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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA O pensamento dos limites: contingência e engajamento em Albert Camus Emanuel Ricardo Germano Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Prof.Dr.Franklin Leopoldo e Silva São Paulo 2007

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

O pensamento dos limites: contingência e engajamento em Albert Camus

Emanuel Ricardo Germano

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof.Dr.Franklin Leopoldo e Silva

São Paulo

2007

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

O pensamento dos limites: contingência e engajamento em Albert Camus

Emanuel Ricardo Germano

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof.Dr.Franklin Leopoldo e Silva

São Paulo

2007

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à Tata, interlocutora, minha companheira, meu amor.

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao Professor Franklin Leopoldo e Silva pela contribuição

decisiva em minha formação filosófica, pois, desde 1996, tenho a felicidade de tê-lo como

orientador junto ao Departamento de Filosofia da USP. Sua habilidade em compreender a

diversidade de estilos filosóficos, sua capacidade de eleger e discutir os problemas ético-

filosóficos fundamentais de nossa época - a “medida de sua desmedida” – pois alia a rara

virtude da indignação filosófica com a sensibilidade, foram fundamentais – determinantes -

em minhas escolhas profissionais. É importante ressaltar que seus recentes estudos sobre

Camus e Sartre, assim como seu curso na USP sobre esta oposição, foram os inspiradores

diretos deste trabalho.

Minha profunda gratidão também ao Professor Francis Wolff, Professor e Diretor do

Departamento de Filosofia da ENS(École Normale Supérieure), meu orientador junto à

Fapesp e ao CnpQ durante os dois anos que estive em Paris como bolsista destas duas

instituições brasileiras de fomento à pesquisa. Sua atitude como filósofo, instigador do debate

e do intercâmbio de idéias – entre todos os campos do conhecimento e todas as épocas - e da

investigação aprofundada dos problemas contemporâneos, encarna a postura de uma escola de

filosofia que sempre esteve comprometida com seu tempo: conjugação entre rigor,

independência crítica e vigilância humanista.

Agradecimentos sinceros também ao Professor Frédéric Worms, meu «caïman» na

ENS durante meus anos de formação, que também contribuiu de forma decisiva em minha

pesquisa no estabelecimento da transposição esquemática (a terminologia é sua) entre Pascal

e Camus. Com um trabalho multipolar, integrando todas as dimensões do pensamento – a

filosofia, a ciência, a poesia, a literatura, o cinema e as artes - o Professor Worms me

evidenciou no curso destes anos que é absolutamente possível exercer um engajamento

filosófico obstinado, lúcido, rigoroso e, sobretudo, orientado para os questionamentos éticos

mais prementes de nosso tempo.

À Fapesp(Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo)pelo apoio dado a

esta pesquisa de Doutorado e, igualmente, ao período de formação na ENS de Paris.

Ao CnpQ(Conselho Nacional de Pesquisa) pelo apoio concedido ao período de

formação na ENS de Paris.

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“... vendo a miséria e o sofrimento que ela origina é preciso ser doido, cego ou covarde para se resignar à peste.” (CAMUS, A. La Peste. Thêátre, Récits, Nouvelles.)

“Se a revolta pudesse fundar uma filosofia seria uma filosofia dos limites, da ignorância calculada e do risco. Aquele que não pode tudo saber não pode tudo matar.” (CAMUS, A. L´Homme Révolté. Essais.)

“...me basta vos desviar das vias brutais nas quais vejo muitas pessoas de vossa condição se deixar levar por não conhecer o estado verdadeiro dessa condição.” (PASCAL, B. Trois discours sur la condition des grands. Troisième Discours. Intégrale.)

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RESUMO

Albert Camus ousou pensar os limites da razão e da ação humana na história

em um momento de hegemonia das esperanças de um racionalismo totalizante. Em

múltiplos campos da expressão, Camus arquitetou uma desmontagem do finalismo

histórico e das concepções estéticas da existência. Sua filosofia é um paradigma

alternativo para a racionalidade e para o engajamento ético-político, buscando um

tênue equilíbrio entre às exigências da história, o compromisso com a vida singular e

a restauração dos laços constitutivos entre os homens e o mundo.

Palavras-chave: finitude, revolta, engajamento, limite, natureza.

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ABSTRACT

Albert Camus dared to investigate the limits of human reason and action

throughout history in a moment of hegemony of hopes of a totalizing

rationalism. In multiple fields of expression, Camus engendered the

dismantling of historical finalism and aesthetical conceptions regarding the

human existence. His philosophy is an alternative paradigm for rationality

and for the ethical-political engagement, aiming at a fragile balance

between the requests of history, the commitment to the singular life and the

reestablishment of the constitutive bounds between men and the world.

Keywords: finitude, revolt, engagement, limit, nature.

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SUMÁRIO

Apresentação da Tese: (p.12)

Introdução Geral (p.16)

Apresentação da Primeira Parte: Contingência e engajamento em Sartre (p.27)

Cap.1) Em direção ao concreto (p.30)

Cap.2) O desvelo da contingência (p.34)

Cap.3) A condenação à liberdade (p.43)

Cap.4) Percalços da responsabilidade (p.55)

Cap.5) O enigma dos projetos (p.81)

Cap.6)Literatura e dimensão interrogante (p.117)

Cap.7)Violência e engajamento (p.122)

Cap.8) Sartre, Camus e a engrenagem da história (p.124)

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Segunda Parte: Contingência e engajamento em Camus

Cap.1)Vida e Absurdo (p.150)

Cap.2) Vivências do absurdo (p.177)

Cap.3) A razão absurda: O pensamento interrogante (p.183)

Cap.4)Engajamento contra o absurdo em O Mito de Sísifo e nas Lettres à un ami

allemand (p.186)

Cap.5)Camus em Combat: à procura do juste milieu (p.202)

Cap.6) Engajamento filosófico, engajamento literário: a dimensão ética da imagem

em Camus: (p.259)

A) Silêncio das origens, império dos fins: álgebra de uma histórica

equivocada(p.277)

B) A concepção estética (ou lúdica) da existência de Calígula (p.289)

C)O Estrangeiro e a engrenagem: grandeza e miséria do homem segundo Camus

(p.307)

D) Engajamento em face da fragilidade: metafísica e história (p.332)

Cap.7) O pensamento dos limites: uma arte de viver para um tempo de

catástrofe(p.372)

Cap.8) A lógica da preservação da vida em O Homem Revoltado (p.388)

Cap.9) Origens da Revolta (p.394)

Cap.10) A dimensão metafísica da revolta (p.405)

Cap.11)Da dimensão metafísica à histórica da revolta (p.433)

Cap.12) Revolta e niilismo: a recusa das origens (p.465)

Conclusão: Pascal e Camus: pensar os limites (p.471)

Bibliografia (p.490)

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Apresentação da Tese:

Esta tese de doutorado nasce do prolongamento de minhas reflexões sobre os

diferentes paradigmas éticos constituídos a partir de prismas diversos de

racionalidade.

Em minha dissertação de mestrado na Faculdade de Filosofia da Universidade

de São Paulo – A dimensão ética da incerteza: ciência e poder em Pascal – procurei

assinalar a riqueza e a diversidade do panorama filosófico do século XVII a partir de

duas polêmicas científico-filosóficas significativas de paradigmas distintos de

racionalidade: a polêmica sobre o copernicanismo, que revela o combate de Galileu

pelo estabelecimento da autonomia das “irretorquíveis ciências físicas” no

intercâmbio de cartas – a Castelli, a Dini e a Foscarini - que pode ser considerado a

álgebra de sua condenação pela Santa Fé, e a polêmica sobre o vazio, na qual Pascal

discute com o célebre cientista jesuíta, professor de La Flèche, Padre Noël, os

pressupostos, o conteúdo e o resultado de suas pesquisas que procuram estabelecer de

maneira puramente experimental “a máxima verossimilhança da tese da existência do

vazio”.

Ali, a reconstituição da polêmica entre Galileu e os hegemônicos partidários

do heliocentrismo serviu como um significativo pano de fundo no qual projetamos o

profundo contraste entre o mundo de “certezas irretorquíveis” defendido

heroicamente pelo filósofo de Pisa - universo reduzido ao Sistema Solar - no qual o

homem é capaz, pela ciência absoluta da linguagem mesma pela qual foi constituída a

natureza por Deus, de conhecimento “necessário” e “objetivo” das “leis naturais”, e o

universo contingente contituído pelo duplo infinito movente de Pascal, no qual a

ciência está reduzida ao “probabilismo” experimental, e a razão mesma permeada por

um cauteloso indeterminismo constituído pela impossibilidade de conferir

legitimamente qualquer alicerce ontológico ou metafisico último para o

conhecimento.

O contraste entre estes estilos científicos que são, afinal, dois estilos

filosóficos nos introduziu na absoluta originalidade e radicalidade do paradigma ético-

filosófico e científico de Pascal para o século XVII que consiste na recusa do

paradigma da razão dogmática galilaica-cartesiana, fundamentada num conceito

essencialista da verdade, alicerçada ontologica e metafisicamente, que promovia,

embora de maneira evidentemente diferenciada nos esforços de Galileu e de

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Descartes, o paradigma temerário do edifício das ciências de pretensão totalizante,

caucado nas esperanças fundadoras do mecanicismo e da geometrização plena do

cosmo.

Assim, sublinhei que Pascal se faz antípoda do paradigma de um

conhecimento de tipo totalizante, personificado, em sua época, por Descartes,

elaborando uma metodologia científica eficaz, integralmente experimental, que libera

a ciência das obsessões, seja do sistema completo, seja do fundamento último.

Prossegui, em seguida, enfatizando a dimensão ética e existencial desta

concepção pascaliana da racionalidade, principalmente em seu tratamento multipolar

da questão da contingência, que foi considerada como fio condutor dos Pensamentos

de Pascal.

Por fim, sublinhei a dimensão política da ética da incerteza de Pascal,

procurando notar que o paradigma de racionalidade pascaliano, pautado pela

experiência da contingência radical e da questão dos limites do conhecimento, é o

substrato filosófico da reflexão política contida nos Três Discursos Sobre a Condição

dos Grandes e nos Pensamentos, cujo âmago consiste, coerentemente, na recusa da

fundamentação última do poder político, através de uma genealogia do poder que

coincide com uma epistemologia da contingência radical, e no estabelecimento de

uma espécie de pedagogia dos limites, tendo em vista que os únicos esforços

louváveis da política no prisma pessimista e desencantado do polemista de Port-Royal

são, reconhecer o caráter multifacetado da verdade e extenuar-se na tarefa de procurar

preservar vidas humanas.

Agora, nesta tese de doutorado que apresento, neste conturbado final de 2007,

à Universidade de São Paulo, procuro, novamente, reavivar a discussão sobre os

diferentes paradigmas éticos constituídos a partir de perspectivas diversas de

racionalidade.

Se, no século XVII, é na definição da relação humana com a verdade, na

elaboração científica e na discussão acerca da elaboração e constituição das ciências

aonde encontramos o âmago da diferenciação entre paradigmas de racionalidade,

como no caso do embate Pascal versus Descartes, no século XX, é na definição da

relação humana com a história por intermédio das elaborações filosóficas, literárias e

políticas aonde reside o âmago da diferenciação entre paradigmas da racionalidade e

aonde, tal como nos embates ético-filosóficos do século de ouro, se evidencia o laço

íntimo existente entre paradigma de racionalidade e paradigma ético-moral.

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Foi neste intuito que escolhemos opor os esforços filosóficos-literários e

políticos dos filósofos contemporâneos Jean-Paul Sartre e Albert Camus na tentativa

de ressaltar melhor, através do esmiuçamento de suas diferentes concepções do papel

humano na história - de seus contrastes - a peculiaridade da concepção de

racionalidade e de engajamento deste último, que constitui, a exemplo do contraponto

filosófico de Pascal a Descartes no século XVII, uma ética filosófica derivada do que

chama, pensamento dos limites1, contraponto às filosofias materialistas da história.

Me parece bastante evidente que compreender a diferença significativa entre

as concepções da racionalidade e da história de Sartre e de Camus, permite melhor

evidenciar, tanto a diversidade e complexidade do momento filosófico francês

moldado pela experiência das duas grandes guerras mundias, quanto a profunda

divergência de suas concepções do que seja um engajamento histórico-filosófico

eticamente legítimo, forjadas em perspectivas da racionalidade, visões antropológico-

filosóficas e amparadas em vivências, absolutamente distintas.

Vale advertir, portanto, que no contexto desta tese de doutorado2, o esforço de

esmiuçar o papel humano na história segundo Sartre, através do estudo da correlação

entre as expressões literária, política e filosófica do autor, terá apenas a intenção de

promover – assim como no caso de Galileu em relação a Pascal em minha dissertação

de mestrado - o contraste necessário à reconstituição adequada do cenário do

racionalismo hegemonicamente materialista-dialético ao qual Albert Camus contrapõe

sua elaboração filosófica independente, em elaboração desde sua mais tenra juventude

na costa argelina, herdeira da tradição que, das tragédias gregas, passando pelas

figuras das Sagradas Escrituras, pelos moralistas franceses(Pascal, La

Rochefoucault,La Bruyère),pelos romancistas-pensadores dos séculos XVIII

(Voltaire, Rousseau, Laclos), XIX(Dostoiévsky, Nietzsche) e XX(Malraux, Koestler e

o próprio Sartre entre outros), procura integrar expressão literária e pensamento

filosófico.

Quem sabe não seja excessivo ainda informar que o formato atual deste

trabalho, inteiramente centrado no esmiuçamento da constituição do pensamento dos

limites de Camus, é oriundo de um enfoque dado ao projeto inicial de doutorado que

consistia, inicialmente, numa comparação multipolar mais ampla entre Blaise Pascal e 1 CAMUS, A. Essais. L´Homme Révolté – Mesure et Démesure.p.697. 2 Acaba de ser enviado ao Departameto de Filosofia da USP projeto de Pós-Doutorado no qual me proponho a preencher as inúmeras lacunas deste amplo projeto de filosofia comparada que, aos meus olhos, permanece inacabado.

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Albert Camus, autores entre os quais é possível, sem dúvida, estabelecer verdadeiras

transposições esquemáticas: da metodologia de pensamento à temática filosófica

norteadora, pautada pelas problemáticas da contingência, da absurdidade e dos limites

do conhecimento e da ação humanas.

Que não se considere portanto, as inúmeras referências a Pascal no

esmiuçamento do pensamento camusiano uma atitude meramente ilustrativa: trata-se

de um esforço legítimo e refletido de ancorar a metodologia de pensamento

camusiano na linhagem filosófica deste moraliste do século XVII.

Assim, se o formato atual deste trabalho está focado no pensamento deste

filósofo contemporâneo, nascido e forjado nos subúrbios da África do Norte é porque

julgo que a revitalização e a correta compreensão da obra de Albert Camus, centrada,

em continuidade com o pessimismo clássico, na reflexão sobre os limites da razão e

da ação humana na história, faz-se absolutamente imprescindível para a filosofia

atual, requerida a se posicionar com urgência diante do impasse de um presente

aparentemente sem qualquer recurso ao moto-contínuo da violência e embalado em

sua “jangada de medusa” ao sabor dos ventos tempestuosos de concepções estéticas

ou finalistas da existência e da história.

Em compasso com nossa época dilacerada, o esforço de uma interpretação

harmonizante do pensamento de Albert Camus, capaz de compreender e integrar suas

múltiplas dimensões expressivas, tornou-se um imperativo na tentativa de exprimir

que há, afinal, filósofos contemporâneos rigoristas que se recusam a compactuar com

a ordem vigente da crueldade e da indiferença – capazes de indignação - e para os

quais nem o silêncio, nem o conformismo “estético”, nem o imoralismo político

finalista, constituem regras de ação ou de pensamento.

*

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Introdução Geral

Em O Homem Revoltado, Camus parte da distinção entre “crimes de paixão” e

“crimes de lógica”, notando que, ao contrário dos assassinatos passionais motivados

pelos impulsos subjetivos do coração – como o amor ou a glória - o perfil dos crimes

patrocinados em massa pelos estados belicistas da primeira metade do século XX

revela a tendência nefasta das ideologias para a fundamentação absoluta do

assassinato, em termos até mesmo filosóficos.

Camus encontra uma bizarra consonância entre o maquinário burocrático do

nazismo alemão pautado pelo regime da eficácia plena, pela lógica das metas de

destruição e de extermínio, pré-estabelecidas racionalmente e fixadas pelos

estrategistas, e a rigidez da planificação dos regimes socialistas capazes de

inumeráveis sacrifícios humanos tendo em vista a consolidação absoluta de sua

concepção de sociedade. Tratar-se-ia do recurso à “doutrina”, que retiraria qualquer

valor subjetivo, ambíguo, residualmente humano e, portanto, transgressivo e

culpabilizador do assassinato. Estes regimes legitimam o crime diluindo-o numa

suposta ‘transparência’ e ‘objetividade’, numa ilusão dos fins, construída pela

ideologia e o estabelece como lei: “a partir do instante em que o crime é

racionalizado, ele prolifera como a própria razão, assumindo todas as figuras do

silogismo. Ele, que era solitário como o grito, ei-lo universal como a ciência. Ontem

julgado, hoje faz a lei.” 3

Na história contemporânea, a busca pela fundamentação e legitimação da

aniquilação atinge seu apogeu na estruturação até mesmo filosófica das doutrinas

ideológicas de estado e nos aparatos também estatais de disseminação da informação,

da repressão e da exportação do terror: o advento das ideologias assassinas – do

terrorismo de estado - seria, para Camus, o derradeiro e mais funesto desdobramento

histórico do niilismo.

Para Camus o niilismo histórico que se detecta nos empreendimentos

revolucionários de seu tempo é fruto da deturpação do sentimento original de revolta,

que transforma a lucidez em relação ao absurdo da existência e o sentimento de

injustiça, donde brota a solidariedade em relação à infelicidade comum da condição

3 CAMUS, A. O Homem Revoltado, p.13.

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humana, numa exigência de justiçamento generalizado que se esquece de seus limites

de atuação.

Para Camus, não obstante as lutas revolucionárias aspirem à legitimação universal

pelas ideologias do progresso e por uma concepção finalista da história - elas podem,

não obstante, ser consideradas como reverberações de um movimento originário de

revolta contra a própria condição humana que se encontra, antes de tudo, num registro

metafísico da inscrição problemática do homem num cosmo que lhe contradiz em seu

elã de permanência.

Da revolta metafísica - negação da representação terrena da divindade e posterior

negação da existência de Deus - à revolta histórica – instauração violenta do “novo

evangelho” do Estado – sobressai, segundo Camus, a mesma inquietude de um

descontentamento originário com a própria condição e a vontade de unidade e

eternidade que são, a bem da verdade, aspirações metafísicas transplantadas à

dimensão histórica: "só pode haver para a mente humana dois universos possíveis: o

do sagrado (ou, em linguagem cristã, o da graça) e o da revolta. O desaparecimento

de um equivale ao surgimento do outro, embora este aparecimento possa ocorrer sob

formas desconcertantes (... A atualidade do problema da revolta depende apenas do

fato de sociedades inteiras desejarem manter-se hoje em dia uma distância com

relação ao sagrado. Vivemos em uma sociedade dessacralizada. Sem dúvida, o

homem não se resume à insurreição. Mas a história atual, por suas contestações,

obriga-nos a dizer que a revolta é uma das dimensões essenciais do homem. Ela é

nossa realidade histórica.” 4

Para Camus haveria, afinal, algo como uma continuidade deste movimento de

descontentamento metafísico originário transposto em direção à história, que na

atmosfera dessacralizada do mundo contemporâneo resume às aspirações humanas em

termos concretos: a revolta contra o sentimento da contingência da condição humana

refluiria sobre a constituição imperfeita da sociedade e o resultado só poderia ser o

advento de um niilismo planetário – “a negra exaltação em que o céu e a terra se

aniquilam.” 5

Não é à toa, portanto, que o pensamento camusiano gere estranheza no ambiente

de predominância materialista e pró-revolucionária no qual se habita em 1951, pois,

afinal, ele parece estar de algum modo na contramão das mais profundas exigências 4 Idem, p.34. 5 Idem,p.18.

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do materialismo histórico: enquanto este granjeia esforços teóricos para decantar da

realidade qualquer fantasmagoria que imponha valores que não os surgidos da

causalidade dos processos materiais e da dialética da lutas de classes, restringindo a

dimensão humana à indissolubilidade entre homem e história, o chamado

‘pensamento mediterrâneo’ de Camus, em sentido diametralmente inverso, repõe a

relação (metafísica) ampla do homem com o mundo como origem do sentimento de

injustiça, notando a revolta histórica como a forma secularizada de uma expressão de

descontentamento que é antes de tudo metafísico.

É sem dúvida difícil compreender no pensamento de Camus a intromissão desta

espécie de memória originária do descontentamento na compreensão da constituição

do presente revolucionário, principalmente quando seus pares se esforçam no

estabelecimento dos liames causais dos processos puramente materiais e em elaborar

as trilhas da concretização de um fim último para a história.

Sartre, em sua notória Resposta a Camus, acusa de imprecisão a noção de

“natureza humana” a quem atribui o papel equívoco de entrelaçar as lutas humanas

com batalhas metafísicas infrutíferas, acusando o compatriota de exprimir um

pensamento contrário à história: “Você segue em nossa grande tradição clássica que,

desde Descartes e excetuando Pascal, é por completo hostil à história (...) você não

recusou a História pelo sofrimento, nem por haver descoberto o horror de seu rosto.

Você recusou-a antes de toda e qualquer experiência, porque nossa cultura a

rechaça, e porque você coloca os valores humanos na luta do homem ‘contra o céu’.” 6

Recusando esta mescla entre história e metafísica, Sartre, ainda na carta de agosto

de 52, critica implacavelmente a concepção do engajamento camusiano: “Você

acusou os Alemães de o terem arrancado ao seu combate com o Céu para obrigá-lo a

tomar parte dos combates temporais- dos homens: «Há tantos anos que tentam fazer-

me entrar na História...>> E mais adiante: «Fizeram o que era necessário, nós

entramos na História. E durante cinco anos não tornamos a ter a possibilidade de

fruir do canto dos pássaros>>. «A História era a guerra; para si, era 1oucura dos

outros. Ela não cria, destrói; impede a erva de crescer, os pássaros de cantar, o

homem de fazer amor.>> Aconteceu. com efeito, que as circunstâncias exteriores

pareciam confirmar o seu ponto de vista: você travava na paz um combate intemporal

contra a injustiça do nosso destino e os nazistas tinham, aos seus olhos, tomado o 6 SARTRE, J-P. Situações IV, p.99-100.

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partido dessa injustiça. 'Cúmplices das forças cegas do universo, eles tentavam

destruir o homem. ' Você combateu, segundo escreveu. «para salvar a idéia do

homem» 7Em resumo, você não sonhou em «fazer a História», como diz Marx, mas

impedi-la de se fazer."8 A acusação contra Camus é ainda mais categórica em páginas

anteriores. Para Sartre, Camus “se esforça por negar o tempo.” 9

Camus, embora tenha sido resistente de primeira linha, desempenhando um papel

imp

ecusa de Camus de filiar-se aos compromissos

ideo

ortante na contrapropaganda à ocupação, como editor do jornal clandestino

Combat de 44 a 46, se recusa, segundo Sartre, a aderir, com toda a exigência que dele

se esperava, ao compromisso intelectual continuado com as causas revolucionárias, o

que, do ponto de vista do ativismo político da esquerda dos anos cinqüenta, seria,

simplesmente, inadmissível.

Na perspectiva de Sartre a r

lógicos de seu tempo é estranhamente consoante à sua ambigüidade como

filósofo que, ao envolver o embate dos homens num invólucro metafísico, pensa

poder agir, como vimos acima, como um mero ‘visitante na história’: "A prova; desde

que a guerra acabou, você limita-se a encarar o regresso do status quo:' «A nossa

condição não deixou ainda de ser desesperante>>. O sentido da vitória dos Aliados

apareceu-lhe como ‘ a aquisição de duas ou três variantes que não terão talvez outra

utilidade do que ajudar alguns de entre nós a morrerem melhor’. Depois de ter

despachado os seus cinco anos de história, você pensava que podia regressar (e

consigo todos os homens) ao desespero donde o homem deve retirar a sua felicidade

e a «provar que não merecemos tanta injustiça» (aos olhos de quem?) retomando a

luta desesperada que o homem trava «contra o seu destino revoltante>>“ 10

Neste importante documento de agosto de 195211, Sartre antecipa com Camus

a discussão que travará um ano depois com Merleau-Ponty, para quem o engajamento

político circunstancial de Sartre significava mais um resíduo de da má fé do que

demonstração de lucidez política: “Decidi, desde a Guerra da Coréia não escrever

mais sobre os acontecimentos à medida que eles se apresentam. O engajamento em

7SARTRE, idem.p.101. 8 Idem. 9 Idem, p.100. 10 SARTRE, J-P. Situações IV, p.101. 11 Resposta a Camus. Temps Modernes, n.82, re-editado em Situations IV.

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cada acontecimento isoladamente torna-se, em período de tensão, um sistema de ‘má

fé’...” 12

Para Sartre, assim como o risco das circunstâncias e o prejuízo da coerência da

sistemática filosófica não poderia servir de alpinismo existencial em relação às

solicitações do presente (como pensa ver na postura de Merleau-Ponty), também não

seria possível delinear nenhuma cogitação metafísica que desvencilhasse o humano da

responsabilidade que guarda sobre o mal absoluto, que o circunda perenemente, como

adverte sem reservas à Camus: "Você revoltava-se contra a morte, mas, nas cinturas

de ferro que cercam as cidades, outros homens se revoltavam contra as condições

sociais que aumentam o índice de mortalidade. Se uma criança morria, você acusava

o absurdo do mundo e esse Deus surdo e cego que você tinha criado para lhe poder

cuspir na cara; mas o pai da criança, se era um desempregado ou um assalariado

acusava os homens: ele sabia que o absurdo da nossa condição não é o mesmo em

Passy e em Billancourt(...)Esse homem é feito por outros homens, e o seu inimigo

número um é o homem, e, se a 'estranha natureza' que ele encontra na fábrica ou nas

obras lhe fala ainda do homem, é porque foram os homens que a transformaram em

prisão para o seu uso."13

Enquanto para Sartre o mal é sem dúvida um produto exclusivo humano da

realidade histórica, para Camus o mal, embora se materialize na história, guardaria

também um resíduo metafísico.

Procuraremos nesta dissertação analisar a fundamentação filosófica destas

duas concepções de engajamento que se confrontarão em 1952 por ocasião da

publicação de O Homem Revoltado, buscando realçar assim, a peculiaridade do

engajamento camusiano frente à postura de Sartre.

Embora ambos tenham o desvelo da contingência como movimento inicial de

suas filosofias e se amparem na literatura para expressão adequada de seus horizontes

ético-filosóficos, veremos a enorme distância conceitual que separa seus

empreendimentos de pensamento.

Sartre, norteando sua concepção da situação humana e de engajamento nas

análises fenomenólogicas e, posteriormente, no marxismo e na psicanálise, buscará

12 “(...)Há acontecimentos que permitem, ou melhor, exigem ser julgados imediatamente e em si mesmos: por exemplo a condenação e execução dos Rosenberg, mas, o mais das vezes o acontecimento só poder ser apreciado no quadro global de uma política que lhe muda o sentido ...”(Carta de Merleau-Ponty a Sartre de 8 de julho de 1953.) 13 SARTRE, J-P. Situações IV, pp.103-5

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investigar a complexidade de cada momento histórico e esmiuçar, na maioria das

vezes por intermédio da literatura, à delicada questão da “opacidade” do presente e

dos riscos da ação humana, “condenada” a seguir à sombra da contingência e da

“incompletude”. Estas considerações sobre a complexidade do momento histórico e

da opacidade da ação não impedirão a Sartre, ancorado numa racionalidade

totalizante, de exprimir de maneira contundente uma postura pró-revolucionária que

vê na violência o único meio possível, e, portanto, legítimo, de luta contra a injustiça.

Por razões a que já nos referimos, nosso trabalho visará preferencialmente o

estudo do pensamento de Camus. Assim, se o primeiro capítulo da dissertação se

contentará em elaborar um enfoque expressivamente multifacetado dos temas centrais

da filosofia de Sartre, no intuito de sugerir ao leitor uma visualização das pretensões

de algum modo totalizantes da racionalidade sartreana, constituída pela confluência

das edificações conceituais da fenomenologia, do marxismo e da psicanálise,

acompanhando a legitimação progressiva da violência pelo paradigma sartreano de

racionalidade, no caso de Camus nosso esforço se mostrará bem mais ambicioso e

importante, pois pretende constituir, a princípio, uma análise pretensamente

harmonizadora de seu pensamento14, notando a consonância e harmonia absoluta

entre as dimensões filosófica, literária e política da expressão camusiana. No caso de

Camus, estas três vias expressivas se harmonizam no estabelecimento de um

”pensamento dos limites” que, em virtude de um engajamento rigorista do ponto de

vista da responsabilidade da função intelectual, recusa o endosso à “engrenagem” da

violência e, portanto, à legitimação do assassinato político ou de Estado. Assim, ao

lado de O Mito de Sísifo, de O Estrangeiro e de A peste, notatremos em O Homem

Revoltado um dos momentos do engajamento camusiano pela preservação da vida,

movimento que está ancorado numa solidariedade metafísica em relação à fragilidade

da condição humana.

Assim, no primeiro capítulo, acompanharemos o itinerário sartreano que

conduz do desvelo da contingência ao engajamento pró-revolucionário. Este percurso

compreenderá primeiramente, as problematizações iniciais acerca da contingência

14 A bem da verdade, este esforço que se pretendia “totalizante”, esbarrou no escoamento temporal, visto que não nos foi possível analisar adequadamente, como gostaríamos, a fase madura da obra de Camus. Assim, assinalemos que consideramos a análise que oferecemos aqui da segunda parte de O Homem Revoltado(A revolta histórica e O pensamento Mediterrâneo) apenas indicativa de uma leitura mais aprofundada que será elaborada no Pós-Doutorado, ao lado das análises das obras literárias de maturidade de Camus, Os Justos e A Queda, e de novas análises sobre o desenvolvimento e a maturidade filosófica de Sartre.

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pelo prisma fenomenológico em A Transcendência do Ego, no texto publicado nas

Situations Philosophiques intitulado Une idéee fondamentale de la phénomenologie

de Husserl: l’intencionalité e no romance A Náusea. Posteriormente, a questão da

contingência retornará sob o prisma do engajamento histórico no conto O Muro e no

texto político-filosófico Paris sob ocupação, por intermédio dos quais notaremos

surgir à questão da opacidade do presente, e das vicissitudes da ação histórica, temas

margeados pela questão da negatividade, cara aos ensaios filosóficos O Imaginário e

O Ser e O Nada. A questão da responsabilidade, da opacidade da história, e a

temática, fundamental em O Ser e O Nada, da incompletude da existência, serão

aprofundadas e transpostas para uma dimensão coletiva no texto político O que é um

colaborador? e na peça Mortos sem sepultura. Antes de prosseguirmos no itinerário

filosófico pró-revolucionário de Sartre, nos deteremos na questão do enigma das

condutas individuais e da complexidade e opacidade dos momentos históricos através

do livro Baudelaire, no qual Sartre antecipará, antes da polêmica de 52, o método da

psicanálise existencial através do qual manterá vivo - malgrado às reflexões sobre a

opacidade do presente e sobre a incompletude da existência – seu elã de totalização

filosófica e sua nostalgia de compreensão plena da complexidade dos instantes

históricos e das intenções humanas. Em direção à legitimação dos projetos

revolucionários, veremos, em seguida, o testemunho de Sartre sobre a catástrofe

produzida pelos aliados em Hiroshima presente no texto O fim da guerra. Será

ocasião de delinear o prenúncio do que se mostrará ser o empreendimento filosófico

sartreano de legitimação da violência revolucionária que será expresso literariamente

no script cinematográfico A engrenagem, no qual o filósofo representa seu

antagonismo ferrenho e irônico à postura “pacifista” camusiana15.

No capítulo dedicado à Camus nosso itinerário será, sem dúvida, bem mais

completo e apenas aqui nosso trabalho almejará elaborar uma interpretação

aprofundada, aspirando, de fato, lançar uma luz nova sobre a importância fundamental

do pensamento de Albert Camus, que, não obstante tenha sido incompreendido em

sua época, hoje, nos fornece um prisma filosófico absolutamente fundamental, não

apenas na intenção de compreender, mas também de atuar no mundo contemporâneo.

