o respeitoe o respeito regula o prazer, como numa espécie dehierarquia cibernética da regulação dos três níveis.

Deste ponto de vista, o respeito não aparece comoum último fundamento da moral, mas como um nível daarticulação do discurso moral, e a hierarquia destes níveisdemonstra uma complexidade maior que aquela quepodíamos encontrar nas fórmulas mais elementares da duplacontingência.

A dupla contingência foi inicialmente formulada paraa explicação da origem das sínteses ego-alter, de acordocom o “taking the role of the other”. Mas ela não permiteexplicar todas as consequências resultantes do aparecimentode um “terceiro” na relação intersubjectiva e o que daívai resultar para a generalização das condições do respeitona sociedade.

Um dos pontos fundamentais da argumentação de N.Luhmann reside na ideia de que as condições sociais dorespeito mútuo vão muito mais longe que aquilo que sepassa ao nível da interacção imediata entre ego e alter,o que quer dizer que é necessário acrescentar mais umdegrau analítico para além do nível da dupla contingência.

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Importa, por conseguinte, analisar o tipo de diferenciaçãosocial das sociedades.

Ora, isto significa que a dupla contingência tem umalcance que não é directamente lido ao nível da puragramática moral e que envolve aspectos essenciais dadiferenciação das sociedades. Envolve, nomeadamente,como se referiu, o desenvolvimento da diferenciação de“equivalentes funcionais da moral”. É por isso que a moralnão pode ser abordada por uma hermenêutica que tomapor referência a gramática manifesta do discurso moral,pois “a moral é sempre mais complexa que aquilo queé tematizado na comunicação moral”.

Se a teoria da moral implica uma teoria da soci-edade, então é porque pode existir uma super-teoria quecontém a própria teoria da moral e que não é ela mesma“moral”.

Ora, deste ponto de vista, a simbólica da moralaparece, necessariamente, perante a super-teoria que adescreve, no modo que o sociólogo chamou de uma“simbólica reductiva”. Por outro lado, não pode deixarde se observar que, ao contrário do que acontece comoutras estruturações binárias da experiência da comple-xidade e da dupla contingência, a moral não se deixanunca diferenciar como um sistema parcial da socie-dade. Por que razão? Antes de tudo porque a moralestá marcada na sua História pela História do seu própriosujeito (o Homem) e, nesta última, pela ambiçãoindiferenciada do “humano”. A filosofia quando ques-tionou na direcção de um sujeito da moral como “vontadeautónoma” na filosofia prática do kantismo, por exem-plo, estava precisamente a revelar a unidade entre morale subjectividade.

Isto leva-nos, então, a colocar outra vez o problemado sujeito da moral.

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2.

2.1.

As datas de fronteira 1500 e 1800 servem comograndes referentes simbólicos para balizar o nascimentodo que chamamos “modernidade” europeia. Entre elassituamos a época da transmissão do saber antigo ao novomundo, pelo movimento do Renascimento, a época da“crise da consciência europeia”, sob a forma de crise docristianismo, e a época que viu nascer as “luzes”.

Esta mesma época revela, ainda, o que para nós aquié central, um período de instabilidade generalizada nasrelações entre política, religião e moral, que se desenroladesde a crise da política clássica na obra de Maquiavel,passando pela emergência das doutrinas da “razão deestado” e pelas doutrinas morais da Reforma até alcançaraquele ponto de não-retorno que reside na declaração deT. Hobbes sobre a impossibilidade da felicidade no mundonas condições em que está estruturada a “natureza hu-mana”.

Esta instabilidade que se gerou entre política, religiãoe moral afectou naturalmente outros domínios da vida sociale trouxe consigo um efeito que consideramos definitivoe que consiste na crescente especialização do comporta-mento selectivo frente ao mundo unitário da ético-políticada tradição clássica da Política. Para além de trazer consigouma crescente autonomização sistémica dentro da unifor-me societas, a que ainda se referia C. Wolff, os movi-mentos tectónicos fundadores da “modernidade” europeiacriaram também o real a que respondem os sistemasautonomizados: o indivíduo como contracção da contin-gência do mundo.

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O que observamos numa parte da “teoria da moral”que N. Luhmann desenvolve nos seus textos de 1977 ede 1989 é a genealogia da crise da “unidade moral domundo”, nos séculos XVII e XVIII em especial, e adescrição do tipo de observação da moral que se constituiuna Sociologia como consequência dessa crise. Paralela-mente, mostra o sociólogo o parentesco entre a “crise damoral”, o aparecimento da diferenciação funcional nassociedades modernas e a emergência do conceito modernode individualidade prática.

No artigo de 1989 sobre o indivíduo encontramoscinco vectores de abordagem da história moderna daindividualidade prática, que de seguida passo em revista,muito sumariamente.

1. Na tradição histórico-filosófica até ao séc. XVIIIassistimos a um conceito neutro de indivíduo ede individuação, que se tornou possível graças ànoção de substância que tanto podia servir paradesignar a realidade antropológica da alma comoa realidade da coisa material. Na história doconceito verificamos como até ao século XVIIIse mantêm praticamente intactas todas as notasdistintivas que permitiam observar uma uniformi-dade na individualidade, desde o indivíduo naturalao indivíduo no sentido “prático” do termo. A“pessoa” aparece apenas como um caso daindividuação das substâncias e especialmente daalma. Nesta acepção indiferenciada, o conceitodesigna algo de indivisível, ao mesmo tempo quesimples, de tal forma que a divisão desteindivisível-simples seria equivalente à sua própriadestruição. É também por esta razão, em virtudedesta indiferenciação, que o conceito de naturezapode ser decisivo em matéria moral. A simplicida-

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de do indivíduo vem igualmente associada à ideiade vida eterna e de imortalidade da alma e, poroutro lado, o indivíduo não se reconhece na ordemcontingente das suas determinações, que podemser estas ou outras diferentes, mas como o frutoda criação divina de uma realidade singular. A notada perfeição ligada ao indivíduo prende-se, igual-mente, com a identificação da sua fonte em Deus.Na evolução do princípio de individuação da“escolástica tardia” (F. Suaréz) é possível verificaro começo da identificação entre indivíduo e prin-cípio interno de individuação num esquema cla-ramente auto-referencial, que evolui para ummodelo distinto da concepção clássica.

2. Pelo ano de 1754 da pena de Maupertuis épublicado um Ensaio sobre a formação dos cor-pos organizados, em que já está em causa umconceito de individualidade como organismo queé solidário do conceito de um ser que em si mesmoencontra um movimento para a realização da suaprópria felicidade, sem contar com a ordem dacriação divina e da organização divina dos serescriados. De notar para além desta referência dopróprio N. Luhmann que, na mesma linha, aparecede Charles Bonnet, pelo ano de 1768, umasConsidérations sur les corps organisés, où l’ontraite de leur origine, de leur développement, deleur reproduction. O novo conceito de “organi-zação” assegura a continuidade entre a ideia tra-dicional de perfeição dos indivíduos e a sua auto-referência e a nova ideia da vida e dos processosvitais.

3. Reinterpretando a oposição entre “natural” e“civil”, entre “natural” e “civilizado” do século

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XVII, a economia do século XVIII reformula oconceito clássico de utilitas na direcção de umaordem social e económica em que a satisfação danecessidade de cada homem estará associada àsatisfação da necessidade de todos, na “sociedadecivil”. A formação (a Bildung hegeliana) deve sero meio de relacionar a sociedade, o mercado eo indivíduo.

4. No campo da estética e da teoria da arte assis-timos a uma dupla consagração do conceitomoderno de individualidade. A exigência denovidade e originalidade do objecto estético cru-za-se na viragem do século XVIII para o XIX coma ideia de “desvio” à norma. Promove-se a regraque leva do desvio à conformidade estabelecendo-se, com isto, o conceito de moda. Por outro lado,a “estética do génio” vai consagrar como regrada justa apreciação estética uma relação íntimaentre Genie und Herz, em suma, uma cogenialidadeentre dois indivíduos.

5. Por fim, o movimento dos direitos do homem, arevolução francesa e a filosofia prática kantianaconsagram o rompimento dos laços entre a indi-vidualidade prática e a ordem política.

Permitam-me que me afaste agora um pouco docomentário directo dos ensaios de N. Luhmann.

2.2.

Na semântica do conceito moderno de individuali-dade, a cuja formação assistimos desde o século XVII,de um modo franco e explícito, e em que se joga a distinçãoentre um novo conceito de individualidade prática e asubjectividade moral da tradição clássica, encontramos duas

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frentes decisivas na geração do que entendemos porindividualidade prática: a devotio moderna e os libertinos.Destas duas frentes N. Luhmann apenas refere, de pas-sagem, a primeira.

O movimento da devoção e os libertinos marcam oséculo XVII em vários aspectos morais e religiosos e aindano que se refere ao modo como nestes dois movimentosse reflecte uma determinada auto-interpretação da soci-edade.

O primeiro movimento de ideias desenvolve-se emredor de uma nova noção da graça divina e dos meca-nismos da sua obtenção pelos “justos”, mas isso trazconsequências vastas no entendimento da subjectividademoral, como é possível observar pela problemática quepercorre as Cartas a um Provincial de B. Pascal. Ambasas correntes doutrinais vão fecundar os autores integradosno tipo literário das “formas breves” e na “literatura demáximas” da segunda metade do século XVII, em quevamos encontrar la Rochefoucauld. Comecemos por aquia análise.

Mais de um século antes de J. J. Rousseau havertirado conclusões decisivas sobre a diferença entre amor-próprio e amor de si mesmo, o tema do amor própriofoi objecto dessa “literatura de máximas” e em particularde importantes textos de la Rochefoucauld e da Madamede Sablé.

O que há de interessante, para o nosso propósito,nas máximas de la Rochefoucauld? A ideia de amor-próprioque la Rochefoucauld transformou em centro do juízo moraldo homem do seu tempo é resultado de um longo processode incubação, que no século XVII, em França, vai terlugar como consequência de uma recepção da obra deAgostinho nos círculos jansenistas e respectivas contro-vérsias e da crítica moralista do amor-próprio como um

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autêntico “anti-Deus” por parte do abade de Saint-Cyran(Cf. um tópico semelhante ao do “anti-Deus” em laRochefoucauld, Maximes, nº 20).

Segundo o autor das Maximes, o amor-próprio é comouma instabilidade no eu que, não obstante, tenta perseguir-se a si mesmo nas imagens fugazes (Maximes supprimées,nº 1) e caprichosas da sua unidade. Aquele que cultivao amor-próprio é aquele que constrói o ideal do eu namiríade das imagens jubilosas de si ligadas à sua expe-riência do mundo e dos outros. O amor-próprio atraiçoaa subjectividade moral e a própria rectidão de uma vontadebem formada do ponto de vista moral, pois laRochefoucauld lança a suspeita sobre se as virtudes nãoserão elas mesmas fruto do amor-próprio disfarçado(Maximes, nº 83, 87; Maximes supprimées, nº 33 e 34).A moral é, pois, questionada a partir do ponto de vistada sinceridade de um sujeito da moral em geral. Negadoeste último depressa se instala uma diferença, não assi-nalada na semântica do mundo clássico, entre individu-alidade prática e subjectividade moral, entre o indivíduoque persiste ligado à multiplicidade dos seus possíveis ea reflexão subjectiva da sua unidade.

No Discours sur les passions de l’amour de JeanDomat podia ler-se a ideia segundo a qual a nossa fontede amor-próprio nos permite a representação de nós mesmoscomo um agregado de múltiplas posições fora de nós,continuando nisto dois aspectos do tópico do amor-pró-prio: a sua dimensão social e interpessoal e a referênciaà aparência, à multiplicidade e à fluidez que irrompe nailusória simplicidade do eu, e que havia levado laRochefoucauld a comparar o amor-próprio a um maragitado (Maximes supprimées, nº 1). A multiplicidade dospossíveis, a sua construção imaginária pelo eu e a per-seguição dessas imagens pela vontade revela-se como o

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que há de mais perturbador para a unidade da represen-tação clássica do “honeste vivere” e da unidade entre utilitase honestas.

Comum a T. Hobbes e a la Rochefoucauld o temamoral e político do “amor da glória” aparece nas Maximesdeste último autor (Maximes, nº 213) como mais umelemento conceptual da semântica do “amor próprio” eda desvinculação entre indivíduo e subjectividade moral.O querer é o querer do indivíduo embora aquilo que servede executor da sua vontade é o próprio eu.

Se o movimento dos devotos do século XVII reve-lava já um importante cruzamento com o tema do “amorpróprio”, tal como acontece desde logo nas Máximas doabade de Saint-Cyran, isso acontece porque a apologiada devoção se vai centrar numa crítica da exterioridadedo culto a Deus, numa crítica da falsa aparência, queconduz, positivamente, à exigência de autenticidade egenuinidade do sujeito e ao arrependimento do pecado.Os devotos vão exigir a recondução do eu ao mais fundoda individualidade no sentido de assumir esta última emtodos os aspectos. Trata-se de uma tentativa de recuperara multiplicidade do indivíduo pela simplicidade dasubjectividade moral e para os fins de uma reconduçãoda moral na história da salvação.

Mais tarde, Fénelon, numas Réflexions saintes pourtous les jours du mois, quando declarava que só violen-tamente se podia ter acesso ao Reino de Deus queria comisso dizer-nos que aquele que se pretende salvar tem deexperimentar a mais dura prova contra o seu amor-pró-prio: il faut mettre à la gêne le corps du péché. Il fauts’abaiser, se plier, se traîner, se faire petit.

A crítica moral do movimento de devoção é críticada mundaneidade, da fixação do eu às fontes do seu gozoterreno e às imagens gratificantes de si. Mas no seu

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processo crítico os devotos inscrevem no século traçosessenciais de um tipo particular da semântica da indivi-dualidade. O sujeito no processo da sua salvação tem detomar a sua biografia como uma unidade simples damultiplicidade, ou seja, como narrativa da sua unicidadena multiplicidade da experiência de vida, pois só aqueleque graças à descoberta do seu ser autêntico conhece bemos seus pecados, os pode expiar e arrepender-se de ummodo profundo. O “conhece-te a ti mesmo!”, a indivi-dualidade e a autenticidade cruzam-se aqui. O conheci-mento da individualidade e das vias individuais do pecadoe do arrependimento passa a ser a única possibilidade deos crentes contribuírem para a sua salvação. No entanto,a individualidade prática e a subjectividade moral são,doravante, dois princípios diferentes e as regras da suacombinação podem sempre variar.

Os chamados “libertinos” constituem um movimentomultifacetado, que se pode interpretar, tendo em vista osmeus objectivos, em redor dos dois núcleos de uma novateoria da natureza e de uma nova teoria da felicidade.Os autores libertinos do século XVII têm em comum acrítica da tradição aristotélica e da “lógica nova”, aspectoem que seguem P. Gassendi, a identificação entre o conceitode natureza e a fonte de toda a realidade que a razãopode conhecer, a crítica dos milagres e das teofanias ea crítica da imortalidade da alma e da ressurreição.

A síntese entre naturalismo, crítica da religião e realismopolítico é o que há de mais original na concepção do mundodos libertinos. Do ponto de vista epistemológico o pontode partida dos autores “libertinos” é o Da Sabedoria deCharron. O ponto de partida político é o de umneomaquiavelismo que nega às religiões qualquer fundaçãosobrenatural, fazendo dos deuses criações humanas e ins-trumentos políticos de homens sedentos de poder.

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O escritor italiano Vanini foi um autor fundamentalna construção deste esquema teórico, que vemos clara-mente presente no texto de G. Naudé Apologie pour tousles grands personnages qui ont été faussement soupçonnésde Magie.

Desde o Pantagruel de Rabelais que de uma formaexplícita o século XVI ensaiava o tema de umasobrenatureza humana dessacralizada e explicada pelas viasda própria natureza. Também o Don Juan de Molièreensaiou uma explicação natural do milagre no conhecidoepisódio da estátua que se move e fala, e em que emvez de se entregar ao sobrenatural o ónus da explicaçãode um fenómeno raro é a natureza que agora é chamadapara dar explicação das suas próprias bizarrias. Trata-sedo mesmo D. Juan que realiza a crítica do mundo socialvivido como mundo das tradições e das convenções. DonJuan, um bom exemplo de libertino, usa o casamento, ouabusa dele, para ultrapassar a imagem do sedutor ordi-nário. O facto de D. Juan se casar e não abandonarsimplesmente as noivas representa um insulto à ordemestabelecida mais forte que toda a sedução e violaçãoclandestinas. É como uma espécie de insulto directo àinstituição familiar, como sacramento, pelo seu próprioabuso. Esta é, aliás, uma das acusações que Sganarelledirige ao seu mestre.

A descrição sem ambiguidades do “plaisir d’amour”entre os dois sexos ocorre num texto anónimo, L’Écoledes filles, em que o autor desvincula as relações entreos sexos de quaisquer juízos morais, fazendo assentar aboa educação das raparigas em um conhecimento naturale exacto do que é o prazer físico e dos meios directose indirectos para o alcançar, graças a um conjunto denarrativas sobre a experiência de vida de indivíduosdedicados ao prazer.

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Com os libertinos assistimos a um poderoso exor-cismo da transcendência que toma por referentes maisdirectos o prazer individual, a sociedade e o objecto dapercepção. Mas, a consequência moral mais evidente é,sem dúvida, a exacerbação da divergência entresubjectividade moral e individualidade prática, o agrava-mento da separação entre o que o sujeito afirma comoo seu querer e a sua realidade simples e aquilo que neleinsiste em manter aberto o campo dos possíveis, do pontode vista da experiência da negação.

Também o movimento de devoção partiu da diferen-ça entre individualidade e subjectividade mas, da sua parte,no sentido de uma elevação da individualidade pelo sujeitomoral, criticando por isso o “amor próprio” em nome deum “amor a Deus”. De qualquer modo, a diferença entreindivíduo e sujeito moral está dada, é um facto assinalávelna semântica deste período.

Os libertinos dão origem a uma estratégia diferentena interpretação da diferença entre subjectividade e in-dividualidade. A sua originalidade consiste em colocar oindivíduo e a sua experiência nas fronteiras do admissíveldo ponto de vista da moral convencional, consiste emmostrar o possível além do permitido e contra o permitidoe fazem-no em nome de uma natureza que é idêntica àcontingência. O que os libertinos mostram é amultiplicidade dos possíveis como o essencial da indivi-dualidade prática, revelam a experiência da carne e domundo para além da redução normativa da subjectividademoral. Deslocando o indivíduo da norma do sujeito, oslibertinos praticamente invertem a regra de combinaçãoentre subjectividade e individualidade que encontrámos nomovimento dos devotos. O conceito de uma vida de prazer,o ideal do sábio e a noção de “sabedoria civil” que P.Gassendi encontrou na filosofia de Epicuro põem em

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evidência a originalidade da regra seguida pelos libertinosna combinação entre individualidade e subjectividade, entremultiplicidade da experiência das possibilidades e sim-plicidade normativa do sujeito.

2.3.

Nestes dois movimentos sintomáticos põe o séculoXVII a nu a desintegração do ideal da unidade entrehonestidade e utilidade, que se encontrava na base da“comunidade natural do género humano” e da comunidadepolítica em geral, a que se referia Cícero no De Officiise com que concordou a mais influente das tradições domundo clássico. Mas é a própria ideia da humanidade dohomem que baseou séculos de filosofia política, que começaa sofrer alterações consideráveis na direcção ambígua deum novo humanismo da individualidade, mas que vaiameaçar o humanismo clássico naquilo que L. Strauss soubeidentificar como a unidade da Pólis e do Homem.

Os mesmos movimentos que originaram o humanismocomo ideologia de pressão moral na sociedade modernaoriginaram, também, a impossibilidade desse mesmohumanismo como princípio da unidade entre indivíduo ecomunidade e a crítica da sua ilusão. Aquilo de que setrata é da dualidade interna do indivíduo e do sujeito moralda modernidade.

Pela sua simplicidade o sujeito ambiciona manter-se como a fonte moral da sociedade, mas pelamultiplicidade e mobilidade internas do indivíduo ele nega-se a si próprio, incessantemente, como imagem unitáriado “mundo ético”. A evolução semântica do conceito deindivíduo entre 1500 e 1800 ilustra isto mesmo. Asconcepções do prazer são casos ilustrativos.

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Desde o início da sociologia que o tema do indivíduofoi central na demarcação entre Psicologia e Sociologiaou na polémica em torno do liberalismo e do colectivismo.Os episódios mais significativos desta última oposiçãorelevam do campo da luta política e não são episódiosteóricos propriamente ditos.

Pode encontrar-se uma linha de continuidade entrea tradição da primeira sociologia fundada nestas oposiçõespolíticas e intelectuais e a problemática teórica da soci-ologia contemporânea, que N. Luhmann vai condensar emtorno da teoria sobre a diferenciação social. Esta últimaproveio da discussão do tema da divisão do trabalho, queocorreu primeiramente na forma da tematização da divisãode tarefas, para se tornar no conceito mais maduro dadiferenciação funcional. De facto, nos escritos de E.Durkheim e de G. Simmel se encontra o tratamento daindividualidade em articulação com o problema teóricodo aumento da complexidade da sociedade resultante daespecialização e da diferenciação funcional.

O que resultou da discussão do tema dainterdependência entre diferenciação funcional e indivi-dualidade foi a tese de que a complexidade das sociedadesmodernas, funcionalmente diferenciadas, traz consigo umaexpansão natural da individualidade e das suas exigências.Isto teve por consequência o que N. Luhmann designouexpressamente por “institucionalização do individualismo”.

Os temas da “cultura” e da “socialização” são figurasparalelas da articulação geral entre indivíduo e sociedade.A resposta tradicional ao problema de saber como é possívela convivência entre as estruturas sociais e a cultura“individualista” é dada na forma de uma concepção dasocialização dos indivíduos pela “cultura”. Ora, um dospontos de partida mais importantes do texto do sociólogosobre “indivíduo, individualidade e individualismo” reside

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na tese de que é a própria sociedade que produz umasemântica para descrever o tipo de relacionamento entresociedade e indivíduo. Com esta ideia pretende-se igual-mente estabelecer uma correlação entre “estrutura dasociedade” e semântica, o que nos dá a medida de umprograma de investigação estimulante e extenso.

No entanto, não obstante apontar para a inevitabilidadedo tema, N. Luhmann é inequívoco quando afirma quea sociologia nunca se interrogou verdadeiramente por aquiloque constitui a “individualidade do indivíduo”. Um dosproblemas que se colocam é, então, o de saber o que servepara apreciar o tipo de estimulação recíproca do indivíduoe da sociedade. Mas esta questão tem as respostas quelhe possamos dar condicionadas elas próprias pela semân-tica da sociedade que formula essa questão e na qual nósnos situamos. É possível formular respostas a esta questãofugindo a um fenómeno de auto-referência discursiva?

No contexto da explicação do fenómeno da depen-dência social da construção do próprio conceito de in-divíduo importa referir como é decisiva a questão relativaaos “fundamentos estruturais” da transformação semânticada individualidade.

Na evolução das estruturas reconhece o sociólogofases de transformação da individualidade, desde associedades primitivas, em que a individualidade dosmembros é já reconhecida mas com diminuta importânciapassando pelas sociedades agrárias, nas quais nasce a“individualidade disciplinada”, até ao modelo do que euchamarei a individualidade expressiva da modernidade. Omecanismo que relaciona indivíduo e sociedade adquiridodesde as formas sociais mais recuadas é o mecanismo dainclusão, que vai ser mantido até às sociedadesestratificadas mais evoluídas. A moral aparece nestassociedades estratificadas associada a uma função de garantia

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da uniformidade social assim como de inclusão do indi-víduo em estratos sociais fixos e bem determinados.

Com o advento da diferenciação funcional das so-ciedades modernas deixou a sociedade de estar orientadapara as formas de inclusão do passado, como acontecianas sociedades segmentárias e estratificadas, e deixou deexistir dentro da sociedade lugares definidos para osindivíduos. O indivíduo como que deixa de fazer parteda sociedade, no que a evolução social comprova asexigências dos teóricos iluministas dos direitos do homemenquanto direitos do indivíduo considerado como tal e oconceito de liberdade que lhe é congénito. Assim, em vezde ser a inclusão o mecanismo para relacionar indivíduoe sociedade passou a ser o mecanismo inverso, o daexclusão. Todavia, nesta transformação, o par inclusão /exclusão assume ele mesmo um novo relevo.

O que a forma moderna de sociedade marca é estaaparente independência do indivíduo em relação à soci-edade, fazendo com isto esquecer que é a sociedade queproduz esta aparência, esta ilusão do indivíduo separado.A esta inversão chama N. Luhmann “ideologia” e mostracomo em nenhuma sociedade os seus membros sãocontados como “homens” e como, neste sentido, os“homens” enquanto tais não são, porque nunca foram, os“membros” da sociedade. A concepção moral que afirmaque a sociedade devia admitir os “homens” como seusmembros e que devia garantir de alguma forma a feli-cidade humana representa um fenómeno de nostalgiarelativamente a uma época, já ida, em que, efectivamente,a sociedade se descrevia a si própria como composta por“indivíduos”.

Dizer que a sociedade é composta por indivíduosimplica, por conseguinte, dois tipos de enunciados: umprimeiro que diz que a sociedade se baseia em qualidades

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próprias dos “sistemas psíquicos”; um outro enunciado queafirma que é a autodescrição da sociedade que envolveeste primeiro enunciado sobre os indivíduos como mem-bros da sociedade. Deste último ponto de vista interessaentão saber que sociedade promove este tipo de descriçãocomo descrição da sua própria condição de possibilidade.

Do ponto de vista epistemológico nota N. Luhmannque a afirmação segundo a qual a individualidade mo-derna aparece marcada não pela inclusão mas pela ex-clusão é uma afirmação da teoria sistémica, é uma pro-posição sistémica e tem de ser entendida exclusivamenteneste contexto. Mas as proposições da teoria sistémica quepermitem descrever uma determinada formação histórico-social da individualidade são proposições baseadas numtipo de observação da realidade que é já fruto destaindividuação, o que levou N. Luhmann a interpretar aautopoiesis no quadro da individuação. A diferenciaçãofuncional da sociedade moderna e o seu modelo deindividuação geram o quadro mais adequado para a suaprópria observação, que é, diz-nos o sociólogo, a indi-vidualidade do sistema definida pela “autopoiesis comofechamento da sua auto-reprodução circular”.

A ideia de autopoiesis traduz o modelo da individuaçãoda sociedade moderna de outra forma ainda. Traduz essemodelo na forma da distinção entre sistemas psíquicose sua autopoiesis e sistemas sociais e sua autopoiesis. Arelação entre ambos pode doravante reconhecer-se graçasà “interpenetração” ou acoplamento estrutural, mas os seuselementos e as suas estruturas são diferentes.

É por isso que a individuação como autopoiesis podeser entendida como a auto-reflexão das condições daindividualidade moderna.

O que a ideia de autopoiesis traz à expressão na formamoderna da individuação é a definição do indivíduo como

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auto-referência. Uma tal ideia tem um alcance muito geral:a individualidade é autopoiesis (Die Individualität ist nichtanderes als die Autopoiesis) e a autopoiesis deixa-seentender como o modo como os próprios sistemas psí-quicos se auto-organizam e como se diferenciam dossistemas sociais.

A concepção da autopoiesis não seria, assim, outracoisa a não ser o culminar do dispositivo semântico postoem marcha entre 1500 e 1800 para designar e interpretara auto-referência do indivíduo e o indivíduo como auto-referência.

Perante este esquema de interpretação semântico-sociológica cabe a pergunta sobre o que esperar ainda dascategorias morais. A presença na sociedade moderna deequivalentes funcionais da moral e a semântica da indi-vidualidade prática, que se cruza em todos os aspectosda autodescrição do sujeito da moral, conduzem comfacilidade à ideia da moral como uma sobrevivência, formaresidual de integração social ou discurso ideológico.

O facto de a moral não se deixar descrever comosistema funcionalmente diferenciado relaciona-se com acapacidade que tem o discurso moral para manter unidosvários tipos distintos de articulação entre vivências, acçãoe sistema: o discurso justificativo dos agentes, a reduçãoe o controlo das possibilidades de acção pela referênciaa um uniforme código do bem e do mal, a representaçãodos “costumes” como forma objectiva de uma finalidadecumprida e, ainda, o discurso do autoencadeamento doeu no trajecto da sua biografia como construção de umaunidade de múltiplas partes. Mas, na realidade, o que éfundamental para a moral é poder reduzir umamultiplicidade dada da experiência da acção à unidade deuma fonte do querer. A “visão moral do mundo” é aperspectiva de uma unidade de todas as coisas a partir

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de uma vontade. Na medida em que a moral é um discursoda “interpenetração” entre sistemas psíquicos e sistemassociais, ela afecta ambos os sistemas simultaneamente, aconsciência mediante a acção; a sociedade mediante acomunicação.

No contexto da revolução libertina há uma máximade Cyrano de Bergerac que enuncia o autêntico e maisprofundo ideal da forma moderna de comunicação sobrea moral. Songez à librement vivre! é a única máximacompatível com a genealogia da modernidade social epolítica. Porém, dela não se segue nenhuma ordem moral,nenhuma norma, nenhum plano determinado de vida ouum conjunto de costumes. Trata-se de uma super-moraldo mesmo modo que de uma anti-moral.

Sendo ainda uma fórmula moral, Songez à librementvivre! é um imperativo que comanda duplamente nadirecção de uma mais elevada disponibilidade para acomunicação, do ponto de vista da sociedade; na direcçãode uma mais elevada disponibilidade de possibilidades daacção, do ponto de vista da consciência.

Sendo uma anti-moral, a máxima libertina de Cyranode Bergerac parte da identificação da natureza comocontingência e pensa explicitamente a liberdade comoprodução de novas possibilidades, mas não unifica nuncaessas possibilidades na forma de deveres ou na forma deum mundo objectivo.

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Bibliografia

1. Trabalhos de N. Luhmann directamente utilizados naredacção do presente texto.

Luhmann, Niklas, “Soziologie der Moral”, inLuhmann, N.; Pfürtner, S. H. (hrsg.), Theorietechnik undMoral, Frankfurt/M., 1978, pp. 8-116.

Luhmann, Niklas, Paradigm Lost: Über die ethischeReflexion der Moral, Frankfurt / M., 1990.

Luhmann, Niklas, “Individuum, Individualität,Individualismus”, in IDEM, Gesellschaftstruktur undSemantik 3, Frankfurt / M., 1993, pp. 149-258.

Luhmann, Niklas, Gibt es in unserer Gesellschaftnoch unverzichtbare Normen?, Heidelberg, 1993.

Luhmann, Niklas, “Einführende Bemerkungen zueiner Theorie symbolisch generalisierterKommunikationsmedien”, in IDEM, Aufsätze und Reden,Stuttgart, 2001, pp. 31-75.

Luhmann, Niklas, Beobachtungen der Moderne,Opladen, 1992.

Luhmann, Niklas, Die Gesellschaft der Gesellschaft,2 Bd., Frankfurt / M., 1997.

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2. Outros textos referidos

Anónimo, “L’ École des Filles”, in Prévot, J. (ed.),Libertins du XVII siècle, Paris, 1998, pp. 1103-1202.

Cyrano de Bergerac, “Les états et empires de lalune / Les états et empires du soleil”, in Prévot, J. (ed.),op. cit., pp. 903-1098.

Fénelon, “Réflexions saintes pour tous les jours dumois” in Lafond, J. (ed.), Moralistes du XVII siècle, Paris,1992, pp. 77-78.

INSTITUT CLAUDE LONGEON RENAISSANCEÂGE CLASSIQUE, Libertinage et Philosophie au XVIIsiècle. Libertins et esprits forts du XVII siècle: quels modesde lecture?, Saint-Étienne, 2002.

Gassendi, P., “Traité de la Philosophie d’ Épicure”,in Prévot, J. (ed.), op. cit., pp. 599-745.

Israel, J. I., Radical Enlightenment. Philosophy andthe making of modernity 1650-1750, Oxford, 2001.

Lafond, J. (ed.), Moralistes du XVII siècle, Paris,1992.

Moureau, F.; Rieu, A.-M., Éros Philosophe. DiscoursLibertins des Lumières, Paris, 1984.

Naudé, G., “Apologie pour tous les grandspersonnages qui ont été faussement soupçonnés de magie”,in Prévot, J. (ed.), op. cit., pp. 147-380.

Pascal, B., “LesProvinciales”, in”http://www.bookenstock.com/livres/Provinciales.pdf

Prévot, J. (ed.), Libertins du XVII siècle, Paris, 1998.La Rochefoucauld, “Réflexions ou Sentences et

Maximes Morales”, in Lafond, J. (ed.), op. cit., pp. 134-240.

Saint-Cyran, “Maximes saintes et chrétiennes”, inLafond, J. (ed.), op. cit., pp. 73 ss.

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Legitimação pelo procedimento e deslegitimaçãoda opinião pública

João Pissarra EstevesFaculdade de Ciências Sociais e Humanas,

Universidade Nova de Lisboa

O discurso das ciências sociais, nos nossos dias, atribuia maior importância à ideia de crise: uma questão que se tornouverdadeiramente axial para a quase generalidade dos projectosepistemológicos desenvolvidos neste domínio de conhecimen-tos. Mas como bem sabemos, também, esta situação não énova: desde a fundação das ciências sociais, logo no séc. XIX,que a questão da crise – da sociedade e do homem – marcaaí a sua presença, tendo assim se constituído como verdadeirosigno destas ciências, as quais acompanhou ao longo de todoo seu trajecto, até à actualidade.

Deste ponto de vista, o contributo de Niklas Luhmannpara o pensamento social contemporâneo assume umacaracterística de extrema singularidade, se tivermos emconta que a ideia de crise na sua teoria não é reconhecidacom um estatuto de especial relevo: ela é simplesmenteincorporada no funcionamento regular das sociedades(«normalidade»), de forma quase orgânica. O trabalho de

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Luhmann insere-se no grande paradigma da Teoria dosSistemas, que tem em especial no domínio da sociologiaTalcott Parsons como a sua principal referência; às ideiasdeste autor, Luhmann viria depois acrescentar um lequemuito significativo de novos contributos, de grande ori-ginalidade e ainda maior radicalidade, desenvolvidos noâmbito de um ambicioso projecto científico a que é dadahabitualmente a designação de teoria sistémica de segundageração.

I

Neste trabalho estará em discussão o problema dalegitimidade – um de entre muitos outros problemas dasciências sociais relativamente ao qual a noção de crisese tem vindo a apresentar como decisiva para a quasegeneralidade dos autores. Referimo-nos, neste caso, a umacrise que confina primordialmente com aspectos relaci-onados com a organização e o funcionamento político(democrático) das nossas sociedades: legitimidade, porconseguinte, que é vista em perda ou como desestruturada,adquirindo o significado de uma perturbação do regularfuncionamento social e, nessa medida, algo que podetambém ser entendido como uma verdadeira ameaça à vidados próprios indivíduos enquanto tal.

Na formulação da seguinte pergunta crucial, JürgenHabermas define as coordenadas que nos permitem situara noção de crise no âmbito deste problema da legitimi-dade: «devemos desejar de modo racional que a identi-dade social se constitua na própria mente dos indivíduossocializados ou, pelo contrário, que ela seja sacrificadaao problema, real ou pretendido, da complexidade?»1.

__________________1 Jürgen Habermas, Raison et Legitimité, Paris, Payot, 1973, p. 192.

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De um lado, a legitimidade como possibilidade(política) de uma formação racional das identidades. Deoutro, a crise – da legitimidade – como impossibilidadedisso mesmo acontecer, em consequência do crescimentoexponencial da complexidade das nossas sociedades e dasexigências performativas que a gestão dessa mesmacomplexidade implica (“complexidade pretendida” é umaexpressão com carácter algo insidioso no contexto espe-cífico da pergunta formulada, mas desse problema nãoiremos aqui ocupar-nos). Quanto ao posicionamento deLuhmann perante a questão, não subsiste a mínima dúvidade que a sua prioridade vai para a complexidade (e nãopara a identidade); aliás, é por a questão da identidadeser desta forma secundarizada na teoria sistémica, que anoção de crise não chega aí a tornar-se um elementopropriamente relevante: “crise” é só a designação para umacerta forma ou nível de complexidade (entre outras e comooutras) a que os sistemas têm simplesmente de responder,através do seu próprio modo de funcionamento regulare programado (e mais ou menos bem sucedido).

Nada mais: complexidade e performatividade são desteponto de vista os conceitos nucleares para a compreensãoda realidade das sociedades dos nossos dias. Qualquerperturbação social, deste modo, acaba por ser incorporada/assimilada pela própria lógica de funcionamento dossistemas, como seu elemento constituinte propriamente dito– e a crise é apenas (mais) uma dessas perturbações,definida a (e como) um certo nível da complexidade geral.

Podemos afirmar que este tipo de preocupaçãoevidenciada por Luhmann face à realidade social relevade uma atitude marcadamente positivista, dado a mesmaser definida nos estritos limites de um esforço de expli-cação do funcionamento das nossas sociedades tal qualestas existem. Já Gilles Deleuze – autor que, de forma

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muito diferente de Luhmann, tinha da crise uma percepçãoprofundamente crítica – reconhecia que, apesar de tudo,isto é, não obstante todas as crises e os seus piores efeitosdestrutivos, ça marche: os sistemas funcionam2. Em sentidoidêntico, alguns anos mais tarde, também uma certa seduçãoevidenciada por Lyotard em relação à teoria de Luhmann:uma teoria perfeitamente direccionada para o tal ça marchee que, nessa medida, se posiciona nos nossos dias talvezmelhor que qualquer outra para fornecer explicações sobreo funcionamento das nossas sociedades – um conhecimen-to supostamente objectivo e isento de qualquer outro tipode preocupação (crítica nomeadamente).

II

A discussão de Luhmann sobre o problema da le-gitimidade tem por horizonte mais amplo a teoria dossistemas sociais e, mais especificamente, a concepção desteshoje em dia como dispositivos nucleares, ao mesmo tempo,da estabilidade e da dinâmica sociais. A estabilidade social,inerente à estruturação do próprio sistema e como acapacidade de este realizar a selecção de determinadaspossibilidades de organização. A dinâmica social, em funçãodas amplas possibilidades (e necessidade) de os sistemassociais concretizarem novas hipóteses de organização,dentro de limites consideravelmente latos para a sua própriaexpansão, isto é, a crescente autonomização dos sistemassociais relativamente ao seu meio ambiente (constituídoeste também por outros sistemas, e entre os quais Luhmanndefine o próprio sistema humano).

__________________2 No memorável texto de abertura ao capítulo sobre as “má-

quinas desejantes”, Cf. Gilles Deleuze e Felix Guattari, O Anti-Édipo.Capitalismo e Esquizofrenia, Lisboa, Assírio e Alvim, 1972, p. 7.

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É, pois, através desta perspectiva eminentementefuncional dos sistemas sociais que se torna possível ladeara noção de crise, no sentido mais habitual que este conceitoassume em teoria social (como ameaça séria ou pertur-bação já consumada do normal funcionamento da vidacolectiva). Para a Teoria dos Sistemas, a “crise” é intrín-seca ao funcionamento do sistema da sociedade e aosdiversos sub-sistemas sociais, sendo neste sentido algosempre potencialmente assimilável (e superável) pelaprópria dinâmica regular do funcionamento social3 – atravésde operações de redução da complexidade, da responsa-bilidade dos próprios sistemas.

Num horizonte teórico mais estreito, a questão dalegitimidade é problematizada por Luhmann no quadro deuma teoria do Direito – sendo este entendido como osistema formal geral que define o enquadramento datotalidade dos comportamentos dos sistemas sociais. ODireito, desta forma, consiste também propriamente numaestrutura que estabelece os limites da sociedade e dasinteracções sociais, neutralizando a contingência das acçõesindividuais (ao criar um conjunto de expectativas

__________________3 Este tipo de desproblematização da noção de crise pressupõe

uma teoria da evolução social inteiramente centrada na dinâmica dossistemas funcionais da sociedade. Estes operam no processo socialglobal como mecanismos de estabilização, em articulação commecanismos de variação (linguagem) e com mecanismos de selecção(media simbolicamente generalizados): «os mecanismos de variaçãorealizam as possibilidades simples, os mecanismos de selecção es-colhem as realizações úteis e eliminam as inúteis, os mecanismos deestabilização incorporam na estrutura dos sistemas existentes a ino-vação seleccionada (...) – tomam em conta as descontinuidades (osseus limites) e estabilizam-se através de uma selecção bem sucedidade estruturas» Niklas Luhmann, “Generalised media and the problemof contingency”, in J. J. Loubser et al. (eds), Explorations in GeneralTheory in Social Science: essays in honour of Talcott Parsons, vol.2, New York, Free Press, 1976, p. 512.