15 Nosso intuito original, que não nos foi possível atingir era notar, finalmente, que a legitimação da violência revolucionária tornar-se-á expressa e contundentemente um projeto filosófico sartreano no texto político Os Comunistas e a Paz e na peça O Diabo e o bom Deus.

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Este capítulo se iniciará por uma análise circunstanciada de O Mito de Sísifo,

permitindo notar que do âmago desta obra inaugural de Camus já se estabelece uma

concepção do engajamento contra o destino e contra a injustiça da condição humana

contingente, nascida do sentimento da fragilidade comum da condição humana.

Veremos que o engajamento histórico camusiano, que se efetiva nas Cartas a um

amigo alemão, e nos editorais de Combat se harmonizam perfeitamente com a leitura

filosófica da existência humana presente em O Mito de Sísifo. Veremos em seguida,

que a polêmica de Camus com François Mauriac nos primeiros momentos do pós-

guerra, servirá como confirmação das intenções originais da filosofia de Camus e,

que, do debate seguinte com Merleau-Ponty acerca da justificação filosófica dos

processos de Moscou pelo Humanismo e Terror, se forjarão os elementos

fundamentais do peculiar engajamento histórico camusiano, baseado numa concepção

intransigente sobre a fragilidade dos seres humanos, considerados antes de tudo como

seres vivos, entes singulares, com calor e rosto, e não como peças numa humanidade

abstrata engrenada numa marcha irrepreensível rumo à Cidade dos Fins. Notaremos

que a expressão literária em Camus está vinculada à exigência filosófica da expressão

da singularidade radical, à recusa do abstracionismo e que, neste sentido, O

Estrangeiro e A Peste são expressões literárias do engajamento filosófico camusiano,

visto que exprimem o elã profundo de seus embates, a saber, um engajamento pela

grandeza do homem contra a miséria das engrenagens históricas e naturais da morte.

Antes, dois capítulos consecutivos, nos colocarão no centro irradiador das

preocupações éticas de Camus. Expressos na peça O Equívoco, estão os problemas do

silêncio, do fatalismo, do esquecimento das origens da revolta e da desmedida

sanguinária oriunda desta traição às origens da revolta. A peça Calígula se lança na

expressão da vontade de potência e da correlação trágica entre metafísica e política.

A síntese destas preocupações ético-filosóficas de Camus está presente em O

Homem Revoltado que retomará a temática presente em O Mito de Sísifo com a

finalidade de revigorar as origens da revolta acentuado os limites do homem diante da

realidade que o contradiz. Camus nota que a contestação originária e justa contra a

condição humana miserável diante de uma história e de um cosmo indiferentes se

transplanta, radicaliza e trai suas próprias origens quando se materializa nos

movimentos revolucionários contemporâneos pautados pelo ânsia de eternização pela

política. Estes, se beneficiando de um “céu vazio”, procuram erigir sobre os

escombros das aspirações humanas à unidade seus edifícios de poder e de sacrifício

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secularizados. Se os homens eram martirizados pelo desejo de “eternidade”, fato

contra o qual se insurgia originariamente a revolta, ei-los, na história contemporânea,

sacrificados e martirizados pela lógica irretorquível do materialismo dialético que

prevê o advento da sociedade perfeita. O rosto humano singular contrito

anteriormente pelas promessas “de além”, ei-lo agora dilacerado pelas promessas “de

mais tarde”: é o que O Homem Revoltado denuncia em 1951, para fúria da “patrulha

ideológica” da esquerda francesa que, dos tépidos e confortáveis cafés do Quartier

Latin, preferiam neste mesmo instante legitimar e incentivar seus camaradas do

mundo inteiro a seguir às vias do sacrifício e do martírio, desta vez seduzidos, não

pela engrenagem fatal da ordem penal, mas pelas vias irretorquíveis do materialismo

dialético.

Camus diagnosticará o histórico da doença do niilismo através de um

procedimento genealógico, investigando a linhagem revoltada desde o mito

prometéico, passando por Epicuro, Lucrécio, pelas Escrituras, Pascal, Sade,

Baudelaire, Lautréamont, Stirner, Dostoiévsky e Nietzsche, sondando a atmosfera

intelectual que prepara a ambientação do niilismo histórico, caracterizado pela

perversão do elã originário da revolta. Posteriormente, Camus analisará a

radicalização das revoluções históricas degeneradas e deterioradas à força de uma

violência incongruente com as origens de suas próprias revoltas. Desde a Revolução

Francesa, passando pelo Reich alemão até os empreendimentos de cunho marxista

seus contemporâneos, Camus detecta o mesmo fracasso do elã à justiça deteriorado

pelo esquecimento das origens da revolta16.

Com seu “pensamento mediterrâneo” Camus instaura no final de O Homem

Revoltado sua ética filosófica centrada nas origens da revolta, isto é na consciência

dos limites e da fragilidade humanas. É a consciência da fragilidade esta “natureza

humana” a ser interposta entre o homem e suas aspirações à unidade e à felicidade: é

o “pensamento dos limites” que deve operar subtraindo à singularidade humana das

engrenagens do fatalismo do Progresso e da História que exigem o sacrifício e a

escravidão do presente num delírio de futuro.

Notaremos que Camus acena com uma concepção de engajamento centrado na

“modéstia”, âmago da concepção de engajamento que irradia do romance A Peste, que

16 A bem da verdade, sobre a segunda parte de O Homem Revoltado(A revolta histórica) constarão nesta tese apenas algumas menções atreladas principalmente ao capíttulo destinado ao estudo de A Peste.

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acena para a necessidade de pensar as mudanças sociais levando em conta o presente,

a partir do homem concreto e não em detrimento dele, numa busca intermitente e

obstinada pela justiça social que mantém a revolta original contra a injustiça e a

fragilidade humanas como horizonte perpetuamente reiterado da ação. Para Camus, a

via do sindicalismo, da ação social, os combates cotidianos da democracia, o

engajamento perpétuo e interrogante, ciente dos próprios limites e da impossibilidade

de descer “o céu à terra” é preferível à nova era da escravidão legitimada pelas

filosofias que apregoam a esperança numa sociedade perfeita, vindoura, a que convém

tudo sacrificar.

Deteremos-nos ainda, numa das conseqüências mais interessantes da filosofia

de Camus para nosso tempo, a saber, à extensão do elã de preservação da

singularidade humana à natureza: Trata-se do esboço de uma ecologia humana.

Avaliaremos que a concepção da grandeza do homem de Camus é

indissociável do convívio com a natureza e que, em diversos domínios de sua obra se

configura uma dignificação da natureza em contraponto absoluto com os ideais de seu

tempo segundo os quais a natureza não é senão um amálgama a ser exaurido e

moldado à imagem da desmesura humana. A natureza, no universo abstrato do

materialismo de Sartre, por ex. não é, como se vê em seu empreendimento literário,

nada, senão um mero palco para as lutas, para o trabalho e para as ânsias de

transformação humanas.

Em Camus, a natureza, ao contrário, arbitra, como veremos no sol enganador

de O Estrangeiro ou na cruel indiferença de A Peste: os elementos, assim com as

doenças, relembram ao homem de seus limites originários e que sua luta como ser

vivo é antes de tudo, cósmica: nesta jornada na contingência no qual homem e

natureza se espelham, o denominador comum é a fragilidade.

Assim, os últimos esforços deste trabalho se destinarão a fazer jus ao lema

camusiano do retorno consciencioso às origens que fundamenta a justa revolta.

Analisaremos o texto de maturidade de Camus O Verão, matizado pela

experimentação revisitada das ruínas romanas de Tipasa, perto de Orã - banhada pelo

sol inclemente do mediterrâneo, perdida no tempo e mergulhada num conluio com um

mar docemente hostil - à luz de um dos primeiros textos do autor, Núpcias.

Sondaremos, assim, de maneira circular, a importância filosófica profunda da vivência

da natureza para Camus.

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Não se tratará, pois, de uma avaliação “final” do “conceito” de natureza, nem

do desvelo da “epistemologia cósmica” que regeria, como na filosofia de Nietzsche, à

ética camusiana, fundamentada pelo laço indelével entre o homem e o mundo. Mas,

ao contrário, procuraremos avaliar, bem de acordo com o elã camusiano – a ecologia

humana - a importância da natureza no plano do sentimento, da intuição e da vivência

humana dos limites: fundamentos tácitos originários da ética camusiana.

A natureza é o oráculo dos limites: os pobres que lêem seus sinais privados,

pela miséria, da certeza do amanhã e os povos ligados umbilicalmente à natureza tais

como os pescadores, os sertanejos e os povos da floresta, bem o sabem. Não obstante,

é no tênue equilíbrio no qual, em contradição com a conspiração cósmica, a vida

persiste, e na conivência respeitosa entre os homens e os elementos que o circundam,

que a própria imagem da frágil grandeza da condição humana se efetiva segundo

Camus – apesar de suas misérias.

Camus, portanto, na contramão de seu tempo pautado pela obsessão do

progresso, evolui em direção às origens. Na medida em que seu pensamento

amadurece, ele se volta a Tipasa, à ética tácita e às convicções originárias obtidas na

evidência do subúrbios e das praias de seu país natal, no qual experimentava na carne

o paradoxo da grandeza e da miséria humana: “sentir os laços com a terra, seu amor

por alguns homens, saber que há sempre um lugar onde o coração encontra seu

acordo, eis aí muita certeza para uma só vida de homem.” 17

As lições mais profundas apreendida por Camus se mostram, afinal, oriundas

“dos verões da Argélia” 18: “é suficiente viver de corpo inteiro e testemunhar de todo

coração.” 19

*

17 CAMUS, A. Noces.p, 75. 18 CAMUS, A. Noces.p, 76. 19 CAMUS, A. Noces.p,59.

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(I Parte)

Apresentação

Procurar compreender a correlação conceitual entre as obras teóricas e de

ficção de J-P. Sartre constitui tarefa árdua e talvez ingrata se tivermos por objetivo

estabelecer tão somente interpretações definitivas e absolutamente “claras e distintas”

sobre o pensamento filosófico. A proposta se complica ainda mais se queremos com

isto apenas delinear a fugidia questão da história para o autor. Isto porque, afinal, a

implicação entre as formas de expressão, bem como a necessidade ou contingência do

extravasamento do domínio conceitual tendo em vista o projeto filosófico original de

Sartre é tão discutível como a passagem, sem rupturas, entre os primeiros escritos

teóricos sobre a estrutura da consciência situados na esteira da fenomenologia de

Husserl e da filosofia heideggeriana da existência e o último pensamento do escritor

que opera uma conjunção entre os métodos de Marx para o estudo dos processos

históricos com a “psicanálise existencial” – no intuito de investigar um sentido

possível para a história a partir do estudos das relações do grupo com o

comportamento individual, e da comparação entre projetos e experiências concretas

de existência. A vizinhança entre ficção e teoria faz-se ainda mais complexa de

apreender visto que o jogo entre continuidade e abandono na obra de Sartre quem

sabe coincida com a metamorfose notória de posicionamento que pode ser detectada

em seus ensaios políticos - idéias sempre em metamorfose em direção às solicitações

de seu tempo20. Deixando de lado controvérsias e exames de paternidade, o que

parece, entretanto, inegável é que, surgida em meio a duas conflagrações mundiais, a

obra multipolar de Sartre parece tatear em regiões diferentes da expressão da

compreensão humana operadores capazes de lidar com os questionamentos não

somente da sensibilidade e da inteligência, mas da realidade imediatamente

contemporânea: a inevitabilidade da liberdade, a recusa do idealismo e da alienação, a

necessidade do engajamento político frente à avassaladora roda irreversível da

história, a complexidade atordoante dos móveis humanos ao criarem-se a si e aos

acontecimentos, o sentido do destino humano. Assim, como não compreender na

20 Merleau Ponty, na carta de ‘rompimento’ de 8 de julho de 1953, por exemplo, alega que Sartre teria “renegado” às idéias contidas em O Ser e O Nada, ao que Sartre responde: “Nem um só momento(...)Todas as teses do Ser e o Nada’ me parecem tão justas(hoje)quanto em 1943. Apenas afirmo que em 43 elas tinham o futuro aberto à sua frente. Repeti-las hoje, sem lhes dar este futuro que elas implicavam, será a um tempo trair meu pensamento de agora e também traí-las.”(Carta de Sartre a Merleau-Ponty de 29 de julho de 1953.)

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literatura Sartre os sinais de uma ética impregnada de interrogações filosóficas acerca

do papel humano na história?

Neste esforço procuraremos esboçar a correspondência entre os

questionamentos éticos que emergem das obras de ficção de Sartre - isto é, no

romance A Náusea, no conto O Muro, na peça Mortos Sem Sepultura, e nas novelas

Sursis e Com a Morte na Alma - e a problemática também ética, que nos esmeraremos

para cautelosamente circunscrever de maneira apenas inicial, em algumas de suas

obras teórica, a saber, A Transcendência do Ego, O Imaginário, Questão de Método,

Verdade e Existência e O Ser e o Nada; nos ensaios políticos O Que é a Literatura?,

A República do Silêncio e Paris sob Ocupação, e ainda, no ensaio biográfico

Baudelaire.

A bem da verdade, no intuito de restringirmos ao máximo o escopo desta

abordagem, nos esforçaríamos, se isto fosse possível, para circunscrever dentro do

plano das questões éticas fornecidas por estas obras de Sartre àquelas intimamente

relacionadas com a compreensão da história. No entanto, a princípio, antecipamos que

esse esforço tende a ser vão, visto que para o filósofo, como veremos, no limite, todo

e qualquer questionamento humano reflui, admita-se ou não, para a problemática do

vínculo entre o indivíduo e a história (mesmo quando apreendida irrefletidamente

apenas como limite para os projetos singulares).

Tratar-se-á de investigar, assim, a partir do entrelaçamento entre obras teóricas

e de ficção, se o obscuro e amargo “destino” das personagens ficcionais de Sartre –

que vivem solitariamente a experiência (que é) conjunta da incompletude – sinalizam

em direção a uma compreensão de algum modo pessimista não somente da existência

individual como também da história entendida como totalidade sempre inacabada das

vivências. Seria este caráter inexplicável e semi-obscuro da existência e da história

que conferiria o “gosto amargo” da “liberdade histórica” que consiste “em

empreender na incerteza e perseverar sem esperança” 21 como comenta o autor de O

Que é Literatura? E afinal: a obscuridade insuperável tanto da história quanto dos

móveis existenciais da ação podem ser considerados subsídios para o “engajamento

político circunstancial” no caso de Sartre?

21 SARTRE, J-P. Que é a Literatura? Ática, São Paulo, 1989, p.166.

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A opacidade na existência e da história seriam os fundamentos mesmos de

uma ética cujo imperativo é o engajamento político continuado - mesmo que

inevitavelmente contingente e, portanto, temerário? Se, para Sartre, “o homem é uma

paixão inútil” 22 talvez também a história assim seja?

Este percurso nos conduzirá ao cerne do problema das vicissitudes do

engajamento que, na perspectiva de Sartre, não impedem a legitimação da violência,

considerada como único meio possível de transformação histórica, como veremos na

leitura sartreana do genocídio de Hiroshima presente na publicação O Fim da Guerra

em Les Temps Modernes, e no roteiro cinematográfico A Engrenagem.

*

22 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. Vozes, São Paulo, 2001, p.750.

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1) Em direção ao concreto

Em Questão de Método, Sartre elabora um diagrama das vias percorridas por

sua geração em direção ao tema da existência concreta. Assinala antes de tudo a

colossal importância de Hegel como desvelador da dialética, capaz da mais ampla

totalização filosófica - na qual “o Saber é elevado à sua dignidade mais eminente” 23-

para em seguida contrapor esta constatação ao elogio de Kierkegaard por sua

determinação em recusar às artimanhas das soluções idealistas do Espírito Absoluto

para o problema do sofrimento humano. O filósofo dinamarquês, para Sartre,

contribuiria decisivamente para deslocar o foco da filosofia, do eixo do saber, para o

do vivido: “o filósofo constrói um palácio de idéias e habita uma cabana”24.

Lembrando Kierkegaard contra o idealismo formalista de Hegel e Kant, Sartre escreve

- “O homem existente não pode ser assimilado por um sistema de idéias.”25

O re-encontro da geração de Sartre com o pensamento de Marx viria de

encontro a esta emergência, de significação sem dúvida conceitual, mas, sobretudo,

existencial, na medida em que, para os pensadores deste período, implicados na

experiência de limiar da guerra e das revoluções proletárias, captar o significado da

história imediata não configuraria mais uma opção entre outras, mas uma exigência

irrecusável: “Tínhamos sido educados no humanismo burguês e esse humanismo

otimista desmoronava, uma vez que adivinhávamos, em torno de nossa cidade, a

imensa multidão de ‘sub-homens conscientes de sua sub-humanidade’, mas sentíamos

profundamente esse desmoronamento de uma forma ainda idealista e individualista:

os autores de quem gostávamos explicavam-nos, nessa época, que a existência é um

escândalo. No entanto, o que nos interessava eram os homens reais com seu trabalho

e sofrimentos; exigíamos uma filosofia que levasse em consideração tudo, sem nos

apercebermos de que ela já existia e era ela, justamente que provocava em nós essa

exigência.”26

Sustentando Marx, acima do idealismo de Hegel e do dilaceramento

insuperável de ressonância cristã de Kierkegaard e contra os próprios historiógrafos

23 SARTRE, J-P. Questão de Método, p.23. 24 idem. 25 idem. 26 idem,p.29.

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marxistas “de plantão” ou “escolástica da justificação”27, Sartre nos lembra que seus

esforços e os de sua geração caminham em direção ao apelo(quase emergencial) por

uma filosofia rigorosa que viabilize pressupostos para a ação, ressaltando o

imperativo do estudo dos homens concretos e suas situações singulares, vivas(núcleo

do que procurará desenvolver como sendo a ‘psicanálise existencial’)como

instrumento talvez capaz de reconstruir o universo intencional dos projetos e

finalidades humanas, metodologia possivelmente inspirada na investigação da

totalidade singular dos processos históricos tal como elaborada originalmente no 18

Brumário de Marx: “Assim, Marx tem razão, simultaneamente, contra Kierkegaard e

contra Hegel, uma vez que afirma, com o primeiro, a especificidade da existência

humana, e uma vez que toma, com o segundo, o homem concreto em sua realidade

objetiva.”28

A bem a verdade é de nosso interesse divisar que a questão que perpassa os

esforços de Sartre como filósofo e escritor de ficção parece ser, afinal, a do

enraizamento do homem no concreto, a começar pela inevitabilidade de estar lançado

na realidade.

O trabalho de Sartre em fenomenologia procura salientar em suas teses

fundamentais em A Transcendência do Ego as características em realidade “práticas”

do ego, ressaltando a inexistência de um eu unificado como estrutura separada da

consciência – suposto refúgio onisciente - notando ao contrário, a translucidez

absoluta da consciência e sua imersão radical no fluxo da exterioridade: “Talvez, com

efeito, a função essencial do Ego não seja tanto teórica como prática. Nós

sublinhamos, com efeito, que ele não encerra a unidade dos fenômenos, que ele se

limita a refletir uma unidade ideal(...)que o seu papel essencial seja encobrir à

consciência a sua própria espontaneidade(...) Tudo se passa como se a consciência

constituísse o Ego como uma falsa representação dela mesma, como se ela se

hipnotizasse com este Ego que ela constituiu, se absorvesse nele, como se ela dele

fizesse a sua vanguarda e a sua lei.”29

A trilha da consciência e do conhecimento de si é a descoberta do nível

irrefletido da vida da consciência - abertura que propicia substituir a concepção rígida

de um sujeito onipotente pela contínua metamorfose de uma consciência que como 27 idem,p.35. 28 idem,p.26 29 SARTRE, J-P, A Transcendência do Ego, p.79.

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um prisma reflete as oscilações da luminosidade exterior e projeta-se em direção a ela.

“Mas pode acontecer que a consciência, subitamente, se apresente no plano reflexivo

puro. Não talvez sem Ego, mas como escapando por todos os lados ao Ego, como

dominando-o e sustentando-o fora dela por uma criação continuada. Neste plano, já

não há distinção entre o possível e o real, visto que a aparência é o absoluto. Já não

há barreiras, limites, nada mais que dissimule a consciência de si mesma. Então a

consciência, apercebendo-se do que poderíamos designar como a fatalidade da sua

espontaneidade, angustia-se repentinamente: é esta angústia absoluta e irremediável,

este medo de si, que nos parece constitutivo da consciência pura(...)”30

Esta descoberta da capacidade extremada de refletir e de projetar-se da

consciência - ao limite da radical insubstancialidade do ego - conduz não a uma

constatação restrita ao nível intelectual, traz em si também, um componente moral

dramaticamente eminente: “a angústia que se nos impõe e que não podemos evitar, é

ao mesmo tempo um acontecimento puro de origem transcendental e um acidente

sempre possível da nossa vida quotidiana.”31

Ao descobrir-se não necessário e indeterminado, isto é, contingente, o homem

passa a reconhecer-se como origem única de seus valores, de seus fins, e de todos os

outros possíveis, implicado irreversivelmente à história e a cada mínimo de seus

acontecimentos, visto que cada decisão tomada aniquila uma infinidade de outras

possibilidades de mundo. Disto resulta que o componente de angústia emerge como

que inevitavelmente da experiência da lucidez tornando-se não coadjuvante, mas

diríamos, formadora mesmo do conhecimento de si.

Assim encontramos na fenomenologia de Sartre uma trilha que conduz

duplamente em direção ao concreto.

No plano teórico do exame da consciência o esforço de Sartre é hercúleo32 -

podar os excessos substancialistas do cogito de Descartes33, eliminar o formalismo do

eu que soçobra da filosofia de Kant, além dos resquícios do solipsismo do pensamento

profundo de Husserl, para tanto, concebe este ego transcendente e volátil capaz de se 30 idem.pp.80,81. 31 idem.81. 32 O que tão somente nos indica a necessidade fundamental de retornar às questões ligadas à fenomenologia para o melhor delineamento destes problemas, dispostos neste momento na forma de meros esboços. 33 “O Eu transcendental deve ficar ao alcance da redução fenomenológica. O Cogito afirma demais. O conteúdo certo do pseudo-cogito não é ‘eu tenho a consciência desta cadeira’, mas ‘há consciência desta cadeira’. Este conteúdo é suficiente para constituir um campo infinito e absoluto para as investigações da fenomenologia.”(A Transcendência do Ego, p.55)

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desmanchar no ar ao menor sinal de interferência, tal como os sólidos de Marx na

fantasmagoria da alienação: um existente entre os demais, refletindo em seu

translúcido vazio as imagens da exterioridade avassaladora e projetando-se em

direção a elas – “se o Eu se torna transcendente, então ele participa de todas as

vicissitudes do mundo(...)O meu Eu , com efeito, não é mais certo para a consciência

que o Eu dos outros homens. Ele é apenas mais íntimo.”34 Com a volatilidade do ego,

o homem vê-se, enfim, amalgamado ao mundo. A fenomenologia surgida sob

inspiração de Husserl para Sartre, deste modo, possui o mérito de reapresentar de

forma irrevogável o elo do homem com o mundo dos objetos e dos outros homens, em

suas palavras, “há séculos não se fazia sentir na filosofia uma corrente tão realista.

Eles voltaram a mergulhar o homem no mundo, deram todo o seu peso às suas

angústias e aos seus sofrimentos, às suas revoltas também.”35

No plano moral, as ‘realizações’ pesam menos que as exigências: tratar-se-á de

nada menos que, parafraseando Hume, despertar os homens de seus sonhos

dogmáticos e idealistas lançado-os sem subterfúgios ou reservas na história, em que já

estão inevitavelmente implicados, mesmo que irrefletidamente. O saber trazido pela

fenomenologia, assim, permitiria uma primeira fresta que possibilitaria re-avaliar a

dimensão verdadeiramente histórica do homem: mesmo que ao custo de sua angústia

perpétua36.

*

34 idem,p.82. 35 idem,p.82. 36 “Nada mais é preciso para fundamentar uma moral e uma política absolutamente positivas.”(idem,p.83.)

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2) O desvelo da contingência:

Como num espelho na qual a teoria se refletisse, o itinerário do

reconhecimento de si vivenciado pela personagem Antoine Roquentin de A Náusea

guarda uma notável consonância com as descobertas acerca do caráter prático do ego

e da fluidez da consciência que vimos, ainda que de relance, surgir da fenomenologia

sartreana em A Transcendência do Ego.

Os primeiros indícios de lucidez surgem concomitantemente com o

nascimento da inquietação e da angústia da personagem ao perceber-se interiormente

dotado de uma inquietante plasticidade que detecta nos objetos e pessoas a seu redor.

São os sinais de que a consciência estando lançada à realidade é suscetível das

metamorfoses que nela detectamos.

“Esta manhã, na biblioteca, quando o Autodidata veio me cumprimentar, levei dez

segundos para reconhecê-lo. Via um rosto desconhecido, apenas um rosto. E depois

havia sua mão, como se fosse um grande verme branco, em minha mão. Soltei-a logo

e o braço descaiu frouxamente.

Também nas ruas há uma quantidade de ruídos estranhos que persistem.

Portanto, ocorreu uma mudança durante essas últimas semanas. Mas onde? É uma

mudança abstrata que não se fixa em nada. Fui eu que mudei? Se não fui eu, então

foi esse quarto, essa cidade, essa natureza; é preciso decidir.

Acho que fui eu que mudei: é a solução mais simples. A mais desagradável

também. Mas enfim tenho que reconhecer que sou sujeito a essas transformações

súbitas. O que acontece é que penso muito raramente; então, uma infinidade de

pequenas metamorfoses se acumulam em mim, sem que eu me dê conta, e aí, um belo

dia, ocorre uma verdadeira revolução. Foi isso que deu à minha vida esse aspecto

vacilante, incoerente.”37

As vivências “vacilantes e incoerentes” de Roquentin na pequena cidade de

Bouville onde se encontra com a finalidade de escrever uma biografia de uma

personalidade histórica local, - o Marquês de Rollebon -, constituem ocasião para a

descrição da experiência da contingência, com os aspectos existenciais e morais que

ela comporta. É a solidão de notar-se um mero objeto cambiante entre os demais que

37 SARTRE, J-P, A Náusea. p.18.

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desencadeia a sensação de desconforto exemplar dos primeiros questionamentos sobre

o sentido de estar no mundo: “Agora vejo; lembro-me melhor do que senti outro dia,

junto ao mar, quando segurava aquela pedra. Era uma espécie de enjôo adocicado.

Como era desagradável! E isso vinha da pedra. Tenho certeza, passava da pedra

para as minhas mãos. Sim, é isso, é exatamente isso: uma espécie de náusea nas

mãos.”38

Esta ‘promiscuidade’ entre os sentimentos humanos e as coisas do mundo é

freqüentemente reiterada pela trajetória de auto-reconhecimento de Roquentin: o

percurso do conhecimento de si se dá por intermédio do reconhecimento de estar entre

as coisas, ser entre elas. O que se dá aqui é, como que uma expressão narrativa de

uma idéia fundamental aventada por Husserl: a intencionalidade. Para Sartre, na

esteira da leitura de Husserl “a consciência e o mundo são dados de uma mesma

cena: exterior por essência à consciência, o mundo é, por essência relativa a ela.”39

Sartre recorre à popular expressão “comia com os olhos” para diferenciar o

empreendimento husserliano das demais filosofias da consciência a que chama de

“filosofia alimentares”, pelo hábito comum, do idealismo ao realismo de considerar o

conhecimento como um derivado do ato de “comer”, isto é, de dissolver o real na

“baba” da consciência: “A filosofia francesa depois de cem anos de academicismo,

está ainda aí. Nós todos lemos Brunschvicg, Lalande e Meyerson, e todos cremos que

o Espírito-Aranha, atirava nas coisas sua teia, os cobria de uma baba branca e

lentamente os deglutia, as reduzindo à sua própria substância. Que é uma mesa, um

rochedo, uma casa? Um certo conjunto de conteúdos de consciência>>, uma ordem

destes conteúdos.”

Esta doutrina “digestiva” do conhecimento que busca unificar e reduzir o

mundo a uma ordenação arbitrária, está de algum modo presente no inicio da

trajetória de Roquentin, pois a tentativa de unificação de suas impressões na forma do

diário já metaforiza de algum modo esta compartimentação e assimilação própria da

tradição. Mas é sem dúvida a figura do Autodidata – que devota sua vida em

exaurindo em ordem alfabética os conteúdos da biblioteca - que no romance

simboliza de maneira definitiva esta concepção tradicional de que o conhecimento é

uma forma prosaica de assimilação: “As leituras do Autodidata sempre me

38 idem.p.27. 39 SARTRE, J-P. Une idéee fondamentale de la phénomenologie de Husserl: l’intencionalité, p,30.

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desconcertam. De repente voltam à minha memória os nomes dos últimos autores

cujas obras consultou: Lambert, Langlois, Larbalétrier, Lastex, Lavergne. É uma

iluminação; entendi o método do Autodidata: instrui-se por ordem alfabética.

Contemplo-o com uma espécie de admiração. Que vontade tem que ter para

realizar lentamente, obstinadamente, um plano de envergadura tão vasta! Um dia, faz

sete anos (ele me disse que estudava havia sete anos), entrou com grande pompa

nessa sala. Percorreu com o olhar os inúmeros livros que cobrem as paredes e deve

ter dito, mais ou menos como Rastignac: ‘Agora nós, Ciência Humana.’ Depois foi

pegar o primeiro livro, da primeira prateleira da extrema direita; abriu-o na

primeira página, com um sentimento de respeito e terror, acompanhado de uma

decisão inquebrantável. Atualmente está na letra L. K depois do J, L depois de K.

Passou brutalmente do estudo dos coleópteros para o da teoria dos quanta, de um

obra sobre Famerlão a um panfleto católico contra o darwinismo: em momento

algum se desconcertou. Leu tudo; armazenou em sua cabeça a metade do que se sabe

sobre a partenogênese, a metade dos argumentos contra a vivisseção. Atrás dele,

diante dele, há um universo. E se aproxima o dia em que dirá, fechando o último

volume da última prateleira da extrema esquerda: ‘E agora?’ É a hora de seu lanche;

come, com ar cândido, pão e uma barra de Gala Peter. Baixou as pálpebras e assim

posso contemplar à vontade seus belos cílios recurvos cílios de mulher. Exala um

cheiro de tabaco velho ao qual se mescla, quando respira, o perfume doce do

chocolate."40

Em Roquentin, alguma coisa se partiu. Algo o distancia daquela determinação

com a qual, como o Autodidata, se lançava anteriormente, sedento, sobre a biblioteca

como se sobre um manancial inexpugnável de sentido. Seu olhar o encaminha para as

coisas, para o mundo que pastoso se diluí ao seu contato e no qual está imerso; para o

desconforto instalado numa exterioridade avassaladora que nem o casulo monástico

das bibliotecas poderia expugnar: “A Náusea está em mim: sinto-a ali na parede, nos

suspensórios, por todo lado ao redor de mim. Ela forma um todo com o café: sou eu

que estou nela.”41

Em Roquentin se dá a expressão narrativa da intencionalidade como modo de

apreensão do homem no real. O mundo não poderia ser digerido pela consciência

40 Idem, pp 53-4. 41 Idem, p.39

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como imagina o idealismo solitário do Autodidata; é a inscrição do existente entre os

seres, lançado à exterioridade, que se desvela como a forma almejada de um

conhecimento, e não à diluição ‘amorfa’ da singularidade na baba unificadora do

Espírito: “Husserl não deixa de afirmar que não se pode dissolver as coisas na

consciência. Vês esta árvore aqui. Mas a vês no lugar mesmo onde ela está: ao lado

da estrada, no meio da poeira, só e bizarra ao calor, a vinte léguas da costa

mediterrânea. Ela não entrará na sua consciência, pois ela não é da mesma natureza

que ela. Crês reconhecer aqui reconhecer Bérgson e o primeiro capítulo de Matéria e

Memória. Mas Husserl não é de forma nenhuma realista: esta árvore sobre seu

pedaço de terra alquebrada não é um absoluto que entraria , por detrás, em

comunicação conosco. A consciência e o mundo são dados de uma mesma cena:

exterior por essência à consciência, o mundo é, por essência relativa a ela. É que

Husserl vê na consciência um fato irredutível que nenhuma imagem física pode

satisfazer. Conhecer , é ‘eclodir em direção a’, extirpar a menor intimidade gástrica

para espreitar, lá embaixo, ao pé da árvore mas entretanto fora dela pois ela me

escapa e me repulsa e tanto não posso me perder nela quanto ela não pode se diluir

em mim: fora dela, fora de mim. Vocês não reconhecem nesta descrição vossas

exigências e vossos pressentimentos.? Sabeis que à árvore não são vocês, que vocês

não poderiam fazê-las entrar nos vossos sombrios estômagos e que o conhecimento

não poderia ser sem desonestidade, sem comparar à possessão. De chofre, a

consciência está purificada, ela é ampla como um vento forte, não mais nada nela,

salvo o movimento de fugir de si, um deslize fora de si; si por mais impossível ,

entrásseis <numa> consciência, serieis varridos por um turbilhão e jogados para

fora, ao pé da árvore, em plena poeira, pois a consciência não tem um< dentro>, ela

não é senão o de fora de si mesmo, e é esta fuga absoluta, esta recusa de ser

substância que a constitui como uma consciência.”42

É este reconhecimento, ainda que disposto como que na penumbra do

horizonte da personagem, da consciência como fuga de si em direção à exterioridade,

que está metaforizada pela eterna fuga de Roquentin de seu ‘objeto’ de estudo – o

findo, Rollebon. Esta fruição com o qual se lança à perscrutação mórbida dos

habitantes da cidade, a observação atenta da mecânica da rotina estabelecida na vida

singela destes pequenos cidadãos, a maçaneta pegajosa da porta do quarto, nos repõe

42 SARTRE, J.P. Une idéee fondamentale de la phénomenologie de Husserl: l’intencionalité, p.30.

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numa simbologia que retira dos objetos seu substrato: qualquer forma da exterioridade

desconfortável na qual se Roquentin está imerso é mais ilustrativo da verdade que

busca, ainda que irrefletidamente, do que qualquer das curiosas preciosidades

poeirentas contidas na enciclopédia do Autodidata.