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comportamentais) e que, em última instância, proporcionaainda as condições que permitem a coexistência entresistema da sociedade e sistema humano. O Direito forneceum princípio de eficácia aos sistemas sociais – ao seufuncionamento –, que consiste na articulação operatória,por ele próprio concretizada, de normas, instituições enúcleos significativos (de tipo conhecimento pessoal, papéise valores sociais); com base nesta articulação produz-seuma indiferença controlada, no sentido de imunizaçãosimbólica de certas expectativas perante os factos, a qualpor sua vez funciona como garantia de continuidade deuma dada linha de acção que foi definida independen-temente daquilo que realmente acontece ou possa vir aacontecer (pelo menos numa margem muito significativa).Como diz Luhmann, este tipo de expectativas adquire umcarácter operatório em termos sociais – na redução decomplexidade e estabilização dos sistemas – porinstitucionalização, isto é, na medida em que tais expec-tativas possam de facto transcender o âmbito específicodas partes interactuantes e adquirir o carácter de gene-ralidade de um acordo presumido de terceiros: pelo«mecanismo de institucionalização formam-se expectati-vas referentes às expectativas de terceiros, independen-temente de essas expectativas se confirmarem ou não»4.

O Direito promove a criação de expectativas sociaise, deste modo, contribui decisivamente para a consolida-ção do sistema e sub-sistemas da sociedade – consolida-ção que depende da realização de um conjunto restritode possibilidades, podendo as mesmas, no entanto, serdefinidas a partir de um campo de variação muito amplo.As possibilidades seleccionadas estabelecem, em última

__________________4 Niklas Luhmann, Sociologia do Direito, vol. 2, Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro, 1983 (1972), p. 62.

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análise, as fronteiras dos próprios sistemas (o modo dasua diferenciação em relação ao meio ambiente). Aoproduzir expectativas sociais, o Direito reduz a margemde contingência do funcionamento dos sistemas sociais:limita drasticamente as possibilidades de intervenção quetêm por origem o mundo circundante (os indivíduos e oseu livre arbítrio que, como já antes foi referido, segundoa perspectiva sistémica não são parte do sistema dasociedade mas seu meio envolvente). Sem intervenção doDireito, essas possibilidades seriam praticamente infinitase, portanto, incontroláveis. Nas sociedades complexas dosnossos dias, a criação de expectativas sociais é simulta-neamente mais necessária mas também mais difícil, desdelogo porque o próprio Direito se encontra sujeito apermanentes flutuações: constitui-se como «uma estruturade expectativas contingencial e dependente de decisões»5.Esta situação contrasta com a das sociedades menoscomplexas ou a das instituições mais simples, em que osactores sociais se relacionam(/vam) todos da mesma formacom as normas, tornando-se assim mais fácil definir cadeiasde expectativas (mais) contínuas e regulares. Nas presen-tes condições, a eficácia funcional do Direito passa adepender da possibilidade de mobilizar um processo deaprendizagem contínuo e complementar: «possibilidadesde mudança exigem a introdução de possibilidade deaprendizagem no Direito, ou seja, a introdução de expec-tativas cognitivas ou, de forma mais precisa, de estruturasde expectativas cognitivamente normalizadas numa com-plexidade de expectativas que é, em princípio, normativa»6.

A explicação adicional que Luhmann fornece paraeste problema deixa-nos já muito próximos da questão da

__________________5 Ibidem, p. 61.6 Ibidem, p. 63.

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legitimidade, que aqui nos interessa compreender. Apositivização do Direito impõe a necessidade do processode aprendizagem anteriormente referido – aprendizagemdo próprio Direito–– numa dupla perspectiva, dos sujeitosa quem as decisões são dirigidas, mas também daquelesque decidem: processos de aprendizagem diferenciados,mas coordenados e concomitantes, que «regulam a de-cisão e a aceitação de decisões sobre expectativasnormativas (...), no sentido em que os que são afectadospelas decisões aprendem a esperar conforme as decisõesnormativamente vinculativas, porque aqueles que decidem,por seu lado, também podem aprender»7.

A legitimidade é para Luhmann, pois, a chave desteproblema relativo à aceitação de decisões – no âmbito dofuncionamento dos sistemas sociais e da interacção em geral.Um problema que diz respeito, por conseguinte e antes de mais,ao modo como a aceitação de decisões pode ser conseguida8.

A legitimidade como função sistémica não estáassociada à necessidade de justificação normativa, nemdepende das motivações individuais, reporta antes, pri-

__________________7 Ibidem.8 Razão pela qual a sua teoria da legitimidade se distancia tanto

da de Habermas, por exemplo, assim como de um modo geral daconcepção política (democrática) tradicional de legitimidade: em termosde performatividade sistémica (eficácia), o ethos político geral dademocracia ou a exigência de um consenso conscientemente construídodeixam de poder fornecer garantias suficientes de aceitação das de-cisões. Legitimidade e Democracia são termos (des)articulados de formamuito peculiar no léxico luhmanniano: considera-se que a política de-mocraticamente assimiladora não fornece uma legitimação suficientepara as decisões, ou dito de outra forma, «a legitimidade institucionalnão reside numa derivação valorativa nem na disseminação factual doconsenso consciente, mas sim na possibilidade de se supor a aceitação[de decisões]», pelo que legítimas serão então «as decisões relativa-mente às quais se pode supor que qualquer terceiro espere normativamenteque os atingidos se ajustem cognitivamente às expectativas normativastransmitidas por aqueles que decidem», Ibidem, p. 64.

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mordialmente, ao processo decisório, em especial à ne-cessidade de regularidade deste mesmo processo (tomadade decisões e aceitação das mesmas). A garantia que alegitimidade oferece à decisão inscreve-se na lógica defuncionamento dos sistemas, no ponto específico da relaçãoque estes estabelecem com o meio ambiente, e opera atravésde formas elementares de sentido (condensadas pelos mediasimbolicamente generalizados) que devem fornecer aossujeitos as motivações necessárias à sua colaboração(aceitação das decisões). Nesta concepção de legitimidadetransparece já com clareza o carácter propriamenteprogramático da teoria social luhmanniana, enquanto umamera hipótese de trabalho sobre possibilidades de evo-lução das sociedades humanas; mais propriamente, umahipótese que é formulada tendo por base uma selecçãocriteriosa de determinados traços característicos das so-ciedades contemporâneas (e a concomitante desvaloriza-ção de outros) e, mais importante ainda, depois, o modocomo os traços referidos são projectados socialmente demodo a criar uma ideia (artificial) de homogeneização daexperiência humana. Esses traços sociais mais marcantessão hoje em dia bem conhecidos: expansão do niilismo,perspectivismo dos afectos e relativismo moral, a crisedo indivíduo e a crescente tecnicização da experiência9.

__________________9 Tópicos que são facilmente reconhecíveis na agenda da chamada

pós-modernidade (versão pós-estruturalista), o que torna então maiscompreensível a já referida inclinação de Jean-François Lyotardrelativamente ao pensamento de Luhmann (Cf. Jean-François Lyotard,La Condition Postmoderne, Paris, Minuit, 1979, pp. 76 e 77). Contudo,este gesto não sensibilizou o sociólogo alemão, que expressou in-clusive de forma muito clara a sua relutância quanto ao interesse daideia “pós-modernidade” (Cf. Niklas Luhmann, “The future ofdemocracy”, in Political Theory in the Welfare State, New York, Walterde Gruyter, 1990 (1986), p. 231).

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Na transformação das sociedades modernas, o queLuhmann apreende – e deseja enfatizar como linha de rumoda evolução social – é uma desconexão crescente entreos problemas da complexidade e os (“velhos”) princípiosde uma vida democrática. Uma fórmula que as teoriasrealistas da democracia de modo geral adoptam, tendoem consideração o modo como nelas se desconectamprosperidade e liberdade, participação política deliberativae direitos formais de elegibilidade, ou como as mesmasenfatizam os mecanismos de regulação dirigidos à satis-fação de interesses e distribuição de compensações, e aindatambém o facto de este tipo de teorias ignorarem gene-ricamente os imperativos inerentes a uma formação de-mocrática da vontade (num sentido político amplo e forte,e não na estrita lógica do sistema de governação) e aracionalização da dominação através da participação cí-vica. Luhmann não desconhece a legitimidade democrá-tica, mas a sua convicção é claramente de que esta jánão corresponde (nem tem capacidade de responder) aosproblemas de complexidade das sociedades dos nossos dias,como tal devendo ser abandonada: «a política democra-ticamente assimiladora não representa uma legitimaçãosuficiente para as decisões, como se a democracia fosseum valor em si mesmo ou um princípio que pudessejustificar qualquer decisão»10. Entendendo a legitimidadeinstitucional na forma que melhor pode servir o funci-onamento dos sistemas sociais, isto é, essencialmente comopressuposição de aceitação das decisões, a sua declinaçãodeixa de ser realizada por via valorativa (disseminaçãofactual do consenso racional): legítimas serão então asdecisões em relação às quais se pode supor a generali-zação normativa da expectativa de que os atingidos pela

__________________10 Niklas Luhmann, Sociologia do Direito, vol. 2, p. 63 e 64.

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decisão se ajustarão cognitivamente às expectativasnormativas transmitidas pelos decisores11.

III

A relação desta concepção de legitimidade com oDireito é decisiva, como acabámos de referir, e expressa-se na seguinte formulação: «[a legitimidade consiste] numamplo convencimento factual da validade do Direito oudos princípios e valores nos quais as decisões vinculativasse baseiam»12. Isto não significa, porém, que a concepçãode legitimidade do nosso autor possa ser considerada comoestritamente jurídica, dado que na própria definição acimareproduzida se encontram dois termos-chave – “conven-cimento” e “força vinculativa” – que reportam desde logoa um outro plano de explicação, propriamente sociológico.Uma outra formulação ajuda-nos a clarificar ainda melhoreste outro plano de análise: «legitimidade pode definir-se como uma disposição generalizada para aceitar de-cisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certoslimites de tolerância»13.

A questão sociológica, aqui perfeitamente delimitada,está relacionada com os mecanismos que garantem aefectividade/eficácia do sistema jurídico, no sentido decapacidade de produzir uma aceitação de decisões deconteúdo (ainda) não definido. Como se pode generalizarsocialmente um processo de decisão independente – emgrande parte pelo menos – do conteúdo propriamente ditodas decisões tomadas? Ou de outra forma, como é quea aceitação de decisões por parte dos seus destinatários

__________________11 Cf. Ibidem, p. 64 e, mais em pormenor, a nota 8 deste trabalho.12 Ibidem, p. 61.13 IDEM, Legitimação pelo Procedimento, Brasília, Ed. Univer-

sidade de Brasília, 1980 (1969), p. 30.

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pode ser conseguida a priori contra a mera certeza datomada de decisões?

Para Luhmann é muito claro que a decisão é antesde mais um problema de ordem sociológica – comimplicações ao nível do Direito, mas cuja explicação cabalnão pode ser estabelecida em termos estritamente jurídi-cos. Um problema sociológico que no entanto é circuns-crito à funcionalidade dos sistemas sociais e se relacionacom a capacidade destes gerarem alternativas válidas paraa sua própria manutenção (ou expansão) – gestão técnico-instrumental da complexidade; não um problema socio-lógico no que a decisão pode implicar – e efectivamenteimplica – de relação essencial com expectativas, aspira-ções ou representações simbólicas originadas nos indiví-duos, com critérios de justiça (da dominação) e equidade(de participação e distribuição de recursos)14. Classifica-remos então esta perspectiva como decisionismo socio-lógico, tendo em consideração a forma como se pretendeque na mesma o problema da legitimidade nos nossos diasseja confinado à gestão das sociedades tal qual estas existem– sem considerar a possibilidade da sua mudança outransformação (para além do funcionamento das socieda-des como sistemas); trata-se de uma gestão que se esgotana potenciação do sistema e sub-sistemas sociais: expan-são das suas fronteiras, maior performatividade e eficácia.Para Luhmann, o carácter sociológico da legitimidade toma

__________________14 Estes são também problemas de complexidade, mas de tipo

diferente dos primeiros. Uma “complexidade indeterminada” – poroposição à “complexidade determinada”, intrínseca aos sistemas – cujaorigem é exterior aos sistemas e em relação à qual não é supostoestes fornecerem respostas adequadas; ou porque os sistemas lhe sãocompletamente insensíveis, ou porque as suas respostas se revelamdesajustadas (definidas que são apenas na lógica da dominação/ex-pansão cada vez maior dos sistemas face ao seu meio ambiente). Cf.J. Habermas, Raison et Legitimité, p. 179.

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assim um certo significado de pré-jurídico, algo queantecede e, em última análise, tende mesmo a substituir-se aos – “velhos” critérios da justiça e injustiça (dasdecisões): o indubitável da validade legítima das decisõesobrigatórias «é uma espécie de consenso básico, que sepode alcançar sem acordo quanto ao que é objectivamentejusto em cada caso particular e que estabiliza o sistema»15.

O aspecto sociológico da legitimidade é inerente aoobjecto propriamente dito desta: as expectativas sociais.E também ao modo como este mesmo objecto é confi-gurado de uma dada forma: como se concretiza o ajus-tamento dessas expectativas? Para resposta a esta questão,Luhmann vai recorrer ao modelo teórico mais geral (eprimordial) da sua teoria da sociedade16: o normal comoimprobabilidade – «o normal, ou seja, a experiênciaquotidiana, é reduzido à improbabilidade, permitindo porémcompreender que este normal se produz apesar de tudocom a regularidade necessária»17. Quanto à questão dalegitimidade, a regularidade (improvável) por ela produ-zida consiste, precisamente, no ajustamento de expecta-tivas sociais através da aceitação do efeito vinculativo dasdecisões, sem necessidade de se produzirem (outras)

__________________15 N. Luhmann, Sociologia do Direito, p. 31.16 O modelo da improbabilidade, além da teoria geral da

sociedade, surge nos trabalhos de Luhmann aplicado a diversos outrosproblemas sociais, dos quais talvez o mais conhecido seja o dacomunicação – os media simbolicamente generalizados como alter-nativa à linguagem comum, e que por isso mesmo se apresentam comodispositivos sociais capazes de gerarem a regularidade de algo queà partida é improvável (a comunicação). Cf. IDEM, “A improbabilidadeda Comunicação”, in João Pissarra Esteves (org.), Niklas Luhmann.A Improbabilidade da Comunicação, Lisboa, Veja, 1992 (1981), pp.45-50.

17 IDEM, “Remarques préliminaires envue d’une théorie dessystèmes sociaux”, in Critique, nº 413 (1981), p. 998.

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motivações racionais e sem que por isso se gere umafrustração de interesses por parte dos indivíduos envol-vidos.

Esta regularidade assume um carácter eminentementesociológico na medida em que a sua produção não podeser imputada de natural, nem como resultante estritamentede mecanismos motivacionais de ordem psicológica.Luhmann identifica a eficácia simbólica generalizante daforça física e a participação em processos como osmecanismos sociais – precisamente – mais eficazes paraa produção dessa regularidade, isto é, produção de legi-timidade (das decisões).

Quanto à força física, Luhmann tem o cuidado dereconhecer os limites da sua utilização nas presentescondições sociais (e no âmbito do Direito Positivo), masnão exclui a sua eficácia simbólica para a produção delegitimidade – a força é portadora de uma elevada certezae possui alta previsibilidade de sucesso:

«mesmo sem se conhecerem com precisão as decisõesa serem impostas, as situações e as estruturasmotivacionais dos afectados, pode-se supor que eles sesubmetem à força física nitidamente superior (...); porisso é necessário apoiar as expectativas com respeito àsexpectativas de terceiros na suposição genérica de queos que forem afectados por decisões, se submetem à força– noutras palavras, na expectativa de que todos esperamque ninguém se rebele»18

O recurso complementar que as sociedades contem-porâneas têm ao seu dispor para produção de legitimidadesão os processos juridicamente regulamentados: eleições,processo legislativo, processo judicial e decisão adminis-

__________________18 IDEM, Sociologia do Direito, p. 65.

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trativa19. A eficácia destes processos é garantida pelaparticipação que os sujeitos neles têm, isto é, através doseu envolvimento procedimental. E daqui, então, é extra-ída a tese da legitimação pelo procedimento: a nossasociedade «já não legitima o seu Direito por meio deverdades invariáveis existentes mas sim apenas, ou prin-cipalmente, por meio da participação em procedimentos»20.A eficácia inerente aos procedimentos está no facto deeles se constituírem como verdadeiros sistemas de acção,que garantem não só a tomada de decisão, mas tambéma aceitação desta.

Esta última premissa é, obviamente, a mais contro-versa da teoria de Luhmann. Parece existir, de facto, algode muito idealizado nesta ideia de que o mero carácterformal dos procedimentos é um mecanismo absolutamenteseguro de redução radical da complexidade, ao se pre-sumir que os procedimentos são capazes só por si degarantir o controlo do conflito potencial que as decisõesconcretas podem provocar e que os mesmos são capazesde imunizar a decisão final contra (quaisquer) possíveisdecepções. Mas ao mesmo tempo, esta teoria não deixade se apresentar com uma forte carga sedutora, na medidaem que de imediato e intuitivamente lhe pode ser reco-nhecida uma certa validade, em determinadas situaçõessociais concretas, ou mesmo na linha de uma certa lógicade desenvolvimento do actual processo social, em que setende a privilegiar a certeza da tomada de decisão emdetrimento do conteúdo propriamente dito (incerto) desta,isto é, da decisão concreta que possa vir a ser tomada.

__________________19 Sendo este último exclusivo dos Estados mais desenvolvidos,

e dado possuir um carácter sobretudo funcional, é considerado umtanto à margem da produção de legitimidade propriamente dita (Cf.IDEM, Legitimação pelo Procedimento, p. 173).

20 Ibidem, p. 8.

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Embora os procedimentos aqui em questão sejam todoseles de natureza legal, a teoria da legitimação pelo pro-cedimento não deixa de assumir um carácter marcadamentesociológico: a participação procedimental é, em primeiraordem, um problema de acção social, de tomada de de-cisões e acatamento de decisões – das quais depende onormal funcionamento das sociedades. Temos sim queconsiderar é que estamos perante uma teoria cínica da acçãosocial, atendendo à forma como nela a legitimidade éoperacionalizada, recorrendo a um mecanismo de ilusãofuncionalmente necessária: a possibilidade de rebelião (contraas decisões tomadas) é apenas ficcional, porque na verdadeela pretende-se excluída pelo próprio mecanismo da legi-timidade. E desta forma voltamos de novo a cruzar-nos como tema do total descarnamento ético tão característico destateoria da legitimidade, já antes referido, aqui traduzido numpositivismo sociológico em que os valores e as normassociais acabam por se ver substituídos por princípios deperformatividade e eficácia (dos sistemas funcionais):

«o próprio procedimento não constitui um critério deverdade mas favorece a correcção das decisões, quepossibilita e canaliza a comunicação, que garante arealização de decisões independentemente de a lógicafuncionar e permitir ou não os cálculos das soluçõesexactas, e que contribui para abolir as perturbaçõesprevisíveis»21

Para Luhmann, este deslocamento resulta do proces-so de positivização do Direito, por ele interpretado comoo abandono progressivo de «uma relação com a verdadeou a verdadeira justiça», em favor de processos de decisão22.

__________________21 Ibidem, p. 17.22 Cf. IDEM, Sociologia do Direito, pp. 7-17.

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Sendo a sua perspectiva – do desenvolvimento social – ados sistemas, a ascendência por assim dizer que os processosde decisão adquirem sobre o carácter (ético) das decisõesapresenta-se a seus olhos como inevitável (e inquestionável):

«Não há garantia que sempre que se alcançar a verdadese encontrarão as decisões certas. A isso se opõe anecessidade de decisões. Um sistema que tenha queassegurar a possibilidade de decisão de todos os pro-blemas levantados não pode, simultaneamente, garantira justiça da decisão. A especificação de funções de umaorientação exclui as da outra orientação»23.

IV

A legitimação pelo procedimento tem implicações anível da comunicação em dois pontos fundamentais – sendo

__________________23 IDEM, Legitimação pelo Procedimento, pp. 23-24. A própria

verdade acaba por ser recuperada para a teoria da legitimidade (edo procedimento), mas só depois de convertida na noção de mediumsimbolicamente generalizado: a verdade como forma de transmissãode complexidade reduzida (em oposição ao sentido arcaico de verdadecomo valor absoluto), que garante aos indivíduos «uma orientaçãosignificativa e uma direcção de vida que lhes permite adoptarem obrasde selecção de outros» (Ibidem, p. 25. Sobre verdade como mediumfuncional, ver também: IDEM, “Generalised media and the problemof contingency”, p. 514). Nesta acepção (funcional), a verdade operano interior do procedimento articuladamente com o poder (tambémeste concebido como medium simbolicamente generalizado), amboscomo mecanismos de selecção – «o objectivo do procedimento ju-ridicamente organizado consiste em tornar intersubjectivamentetransmissível a redução de complexidade, com a ajuda quer da verdade,quer através da criação do poder legítimo da decisão» (IDEM,Legitimação pelo Procedimento, p. 27. Sobre o poder como mediumfuncional, ver também: IDEM, “Generalised media and the problemof contingency”, p. 517-518). Sendo muito claro, porém, que Luhmannatribui ao poder primazia operacional: é o poder que gere a decisãoe a torna legítima.

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esta uma outra razão que confere um carácter eminen-temente sociológico à proposta de Niklas Luhmann aquiem discussão. Por um lado, a própria legitimidade podeser entendida como uma forma de comunicação, no sentidoem que é geradora de intersubjectividade (consiste noajustamento de expectativas entre actores sociais); a verdadee o poder como media simbolicamente generalizados, emecanismos intrínsecos aos procedimentos, conferem àlegitimidade precisamente esse carácter comunicacional.Por outro lado, a legitimidade pelo procedimento consistetambém numa resposta aos problemas de complexidadeque as sociedades contemporâneas apresentam a nível dacomunicação (à elevada improbabilidade que esta repre-senta): a improbabilidade da comunicação é um dosfactores mais importantes da complexidade social dosnossos dias, isto é, uma fonte de problemas para o normalfuncionamento dos sistemas sociais, sendo por este motivoa legitimidade pelo procedimento (e a redução daimprobabilidade da comunicação que ela permite) a res-posta específica (dos sistemas) a esse problema.

Os media, agora no sentido específico de meios dedifusão, são hoje em dia responsáveis por um acréscimoexcepcional da improbabilidade da comunicação (comple-xidade social, portanto), de acordo com a formulação deLuhmann segundo a qual a redução da improbabilidadeda comunicação a um determinado nível gera graus maiselevados de improbabilidade nos restantes níveis – «sea técnica permite vencer a improbabilidade da difusão,faz, por outro lado, aumentar o grau de improbabilidadede êxito da comunicação»24. Uma ilustração convenientedeste raciocínio poderá ser a seguinte: os meios de difusãoampliam extraordinariamente as possibilidades de selec-

__________________24 IDEM, “A improbabilidade da comunicação”, p. 49.

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ção disponíveis para os indivíduos (reduzem aimprobabilidade de sucesso da comunicação a este nível),mas dessa forma tornam ao mesmo tempo a selecção (demensagens, conteúdos, sentido) mais difícil (e assim crescera improbabilidade geral da comunicação). A exemplificaçãodeste processo apresentada pelo nosso autor é extremamen-te elucidativa do tipo de unilateralidade que caracteriza asua teoria social (a sociedade como totalidade à imagemdos sistemas sociais)25: os meios de difusão favorecem aconstituição (radicalização e pluralização) de “mentalidadescolectivas” e estas, enquanto centradas nos indivíduos (istoé, externas aos sistemas funcionais da sociedade), tornam-se um problema (de complexidade acrescida) para os sistemas– em termos políticos e económicos, por exemplo, aten-dendo à dificuldade de resposta por parte dos sistemas atodas as expectativas dos indivíduos assim criadas.

Luhmann muito sintomaticamente, porém, não consi-dera estas expectativas como “sociais”, mas sim como“expectativas dos indivíduos”, pretendendo deste modorelegá-las para fora dos sistemas (no seu meio ambiente)e, em última análise, para fora também da própria so-ciedade; na perspectiva de que as mesmas são um factorde perturbação social (fonte de complexidade) e, comotal, a exigirem uma resposta por parte dos sistemas: alegitimidade pelo procedimento é a forma dessa resposta,sendo a sua orientação não a integração das expectativasdos indivíduos, mas sim a sua neutralização.

Para que se esclareçam de uma vez por todas aspossíveis dúvidas que possam ainda subsistir sobre estateoria – seu significado e implicações –, é o próprio autorque em linguagem crua define a legitimação pelo pro-cedimento como «dependendo muito menos de convicções

__________________25 Cf. Ibidem, pp. 57 e 59.

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motivadas do que de uma aceitação sem motivo»26; esublinha também o carácter técnico-comunicacional dalegitimidade como alternativa à comunicação simbólica dalinguagem comum: «por meio do livre estabelecimentode comunicação não se pode alcançar nenhum objectivo»27.

V

Os sujeitos não fazem parte dos sistemas – é esteponto assente para Luhmann.

Mas não farão, de facto?A legitimidade pelo procedimento não deixa de ser

uma resposta sistémica a problemas dos sujeitos, ou talvez,mais propriamente, a um apenas – mas magno – problemados indivíduos enquanto sujeitos sociais: como se harmo-nizam as suas expectativas de modo a gerar aintersubjectividade indispensável à vida em sociedade?

É um novo aspecto da dimensão eminentementesociológica da teoria da legitimidade pelo procedimento– que Luhmann não ignora, embora considere os indi-víduos exteriores ao sistema da sociedade (e sub-sistemasrespectivos). Vimos já como a legitimação pelo procedi-mento pressupõe uma mecânica (abstracta) da decisão, asua eficácia no entanto depende sempre de uma capaci-dade concreta de mobilização dos sujeitos propriamenteditos; por este motivo, Luhmann considera indispensáveluma “aprendizagem bem sucedida” associada (ou mesmoinerente) ao tipo de legitimação referido: legitimaçãoatravés da qual os indivíduos poderão, sistematicamente,reorientar os seus princípios de acção e ajustar as suasexpectativas às decisões tomadas. Só assim a legitimidade

__________________26 IDEM, Legitimação pelo Procedimento, p. 33.27 Ibidem, p. 27.

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poderá ser realmente produzida, isto é, quando as expec-tativas dos indivíduos são de facto alteradas pelas decisõesdos sistemas, podendo então passar a ser consideradas (pelosistema) de dentro para fora como um facto.

“Aprendizagem” é como Luhmann se refere a esteprocesso, porém o termo planeamento parece ser-lhe maisajustado. Trata-se, afinal, de impor ao comportamento dosindivíduos uma decisão oficial obrigatória, que foidesencadeada ao nível do sistema:

«A legitimidade não depende do reconhecimento “volun-tário” da convicção da responsabilidade pessoal mas sim,pelo contrário, de um clima social que institucionaliza comoevidência o reconhecimento das opções obrigatórias e queas encara, não como consequências de uma decisão pessoal,mas sim como resultados do crédito da decisão oficial»28

Lyotard di-lo também de forma clara: o que aqui está emquestão é um mecanismo que faz os indivíduos “querer” aquiloque é necessário à performatividade dos sistemas, «as decisõesdo sistema não têm de respeitar as aspirações [dos indivíduos],as próprias aspirações é que têm de aspirar a essas decisões»29.

Os limites positivistas desta teoria dos sistemasapresentam-se assim diante dos nossos olhos com totalnitidez. Aliás, nem se pode dizer que se trata propriamentede uma realidade social concreta que é aqui objecto deexplicação, mas antes uma hipotética realidade social quea partir daqui – isto é, da própria teoria – se pretendever projectada. A “aprendizagem bem sucedida” deLuhmann consiste, na verdade, num grande projecto deunificação dos media verdade e poder ao serviço daexpansão da lógica dos sistemas (e da sua

__________________28 Ibidem, p. 34.29 J.-F. Lyotard, La Condition Postmoderne, p. 100.

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performatividade). Ou seja, o significado último da teoriados sistemas é o de um programa político – um planode transformação das nossas sociedades num dado sen-tido, de acordo com uma orientação bem definida (e sóuma) para a evolução social nos nossos dias30.

Não é possível aqui explorar de modo sistemático oquadro geral desta evolução social (hipotética) idealizadapor Luhmann, gostaria de me deter mais em pormenor apenasnuma das suas dimensões – a da comunicação.

Para este fim será útil regressar à ideia da legitimação(pelo procedimento) como sistema social particular deacção. Por sistema social, Luhmann entende uma cons-trução ou organização de complexidade reduzida, capazde definir uma orientação para a acção, e que por issomesmo pode funcionar como meio de estabilização social:

«Os sistemas constituem uma diferença entre interior eexterior, no sentido de uma diferenciação em nível decomplexidade ou ordem. O seu ambiente é sempre ex-cessivamente complexo, impossível de abarcar com a vistae incontrolável; em contrapartida, a sua ordem própriaé extremamente valiosa na medida em que reduz a com-plexidade; e como a acção inerente ao sistema só admite,comparativamente, algumas possibilidades (...) é atravésdessa redução que os sistemas possibilitam uma orien-tação inteligente da acção»31

__________________30 Habermas chama a atenção para o facto desta teoria hipotética

de evolução social ser definida estritamente segundo imperativossistémicos (de eficácia e performatividade) e à margem portanto dasconstelações de interesses formadas a partir das estruturas normativas– no pressuposto de que estas acabarão por ser subordinadas àsexigências de selectividade e redução de complexidade dos sistemas,ou pura e simplesmente abolidas (J. Habermas, Raison et Legitimité,p. 183). Deixamos aqui de lado a crítica contundente deste autor à(ausência de) fundamentação antropológica da teoria dos sistemas.

31 N. Luhmann, Legitimação pelo Procedimento, p. 39.

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Deste ponto de vista, a gestão das expectativas dosindivíduos apresenta-se como uma consequência directada estrutura do próprio sistema: o conjunto limitado dehipóteses de organização (interna) do sistema tipifica assituações de aplicabilidade das diferentes expectativas ea sua generalização como válidas, de uma forma estávelno tempo para a maioria dos indivíduos. Em termoscomunicacionais, esta operação que consiste no própriotrabalho/funcionamento dos sistemas traduz-se numa re-dução de improbabilidade da comunicação: a passagemde uma situação de pluralização e extrema variabilidadedas expectativas sociais (individualistas), para uma outrasituação de estabilidade e harmonização dessas mesmasexpectativas. Os sistemas sociais terão tanto mais sucessonesta operação quanto, no seu funcionamento, consegui-rem libertar-se da linguagem comum (improbabilidade dacomunicação), substituindo-a por linguagens específicasfuncionalizadas, isto é, os media simbolicamente gene-ralizados constituídos em si mesmos como formas sin-téticas de comunicação32.

__________________32 Em trabalho anterior tive oportunidade de explorar de modo

mais sistemático a teoria dos media simbolicamente generalizados (J.P. Esteves, A Ética da Comunicação e os Media Modernos, Lisboa,Fundação Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigação Cien-tífica e Tecnológica, 1998, pp. 396-400). Aqui gostaria apenas desublinhar o facto de esta teoria ter tido a sua formulação inicial porTalcott Parsons, que considerou como media funcionais deste tipo ainfluência, os compromissos morais, o dinheiro e o poder; Luhmannveio depois alargar consideravelmente este elenco, embora reconhe-cendo que os media centrais das nossas sociedades se reduzem afinala um leque bastante restrito: a verdade, o dinheiro, o poder e o amor– em torno dos quais se estruturam os mais importantes sub-sistemassociais (Cf. N. Luhmann, “The self-thematization of society. Asociological perspective on the concept of reflection”, in TheDifferentiation of Society, New York, Columbia University Press, 1982(1973), p. 326).

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Podemos então concluir que no horizonte mais lon-gínquo da hipótese de evolução social preconizada poresta teoria dos sistemas de segunda geração se coloca comopossibilidade, a comunicação nas sociedades acabar porse desvincular completamente da linguagem humana/natural.

Aliás, na perspectiva de Luhmann, mais que umapossibilidade isto parece mesmo apresentar-se como ine-vitável e, acima de tudo, desejável. A pergunta que secoloca é a seguinte: que lugar ficará então reservado àlinguagem (se é que algum lugar ainda fica)? Acabará estapor desaparecer pura e simplesmente ou, mesmo perma-necendo, ver-se-á relegada a uma posição cada vez maisresidual?

Ao considerar este problema como externo aos sis-temas sociais, Luhmann não se detém nele longamente:é uma questão que diz respeito ao sistema dos indivíduos,portanto, de mera ordem da complexidade externa dossistemas sociais – “apenas” uma certa forma de comple-xidade entre muitas outras. Mas será que a Teoria Socialse pode permitir passar assim com toda esta ligeirezaadiante?

A evolução social preconizada por Luhmann – tam-bém na sua teoria da legitimação pelo procedimento –supõe uma tal expansão dos sistemas funcionais da so-ciedade que o meio ambiente destes acabaria por se verreduzido, cada vez mais, a outros sistemas funcionais(qualquer sistema se posiciona perante outro como meioexterior). A improbabilidade da comunicação que entãosubsistiria – e a complexidade em geral – seria sobretudoaquela que os próprios sistemas geram uns face aos outros(na sua relação). Podemos imaginar que mesmo assimpermaneceria ainda, e sempre, uma certa margem residualde contingencialidade inerente ao mundo físico, no en-

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tanto a tensão Sistema-Mundo da Vida tenderia a desa-parecer (por neutralização ou esvaziamento deste último):os media simbolicamente generalizados como substituiçãoda linguagem e os processos de reprodução sistémica nolugar dos processos de reprodução cultural, de integraçãosocial e de socialização.

Embora o termo “crise” não faça parte do léxico destateoria dos sistemas – nomeadamente a crise configuradacomo tensão Sistema-Mundo da Vida –, isso não significapropriamente que ela tenha de facto desaparecido da vidasocial. Nem parece possível imaginar como é que issoalgum dia poderá vir a acontecer da forma que Luhmannconsidera: regulação sistémica e intercompreensão socialnão são recursos fungíveis, da mesma forma que mediasimbolicamente generalizados e linguagem33.

O exemplo mais evidente é o do medium poder34.Mesmo admitindo que a sua utilização pelos sistemas

__________________33 David Ingram explica muito bem como estes tipos de media

se encontram, em última instância, dependentes das estruturascomunicacionais de discussão – sempre que questões verdadeiramenteimportantes, e não meramente operacionais, se colocam quanto à suaprópria legitimidade: «os media estratégicos de troca não podemsubstituir completamente os mecanismos consensuais de coordenaçãoda acção sem porem em perigo a sua própria credibilidade» (DavidIngram, Habermas and the Dialectics of Reason¸ London, YaleUniversity Press, 1987, p. 146). Ou numa formulação mais geral elinguagem directa (e também radical): «o dinheiro e o poder não podemcomprar – ou obter pela força – quer a solidariedade quer o sentido»(J. Habermas, Le Discours Philosophique de la Modernité, Paris,Gallimard, 1988 (1985), p. 429).

34 Noutra ocasião tive já oportunidade de discutir com maispormenor a teoria do poder como medium sistémico – e onde formuleitambém a minha posição crítica face à mesma (Cf. J. P. Esteves, “Opoder como medium. Que linguagem, que comunicação? Apontamen-tos sobre moral e política, funcionalidade e sistemas”, in J. C. Correia(org.), Comunicação e Poder, Covilhã, Universidade da Beira Interior,2002, pp. 221-237).

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sociais – e o sub-sistema político em particular – podeser gerida dentro de uma legitimação de tipo procedimental,a sua institucionalização propriamente dita não foi por certodesse tipo e não ocorreu dessa forma. E de modo similar,quando se coloca um problema de exigência justificativado poder (relativamente a um acto, a uma determinadaforma de poder concreto, ao seu exercício por um de-terminado actor social, etc.): não é neste caso, também,através de meros procedimentos que se podem obter asrespostas adequadas – e exigências sociais deste tipo, comosabemos, continuam a colocar-se a todo o momento nanossa vida quotidiana.

A mobilização da linguagem na sua plena potenci-alidade racional, argumentativa e pragmática continua aser indispensável – primordial – em qualquer das situ-ações referidas: seja na institucionalização dos própriosmedia funcionais, seja sempre que se coloque qualquerexigência justificativa relacionada com os mesmos (como seu funcionamento).

VI

Os indivíduos são meio exterior dos sistemas sociais– Luhmann considera-os mesmo como um sistema, masnão social. Por outro lado, os sistemas sociais continuama operar com indivíduos e para indivíduos. Como solu-cionar este paradoxo?

É a questão do sujeito na teoria dos sistemas deLuhmann que em seguida se discutirá. Para este efeitoretomaremos o mecanismo do procedimento decisório, paraclarificar a forma como nele se articula a participação dosindivíduos.

Vimos como a legitimação para Luhmann está re-lacionada intrinsecamente com os procedimentos inerentes

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ao processo de decisão. Este processo, por sua vez, consistenum encadeamento, dentro de uma certa margem decontingência, de uma série de decisões parciais, que entresi se conectam segundo uma certa lógica selectiva e pelaqual se vai recortando sucessivamente, de modo cada vezmais preciso, a própria decisão final:

«Ao procedimento é atribuída a selectividade de umacomunicação (...), à qual os participantes reagem comuma escolha de comportamento, não por acção de ala-vancas pré-estabelecidas, mas pela informação sobre ascapacidades de selecção dos outros (...). Assim, o pro-cedimento decorre como uma história da decisão em quecada decisão parcial de um participante se torna um facto,que estabelece premissas de decisão para os outrosparticipantes e assim estrutura a decisão geral que nãoé accionada mecanicamente»35

O grau de liberdade inerente a este processo deencadeamento de decisões que conduzem à decisão finaldeve porém situar-se dentro de margens bastante estreitas– não esqueçamos que são processos jurídicos que de-finem as balizas de todo este raciocínio. Partimos, pois,de normas jurídicas gerais como a matriz de definiçãoda acção possível (procedimentos) dos indivíduos – pri-meiro nível, mas logo decisivo, de redução da comple-xidade. O que nos permite então afirmar que a legitimaçãopelo procedimento, embora não se reduza a uma teoriada legalidade, tem nesta a sua primeira fundamentação.Mas o próprio Luhmann refere claramente que «estasnormas [jurídicas] não constituem o procedimento propri-amente dito, e uma justificação por recurso a elas nãoconstitui a legitimação pelo procedimento»36.

__________________35 N. Luhmann, Legitimação pelo Procedimento, pp. 38-39.36 Ibidem, p. 40.

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Entramos, assim, na história do próprio processo –e tendo em atenção como nele é decisivo o elementotemporal. Deste ponto de vista, o processo consiste numencadeamento sucessivo de acções, em que acções ante-riores limitam sucessivamente as possibilidades de acçõesfuturas, numa cadeia de selectividade que é também umprocesso gradual de fechamento do sentido, isto é, deredução progressiva da improbabilidade da comunicação.

Acções sucessivas no interior de processos têm osignificado, simultaneamente, de procedimentos e dedecisões – parciais ou intermédios ambos, e tendentes ouorientados para vir a constituir o procedimento global ea decisão final37. Na perspectiva de Luhmann, a legiti-midade depende finalmente da autonomização destesprocedimentos: só assim as decisões sucessivas, inerentesaos procedimentos e às acções que no seu âmbito sãotomadas, se podem generalizar e adquirir um carácteruniversal. As condutas dos indivíduos (participantes dosprocessos) e os seus papéis sociais fornecem a susten-tabilidade da autonomia dos procedimentos, no sentido emque os processos de decisão se estruturam como um sistemapróprio de papéis e regulamentações – diferentes daque-les que os sujeitos adoptam ou prosseguem no sistemasocial geral (e mais ainda fora dele). O comportamentodos participantes pode assim ser destacado do contextonatural da sua vida quotidiana e as decisões tomadas

__________________37 A explicação de Luhmann aproxima-se aqui do modelo

goffmaniano dos encontros sociais, podendo o paralelismo entre asduas teorias ser estabelecido ponto a ponto de forma quase perfeita:as normas jurídicas como «definição prévia de situação», a históriado processo como a (possibilidade de) sucessiva «redefinição dasituação» ao longo da interacção, a autonomia dos papéis sociais (nosprocessos e nas diferentes interacções dos indivíduos) (Cf. Ibidem,p. 42; Cf. Erving Goffman, La Mise en Scène de la Vie Quotidienne.La Présentation de Soi, Paris, Minuit, 1973 (1959).

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adquirem o grau de abstracção necessário ao reconheci-mento da sua força de autoridade, isto é, são investidasde um poder vinculativo: «os processos são sistemas sociaisespeciais que são constituídos de forma imediata e pro-visória para elaborar decisões vinculativas (...); a sua funçãolegitimadora fundamenta-se nessa separação em termos depapéis sociais»38.

Esta explicação (sobre a história dos processos)permite-nos formar uma imagem bem definida quanto àconcepção funcionalizada que Luhmann possui do indi-víduo: um ser fragmentado em diversos papéis sociais,essencialmente estanques entre si, cabendo apenas a umdesses papéis a produção de legitimidade, isto é, sem queseja necessário o envolvimento do indivíduo enquantosujeito global. A liberdade inerente à produção delegitimação despe-se assim de qualquer carácter ontológico,para assumir uma natureza estritamente utilitarista: aliberdade do indivíduo (na legitimação pelo procedimen-to) consiste na sua própria capacidade selectiva dentrodos processos, isto é, um atributo performativo dos sis-temas funcionais da sociedade que se destina a garantirreduções progressivas de complexidade.