Talvez seja nesta perspectiva que se possa compreender o mundo em estado

de decomposição que Sartre recria na atmosfera d’A Náusea. É como se toda a

familiaridade com que a princípio Roquentin envernizava as coisas, dotando-as de

sentido e fixidez se esvaísse, dando lugar à revelação da superficialidade radical da

vida que tem por signo a inexistência de nada além do cambiante mundo fenomênico

cuja sua suposta ‘interioridade’ faria parte – “Pode-se dizer como Pascal, que o

hábito é uma segunda natureza?”43: “Deitei um olhar ansioso à minha volta:

presente, nada mais do que o presente. Móveis leves e sólidos incrustados em seu

presente, uma mesa, uma cama, um guarda-roupa - e eu mesmo. Revelava-se a

verdadeira natureza do presente: era o que existe, e tudo que não era presente não

existia. De modo nenhum. Nem as coisas, nem sequer o meu pensamento. Decerto

havia muito tempo que eu tinha compreendido que o meu me tinha escapado. Mas

julgava, até então, que se tinha retirado do meu alcance.(...) Agora compreendia: as

coisas são exatamente o que parecem – e por trás delas... não há nada.”44

A sensação de instabilidade se acentua quando Roquentin decide abandonar o

projeto de escrever a biografia que pretendia do Marquês de Rollebon. Este projeto

afinal configurava um último elo de Roquentin com o sentido de sua vida e mesmo de

suas relações com o mundo que até então se encontravam como que mediadas pela

função de tornar o Marquês “existente”. Ao decidir romper com este projeto,

Roquentin nota a pura intencionalidade da “existência” do Marquês que “existia”

apenas enquanto projeto “para ele”, tornando-se agora um nada, assim como ele

próprio, de agora em diante, absolutamente vazio em sua frouxa disponibilidade: “E

eu já não dava porque existia; já não existia em mim, mas nele; era para ele que

comia, para ele que respirava; o sentido dos meus movimentos era-me exterior,

estava ali, precisamente em frente a mim – nele (...) Eu era apenas um meio de o

43 idem.p.61 44 idem.p.95.

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fazer viver, a minha razão de ser era ele: o Marquês me havia libertado de mim. Que

hei de fazer agora? ”45

Roquentin usava como subterfúgio para a indeterminação da própria vida a

totalidade aparentemente acabada de uma personagem do passado, alienando-se assim

da instabilidade do presente na cristalização de um passado morto, que a princípio

tentara de maneira vã recuperar objetivamente.

A angústia que acompanha este ver se abandonado ao próprio destino é, afinal, o

temor do re-encontro de si na condenação da liberdade originária, sem o refúgio de

um passado já encerrado. Aqui a interpretação de Leopoldo e Silva torna-se

insubstituível em sua clareza explicativa: “Livre do Marquês e de volta a si, há algo

que o espreita: ele mesmo. ‘A coisa, que estava à espera, deu o alerta, precipitou-se

sobre mim, vaza-se em mim, estou cheio dela. – Não é nada, A Coisa sou eu. A

existência, liberta, despida, refluiu sobre mim. Eu existo.’46 A descoberta da

existência é ao mesmo tempo a dor de se sentir abandonado por aquilo que nos

protegia da contingência. Mas uma vez assim capturados pela verdade, sabemos, a

partir de então, que a existência tem de ser vivida, não pode ser objetivada ou

transferida.”47

Deste modo, re-encontramos na ficção de Sartre, para Leopoldo e Silva, tal

como num reflexo, em primeiro lugar, a narrativa daquele deslocamento da pura

espontaneidade da consciência para um ego “prático” artificialmente construído como

uma couraça contra a fluidez radical de que fala a análise presente na Transcendência

do Ego. “Vemos aí a mesma inversão na gênese da subjetividade. Roquentin

projetara um Eu fora de si e o tentara tomar como causa e origem de si próprio, para

ter ali um abrigo contra a espontaneidade e a contingência, no qual repousava o

sujeito falsamente constituído.”48 Depois, e não menos importante podemos divisar

em A Náusea a primeira formulação narrativa para a questão da historicidade

inevitável do homem, dada pela inalienabilidade de sua existência - pelo fato de estar

à sua revelia, lançado “na poeira seca do mundo, sob a terra rude, por meio das

coisas; imaginem que somos assim devolvidos, abandonados pela nossa natureza

mesma num mundo indiferente, hostil e renitente.”49 “Ser, é ser-no, no sentido do

45 idem.pp.148-49. 46 idem.p. 149. 47 SILVA, F-L. Ética e Literatura em Sartre – Ensaios Introdutórios. p.46. 48 SARTRE, J.P. A Náusea. Trad.Nova Fronteira. idem.46-47. 49 SARTRE, J.P. Une idéee fondamentale de la phénomenologie de Husserl: l’intencionalité, p.31.

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movimento. Ser, é eclodir no mundo, é partir de um nada de mundo e da consciência,

para eclodir-consciência-no-mundo(...)<toda consciência é consciência de alguma

coisa.”50

É no sentido de exprimir o que talvez seja a primeira formulação narrativa

para a questão da condenação da liberdade que podemos compreender a re-

formulação (narrativa) de Sartre para o cogito cartesiano em A Náusea: ao contrário

de elevar-se sobre a dubiedade da existência como realidade ideal, notar-se atrelado

incessantemente à transitoriedade absurda do mundo como que por uma corrente

inextrincável: “ Se ao menos eu pudesse parar de pensar, já não seria mau. (...)

Existo. Penso que existo (...) Se pudesse fazer com que não pensasse! Tento, consigo:

tenho a impressão de que a cabeça se me enche de fumaça... mas eis que tudo

recomeça: fumaça... não pensar... não quero pensar... penso que não quero pensar.

Não posso pensar que não quero pensar. Porque isso mesmo é um pensamento

(...)Existo porque penso... e não posso deixar de pensar. Nesse momento preciso – é

odioso – se existo é porque tenho horror a existir. Sou eu, sou eu que me extraio do

nada a que aspiro: o ódio à existência, a repulsa pela existência, são outras tantas

maneiras de a cumprir, de mergulhar nela.”51

Constatações como a deste cogito sombrio anunciado por Roquentin

colaboram sem dúvida para a rotulação de excessivamente pessimista que muitas

vezes pairou sobre o primeiro romance de Sartre. Camus nos parece privilegiado

precursor desta crítica, notando em sua resenha para o Alger Republicain de 12 de

março de 1939, a profunda desesperança que encontrou na brilhante estréia de Sartre

como ficcionista: “Constatar o absurdo da vida não pode ser um fim, mas apenas um

começo. Esta é uma verdade da qual partiram todos os grandes espíritos. Não é esta

descoberta que interessa, e sim as conseqüências e as regras de ação que se tira

dela.”52

De fato não encontramos no final de A Náusea nenhuma definição conclusiva

de Roquentin acerca de sua vida imediata, nenhum sinal de recuperação da

estabilidade existencial por meio de qualquer projeto determinado, nenhuma regra de

ação como gostaria Camus, nenhuma evolução moral significativa a não ser

50 idem. p.31.(Trad. Nova Fronteira) 51 SARTRE, JP. A Náusea.pp. 150-51. 52 CAMUS, A. A Inteligência e o Cadafalso. p.136.

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propriamente a virtude de espantar-se diante do esvaziamento total do sentido

profundo da existência.

Seremos infiéis, entretanto, esquecendo a insinuação ainda que tácita recolhida

nas experiências de Roquentin com a música, de uma possibilidade de ser, ao invés de

simplesmente existir, por meio da realização cristalizada na obra de arte, como se, de

algum modo, a obra permitisse um escape ainda que taciturno do artista para a

questão da contingência na qual está implicada a questão mesma da razão de existir:

“A negra canta. Pode-se então justificar a nossa existência?Mesmo que seja só um

pouco?”53

A partir da angustiosa experiência da contingência radical se insinua ainda que

de modo opaco no horizonte da personagem a questão da prerrogativa absoluta do

homem como criador e instituidor de valores: “O homem segurava molemente o lápis,

e dos seus dedos com anéis caíam gotas de suor sobre o papel. E por que não eu?”54

De certo que à atitude de Roquentin está bem longe de alguém que tenha

chegado ao final de um itinerário; talvez sequer fosse necessário dizer que o

conhecimento da consciência não se deu de todo, não chegou a um término, nem

conceitual, nem moral. Antoine não se decide a ser criador, nem mesmo se apercebe

de que o exercício da imaginação poderia conferir-lhe um sentido à liberdade. A

indagação repercute e se confunde com a ação numa indistinção que talvez sinalize

para o único imperativo possível do homem que se depara com a condenação de

existir, a saber, ‘empreender na incerteza e perseverar sem esperança’55: “Sou eu que

vou levar essa existência de cogumelo? Que farei de meus dias?”56(...) “Vou-me

embora sinto-me vago. Não me atrevo a tomar uma decisão. Se tivesse certeza de ter

talento...”57

Os questionamentos insolúveis perduram em visível contraste com a

fragilidade das possibilidades de realização: o comentário de Camus põe em relevo a

inconsistência da saída do primeiro Sartre para o sentido da vida que, segundo ele, ou

resvalaria, como vimos, num pessimismo niilista, ou diluiria o peso da constatação do

absurdo numa ética fundada na realização pessoal falaz e digna de ironia: “No final

desta viagem para as fronteiras da inquietação, Sartre parece permitir uma

53 SARTRE, JP. A Náusea.p.257. 54 idem.p.256. 55.SARTRE, J-P. O Que é a Literatura, p.166. 56 SARTRE, J-P. A Náusea.p, 251. 57 idem.p.258.

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esperança: a do criador que se liberta ao escrever. Da dúvida primitiva, talvez surja

um ‘Escrevo, logo sou’. E não podemos deixar de encontrar uma desproporção inte-

ressante entre esta esperança e a revolta que a fez nascer. Isto porque, afinal, quase

todos os escritores sabem quanto sua obra não é nada diante de certos minutos.”58

De um ponto de vista restrito Camus talvez tenha mesmo razão sobre o

suposto pessimismo desesperançado do romance de Sartre. Algumas de suas

passagens nada ficam a dever às desesperançadas descrições que encontramos nos

pessimistas clássicos59. Seria necessário esperar as outras narrativas de Sartre bem

como o desdobramento de suas obras teóricas para compreender A Náusea como um

momento na articulação do equacionamento do problema da liberdade em sua

expressão narrativa. Em O Muro, e nos Caminhos da Liberdade, sob o impacto da

situação - limite da guerra, a narrativa de Sartre procurará exprimir o caráter

irrecusável do compromisso humano com a história.

*

58 CAMUS, A. A Inteligência e o Cadafalso. p.136. 59 “Para que tantas árvores toda iguais ?Tantas existências fracassadas e obstinadamente fracassadas e novamente fracassadas – como os esforços desajeitados de um inseto caído de costas?(...)Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso.”(A Náusea,p.197.)

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3) A condenação à liberdade:

“Nunca fomos tão livres do que sob ocupação alemã.”60

Em agosto de 1944, sob o impacto da liberação de Paris, o artigo de Sartre

Republica do Silêncio publicado na revista Lettres Françaises reflete com clareza a

consternação que cerca o paradoxo que envolve a liberdade. Como compreender que

seja preciso viver a experiência do mal radical para que o homem re-encontre sua

liberdade? Que o aprisionem para que se reconheça livre e inventor dos valores?

A ocupação alemã da França é o esteio mesmo desta descoberta. Neste

período, como nota o escritor, a inevitabilidade do posicionamento ético diante da

história, transpareceu até nos menores gestos: “Nós perdemos todos os nossos direitos

e, de começo, o de falar(...)Visto que o fel nazista se colava até em nossos

pensamentos, cada pensamento justo era uma conquista; visto que uma policia toda

poderosa procurava nos obrigar ao silencio, cada palavra tornara-se preciosa como

uma declaração de princípio; visto que estávamos encurralados, cada um de nossos

gestos possuía o peso de um engajamento(...)E não me refiro aqui a esta elite que

foram os verdadeiros Resistentes, mas a todos os franceses que todas as horas do dia

e da noite , durante quatro anos disseram não. ”61

Postos diante do mal absoluto, da atrocidade, do medo da morte violenta, os

franceses experimentaram em conjunto a situação limite que lança inevitavelmente o

homem na emergência da criação de valores: “(...)quem conhecia quaisquer detalhes

que interessavam à Resistência se perguntava com angústia: <<se me torturam

resistirei ao golpe?>>Assim a questão mesma da liberdade foi colocada e nós

estivemos na iminência do conhecimento mais profundo que o homem pode ter de si

mesmo. Pois o segredo do homem, não é o seu complexo de Édipo ou de

inferioridade, é o limite mesmo de sua liberdade, é o seu poder de resistência aos

suplícios e à morte.”62

Para Sartre a experiência do engajamento durante a ocupação é ainda mais

exemplar da invenção da liberdade quando é analisada em detalhe a experiência do

cárcere dos resistentes, onde, na solidão e na noite, defendiam, malgrado a própria

vida, suas escolhas: “Àqueles que tinham uma atividade clandestina, as

60 SARTRE, J-P. Situations III – La Republique du Silence,p.11. 61 idem.p.11-12. 62 idem.p.12-13.

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circunstâncias de sua luta pertenciam a uma experiência nova: eles não combatiam

‘às claras’, como os soldados; encurralados na solidão, presos na solidão, é no

abandono(délaissement), no despojamento mais completo que eles resistiam às

torturas: sós e nus diante de carrascos bem barbeados, bem nutridos e bem vestidos

que zombavam de sua carne miserável(...)Não obstante, na mais profunda desta

solidão, estavam os outros, todos os outros, todos os camaradas da resistência que

eles defendiam; uma só palavra bastaria para provocar dez, cem prisões. Esta

responsabilidade total na total solidão não é o desvelamento de nossa liberdade

mesma?”63

“Imagine-se certo número de homens presos e todos condenados à morte, vendo

uns degolados diariamente diante dos outros e os que sobram vendo sua própria

condição na de seus semelhantes e se contemplando uns aos outros com tristeza e sem

esperança, à espera de sua vez. Eis a imagem da condição dos homens.”64

Se para o pessimismo clássico de Pascal imaginar a morte significa anular a

fantasmagoria do presente em função de uma visão mais abrangente da insignificância

e contingência da vida humana, o que sinaliza, ainda que negativamente para

necessidade de uma assunção plena ao valor da “verdadeira religião”, para Sartre, ao

contrário, a experiência da morte iminente fornecida pelos carrascos da guerra

concede uma horrenda demonstração da dimensão histórica do mal e do valor

inalienável da liberdade. São unicamente as escolhas humanas que dão origem à

barbárie. Apenas as escolhas humanas podem impedi-la. “As circunstâncias

freqüentemente atrozes de nosso combate nos puseram vivendo por nós mesmos, sem

disfarce e sem véu, esta situação dilacerada, insustentável que se chama a condição

humana. O exílio, a prisão, a morte sobretudo que se mascara habilmente nas épocas

felizes,nós os fazíamos os objetos perpétuos de nossas preocupações(...)a cada

segundo nós vivíamos na plenitude do sentido esta pequenina frase banal<<Todos os

homens são mortais>>E a escolha que cada um fazia de si mesmo era autêntica pois

se fazia em presença da morte.”65

É sob o signo, afinal, de um duplo paradoxo, da liberdade re-encontrada

através do confinamento e – como veremos - do imperativo do engajamento malgrado

a contingência e a incompreensibilidade da história que se encontra o conto O Muro

63 idem. p.13. 64 PASCAL, B. Pensamentos, (Br.199) 65 SARTRE, J-P. Situations III – La Republique du Silence,p.12.

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que parece buscar a representação narrativa da ingrata condenação à liberdade

experimentada sem disfarces nas situações limite trazidas pela guerra. “Jogaram-nos

numa grande sala branca e meus olhos começaram a piscar porque a luz os

magoava. Vi, logo depois, uma mesa e quatro sujeitos atrás dela(...)Os guardas

conduziam os prisioneiros, um após outro, para diante da mesa. Os quatro sujeitos

perguntavam-lhes então o nome e a profissão: quase sempre ficavam nessas

perguntas - ou então indagavam: ‘Tomou parte na sabotagem das munições?’"66

No conto de Sartre datado de 1939 os dramas dos cárceres fascistas franceses

estão antecipados no retrato de um cenário típico da guerra civil espanhola. Pablo

Ibbieta, Tom Steinbock e Juan Mirbal estão confinados aos cárceres fascistas e

aguardam, impotentes, o encerramento de seus destinos: “ – E agora?

- O que?

- Foi um interrogatório ou um

julgamento?

- Julgamento – responde o guarda.

- E então? O que eles vão fazer de

nós?

- O guarda respondeu secamente:

- Vocês receberão a sentença nas

celas.”67

Na iminência da morte violenta as personagens de Sartre refletem cada um a

seu modo a experiência do medo da finitude e do questionamento acerca do sentido de

existir.

Sabendo-se inocente, Juan – jovem irmão de um ativista - lamenta sua má

sorte fazendo de sua expectativa um longo calvário de auto- piedade. Lamenta-se por

se encontrar numa situação a qual julga não pertencer e permanece como que solitário

em meio aos demais prisioneiros, aguerrido à suposta inocência, amaldiçoando o

sacrifício de sua juventude. Sua presunção de inocência mesclada à revolta e ao medo

o interditam ao pensamento da morte: “- Não quero morrer! Não quero morrer!

Correu por todo o porão, levantando os braços , depois atirou-se, em soluços, sobre

66 SARTRE, J-P. O Muro. p.9. 67 idem.p.10.

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uma esteira.(...)Ele chorava – eu percebia que ele tinha piedade de si próprio; não

pensava na morte.”68

Com o irlandês Tom, disposto, a princípio, a sorver até o último trago da aventura

da insurreição, a experiência da morte próxima é radicalmente diversa. Muito embora

não se presuma inocente e não conteste nem por um átimo a legitimidade de sua

execução sumária, Tom, de começo, não consegue aproximar-se da idéia de que vai

morrer, e seu despertar para a avaliação da real dimensão do conteúdo deste

desaparecimento, será, dentro da cronologia da narrativa, lento e penoso: “Tom

começou a falar:

- Você liquidou uns sujeitos, não? - perguntou-me. Não respondi. Ele então

começou a explicar-me que havia liquidado seis desde o início do mês de agosto;

não se dava conta da situação e eu percebia que ele não queria dar-se conta. Eu

mesmo não avaliava tudo perfeitamente, perguntava-me se íamos sofrer muito,

pensava nas balas, imaginava sua passagem ardente através do meu corpo. Tudo

aquilo estava fora da verdadeira questão, mas me sentia tranqüilo. Tínhamos a

noite toda para pensar.”69

Aventureiro solitário70 o irlandês Tom, pouco a pouco, procura acercar-se da

idéia de que vai desaparecer. A bem da verdade, nós leitores pressentimos através de

Ibbieta de que a sensação da morte já o preencheu por inteiro de modo a anulá-lo

antecipadamente como realidade. Ibbieta mais consciente do mesmo fenômeno de

anulação antecipada consigo mesmo não evita fitar o companheiro “moribundo”:

“Tom começou a falar em voz baixa. Era preciso que ele falasse sempre sem o que

não se reconheceria . Penso que era a mim que ele se dirigia, mas não me olhava.

Sem dúvida tinha medo de me ver suarento e cor de cinza; estávamos iguais e mais

terríveis do que espelhos, um para o outro. Ele olhava o belga, o ‘vivo’. -Você

compreende? - perguntava ele.

- Eu não compreendo nada...”71

Para procurar compreender que morreria, Tom, assim como Ibbieta, a

princípio persegue a experiência imaginária de ser morto, até notar que a experiência

de ser morto é ainda uma experiência de vida e não guarda proporção com a

68 idem.p.27. 69 idem.14. 70 idem..25. 71 idem.21

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experiência da morte que é a do desaparecimento completo do mundo por ele

formulado:

“- Sou capaz de ter coragem, mas seria preciso ao menos que eu soubesse. . . Escute,

vão. nos levar para o pátio. Os sujeitos vão se postar diante de nós. Quantos serão?

- Eu não sei. Cinco ou oito. Mais do que isso, não.

Muito bem. Serão oito. Ouve-se um grito: ‘Apontar’, e eu verei oito fuzis

apontados para mim. Penso que desejarei penetrar no muro; empurrarei o muro com

as costas e toda a minha força e o muro resistirá, como nos pesadelos. Posso

imaginar tudo isso. Ah! Se você soubesse como posso imaginar.

-Eu também o imagino.

- Deve ser horrível. Você sabe que eles fazem pontaria nos olhos e na boca, para

desfigurar o sujeito? - perguntou. - Eu já estou sentindo os ferimentos; há uma hora

que estou com dores na cabeça e no pescoço. Não são dores verdadeiras, o que é

pior; são as dores que eu vou sentir amanhã. E depois?” 72

O esforço de Tom de aproximar-se do sentido de sua vida só antecipa pela via

da negação do real pelo imaginário à morte que se anuncia: quanto ao mistério da

fantasmagoria da vida, este permanece intocado: “- É como nos pesadelos -

continuava Tom. Quer-se pensar em alguma coisa e tem-se o tempo, todo a impressão

de que afinal a gente vai compreender, mas não, a coisa desliza, escapa, cai. Digo

para mim mesmo: depois, não haverá mais nada. Não compreendo, porém, o que isso

quer dizer. Há momentos em que quase chego a decifrar...e depois isso me escapa,

recomeço a pensar nas dores, nas balas, nas detonações. Sou materialista, juro-lhe; e

não estou ficando louco. Há alguma coisa porém que está destoando. Vejo meu

cadáver; isto não é difícil, mas sou eu que o vejo, com meus olhos. Seria preciso que

eu chegasse 'a pensar. . . a pensar que não verei mais nada, que não ouvirei mais

nada e que o mundo continuará para os outros. Não somos feitos para' pensar nisso,

Pablo.”73

Assim como Roquentin, Tom e Ibbieta experimentam a náusea da

contingência, não lenta e docemente como o gradual semi-despertar do primeiro, mas

de maneira súbita e exterminadora, como num rajar de metralhadoras. A perspectiva

da morte futura transborda anulando de antemão o presente, transformando as

personagens em cadáveres adiados. Por isso Ibbieta encara o médico fascista belga 72 idem. p.19 73 idem.p.20

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como “o vivo”: ele próprio e seus companheiros de destino já estão mortos, pois o

presente já não lhes diz respeito se lhes falta qualquer possibilidade de futuro ou de

realização de projetos. Sem finalidade ou projetos os prisioneiros retornam à

contingência originária, ao fluxo da fantasmagoria74.

Talvez seja possível compreender através desta iluminação recíproca entre as

narrativas d’A Náusea e d’O Muro a razão do despertar vacilante de Roquentin.

Resguardado por uma vida burguesa, a história, por assim dizer, ainda não caíra sobre

ele, como desaba sobre as personagens da guerra civil espanhola. A morte, afinal, não

refluíra ainda sobre a vida do ex-sócio75do Marquês de Rollebon.

Neste ponto restrito o diagnostico de Sartre não parece diferir da anatomia moral

do pessimismo clássico, como por exemplo, no caso de Pascal, pois para ambos a

perspectiva e o pensamento da morte é que desencadeia a lucidez, comprometendo o

estatuto positivo da vida, re-significando a existência em termos de negatividade e de

incompletude76.

Para Sartre, como se parece poder notar a partir da contundência com que reflete

sobre esta questão através de suas personagens em O Muro, na iminência da morte, a

simples perspectiva do desaparecimento é suficiente para inundar com seu nada todo

o conjunto da experiência humana, relativizando assim o sentido da vida, incluindo o

senso profundo do engajamento histórico. É a voz de Ibbieta quem mais se aproxima

de exprimir o drama da incompletude da existência: “Revi a fisionomia de um

novillero que levara uma chifrada em Valência durante a Feria, o rosto de um de

meus tios, e o de Ramón Gris. Lembrei-me de alguns episódios: como passei quando

estive desempregado durante três meses em 1926, como escapei de morrer de fome.

Recordei-me de uma noite passada sobre um banco, em Granada; havia três dias que

74 É no esforço de reconhecer-se ainda existente, quebrando a sensação de irrealidade do universo, que, nos seus minutos finais de vida, Tom põe-se a morder o braço “do vivo.”(O Muro, p.23)Tratar-se-ia da desesperada tentativa de assegurar-se de que o universo realmente permanecerá, à revelia de seu desaparecimento. 75 Na medida em que delegara sua vida ao Marquês, Roquentin entende-se como que “sócio” do passado. 76 A imaginação em Pascal também é, em certo sentido, o recurso através do qual se dilui o verniz de eternidade do presente: é assim um negador do real imediato, mas um construtor de uma imagem mais totalizadora da experiência humana (L.163-Br.200) “Imagine-se um homem na prisão, não sabendo se sua sentença foi pronunciada e tendo apenas uma hora para sabê-lo, e bastando essa hora, se soubesse que foi sentenciado, para obter a revogação da pena. Seria contra a natureza que ele empregasse essa hora em jogar cartas em lugar de tentar informar-se acerca da sentença.” O mesmo ocorre com a experiência imaginativa da desproporção humana diante das magnitudes do universo no célebre fragmento do duplo infinito(Pensamentos; Edição Brunshvicg.72-Lafuma .199).

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não me alimentava, sentia-me enraivecido e não queria morrer. Aquilo me fez sorrir.

Com que ansiedade eu corria atrás da felicidade, atrás das mulheres, atrás da

liberdade...A troco de quê? Tinha querido libertar a Espanha, admirava Pi y

Margall, aderira ao movimento anarquista, discursava em comícios: levava tudo a

sério, como se fosse imortal.

Nesse momento pareceu me ter toda a vida pela frente e pensei: ‘É uma grande

mentira.’ Não valia nada, pois havia acabado. Perguntei-me como tinha conseguido

passear, divertir-me com mulheres; não teria mexido um dedo se houvesse

imaginado que iria acabar desse jeito. Tinha toda a vida diante de mim, fechada

como um saco, e entretanto tudo quanto estava lá dentro continuava inacabado.

Tentei, num momento, julgá-la. Quisera dizer foi uma bela vida. Mas não se podia

fazer um julgamento, pois ela era apenas um esboço; havia passado o tempo todo a

fazer castelos para a eternidade, não compreendera nada.”77

A magnitude intransponível da barreira da morte relativiza o sentido dos

empreendimentos. Nos minutos de medo anteriores ao que considerava o desfecho de

sua vida, Ibbieta - homem feito que se alçara da pobreza, amara as mulheres, fizera

política e finalmente pegara em armas para lutar ao lado dos seus pela liberdade -

encontrava-se em seu exame de consciência tão desamparado e incompleto quanto o

garoto Juan que lamentava copiosamente sua tenra juventude ceifada. A descoberta da

contingência traria consigo a certeza de que, diante da morte eminente, todos os

destinos se equivalem: “Encostavam um homem num muro, atiravam nele até que

morresse – eu, ou Gris ou outro qualquer era a mesma coisa.”78

Quando batem à porta e conduzem Juan e Tom para o fuzilamento, ao ouvir os

tiros que ecoam do pátio, temos a sensação de que, afinal, a situação limite vivida por

Ibbieta não o auxiliou mais no conhecimento de si do que a existência de

champignon de Roquentin: os dois destinos parecem unidos pela opacidade, pelo

questionamento infrutífero, pela persistência um tanto irrefletida na ação motivada

pela dúvida, e, sobretudo, pela irrealização.

É quando, inesperadamente, ao invés de ao fuzilamento, enviam Ibbieta para uma

seção de interrogatórios, e o espanhol, que “já se julgava morto” ganha seus 25

minutos de sursis:

“- Você se chama Ibbieta? 77 idem.,p.24. 78 idem,p..31.

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-Sim.

- Onde está Ramón Gris?

- Não sei(...)

- A sua vida pela vida dele. Ficará livre se disser onde ele está.”79

Nos minutos seguintes Ibbieta vive a experiência do dilaceramento que é

constitutivo da condição humana de que fala Sartre em A República do Silêncio:

situação limite, que remete ao absurdo da vida e ao horror de existir, mas também,

experiência privilegiada da possibilidade da invenção da liberdade: “Esta

responsabilidade total na total solidão não é o desvelamento de nossa liberdade

mesma?”80

Ibbieta sabe onde se esconde Ramon Gris. Sabe também que morrerá sob tortura

negando-lhes a informação. Entretanto não cogita entregar seu companheiro de armas

para salvar-se. Por quê?

Sartre no ensaio político a que nos referimos acima, destaca, por um lado, a

igualdade radicalmente democrática entre os membros da resistência no que tange o

horror dos flagelos da repressão nazista. Todos poderiam morrer pelo que sabiam e

pelo que não sabiam.

Por outro, nota que a conduta da resistência exprime de maneira eloqüente o

caráter inalienável da responsabilidade do indivíduo para com a totalidade dos seres

humanos: “Este abandono, esta solidão, este risco enormes eram os mesmos para

todos, para os chefes e para os homens(...) a prisão, a deportação, a morte.”(...)para

o soldado e para o chefe, mesmo perigo, mesma responsabilidade, mesma absoluta

liberdade na disciplina. Deste modo, na sombra e no sangue, a mais forte das

Repúblicas se constituiu. Cada um dos seus cidadãos sabia o que devia a todos e que

não podiam contar senão consigo mesmo; cada um deles realizava, no abandono

mais completo, seu papel histórico.”81

Ibbieta embora tenha dificuldade em entender sua opção, escolhe, não uma ação

frente à outra, visto que o desvelar da contingência já aplainou as realizações no nada

da incompletude, mas a própria liberdade de recusar a colaboração. “(...)pus-me a

refletir. Mas não na proposta. Naturalmente eu sabia onde estava Gris; escondera-se

em casa de seus primos, a 4 km da cidade. Sabia também que não revelaria seu

79 idem.p.29. 80 idem.p.13. 81 SARTRE, J-P. Situations III – La République du Silence, p.14.

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esconderijo, salvo se me torturassem (não parecia, porém, que quisessem fazê-lo).

Tudo aquilo estava perfeitamente regulado, definitivo e não me interessava

absolutamente. Queria, contudo, compreender a razão da minha conduta. Preferia

morrer a denunciar Gris. Por quê? Eu já não gostava de Ramón Gris. Minha

amizade por ele tinha morrido um pouco antes de amanhecer juntamente com meu

amor a Concha, com meu desejo de viver(...)Sabia que ele era mais útil do que eu à

causa da Espanha, mas a Espanha e a anarquia que levassem o diabo; nada mais

tinha qualquer importância. Entretanto eu estava ali, podia salvar a pele entregando

Gris e me recusava a fazê-lo. Achava tudo aquilo muito cômico; era pura obstinação.