Em termos epistemológicos, a Teoria dos Sistemaspode ser caracterizada como um grande modelo de teoriasocial alternativo ao da Filosofia do Sujeito (cartesianae kantiana): nele a importância dos sistemas funcionaisé inversamente proporcional à dos indivíduos, a relaçãosistema-meio vem tomar o lugar da relação sujeito-objectoe a (auto)consciência do sujeito cede o seu lugar à(auto)regulação do sistema (autopoiesis). Todos estesdeslocamentos pressupõem um valor marginal que passaa ser atribuído aos sujeitos, não sendo certo porém que

__________________38 N. Luhmann, Sociologia do Direito, p. 65.

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a lógica propriamente dita da Filosofia do Sujeito tenhasido de facto abandonada. Pelo contrário, parece até sero mesmo princípio de dominação da relação sujeito-objectoque aqui voltamos a encontrar, na relação sistema-meio,e que serve de inspiração em última análise a todo oprojecto de planificação global da Teoria dos Sistemas39.

As aporias com que a própria Filosofia do Sujeitose vem debatendo – pelo menos desde Nietzsche – haviamjá conduzido a conclusões não muito diferentes desta, istoé, à ideia de “fim do sujeito”; apenas com a diferençade que para a primeira o facto assume um sentido maisou menos trágico (com excepção, talvez, apenas daquelasversões mais coloridas do pós-modernismo), enquanto paraa Teoria dos Sistemas isso é tranquilamente aceite comoum dado operacional do (bom) funcionamento dos sis-temas – neste sentido, portanto, algo não só positivo masque é visto até como desejável.

VII

Há um momento em que Luhmann parece querer abrira legitimação pelo procedimento a uma maior liberdadedos indivíduos, quando se refere à importância para osprocessos de decisão de normas que apresentem um carácterflutuante e ajustável, definidas em termos negociais e de

__________________39 A liberdade individual enquanto afirmação subjectiva é a

primeira vítima deste princípio de dominação e do projecto de pla-nificação global que lhe está associado, no sentido, como afirma Jean-Marc Ferry, em que as motivações necessárias à integração sistémica“devem” ser livres do constrangimento de legitimidade que emanadas representações do Mundo da Vida social: «a “liberdade” do sistemaserá inversamente proporcional à autonomia dos sistemas de repre-sentação» (Jean-Marc Ferry, Habermas. L’Étique de la Communication,Paris, PUF, 1987, p. 396).

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cooperação, de acordo com os interesses dos própriosparticipantes na interacção40.

Esta referência sugere o envolvimento de um certotom democrático “à moda antiga”, mas na verdade issoé muito mais aparente que real. Não chega para apagara caracterização geral da legitimação pelo procedimentoque ao longo deste trabalho esteve sob observação e destoamuito menos dela do que à primeira vista possa parecer:a democracia dos processos serve a mobilização“cooperante” dos participantes – enquanto estímulo à suaprópria participação e à aceitação das decisões – masmantém-se à margem do conteúdo propriamente dito dasdecisões que virão a ser tomadas41. Daí Luhmann não

__________________40 A influência interaccionista (goffmaniana) está de novo aqui

bem marcada: «como é típico de todos os sistemas de interacção elementar[o caso do processo de decisão], o conceito das normas que funcionamconcretamente em cada caso está sujeito a uma revisão permanente;quanto a isso, pode estabelecer-se em relação à exiguidade e clarezado sistema um consenso relativamente rápido, na medida em que osparticipantes, enquanto colegas, não fujam ao assunto e sejam capazesde negociar» (N. Luhmann, Legitimação pelo Procedimento, p. 43).

41 Eduardo Prado Coelho, por exemplo, terá sido traído por estaaparência, ao conotar Luhmann com um certo pensamento de esquerda– embalado porventura pela referência goffmaniana algo românticaaos “encontros sociais”, além da sua própria interpretação poética do“sentido” luhmanniano (Eduardo Prado Coelho, “O risco do sentido”,in Risco, nº 2 (1985), pp. 115-118). Para este equívoco (e outrasimprecisões de leitura) chamou de imediato a atenção Villaverde Cabral,recordando que o pensamento de Luhmann, «sem nunca ser reacci-onário, é efectivamente de índole conservadora, pois se a sua teorianunca se constitui em apologia de qualquer sistema social, tambémnunca se constitui em crítica da sociedade tal qual é» (Manuel VillaverdeCabral, “Excesso de sentido”, in Risco, nº 3 (1985/1986), p. 94). Eisto será mesmo o mínimo que se pode dizer sobre uma teoria realistada democracia como esta: a apologia por ela realizada não é, de facto,de um sistema social em particular, mas do sistema da sociedade comoum todo estruturado (isto é, da sociedade como sistema).

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conceder ao consenso sequer o estatuto de princípio formaldo procedimento: «não se pode decidir previamente entrecooperação e conflitualidade, através da estrutura dosistema», este integra as duas e, assim, «os procedimentostipicamente fundirem ambas as funções»42.

O que define propriamente a legitimação pelo procedi-mento não é um princípio democrático primacial, nem qual-quer tipo de valor substancial – liberdade, igualdade, consensoou cooperação. É sim a estrita performatividade da decisão,perante a qual todos os valores e princípios tomam um caráctermeramente instrumental – para o fim que é a certeza da decisão(independente do conteúdo) e rapidez da sua execução. Alegitimação pelo procedimento não se destina a servir ademocracia nem se serve – obrigatoriamente – da democracia;pode quanto muito recorrer a ela circunstancialmente, mas sóna medida em que esta lhe seja útil como garantia da certezada decisão, isto é, quando os seus princípios puderem ser in-corporados pelo sistema como informação. A democraciadirigida para os (e pelos) indivíduos, por seu lado, é estranhaaos sistemas sociais (e à legitimação pelo procedimento): geracomplexidade e entropia, torna-se ela própria “ruído” e agudizaa improbabilidade da comunicação.

Legitimação pelo procedimento e legitimidade demo-crática são realidades distintas e inconfundíveis. Ambas têmno seu horizonte a decisão, mas enquanto esta última se dirigeà construção reflexiva de uma dada forma de vida (maislivre e mais justa), a primeira é acima de tudo um processode training social: um gigantesco dispositivo de condicio-namento dos indivíduos – para tomada e aceitação de decisõesde conteúdo não definido, através de uma aprendizagem deexpectativas normativas que se apresenta como princípio deadaptação funcional à positivização do Direito.

__________________42 N. Luhmann, Legitimação pelo Procedimento, p. 45.

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VIII

O silêncio de Luhmann sobre a Opinião Públicaquando trata a questão da legitimidade dissipa, em de-finitivo, todas as dúvidas que possam ainda subsistir quantoa qualquer vinculação essencial da legitimidade peloprocedimento com a democracia.

Não significa que estes temas – opinião pública edemocracia lhe sejam indiferentes ou muito menos estra-nhos. Na vasta obra do sociólogo alemão, recentementedesaparecido, contam-se múltiplas referências e diversosescritos dedicados a ambos os temas, que não será possívelaqui tratar em grande pormenor. Limitar-me-ei a umasbreves referências elucidativas quanto à forma como aposição do autor sobre a democracia se assume em rupturaradical com a tradição mais forte do pensamento políticoocidental; relativamente à teoria da opinião pública, ficareservada para um desenvolvimento um pouco mais extensocomo nota conclusiva a este trabalho, onde procurarei situá-la na sua relação – muito remota na perspectiva deLuhmann – quer com a democracia, quer com a legiti-midade pelo procedimento.

Para Luhmann, a democracia nas actuais condiçõessociais – sociedades complexas funcionalmente diferen-ciadas – não deve ser definida como uma forma de vida,mas antes como um modelo de funcionamento do sub-sistema político43. Não se refere, em primeira ordem, àvida dos indivíduos enquanto totalidade, mas ao sistema

__________________43 Luhmann admite «conservar a intenção da tradição política

ocidental» (a «norma democrática clássica»), mas considera que issosó é possível (e útil), nas actuais condições sociais, se a democraciase converter aos «conceitos teóricos da organização da complexidadesistémica» (IDEM, “Complessità e democrazia”, in Stato di Dirittoe Sistema Sociale, Napoli, Guida Editori, 1978 (1969), p. 83).

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da sociedade e aos seus problemas operacionais – ummodelo geral para o seu funcionamento (e mais especi-ficamente para uma das suas principais unidades funci-onais, o sub-sistema político). A democracia torna-se, assim,uma complexa perspectiva política sobre o problema –mais uma vez – da complexidade social, que tem porobjectivo assegurar a fluidez do processo de tomada dedecisões e, ao mesmo tempo, garantir uma certa varia-bilidade das mesmas.

A ideia que nos fica, porém, é que esta linguagemde um certo compromisso corresponde a uma situaçãoapenas tolerável e não propriamente desejada: a demo-cracia permite a «manutenção de um âmbito selectivo omais amplo possível para decisões sempre novas e dife-rentes», mas não deixa de significar «conservação decomplexidade apesar da contínua actividade decisional»44.Neste sentido, será de assinalar a preocupação do autorem rejeitar absolutamente «a ideia de democracia comodomínio do povo, ou a definição, redutora (!), de par-ticipação do povo nas decisões»; chegando inclusive maislonge, quando afirma que «a exigência de uma empenhadaparticipação de todos significa uma violência sobre oprincípio democrático»45.

Da democracia, Luhmann retém essencialmente, emtermos funcionais, a relação governo-oposição: uma ló-gica binária de codificação da política com enormesvantagens no que diz respeito à dinâmica do processo dedecisão – não tanto pela qualidade dos programas polí-ticos de cada uma das partes (e, portanto, do conteúdodas propostas que podem ser adoptadas), mas antes pelaeficácia que essa lógica imprime ao sistema político (em

__________________44 Ibidem, p. 74.45 Ibidem, pp. 73-74.

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termos de rapidez, generalidade e força vinculativa dasdecisões). O seu horizonte não é a sociedade como umtodo – e muito menos ainda, como já foi referido, osindivíduos; é sim o sub-sistema político, em particular omodo como dentro deste o medium poder é utilizado. Ademocracia qualifica um modo de gestão do poder (a formada sua conquista e utilização) em termos de eficácia parauma reprodução autopoiética do sistema político, mas nãoqualquer tipo de poder em concreto (nomeadamente a partirde critérios ético-morais).

Percebe-se assim melhor o silêncio da legitimidadepelo procedimento quanto à democracia: a primeira deixade constituir fundamento para a segunda – e mais emparticular ainda, para a forma de poder (democrático) quea esta está associado –, a democracia é que passa a “servir”a legitimação, mas só como fornecendo o normativo geraldos diversos processos jurídicos (uma estrutura geral dedecisão, ainda muito vaga mas essencial, sobre a qual seirão desenvolver os procedimentos propriamente ditos).

Relativamente à Opinião Pública, o pensamento deLuhmann não difere muito do que acabou de ser expressoquanto à democracia: a mesma preocupação em desvincularna actualidade este conceito da tradição (iluminista) damodernidade, o seu esvaziamento no que diz respeito àcapacidade de definição de conteúdos específicos e, fi-nalmente, o esforço de efectuar a sua plena integraçãonuma lógica funcional. A tal ponto esta se tornadeterminante que a relação opinião pública/democraciaacaba por desaparecer completamente do horizonte da teoriados sistemas; quanto à relação da opinião pública coma legitimação pelo procedimento, embora não seja essen-cial, no sentido em que cada uma delas se define comoum processo próprio e um momento selectivo distinto,podemos admitir que essa relação seja reconstituída em

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termos analíticos, tendo em conta que existe uma certaproximidade e interdependência entre estes dois mecanis-mos a nível do processo de decisão.

A opinião pública para Luhmann tem um significadoestritamente funcional: consiste num mecanismo de se-lecção temática. Dentro do universo à partida potencial-mente ilimitado de assuntos passíveis de uma qualquertomada de decisão, a opinião pública vai operar umaredução desta complexidade (e improbabilidade da comu-nicação), concretizando a selecção de um núcleo restritode temas – a partir do qual o sistema político pode adquirira sua capacidade efectiva de intervenção.

A “opinião pública” deixaria assim, de facto, de ser(ou poder vir a formar) uma verdadeira opinião. Nãoqualifica (legitima) qualquer decisão, criaria apenas ascondições necessárias para o sistema político garantir acapacidade de decisão regular:

«A função da opinião pública não deve ser deduzida daforma das opiniões – da sua generalidade e opiniabilidadecrítica, da sua racionalidade, da sua capacidade de obterconsenso, da sua sustentabilidade pública –, mas da formados temas da comunicação política, da sua idoneidadecomo estrutura do processo de comunicação. E esta funçãonão consiste em garantir a justeza das opiniões, mas napotencialidade dos temas em diminuírem a insegurançae em fornecerem estrutura. O problema, então, nãoconsiste na generalização do conteúdo das opiniõesindividuais em fórmulas gerais, aceitáveis por qualquerum dotado da razão, mas na adaptação da estrutura dostemas do processo de comunicação política às necessi-dades decisionais da sociedade e do seu sistema polí-tico»46

__________________46 IDEM, “L’opinione pubblica”, in Stato di Diritto e Sistema

Sociale, pp. 97-98.

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Vimos antes como a legitimação pelo procedimentoconsiste, basicamente, no próprio processo de decisão –mais propriamente, no encadeamento sucessivo de deci-sões intermédias, dentro de processos e através de pro-cedimentos, que conduzem a decisões finais. A opiniãopública definida por Luhmann é externa à legitimação peloprocedimento, mas está com ela relacionada: podemos dizerque a antecede, enquanto definição dos temas passíveisde decisão (ou a exigir mais urgentemente decisão), eorienta por conseguinte o processo de legitimação nadirecção desses mesmos temas.

Na verdade, o que se pretende afirmar com esta teoriada opinião pública, e a articulação funcional desta coma legitimação pelo procedimento, é a desactivação da“velha” opinião pública enquanto instância de legitimi-dade das decisões políticas. E é por este motivo que alegitimação pelo procedimento toma o significado dedeslegitimação da opinião pública, na forma política fortecom que esta foi consagrada pela teoria da democracia(tanto na tradição liberal como na republicana) e que aindahoje continua a ser reconhecido, não só em termos doordenamento constitucional das nossas sociedades, mastambém como referência normativa essencial, dotada deelevado poder simbólico, da sociedade civil47.

Quando Luhmann afirma que a opinião pública«assume a função de mecanismo-guia do sistema político,que não determina o que é verdadeiro, nem o exercício

__________________47 Em outro trabalho tive oportunidade de tratar mais longamente

o que caracterizei como a situação paradoxal da opinião pública (eespaço público) dos nossos dias: entre uma crise estrutural potenci-almente dissolutiva destes conceitos e a sua resistência e reemergênciasociais enquanto princípios axiais de ordenamento político da soci-edade contemporânea (J. P. Esteves, Espaço Público e Democracia,Lisboa, Colibri, 2003, em especial pp. 51-71).

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do domínio, nem a formação da opinião, mas só esta-belece os limites daquilo que é progressivamente possí-vel»48; nesta afirmação está claro como o programa políticoda teoria dos sistemas se sobrepõe a qualquer propósitode análise social propriamente dita, tendo em conta a formacomo é aí artificiosamente “descomplexificada” a reali-dade da opinião pública dos nossos dias.

E quando dizemos “opinião pública”, podíamos – edevemos mesmo – acrescentar também a questão dalegitimidade e da própria democracia. A definição que ateoria dos sistemas nos oferece destes conceitos não podeser considerada da ordem da pura fantasia, face à com-plexa realidade social dos nossos dias, mas reduzir qual-quer deles a essa única lógica (sistémica) parece já algobastante fantasioso – até mesmo, “apenas”, considerar quea lógica sistémica é no presente (já) a linha de rumodeterminante da nossa vida social.

__________________48 N. Luhmann, “L’opinione pubblica”, p. 109.

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Entre o sistema e o mundo da vida: um lugarpara a estranheza na análise sistémica do jor-nalismo

João Carlos CorreiaUniversidade da Beira Interior

Introdução

Ao longo deste texto, observam-se alguns dos de-senvolvimentos na teoria dos sistemas sociais que indu-zem consequências decisivas para a investigação do papeldesempenhado pela opinião pública e pelos mass mediana constituição da sociabilidade. Para analisar tais de-senvolvimentos, e melhor compreendermos o pano de fundosobre o qual emerge efectiva novidade do empreendimen-to luhmanniano em relação aos seus antecessores, recorre-se a autores marcadamente influenciados, de diferentesmaneiras, pela Teoria Geral dos Sistemas. Por outro lado,regista-se a inesperada recepção que Habermas faz, so-bretudo ultimamente, desta teoria de um modo em quealguns vêm seja a influência de Parsons seja de Luhmann.Por último, consideram-se os problemas e dificuldades queemergem em torno destas propostas teóricas chamando a

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atenção para eventuais percursos alternativos que algodevem às intuições formuladas pela Fenomenologia So-cial. Deste modo, tentou-se desenhar um percurso ondeexistem cruzamentos inesperados em volta da questão dasrelações entre o sistema e o mundo da vida, quiçá os pólosfundamentais que permitem balizar uma discussão sobreas relações entre comunicação e sociedade.

Este texto debruça-se sobre uma corrente teórica quepretende isolar analiticamente a vida social como sistema.Não é por razões relacionadas com a história das ideiasque urge falar de Parsons, Habermas e Schutz numaconferência sobre Luhmann. Desde logo, são outras asrazões que se apresentam. Embora se adivinhem no quejá se disse, é relevante precisá-las.

A) O problema das relações entre comunicação esociedade entrecruza-se com o problema que consiste emsaber que respostas existem para a emergência da ordemsocial. A Teoria dos Sistemas é um modo de encarar oproblema da ordem social invocado sob um certo pontode vista que implica a análise da construção social darealidade. Essa questão terá uma dimensão filosófica quese identifica com a presença do sujeito no mundo e umaoutra dimensão sociológica que se articula com a primeirae que procura responder à questão acerca de como épossível criar uma certa ideia de nós em face da pluralidadede desejos, ambições e projectos de cada um.

B) Se a compreensão dos media só faz sentido noâmbito de uma teoria da mediação social, esta remete paraas várias concepções possíveis de ordem e para as di-ferentes concepções possíveis das relações entre os agen-tes e a estrutura social. Ao formular esta hipótese surgemperguntas que urge tentar responder do ponto de vista daTeoria dos Sistemas e dos seus interlocutores/opositoresmais directos: os mass media são apenas meios que

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asseguram uma espécie de feedback negativo a partir dosistema social? Constituem eles próprios um sistema? Numaoutra possibilidade, será que os media asseguram algumapossibilidade de articulação com o mundo da vida, no casode este ainda manter alguma relevância teórica? Nessesentido, tendo como fio orientador a Teoria dos Sistemasde Niklas Luhmann, seleccionamos os elementos quepermitem entrever um silencioso diálogo com teorias porvezes contrastantes mas que insistentemente lidam comos mesmos assuntos: a estrutura e o processo social; anatureza da comunicação e o papel da linguagem – o panode fundo mais adequado para o prosseguimento destadiscussão. Nesse sentido, ontem, Parsons e Schutz, hoje,Habermas e Luhmann (não por caso, protagonistas directae frontalmente envolvidos entre si em importantes deba-tes, explicitamente assumidos como tais, em torno da Teoriados Sistemas) parecem oferecer pistas para esta reflexão.

I. A Teoria dos Sistemas Sociais e a cibernética deprimeira ordem

Ao longo dos anos 40, os desenvolvimentos no âmbitoda teoria dos sistemas, tendo como pano de fundo asrelações com a Cibernética e a Biologia, aceitaram comopremissa que um sistema se define como um todo orga-nizado formado por elementos interdependentes, rodeadopor um meio exterior (environment), e que se designe osistema que interage com o meio exterior como um sistemaaberto no qual as relações com o meio exterior se pro-cessam através de trocas de energia e/ou informaçãodesignadas por input ou output1. A consolidação deste

__________________1 Cf. Ludwig von Bertalanffy, Teoria geral dos sistemas. Rio

de Janeiro, Vozes, 1977, p. 43; 193.

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ambiente teórico definiu um tipo de estudos cibernéticosinteressados na estabilidade dos sistemas e nos processosde retroversão, causalidade circular e manutenção deequilíbrio. Aprofundaram-se, assim, conceitos como os defeedback positivo e negativo, referindo-se, respectivamen-te, o primeiro, aos processos de natureza predominante-mente homeostáticos que privilegiam a manutenção dadirecção impressa pelo sistema e a continuação do res-pectivo equilíbrio e, o segundo, a processos adaptativosque implicam a mudança e a exigência de transformação.

Num contexto geral da ciência em que a abordagemsistémica parecia prevalecer sobre a abordagem analítica,Talcott Parsons, apesar das dificuldades em passar de ummodelo centrado na relação entre todo e partes para umarelação entre sistema e meio, recolheu desta inovaçãoepistemológica elementos que lhe permitiram pensar ateoria da acção social em termos tais que implicoucontributos da Biologia e da Teoria Geral dos Sistemas.