Pensei: "Já é ser cabeçudo"; e uma hilaridade esquisita me invadiu(...)

-Pois bem- Disse o oficial gordo, refletiu?

-Sei onde ele está. Está escondido no cemitério em um túmulo ou na cabana dos

coveiros(...)

Disso aquilo para pregar uma peça(...)De quando em quando sorria pois

imaginava a cara que eles iam fazer(...)Sentia-me embrutecido e malicioso... ”82

Mesmo que à assunção ao compromisso com a liberdade seja dada no nimbo da

dúvida e no abandono - despida do ideário da virtude - ela realiza a invenção da

autonomia coletiva. Como interpreta retrospectivamente Sartre a respeito dos

Resistentes: “Cada um deles contra os opressores empreendia ser si mesmo, e

escolhendo-se a si mesmo em sua liberdade, escolhia a liberdade de todos.”83

Entretanto basta uma análise atenta para assinalar que não é um heroísmo

cristalino que ser ergue do dilaceramento de Ibbieta. É antes uma conduta tão

irretorquível quanto opaca - algo como uma retidão sem amanhã. Alguma coisa

quebrou-se em seu apego à vida, na certeza que antes revestia suas ações, algo

inapreensível na imersão dos acontecimentos. Assim, na sombra de Ibbieta embora

possamos notar os traços do heroísmo solitário dos Resistentes anônimos de que fala

Sartre na República do Silêncio, projeta-se ainda a nebulosidade instransponível dos

questionamentos existenciais de Roquentin.

Mentindo sobre o paradeiro de Ramón Gris, Ibbieta não procura lugar na

história, fundar a República, nem sequer ser lembrado como herói: opõe à realidade, a

invenção, numa instauração ainda que fugaz de sua liberdade através do

desmantelamento do espírito de seriedade de seus algozes. Aquela ação que 82 SARTRE, J-P. O Muro.pp.30,31. 83 SARTRE, J-P. Situations III – La République du Silence.p.14.

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considerava – na imersão dos acontecimentos – um verdadeiro “desfecho” para sua

existência que se fechava sobre ele pela proximidade da morte, a bem da verdade, foi

uma atitude como as demais: contingente como as demais atitudes encerradas naquele

saco que considerava fechado e ainda assim inacabado de sua existência.

Ibbieta, afinal, só poderá ser considerado como um herói de seu tempo, do estilo

descrito por Sartre em A República do Silêncio visto como se “de fora” ou “por

outro”: “O homem é ignorância de si porque faz o que é e lhe faz falta outro para

iluminar o que foi. É ignorância de si porque não é natureza mas sim destino, porque

a aventura humana não está terminada até que reste um homem para conferir seu

sentido, e , depois, se funda no nada por falta de testemunhas.”84

Findos os acontecimentos limites, como que aparte da história poder-se-ia

refletir e dotar de significação o heroísmo problemático destes homens anônimos tais

como Ibbieta.

Contudo, o que encontramos na ambigüidade da personagem Ibbieta do conto de

Sartre é a expressão narrativa – talvez a mais contundente85 - da opacidade

constitutiva de cada ação imersa na emergência da vida e da história.

84 SARTRE, J-P. Verdad y Existência p.158 “Assim, o ser pelo qual a luz vem iluminar o Ser,é , a um só tempo, pura lucidez(para além da verdade)e pura obscuridade(aquém) como destino.”(idem) 85 A bem da verdade é com absoluta contundência que se exprimem, também na trilogia Os Caminhos da Liberdade, a opacidade do vivido, a incompletude dos destinos e ainda a complexidade dos móveis psicológicos do engajamento político. Não obstante nossa intenção inicial fosse percorrer com atenção o desdobramento narrativo das existências tateantes das personagens da trilogia, levando em conta o caráter resumido da proposta, nos contentarem em recolher duas passagens que ‘encerram’ a “aventura” de Mathieu. O transeunte supostamente inocente da “Idade da Razão” - antes alienado de sua dimensão histórica – vê-se em, Com a Morte na Alma, como que “à toa”(p.194.)engajado entre os primeiros resistentes(quase “suicidas”)da ocupação alemã, disposto, sem saber porque, à “morrer por nada”(p.199): “Pensava: ‘Vou morrer por nada’, e tinha dó de si próprio. Durante um segundo suas recordações agitaram-se como folhas ao vento. Todas as recordações: ‘Eu gostava da vida.’ Uma interrogação inquieta apertava-lhe a garganta: ‘Tinha o direito de abandonar os camaradas? Tenho o direito de morrer por nada?’ Endireitou-se, apoiou as mãos no parapeito, sacudiu a cabeça com raiva. ‘E basta! Tanto pior para os que estão lá embaixo,(alemães que começam a ocupar o vilarejo) tanto pior para todos. Chega de remorsos, de escrúpulos, de restrições; ninguém é juiz de meus atos, ninguém pensa em mim, ninguém se lembrará de mim, ninguém pode decidir por mim(...)Aproximou-se do parapeito e pôs-se a atirar de pé. Era um enorme revide: cada tiro vingava-o de um antigo escrú-pulo. Um tiro em Lola, que não ousei roubar, um tiro em Marcelle, que deveria ter largado, um tiro em Odette, que eu não quis comer. Este para os livros que não ousei escrever, este para as viagens que recusei, este para todos os sujeitos, em conjunto, que tinha vontade de detestar e procurei compreender. Atirava, e as leis voavam para o ar, amarás o teu próximo como a ti mesmo, pam! nesse salafrário, não matarás, pam! nesse hipócrita aí da frente. Atirava no homem, na virtude, no Mundo: a Liberdade é o Terror; o incêndio destruía a Prefeitura, destruía-lhe a cabeça: as balas assobiavam. livres como o ar, o mundo explodirá, e eu com ele, atirou, olhou o relógio: quatorze minutos e trinta segundos; não tinha mais nada a desejar senão um prazo de meio minuto, exatamente o tempo de atirar naquele belo oficial, que corria orgulhoso para a igreja; atirou sobre o belo oficial, em toda a Beleza do Mundo, na rua, nas flores, nos jardins, em tudo o que amara. A Beleza deu um mergulho obsceno e Mathieu atirou de novo. Atirou: era puro, todo poderoso, livre.”85 (SARTRE, J-P. Com a morte na alma.p.199, 200,222.)

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Quem sabe nosso itinerário pela literatura de Sartre nos ajude, enfim, a

compreender uma reflexão fundamental sobre o tema da opacidade da história que

encontramos no texto póstumo intitulado Verdade e Existência: “A época em que vivo

tem em si mesma um sentido objetivo que cria ao viver que se lhe escapa, visto que o

cria para outros. Sem dúvida, a pergunta, pela sua significação, está viva para ela,

porque sabe que terá esse sentido e trata de captar-lo de antemão. Mas, a maneira

mesma pela qual busca captar-lo contribuirá a dar-lhe seu sentido aos olhos das

gerações seguintes(...)Desta maneira, a época é verdade para si mesma, mas verdade

ignorada.”86

O leitor atento nota, desde o início da experiência limite de Ibbieta, a dificuldade

que a personagem encontra de compreender-se. Assim como ocorrerá também com

Mathieu (em Os Caminhos da Liberdade), a opacidade se acentua a medida que os

acontecimentos se encerram sobre ele. O que Sartre nos indica, ainda que

metaforicamente, é que seria necessário estar como fora de si para compreender-se

quando se está imerso na história., Como não é dado pairar fora do mundo para

vislumbrar os acontecimentos, toda existência humana permanece um mistério para si

mesma, como uma totalidade inacabada ou totalidade destotalizada87.

O desfecho de O Muro repõe de maneira incontestável a questão da

contingência e da incompletude radical.

Quando mente, Ibbieta imagina contradizer seus algozes e espera, assim, receber

a contrapartida da lógica do terror: a morte.

Contudo os cálculos humanos são desproporcionais à incerteza sobre os rumos

da história.

A mentira revela, num capricho da contingência, o refúgio de Gris no cemitério.

Este último é morto e Ibbieta – o culpado inocente – liberto da morte, ri o riso

exterminador que revela, não sem mal-estar, algo como o triunfo do absurdo.

Assim como se mostra impossível compreender a existência vivendo-a, se

desvela igualmente impossível acessar o sentido da história, fazendo-a.

Um trecho da obra póstuma de Sartre, não obstante longe de ser cristalino,

talvez nos ajude a delinear, ainda que na forma de esboço, a questão do duplo

paradoxo insuperável da nebulosidade do vivido: “O gênero humano tem um destino,

86 idem. p..156 87 idem. p.157-58

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a história tem um sentido(ainda que seja o de uma sucessão de absurdos

catastróficos, pois, então,, como o homem é o ser pelo qual o sentido vem ao mundo,

o sentido da história seria o da impossibilidade de um sentido para o ser que confere

sentido ao Ser). Agora, esse sentido da história só poderia aparecer para um ser

situado fora da história, posto que toda compreensão da história é ela mesma

histórica e se temporaliza na perspectiva de um futuro, e portanto, de novos fins. Por

outro lado, não se trata necessariamente de Deus nem de um demiurgo – poderia ser

um homem que houvesse resvalado para fora do humano - . Em todo caso , faz falta

alguém para cerrar os olhos da humanidade. E dado que esse alguém é impossível

por princípio o homem é o artífice de uma verdade que jamais ninguém conhecerá.”88

Para Sartre, afinal, na existência na história, não há alternativa de um Deus

veraz legitimador, nem, como vimos, nenhuma tentação ao recurso do olhar

onisciente de Sirius: estamos condenados a perseverar na noite. Estamos intrometidos

na história assim como na própria vida, irreversivelmente, e cada ação realizada pesa

sobre nós tanto quanto àquelas que não realizamos, o que significa dizer que temos

responsabilidade tanto sobre aquilo que realizamos quanto sobre o que deixamos de

realizar. Assim, como vimos com o entrelaçamento das leituras de O Muro e A

República do Silêncio, não obstante nos encontremos imersos numa história

incompreensível enquanto vivida - de radical contingência – visto que o mal é

histórico e realizado cotidianamente pelas escolhas humanas, toda atitude (ou

ausência dela) mesmo que tomada de um ponto de vista de relatividade e parcialidade

deve ser encarada como uma instauração livre, autêntica e absoluta de valor que

influirá no destino de todos os outros homens.

*

88 idem.p.157.

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4) A contingência das ações: percalços da responsabilidade

A situação dos cidadãos comuns durante a ocupação nazista de Paris, para

Sartre, exemplificaria de maneira dramaticamente expressiva este caráter tão

inevitável quanto incerto das ações em constante confronto com suas repercussões:

“Cada um de nossos atos era ambíguo: não sabíamos jamais se devíamos nos

condenar completamente, ou nos absolver completamente; uma sutil peçonha

envenenava nossos melhores empreendimentos.”89

A experiência da nebulosidade da vivência é exemplar da ocupação, pois ali,

os menores atos poderiam caracterizar uma “colaboração” ainda que involuntária com

o exército ocupante, de modo que se requeria uma vigilância constante sobre a

responsabilidade implicada em qualquer ação, mesmo que considerada banal em

tempos de paz. O cenário fazia-se ainda mais perverso visto que os algozes dos

parisienses mostravam-se, como lhes exigia à assepsia burocrática nazista, gentis e

aparentemente poucos e inofensivo, como que incapazes de impingir-lhes à

autoridade sobre-humana que de fato gozavam – a de decidir sobre a vida ou a morte:

“ Quando eles nos paravam, com uma extrema polidez, para nos perguntar sobre o

caminho – para a maior parte de nós esta foi a única ocasião de lhes falar – nós nos

sentíamos mais importunados que raivosos; para dizer tudo, nós não estávamos

naturais. Nós nos recordávamos da recomendação firmada de uma vez por todas : de

jamais lhes dirigir a palavra. Mas ao mesmo tempo, diante destes soldados

extraviados, uma antiga subserviência humana se revelava, uma outra recomendação

que nos impõe nunca deixar um homem em dificuldade. Então, se decidia segundo o

humor da ocasião, e se dizia: ‘<<Não sei>> ou <<Tome à segunda rua à

esquerda>>, e , em todo caso, nos afastávamos descontentes de nós mesmos.” 90

Sartre cita a incômoda situação dos caminhoneiros, mecânicos, maquinistas e

motoristas, cujo empenho em conservar em perfeito funcionamento seus instrumentos

de trabalho, se voltava constantemente contra a população, visto que seu maquinário -

confiscado – poderia servir à ocupação estrangeira. No mesmo sentido, os produtores

agrícolas, empenhados em permitir o já escasso abastecimento de Paris, tinham

freqüentemente sua produção enviada aos reforços alimentares inimigos, de maneira

que, uma ambigüidade se instalava no seio mesmo de toda atitude que almejaria em 89 SARTRE, J-P.Situations III.Paris sous l’occupation.p.37 90 Idem. p.20.

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tempos de paz uma absoluta neutralidade. Todos estes cidadãos que procuravam ser

fiéis ao que eram entes da guerra, se viam arriscados de, ultrapassados pelas

circunstâncias, servir ao inimigo: “As mulheres e as mães dos desaparecidos, quando

haviam assistido à prisão, testemunhavam que eles haviam sido levados por Alemães

extremamente polidos, idênticos aqueles que nos perguntavam o caminho nas

ruas.”91 (...) “do início ao fim da guerra, nós não reconhecíamos nossos atos, e não

podíamos reivindicar suas conseqüências. ”92

Vítimas da postura oficial de conivência com o inimigo, a população sofria

com o abandono em relação ao restante da França ainda livre e com a vergonha de

perecer sem luta, como que por uma asséptica cirurgia: “ não houve ninguém em

Paris que não tenha tido, um amigo ou parente preso, deportado ou fuzilado.

Pareciam haver buracos escondidos na cidade e que eles se evadiam pelos buracos

como que tomados de uma hemorragia interna e inestancável.”93

O morticínio “sem rosto” do maquinário militar alemão exprimia – à meia

voz- mas incontestavelmente, a situação de “prisioneiros ao ar livre” dos parisienses,

que embora resguardados dos bombardeios, padeciam, não obstante surdamente, da

despersonalização e perda de si característica do cerceamento absoluto da autonomia:

“Nós nos olhávamos uns aos outros e nos perguntávamos se nós também não

tínhamos nos tornados símbolos. É que, durante quatro anos, tinham nos roubado o

nosso futuro.”94

Sem saída, a única atitude ética possível diante do invasor - resistir – parecia,

no mais das vezes, uma conjectura inverossímil e mesmo absurda, dada à inutilidade

dos parcos esforços resistentes relativa à potência do aparato bélico nazista e ao

assomo de violência, resultado imanente da luta imersa no cotidiano da cidade.

Ajuntemos: a complexidade da postura do resistente se adensa ainda mais quando

observados seus métodos por vezes oblíquos de ação – sabotagens, atentados à

bomba( que por vezes ceifavam também vidas inocentes)e enfim, pela sensação

remanescente de que, afinal, o que se fazia, “não servia para nada, ou servia aos

91 Idem,p.20. 92 Idem,p.37. 93 Idem,p.22. ,94 Idem.p.30.

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Alemães”95. Comenta Sartre, “o que é terrível, não é sofrer nem morrer, mas sofrer e

morrer em vão.”96.

Neste sentido, é interessante notar que, segundo Sartre, à ação dos Resistentes

possuía um valor muito mais simbólico que militar97, pois representava uma resposta,

ainda que desesperada, à apatia na qual se diluía toda uma população colocada à

margem do próprio destino98. Estes sacrifícios humanos, nem sempre felizes na eleição

de seus métodos, levados à cabo no crepúsculo da história e “no

abandono(délaissement)absoluto”99, guardariam uma relação íntima com o sentimento

de culpabilidade advinda da impotência de evitar o avanço do mal. Desta situação de

emergência de decisões e de angustiosa obscuridade, nasceria um pseudo-heroísmo

problemático e ambíguo – em casos extremados em difícil consonância com a falta de

escrúpulos e com o niilismo. Surge da ausência completa de horizontes e do imperativo

de atribuir um sentido ao próprio destino: “O mal estava em toda parte, toda escolha

era má e não obstante era necessário escolher e nós éramos responsáveis; cada

batimento de nosso coração nos enchia de uma culpabilidade de que nós tínhamos

horror.”100

Uma valiosa expressão narrativa destas ambigüidades e culpas que confinam

os que, ‘escolhendo a si mesmos’, persistem no engajamento na “noite” da história,

foi elaborada por Sartre em Morte Sem Sepultura. Nesta peça de 1946, uma pequena

mas significativa frase repercute, sintetizando o drama daqueles que se lançaram, sem

reservas, na ação; “Por nossa causa101”: “Ela tinha treze anos. Por nossa causa ela

está morta(...) “Muitos outros estão mortos. Crianças e mulheres. Mas eu não os ouvi

morrer. A pequena, é como se ela ainda chorasse. Eu não posso guardar estes gritos

para mim sozinho.”102

Lucie, Henri, Canoris e François vivem a experiência do cárcere miliciano às

vésperas da libertação da França – pesam sob suas costas as conseqüências de uma

95 Idem.p.31. 96 Idem,p.31. 97 “Com ela(a resistência)os Ingleses ganharam a Guerra, com ela eles haveriam perdido, se devessem perdê-la.”(idem.p.30) 98. “Nós sentíamos nosso destino nos escapar; a França se parecia com um vaso de flores que se põe sobre o parapeito da janela quando faz sol e que se repõe em casa à noite, sem lhe pedir consentimento.” (Idem.p.28) 99 Idem.p.31. 100 idem, p.37. 101 SARTRE, J-P. Morts sans sépulture, pp.90,91,103 102 Idem.p.90-1.

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infeliz estratégia de resistência. Assim, como os revoltosos de O Muro, as

personagens da peça de Sartre são jovens engajados com o movimento da resistência

ao fascismo, que, na agonia que precede à tortura e à espera de uma possível

execução sumária, experimentam a fantasmagoria do confronto lúcido com a

contingência das ações e da própria vida. O questionamento da gratuidade da

existência e das ações, ou seja, sobre o sentido do profundo do engajamento, se

exprime no sentimento comum de culpa e da inutilidade que reflui da própria

liberdade:

“(Sorbier) - Era necessário ter conseguido

(François) – Nós não podíamos ter conseguido.

(Sorbier) Eu sei. Teria sido necessário ter conseguido assim mesmo.

Trezentos. Trezentos que não aceitaram morrer e que estão mortos para nada. Eles

estão deitados entre as pedras, e o sol lhes tisna; deve-se vê-los de todas as janelas.

Por nossa causa. Por nossa causa, nesta cidadezinha não há senão milicianos, os

muros e as pedras ”103

Uma das personagens para quem a compreensão da própria vivência está mais

distante é François, que, a exemplo de Juan Mirbal em O Muro é o mais jovem entre

eles, e presume-se inocente. Entretanto, não do mesmo modo que o primeiro que, de

fato, não era senão um irmão de um militante antifascista evadido. Participante ativo

da estratégia resistente malograda, de um lado, François entende-se logrado pelo

“movimento”, visto que não antevia o destino que lhe esperava. De outro, não admite

que seja de fato responsável pelo morticínio na vila visto que cumpria de maneira

como que irrefletida às ordens dos comandantes: “Que haviam vocês me dito quando

eu fui encontrá-los? Disseram-me: a Resistência precisa de homens, vocês não me

disseram que ela precisava de heróis. Eu não sou um herói, eu não sou um herói! Eu

não sou um herói! Eu fiz o que me disseram: eu distribuí panfletos e transportei

armas, e diziam que eu estava sempre de bom humor. Mas ninguém me precaveu

sobre o que me esperava no final. Eu juro que jamais soube em que estava

engajado.”104(...)Eles nos disseram: <<subam lá e tomem a vila>> Nós dissemos a

eles: <<É estúpido, os Alemães serão prevenidos em vinte e quatro horas. >> Eles

103 Idem.p.90-91(Grifo nosso.) 104 Idem,p.103.

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nos responderam: <<Mesmo assim, subam lá e tomem-na. >> Então nós dissemos:

<<Sim.>>E subimos. Onde está o erro?”105

Para Canoris, não há como presumir qualquer espécie de inocência.

Revolucionário profissional (estrangeiro) como o Tom de O Muro, é talvez o

personagem que menos questiona o sentido dos empreendimentos, pois, consciente da

escolha de sangue que fizera, se sente justificado em suas atitudes, por mais dúbias,

por algo que julga transcendente e superior a si: a causa revolucionária. “ Não penso

em nada. Eu vivia para a causa e sempre soube que teria uma morte como

esta.”106Militante experiente e conhecedor da experiência dilacerante da tortura, sua

preocupação maior consiste em manter-se fiel à postura altiva de inimigo

irreconciliável do fascismo, re-avaliando a partir de suas experiência anterior – neste

momento no qual espera os algozes – se é possível definir, coagido pela dor e pelo

medo, alguma propedêutica para evitar à tentação da confissão: “Não há método.”107

Não obstante o receio do momento da tortura, que sabe aniquilar as disposições

morais mais profundas pela hegemonia lancinante do corpo, uma certeza o

tranqüiliza; um trunfo valioso para quem almeja, sobretudo, manter-se fiel à causa

que elegeu como de sua existência: “Nós não temos nada a dizer. Tudo que sabemos

eles o sabem(...)Nós não sabemos nada, nós não temos nada a calar. Que cada um se

vire para não sofrer demais. Os meios não tem importância.”108

Sorbier, por sua vez, vive à expectativa da tortura através de um feixe múltiplo

de preocupações acerca do passado, do presente, e do futuro: experimenta a sensação

de culpa e de malogro pela ação infeliz que pensara a princípio tratar-se de um ato

heróico; teme pelo que fará ou dirá sob tortura, momento que se aproxima e no qual

pensa que, afinal, “conhecerá a si mesmo”; e por fim, lhe ressente de modo dramático

a inutilidade tanto de sua vida, como de sua morte, pois assim como viveu sem nada

realizar por completo, morrerá sem razão, visto que nada tem para esconder de seus

carrascos: (à Canoris) “Eu queria me conhecer. Eu sabia que acabariam por me

pegar e que eu estaria, um dia, ao pé do muro, em face de mim, sem refúgio(recours).

Eu me dizia, agüentarás tu a pancada? É meu corpo que me preocupa, compreendes?

Eu tenho um corpo sujo e mal engendrado com nervos de donzela. E então, o

105 Idem,p.90-1. 106 Idem.p.111. 107 Idem, p.98. 108 Idem, pp.98, 104.

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momento chegou, eles vão me atormentar com seus instrumentos. Mas fui roubado:

eu vou sofrer por nada, morrerei sem saber o que quero.”109

Esta sensação prenunciada por Sorbier é ainda mais intensa em Henri, que

como Hamlet, a princípio, nega a realidade através do sono e da acedia: “Sonhava que

dançava no Sherazade. Sabem, o Sherazade em Paris. Eu nunca estive lá.”110 Sinal de

uma primitiva necessidade de opor-se à realidade, o sonho, quem sabe represente esta

faculdade humana da negação do real pela imaginação diante de sua própria

fragilidade - única, melancólica e inútil possibilidade de evasão da situação-limite

que defronta as personagens com a questão da inalienabilidade da própria liberdade.

Se, afinal, o despertar de Henri é tardio não é senão por uma recusa integral das

vicissitudes do instante. Em seu semi-despertar, os ecos que preenchiam sua

consciência persistentemente livre, compostos de um conjunto de escapatórias para a

dimensão histórica do homem – resquícios de sonho, de arte e de natureza - se diluem,

como que absorvidos nas tintas de um croquis nebuloso e taciturno do átimo

histórico: “Ela(a música) entra pela janela, ela derrama-se sobre os cadáveres. A

música, o sol: quadro. E os corpos estão todos negros.”111

Indagado por Lucie de como conseguira dormir, responde com uma

constatação que freqüentemente é reposta pelo horizonte sartreano; de que o homem

está abandonado ao seu próprio destino numa gratuidade e solidão sem testemunhas e

sem justificação: “Senti-me tão sozinho que me deu sono. (Ele ri) Nós somos

esquecidos da terra inteira.”112 Esta certeza do ‘extravio’ entretanto não o imiscui da

culpa, e de maneira ainda mais significativa do que Sorbier Henri questiona-se sobre

sua responsabilidade pessoal no malogro, não apenas da operação - mas, de modo

geral, de sua existência infeliz, que foi não apenas incapaz de evitar o alastramento da

miséria humana, mas um de seus malévolos agentes: “ Sinto-me culpado(...) não

queria morrer em falta.”113

Interpelado por Canoris (que se entende como que inocentado por um código

tácito de guerra) sobre em relação a quem se sentiria culpado, Henri começa a,

progressivamente, aceder a maior e maior lucidez a respeito da obscuridade da

própria conduta, e o primeiro véu que evapora é o da ordem superior como

109 Idem. 104-5. 110 Idem. p.105. 111 Idem. p.107. 112 Idem, p.109. 113 Idem. p.107.

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subterfúgio para as conseqüências imanentes da ação: “(Canoris) Não quebre a

cabeça: estou seguro de que os camaradas em nada nos censurarão.

(Henri) Não estou nem aí para os camaradas. É a mim mesmo que devo

prestar contas.(...)Se eu pelo menos pudesse me dizer que fiz o que pude.Mas seria

sem dúvida pedir demais. Durante trinta anos, me senti culpado. Culpado porque

vivia. Agora, há casas queimando por falta minha, há inocentes mortos, e vou morrer

culpado. Minha vida não foi senão um erro(...)É a primeira vez em três anos que me

encontro em face de mim mesmo. Me davam ordens. Eu obedecia. Eu me sentia

justificado. Agora ninguém pode mais me dar ordens e ninguém pode mais me

justificar... ”114

Se Canoris persiste, de algum modo, na esperança da justificação de sua

singularidade pela diluição de seus erros pessoais na contabilidade dos eventos

necessários ao prosseguimento do ‘engajamento’, Henri ao contrário começa a notar

que nenhuma justificativa coletiva pode redimir do absurdo as existências individuais

extraviadas pelos imperativos da história. Se no sucesso a causa revolucionária

assume na forma de uma coletividade sem nome os fardos(e também as glórias) da

ação política, no malogro, ao contrário, os erros e os infortúnios são sempre pessoais e

intransferíveis, pois afinal, cabe a cada um divisar - a seu modo - na antevisão da

escuridão da morte, a fantasmagoria da incompletude constitutiva do próprio destino:

“(Henri) Canoris, porque nós morreremos?(...)Tu vivias pela causa, sim. Mas não

venhas dizer-me que morrerás por ela. Talvez , se houvéssemos conseguido. E se

houvéssemos morrido em ação, talvez, então...(Um tempo)Nós morremos porque nos

deram ordens idiotas, porque nós a executamos mal e nossa morte não é útil a

ninguém. A causa não tinha necessidade que se atacasse este vilarejo. Ela não tinha

necessidade visto que o projeto era irrealizável. A causa não dá nunca ordem, ela

não diz nada; somos nós que decidimos de suas necessidades. Não falemos da causa.

Não aqui. Enquanto se podia trabalhar para ela , tudo bem. Depois, é necessário se

conter e sobretudo dela não se servir para nossa consolação pessoal. Eles nos

rejeitaram porque nós somos inutilizáveis: ela encontrará outros para servi-la: em

Tours, em Lille, em Carcassone, as mulheres estão fazendo crianças para nos

114 Idem.p.108-9-10

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substituir. Nós tentamos justificar nossa vida e falhamos. Agora , nós vamos morrer e

nos farão mortos injustificados.”115

É a gratuidade e contingência da vida que se revela para as personagens de

Mortos Sem Sepultura: assim como em O Muro, confrontados com os últimos

instantes de suas vidas, as personagens se dão conta da inutilidade de seus esforços

para por em prática as vagas idéias pelas quais morriam, contestando assim, o sentido

último do empreendimento do engajamento. Enquanto eram úteis para banir o mal do

presente e erigir um futuro possível, sentiam-se justificados por uma idéia de

finalidade histórica que os guarnecia da contingência de suas ações: no momento no

qual, prisioneiros, encontram-se sem qualquer horizonte possível de futuro, notam a

esterilidade das ações e das próprias vidas diluídas no absurdo infrutífero da morte.

Sobre eles se abate a sensação da finitude, da contingência radical da vida,

preenchendo com seu negro vazio o singelo restante de existência que é o quinhão do

homem condenado: “Os metrôs estão abarrotados, os restaurantes cheios, as cabeças

estufadas remoendo pequenas inquietações. Eu deslizei para fora do mundo e ele

continuou cheio. Como um ovo. É preciso crer que eu não era indispensável...”116

Esta sensação de extravio para fora do mundo de que fala Henri é partilhada

pelos outros prisioneiros acorrentados pela mesma heteronomia avassaladora; por um

lado, alienados de seu presente, podem ser a qualquer momento e por qualquer átomo

de vontade ser banidos da vida, por outro, cerceados de qualquer horizonte futuro,

estão assolados neste presente imediato e doloroso que já está como que preenchido

pela morte vindoura. Aqui, talvez não seja excessivo sublinhar novamente o paralelo

com as personagens do conto O Muro: enquanto àqueles, que já se julgavam mortos,

certificavam-se da continuidade do mundo exterior por intermédio do contato com o

único vivo que lhes restava - o médico Belga fascista - estes, também apartados

totalmente das raízes do existir, governar-se no presente e projetar-se em direção ao

futuro, vêem-se como que desmaterializar, anulados de antemão pela força que lhes

afasta do leme da própria vida - assim podemos compreender o verdadeiro status – o

de autômatos - destes mortos insepultos: aquém da vida (pois ultrapassados naquilo

que os fazem humanos) e já adiantados no processo de desaparecimento que é

sinônimo da morte: “(Lucie) Eu estou morta e calma, me economizo...

115 Idem. p.110-11. 116 Idem.p.114

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(Canoris) Eu, creio que há tempos já estamos mortos: desde o momento em que

deixamos de ser úteis(...) nós não contamos mais, somos mortos sem importância.”

É a experiência da nadificação 117exemplar das condutas interrogativas, que

está posta em movimento na ficção de Sartre: as personagens ao interrogar a realidade

imprimem nela sua dimensão humana, destituindo o presente pela projeção antecipada

de sua morte anunciada: “O traço ontológico do existente é essa suspensão, ou esse

vazio de determinação essencial, negatividade que se manifesta primeiramente na

conduta interrogativa, aquela que introduz propriamente a negatividade no mundo. O

processo humano de interrogar nos indica que o homem é o ser que faz surgir o nada

no mundo.”118

117 Não é nossa intenção proceder nenhuma análise mais detalhada da psicologia e fenomenologia de Sartre. Nos esquivaremos, assim, neste presente escrito, o máximo possível das questões fenomenológicas, com a intenção de realizar a proposta inicial - a confecção de um texto amplo tendo por base a ficção do autor: preferiremos assim circunvizinhar a literatura dos ensaios políticos para , num segundo e terceiros relatórios, aprofundar então as questões de fenomenologia pertinentes. Entretanto talvez, não seja excessivo recordar, a partir da análise de Leopoldo e Silva, o exemplo clássico de Sartre para a capacidade humana de fazer refluir o nada para o real. Ele versa sobre alguém que vai encontrar um amigo no bar, e; “Está atrasado e não tem certeza se o outro ainda está esperando. Deve procurá-lo. O bar, na variedade e totalidade das coisas e pessoas que o constituem, torna-se fundo da percepção, no sentido da Gestalt. Sobre esse fundo deveria aparecer a forma que é a pessoa procurada. Mas isso só acontece porque minha expectativa visa algo de preciso e determinado, o amigo que vim encontrar. É claro que as pessoas e os objetos não são fundo por si mesmos; sou eu que os constituo assim para poder constituir a forma que é objeto de minha expectativa. Faço com que tudo recue para um plano de irrealidade em relação à minha percepção, porque não viso nada a não ser a pessoa procurada. Minha expectativa posiciona tudo num estado de evanescência, como se as coisas tivessem retornado ao nada. Sartre diz que minha atenção procede a uma nadificação desse fundo indiferenciado, porque não o procuro, não o interrogo. O processo de desvanecimento das realidades inclui certos momentos de fixação de minha atenção (aquela pessoa, talvez seja ele) que logo são superados e neutralizados como realidade. Após um certo tempo, vejo que ele não está: essa constatação é crucial para entendermos a intuição da ausência. Como posso ver que ele não está? Não deveríamos antes dizer que vejo tudo e todos que lá estão, menos o meu amigo, que precisamente não está? ‘Mas, precisamente, eu esperava ver Pedro, e minha espera fez chegar a ausência de Pedro como acontecimento real alusivo a este bar; agora é fato objetivo que descobri tal ausência, que se mostra como relação sintética entre Pedro e o salão onde o procuro; Pedro ausente infesta este bar e é a condição de sua organização nadificadora como fundo.’(p.51) O aparente absurdo implicado em haver uma intuição sem objeto real pode ser explicada pelo fato de que a ausência de Pedro é de certa forma mais real do que tudo que ali se encontra. É isso que significa a expressão ‘organização nadificadora’: a intenção de minha consciência fez, de tudo, nada; e fez da ausência de Pedro algo que ‘descobri’, como ‘fato objetivo’. Por isso diz Sartre que a ausência de Pedro ‘infestou’ o bar. A ausência contaminou a presença a ponto de anulá-la. Tudo isso não pode ser explicado apenas pelo juízo de negação. Pois esse somente foi formulado depois de um processo de nadificação das realidades existentes. A ausência de Pedro não é apenas um juízo negativo: ela surge, eu a faço surgir ‘como acontecimento real’ por via do modo pelo qual a comprovo. O juízo vem por último e subordina-se à intuição da ausência. ‘A ausência de Pedro infesta este bar’ quer dizer: o nada infesta o ser. ‘A condição necessária para que seja possível dizer não é que o não-ser seja presença perpétua em nós e fora de nós. É que o nada infeste (hante) o ser.’(O Ser e o Nada, p.56.ed. Fr.p,46.)(Grifos nossos) 118 Talvez não seja inoportuno rememorar, ainda que de passagem, a sentença de Sartre: “O Ser pelo qual o Nada vem ao mundo é um ser para o qual, em seu Ser, está em questão o Nada de seu Ser.” (SARTRE, JP. O Ser e o Nada. pg. 65. Edição francesa, cit, pg. 58.)

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A sensação do escoamento e da contingência da vida conduz às personagens a

fazerem recuar todo o mundo como simples fundo diante de suas figuras em

perecimento. Esta experiência, também narrada na clausura d’O Muro119, é afinal,

sobretudo, como veremos em momento oportuno, o pressentimento de algo como uma

propriedade negativa inscrita ontologicamente no real. Assim com o mal não significa

uma ilusão derivada da impossibilidade humana de acender a lógica divina que nos

revelaria estarmos no melhor dos mundos possíveis, para Sartre, também o nada não

significaria mera privação do real, mas seria constituinte mesmo da realidade. O mal e

a negatividade estariam na história, no real, seriam aspectos da metafísica da

existência.

Assim como nas personagens da ficção, Sartre detecta na atmosfera da Paris

abandonada à sorte nazista, um mesmo processo de flerte ainda que não totalmente

consciente com este conteúdo negativo da realidade: nas personagens a densidade

toda da realidade se evanescia perante o nada que infestava o real: Assim como a

experiência da proximidade da desaparição imprimira o selo do nada sobre o

presente, o passado e o futuro dos prisioneiros representados em Mortos Sem

Sepultura, a experiência da ocupação sepultara Paris em vida, submergindo a cidade

nas ruínas de suas memórias e de suas vãs expectativas: “ A cada instante sentíamos

que um laço com um passado se rompera. As tradições foram quebradas, os hábitos

também. E nós nos assenhoreávamos mal do sentido desta mudança, o que a derrota

não explicava inteiramente. Hoje vejo o que era: Paris estava morta(...)se andava

entre as pedras(...)o prazer mesmo se mesclava de amargura; que de mais amargo

haveria do que passear na sua rua, na sua igreja(...)Tudo era ruína...”120

Na Paris de Hitler os cidadãos permaneciam na ambigüidade e na expectativa,

cada um de seus atos ultrapassava a dimensão pessoal pois diluía-se na analogia da

derrota e vergonha coletiva que dominava a cidade. À apatia burguesa na qual muitos

se refugiavam não permitia esquecer, afinal, que a cidade estava privada daquilo que a

constituía como fundamento, e este sepultamento cotidiano e ao ar livre estava

reverenciado pela alienação absoluta dos homens em relação ao seu próprio destino:

119 Obviamente nos referimos a este aspecto da fenomenologia de Sartre de passagem, quase a título ilustrativo, afinal, esperamos contar com mais três relatórios nas esperança de efetuarmos um casamento mais denso entre teoria e ficção. 120 SARTRE, J-P. Paris sur l’Occupation, p.24-5

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“sentíamos nosso destino nos escapar(...)a ocupação despojou os homens de seu

futuro(...)Nós nos olhávamos e parecia que víamos mortos .”121

Esta desesperança diante da negatividade avassaladora, segundo Sartre, foi em

grande medida o fundamento mesmo dos empreendimentos mais heróicos de

resistência, por mais dúbios, sanguinários e mesmo suicidas que tenham sido; de todo

modo estas ações seriam símbolos irremovíveis deste ímpeto humano em direção à

invenção do futuro e à recusa da servidão; “Esta desumanização, esta petrificação do

homem eram tão intoleráveis que muitos, para se evadir, para recobrar um futuro, se

lançaram na Resistência. Estranho futuro, obstruído por suplícios, a prisão, a morte,

mas que pelo menos produzíamos com nossas próprias mãos.”122

Assim, as personagens de Mortos Sem Sepultura constituem ainda, a

expressão narrativa de outro aspecto concreto da negatividade, a da imanência do mal.

Mal de dimensão humana, voluntário, que por vezes se entremeia com a bizarra lógica

do imperativo do comprometimento que se instaura nas situações limite da história.

Se, assolados pela culpa relativa às suas ações, e pelo senso de inutilidade e

vazio que emanaria de suas vidas injustificáveis, Lucie, Henri, Canoris e François se

assemelhariam aos homens já sepultos dos quais não se espera qualquer interferência

na realidade histórica - ao ponto de Henri 123desejar ter algo a esconder dos algozes

no momento da tortura eminente, o que justificaria, pelo menos em parte, seu

sofrimento inútil, pois ainda assim(com sua nesga de vida) influiria ainda que de

maneira indireta na realidade dos homens - a chegada ao cárcere do chefe da célula

revolucionária no planejamento da invasão do vilarejo, Jean, re-configura subitamente

a existência das personagens; num átimo recobram todos à vida(que julgavam esvair-

se) visto que, novamente, podem ascender sobre a realidade e o futuro, revelando ou

não aos torturadores o paradeiro de seu superior: “(Henri) Cri ser completamente

inútil, mas vejo agora que existe alguma coisa a que eu seja necessário: com um

pouco de sorte, poderei talvez dizer-me que não morri por nada.”124

Assim como subitamente a vida tinha se esvaído do horizonte dos prisioneiros

a partir do pressentimento do nada porvir, voltou a jorrar nas posturas singulares,

como em Henri e Sorbier, que se retesam em confrontar com altivez às investidas dos

121 Idem,p.28-9. 122 Idem,p.30. 123– “(Henri) Se unicamente nos restasse alguma coisa para empreender. Não importa o que. Ou qualquer coisa a lhes esconder...”(Morts...p.112.) 124 Idem,p.129.

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torturadores, ou no grito franco de François - inconformado com o destino sombrio

que lhe aguarda ainda mais feroz com o aparecimento de Jean, pois sabe que será

torturado se recusar-se a delatá-lo: “(François) [inclinado sobre Jean] Olhem-no!

Olhem-no! O mais infeliz de nós todos. Ele dormiu e comeu. Suas mãos estão livres,

ele reverá a luz do dia, ele vai viver. Mas é o mais infeliz. Que queres tu? Que te

lamentes? Ordinário!”125

A revolta de François contra a “boa sorte” de Jean - na qual se pressente o

mesmo ímpeto irrefletido de persistir na vida que encontramos também no jovem Juan

Mirbal d’O Muro – entretanto não é paradigma da atitude dos insurretos: Henri é

conduzido à sala de interrogatórios e ali, confronta-se com a possibilidade de afinal,

liberar-se do compromisso político pela conivência com o corpo ou tentar justificar

sua existência que considera culpada(pelo que não fizera durante os trinta primeiros

anos de sua vida e pelo que fizera a partir daí) negando-se, mesmo sob tortura, a

colaborar com os fascistas: “(Landrieu)Onde está seu chefe?(Henri) Tente me fazer

dizer(...)Não falarei(...)”126A resposta de Henri permanece sempre a mesma, mesmo

em face aos instrumentos de tortura, sua postura diante da atrição nazista é a escolha

de si mesmo diante da mais hedionda heteronomia: “Não terão de mim senão

gritos(...)”127

O drama de Sorbier é ainda mais desolador, pois está disposto na forma de um

solilóquio. Representação máxima do estado de angústia, em Sorbier o pavor se

encontra no temor da perda de si. Crê que, em face dele mesmo, ou seja, no momento

da primeira seção de tortura, revelou-se a si mesmo como um covarde, incapaz de

resistir à dor. Se o que lhe salvara na primeira seção fora o fato de nada ter a esconder,

agora, com a prisão puramente ocasional de Jean, teme permanecer fiel à imagem que

agora possui de si mesmo, e, assolado pelo medo, delatar mesmo que

involuntariamente o camarada.

Mencionado, ainda que de passagem, a descrição encontrada em O Ser e o

Nada, para Sartre, à angústia diante, por exemplo, de um abismo, deriva do fato de

que “minhas condutas não passam de possíveis”: “a angústia se distingue do medo

porque medo é medo dos seres do mundo e angústia é angústia diante de mim mesmo.

125 Idem,p.172-3. 126 Idem. p.144-5. 127 Idem,p.145.

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A vertigem é angústia na medida em que tenho medo não de cair no precipício, mas

de me jogar nele.”128

À angústia de Sorbier é derivada desta mesma angústia frente à liberdade que

encontramos na obra magna de Sartre de profunda ressonância kierkegaardiana e

heiddegeriana129. Ele teme que não será, nos momentos que lhe aguardam, quem quer

ser e contrariando-se, tornar-se o covarde odioso que julga ter sido durante a primeira

seção de tortura: (Sorbier) “(...)eles me perguntaram onde estava Jean e se eu o

soubesse teria lhes dito.(Ele ri) Vedes: agora, me conheço(...)

(Canoris) Tu não abrirás o bico!(mangeras pas le morceau)

(Sorbier) Mas se eu o fizesse?(Silêncio de Canoris). Vês? Existem sujeitos que

morreram em seus leitos, a consciência tranqüila. Bons filhos, bons esposos, bons

cidadãos, bons pais...Há..!São covardes como eu e não saberão jamais. Eles têm

sorte. (Um tempo)Mas fazei-me calar. Que estão esperando para me fazer calar?”130

No caso da vertigem sartreana, como descrita em O Ser e o Nada, angústia

adviria do temor de si diante da abertura radical das condutas possíveis - de fazer de

fato aquilo que se quer evitar fazer -, por ex. jogar-se no abismo, revelando a nós

mesmos, a contingência radical não apenas das ações mas da própria consciência

empenhada na tarefa de manutenção forçosa de uma identidade a bem da verdade

inexistente. A simples possibilidade teórica de cair – ou de falar no caso de Sorbier -

torna-se uma projeção do poder total da liberdade na escolha do devir: " ao constituir

certa conduta como possível dou-me conta, precisamente por ela ser meu possível,

que nada pode me obrigar a mantê-la. Porém, encontro-me decerto já no devir, e é

em direção àquele que serei em instantes, ao dobrar a curva do caminho, que me

dirijo com todas as minhas forças - e, nesse sentido, existe já uma relação entre meu

ser futuro e meu ser presente. Mas, no miolo dessa relação, deslizou um nada: não

sou agora o que serei depois. Primeiro, não o sou pois o tempo me separa do que

serei. Segundo, porque o que sou não fundamenta o que serei.Por fim, porque

nenhum existente atual pode determinar rigorosamente o que hei de ser. Contudo,

como já sou o que serei (senão não estaria disposto a ser isso ou aquilo), sou o que

serei à maneira de não sê-lo. Sou levado ao futuro através do meu horror, que se 128 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. p.73-5. 129 Será de fundamental importância na continuidade deste estudo o aprofundamento das questões trazidas pelas filosofias da existência de Kierkegaard e Heiddegger: uma obra parece, ao que tudo indica, chave para a compreensão sartreana desta leitura: Jean Wahl: Kierkgaard et Heidegger, em Études Kierkeggardiennes de 1938. 130SARTRE, J-P. Morts Sans Sepulture.p.123-5.

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nadifica à medida que constitui o devir como possível. Chamaremos precisamente de

angústia a consciência de ser seu próprio devir à maneira de não sê-lo."131 No caso

específico de Sorbier à experiência da angústia dá-se nesta antecipação do devir, no

caso, da vergonha pela covardia futura que advinha protagonizar se novamente

torturado: imerso no terror de perecer de maneira vergonhosa ele teme não resistir e

declinar diante dos algozes, e deste modo trair finalmente às escolhas diretrizes de

sua vida: “É de mim que tenho medo.”132

Levado a tortura, entretanto, Sorbier mostra que o que se foi não é jamais

fundamento para o que se será e, assim, uma face insuspeita e inesperada emerge:

Sorbier protagoniza o arquétipo próprio do homem para Sartre, isto é, aquele que

vive para além de si mesmo:

(Clochet) “Sabes por que nós te fizemos novamente descer?

(Sorbier) Não.

(Clochet) Porque és um covarde e vais abrir o bico. Tu não és um covarde?

(Sorbier) Sim(...)

(Clochet)Bom. Então, escute!De começo as unhas. Isto te dará tempo de refletir!Nós

não estamos apressados, nós temos a noite! Tu falarás?

(Sorbier)Que imundície!

(Clochet)Que tu dizes?

(Sorbier)Eu disse: que imundície. Tu e eu, nós somos imundices.

(Clochet) Peguem à pinça e comecem.

(Sorbier) Deixem-me! Deixem-me! Quero falar! Direi tudo o que quiserem(...) Que

vocês querem saber? Onde está o chefe? Eu sei. Os outros não sabem, eu sei. Eu

estive nas suas confidências. Ele está...(Designando bruscamente um ponto atrás

deles)...lá(Todo se viram. Sorbier se pendura na janela e salta sobre o piso do sótão)

Eu ganhei. Não se aproximem ou eu pulo. Eu ganhei, eu ganhei!

(Clochet) Não faça de idiota. Se falas, te liberamos.

(Sorbier)(Gritando) Hei, aqui em cima. Henri, Canoris, eu não falei!(Os milicianos se

jogam sobre ele. Ele salta no vazio). Boa tarde!”133

A decisão de Sorbier, por mais obscura e oblíqua que tenha sido, foi acima de

tudo, a expressão narrativa de uma escolha voluntária: nenhuma natureza heróica

131 Sn? 132 Idem.p.97. 133 Idem,p.153-6.

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aflorou subitamente, nenhuma determinação originária para o acovardamento se

realizou de maneira peremptória em seu destino: Sartre invoca através de Sorbier esta

fluidez absoluta da consciência sempre disposta à ultrapassagem de si, absoluta

legisladora a cada instante dos atos e valores pela instauração livre – mas, ao mesmo

tempo entranhada por uma espécie de ânsia de justificação e porque não – redenção.

A escolha do abismo representaria a situação limite da recusa de existir por nada: um

escape ainda que desesperado, da periclitância da vida para uma determinação, que,

qualquer que seja, é pelo menos urdida pelas próprias mãos. Talvez não seja

excessivo assinalar ainda, que no clamor pelo olhar dos parceiros que antecede o

instante do suicídio de Sorbier, ecoa uma nostalgia de testemunho e justificação que

diríamos ser mesmo onipresente no universo ficcional de Sartre.

Lucie também se recusa a morrer por nada.

De início, julgando-se anulada pela erradicação da esperança de um futuro,

contenta-se em viver por outro, isto é, imagina-se justificada pela existência ainda

livre de Jean que de fora exprimiria sua permanência no mundo dos vivos, mesmo

que no sentido negativo da ausência e da saudade. É através de Jean que Lucie busca

refúgio para abafar os gritos de Sorbier que emanam da sala de tortura: (Lucie)

“Agora Jean deve ter chegado à Grenoble(...)Ele deve sentir-se engraçado: a cidade

está calma, há pessoas nos terraços do café(...)Ele pensa em nós, ele ouve o radio

através das janelas abertas, o sol brilha sobre as montanhas, está uma bela tarde de

verão...”134 Como o fascista belga d’O Muro, Jean testemunharia, do lado da vida, o

desaparecimento dos prisioneiros, dotando-os de um paradigma a partir do qual

podem imaginar algo como uma continuidade de seus destinos, mesmo que na forma

dos ideais pelos quais se batiam. Este papel de testemunha135 do martírio de seus

camaradas Jean conserva ainda na cadeia na medida em que ainda goza no cárcere das

prerrogativas dos que verão o dia de amanhã e que, portanto, estão “demasiado

vivos”136 como revelam as apaixonadas palavras de Lucie prestes a enfrentar seu

martírio pessoal: (Lucie) “Amanhã, tu descerás em direção à cidade; tu carregarás

134 Idem.p.117. 135 (Henri para Jean) “Eu estou contente que estejas aqui. Primeiro me destes um cigarro, depois serás nossa testemunha, é glacial. Irás ver os parentes de Sorbier e escreverás a mulher de Canoris.”(idem,p.129.) 136 (Henri para Jean) “Tu vês bem; tu te comoves, te agitas: estás demasiado vivo.”(idem, p.165.)

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nos teus olhos minha última imagem viva, tu serás o único no mundo a conhecê-la.

Não a esquecerás. Eu, sou tu. Se tu vives, eu viverei.”137

A experiência do aviltamento da violação, entretanto, provoca uma

metamorfose do que poderíamos notar como sendo um estado de espírito niilista em

constante presença na personagem Lucie: o que de começo se traduzia em cansaço e

delegação a outro do sentido da própria existência transmuta-se num áspero e violento

ímpeto de prosseguir na única recusa que poderia oferecer aos seus carrascos: a de

falar. No retorno da experiência mais ilustrativa do dilaceramento da identidade, a

devoção que guardava a Jean se diluíra, juntamente com as derradeiras esperanças de

absolvição: (Jean) “Não me amas mais. (Lucie) Eu não sei(Ele dá um passo em sua

direção). Te suplico, não me toques.(Com esforço)Creio que deveria amar-te ainda.

Mas não sinto mais o meu amor.(Com fadiga) Não sinto mais nada de nada(...) Tudo

isto não tem grande importância(...)Diga-lhes que eu não falei.”138

A esta altura, com Henri e Canoris torturados, o corpo de Sorbier caído à

janela, Lucie dilacerada pelos algozes e François clamando pela inocência condenada,

a atmosfera do cárcere fascista conspira à atrição, ao desvelo sem reservas, à perda

dos referenciais, à impotência, numa palavra, ao simples sucumbir.

Daí a dimensão enigmática da resignação à liberdade das personagens de

Mortos Sem Sepultura, que, tendo por fundamento a desesperança, instituem valores

tão absolutos(na materialidade de sua repercussão histórica), quanto relativos(em sua

origem arbitraria e obscura): valores surgidos a partir da perspectiva limitada e opaca

de seu referencial do mundo.

Naquele momento, de maneira bizarramente infantil, a vida havia se

restringido à tola plaisantarie 139 de evitar a qualquer custo que o adversário soubesse

o paradeiro de Jean. Não é à toa que a temática do jogo retorna à peça de Sartre

(desde os gritos de Sorbier do alto da marquise)140como analogia da arbitrariedade

primordial dos valores da existência, enfim do absurdo fundamental que regula às

ações, com a relevância que outrora compunha às argumentações dos moralistes do

século XVII141:

137 Idem,p.129. 138 idem.p.170. 139 Pensamos aqui no termo em francês que tem o sentido de brincadeira, gaiatice, mas também divertimento(no sentido do século XVII) que institui uma forte ênfase ao aspecto bizarro. 140 “Eu ganhei, eu ganhei!”(idem.p.156.) 141 Um texto meu está em impressão e será publicado brevemente sobre o assunto( Cf. GERMANO, E.Acaso e Jogo no pensamento de Pascal in CEFP n.5).

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(Henri)“O importante é ganhar.

(Jean) Ganhar o que?

(Henri)Ganhar. Há duas equipes: uma que quer fazer a outra falar. (Ele ri) É idiota.

Mas é tudo que nos resta. Se falamos, nós perdemos tudo. Eles marcaram pontos

porque eu gritei, mas no conjunto nós não estamos mal colocados.” 142

Se por um momento notássemos com um pouco mais de detalhe o sentido da

referência ao jogo novamente no pensamento de Pascal notamos que ali, à analogia

serve à expressão da banalidade dos hábitos e da vida irrefletida, assim, de algum

modo, toda a atividade humana está metaforizada na figura do jogo: 143 (Br.141-

L.39) “ - Ocupam-se os homens com uma bola ou uma lebre; esse é o prazer,

inclusive para os reis.” (Br.139-L.136) “Como se explica que esse homem, que

perdeu há poucos meses o filho único, e que, atormentado, por processos e brigas,

estava ontem tão perturbado, já não pense mais nisso agora ? Não vos admireis: ele

está ocupado em ver por onde passará o javali que os cães perseguem com tanto

ardor há seis horas. Não precisa nada mais.”144

A imagem do jogo em Pascal145 é assim, a figura preferencial do

divertissement como fuga para a condição de inquietação do homem: representa o

desejo sempre insatisfeito às voltas consigo mesmo, impregnando-se indiferentemente

a objetos sempre diferentes e cambiáveis por seu valor contingente de puro uso que

jamais são capazes de suprir o sentimento de falta constitutiva da condição humana.

A guerra, o combate, o jogo, o ganho: figuras da inconstância e do vazio; fuga da

transitoriedade e das evidências do absurdo pela miragem sempre evanescente do

desejo.

Mas além da viagem da insatisfação do desejo, da banalidade e arbitrariedade

das formas de existir, em Pascal, como também nos referimos no capítulo anterior, o

jogo remete à inalienabilidade da questão do sentido da vida, visto que é na forma da

aposta cega que o homem encontra um paradigma para existir, com ou sem a fé: “é

142 Idem,p.166. 143PASCAL,B. Pensamentos. Fragmentos numerados a partir da edição Brunschvicg e Lafuma. 144 (f.140) “Esse homem tão abatido com a morte de sua mulher e de seu único filho e sujeito ao tormento de tão grande dor, por que não está triste neste momento, e o vemos tão isento destes pensamentos penosos e inquietantes ? Não há motivo para estranharmos: acabam de entregar-lhe uma bola e cabe-lhe atirá-la a seu companheiro, e ei-lo a pegá-la de modo a marcar um ponto. Como quereis que pense em seus tormentos, se tão grande assunto o preocupa ?” 145 Este horizonte pascaliano da problemática do jogo não passa de modo nenhum despercebido pelas análises de Sartre em O Ser e O Nada que se indica em certa medida em continuidade com o esforço dos moralistas de transcender à analítica factuais dos comportamentos em direção a uma tentativa de aprofundamento compreensivo das condutas. (cf.O Ser e o Nada, p.688-9)

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toda minha força; se a perco, estou perdido”146Assim, a figura do jogo possui uma

dimensão filosófica preponderante em Pascal: no jeu à vide da existência tão somente

uma causa transcendente ao homem poderia justificá-lo: a aposta é feita no abandono

e na relatividade mais radical, mas seu valor é absoluto: (Br.233-L.418)

“Examinemos, pois, esse ponto, e digamos: ‘ Deus Existe ou não existe’. Para que

lado nos inclinaremos? A razão não pode determinar: há um caos infinito que nos

separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou coroa. Em que

apostareis ?”

O paradoxo insuperável da existência está assinalado: por um lado

relatividade, arbitrariedade e banalidade perspectiva, por outro o caráter absoluto não

obstante cego das decisões humanas.

De algum modo este paradoxo do compromisso surgido como se de dentro

da absurdidade da vida é reposto por Sartre em Mortos Sem Sepultura. Ao contrário

da responsabilidade clássica sugerida por Pascal, a da escolha por um sentido que

transcenda à vida, em Sartre, à absurdidade transborda em direção ao compromisso

existencial com a história, isto é, neste caso, com a finalidade histórica (imediata) que

as personagens arquitetam para si mesmas: a de não delatar Jean. Se afinal é

empunhando sua verdade pessoal que Pascal joga na manutenção de um conteúdo de

fé para vida - “se a perco estou perdido”(Br.99-L.952) - só existe também uma

clareira de liberdade, sentido e justificativa no jogo daqueles a quem “tudo

roubaram”, inclusive o futuro: “Se falamos, nós teremos perdido tudo.”147. Essa

finalidade carece de um horizonte mais amplo – configura, quem sabe, talvez, tão

somente uma causa mortis: afinal os prisioneiros, cadáveres insepultos, não cogitam

qualquer futuro além das quatro paredes.

É com horror que Jean testemunha esta tremenda metamorfose da

perspectiva da vida sofrida pelos condenados à morte, notando a re-modulação da

finalidade de existir de seus camaradas: suas vidas se reduziram à partida agonizante

entre cadáveres adiados148 - na qual a premiação não é, senão, ele mesmo. Imóvel,

Jean está impotente em relação ao sofrimento dos seus, consumido por uma vergonha

146 Br.991. 147 p.166. 148 Talvez não seja excessivo notar que os carrascos esperam irrefletidamente a sua vez visto que o exército de libertação está às portas do país.

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e culpa sem precedentes: (Jean) “É por mim que ele vai sofrer. (Henri) Tanto mais

que seja por ti. Senão seria por nada.”149

Prisioneiro por acaso, amordaçado por dever, testemunhando o massacre e o

desaparecimento cotidiano daqueles que lhe são caros, Jean lamenta-se copiosamente

de seu destino aparte de seus companheiros: o dote de sua vida parece-lhe irrisório

diante da infelicidade que está obrigado a, calado, testemunhar. Aturdido pelo

niilismo de seus companheiros diante do destino que lhes aguarda, ele, entretanto,

não ousa questionar-lhes, pois se julga como que inferior e culpado unicamente pela

conservação de sua integridade física: (Jean a Henri) “Continue. Tu tens direitos,

mesmo o de me torturar: pagaste adiantado. (Se levanta) Como vocês estão seguros

de si. É que basta sofrer na própria carne para conservar a consciência tranqüila.

(Henri não responde.) Tu não compreendes que eu sou mais infeliz do que todos

vocês.”150

A situação de Jean quem sabe metaforize a da própria população de Paris

quando refém da ocupação nazista, tal como no relato retrospectivo do próprio Sartre

Paris sous l’occupation: “ (...)não ousávamos nos queixar: tínhamos uma má

consciência. Esta vergonha secreta que nos atormentava, eu a conheci, de começo, no

cativeiro(...)nos sentíamos fora do jogo.”151

O esforço deste texto político de Sartre - como de antemão podemos divisar

pelas passagens anteriores - é o de tentar esboçar para os Ingleses os dramas

assombrosamente reais dos cidadãos parisienses que, embora preservados fisicamente,

sofriam por não poder lutar às claras como os demais e mesmo morrer, como os

demais, dignamente. Talvez neste sentido as palavras de Sartre nos ajudem a

compreender a dimensão do sofrimento moral de que é acometido Jean quando se

entende mais infortunado que seus companheiros que vão morrer, já que se crê

disposto numa posição de ainda maior inutilidade do que aqueles que morrem para

preservá-lo: “Os Ingleses e os Franceses não possuem uma única memória em

comum, tudo que Londres viveu no orgulho Paris viveu no desespero e na

vergonha(...)a ocupação foi freqüentemente mais terrível do que a guerra. Pois, em

149 Idem,p.126. 150 Idem,p.172. 151 SARTRE, J-P. Situations III. Paris sur l’Occupation, p.33, 30.

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guerra, cada um pode realizar sua função de homem enquanto que nesta situação

ambígua, não podíamos verdadeiramente nem agir, nem mesmo pensar.”152

O desespero de Jean diante da morte e tortura de seus companheiros e a

vergonha pela atitude contemplativa que é obrigado a guardar diante da violação de

Lucie, a mulher que amara, nos parece análoga a dos parisienses resignados a verem

se esvair por buracos invisíveis seus irmãos de sangue. Nostalgia pela perda do futuro,

culpa pelo presente avassalador, remorso por causas que transcendem a si: suas

palavras deixam transparecer que o fardo da inutilidade da própria vida e da

impotência diante do sofrimento do próximo começa a despontar com o peso de um

destino: (Jean) “(...) vocês sofrem por conta própria. Isto é o que dá uma consciência

tranqüila. Eu era casado; não lhes disse. Minha mulher morreu em parto. Fui ao

vestíbulo da clínica e soube que ela morrera. É igual, tudo é igual!Andei, agucei o

ouvido para ouvir seus gritos. Ela não gritava. Ela teve o bom papel. Vocês

também.”153

Jogo, partida, papel, encenação – causa: qualquer destes pretextos é igual se

pretendem justificar existências já injustificáveis que se envergam sob o peso de

tantas mortes: não é à afirmação da vida que lhes importa nestes minutos que

antecedem o martírio e o desaparecimento, mas a negação – a qualquer preço- de sua

insuportável gratuidade. A alegoria do teatro e do jogo, a arbitrariedade em estado

elementar, nos reaviva que a vida de Jean ou outro objetivo qualquer seria idêntico,

pois o que se trata é de não morrer por nada, como mostra o revelador diálogo entre

Jean e Henri: (Jean) “É para não me entregar que ela (Lucie) enfrenta os sofrimentos

e a vergonha. (Henri) Não, é para ganhar(...)Ela quer ganhar, é tudo.”

O desdobramento final de Mortos Sem Sepultura narra esta desesperançada

procura de justificação e finalidade para a existência, simbolizada nesta adesão

ilimitada ao jogo insano do silêncio alçado arbitrariamente como o valor humano

supremo. O drama final das personagens nos remete àquelas palavras ditas por Sartre

acerca do fardo da opacidade da história vivido com todo amargor pelos resistentes:

“o que é terrível, não é sofrer nem morrer, mas sofrer e morrer em vão.”154

Enquanto seus companheiros aderem ao jogo do silêncio pela possibilidade de

atribuir um sentido, senão à suas vidas, pelo menos à suas mortes, François, como

152 Idem. pp. 17, 42 153 SARTRE, J-P. Morts Sans Sepulture.p.162. 154 SARTRE, J-P. Situations III. Paris sur l’Occupation. p.31.

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dissemos, não se conforma em notar em Jean este sofrimento tão somente moral que

julga não passar de um golpe de ar diante da morte que lhe estreita e não aceita

morrer sumariamente: para ele só se pode justificar a morte pela vida de modo que

ensaia denunciar Jean a fim de livrar a si e a sua irmã, Lucie; o futuro de um delator

lhe parece mesmo delicioso posto que seja ainda um futuro: (Lucie) “Eu não quero

esta vida. (François) “Eu quero. Quero qualquer vida, não importa qual. A vergonha

passa quando longa é a vida.”155

Sua intervenção, por mais vexatória, não apenas é de algum modo, bela - pelo

elogio que procede do valor da vida por ela mesma – mas também dotada de razão e

mesmo de algum rigor, na medida em que, na lógica do pior que se delineia, a morte

de Jean significaria certamente mais créditos de vida do que sua salvação ao custo do

martírio de todo o restante do grupo, donde sua afoita e temerária conclusão:

(François para Jean) “Eu te denunciarei! Eu te denunciarei. Te farei partilhar nossas

alegrias!(...)Te salvarei Lucie. Eles nos deixarão a vida.”156

Neste momento limite o idealismo – esta presunção demasiado humana de

viver em sua verdade - se mistura dolorosamente com o niilismo e desliza de maneira

ignominiosa até a injustiça: prisioneiros da ambigüidade, ansiosos por justificar suas

existências já atormentadas pelas imensas culpas que pesam sobre os ombros daqueles

que ousam modelar à argila da história com as próprias mãos, as insepultas

personagens que restaram, defrontam-se com a nefasta situação transcrita com nitidez

por Sartre numa única sentença a que já aludimos: ““O mal estava em toda parte,

toda escolha era má e não obstante era necessário escolher e nós éramos

responsáveis.” 157

Transpassado, Canoris anuncia então, o que poderíamos considerar até

mesmo como uma expressão narrativa para a concepção sartreana do destino: destino

inscrito numa dimensão exclusivamente humana e, portanto, histórica: (Canoris a

François) “Tudo é por nossa culpa.” E conclui: 158 “Nós te pedimos perdão.”159

As palavras de Henri enquanto se aproxima de François já nos lançam no

universo aberto e brutal das possibilidades que indica que todo sacrifício é necessário

155 SARTRE, J-P. Morts Sans Sepulture.p.174. 156 Idem, p.173. 157 SARTRE, J-P. Situations III. Paris sur l’Occupation.p.37. 158 SARTRE, J-P. Morts Sans Sepulture.p.174.p.175. 159 Idem.