A partir de Social Systems, encara-se, de modoexplícito, o processo de interacção como um sistema,seguindo um processo de reflexão teórica que culmina noestrutural-funcionalismo. Nesta fase da reflexão, detectam-se quatro funções básicas e vitais para a existência dasociedade2, correspondentes, por seu turno, a subsistemasespecializados da própria sociedade que visam a respostaaos diversos imperativos funcionais: a adaptação(adaptation) que se processa ao nível do subsistemaeconómico e que representa as forças do sistema socialmais próximas do mundo material, isto é, aquelas forçascondicionais e coactivas com as quais nos enfrentarmose às quais nos adaptarmos; a de prossecução de fins (goal-

__________________2 Talcott Parsons, O sistema das sociedades modernas, São Paulo,

Livraria Pioneira Editora, 1974, p. 16.

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attainment) que compete primordialmente aos políticos eao governo, sendo a organização o seu elemento chave;a função de integração (integration) que representa o nívelde compatibilidade caracterizador das relações internas doselementos de um determinado sistema, correspondente aosubsistema social, isto é, à socialização propriamente ditaque se identifica, de certo modo, com o sentimento depertença que se gera no interior dos grupos, sendo pre-dominantemente regulada por normas mais do que porvalores e a função de manutenção dos modelos culturais(latent pattern maintenance), correspondente ao subsistemada cultura e que permite a superação satisfatória doseventuais conflitos.

A compreensão deste esquema implica entender asrelações de cada sistema com os sistemas limítrofes. Cadasubsistema estabelece um intercâmbio e interpenetraçãocom os restantes pelo que cada subsistema é reproduzidoa partir de uma combinação de dados que recebe dossistemas limítrofes. Apesar da elevada especializaçãoverificada nas instituições, cada uma encontra em si asquatro dimensões funcionais. Um sistema só emerge quandoencerra dentro de si todas as variedades, todas as quatrovariedades relativas à acção3. O equilíbrio depende de umareciprocidade entre todos os factores do sistema social.

II

A influência de um conjunto de descobertas e re-flexões no âmbito da biologia e da neurociência produziuuma importante inflexão na Teoria dos Sistemas que setraduziu, desde logo, no abandono do modelo homeostático

__________________3 Niklas Luhmann, Introducción a la teoria de los sistemas,

Barcelona, Anthropos, 1996, p. 36.

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centrado na busca do equilíbrio em detrimento do aumen-to de interesse na capacidade de auto-organização e deauto-produção (autopoiesis) do sistema.

Uma das pedras de toque desta inflexão teve a suaorigem na atenção concedida à autopoiesis, um neologis-mo criado por Francisco Varela e Humberto Maturana paradesignar a capacidade de auto-organização de um sistemavivo mínimo. Este tipo de abordagem, segundo Varela4,teve a sua origem na análise da capacidade das células,os mais simples de todos os sistemas vivos, em produ-zirem, através de uma rede de processos químicos, oscomponentes químicos que conduzem à constituição deuma unidade distinta e delimitada. Segundo esta perspec-tiva5, um sistema autopoiético é organizado (definido comounidade) como uma rede de processos de produção decomponentes, de tal maneira que esses componentes (a)continuamente regenerem a rede que os produz e (b)constituam o sistema como unidade distinguível no do-mínio no qual ele existe. No que respeita à relação dossistemas autopoiéticos com o seu ambiente, o sistemadepende do seu ambiente – no caso do organismounicelular, referido por Varela, do seu ambiente físico-químico – para manter a sua conservação como identi-dade. Porém, simultaneamente, precisa de se separar delena mesma medida em que mantém o seu acoplamento comele6. Neste processo dialógico, o balanço pende ligeira-mente para que o sistema tenha o papel activo noacoplamento recíproco definindo o que é a unidade nomesmo momento em que lhe define o que é exterior aela, isto é, o seu ambiente envolvente. Assim, «uma

__________________4 Francisco Varela, Biology and intencionality, ftp://

ftp.eeng.dcu.ie/pub/alife/bmcm9401/varela.pdf, 1991.5 Ibidem, p. 5.6 Cf. Ibidem, p. 7.

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observação mais próxima demonstra que esta exteriorizaçãosó pode ser compreendida, por assim dizer, a partir dedentro (from inside): a unidade autopoiética cria umaperspectiva a partir da qual o exterior é algo que não podeser confundido com as coisas que nos rodeiam fisicamentecomo observadores»7. Há elementos do ambiente do sistemacelular analisado que só são pertinentes porque o sistemaanalisado aponta para eles como relevantes. O ambientenão é uma simples porção de mundo que “está fora” dosistema nem as regularidades ambientais dotadas de sig-nificado são apenas traços extremos interiorizados pelosistema mas ambos são, antes, o resultado de uma históriaconjunta de co-determinação8.

A inspiração que Luhmann recolhe destas reflexõescai no pólo diametralmente oposto do modelo homeostático,tal como ele se configurara em diversas formulações denatureza sistémica na Sociologia e na Ciência Política.Com a enfâse crescente atribuída à autopoiesis, cadasistema é descrito diferenciando-se através de processosde selecção e através de uma lógica de reprodução própriaque transcende a interacção individual. Luhmann insisteparticularmente na ideia segundo a qual qualquer análiseteórico-sistémica deve sempre partir da diferença entreambiente e sistema9. Cada sistema reproduz-se a si própriona base de cada uma das suas próprias operações espe-cíficas e observa-se a si próprio e ao seu ambiente. Oque quer que eles observem é marcado pela sua perspec-tiva única, pela selectividade das distinções particularesque eles usam para a sua própria observação. Os sistemassó podem diferenciar-se por referência a si mesmos: «os

__________________7 Ibidem.8 Cf. Ibidem, p. 114.9 Cf. N. Luhmann, Introduccíon a la teoría de los sistemas,

op. cit., p. 40.

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critérios de conservação de um sistema social não podemser descritos por um observador externo, já que estaoperação [de delimitação] tem que surgir do interior dopróprio sistema. Um sistema social deve dizer por simesmo, as suas estruturas mudaram tanto que já não possaser considerado o mesmo»10. Para tornar isso possível ossistemas têm que criar uma descrição de si próprios; elestêm pelo menos que ser capazes de usar a diferença entresistema e meio ambiente dentro deles próprios enquantoorientação e princípio de informação. O ambiente é umcorrelato necessário das operações auto-referenciais. Porém,este modo de existir do ambiente é completamente diversodo modo como fora concebido na cibernética de primeiraordem mais marcada pelo modelo homeostático. Comefeito, constitui uma consequência deste modo de con-ceber a teoria dos sistemas, o facto de que o ambientesó alcança a sua unidade mediante o sistema e sempreem relação com ele11.

Uma premissa essencial consiste, pois, na afirmaçãode que um sistema emerge como uma diferença entre umsistema e um ambiente12. Não se trata de uma premissalinear já que, se a diferença entre sistema e meio ambienteé aquela que permite que o sistema possa emergir, é adiferença mediante a qual o sistema se encontra consti-tuído. Sem aprofundar excessivamente o carácter parado-xal destas formulações, basta recordar que o sistema produzum tipo de operações exclusivas: um ser vivo reproduza vida que o mantém vivo enquanto permanece com vida.O sistema social produz a diferença entre comunicaçãoe ambiente no momento em que leva a efeito processos

__________________10 Ibidem, p. 29.11 Ibidem, p. 41.12 Ibidem, p. 62.

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de comunicação, isto é, no momento em que a comuni-cação desenvolve a lógica de desenvolvimento da próximacomunicação13. Com este passo, pretende-se colmatar umproblema de que se dera conta nas teorias clássicas quetinham baseado na noção de sistema aberto: o modelo dossistemas abertos trabalhava com um conceito indeterminadode ambiente e mostrava-se impotente para responder àpergunta que ele considera fundamental que consiste emsaber o que é a diferença subjacente ao binómio sistema/ambiente. Esta pergunta, formulável de numerosas manei-ras, entronca-se com outras: como é possível que a distinçãosistema/ambiente se reproduza, mantenha e desenvolva,e que operação torna possível a manutenção dessa dife-rença? Ou seja, e dito de outro modo: que operação permiteaos sistemas traçar um limite como aquele que traçamface ao ambiente?

A resposta luhmanniana consiste numa outra premis-sa fundamental que se decidiu isolar neste texto: a operaçãoque permite aos sistemas sociais traçarem o limite faceao ambiente é a comunicação. A comunicação reproduz-se como a operação típica dos sistemas sociais, porquea sua reprodução equivale à reprodução dos “elementose estrutura” dos próprios sistemas sociais (auto-referênciada comunicação). Para existir um auto encadeamentooperatório da comunicação em comunicações por meio decomunicações é necessário que a comunicação estabeleçaa diferença entre o que é comunicação e o que não éjá definido pela comunicação. É, pois, a comunicação quepermite o surgimento da distinção entre sistema e meio.Com efeito, a sociedade é pura comunicação e só é possívelacercar-se dela mediante o estabelecimento de distinções.Por conseguinte, os sistemas sociais são, antes de tudo,

__________________13 Cf. Ibidem, p. 78.

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uma distinção que só surge através de operações de co-municação. «Pode-se assim aprender a sociedade como umsistema autopoiético constituído por comunicações e queproduz e reproduz essas comunicações que a constituematravés de uma rede dessas comunicações. Isto conduz auma delimitação clara entre sistema e ambiente: a sociedadeé somente composta de comunicações (e não de homens)e tudo o que não é comunicação pertence ao ambiente dosistema»14. A comunicação surge, pois, como o operadorque torna possível todos os sistemas de comunicação, pormais complexos que se tenham tornado no transcorrer daevolução: interacções, organizações, sociedades. Por isso,«tudo o que existe que se pode designar como social resultade um mesmo tipo de acontecimento: a comunicação»15.

A operação que o sistema empreende (a operação decomunicação) desenvolve uma diferença na medida emque se relaciona com outra operação do mesmo tipo,deixando de fora as restantes. Fora do sistema, no ambiente,sucedem coisas e acontecimentos, os quais só ganhamsignificado quando o sistema relaciona e enlaça essesacontecimentos com a comunicação que lhe é própria, umavez que o sistema, se tem que decidir se relaciona umacomunicação com outra, tem que possuir a capacidade deperceber e de observar o que lhe diz respeito e o quenão lhe diz respeito. Assim, para Luhmann é claro que«a comunicação é sempre uma ocorrência selectiva. Osignificado não permite outra coisa senão escolher e acomunicação é um processo de selecção»16.

__________________14 Ibidem, p. 51-52.15 Ibidem, p. 68. Cf. IDEM, Sistemas Sociales: lineamentos para

uma teoria general, Barcelona, Anthropos; México, UniversidadIberoamericana; Sanatafé de Bogotá, Centro Editorial Javerino/PontificiaUniversidad Javerina, 1998, p. 138.

16 IDEM, Sociales: lineamentos para uma teoria general, op.cit., p. 138.

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A forma como é concebida a distinção entre sistemae ambiente na perspectiva luhmanniana conduz a uma teoriada diferenciação sistémica. Esta, como afirma Luhmann17,é simplesmente a formação de sistemas dentro de siste-mas. O sistema global adquire a função de ambiente internopara cada um dos sistemas parciais, apresentando-se porémcomo específico para cada um deles. O sistema globalmultiplica-se num conjunto de diferenças entre sistemase ambiente. Ora, consequentemente, cada diferença desistema parcial constitui-se num sistema global ainda quea partir de uma perspectiva distinta18. Com efeito, ao longoda obra de Luhmann encontramos uma tentativa teóricapara rejeitar a sobreposição ou hegemonia de um sistemasobre outro. Com Aristóteles, o lugar conferido à comu-nidade política mais não constitui do que a dificuldadede verificar uma operação de diferenciação funcional quepermite a formação de um subsistema específico relaci-onado com o poder. Com Marx, o lugar conferido àeconomia reflecte a mesma dificuldade de observação coma importância dada à sociedade económica, graças à qualse identifica um subsistema social com a sociedade.Finalmente, cada um destes subsistemas deixa de carecerde expectativas normativas19. Por detrás desta reflexão, estápatente a preocupação com a recusa da hegemonia de umsistema e a consequente recusa de uma racionalidadehegemónica.

Desta abordagem, resulta finalmente uma concepçãode sociedade que possui em relação aos homens e emrelação aos indivíduos uma extrema independência. Ambossão sistemas auto-referenciais, porém dotados da sua própria

__________________17 Cf. Ibidem, p. 42.18 IDEM, Introduccíón a la teoría de los sistemas, op. cit., p. 42.19 Cf. Andrew Arato; Jean Cohen, Civil Society and Political

Theory, Cambridge, MIT Press, 1995, pp. 305-306.

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criatividade e de produções específicas. Entre sociedadee indivíduos não se dá uma relação entre parte e todo,pois os seres humanos são relegados para o ambiente. ATeoria dos Sistemas abandona a sua configuração essen-cial de uma teoria da acção para passar a constituir-secomo uma teoria da comunicação. A integração social éintegralmente substituída pela integração sistémica, res-tando saber qual a posição que, nesse caso, ocupa umateoria da acção comunicativa no âmbito da discussão domodelo sistémico.

III

Desde os anos 80, Habermas, desenvolveu umacomplexa relação entre sistema e mundo da vida comoduas perspectivas teóricas a partir das quais é possívelanalisar a sociedade ao nível da integração social e aonível da regulação sistémica. Segundo Habermas, a in-tegração de um sistema de acção é conseguida, por umlado, através de um consenso normativamente fundado oucomunicativamente obtido e, do outro lado, é obtido atravésde uma regulação não normativa das decisões individuaisque vai além da consciência dos actores. A distinção entreintegração social e integração sistémica torna necessáriodiferenciar o conceito de sociedade em si mesmo. Por umlado, a acção é concebida a partir da perspectiva parti-cipante do agente social como mundo da vida de um gruposocial. Do outro lado, da perspectiva do observador nãoparticipante, a sociedade pode ser concebida como umsistema de acções no qual a significação funcional éatribuída a uma dada acção de acordo com o objectivode manutenção do sistema20. O mundo da vida implica

__________________20 Cf. Jürgen Habermas, Theory of Communicative action, Boston,

Beacon Press, 1984, p. 117.

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a integração social. Porém, com o aumento da comple-xidade social, desenvolvem-se subsistemas racionais (apolítica e a economia) acompanhados pelos respectivosmedia reguladores (o dinheiro e o poder) que desempe-nham a sua função na área da burocracia e dos mercados,dirimindo as pretensões de validade conflituais com oauxílio de mecanismos de regulação sistémicos.

Os dois subsistemas participam numa função socialidêntica, a integração sistémica, a qual se refere àinterdependência funcional dos efeitos da acção coorde-nados sem referência à orientação e normas dos seusagentes. Ao invés, o mundo da vida refere-se à reservade tradições implicitamente conhecidas, desenhadas pelosindivíduos na vida quotidiana. No mundo da vida realçam-se três componentes – cultura, sociedade e personalidade– os quais são reciprocamente diferenciáveis. Na medidaem que os actores se entendem mutuamente e concordamna sua situação, eles partilham uma tradição cultural. Namedida em que coordenam a sua acção através de normasintersubjectivamente reconhecidas, eles agem como mem-bros de um grupo social. Enquanto indivíduos que cres-cem numa tradição cultural e participam na vida social,eles interiorizam valores e normas, competências paraagirem, e desenvolvem as suas identidades sociais eindividuais. Não se trata de um modelo bipartido mas antesde um modelo tripartido, pelo que dificilmente se poderáconcordar estarmos diante de uma versão das velhas teoriasque opõem Estado e Sociedade.

IV

As diferentes teorias da mediação e da ordem sociala que nos temos vindo a referir têm como correlatos teoriassobre os media que reflectem estas diferentes premissasteóricas.

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a) o modelo cibernético e as suas críticas

No ambiente das primeiras investigações desenvol-vidas no âmbito da Cibernética e da Teoria dos SistemasSociais, Harold Lasswell desenvolve uma teoria fundadana cibernética tal como ela se intuía nos anos 30, suge-rindo que o sistema político no seu funcionamento podeser comparado a um organismo que tende a manter umequilíbrio interno e a reagir às mudanças de ambiência,de forma a manter o equilíbrio. O processo de reacçãoaos estímulos do meio exige maneiras especializadas deorganizar as partes do todo de modo a manter uma acçãoharmoniosa21. Os media, entre outros agentes sociais,desempenham o papel de sentinelas, ficando como ob-servadores e manifestando-se sempre que alguma mudan-ça alarmante ocorre nos arredores. Já resultante da derivafuncionalista na Teoria dos Sistemas Sociais, Parsons,Merton e Lazersfeld subscreveram textos sobre os medianos quais se detectam as respectivas funções (reproduçãode normas, atribuição de prestígio e reprodução da memóriacultural) e as respectivas disfunções, designadamente acelebrada disfunção narcotizante22.

b) Os mass media e a teoria dos sistemas: o modeloluhmanniano e os seus críticos

Por seu lado, a aplicação da Teoria Geral dos Sis-temas autopoiéticos e referenciais aos mass media implica

__________________21 Cf. Harold Lasswell, “Estrutura e Função da Comunicação

na Sociedade”, in Pissarra Esteves, J., Comunicação e sociedade (2002),Lisboa, Horizonte, 2002, pp. 50-51.

22 P. Lazersfeld; R. K. Merton, “Comunicação de massa, gostopopular e acção social organizada”, in G. Cohn, Comunicação eindústria cultural, São Paulo, T.A. Queiroz, 1987, pp. 230 ss.

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a consideração destes últimos como um domínio dotadode código próprio que remete para os seus próprios critériosde observação23. Tal como os restantes sistemas sociais,o sistema dos mass media é uma galáxia de comunicaçãosemelhante aos restantes sistemas dotada de um códigopróprio que distingue o que se pode considerar ou nãodigno de ser trabalhado como informação pelos media demassa. Esta binariedade do código impõe aos mass mediauma selectividade que os obriga a ir conformando critériosque lhes permitam seleccionar entre o que é publicávele o que não é publicável. A necessidade de ter em contaestes elementos de selecção implica estandardizar e res-tringir as possibilidades de realização dos mass media.

O problema da informação noticiosa assenta naselectividade do sistema dos mass media e não contém,pois, qualquer referência à verdade, pois o código binárioverdade/falsidade nem sequer lhe é inerente: é antes própriode um outro sistema social designado por ciência. Ainformação proveniente dos media é uma construção darealidade., não sendo possível utilizar o conceito demanipulação nem tentar descortinar a verdade que elesocultam. Como diz Luhmann «o conhecimento que pro-vém dos media de massa parece estar elaborado por umtecido auto-reforçado que se tece a si mesmo»24. Não háocultação nem uma verdade oculta, nem nenhum criadorde intrigas oculto por detrás do cenário, como acreditamos sociólogos25. Como toda a distinção entre auto-refe-rência e hetero-referência só pode existir no interior dosistema, então todo o conhecimento é uma construçãoprocessada com a ajuda dessa distinção. Não é possível

__________________23 Cf. N. Luhmann, La realidad de los médios de masas,

Barcelona, Anthropos, 2000, p. 12.24 Ibidem, p. 2.25 Cf. Ibidem.

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pois outra possibilidade que não seja a de construir arealidade e observar como os observadores constroem arealidade26.

O processamento dos critérios referentes ao sistemados mass media encontra a sua tradução nos chamadosvalores notícia, os quais permitem distinguir o que deveser digno de tratado como publicável. Nessa medida,segundo Luhmann, critérios como noticiabilidade, actu-alidade, quantidade, prestígio dos envolvidos constituemos valores que o sistema dos mass media erigiu para sipróprio enquanto elementos estruturantes que permitem acompreensão das suas escolhas de acordo com o meca-nismo de observação que lhe é próprio.

O modelo de Luhmann suscita muitas dúvidas a quenos referimos apenas genericamente porque nos interessaespecialmente o modo como tal se reflecte ao nível dosmass media. Nomeadamente, deixa escassas possibilida-des de pensar alguns problemas de natureza empírica, comosejam a manipulação e as interferências concretas dosactores sociais nas escolhas atribuídas apenas aos siste-mas.

Esta dúvida articula-se, naturalmente, com outra queresulta da complementaridade entre sistemas, dos olharesrecíprocos que estes trocam entre si. Parece plausível aceitarque os sistemas nunca funcionam como agentes deracionalidade da totalidade do sistema, pelo que aracionalidade total do sistema é impossível. Nesse con-texto, Luhmann dá sugestões interessantes. É necessáriouma teoria que tenha a complexidade como seu estímulo.

Porém, sem com isto poder afirmar certezas abso-lutas, parece que, no plano empírico, se torna difícil tomarpor adquirida o tipo de diferenciação sistémica plasmado

__________________26 Ibidem, p. 10.

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por Luhmann. Evidentemente que a autonomia dos dife-rentes sistemas não significa o seu isolamento e, para citarum exemplo relativamente recorrente, poderá sempreafirmar-se que os acontecimentos verificados no sistemapolítico constituem uma fonte de problemas que o sistemados mass media terá de ter em conta. Luhmann dá comoexemplo o caso da Guerra do Golfo em que não foinecessário efectuar uma censura mas apenas introduzirnotícias que correspondessem aos critérios específicos destesistema. Ora se atendermos à situação exemplificada porLuhmann, a questão do poder como código binário implícitoao sistema político parece ser, do ponto de vista do sistemapolítico, o que afinal se lhe impõe. Poderá responder-seque, do ponto de vista do sistema dos mass media, o que“conta” são os critérios relativos ao código que lhe éespecífico. Porém, a realização de briefings, e de outrosmodos de exposição da informação previamente tratada,no âmbito do sistema político não parece, em si mesma,qualitativamente diferente das técnicas de censura eparecem configurar, ao invés do que era desejado porLuhmann, um exemplo de manipulação.

Será que a alegada adopção de critérios do própriosistema, exactamente pelo facto de não ter em conta osprocessos quotidianos de acção social, não é cega facea eventuais fenómenos de intervenção de outros critériosformulados noutros sistemas? De acordo com este tipode preocupações, Hans Mathias Keplinger da UniversitatMainz (Alemanha) lançou um paper intitulado “Towarda system theory of political communication” no qual reflectea concepção luhmanniana segundo qual as fronteiras dossistemas podem ser apenas compreendidos como barreirasde significado, como elementos de stock de informação,cuja actualização é feita de acordo com as regras inerentesao sistema. Keplinger demonstra que a influência dos media

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de prestígio nas elites políticas se baseia em grande partena relação pessoal entre ambas as elites. Por exemplo,um estudo recente acerca da elite mediática nos EstadosUnidos mostrava que 290 funcionários de topo dos 25maiores jornais diários tinham ao seu dispor 447 relaçõespessoais com os círculos restritos da economia, da eliteuniversitária, dos clubes mais importantes e dos círculospolíticos dirigentes. Porém, dessas pessoas só 25 tinhamacesso a 204 das ligações que ocupavam posições chave.Ora, a determinação mútua de agendas e a teoria datematização (para a qual Luhmann deu um contributoinegável) parece, desta forma, remeter para processos denegociação que, no limite, implicam processos de decisãoem que a primazia funcional de um sistema parece impor-se aos critérios de outro sistema. Por outro lado, torna-se relevante que a adopção de critérios por parte de umsistema implica uma regularização e uma estabilização,uma ordem que provém de rotinas organizacionais pra-ticadas por agentes sociais concretos que actuam quoti-dianamente.

c) Limites do modelo habermasiano

Nessa medida, parece que a abordagem habermasianaresponderia a algumas das questões colocadas pelosproblemas levantados pela irrelevância atribuída porMaturana à vida quotidiana no âmbito da teorialuhmanniana dos sistemas. Todavia, também aqui resultamalgumas reservas e críticas que não será estulto subscre-ver.

As principais críticas ao modelo habermasiano sãomotivadas por um certo essencialismo imputado a duasinstâncias – sistema e mundo da vida – do qual resultaria,no primeiro caso, uma espécie de indiferença normativa

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à qual se contraporia, no segundo caso, uma espécie deoceano de consensualidade ideal. Esquece-se que nem todaa forma de entendimento obtida no mundo da vida éargumentativa e racionalmente fundada. Omite-se a con-sideração do mundo da vida como um espaço onde hálugar para o poder, para a dominação. Finalmente, dilui-se a percepção de que o mundo da vida é um espaçomultiforme onde se cruzam racionalidades diversas. Nessesentido, há no mundo da vida habermasiano uma exces-siva indiferença à estranheza que se traduz em défice natentativa de compreensão dos mecanismos micro socio-lógicos de construção do conhecimento, de reprodução dopoder e das normas sociais. Corre-se o risco de se produziruma certa sensação de irrelevância na consideração domundo quotidiano provocada, desta vez, por uma omissãorelativa a uma tradição sócio-fenomenológica de análisedo mundo da vida.

De um lado, regista-se uma tendência na teorizaçãohabermasiana para uma evolução paralela dos conceitosde media e esfera pública que se pode resumir deste modo:quanto mais a esfera pública ganha um carácter comple-mentar no âmbito de uma certa inflexão sistémica, maisfacilmente parece aceitar-se a lógica dos media tal e qualexiste. De outro lado, parece escassa a análise dos mediasob o ponto de vista de uma fenomenologia do mundoda vida, apesar da reconhecida pertinência que tal tradiçãotem na sociologia da cultura e na sociologia da comu-nicação e da importância que ela poderia ter para acompreensão dos mecanismos quotidianos de produção doconhecimento.

Crê-se, pois, que é legítimo delinear duas estratégiascomplementares que apontam para a necessidade de outrosdesenvolvimentos. A primeira consiste no reconhecimentode que os meios de comunicação tradicional, e mesmo

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os novos meios, foram incubados – nas suas formas actuaise conhecidas – em ambientes sistémicos onde os–mediareguladores predominantes são o poder e o dinheiro27:.Num contexto de generalização da acção instrumental eestratégica, apoiada numa racionalidade de ordemteleológica separada das exigências éticas e morais, osmedia, com graduações diferentes, parecem viver sobrea ameaça constante da presença de uma lógica tecnicistada informação que neutraliza as potencialidadescomunicacionais dos próprios media. Num contexto deinfluência generalizada dos valores instrumentalistas, ainfluência dos mesmos faz-se sentir numa certa apropri-ação unilateral dos media, não apenas no que diz respeitoà sua estrutura de propriedade mas também no que dizrespeito às linguagens predominantes e às próprias fina-lidades que têm em vista (interesses privados,comercialismo, etc.). Porém, simultaneamente, esta estra-tégia de desconfiança não deve encerrar-nos numa visãoapocalíptica. Na verdade, existe um limite: «por maispoderosos que se tenham tornado os media têm de manteralguma reminiscência de contacto com público, o quesignifica que, apesar de tudo, existe um certo grau deabertura, uma dupla dimensão do processo de comuni-cação – quando surge um desafio aos limites do espaçopúblico [normalizado] por parte de um público activo, osmedia não podem ignorá-lo sob pena de porem em perigoa sua própria legitimidade»28.

Simultaneamente, vale a pena observar os media sobo ponto de vista do mundo da vida dos agentes sociaisrelevando a análise do desempenho dos actores sociais,neste caso os produtores mediáticos. Segundo a análise

__________________27 Cf. João Pissarra Esteves, Espaço Público e Democracia,

Lisboa, Colibri, 2003, p. 154.28 Ibidem, p. 52.

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elaborada a partir da Fenomenologia Social, ainda que comdesenvolvimentos posteriores a Schutz, os agentes sociaisreproduzem rotineiramente, no interior da atitude natural,as condições dessa realidade, a qual é apreendida a partirdo conhecimento de “receitas” e comportamentos típicos,entendidos de um modo que permite assegurar a conti-nuidade à ordem social29. Os objectos do mundo socialsão constituídos dentro de um marco de familiaridade ede reconhecimento proporcionando um reportório [umstock] de conhecimentos disponíveis cuja origem é fun-damentalmente social. As possíveis aplicações ao universodos mass media deste modo de abordar a sociabilidadeimplicam que a produção da notícia se articule com orecurso a quadros de experiência assentes em modos detipificar rotineiramente reproduzidos. A construção danotícia implica a utilização de enquadramentos, frames,como quadros de experiência que desempenham umafunção estruturante dos fluxos comunicacionais e auxiliamo seu utilizador a localizar, perceber, identificar e clas-sificar um número infinito de ocorrências. Segundo estalógica, a linguagem dos media, em muitos casos, tem oseu ponto de partida no senso comum. Ela surge, por outrolado, determinada pela comunidade social, na qual estãoimersos os produtores de mensagens e subentendidos ospressupostos que permitem proceder à selecção, de acordocom a norma e o desvio, os quais se tornam constitutivosdos chamados valores-notícia e da própria ideia de ac-tualidade. Nesta orientação da pesquisa, a atenção recaisobre a importância das rotinas dos jornalistas para ainteriorização de um saber baseado na experiência. Asexperiências colhidas no mundo da vida dos próprios

__________________29 Alfred Schutz, Collected Papers III, The Hague, Martinus

Nijhoff, 1975, p. 5.

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jornalistas – as rotinas organizacionais instaladas naredacção e as interacções sociais levadas a efeito no interiore no exterior da comunidade jornalística – desempenha-riam um papel relevante na constituição de quadros dereferência essenciais para a leitura que estes profissionaisfazem da realidade social.

Por outro lado, a estratégia proposta passa ainda poruma análise mais atenta à complexidade do mundo da vida.Da mesma forma que Schutz analisou o aspecto passivodo estilo cognitivo do mundo da vida e da atitude natural,também introduziu, com a teoria das realidades múltiplase a análise sócio-fenomenológica da estranheza, uma largamargem para abrir as portas à contingência social e àconstituição activa. Os que lêem em Schutz uma defesado regresso ao mundo da vida como se fosse uma espéciede saudosismo comunitarista marcado por relações “au-tênticas” estão enganados. Buscando consequências destaconcepção de estranheza para o campo dos media, éconveniente pensá-los, na sua relação com o mundo davida, não apenas de um ponto de vista das regularidadese dos consensos, mas também desde um ponto de vistade aprofundamento do pluralismo e multiplicação de vozessusceptíveis de acederem à visibilidade pública.

Partindo do desafio que constitui a análise dos media,a multimensionalidade é a única posição que pode ex-plicar o mundo social de uma maneira total. Logo, essamesma multimensionalidade deve ser convocada para aanálise do lugar ocupado pelos media e pela opiniãopública, de um modo em que a ambivalência se nãotransforma numa ambiguidade mas apenas num modo derecusar a unilateralidade. Por detrás deste diálogo decide-se fazer permanecer o sorriso humilde de Alfred Schutz,cuja argumentação será alegadamente incomensurável coma argumentação da Teoria dos Sistemas, mesmo quando

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se encontra, num enleio bastante tranquilo, com a Teoriado Agir Comunicativo. Resta sublinhar que estaincomensurabilidade não é linear: o percurso de Schutzpelo seu carácter indeciso e ensaístico, pela sua naturezaintuitiva e improvisadora (de músico) é responsável poralgumas das interpelações mais provocatórias que aindase possam sentir neste debate. Alguns autores da Teoriados Sistemas descobrem mesmo na Fenomenologia Socialintuições merecedoras de interesse, assim como possibi-lidades de diálogo que se afiguravam há algumas décadascomo altamente improváveis. Se a Schutz faltasistematicidade, de tal modo que por vezes parece tactearem universos percorridos com a penosidade do recém-chegado ou do estranho30, muitas das consequências destaatitude são a surpresa refrescante da parte de quem, nãosendo académico profissional, captava intuições comengenhosa perspicácia.

__________________30 A estranheza é, com efeito, um traço biográfico da existência

deste autor que o próprio transformou em matéria de reflexão: vejam-se a propósito textos como “The Stranger” e “The Homecomer” ou,se quisermos, “On Multiple realities”.

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The Present State of Sociological Systems Theory

Rudolf StichwehUniversity of Luzern

The tradition of sociological systems theory has beenestablished in the last fifty years by the extensive writingsof Talcott Parsons and Niklas Luhmann. If one looks forone characteristic most distinguishing of sociologicalsystems theory in comparison to other sociological theoriesone will probably not find it in a substantive sociologicalinsight not shared with any other sociological tradition.It is more to be seen in interdisciplinary theory buildingas the most prominent way of doing conceptual work insociology. Other sociological traditions often entertain closerelationships with one privileged neighbour discipline –mostly economics or social psychology – on which theircognitive individuality is somehow based. Systems theoryis not in this sense founded in neighbourhood relationswith a specific related discipline. It is more a child ofthe intensification of interdisciplinary relations born fromthe growth and internal differentiation of the system ofthe sciences.

If one looks at it from this vantage point systemstheory does not arise with Talcott Parsons “The Structure

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of Social Action” from 1937 which is more a traditionalsynthesis of different but converging intellectual traditionsand which once more had its central reference point ineconomics as a neighbourhood discipline. But thisorientation changed in the late forties and early fifties whenTalcott Parsons participated in some early congresses onself-organization theory and cybernetics and became amember and initiator of many other interdisciplinaryventures1. Then arose a style of theory building whichdoes not privilege a specific neighbouring scientificdiscipline in processes of interdisciplinary learning butwhich looks for conceptual innovations in numerous anddiverse scientific fields and tries to build sociological theoryin respecifying interesting concepts in terms of problemsgermane to sociology as a discipline. Whereas in TalcottParsons this style of work is more a side effect of hisembeddedness into the intellectual environment at Harvardand of his expanding network of scientific contacts, inNiklas Luhmann the interdisciplinarity of theory buildingbecame programmatic and was obviously related to asceptical evaluation of the cognitive merits of thesociological tradition.

Luhmann complemented this argument forinterdisciplinarity by an intensified interest for the historyof ideas and especially the philosophical tradition sinceGreek antiquity as an inventory of intellectual experimentsto be made use of in constructing a scientific discipline2.Luhmann’s trust in the productivity of conceptual workguided by interdisciplinary concepts and concepts from

__________________1 Cf. Steve Joshua Heims, The Cybernetics Group, Cambridge,

Mass., MIT Press, 1991.2 Cf. Rudolf Stichweh, “Niklas Luhmann - Theoretiker und

Soziologe”, in IDEM (ed.), Niklas Luhmann. Wirkungen einesTheoretikers, Bielefeld, Transcript, 1999, pp. 61-69.

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the history of philosophy was obviously supported by hislegal education and his familiarity with legal dogmaticsas a tradition basing the autonomy of jurisprudence towardsthe influences from many nonlegal interests on conceptualwork done in legal dogmatics.

There is a second characteristic of systems theoryclosely related to the prevalence of interdisciplinary workand the interests in the history of ideas. If theory buildingis such a diverse undertaking looking in many directionsit is more easily to be seen as a cognitive autonomy ofits own. And it is significantly to be observed in TalcottParsons as well as in Niklas Luhmann that they establishsociological theory as an autonomous cognitive domainand therefore as a meaningful specialization in aprofessional sociological life. This upgrading of the socialand intellectual status of theorizing again is not to be seenin other sociological schools. The emergence of the socialand intellectual role of the sociological theorist is closelyrelated to the genesis of systems theory3.

I want to point to a third feature of sociologicalsystems theory distinguishing it from other paradigms. Thisthird one is nearer to the intellectual conception of thedomain of sociology. The distinction of micro and macro,so important for sociology in many respects, does not mattervery much in systems theory. It seems to be substitutedfor by another prominent distinction, not very usual inother theories. In systems theory, since Parsons, there ison the one hand social theory which theorizes on a verygeneral level elementary building blocks or constituentsof social systems, on the other hand there is a theory ofthe most extensive social system. Perhaps this is a much

__________________3 See the famous self-description of Talcott Parsons in the

dedication of The Social System as an “incurable theorist”, TalcottParsons, The Social System, New York, Free Press, 1951, p. V.

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more fruitful distinction than the standard one of microand macro. In Parsons we firstly have action theory orthe general action frame of reference and on the otherhand the social system which is the system which subsumesall other functional references (economic, political) assubsystems and is in this sense the most extensive socialsystem4. In Niklas Luhmann’s writings the theory of socialsystems is that part of the theory that deals with elementaryand constitutive phenomena. Therefore you always makeuse of the plural social systems. The most elementaryphenomenon in social systems is no longer conceived tobe the unit act as it is in Parsons but communication.And the most extensive social system is again describedas society in a tradition which goes back to Aristotle wheresociety was already characterized by self-sufficiency andcompleteness of structures and processes5.

This decomposition of sociology into the theory ofsocial systems (or the action frame of reference) and thetheory of society (or the theory of the social system) inmy view contributes much to the originality of systemstheory. In the following in looking at the present stateof sociological systems theory I will evaluate some ofthe substantive issues on both sides of this distinction.

The most important change in the theory of socialsystems is the switch from action theory to communicationtheory6. There are two main implications to it. First,

__________________4 Cf. IDEM, Social Systems and the Evolution of Action Theory,

New York, Free Press, 1977.5 Cf. Niklas Luhmann, Soziale Systeme: Grundriß einer

allgemeinen Theorie, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1984 (on socialsystems) and IDEM, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Frankfurt a.M.,Suhrkamp, 1997 (on society).

6 Cf. Rudolf Stichweh, “Systems Theory as an Alternative toAction Theory? The Rise of ‘Communication’ as a Theoretical Option”,in Acta Sociologica 43 (1) (2000), pp. 5-13.

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communication theory in contrast to action theory is verymuch an interdisciplinary venture. Whereas the conceptof action is mainly of interest to sociologists and jurists,the prominence of the concept of communication arisesfrom information theory which was an undertaking ofmathematicians and engineers first of all and then inspiredmany communication concepts, since Gregory Bateson andJuergen Ruesch introduced the insights of informationtheory into psychiatry and social theory7. Since then manydisciplines from mass communication research to animalethology have made a productive use of the concept ofcommunication as a conceptual key to the social structureof heterogeneous social systems8. The second advantageof the concept of communication consists in it being clearlyrelated to the distinction of local contexts and globalsystems, differences between the local and the global beingable to be analyzed as different forms and effects ofcommunication. Therefore, the most eminent change incontemporary society, the penetration of world society intothe most distant regions and most local contexts in theworld, can be well articulated and understood in termsof communication theory.

Luhmann’s central decision in explicatingcommunication theory was the threefold distinction ofcomponents constitutive of any single communicative act:information, conveyance and understanding. Thisdistinction of components opens the possibility of detailedprocessual analyses of communication and of interrelatingsystems theory and the practices of conversation analysis

__________________7 Cf. as a recent overview Sascha Ott, Information. Zur Genese

und Anwendung eines Begriffs, Konstanz, UVK, 2004.8 Cf. for monkeys Dorothy L. Cheney and Robert M. Seyfarth,

How Monkeys see the World. Inside the Mind of Another Species,Chicago, University of Chicago Press, 1990.

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which is easily to be identified as a methodologicalapproach which is not necessarily tied to Garfinkel’sethnomethodology but which can be connected to problemsof systems theory, too. Already in Harvey Sacks’ lecturesfrom the early seventies one finds remarks which lookat conversational units as self-organizing systems9.Regarding the processual sequences in communication itis interesting to analyse fourth and fifth components whichin every occurrence of communication or at least sometimescome about. As Luhmann always said, understanding asthe third component does not imply acceptance or rejectionof the intended meaning of a communication. Thisalternative of acceptance and rejection then represents thefourth part in every sequence of communications and, ofcourse, it is already part of the next communicational event.From this theorizing about the fourth part in anycommunicational sequence Luhmann developed a verysimple and original theory of social conflict as somethingwhich always happens when rejection is chosen as theanswer to something said. It is an open question if thisis already an adequate interpretation of conflict. There issome interesting research by Heinz Messmer and WolfgangLudwig Schneider which points to the possibility that onemore rejection – the rejection of the first rejection byanother participant – has to come about to start a conflictsystem10. These discussions offer an interesting illustration

__________________9 Harvey Sacks, Lectures on Conversation. 2 Bde., Oxford,

Blackwell, 1992.10 Heinz Messmer, “Form und Codierung des sozialen Konflikts”,

in Soziale Systeme 9 (2) (2003), pp. 335-369; IDEM, “Konflikt undKonfliktepisode. Prozesse, Strukturen und Funktionen einer sozialenForm”, in ZfS 32 (2) (2003), pp. 98-122; Wolfgang L. Schneider, DieBeobachtung von Kommunikation: Zur kommunikativen Konstruktionsozialen Handelns, Opladen, Westdeutscher Verlag, 2003.

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of the potential instructiveness of conversation analysisfor systems theory.