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em troca de uma finalidade mesmo que arbitrária para a história daqueles prisioneiros:

(Henri a François) “Nosso jogo é te impedir de falar.”

Mas é quando a irmã de François, Lucie, interpõe-se entre Jean e os outros

dois que rapidamente circundam o rapaz, que notamos a dominação inequívoca de um

niilismo desesperado refluindo na conduta “inequivocamente” reta dos resistentes:

diante da sinuosidade da história a retidão é uma armadilha auspiciosa:

(Jean) “Vocês imaginam que irei deixar acontecer. Não tenha medo, pequeno.

Estou com as mãos livres e estou contigo.”

(Lucie a Jean) Porque interferes?

(Jean) É teu irmão.

(Lucie) E daí? Ele irá morrer amanhã.

(Lucie)É necessário que ele cale. Os meios não contam(...)

(Lucie a Henri) “Meu pobre pequeno, meu único amor, nos perdoe.”

O assassinato, a sangue frio, do rapazote François, de tenros quinze anos

pelos nossos “heróis” nos introduz, assim, num questionamento indelével em torno

dos cálculos que fundamentam o sacrifício de homens em virtude de ideais. A

opacidade das ações, a dubiedade dos empreendimentos históricos aflora para o

primeiro plano do discurso ético-filosófico da narrativa de Sartre. Afinal, se, de algum

modo, em O Muro, a escolha puramente ocasional do cemitério como refúgio pela

parte de Gris e a delação involuntária de Ibbieta põe em cena o papel da contingência

dos acontecimentos (do mundo num sentido mais lato) no desenrolar sempre

imprevisível da história, aqui, em Mortos Sem Sepultura, Sartre acentua a

contingência radical das ações humanas, ressaltando a dimensão humana e mesmo

voluntária do mal.

Como atesta a desesperança de Lucie perante o corpo de seu irmão

covardemente executado, a morte de François configura não o esplendor do sentido

ou da causa, mas , ao contrário, o ápice da gratuidade e da ausência de justificativa,

enfim, um coroamento funesto para o niilismo: (Lucie) “Tu estás morto e meus olhos

estão secos; me perdoe: não tenho mais lágrimas e a morte não tem mais

importância. Lá fora eles são trezentos, deitados na grama, e eu também, amanhã,

estarei fria e nua, sem sequer uma mão para me acariciar os cabelos. Não há nada

do que se arrepender, tu sabes: a vida não tem mais muita importância.”160

160 Idem.p.183.

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Da aposta no jogo do silêncio, afinal não emana um sentido ou uma

justificativa para existência, mas unicamente uma vontade de algo como uma

redenção – uma inocência recobrada pelo martírio que podemos notar com alguma

propriedade tanto no clamor final de Sorbier prestes ao sacrifício quanto nas últimas

palavras de Lucie diante do cadáver do menino: (Lucie) “Adeus, tu fizeste o que

pudeste. Se paraste no meio do caminho, foi por que não tinha ainda forças

suficientes. Ninguém tem o direito de te culpar.”161

Neste sentido particular, à analogia do jogo no sentido clássico fixado de

maneira peremptória por Pascal nos parece novamente adequada, por mais bizarra que

a princípio nos pareça à intromissão dos termos culpa e redenção no universo secular

de Sartre: enquanto à assunção à verdade da fé seria - para o seiscentista Pascal - a

única ação que poderia redimir o homem perdido e culpado em seu patético horizonte

contingente, aposta à cegas na transcendência - para as personagens de Morts Sans

Sepulture, para os quais só resta a partida em que estão enredados – e para quem a

idéia de Deus está descartada – ganhar, ou seja, silenciar e padecer no martírio talvez

signifique também um ato de fé: fé mesmo que desesperançada, numa realização

transcendente a eles mesmos e ainda que tardiamente vindoura da finalidade última da

história que, afinal, os redimiria dos percalços de suas vidas.

De todo modo, é o próprio Sartre que, como vimos, repõe deliberadamente no

universo filosófico contemporâneo as temáticas do abandono, da culpa e até mesmo

do martírio e da redenção(ainda que pela história). De algum modo exemplar desta

perspectiva de reposição do universo ético da culpabilidade é a caracterização -

elaborada no desfecho deste texto político de 1946 que acompanhamos com atenção -

da figura dos Resistentes como redentores morais dos Franceses: “me parece que esta

minoria que se ofereceu ao martírio, deliberadamente e sem esperança, basta

amplamente para redimir nossas fraquezas.”162

Entretanto, o tom pessimista da peça de Sartre que procuramos neste capítulo

analisar, não permite o lampejo de nenhuma esperança demasiado sólida, nem sequer

a da incerta redenção pela história vindoura. A reminiscência mesmo que longínqua

de alguma espécie de finalidade histórica talvez se constitua nesta narrativa apenas

num álibi mais pretensioso para os inconformados com a gratuidade da vida e da

morte. Afinal como compreender a súbita adesão ao plano elaborado por Jean antes de 161 Idem.p183. 162 SARTRE, J-P. Situations III. Paris sur l’Occupation.p.42.

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sua soltura na tentativa de salvar a todos através da desonrosa escapatória de uma

delação fingida?

Certamente ressoa o pretexto de que, embora o adversário não saiba jamais,

ganhara-se afinal o jogo: há ainda uma fugidia esperança, que já se delineia como

esboço de futuro, de serem ainda “perfeitamente utilizáveis”163 pela causa; persiste

ainda o argumento dissimulado da indisposição da própria liberdade, pois, afinal,

segundo Canoris, os militantes não “tem o direito de morrer por nada.”164

Entretanto uma estranha ansiedade, algo como um sopro de vida, parece anular

dramaticamente estas racionalizações; não parecem ser, afinal, idéias abstratas que

alimentam nossos heróis quando decidem-se por fingir capitulação diante dos terríveis

adversários, senão um afloramento – do seio da peçonha165 - opaco, inglório e vão de

uma banal esperança de viver: Como não divisar este sopro vital na conduta

interrogante de Lucie?

(Lucie) “É verdade? Nós vamos viver? Eu já estive do outro lado...Olhem-

me. Sorriam para mim. Faz tanto tempo que não vejo um sorriso. Nós fazemos bem,

Canoris? Nós fazemos bem?”166

(Canoris) Nós fazemos bem. É preciso viver. (Ele avança em direção a um dos

milicianos.) Diga a seus chefes que nós falaremos.”167

Nos minutos seguintes os dois tiros reverberando no pátio desmentem o

pressentimento de Canoris: suas vidas afinal, não eram necessárias. Assim como não

era preciso que carrascos zelassem pela palavra empenhada...

O terceiro tiro aniquila as pretensões de esperança e justificativa das

personagens de Mortos Sem Sepultura: pela presunção da retidão padeceram numa

oblíqua vergonha; por força da culpa tornaram-se assassinos ainda mais odiosos.

Viveram no erro e morreram no abandono. Pretendendo inocência tornaram-se, enfim,

“mortos injustificáveis”168.

Esta ambigüidade e opacidade constitutivas da ação que notamos zelosamente

emergir da narrativa de Mortos Sem Sepultura, nos apresenta, deste modo, com ainda

maior nitidez do que em O Muro, a lúcida postura de Sartre acerca da dimensão

163 MSS. p.207. 164 MSS. p.208. 165 (Lucie) “Tudo está envenenado.”idem,p.214. 166(Henri) “(...)Em todos os momentos de minha vida interroguei-me sobre mim mesmo.”(idem.p.210.) 167 Idem.p.215. 168 Idemp.111.

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histórica dos impasses: é o homem, afinal, em sua complexidade irremovível e na

contingência de suas ações, que mostra-se o artífice voluntário da própria perdição.

Contudo ajuntemos: a reverberação de incompletude que emana da existência

histórica é índice da face real, ontológica da negatividade. Assim como foi necessário

à diluição do verniz de sentido infundido no cotidiano para que o Roquentin d’A

Náusea se apercebesse, ainda que na forma interrogativa, de que fazia parte da

situação de contingência que emanava “das coisas”, isso é do mundo, é na experiência

da clausura e da impossibilidade do futuro que, num relance também interrogativo, às

personagens “cativas” de Sartre – incluindo aí os cidadãos parisienses sob ocupação –

espreitam a dimensão constitutiva da falta e do mal.

O horizonte de condenação à liberdade e à responsabilidade são outros traços

do humano que brotam do núcleo da história concreta(ainda que representada pela

ficção); como dirá Sartre em O Ser e O Nada, “o homem, estando condenado a ser

livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si

mesmo enquanto maneira de ser(...)Sou responsável por tudo de fato, exceto por

minha responsabilidade mesmo, pois sou o fundamento de meu ser. Portanto, tudo se

passa como se eu estivesse coagido a ser responsável. Sou abandonado(délaissé) no

mundo, não no sentido de que permanecesse desamparado e passivo em um universo

hostil, tal como a tábua que flutua sobre a água, mas, ao contrário, no sentido de que

me deparo subitamente sozinho e sem ajuda, comprometido em um mundo pelo qual

sou inteiramente responsável, sem poder, por mais que tente, livrar-me um instante

sequer desta responsabilidade, pois sou responsável até mesmo pelo meu próprio

desejo de livrar-me das responsabilidades(...)desde o instante de meu surgimento ao

ser, carrego o peso do mundo totalmente só, sem que nada e ninguém possa aliviá-

lo."169

Assim, com a inscrição da problemática histórica num questionamento

filosófico acerca do sentido do destino humano Sartre coloca-se, de algum modo,

entre os herdeiros dos moralistas clássicos da tradição francesa, como por ex. La

Rochefoucault, La Bruyère ou Pascal. Assim como nos moralistas filósofos do século

XVII, também as descrições dos estados psíquicos, das práticas morais, das situações

limite, da história contemporânea, personificadas em Sartre nos protagonistas da

169 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. p, 677-680.

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ficção, configuram múltiplas emanações do questionamento original acerca dos traços

constituintes do real e da condição humana.

*

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Cap.5) O enigma dos projetos: a escolha voluntária do destino em Baudelaire

Estas primeiras abordagens que realizamos da ficção de Sartre, ainda que

iniciais, quem sabe nos tenham permitido ao menos apresentar a questão da opacidade

constitutiva das ações quando empenhadas nas escolhas exigidas pelo presente.

Embora nossa investigação tenha por objetivo constituir o arcabouço teórico de Sartre

no instante da ruptura com Camus, quem sabe não seja excessivo acompanhar, ainda

que por um momento, a importância da compreensão da complexidade dos projetos

singulares e dos momentos singulares da história, a partir de uma perspectiva madura

da obra de Sartre. Em Questão de Método de 1967, sob o impacto da crítica do

humanismo à barbárie da burocracia socialista investida de direitos absolutos,

inclusive o de distorcer as análises da realidade, para concretizar em detrimento dos

custos humanos o ideário do finalismo histórico da ditadura do proletariado, Sartre,

traçando uma distinção entre o existencialismo e o marxismo se detém sobre as

iniciativas reducionistas dos historiógrafos marxistas contemporâneos, entre os quais

Lukács, que, segundo ele, visam conformar a multiplicidade do concreto na rigidez de

alguns princípios básicos eleitos como verdades absolutas: "O que faz, portanto, que

não sejamos simplesmente marxistas? É porque consideramos as afirmações de

Engels e Garaudy como princípios diretores, indicações de tarefas, problemas e não

verdades concretas; é porque elas nos parecem suficientemente determinadas e, como

tais, suscetíveis de numerosas interpretações; em poucas palavras, é porque ela nos

aparecem como idéias reguladoras. Pelo contrário, o marxista contemporâneo acha

que as mesmas são nítidas, precisas e unívocas; para ele, constituem já um saber." 170

Para Sartre, o conceito de situação171 é diverso para marxistas e

existencialistas: nos primeiros, alerta o filósofo, a complexidade da perspectiva dos

170 SARTRE, J-P. Questão de Método in Crítica da Razão Dialética. p.42. 171 "Não há dúvida de que o marxismo permite situar um discurso de Robespierre, a política dos montanheses em relação aos sans-culottes, a regulamentação econômica e as leis de "maximum"* votadas pela Convenção, tão bem quanto os poemas de Valéry ou La Légende des siècles. Mas, afinal, o que é situar? Se eu me refiro aos trabalhos dos marxistas contemporâneos, vejo que pretendem determinar o lugar real do objeto considerado no processo total: serão estabelecidas as condições materiais de sua existência, a classe que o produziu, os interesses dessa classe(...)O discurso, o voto, a ação política ou o livro aparecerão, neste caso, em sua realidade objetiva, como um certo momento desse conflito; este será definido a partir dos fatores dos quais depende e pela ação real que exerce; por aí, será incluído, como manifestação exemplar, na universalidade da ideologia ou da política consideradas, por sua vez, como superestruturas. Assim, os girondinos serão situados por referência a ruína da burguesia de comerciantes e armadores que provocou a guerra por imperialismo mercantil e, quase logo, deseja interrompê-la porque ela causa prejuízo ao comércio exterior. Pelo contrário, os montanheses serão tidos por representantes de uma burguesia mais recente, enriquecida pela compra

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indivíduos singulares está diluída num cerrado esquema de compreensão do humano

pela imposição à realidade de dinâmicas econômico-dialéticas e de estruturas

rigidamente pré-estabelecidas donde a perda da dimensão originária de cada projeto,

realização ou acontecimento: “ Esse método não nos satisfaz: baseia-se no a priori;

não extrai seus conceitos da experiência - ou, pelo menos, não da nova experiência

que procura decifrar -, já os formou, já tem a certeza de sua verdade, atribuir-lhes-á

o papel de esquemas constitutivos: seu único objetivo é fazer entrar os

acontecimentos, as pessoas ou os atos considerados em moldes pré-fabricados. Vejam

Lukács: para ele, o existencialismo heideggeriano transforma-se em ativismo sob a

influência dos nazistas; pelo contrário, o existencialismo francês, liberal e

antifascista, expressa a revolta dos pequenos-burgueses subjugados durante a

Ocupação. Que belo romance!”172

O esforço de maturidade de Sartre é o de recobrar uma certa inspiração

original substancialmente presente nos trabalhos de Marx, que primam, não por

imprimir forçosamente à realidade seus esquemas conceituais, mas, ao contrário, por

procurar restaurar a complexidade e opacidades originais dos acontecimentos. Para

Sartre, o Marx de O 18 Brumário, procurando perfazer a teia complexa de eventos

buscaria permitir, ao final de sua análise, re-encontrar o homem singular como

produtor da realidade e não uma saga abstrata de figuras como aconteceria na

historiografia marxista contemporânea.

Por aí podemos delinear a importância do termo situar para Sartre, que

significa sobretudo a tentativa de restauração sintética da singularidade como

produtora dos acontecimentos, notando como as realizações e eventos participam de

um invólucro de contingência e de opacidade que são constitutivos dos projetos

dos Biens nationaux* e pelas provisões de guerra; por conseqüência, seu principal interesse é o de prolongar o conflito. Assim, os atos e discursos de Robespierre serão interpretados a partir de uma contradição fundamental: para continuar a guerra, esse pequeno-burguês deve apoiar-se no povo, mas a baixa do assignat,** o açambarcamento e a crise dos meios de subsistência conduzem o povo a exigir um dirigismo econômico prejudicial para os interesses dos montanheses, além de ser repugnante para a sua ideologia liberal; por trás desse conflito, descobre-se a contradição mais profunda entre o parlamentarismo autoritário e a democracia direta.Pretende-se situar um autor de hoje? O idealismo é a terra nutriz de todas as produções burguesas; esse idealismo está em movimento uma vez que, à sua maneira, reflete as contradições profundas da sociedade; cada um de seus conceitos é uma arma contra a ideologia ascendente - segundo a conjuntura, a arma é ofensiva ou defensiva. Ou, melhor ainda, de início, ofensiva, torna-se, com o tempo, defensiva. Assim, Lukács estabelecerá a distinção entre a falsa quietude do período que antecedeu a Primeira Grande Guerra que se expressa "por uma espécie de carnaval permanente da interioridade fetichizada" e a grande penitência, o refluxo do pós-guerra durante o qual os escritores procuram "a terceira via" para dissimular o seu idealismo.” (idem,p.42) 172 idem.p.42.

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singulares: "o pensamento original de Marx, tal como é encontrado em O 18

Brumário, tenta uma síntese difícil entre a intenção e o resultado; a utilização

contemporânea desse pensamento é superficial e desonesta.(...) o marxismo concreto

deve analisar de forma profunda os homens reais e não dissolvê-los em um banho de

ácido sulfúrico."173

Preservar a singularidade e complexidade de cada situação seria à alternativa

para uma historiografia que se almeja capaz de recuperar algum sentido para a história

e não mascará-la com esquemas finalistas. De certo que as análises marxistas para os

desdobramentos dos acontecimentos fundadas nas metamorfoses econômicas e

políticas da superestrutura guardam um valor heurístico, mas como idéias reguladoras,

e não como esquemas necessários. Para Sartre, afinal, haveria algo de

indecomponível nos acontecimentos históricos, que, para serem conhecidos, precisam

ser entrevistos como que pelos olhos dos sujeitos de cada situação, pois é apenas

neles, que a complexidade e opacidades constitutivas dos eventos recobram sua

dimensão ambígua e contingente: “Um historiador - ainda que fosse marxista - não

pode esquecer que a realidade política, para os homens de 1792, é um absoluto, algo

de irredutível(...) eles cometem o erro de ignorar a ação de forças mais surdas,

menos claramente identificáveis, mas infinitamente mais poderosas: mas é isso

justamente o que os define como burgueses de 1792(...) é necessário passar pela

mediação dos homens concretos."174

Segundo Sartre, o risco das análises esquemáticas marxistas que postulam

entidades e processos que se auto-recriam a todo instante - como no piparote do

apeíron aristotélico que movimentaria para sempre o mundo - é justamente o perigo

de prescindir definitivamente do homem em virtude da investigação de uma entidade

abstrata e inútil intitulada história. Esta história marxista é asséptica, desencarnada, e

este esquecimento proverbial do conteúdo concreto dos acontecimentos talvez seja um

indício significativo de que a barbárie protagonizada pelos regimes de cunho

socialista no século XX afinal, tenha razões também de fundo conceitual, pois o

finalismo e o sacrifício humano estão em notável sintonia nas reflexões à luz do

stalinismo revisitado. 173 Idem,p.47. “(...)o marxismo vivo é heurístico: em relação à sua pesquisa concreta, seus princípios e seu saber anterior aparecem como reguladores. Em Marx nunca encontramos entidades: as totalidades(por exemplo, a ‘pequena burguesia’ em O 18 Brumário) são vivas(...)Se subordina os fatos anedóticos à totalidade(de um movimento, de uma atitude), é através deles que pretende descobri-la.Ou por outras , dá a cada acontecimento, um papel revelador... ”(idem.p,33.) 174 Idem. p.45.

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De todo modo, o que preocupa a Sartre é esta inanidade da visão marxista da

história que drena o homem singular dos acontecimentos. Neste processo de

simplificação da dialética que abstrai a mediação humana Sartre entrevê um

desdobramento tardio do mecanicismo transposto para a hermenêutica do real: o

resultado não é nenhuma compreensão significativa dos móveis humanos da

realização da história, mas uma mera explicação(justificativa) dos acontecimentos,

encarados como fatos como que independentes do homem: "Tomando as coisas por

esse viés, a ação humana é reduzida à de uma força física, cujo efeito depende,

evidentemente, do sistema no qual ela se exerce. Só que, justamente por isso, já não

se pode falar de fazer. São os homens que fazem e não as avalanches. A má fé de

nossos marxistas consiste em jogar, a uma só vez, com as duas concepções para

conservar o benefício da interpretação ideológica, embora escondendo o uso

abundante e grosseiro que fazem da explicação pela finalidade. Utilizam a segunda

concepção para fazer aparecer a todos os olhares uma interpretação mecanicista da

História: os fins desapareceram. Ao mesmo tempo, servem-se da primeira para

transformar, de forma dissimulada, em objetivos reais de uma atividade humana as

conseqüências necessárias, mas imprevisíveis que essa atividade comporta. Daí. essa

vacilação tão fatigante das explicações marxistas: de uma frase a outra, a empresa

histórica é definida implicitamente por objetivos (que, muitas vezes, não passam de

resultados imprevistos) ou reduzida à propagação de movimento físico através de um

meio inerte. Contradição? Não. Má fé:"175 É notável que quase cem anos depois de

Comte e após os processos de Moscou seja ainda necessária à advertência aos

historiógrafos de plantão: “Em suma, estamos julgando homens e não forças

físicas.”176

Talvez por aqui possamos quem sabe divisar com alguma nuance o quilate da

empresa de Sartre dentro da tradição marxista de que se faz depositário: se poderia

afinal criar um metodologia de compreensão dos eventos e realizações sem que

tenhamos de sacrificar para isso o humano em sua dimensão singular? Este

questionamento reverbera para a práxis histórica, pois afinal, o que seria a barbárie

senão o extermínio da singularidade?

"O formalismo marxista é uma empresa de eliminação. O método identifica-se

com o Terror pela sua recusa inflexível de diferenciar; seu objetivo e a assimilação 175 Idem,p.49 176 Idem.p.48.

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total mediante o menor esforço. Não se trata de realizar a integração do diverso

como tal, conservando sua autonomia relativa, mas de suprimi-lo: assim, o

movimento perpétuo em direção à identificação reflete a prática unificadora dos

burocratas."177

Esse mecanismo de supressão e aniquilamento do indivíduo, característicos

tanto dos campos de concentração nazista quanto dos Gulag soviéticos Sartre entrevê

preconizado pela diluição em “ácido sulfúrico” de certas biografias reduzidas aos

esqueletos conceituais das entidades fantasmagóricas que representam. O caso de

Valéry é aventado como paradigmático da fragilidade da esquemática do marxismo

contemporâneo para adentrar na densidade complexa do indivíduo na origem fortuita

de seus projetos. Por aí podemos entrever a insignificância do singular diante da

abstração totalizante do finalismo histórico: “Se desejo compreender Valéry, esse

pequeno-burguês intelectual, oriundo desse grupo histórico e concreto - a pequena

burguesia francesa no final do século passado, é preferível que eu não recorra aos

marxistas: estes hão de substituir esse grupo numericamente definido pela idéia de

suas condições materiais, de sua posição entre os outros grupos e de suas

contradições internas; voltaremos à categoria econômica, reencontraremos essa

propriedade pequeno-burguesa ameaçada(...)Mas trata-se de Valéry. Nosso marxista

abstrato não se comove por tão pouco: há de afirmar o progresso constante do

materialismo e depois descreverá um certo idealismo analítico, matemático e

ligeiramente tingido de pessimismo que ,nos apresentará, para terminar, como uma

simples resposta, já defensiva, ao racionalismo materialista da filosofia

ascendente(...) Quanto a Valéry, evaporou-se.”178

Para Sartre não se trataria de diluir a realidade numa pseudo-universalidade

pré-determinada, mas, ao contrário, de fazer emergir do núcleo do concreto um traço

universal; Valéry, afinal, não seria um mero produto de seu meio, mas também um

produtor da realidade a partir de sua liberdade, alguém que irradia, a partir da

clausura e opacidades de sua perspectiva, a irredutibilidade de uma época:

“Consideramos a ideologia de Valéry como o produto concreto e singular de um

existente que se caracteriza, em parte, por suas relações com o idealismo, mas que 177 Idem,p.49. “O metrô de Budapeste era real na cabeça de Rákosi; se o subsolo da cidade não permitia sua construção era porque o subsolo era contra-revolucionário. O marxismo, enquanto interpretação filosófica do homem e da História, devia(para os burocratas) necessariamente refletir as opiniões pré-concebidas do planejamento: essa imagem fixa do idealismo e da violência exerceu sobre os fatos uma violência idealista...”(idem.p.31) 178 Idem,p.53.

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deve ser decifrado em sua particularidade e, antes de tudo, a partir do grupo

concreto de onde é oriundo. Isso não significa, de modo algum, que suas reações não

envolvam as de seu meio, de sua classe etc., mas somente que apreenderemos a

posteriori pela observação e em nosso esforço para totalizar o conjunto do saber

possível sobre essa questão. Valéry é um intelectual pequeno-burguês, eis o que não

suscita qualquer dúvida. Mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Valéry. A

insuficiência heurística do marxismo contemporâneo está contida nessas duas

frases."179

A preocupação de maturidade de Sartre, residirá fundamentalmente neste

esforço de aperfeiçoamento de um tipo preciso de heurística histórica em busca de um

método que pudesse iluminar de algum modo, o sentido e a finalidade dos

empreendimentos humanos através da perspectiva contingente dos indivíduos

singulares. O esforço do existencialismo, assim, se posiciona na esteira de Marx, não

obstante se esforce em restaurar a concretude que o universalismo economicista dos

marxistas contemporâneos se esmerou em diluir com a intenção de preservar o ideário

filosófico em detrimento do humano: “Sem ser infiel às teses marxistas, pretende

encontrar as mediações que permitam engendrar o concreto singular, a vida, a luta

real e datada, a pessoa a partir das contradições gerais das forças produtivas e das

relações de produção.”180

É neste sentido que, às vésperas de 68, Sartre deposite ainda esperanças

metodológicas na psicanálise como propedêutica de acesso à complexidade

irremovível dos indivíduos, de seus projetos e realizações, e, a partir deles, dos

fugidios instantes da história. A psicanálise, despida de idealismos e conjugada com o

materialismo dialético poderia restaurar o espírito do marxianismo original, qual seja,

divisar o homem em relação de simbiose, tanto como origem como quanto

receptáculo da história. Assim, no horizonte do Sartre maduro a tentativa de

compreensão da história passa pela investigação de sua mediação humana, na medida

em que é a existência, na maneira da reciprocidade, que elabora e é elaborada pela

exterioridade. “Atualmente, só a psicanálise permite estudar a fundo o processo pelo

qual uma criança; no escuro, às apalpadelas, vai tentar representar, sem o

compreender, a personagem social que os adultos lhe impõem, é ela sozinha que nos

mostrará se tal personagem sufoca no desempenho de seu papel, se procura evadir-se 179 Idem.p.55. 180 Idem.p,55.

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dele ou se o assimila inteiramente. Somente ela permite reencontrar o homem inteiro

no adulto, isto é, não só suas determinações presentes, mas também o peso de sua

história. E estaríamos completamente enganados em imaginar que essa disciplina se

opõe ao materialismo dialético.”181

Exemplar da aspiração de maturidade da filosofia de Sartre, compreender algo

como uma universalidade advinda do seio da singularidade histórica é a tentativa de

elaborar a biografia filosófica de Flaubert - intitulada O Idiota da Família - que não

obstante contar com quatro densos volumes, permanece inacabada, como registro

tanto da minúcia especulativa quanto da dimensão interrogante da empreitada de

compreensão da fusão profunda entre universalidade e singularidade que cada

indivíduo sintetiza. Ainda em Questão de Método encontramos o registro deste

questionamento que perpassará praticamente toda a vida do autor: “(...)a criança

toma-se esta ou aquela porque vive o universal como particular. Flaubert viveu no

particular o conflito entre as pompas religiosas de um regime monárquico, que

pretendia renascer, e a irreligião do pai, pequeno-burguês intelectual e filho da

Revolução Francesa. Considerado em sua generalidade, esse conflito traduzia a luta

dos antigos proprietários fundiários contra os compradores de bens nacionais e

contra a burguesia industrial. Essa contradição (aliás, dissimulada sob a

Restauração por um equilíbrio provisório), Flaubert viveu-a para ele só e por si

mesmo(...)será necessário relacionar Madame Bovary à estrutura político-social e à

evolução da pequena burguesia; será necessário relacionar a obra com a realidade

presente tal como é vivida por Flaubert, através da sua infância.”182 Procurar

imergir na ótica do Flaubert criador seria buscar a restauração de uma dimensão

profunda da história, na qual estaria cristalizada, como num fóssil, o instante exato

dos acontecimentos que ela abarca. Se a consciência está lançada à exterioridade,

imergir no instante preservado da consciência de outrem através seja de sua biografia, 181 “De fato, o materialismo dialético não pode privar-se por mais tempo da mediação privilegiada que lhe permite .passar das determinações gerais e abstratas para certos traços do indivíduo singular. A psicanálise não tem princípios, não tem base teórica: no máximo, ela é acompanhada - em Jung e em certas obras de Freud - por uma mitologia perfeitamente inofensiva. De fato, trata-se de um método que se preocupa, antes de tudo, em estabelecer a maneira como a criança vive suas relações familiares no interior de determinada sociedade. E isso não quer dizer que ela coloque em dúvida a prioridade das instituições. Muito pelo contrário, seu objeto depende, por sua vez, da estrutura de tal família particular e esta não passa de uma certa singularização da estrutura familiar própria a tal classe, em tais condições; assim, algumas monografias psicanalíticas - se continuassem sendo possíveis - colocariam, por si mesmas, em relevo a evolução da família francesa entre os séculos XVIII e XX, a qual, por seu turno, traduz à sua maneira a evolução geral das relações de produção.”(Idem.pp 57-59.) 182 Idem,p.59.

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seja de sua obra, significaria recorrer espeleologicamente à espessura daquele

momento histórico irradiador, e para sempre perdido: “existe uma espécie de histerese

da obra em relação à época em que é publicada(...)Essa histerese, sempre

negligenciada pelos marxistas, dá conta, por sua vez, da realidade social em que os

acontecimentos, os produtos e os atos contemporâneos se caracterizam pela

extraordinária diversidade de sua profundidade temporal.”183

Ainda uma vez, ajuntemos: não se trataria nem de derivar os atos singulares

diretamente das superestruturas a que os homens estivessem supostamente

acorrentados (“e que falariam por sua boca”), como no marxismo contemporâneo,

nem tampouco, de derivar as ações de estruturas esquemáticas pré-moduladas de

comportamento (como por ex. atribuir os atos de Napoleão a uma certa manifestação

do complexo de inferioridade ou do complexo de Édipo, etc.), mas sim de notar como

os indivíduos, em sua condição de liberdade originária, elaboram a si mesmos e há

seu tempo a partir dos influxos da exterioridade. Assim, é ainda a liberdade humana

imersa em sua verdade perspectiva e relativa inscrita no tempo, a protagonista da

história sartreana.

Nossa intenção, nesta pequena intromissão que fizemos na filosofia madura de

Sartre, foi o de tão somente sublinhar que as preocupações acerca da espessura

enigmática das condutas e da reciprocidade entre indivíduo e história, que estão em

questão nos anos sessenta sob “luzes marxistas”, já estão em pauta nos idos de 43, nas

interrogações magnas da “psicanálise existencial” de O Ser e O Nada. Aqui, Sartre

diferencia o empreendimento da “psicanálise existencial” do trabalho da psicologia

empírica, que segundo ele, também dissolveria a singularidade dos projetos num

esquema universal de compreensão comportamental do ser humano: “(na psicologia

empírica) um homem seria definido pelo feixe de tendências que a observação

empírica pode estabelecer. Naturalmente, o psicólogo nem sempre se limitará a

efetuar a soma dessas tendências: ele se compraz em esclarecer seus parentescos,

concordâncias e harmonias, e. em tentar apresentar o conjunto dos desejos como

uma organização sintética, na qual cada desejo atua sobre os demais e os influência.

Por exemplo, um crítico, querendo esboçar a "psicologia" de Flaubert, escreverá que

ele parece ter conhecido como estado normal, no início de sua juventude, uma exalta-

ção contínua, produto do duplo sentimento de sua desmesurada ambição e sua força

183 Idem.p.59.

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invencível... A efervescência de seu sangue jovem torna-se, portanto, uma paixão

literária, como acontece por volta dos dezoito anos às almas precoces que encontram

na energia do estilo ou nas intensidades de uma ficção certo modo de enganar a

necessidade, que as atormenta, de muito agir e sentir em demasia. Há, nesse trecho,

um empenho para reduzir a personalidade complexa de um adolescente a alguns

desejos básicos, assim como o químico reduz os corpos compostos a mera

combinação de corpos simples. Esses dados primários serão a ambição desmedida, a

necessidade de agir muito e sentir demasiado; tais elementos, ao entrar em

combinação, produzem uma exaltação permanente(...)E aqui está, esboçada, a gênese

de um ‘temperamento’ literário.Mas, em primeiro lugar, semelhante análise

psicológica parte do postulado de que um fato individual se produz pela intersecção

de leis abstratas e universais. O fato a ser explicado - neste caso, as tendências

literárias do jovem Flaubert - resolve-se em uma combinação de desejos típicos e,

abstratos, tais como os encontramos no ‘adolescente em geral’(...)O que há de

concreto, aqui, é somente a combinação entre eles; por si sós não passam de

esquemas.”184

Assim como nos anos sessenta Sartre advertirá aos marxistas o risco de

submeter à realidade ao banho de ácido dos esquemas finalistas e economicistas

universalizantes, anos antes, advertia aos psicólogos, uma perda semelhante da

dimensão concreta dos projetos: “A cada etapa da descrição supracitada

encontramos um hiato. Por que a ambição e o sentimento de sua força produzem em

Flaubert uma exaltação, em vez de uma espera tranqüila ou uma sombria impa-

ciência? Por que esta exaltação se especifica em necessidade de agir demasiado e

sentir em excesso? Ou melhor, para que serve essa necessidade que surge

subitamente, por geração espontânea(...)por que, em vez de buscar satisfazer-se em

atos de violência, fugas, aventuras amorosas ou na libertinagem, tal necessidade

escolhe precisamente, satisfazer-se simbolicamente? E por que esta satisfação

simbólica, que poderia, por outro lado, não pertencer à ordem artística. (há também,

por exemplo, o misticismo), encontra-se na literatura, e não na pintura ou na música?

‘Eu poderia ter sido um grande ator’, escreveu Flaubert em algum lugar. Por que

não tentou sê-lo? Em suma, não compreendemos nada; vimos uma sucessão de

184 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p. 683.

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acasos, de desejos que irrompem uns dos outros, sem que seja possível captar sua

gênese.”185

Sartre nota que no tratamento generalizante dos casos singulares da

existência através da psicologia e mesmo da psicanálise em geral conduz-se uma

perda do valor irredutível de cada gesto como inscrito numa historicidade própria e

esta simplificação seria, afinal, a essência mesmo de seus métodos; reduzir a

complexidade dos sujeitos a uma captação de “conexões genéricas”: “Por exemplo, (a

psicologia) pode captar a ligação entre castidade e misticismo, entre fraqueza e

hipocrisia. Mas ignoramos sempre a relação concreta entre esta castidade (esta

abstinência com relação a tal ou qual mulher, este embate contra tal ou qual tentação

precisa) e o conteúdo individual do misticismo; exatamente como, por outro lado, a

psiquiatria se satisfaz ao esclarecer as estruturas genéricas dos delírios e não busca

apreender o conteúdo individual e concreto das psicoses (por ex. este homem supõe

ser tal ou qual personalidade histórica, em vez de outra qualquer; por que seu delírio

de compensação se satisfaz com estas idéias de grandeza, em vez de outras, etc.) Mas,

sobretudo, essas explicações ‘psicológicas’ nos remetem inevitavelmente a

inexplicáveis dados primordiais. São os corpos simples da psicologia. Dizem-nos, por

exemplo, que Flaubert tinha uma ‘ambição desmedida’, e toda a descrição

supracitada se apóia nesta ambição original. Que assim seja. Mas esta ambição é um

fato irredutível que de forma alguma satisfaz o pensamento.(...)E pensar: isso é o que

se denomina psicologia.”186

A psicanálise existencial de Sartre, assim, põe-se uma tarefa hercúlea de

resgatar a visão singular de cada sujeito, na complexidade e opacidade constitutivas

de sua perspectiva, ou seja, nada mais nada menos de intrometer-se na realidade

própria de cada um, em busca da origem profunda de seus projetos e realizações na

emergência do presente no qual se realizaram. Numa palavra, nos parece um projeto

de restauração da própria contingência de cada existência real.

Os mecanismos tradicionais de associação dos comportamentos a feixes

genéricos de compreensão não são suficientes para dar conta da singularidade

existencial, assim como ficará claro mais tarde, a impropriedade dos esquemas de

compreensão da história através dos esquemas abstratos marxistas: “Esse penhasco

está coberto de musgo, o rochedo vizinho, não. Gustave Flaubert tinha ambição 185Idem, p.684. 186 Idem,p.685

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literária e seu irmão Achile não. Assim é. Do mesmo modo, queremos conhecer as

propriedades do fósforo e tentamos reduzi-las à estrutura das moléculas químicas

que o compõem. Mas, por que há moléculas desse tipo? Assim é - eis tudo. A

psicologia de Flaubert irá consistir em concentrar, se possível, a complexidade de

suas condutas, sentimentos e gostos em algumas propriedades, bastante análogas às

dos corpos químicos, e além das quais seria uma tolice querer remontar-se.”187

A diferenciação do empreendimento da “psicanálise existencial” em

relação à psicologia e mesmo à psicanálise tradicional na medida em que esta ainda

busca por impingir esquemas pré-estabelecidos aos indivíduos é a tentativa, por um

lado, de preservar o núcleo da liberdade donde emanam as inúmeras formas de

conduta frente às determinações da exterioridade, de outro, salientar a

irredutibilidade e historicidade dos projetos singulares, não do ponto de vista da

renúncia do empreendimento compreensivo, mas no sentido que é sempre o homem

concreto e inexoravelmente complexo que deve ser encontrado ao final da análise: “

(...)todavia, sentimos obscuramente que Flaubert não «recebeu» sua ambição. Esta é

significante, e, portanto, livre. Nem a hereditariedade, nem a condição burguesa, nem

a educação podem explicá-la; muito menos ainda as considerações fisiológicas sobre

o "temperamento nervoso" que estiveram em moda por algum tempo: o nervo não é

significante; é uma substância coloidal. que deve ser descrita em si mesmo e não se

transcende para fazer conhecido a si própria, através de outras realidades, aquilo

que é. Não poderia, de modo algum, portanto, fundamentar uma significação. Em

certo sentido, a ambição de Flaubert é um fato com toda sua contingência - e é

verdade que é impossível avançar para-além do fato -, mas, em outro sentido, essa

ambição se faz, e nossa insatisfação é garantia de que, para-além desta ambição,

poderíamos captar algo mais, algo como uma decisão radical, a qual, sem deixar de

ser contingente, consistiria no verdadeiro irredutível psíquico. O que exigimos - e que

jamais tentam nos proporcionar - é, pois, um verdadeiro irredutível, ou seja, um

irredutível cuja irredutibilidade nos fosse evidente, e que não nos fosse apresentado

como o postulado do psicólogo e o resultado de sua recusa ou incapacidade de ir

mais longe, mas sim cuja constatação produzisse em nós um sentimento de

satisfação."188

187 Idem,p.686. 188 Idem,p.686. Ajuntemos: este sentimento de satisfação parece puramente hipotético se notarmos, por exemplo, o teor inacabado de O Idiota da Família.

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Essa satisfação ainda que hipotética, seria oriunda do resguardo da

irredutibilidade do projeto existencial em questão, do re-encontro do vínculo do

existente com a história em que está imerso, e, fundamentalmente, pela reposição da

liberdade originária como centro irradiador dos projetos. Deste modo, para Sartre, não

são as determinações exteriores, familiares, sociais – “a mecânica do meio” - nem

tampouco tendências latentes do inconsciente que, aflorando, afinal “falariam pela

boca” dos indivíduos, governado seus atos, fazendo-os marionetes de finalidades

subsumidas ocultas, mas, ao contrário, a própria liberdade humana que se constitui

como um projeto de si e de realidade mesmo que de forma opaca, imersa que está na

nebulosidade própria do presente: “ "exigimos que o ser considerado não se dissolva

em poeira e que possamos nele descobrir esta unidade - da qual a substância não

passa de uma caricatura -, unidade que há de ser unidade de responsabilidade,

unidade amável ou odiosa, repreensível ou louvável, em suma: pessoal, Esta unidade,

que é o ser do homem considerado, é livre unificação(...) Ser, para Flaubert, como

para todo sujeito de "biografia" é unificar-se no mundo. A unificação irredutível que

devemos encontrar, unificação que é Flaubert e que pedimos aos biógrafos para nos

revelar, é, portanto, a unificação de um projeto original..."189

Para Sartre, as condutas humanas, por mínimas que sejam, expressam a um

só tempo, de maneira sintética, as determinações da exterioridade – época, classe

social, família, etc. - e à liberdade originária, filtro a partir do qual o existente elabora

seu projeto de ser. Em cada uma das condutas, se expressa também, a totalidade do

existente como projeto, e, de alguma maneira, sua atitude mesma diante de si e do

mundo190.

Assim, o ataque à psicologia tradicional de Sartre se dá pela crítica aos

conceitos de dados primordiais da personalidade(as naturezas simples da psicologia),

de tendência(como inclinações substanciais originárias), de caráter(como alguma

suposta identidade originária), de hereditariedade(como determinante do ser): a

psicanálise existencial de Sartre, enfim, “nada reconhece antes do surgimento da

liberdade humana.”191

189 Idem. p.686. 190 “O princípio desta psicanálise consiste na assertiva de que o homem é uma totalidade e não uma coleção; em conseqüência, ele se exprime inteiro na mais insignificante e mais superficial das condutas em outras palavras: não há um só gosto, um só tique, um único gesto humano que não seja revelador.”(idem.p.696.) 191 Idem, 697.

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Neste ponto, talvez não seja excessivo notarmos a aproximação que Sartre

elabora entre seu próprio método e de alguns dos ‘moralistas’ franceses, na medida

em que os dados empíricos serviriam neles não a um mero procedimento

classificatório e ao recurso à regressão até às supostas entidades abstratas do ser, mas

a revelações acerca da própria condição humana na opacidade de sua relação

intrínseca com real. "Os moralistas mais perspicazes mostraram algo como um

transcender do desejo por si mesmo; Pascal, por exemplo, supôs descobrir na caça,

no jogo da péla ou em centenas de outras ocupações, a necessidade de diversão 192-

ou seja, clarificava, em uma atividade que seria absurda se reduzida a si mesmo, uma

significação que a transcende, isto é, uma indicação que remete à realidade do ho-

mem em geral e à sua condição. Igualmente, Stendhal, a despeito de suas ligações

com os ideólogos, e Proust, apesar de sua tendências intelectualistas e analíticas,

mostraram que o amor e o ciúme não poderiam reduzir-se ao estrito desejo de

possuir uma mulher, mas visam apoderar-se do mundo inteiro através daquela

mulher: este é o sentido da cristalização stendhaliana, e, precisamente por causa

disso, o amor, tal como Stendhal o descreve, aparece como um modo de ser no

mundo, ou seja, como uma relação fundamental do Para-si com o mundo e consigo

mesmo (ipseidade) através de tal mulher em particular; a mulher representa apenas

um corpo condutor situado no circuito. Tais análises podem ser inexatas ou não

completamente verdadeiras: nem por isso deixam de nos fazer suspeitar da

possibilidade de outro método que não o da pura descrição analítica."193

No caso de Sartre, entretanto, talvez não seja excessivo ainda uma vez

assinalar, a transcendência filosófica da pura analítica dos comportamentos estaria

direcionada, para a elucidação do enigma do singular: a revelação buscada aqui seria a

da condição humana como projeto fundamental de elaborar a si como escolha livre,

por detrás das condutas aparentemente determinadas pelo exterior: “Não se trata aqui

de buscar um abstrato detrás do concreto(...)Pelo contrário, trata-se de recobrar, sob

aspectos parciais e incompletos do sujeito, a verdadeira concretude, a qual só pode

consistir na totalidade de seu impulso rumo ao ser e de sua relação original consigo

mesmo, com o mundo e com o Outro, na unidade de relações internas e de um projeto

192 Esta passagem de O Ser e O Nada justifica nossa intromissão pascaliana à questão do jogo elaborada acima. 193 Idem,p.688-9

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fundamental.”194 Noutras palavras, a psicanálise existencial, “caso possa existir”195,

“é um método destinado a elucidar, com uma forma rigorosamente objetiva, a

escolha subjetiva pela qual cada pessoa se faz pessoa, ou seja, faz-se anunciar a si

mesmo aquilo que ela é.”196

Não obstante a possibilidade da psicanálise existencial197 de fato existir,

como vimos na sentença acima, se configure uma mera hipótese, e embora alguns dos

projetos de Sartre para a aplicação de sua metodologia guardem um teor inacabado ou

mesmo nem tenham sido realizados198, há, entretanto, dois esforços que, afinal,

almejam um teor ‘conclusivo’: Baudelaire de 47 e Saint Gênet, comédien et martyr de

52.

Neste capítulo, nos dedicaremos a uma pequena análise da primeira parte deste

primeiro empreendimento de captura da densidade da singularidade através de uma

biografia, notando, em continuidade com o foco que já sublinhamos a partir das

primeiras obras de ficção de Sartre, a dimensão “voluntária” que o autor atribui ao

destino - encarado como manifestação última do projeto singular, isto é, escolha livre.

*

“<<Ele não teve a vida que mereceu. >> Desta máxima de consolação, a

vida de Baudelaire nos parece uma magnífica ilustração(...)E se ele houvesse

merecido a sua vida. E se, ao contrário das idéias recebidas, os homens não tem

senão a vida que merecem?”

O procedimento de Sartre é genealógico, recorrerá, primeiramente, às diversas

biografias estabelecidas sobre Baudelaire na tentativa de reconstituir a infância do

poeta sob o que seria a ótica segundo a qual ele a viveu, depois, sondará detidamente

a documentação pessoal do autor – correspondência, diários – para compreender

como o poeta exercita na vida adulta, mesmo sem o saber, certas escolhas que

guardam relações com móveis que se remetem à infância, e, além disso, através de 194 Idem.p,689. 195 Idem p.702. 196 Idem,p.702. 197 Dissemos que não é nossa intenção elaborar nenhuma investigação mais detida sobre os problemas de natureza fenomenológica de Sartre nesta tese, entre os quais os tópicos necessários à elaboração de uma “psicanálise existencial”: daí o teor incompleto e mesmo taquigráfico das colocações deste capítulo. Entretanto, nos parece significativa esta pequena introdução teórica à dimensão enigmática das condutas individuais com a finalidade de notar que em seu trabalho como ficcionista Sartre lança mão destas linhas gerais de investigação da singularidade para constituir o itinerário de sua personagens como oriundos de escolhas e projetos livres, próprios, não obstante obscuros e nebulosos pois imersos na radical complexidade do presente existencial e histórico. 198 Sartre nos indica que fará uma biografia existencial de Dostoiévsky(que não fará) e de Flaubert, que, como dissemos , deixará inconclusa.

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uma detida análise de seus escritos, inscreve as supostas infelicidades atribuídas ao

destino de Baudelaire, no horizonte das escolhas livre.

“Quando seu pai morreu, Baudelaire tinha seis anos, ele vivia na adoração de

sua mãe; fascinado, envolto em cuidados e atenção, ele não sabia que existia ainda

como pessoa, mas se sentia unido ao corpo e ao coração de sua mãe por uma espécie

de participação mística.”199

A cada especulação Sartre ajunta um documento original do poeta, neste caso

com a intenção de sublinhar que a rememoração do estágio da infância é uma prática

adulta do próprio Baudelaire: “<<eu era sempre vivo em ti, escreverá ele anos mais

tarde, tu eras unicamente para mim. Tu eras a um só tempo ídolo e camarada.>> 200

Entrementes, Sartre remete estas considerações biográficas a noções

filosóficas mais abstratas como, por exemplo, a de justificação, que segundo Sartre

está na origem da relação de dependência que Baudelaire cultivará toda sua vida

adulta: “ se fará melhor restituindo o caráter sacro desta união: a mãe é um ídolo, a

criança é consagrada pelo afeto que ela lhe devota: longe de se sentir uma existência

errante, vaga e supérflua, ele se pensa como um filho de direito divino. Ele está

sempre vivo nela: isto significa que ele está disposto no abrigo de um santuário, ele

não é, e não quer ser senão uma emanação da divindade, um pequeno pensamento

constante de sua alma. E precisamente porque ele se absorve todo inteiro num ser

que lhe parece existir por necessidade e por direito, ele encontra-se protegido contra

toda inquietude, ele se funde com o absoluto, ele está justificado.”201

A criança Baudelaire encontra-se, nesta fase primordial da vida, acometida da

ilusão da completude. Entendendo-se derivada da mãe ela vislumbra, ainda que de

maneira irrefletida, sua própria causa como sendo eterna, e ela própria enquanto um

ser necessário - até mesmo o ser através do qual se fazem necessárias todas as coisas.

Sartre enxerga em Baudelaire o momento da ruptura com este mundo mítico no qual

um véu de eternidade recobria seu ser, testemunhando sua proeminência, dotando-lhe

de causa e sentido. Para Sartre, a ‘queda’ do poeta para um universo pessoal,

contingente – demasiado humano - se dá na ocasião do segundo casamento de sua

mãe: “Em novembro de 1828 esta mulher tão amada se casa outra vez, com um

soldado. Baudelaire é posto num pensionato. Desta época data sua famosa

199 SARTRE, J-P. Baudelaire. p, 18. 200 Idem. 201 idem. p.18.

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‘fratura’(...)Esta ruptura brusca e a mágoa que ela resulta o lançam sem transição na

existência pessoal. Até então ainda estava penetrado pela vida unânime e religiosa do

casal que formava com sua mãe. Esta vida se retirara como uma maré o deixando só

e seco, ele perdeu suas justificações, descobriu na vergonha que ele era um, que sua

existência lhe fora dada por nada.”202

Para Sartre é a partir deste momento que Baudelaire configurará a si mesmo

como um irrevogável misantropo, destinando-se por sua escolha pessoal à solidão.

Notemos que o isolamento a que fora submetido pelo seu grupo não é propriamente o

que vive. A solidão que Baudelaire vivencia é voluntária e radical, ele urde a própria

clausura para não se encontrar à força dela prisioneiro. Sartre nos introduz, assim, no

tema que será sempre o seu: o do destino arquitetado livremente pelo homem: “Desde

então ele pensa esse isolamento como destino(...)Tocamos aqui na escolha

fundamental que Baudelaire fez de si mesmo, neste engajamento absoluto pelo qual

cada um de nós decide numa situação particular do que será e do que é.

Abandonado(délaissé), rejeitado, Baudelaire quis retomar por conta própria este

isolamento. Ele reivindicou sua solidão para que ela surgisse ao menos dele mesmo,

para que não tivesse que a ela se submeter.”203

A experimentação que Sartre detecta em Baudelaire é a da descoberta de si na

situação antropológica original: a do abandono(délaissement). Para o filósofo, o que

se revela não é apenas um traço psicológico de Baudelaire, mas uma condição na

medida em que a consciência humana de si se constitui pelo vislumbre desta

alteridade e apartamento radicais em relação aos outros seres. Traçando o contraponto

entre a uniformidade natural em sua quietude de significações e a inquietude

demasiado humana na atribuição de sentido a si, Sartre nota que os pássaros guardam

sempre o consolo de se verem reproduzidos nos da sua espécie, enquanto os homens

não reconhecem jamais no outro senão aquilo que os diferencia de si. A condição de

isolamento se reduplica pela diluição, segundo Sartre, daquele lastro de eternidade

que a criança perde ao constatar-se uma entre as demais204, e ao notar-se nesta

202 idem. p.19. 203 idem.p,19-20. 204 Solidão ontológica que emerge do primeiro despertar da consciência de si da criança que ele nota emergir também do relato de Hughes em Un cyclone à Jamaïque: “(Emily) brincava de casinha num canto(...)fatigada da brincadeira, ela andava sem rumo para trás, quando lhe veio de repente o fulgurante pensamento de que ela era ela...Uma vez plenamente convencida do fato estarrecedor de que ela era agora Emily Bas-Thornton... se pôs a seriamente examinar o que um tal fato implicava...Que vontade havia decidido que entre todos os seres do mundo ela seria este ser particular, Emily, nascida num tal ano entre todos aqueles que o tempo fez...Fora ela que havia

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condição de observadora solitária do mundo, que é o estado próprio da subjetividade

da consciência. A partir do exemplo concreto de Baudelaire, Sartre nos indica que

esta descoberta dolorosa da idiossincrasia do indivíduo, que pode ser sublimada ou

recalcada noutros indivíduos(como por ex. na Emily de Un cyclone à Jamaïque) pode

também perpassar todas as relações do sujeito adulto com o mundo, daí este caráter

ambíguo, a um só tempo universal e absolutamente singular da “ferida”

baudelairiana: “Mas a criança que se encontra ela mesma no desespero, no furor e no

ciúme orientará toda a sua vida sobre a meditação estagnante de sua singularidade

formal<<Vocês me cassaram, dirá Baudelaire a seus parentes, vocês me jogaram

fora desta perfeição na qual eu me esquecia, vocês me condenaram a uma

existência separada. Pois bem, esta existência, agora, eu a reivindico contra vocês.

Se quiserem mais tarde novamente me absolver, isto não será mais possível, pois

tomei consciência de meu avesso, e contra todos....>>E, àqueles que o perseguem,

aos camaradas de colégio, aos desafetos da rua: ‘Eu sou um outro. Um outro que

vocês todos, que me fazem sofrer, vocês podem me perseguir na minha carne, não

na minha ‘alteridade’...>>”205 Sartre sublinha o esforço do poeta em manter-se livre

em sua escolha da diferença: “Ele se prefere a tudo visto que tudo o abandonou.”206

Para Sartre esta escolha de si que se reflete em Baudelaire pela escolha da

solidão, se remete a uma nostalgia de univocidade, uma busca por uma identidade

primordial entre o sujeito e si mesmo: Baudelaire supõe acreditar que é a solidão o

constituinte fundamental de sua singularidade, ou seja, “aquilo que ele é”, sua

“natureza” profunda. Esta alteridade, esta singularidade profunda que supõe ser a sua,

ele tenta captar em seus mínimos gestos, nas suas oscilações proverbiais de humor, na

intermitência de seus desejos, em suas perspectivas mais corriqueiras. Para Sartre, o

Charles Baudelaire que o mundo conhece, se inicia com este ato narcísico de

“debruçar-se sobre si mesmo”207entrevendo o mundo a partir do que seria sua

singularidade profunda.

Sartre nos repõe na analogia da contemplação das paisagens: o foco de

Baudelaire quando mira uma paisagem não é jamais o ângulo do homem comum, que,

escolhido? Fora Deus?Mas talvez ela mesmo fosse Deus...(...)sem saber por que esta idéia a amedrontava...A todo preço, isto deveria permanecer secreto...(Un cyclone à la Jamaïque. Plon, 1931, p.133.)”(idem,p.21.) 205 Idem.p.22. Neste capítulo, todas as passagens referidas de Baudelaire(mesmo quando citadas por Sartre) estão subscritas em negrito. 206 Idem,p.22. 207 Idem,p.23.

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ao olhar, se lança na exterioridade das coisas, mas ao contrário, transpassa as

paisagens pelo ato mesmo de ver-se vendo: “ Não há de modo algum para ele

consciência imediata que não seja transpassada por um olhar penetrante. Para nós, é

o bastante ver uma árvore ou uma casa; absorvidos em lhes contemplar, nós nos

esquecemos de nós mesmos. Baudelaire é o homem que jamais se esquece. Ele se olha

vendo; ele olha para se ver olhando, é a sua consciência da árvore, da casa que ele

contempla e as coisas não lhe aparecem senão através dela, mais pálidas, menos

tocantes como se percebidas através de uma luneta(...)Sua missão imediata é

reenviá-lo à consciência de si.”208

Todas as descrições de Baudelaire, afinal, segundo Sartre, dão conta da

espessura da consciência que capta e molda segundo seu humor, o real, intrometendo

uma dimensão humana em todos os atos perceptivos. Assim, poder-se-ia compreender

textos como o “Discurso sobre a pouca realidade deste mundo exterior. Pretextos,

reflexos, telas, os objetos não valem nunca por eles mesmos e não tem outra função

que a de oferecer ocasião de se contemplar enquanto os vê.”209

Entretanto, o esforço de Baudelaire para divisar “sua natureza” por intermédio

das coisas que vê, revela-se, segundo Sartre, vão para ele mesmo. Se nós, de fora,

podemos visualizar na obra e na biografia de Baudelaire algo com a marca dele

mesmo, imerso em si, contudo, Baudelaire vê sempre escapar esta singularidade

profunda que o constituiria como identidade. Notemos que não é à força de esquecer-

se a si mesmo que ele se perde. Se os homens comuns, com razão, lançam-se ao

divertimento desenfreado – como diria Pascal – para escapar da provação de ficarem

em seus quartos pensando no que são, não é à alienação cotidiana que o afasta do

conhecimento de si, mas ao contrário, seu próprio empreendimento especulativo.

Olhando a si procurando ver supostamente o que é, Baudelaire só consegue, afinal,

atinar consigo sendo: são seus estados intermitentes, suas oscilações de humor, suas

diferenças em relação aos seus estados anteriores o que capta, jamais, qualquer

vestígio de fixidez original: “Ele procurava sua natureza, a saber, seu caráter e seu

ser, mas não assiste senão ao longo desfile monótono da contemplação de seus

estados.”210

208 Idem,p.23. 209 Idem,p.24. 210 Idem,p.25.

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O interesse pela experimentação de drogas de Baudelaire, para Sartre,

corresponde a uma tentativa por vezes exasperada de paralisar, ainda que de relance, o

escoamento interior do qual se acha vitimado, buscando ainda que num átimo, algum

vestígio daquele eu profundo que pretende restaurar. Com a experimentação de drogas

Baudelaire procura quebrar o ritmo do cotidiano no qual se acha imerso – romper

uma adesão demasiada ao seu “ser” em sociedade - e que julga a película que o

separa daquilo que verdadeiramente seja; entretanto ele nota que esta via também o

afasta igualmente daquilo que espera de si, de modo que não há perspectiva que o

remeta àquela essencialidade que julga perdida: “Ele adere demais a si mesmo para

se conduzir completamente a se ver; ele se vê demais para completamente se afundar

e se perde numa adesão muda a sua própria vida.”211 Sua metodologia é da tentativa

de se duplicar na tentativa de resgatar aquele outro de si que considera perdido e que

considera quem seja: “a famosa lucidez de Baudelaire não é senão um esforço de

recuperação. Ele busca se recuperar e – como o ver é apropriação – de se ver. Mas

para se ver, seria preciso ser dois(...)Em vão, escreve em As Flores do Mal:

Tête-à-tête sombrio e límpido

Quando um coração torna-se seu espelho!

Este tête-à-tête mal se anuncia e já se esvai: só há uma tête.”212 Para Sartre é este o

“drama baudelairiano”: quanto maior a perscrutação, maior a nebulosidade em que

encontra a si mesmo, pois, “demasiada claridade reflexiva equivale à cegueira.”213

Impossibilitado de ver-se, senão como uma sucessão caótica de estados,

Baudelaire passa de testemunha de si, a seu próprio algoz, tentando realizar pelo

modo do sofrimento a possessão final de seu eu profundo:

“Eu sou a ferida e o faca

E a vítima e o verdugo.”214

Sartre neste ponto nota esta tentativa malograda de “desdobramento” de

Baudelaire sob uma ótica que podemos assinalar em consonância com as análises de

O Ser e O Nada, aonde dizia que “a motivação da reflexão consiste em dupla

tentativa simultânea de objetivação e interiorização.”215 Esta busca é o âmago da

211 Idem,p.25. 212 “Tête-à-tête sombre et limpide Qu’un coeur devenu son miroir!” (...)“(...)il n’y a qu’un tête.”(idem,p.26) 213 Idem.p.26. 214 “Je suis la plaie et le couteau Et la victime et le bourreau.”(Idem, p.25 215 SARTRE, J-P. O Ser e O Nada, p.212.

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experiência da conscientização e justificação de si, pois, “Ser para si mesmo como o

objeto-Em-si na unidade absoluta de interiorização – eis o que o ser-reflexão tem-de-

ser.” 216

Entretanto, nestas linhas de O Ser o Nada já paira algo como uma advertência

sobre o caráter interrogante desta empreitada rumo ao auto conhecimento, como

vemos nesta sentença, que longe der ser cristalina, sinaliza, entretanto para esta

tentativa de captar-se no escoamento que - característica de Baudelaire - é tantas

vezes reposta no horizonte das interrogações expressas pela ficção sartreana: “Este

esforço para ser para si mesmo seu próprio fundamento para recobrar e dominar sua

própria fuga em interioridade, para ser finalmente esta fuga, em vez de temporalizá-

la como fuga de si mesmo, deve terminar em fracasso, e este fracasso é precisamente

a reflexão. De fato é ele mesmo o ser que há de recuperar este ser que se perde, e ele

deve ser esta recuperação à maneira de ser que é a sua, ou seja, ao modo ser do

Para-si, e, portanto, da fuga. É enquanto Para-si que o Para-si tentará ser o que é,

ou se, preferirmos, será para si o que é-Para-si. Assim a tentativa de recobrar o

Para-si por reversão sobre si, culmina na aparição do Para-si para o Para-si. O ser

que almeja encontrar o próprio fundamento no ser não consegue ser mais que o

fundamento de seu próprio nada.”217

Ao tentar encontrar uma essencialidade profunda, Baudelaire depara-se com

àquela intensa fluidez da consciência projetada em direção sempre à algo(Para-si)

que fora exprimida na forma da ficção pela experiência reflexiva de Roquentin em A

Náusea: a forma da consciência é a da fuga de si, escoamento, movimento incessante

e inconstante em direção à própria ultrapassagem218. Talvez não seja excessivo

recordar a descrição da consciência de Sartre a que nos referimos na ocasião da

análise de A Náusea: “ ela é ampla como um vento forte, não mais nada nela, salvo o

movimento de fugir de si, um deslize fora de si; si por mais impossível, entrásseis

<numa> consciência, serieis varridos por um turbilhão e jogados para fora, ao pé da

árvore, em plena poeira, pois a consciência não tem um< dentro>, ela não é senão o

de fora de si mesmo, e é esta fuga absoluta, esta recusa de ser substância que a

constitui como uma consciência.”219 A tentativa de recobrar-se numa unidade

216 Idem. 217 Idem. 218 Precisaríamos buscar, oportunamente, em Heidegger, a origem deste conceito sartreano da ultrapassagem como estrutura ‘fundamental’ do Para-si, ou seja, do ser da consciência. 219 SARTRE, J-P. Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl – la intencionalité.p.30.

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primitiva se depara com o desvelo de uma contingência ontológica irredutível, que é,

metafisicamente, a condição mesma dos seres existentes220: “quando a consciência

tenta se retomar, coincidir consigo mesma, ardentemente, janelas fechadas, ela se

anula.”221

Em Baudelaire Sartre entrevê o ‘embate’ entre os espelhos que formam a

temporalidade psíquica da consciência empenhada em compreender-se, em suas

formas de ser, reflexiva e refletida: “(...)o refletido é aparência para o reflexivo, sem

com isso deixar de ser testemunha(de si), e o reflexivo é testemunha do refletido, sem

deixar por isso de ser aparência para si mesmo. Inclusive o refletido é aparência

para o reflexivo na medida em que se reflete em si, e o reflexivo só pode ser

testemunha enquanto consciência (de) ser, ou seja, na medida exata que essa

testemunha que ele é seja reflexo para um refletidor que ele também é.”222

Transpondo às análises d’O Ser e O Nada para à análise da biografia de Baudelaire,

Sartre dirá que a genialidade da anatomia moral do poeta – em par com seu drama – é

o de empenhar-se em “transformar em faca a consciência reflexiva, e em ferida a

consciência refletida: de uma certa maneira elas não fazem mais que uma; não se

pode se amar, nem se odiar, nem se torturar a si mesmo: vítima e carrasco se

evaporam numa indiferença total, quando, por um único ato voluntário, um conclama

e o outro inflige o sofrimento.”223

Para análise de Sartre da biografia de Baudelaire, o drama da auto-

perscrutação não possui apenas um contorno de algum modo heurístico assim como

encontramos na expressão ficcional de, por ex. A Náusea. Nesta personagem de carne

e osso o dilema possui contornos, sobretudo morais, visto que, do embate que trava

para captar-se só desvela a inconstância e a contingência de si mesmo, e o tédio como

condição metafísica, “a bizarra afecção que é a fonte de todos os (seus) males e de

todos os (seus) miseráveis progressos.”224Destes sentimentos refluem o senso da

dispensabilidade, da inutilidade e, finalmente a possibilidade sempre aventada do

suicídio, que segundo Sartre, significaria mais um modo de proteger a própria vida do

220 “(...) a ontologia parece poder definir-se como a explicação das estruturas de ser do existente tomado como totalidade, e definiremos melhor a metafísica como a colocação em questão da existência do existente. É por isso que ,em virtude da contingência absoluta do existente, estamos convictos de que toda metafísica deve concluir com um ‘é isto’, ou seja , uma intuição direta da contingência.”(O Ser e o Nada ,p.379) 221 SARTRE, J-P. Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl – la intencionalité.p.31. 222 Idem, p.210. 223 SARTRE, J-P. Baudelaire. p, 27. 224 BAUDELAIRE, C. Petit Poèmes en prose: Le Joueur généreux.Éd. Conard, p.105.