Another central piece of communication theory isLuhmann’s theory of generalized symbolic media ofcommunication11. This is a very elegant piece of theory,again related to the alternative of acceptance vs. rejectionof a communicative offer. Luhmann postulates that thereexists a class of mechanisms consisting from generalizedcommunicative symbols (such as money, love or power)which are specialized on increasing the probability thata communicative offer is rather accepted than rejected.The background to this is ongoing societal differentiationwhich makes it ever more improbable that someone sharesmy interests and accepts my offers. Generalized symbolsand the media into which they are embedded are inventionsof societal evolution which potentially succeed to counteractthis unhappy and dissociating consequence of societaldifferentiation. The theory of generalized symbolic mediaof communication demonstrates another of the strengthsof systems theory. What makes it interesting as aninstrument of research is that it offers a very generalfunctional perspective – Which symbols are able to motivateothers to accept improbable communicative offers? – whichallows to compare such heterogeneous things as money,love, power and values from a functional point of view.The comparison of incongruous mechanisms made possibleby abstractions was always one of the programmaticintentions of systems theory. Luhmann very oftenaffirmatively referred to Kenneth Burke’s guiding formula

__________________11 Niklas Luhmann, “Generalized Media and the Problem of

Contingency”, in Explorations in General Theory in Social Science.Essays in Honor of Talcott Parsons, edited by Jan J. Loubser, RainerC. Baum, Andrew Effrat, and Victor M. Lidz, New York, Free Press,1976, pp. 507-532; IDEM, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Ch. 2.

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“perspective by incongruity” – and Burke had been a closepersonal friend of Talcott Parsons. If one looks at thepresent situation of systems theory it has to be taken accountof that not much work on this part of systems theory hasbeen done besides and since Luhmann and Parsons. Thereis, of course, the very interesting media theory of TalcottParsons12 on which Luhmann based his alternativeformulations; there are the suggestive essays of RainerC. Baum published in 1976 which focus on the fascinatingand still not sufficiently investigated problem of inflationand deflation in media codes13. And there is the onlycompeting theory by James S. Coleman who from thestandpoint of rational choice theory, too, identified theproblem of motivating the transfer of my rights over myown actions as a basis for the comparison of differentmechanisms which motivate such an improbable transferof rights towards others14. In an early essay from 1963,which was a comment on Parsons “On the Concept ofInfluence”, Coleman rightly noted that a theory of influenceshould be conceived from the point of view of the personto be influenced15. In general, here – in the theory ofsymbolically generalized media of communication – is a

__________________12 The most important essays are printed in Talcott Parsons,

Sociological Theory and Modern Society, New York, Free Press, 1967and IDEM, Politics and Social Structure, New York, Free Press, 1969.

13 Rainer C. Baum, “Communication and Media”, in Explorationsin General Theory in Social Science. Essays in Honor of TalcottParsons, edited by Jan J. Loubser, Rainer C. Baum, Andrew Effrat,and Victor M. Lidz, New York, Free Press, 1976, pp. 533-556; IDEM,“On Societal Media Dynamics”, in op. cit., pp. 579-608.

14 James S. Coleman, Foundations of Social Theory, Cambridge,Mass., Harvard University Press, 1990.

15 IDEM, “Comment on “On the Concept of Influence””, in PublicOpinion Quarterly, 27 (1) (1963), pp. 63-82. Coleman’s views relateto Adam Smith’s The Theory of Moral Sentiments, Indianapolis, Ind.,Liberty Fund, 1984.

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lacuna in the continuous updating of systems theory andmuch further work could and should be done about it.

In changing the reference point of my remarks fromthe concept of communication to the theory of generalizedsymbolic media of communication I already switched fromthe theory of social systems to the theory of society. Thistheory of society consists – in the version of NiklasLuhmann – from three or in the later versions from fourmain parts of which the theory of generalized media isonly one. I will look to the other two or other three parts,too. The second main part is sociological differentiationtheory which could be called the core of the theoreticaltradition of classical sociology. Already in Durkheim andSimmel differentiation theory was somehow identical withsociological theory. The mature version of differentiationtheory in Talcott Parsons and Niklas Luhmann is a synthesisof a tradition now a hundred years old16. In Luhmann thereare two main points which characterize his version ofdifferentiation theory. The first one is original to Luhmann.Differentiation theory is reformulated as a general theoryof system formation17. It no longer looks only at casesin which a systemic identity separates into two newsystems; instead it postulates a more general process ofthe formation of systems in systems. You only need systems

__________________16 Cf. for recent overviews Hartmann Tyrell, “Zur Diversität der

Differenzierungstheorie. Soziologiehistorische Anmerkungen”, inSoziale Systeme 4 (1) (1998), pp. 119-149, IDEM,“Gesellschaftstypologie und Differenzierungsformen. Segmentierungund Stratifikation”, in Sinngeneratoren. Fremd- undSelbstthematisierung in soziologisch-historischer Perspektive, editedby Cornelia Bohn and Herbert Willems, Konstanz, UVK, 2001, pp.511-534.

17 Cf. Niklas Luhmann, “The Differentiation of Society (1977)”,in The Differentiation of Society, New York, Columbia University Press,1982, pp. 229-254.

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and environments and new systems forming in systemsby generating an environment of their own. This paradigmchange has a certain liberating effect as one is no longerfixed on the binary paradigm which always expects thedecomposition of an antecedent system in two new systems.The other main point is Luhmann’s classification ofprinciples of system formation or forms of systemdifferentiation18. At first Luhmann operated with three suchforms: segmentary differentiation, stratification orhierarchical differentiation, and thirdly functionaldifferentiation as the structural form of modern society.Then the distinction of centre and periphery was addedas a fourth form of system differentiation19. This theoreticalwork on forms of differentiation is obviously synthetic.For all these forms of differentiation one finds influentialtheorists who have concentrated their analytical work onone of these. But it is slightly different for functionaldifferentiation. Never before a sociological theorist hadpostulated and described the modern primacy of bigfunction systems in society with such a precision anddecidedness as Luhmann consistently did since the 1970s.Functional differentiation can be called the main empiricaldiagnosis of systems theory, and it is not surprising thatmuch work in systems theory in the last ten years hasbeen done in this problem domain. Writings look forfunction systems which have not yet been defined anddescribed; they postulate the rise of new function complexessuch as social work which react on the consequences of

__________________18 IDEM, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Ch. 4.19 Cf. Edward Shils, “Center and Periphery: An Idea and Its

Career, 1935-1987”, in Center. Ideas and Institutions, edited by LiahGreenfeld and Michael Martin, Chicago/London, University of ChicagoPress, 1998, pp. 250-282.

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the establishment of functional differentiation20; and theylook for societal problems – for example ecologicalproblems or problems of dealing with risks – for whichit seems improbable that they are differentiated in the formof a function system of their own. Of course, there isthe major question: What kind of social structure mightarise after functional differentiation? But until now thereis not even a hypothetical answer and something can besaid for the argument that it cannot be otherwise.

Further progress and innovation in differentiationtheory seems to be slow, as it may always be the casewith a theoretical tradition having been established a longtime ago. But there is one significant new subject indifferentiation theory which has still been introduced byNiklas Luhmann in his later years. This is the debate oninclusion and exclusion, prominent since the early ninetiesand a prominent subject not only in systems theory. Theconcept of inclusion always was an important part of thesystems theory of functional differentiation, as thedifferentiation processes of function systems were thoughtto be based on the inclusion of everyone into possibilitiesof participation in each of the function systems of modernsociety21. This goes back to an argument made by the Britishsocial anthropologist Siegfried Nadel in the fifties22:Differentiation does not only need a structure of specializedroles but it also presupposes a public which is specifiedalong the lines of relevance constitutive for the

__________________20 Cf. Roland Merten (Hg.), Systemtheorie Sozialer Arbeit. Neue

Ansätze und veränderte Perspektiven, Opladen, Leske/Budrich, 2000.21 Cf. Rudolf Stichweh, “Inklusion in Funktionssysteme der

modernen Gesellschaft”, in Differenzierung und Verselbständigung. ZurEntwicklung gesellschaftlicher Teilsysteme, edited by Renate Mayntz,Frankfurt a.M., Campus, 1988, pp. 261-293.

22 Siegfried F. Nadel, The Theory of Social Structure, London,Cohen & West, 1957.

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differentiated systems. And only with regard to such rolesof being a member of a public of the system the inclusionof everyone into each of the function systems can bemeaningfully postulated. But what about exclusion? Theother side of the distinction inclusion/exclusion was onlyrarely mentioned until the late eighties although thepossibility of exclusion is logically entailed in processesof social inclusion which always can fail or in which arejection of a social object may occur. In presentationsand papers since the late eighties Luhmann focussed onexclusion processes due to the operations of functionsystems and he pointed to exclusion zones such as favelaswhich one can observe in many regions in the world.Exclusion zones result from people being excluded froma plurality of the function systems of society and thereforeliving their existence in a plurality of unofficial statuses23.Luhmann even postulated that the distinction inclusion/exclusion is somehow prior to functional differentiationand therefore defines a basic line of differentiation of worldsociety. This is not a very plausible claim as it conflictswith an analysis which interprets exclusion as resultingfrom the communication processes of the function systemswhich can only be the case if functional differentiationis prior to inclusion/exclusion.

This distinction of inclusion and exclusion is at themoment one of the liveliest places of research and debatein systems theory24. There are arguments looking for the

__________________23 See esp. Niklas Luhmann, “Inklusion und Exklusion”, in

Soziologische Aufklärung, Bd. 6, Opladen, Westdeutscher Verlag, 1995,pp. 237-264.

24 Urs Stäheli and Rudolf Stichweh (Hg.), “Inclusion/Exclusion- Systems Theoretical and Poststructuralist Perspectives”, in SozialeSysteme 8 (1) (1995); Thomas Schwinn (Hg.), Differenzierung undsoziale Ungleichheit, Frankfurt a.M., Humanities Online, 2004.

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system level at which inclusions and exclusions operate(organizations and function systems); one importantresearch question regards the interrelations of inequalityand exclusion; and probably the most interesting researchproblems have to do with the dynamics internal to thedistinction inclusion/exclusion and with its interrelationswith world society25. One argument, which one can derivefrom Foucault and Luhmann among other authors, saysthat one specificity of modern society consists in theexclusions it effects nearly always being transformed intoinclusions of another kind. Prisons and correctiveeducational institutions, psychiatric wards and old people’shomes are examples for institutions which are specializedon institutionalising exclusions in ways which intend toeffect new inclusions. This hypothesis can be combinedwith the migrational and communicational dynamics ofworld society in which people, symbols and events whichare excluded somewhere, often become included in amaterial or symbolic way elsewhere in the world. Thereseems to be nearly no way to escape the inclusive gripof world society and this may be responsible for thereversibility of all exclusions as well as inclusions to beobserved in this system which has no social environmentanymore.

The third core part of the theory of society is thetheory of sociocultural evolution. Again its scientificbackground is a completely different one. It was neithera constitutive part of classical sociology as is the casewith differentiation theory, nor is it a recent invention ofspeculative sociologists who cultivate an interest incomparing incongruous realities as is the case with

__________________25 Cf. Rudolf Stichweh, Inklusion und Exklusion, Bielefeld,

Transcript, 2005 (to be published).

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symbolically generalized media of exchange (or: mediaof communication). Instead, sociocultural evolution is oneof the oldest and most persistent cases of interdisciplinarytheory building. It was discredited by Spencerian ideasabout the progress of humanity and afterwards by the socialDarwinism of the first half of the 20th century, and it hadno influence in sociology when Niklas Luhmann decidedto connect to it again in the sixties. He was mainly inspiredby an American psychologist, Donald T. Campbell, whosingle-handedly had worked through the multiple traditionsof evolutionary thinking and created from it the modelof sociocultural evolution which meanwhile has becomedominant in circles interested in evolutionary thinking26.This proposal by Campbell is based on distinguishing threeevolutionary mechanisms which are called variation,selection and retention and it is based on the stronghypothesis that these mechanisms operate independentlyfrom one another so that social innovations or variationscan be conceived to be random events as they can notcalculate or predict the probability of their selectivesurvival. Luhmann connected to this methodological orepistemological accent of the Campbellian programme.Mainly two usages come to the foreground in Luhmann’sevolutionary theorizing27. He makes use of evolutionaryarguments to support the plausibility of the genesis of socialstructures on the basis of accidents or random events. Socialsystems are characterized by their ability to build theirstructures on the basis of nearly arbitrary preconditions.They can “wait” until circumstances arise from which theycan build convenient structures. This is a convincing

__________________26 Cf. for some important essays Donald T. Campbell,

Methodology and Epistemology for Social Science, Chicago, Universityof Chicago Press, 1988.

27 Cf. Niklas Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Ch. 3.

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argument against any determinism which causally relatesthe path of a system to external determining circumstances.The other usage of evolutionary thinking focuses on thetheorem of evolution of evolution. Luhmann describessociocultural evolution as ongoing differentiation of thethree evolutionary mechanisms. Variation, selection andretention/stabilization become ever more independent orever more distant from one another, and this is aconsequence of globalization: local contexts in whichvariations arise and global systems in which the selectivefate of these variations is finally decided becomingprogressively separated from one another. Therefore, theautonomy of structure formation in social systems is notonly considerable; it is even increasing in evolutionaryterms.

In my view this is not only a very original and validinterpretation of evolutionary theory, it is at the same timea rather specific and selective grasp of its cognitivepotentials. For example, it is remarkable that the extensivehistorical analyses Niklas Luhmann worked on for manyyears are nearly always theorized in terms of differentiationtheory and that there is only a sparse usage of evolution.At the same time in the nineteen-eighties and nineteen-nineties there was to be observed in fields such as culturalanthropology, evolutionary economics, epistemology,archaeology, psychology and other disciplines anunsuspected conjuncture of new evolutionary approacheswhich perhaps made evolution the most interesting growthindustry in interdisciplinary science. Systems theory willhave to reconnect to this literature and its debates. I cannotgive an extensive overview of relevant problems here andwill restrict myself to a few keywords.

One problem in many evolutionary theories is thatthe interrelation of culture and social structure has not

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been determined with sufficient precision. Sometimesresearchers are modelling cultural evolution, sometimesthey only look to the evolution of social structures. Buthow one is going to decide such an alternative and howone is going to relate to the other side of the option oneprefers remains rather unclear. This is even true for NiklasLuhmann who in a first approximation evades this problemby refusing to the concept of culture the status of asystematical term in social science. Culture is supposedto be only a historical concept, a self-description ofeighteenth-century European society and its arisingknowledge of the contingency of all social norms andpractices28. But then the problem of differentiating cultureand social structure reappears, as Luhmann distinguisheshistorical semantics from social structures and allowsthe possibility of independent evolutionary theories forboth of them29. But the interrelations of historicalsemantics and social structures are only thematized interms of differentiation theory. Differentiation theory triesto demonstrate how far-reaching semantical changes aredependent on structural shifts in the forms ofdifferentiation of society30. By this no answer is givento the question if and how sociocultural evolution shouldbe theorized twice – in terms of culture and in termsof social structure.

__________________28 IDEM, “Kultur als historischer Begriff”, in

Gesellschaftsstruktur und Semantik. Studien zur Wissenssoziologie dermodernen Gesellschaft, Band 4, Frankfurt a.M., Suhrkamp, 1995, pp.31-54.

29 Cf. Rudolf Stichweh, “Semantik und Sozialstruktur. Zur Logikeiner systemtheoretischen Unterscheidung”, in Soziale Systeme 6 (2)(2000), pp. 1-14.

30 Niklas Luhmann, Gesellschaftsstruktur und Semantik. Studienzur Wissenssoziologie der modernen Gesellschaft, Bd. 1-4, Frankfurta.M., Suhrkamp, 1980-1995.

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Another critical question regards what in Darwiniantheories normally is called the unit of selection (forexample: the gene or Dawkins’ candidate the meme31).Most theories operate very carefully in explicating theircandidate which is supposed to function as the unit ofselection in a specific domain. If one looks at NiklasLuhmann’s writings critically one will not be able to finda clear-cut answer. Luhmann gives precise identificationsfor the three evolutionary mechanisms: variation by conflictcommunications, selection by communication processessteered by the codes of the function systems, andstabilization via the differentiation of new systems. Butwhat functions as the unit of selection? There are candidatessuch as the symbol (probably the Parsonian option) or theexpectation (the Luhmannian version I presume). But thefinal argument has still to be established. And thennumerous further questions fall into line. Is there any suchthing as an analogy to the distinction of genotype andphenotype, so important for the Weissmannian fundamentalsof theories of biological evolution?32 And furthermore: Isthe unit of selection one is going to identify or nominatethat kind of entity which evolutionary theories call areplicator, that is a dynamical unit which realizes amechanism by which it incessantly produces copies of itself.This is a very interesting problem for communicationtheory, and there is a long tradition of potential answers

__________________31 Cf. Richard Dawkins, “Foreword”, in The Meme Machine,

edited by Susan Blackmore, Oxford, Oxford University Press, 1999,pp. VII-XVII.

32 Cf. Rudolf Stichweh, “Neutrality as a Paradigm of Change.Comment on Walter Fontana “The Topology of the Possible””,in”Understanding Change. Models, Methodologies and Metaphors,edited by Andreas Wimmer and Reinhart Kössler, Basingstoke, PalgraveMacmillan, 2004 (to be published).

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in social theory, going back at least to Gabriel Tarde’stheories of imitation.

I will finish this shortlist of open questions whichonly intends to illustrate lines of contemporary theorizingand directions of future work for systems theory. Besidesthe three theories analyzed in this brief survey there isa fourth main part to the theory of society. This regardswhat can be called the self-thematization, or self-reflectionor self-description of society. In “Die Gesellschaft derGesellschaft”33 this fourth part is more a collection of essayswhich discloses the somehow unfinished character of thisbook. But it is here that the unsolved problems of thedistinction of semantics and social structure come into focusagain. Semantics has always been described as a higherlevel generalization of social meaning. Social structuresobviously consist from expectations. There is no otherplausible candidate in systems theory. And expectationswill have to be defined – and be distinguished from thefleetingness of individual communications–– bycharacterizing them as generalizations of social meaningtranscending a certain span of time and a certain diversityof individual perspectives. But this definition – in slightlydifferent words – already functioned as the definition ofsemantics – and this points to the fact that we have heremore a problem than a solution34.

I will finish my very selective overview with a remarkon society. This obviously is besides system the most

__________________33 Niklas Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Ch. 5.34 Urs Stäheli, “Die Nachträglichkeit der Semantik. Zum

Verhältnis von Sozialstruktur und Semantik”, in Soziale Systeme 4(1998), pp. 315-339; IDEM, Sinnzusammenbrüche. Eine dekonstruktiveLektüre von Niklas Luhmanns Systemtheorie, Weilerswist,VelbrückWissenschaft, 2000; Rudolf Stichweh, “Semantik und Sozialstruktur.Zur Logik einer systemtheoretischen Unterscheidung”, in SozialeSysteme 6 (2) (2000), pp. 1-14.

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important word and concept in systems theory. And societycan only be thought of in contemporary terms as worldsociety. Then there is only one societal system on earthwith all the risks this implies. Luhmann made this veryclear at the beginnings of his career in Die Weltgesellschaftfrom 1971 and even in earlier programmes and writings35.But there arises again a slight irritation. If one readsthe many books by Luhmann attentively one can notoverlook that in many of his substantial analyses offunction systems there is an implicit horizon in illustratinghis theory (if not in analytical decisions) which limitssocial systems to national contexts. This is unintentional,and in my view can only be explained by the fact thatfrom the sixties to the eighties a perspective reallypresupposing world systems and presupposing one worldsociety was a rare position in social science so that onehad to do all the work oneself, and of course even themost creative scientist is dependent on the literature ofhis time36. When the globalization conjuncture finallyarose in the nineties Luhmann’s theory was more or lesscomplete. From this comes a further task for researchin systems theory. All descriptions of social reality haveto be redescribed, in checking if they really take intoaccount the global condition of communications in each__________________

35 Niklas Luhmann, “Die Weltgesellschaft”, in SoziologischeAufklärung 2. Aufsätze zur Theorie der Gesellschaft,Opladen:Westdeutscher Verlag, 1971, pp. 51-71; IDEM,Rechtssoziologie, Reinbek b. Hamburg, Rowohlt, 1972, pp. 333-343.

36 One of the most interesting ways Luhmann held to the diagnosisof world society was that he mostly ignored in writings and seminarsthe socialist world of Eastern Europe and Asia. This already stunnedus as students and looked as if he had known that they had no futurein world society. Cf. Nicolas Hayoz, L’étreinte soviétique. Aspectssociologiques de l’effondrement programmé de l’URSS, Genève,Librairie Droz, 1997 and the preface by Luhmann.

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and every function system37. The aim could be a kind ofnew version of “Die Gesellschaft der Gesellschaft” in whichthe concept of world society would no longer strangelyfigure as a kind of special subject in two short subchapters38

but would naturally function as the background of whatevercomes into view.

__________________37 Cf. Rudolf Stichweh, “Systems Theory as an Alternative to

Action Theory? The Rise of ‘Communication’ as a Theoretical Option”,in Acta Sociologica 43 (1) (2000), pp. 5-13.

38 Niklas Luhmann, Die Gesellschaft der Gesellschaft, Ch.1, p.X; Ch. 4, p. XII.

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