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que dar cabo dela. Segundo Sartre, Baudelaire se crê alguém sobrando: “ Eu me

mato, escreveu em sua famosa carta de 1845, pois sou inútil aos outros e perigoso

para mim mesmo.”225

Talvez não seja excessivo sublinhar no Baudelaire revisto por Sartre o re-

surgimento da analogia clássica do jogo com o intuito de ressaltar o caráter

provisório, bizarro e, afinal, arbitrário e absurdo, dos compromissos e dos aparatos

sociais – e do conceito de homem útil - quando submetidos à criteriosa anarquia da

consciência empenhada na lucidez. Se é a consciência que doa e que retira valores,

inclusive o valor supostamente primordial da vida, então sobressai uma quebra

definitiva do espírito de seriedade; nada tem valor porque tudo pode receber qualquer

valor: “se degustamos até a náusea esta consciência sem rima nem razão, que deve

inventar as leis as quais ela quer obedecer a utilidade perde toda a significação; a

vida não é mais que um jogo, o homem deve escolher ele mesmo seu objetivo, sem

comando, sem instrução, sem conselho(...)A vida, escreve Baudelaire, não tem senão

uma graça: é a graça do jogo.”226

É esta relativização que, desde o começo, lança um fel sobre os empreendimentos,

mesmo o da literatura, que está de antemão submetida ao sucateamento da

indiferença, causadora também do que nomeia ‘preguiça’(paresse) derivada da

renúncia semi-lúcida de tomar a sério os empreendimentos: “Mas, e se nos é

indiferente ganhar ou perder? Para crer numa empresa, é preciso está de antemão

lançado, interrogar-se sobre os meios de a bem conduzir, não sobre seu fim. Para

quem reflete, toda empreitada é absurda; Baudelaire está imerso nesta

absurdidade(...)

...o que sinto, é um imenso desencorajamento, uma sensação de isolamento

insuportável...uma ausência total de desejos, uma impossibilidade de encontrar

uma distração qualquer. O bizarro sucesso de meu livro, e os ódios que ele acendeu

me interessaram um pouco de tempo, e depois disso, eu recaí.”227

Sartre sublinha a opacidade e ambigüidade do surgimento da ‘obra’

baudelairiana que, afinal, surge do núcleo da “preguiça”(paresse) e sob o signo da

inutilidade e da renúncia. No embate entre a consciência refletida e reflexiva

encontra-se o projeto de efetivação do poeta, vivido mesmo que irrefletidamente:

225 Idem,p.29. 226 Idem,p.30. 227 Carta de 30 de dezembro de 1857. (idem, p.31.)

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“Não obstante, é necessário agir. Se ele é, por uma parte, a faca, o puro olhar

contemplativo que vê desfilar abaixo de si as ondas torvelinhantes da consciência

refletida, ele é também a chaga, a ocasião mesma destas ondas. E, se em virtude de

sua posição reflexiva desgosta da ação, em baixo, em virtude de cada uma destas

pequenas consciências efêmeras que ele reflete, ele é ato, projeto, esperança.”228 Ele

almeja escrever peças de teatro, poesia, romper definitivamente com a família,

libertar-se do julgo do padrasto, entretanto, é na forma de não fazê-lo que poderá

alimentar sua chaga. Sua ferida é o ressentimento que cultiva arduamente procurando

nele a imagem de sua solidão original. Sartre sublinha a sucessão de vontades

dissipadas e de declínios de projetos de auto-superação que afinal configurará o

núcleo mesmo do projeto obscuro de si que Baudelaire vivencia. O projeto original de

metamorfosear-se definitivamente naquilo eu perdido essencial, torna-se vislumbre do

abismo e do oco que encontra aonde procurava o núcleo do seu próprio ser: “Em

moral como na física eu sempre tive a sensação do abismo, não somente do abismo

do sono, mas do abismo da ação, do sonho, da lembrança, do desejo, do

arrependimento, do remorso, do belo, do número.”229

Segundo Sartre este abismo que Baudelaire povoa com seu ressentimento e

sua rebeldia é uma figura do vazio da consciência – “esta fuga absoluta” - e da

liberdade originária que através de si, Baudelaire descobrirá que é. Sobretudo, este

vazio é uma derivação da condição humana de abandono, embora Baudelaire se

esforce para ocultá-la de seu próprio horizonte. O trecho a seguir, certamente é ainda

mais esclarecedor sobre a tese sartreana da condenação humana da liberdade do que

dos impasses do poeta ao buscar o reduto profundo de si mesmo: “Baudelaire: o

homem que sente um abismo. Orgulho, tédio, vertigem: ele se vê até as profundezas

do coração, incomparável, incomunicável, incriado, absurdo, inútil, abandonado no

isolamento mais total, suportando só o próprio fardo, condenado a justificar sozinho

sua existência, e se escapando sem cessar, deslizando pra fora de suas mãos, imerso

na contemplação e, ao mesmo, lançado fora de si num perseguido infinito, um abismo

sem fundo, sem anteparo e sem obscuridade, um mistério em plena luz, imprevisível e

perfeitamente conhecido. Mas, para sua infelicidade, sua imagem lhe escapa ainda.

Ele buscava o reflexo de um certo Charles Baudelaire, filho do general Aupick, poeta

endividado, amante da negra Duval: seu olhar encontrou a condição humana. Esta 228 Idem, p.32. 229 Idem,p.40.

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liberdade, esta gratuidade, este abandono que lhe amedrontam é o quinhão de todo

homem, não o seu particular.”230

Talvez seja a este tipo de apreensão da universalidade nascida do núcleo da

vida singular que almeje chegar o método da psicanálise existencial. Em Baudelaire

esta reivindicação da liberdade que é humana se dá pelo lento alinhavo dos retalhos

que configurará, afinal, como seu projeto pessoal, que, como mostrará Sartre, é um

percurso carregado de ambigüidades.

De um lado jorra a poesia baudelairiana, que com estrondo faz ressoar um

elogio do mal, na pessoa do próprio Satan, conclamando a uma inversão nietzschiana

completa dos pólos norteadores das condutas: “Je suis Satan”231. Em sua poesia reflui

o tema do gosto do infinito revisto muitas vezes pelo prisma dos Paraísos Artificiais:

uma tensão resultada do impulso “transascendente e transdescendente” como diria

Jean Wahl de dois movimentos opostos centrífugos e simultâneos, um em direção ao

anjo, outro ao animal: “Há em todo homem, a todo momento, duas postulações

simultâneas, uma em direção a Deus, outra em direção a Satan. A invocação à Deus,

ou espiritualidade, é um desejo de elevar-se de categoria; o de Satan, ou

animalidade, é uma alegria de rebaixar-se.”232 O tema pascaliano, por excelência, da

dupla natureza, (Br.678-L.358) “O homem não é nem anjo nem animal , mas a

infelicidade quer que quem quer fazer-se anjo se faça animal”233 retorna sob os

fumos baudelairianos ressaltando a mesma idéia de ultrapassagem sugerida no sentido

clássico234. O homem está sempre adiante de si, numa <<insatisfação>> metafísica e

230 Idem, p.40. 231 Idem,.p.93. 232 Idem, 37.38. 233 O belo e difícil fragmento dever ser posto no original e depois confrontado com as duas traduções disponíveis para língua portuguesa: “L’homme n’est ni ange ni bête et le malheur veut que qui veut faire l’ange fait la bête.” S.Milliet(Difel,1961) não parece ter uma boa solução para a sinuosidade do fragmento: “O homem não é anjo nem animal; e por infelicidade, quem quer ser anjo é animal.” A tradução de Mario Laranjeira(M.Fontes ,2000) parece forçar um pouco o duplo-sentido e a ironia quem sabe sugerida por Pascal com prejuízo, talvez, de seu teor filosófico mais profundo: “O homem não é anjo nem animal, e a infelicidade quer que quem quer se mostrar anjo se mostre animal.” 234 Sartre neste momento não faz, ou não quer fazer jus à complexidade do pensamento de Pascal quando a ele se refere: “Quando Pascal escreve que <<o homem não é anjo nem animal>>, ele o concebe como um certo estado estático, uma <<natureza>> intermediária.”(SARTRE, J-P. Baudelaire.p,38) Não obstante o deslize de Sartre, qualquer leitura mais atenta poderia provar que a “natureza intermediária” de Pascal, não é senão um estado de desnaturação, ausência de natureza, pura perda e oscilação perpétua(notar por ex. análises de C. Rosset, L. Thirouin, entre outras) exatamente no sentido que pretende ressaltar existir em Baudelaire. A fluidez, a inconstância, a impossibilidade da identidade consigo mesmo, são estados proeminentes do escoamento, do vazio que é a interioridade do homem esquecido pelo Deus escondido,e figuras da necessidade humanas de projetar-se para além. Estes são apenas os fragmentos dos Pensamentos que tem por tema principal a inconstância; (Br - L); 17-113, 24-127, 54-112, 55-111, 73-110, 72-199: mas há inúmeros outros cujo tema é a sintomática do

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numa oscilação e movimentos constantes que o lançam perpetuamente em direção a

outros objetivos, numa exploração incessante e sempre frustrada de uma quietude que

está sempre além. Para Sartre, radicalizando a perspectiva pascaliana do gosto pelo

infinito numa dimensão puramente terrena, Baudelaire acede a “esta intuição de nossa

transcendência e de nossa gratuidade injustificável de ser, ao mesmo tempo

reveladora da liberdade humana.”235Assim, por um lado, através de sua poesia,

Baudelaire afirmaria, pelo menos na forma da sublimação artística, sua capacidade

legisladora de eleger seu bem e seu mal.

Entretanto, de outro lado, pesam sobre ele todas as amarras com as quais

enreda a si no plano pessoal e, por assim dizer, histórico: permanece dentro das

rédeas da família, escolhe como refúgio um suposto conservadorismo moral e literário

– preconizado pela eleição voluntária dos interlocutores mais arcaicos do seu tempo,

como ‘tutores’. Intenta uma re-habilitação e impõe-se uma rigidez artificial como

estilo para adequar-se aos moldes da Academia Francesa. Se situa, pelos menos do

ponto de vista formal, como discípulo da religiosidade que na intimidade execra, e

enfim, requisita voluntariamente todos os juízes que o decorrer da vida em sociedade

pode consecutivamente oferecer a quem aprouver.

Notemos, assim, tão somente dois dos focos eleitos por Sartre para ressaltar –

a um só tempo os traços singulares e universais - deste projeto ainda que irrefletido e

ambíguo de liberdade: primeiramente a correlação entre a persistência de Baudelaire

num universo patriarcal(na condição subsidiária de revoltado) e a característica da

condição humana da busca por justificação. Depois, o desvelo do projeto “obscuro ‘extravio’. Todas as figuras da inquietação apontam, como em Baudelaire, na mesma direção, a necessidade humana da ultrapassagem de si - o gosto do infinito - que em Pascal tem o sentido clássico da busca pelo causa transcendente. Para Baudelaire, a busca, sob as mais diversas formas, pelos estados alterados de consciência, a que ele chama de Ideal Artificial, correspondem a um impulso semelhante da condição humana rumo à transcendência. Na análise das causas e efeitos do uso de substâncias inebriantes efetuada no Poema do Haxixe, Baudelaire, escreve: “Essa acuidade do pensamento, esse entusiasmo dos sentidos e da mente, devem ter sido vistos em todos os tempos, como o primeiro dos bens para o homem; foi por isso que, considerando apenas a vontade imediata, sem preocupar-se em estar violando as leis da sua constituição, ele procurou na ciência física, na farmacêutica, nos licores mais grosseiros, nos perfumes mais sutis, sob todos os climas em todos os tempos, os meios de fugir , mesmo se por algumas horas, de seu habitáculo de lama e, como diz o autor de Lázaro, de ‘ganhar o paraíso numa só tacada’. Infelizmente, os vícios humanos, por mais horríveis que os suponhamos, contêm a prova do seu gosto pelo infinito; porém é um gosto que trilha muitas vezes o caminho errado(...)Nesta depravação do sentido do infinito é que reside, para mim , a razão de todos os excessos culposos, desde a embriaguez solitária e concentrada do literato que, forçado a procurar no ópio um alivio para uma dor física e tendo assim descoberto uma fonte de gozo mórbido, foi fazendo dele sua única dieta e usando-o como o sol de sua vida espiritual, até a embriaguez mais repugnante dos suburbanos que, a cabeça cheia de fogo e de glória, chafurdam , ridículos, no lixo da estrada.”(BAUDELAIRE, C. O Poema do Haxixe, p, 52-3) 235 SARTRE, J-P. Baudelaire. p.39.

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para si mesmo” de Baudelaire, que culmina na escolha da solidão como destino, como

se de algum modo tributário da condição de opacidade de todo homem em relação a

suas vivências presentes.

Para Sartre, o que espanta na biografia de Baudelaire é a profunda

ambigüidade entre a conclamação poética da legislação indiscriminada do mal e,

portanto, da liberdade de atribuir valores, no ardiloso senso da sentença nietzchiana-

dostoievskiana do “tudo é permitido”, e à assunção indiscriminada às noções morais

inculcadas pela sociedade que ele, das alturas de seu satanismo, “jamais pôs em

questão.”236 Longe de superar a educação católica e burguesa que recebera, continua

a vivenciar a gama de valores inculcados por sua família, e tal é o grau de

comprometimento de seu horizonte moral com estes valores, que vivencia na culpa e

no remorso suas famosas experiências de ébrio e de dandi. Tal é sua intolerância

consigo mesmo que os primeiros biógrafos cogitam que há algo escondido em sua

vida, qualquer coisa como um segredo, ou uma vergonha secreta, afinal, Baudelaire se

“trata como criminoso e se declara culpado de todas as formas.”237 Sartre tomas as

rédeas da biografia de Baudelaire para sublinhar que não, nenhum cadáver se

encontraria no baú do poeta: “uma sequidão demasiada de coração”, talvez, “o abuso

de estupeficantes”, certamente, “algumas bizarrices sexuais” - mas estas

licenciosidades da vida de solteiro jamais rivalizaram com a rígida observação moral

pela qual pautava, ou procurava pautar seus projetos íntimos, nos quais resplandece

incólume, a moral de seus pais, como mostra seu texto de maturidade, de 1862,

intitulado Higiene, Conduta e Método:

“ Um breviário de sabedoria. Limpeza, reza, trabalho....

O trabalho engendra forçosamente os bons costumes,

Sobriedade e castidade, consequentemente a saúde, a riqueza, o gênio

sucessivo e progressivo e a caridade.”238

Para Sartre não cessa de ser de algum modo enigmático, além de exemplar da

obscuridade patente dos projetos irrefletidos de liberdade, a permanência destes motes

encontrados muitas vezes sob a pluma do ‘poeta maldito’, na forma de imperativos e

obrigações tão irredutíveis quanto inúteis em sua inobservância: sobriedade,

castidade, trabalho, caridade.

236 Idem,p.44. 237 Idem, p.44. 238 Idem p.45.

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Interessante notar neste mesmo sentido que, malgrado às descrições dos

estados inebriantes, como por exemplo, encontramos n’O Poema do Haxixe, sejam

divisadas sob uma ótica que diríamos ser filosófica - como figuras da ânsia de infinito

da condição humana - dois detalhes nos indicam o esforço de Baudelaire de manter-se

à distância de qualquer controvérsia que remeta a uma contestação ainda que pálida

do universo moral prosaico em que vive. Primeiramente, a condição que se põe de

narrador imparcial e, por assim dizer, neutramente científico dos ‘eventos’ com estas

curiosas substâncias: as experiências são relatadas como “casos” no sentido mais

discriminatório da terminologia médica, acontecidos sempre a outros; Baudelaire com

um esforço por vezes demasiado exagerado tenta se imiscui de qualquer participação

nas explorações destes heróicos “caçadores de infinito” dos quais guarda respeitosa

distância. Não menos importante: do ponto de vista moral a condenação destes outros

de si mesmo é ainda mais radical. Como vimos a pouco, Baudelaire enfatiza as

experimentação indiscriminada das virtualidades da consciência como “depravação

do sentido do infinito”, ou seja, desvirtuamentos ou perversões do desejo de contato

com o infinito transcendente, ou seja, da vontade de religião(no sentido original de

religatio), “que trilha muitas vezes o caminho errado.”239 Assim, talvez não seja

excessivo sublinhar que as nuances mais detalhadas e significativas, e talvez, a ênfase

mesma dos relatos sobre as experiências com o haxixe e com o ópio sejam em

Baudelaire, justamente, não propriamente à abertura da consciência através das

viagens semi-oníricas, mas a vivência física e moral dos remorsos e das culpas que

preencheriam a interioridade fragilizada do sonhador depois das intermináveis noites

sobre os efeitos narcóticos – sentimentos que, aliás, ele parece conhecer como que de

dentro.

Esta obstinação pela assunção indiscriminada da moral estabelecida, segundo

Sartre, se mostra tanto no plano estritamente familiar, nas condutas que o levam a

comportar-se eternamente como um “adolescente envelhecido” diante dos pais, como

no plano da realização literária, tal como no episódio da condenação de seu primeiro

livro em que se apressa por defendê-lo, não renegando de maneira generalizada os

preconceitos de seus perseguidores, mas ao contrário, “reivindicando a moral dos

guardas e dos procuradores.”240 É esta ambigüidade, esta ausência de caráter de

Baudelaire que fascina Sartre; se por um lado contesta admiravelmente os valores de 239 BAUDELAIRE, C. O Poema do Haxixe, p, 52-3 240 SARTRE, J-P. Baudelaire, p.46.

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seu tempo através de sua arte ao mesmo tempo recria de maneira pessoal e voluntária,

entorno de si, esta carapaça moral que é resíduo dum universo patriarcal em franca

decadência entre seus contemporâneos: “ Ele se deixa julgar, ele aceita seus juízes,

ele chega mesmo a escrever à Imperatriz que ele <<havia sido tratado pela Justiça

com uma cortesia admirável...>>; mais ainda, ele postulou uma reabilitação social,

de começo a cruz, depois a Academia. Contra todos aqueles que almejaram liberar os

homens , contra George Sand, contra Hugo, ele tomou o partido de seus carrascos,

de Ancelle, de Aupick, dos policiais do Império, dos acadêmicos, ele clama por seus

verdugos, ele pede que eles o obriguem pelo terror a praticar as virtudes que eles

pregam.” 241

Esta escolha de Baudelaire por ser julgado e de viver no remorso e na culpa

por uma moral que não deveria ser a sua, para Sartre, não se deveria tão somente à

equação da educação religiosa com a repressão familiar que resultaria

inequivocamente num indivíduo alquebrado e dilacerado por suas sub-determinações.

Sartre cita o caso de Gide, por exemplo, que submetido aos mesmos mecanismos por

meio de muitas reviravoltas e revezes, afinal, consegue “caminhar em direção a sua

moral(...) e inventar uma nova tábua da lei.”242 Baudelaire, é um caso singular,

escolha voluntariamente seus próprios verdugos e os instrumentos prediletos de

tortura: “Por que Baudelaire, criador nato e poeta da criação declinou no último

momento; por que usou suas forças e seu tempo para manter as normas que o faziam

culpado? Como não se indignou contra esta heteronomia que de partida condenava

sua consciência a permanecer para sempre numa má consciência e numa má

vontade?”243

Este trecho que citamos acima, talvez, seja o que melhor resume a dimensão

interrogante do empreendimento da psicanálise existencial de Sartre. Esta

metodologia de imersão na singularidade, afinal, se questionará sobre as razões

“obscuras para si mesmo” destas escolhas de Baudelaire, colhendo da singularidade

mais radical uma visão de algum modo universal da opacidade constitutiva dos

projetos de si. O que Sartre nos indica num plano filosófico mais geral é que, de

algum modo, o que fazemos de nós mesmo nos escapa. Assim, a interrogação acerca

do enigma Baudelaire é um questionamento que reverbera para o núcleo da condição

241 Idem, p.47. 242 Idem, p.48. 243 Idem, p.49.

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humana, trata-se de saber, nas palavras em O Ser e O Nada, de mostrar de maneira

concreta como, afinal, “o homem busca o ser às cegas, ocultando de si mesmo o

projeto livre que constitui esta busca.”244 - “A psicanálise existencial trata de

determinar a escolha original.”245

Para Sartre a escolha de Baudelaire pela má consciência e pela culpa se

remete a uma vivência adulta da expectativa infantil da consagração, isto é, uma

tentativa ainda que tácita e irrefletida de se notar observado por uma moral

irreparável, necessária, noutras palavras, divina246. Segundo Sartre, por mais

singulares que sejam as escolhas de Baudelaire, elas possuem, assim, um vínculo com

um traço da condição humana que emerge desde a mais tenra experimentação da

realidade; a saber, o desejo de fundamentação e de testemunho: “a criança tem seus

parentes como Deuses. Seus atos como seus julgamentos são absolutos; eles

encarnam a razão universal, a lei, o sentido e a finalidade do mundo. Quando estes

seres divinos repousam seu olhar sobre ela, este olhar a justifica até o coração de sua

existência; ele lhe confere um caráter sacro: visto que os deuses não podem se

enganar , ela é como eles a vêem. Nenhuma hesitação, nenhuma dúvida encontram

lugar em sua alma: é claro que ela não capta de si senão a sucessão de ondas de seus

humores, mas os Deuses se fazem guardiões de sua essência eterna, ela sabe que

existe , mesmo que não consiga se conhecer, ela sabe que sua verdade não está no

que pode saber de si mesmo, mas se esconde nos grandes olhos terríveis e doces que

se voltam sobre ela. Essência verdadeira entre as essências verdadeiras, ela desfruta

seu lugar no mundo – um lugar absoluto num mundo absoluto. Tudo está bem , tudo é

justo, tudo é como dever ser.”247 No período da infância, tão nostalgicamente

recordado por Baudelaire , como dissemos é ilusão da completude que alimenta a

criança: nesta fase não se delineia em seu horizonte nenhuma espécie de projeto de si

visto que ela se crê necessária e justificada pelas existências “divinas” de seus pais.

Para Sartre há uma constante reposição deste apego ao lugar subsidiário da criança em

Baudelaire: “Baudelaire não cessa de lamentar seu verde paraíso dos amores

infantis.”248 Segundo o filósofo, Baudelaire, afinal, revive ainda que irrefletidamente

244 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. p.764. 245 Idem.p.697. 246 “ Foram necessários, em todos os tempos e em todas as nações, deuses e profetas para ensinar( a virtude) à humanidade animalizada... o homem sozinho foi impotente para descobri-la.” (Baudelaire. p.48.) 247 Idem. p.50-1. 248 Idem, p.51.

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a procura de fechar esta “ferida” aberta pela separação abrupta do testemunho de seus

“Deuses pessoais”: para preenche o vazio e a sensação de abismo que emana da

própria liberdade Baudelaire escolheu re-editar os Deuses supremos de sua existência

na pessoa dos mais variados juízes que faz transitar sobre sua vida, os quais ele

voluntariamente almejou, para testemunharem sua “malcriadez”.

Tornar-se maldito, afinal, é uma escolha voluntária de Baudelaire em seu

esforço obscuro por justificação que se exprimiu de maneira singular na permanência

num universo teocrático. É uma psicologia do revoltado que se delineia aqui. O

revolucionário recusa o solo do bem e do mal, subverte as perspectivas, contesta de

maneira absoluta e radical o estabelecimento contra o qual se insurge. O revoltado, ao

contrário, como alertará mais tarde à Camus, se deleita na manutenção das

hierarquias: é a permanência do sentimento de injustiça que o justifica. O epíteto de

“porta voz do Mal” que Baudelaire amealha para si, já é de forma significativa um

reconhecimento do caráter relativo e secundário que se atribui, visto não contestar o

valor de Bem estabelecido: se afirma tão somente como valor reativo à evidência

incontestável de Bem, que, deste modo, permanece em valor necessário em seu

horizonte. A caduca idéia de Bem, de moral, apregoada pelos mais reacionários de seu

tempo, permanece em Baudelaire, por conseguinte, intocada. É em honra da nostalgia

de um Bem absoluto que erige a figura do pecador irreparável. Neste mundo-cenário

pessoal erigido como couraça contra a própria liberdade, o papel que desempenha - o

culpado revoltado - representa uma função precisa, com direitos específicos e,

sobretudo, os desejáveis limites de um ser para outro: “ele tem o direito de se

queixar, ao castigo, ao arrependimento. Ele participa da ordenação universal e sua

falta lhe confere uma dignidade religiosa, um lugar aparte na hierarquia dos seres:

ele está sob abrigo de um olhar indulgente ou carrancudo.”É esta nostalgia dos pais-

deuses que Sartre entrevê nos versos de A Gigante:

“Amaria viver aos pés de uma jovem gigante

Como aos pés de uma rainha, um gato voluptuoso.”249

Para Sartre, “O Bem absoluto e metafísico” que Baudelaire honra

nostalgicamente dizendo-se absolutamente mal se confunde com a reminiscência

249 Idem, p.54.

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infantil de se saber enleado por um “olhar” absoluto: “olhar que comanda e

condena.”250 Neste sentido, existe uma equivalência nos deuses que elegem como

referencial para si: “o olhar que o transpassa, que o dispõe em seu devido lugar, e

que ‘o objetiva’, o grande olhar<<portador do bem e do mal>>”, é o de sua mãe do

General Aupick ou de Deus<< que tudo vê>>?” A bem da verdade, diz Sartre, todos

representam o mesmo desejo de testemunha e justificação, desejo de ascensão a um

plano de necessidade. Os juízes que escolhe para assegurar este lugar para si dentro de

um universo necessário, são indiferentes, e por assim dizer, intercambiáveis.

Daí à cáustica análise sartreana da origem desta singular religiosidade de

Baudelaire que busca compreender as oscilações entre ateísmo e fervor que o poeta,

conforma sou estado de saúde, alterna. Sartre nos mostra um trecho do último ano de

vida consciente do poeta, na tentativa de divisar qual seria o enigma do vínculo de

Baudelaire com a religião, afastando qualquer resquício de uma fé verdadeira como

almejaram alguns intérpretes católicos: “Exprimirei pacientemente todas as razões

de meu desgosto do gênero humano. Quando estiver absolutamente só, procurarei

uma religião...e, no momento da morte, abjurarei esta última religião para mostrar

com evidência meu desgosto da tolice universal. Vês que eu não mudei...”251

Para Sartre a busca de Deus em Baudelaire é a busca de qualquer absoluto –

de quaisquer deuses - que o distancie, ainda que ocasionalmente, da fluidez intensa de

si. Este Deus todo moral de Baudelaire é ainda o senhor dos castigos, do terror e do

medo: Sua função é prática: aterrorizar e governar seu comandado, ainda que não

exista, como indicam os versos em Fuzis:

“ Quando mesmo Deus não existir, a Religião será ainda santa e divina.

Deus é o único ser que, para reinar, não tem necessidade de existir.”252

As intrigantes palavras numa carta a sua mãe em 6 de maio de 1861

caminham no mesmo sentido:

“Eu desejo de todo coração...crer que um ser exterior e invisível se interesse

pelo meu destino. Mas como fazer para crê-lo.”253

E também concorrem na escolha voluntária da esfera patriarcal, os famosos

versos de Baudelaire em Mon. coibir mis à nu, nos quais não podemos deixar de notar

uma referência ao célebre fragmento pascaliano sobre a aposta(Br.233-431): 250 Idem, p.55 251 Idem. p.56. 252 Idem, p.56. 253 Idem, p.57.

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“Cálculo em favor de Deus: Nada existe sem finalidade. Que finalidade? Eu

a ignoro. Logo, não fui eu que a tracei. É necessário, pois, rezar a este alguém

para me esclarecer. É o partido mais sábio.”254

Seja a mãe, o pai, os tutores literários que elege - Deus: esta severidade que

deseja para si mesmo Baudelaire atribui sempre a novos personagens, são todas

figuras escamoteáveis de uma mesma escolha: a de se inserir numa hierarquia

absoluta sob o olhar atento, absoluto e necessário de um Criador que doa sentido e

referência à sua contingência avassaladora de ser subsidiário.

É neste sentido que a biografia de Baudelaire é ilustrativa para

Sartre deste aspecto da condição humana que é muitas vezes mencionado em suas

obras de ficção: a busca por um substrato que permita transcender a sensação de falta

que brota da experiência da própria contingência. Em O Ser e O Nada Sartre exprime

por diversos ângulos o impulso do existente contingente (Para-si) em direção à

completude ou a eternidade (Em –si), que caracteriza como a tentativa de tornar-se

Deus: “O Para-si é o ser que é para si mesmo sua falta de ser. E o ser que falta ao

Para-si é o Em-si(...)Logo, a realidade humana é desejo de ser Em –si. Mas o Em-si

que ela deseja não poderia ser puro Em-si contingente e absurdo(...)O ser que

constitui o objeto do desejo do Para-si é, portanto, um Em-si que fosse para si mesmo

seu próprio fundamento(...)É este ideal que podemos chamar de Deus.”255

Em Baudelaire, brota exemplarmente, este desejo que Sartre considera como

um desejo de ser Deus, que tem por fundamento uma falta constitutiva da condição

humana: “Pode-se dizer, assim, que o que torna mais compreensível o projeto

fundamental da realidade humana é afirmar que o homem é o ser que projeta ser

Deus(...)Ser homem é propender a ser Deus; ou se preferirmos, o homem é

fundamentalmente desejo de ser Deus.”256

Chegamos aqui no âmbito sem dúvida mais intrigante e sedutor da psicanálise

existencial de Sartre. De certo que a razão original da livre escolha de permanência

num universo patriarcal de Baudelaire não brota nesta análise de uma obscura

“química do inconsciente”257, com o filósofo faz questão de sublinhar diferenciando

seu empreendimento da psicanálise freudiana. Não obstante, o que emerge da análise

de Sartre é ainda, talvez, bem mais ambicioso do ponto de vista filosófico. Do âmago 254 Idem, p.57. 255 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p,692-3. 256 Idem,p.693. 257 SARTRE, J-P. Baudelaire, p,76.

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do concreto Sartre nota emergir, da escolha original de Baudelaire, uma falta

constitutiva da condição humana: “A realidade humana é puro empenho de fazer-se

Deus, sem que tal esforço tenha qualquer substrato dado, sem que nada haja a

esforçar-se assim(...)O homem se faz para ser Deus.”258

Na ambigüidade própria do homem singular Baudelaire, este projeto obscuro

de fazer-se Deus declina em direção à necessidade imprescindível de que haja

Deuses(sejam lá quais forem – família, academia, religião), desde que sejam

absolutos: deste modo se exprimiria seu projeto livre de justificação(ainda que pelo

assentimento a uma ideologia, por assim dizer, que era inimiga de si). Esta seria a

chave para compreender a paixão inútil, o enigma, Baudelaire: ele mesmo se perde

para que reste o absoluto, para que Deus, afinal, nasça, como diria Sartre em O Ser e o

Nada: “Toda realidade humana é uma paixão, já que projeta perder-se para

fundamentar o seu ser e, ao mesmo tempo, constituir o Em-si que escape à

contingência sendo fundamento de si mesmo, o Ens causa sui que as religiões

chamam de Deus. Assim, a paixão do homem é inversa à de Cristo, pois o homem se

perde enquanto homem para que Deus nasça. Mas a idéia de Deus é contraditória, e

nos perdemos em vão; o homem é uma paixão inútil.”259

Permanecer na má consciência e na culpabilidade pelo compromisso livre com

uma ética caduca e desprezível foi a paixão de Baudelaire – o que escolheu para o seu

destino: se malogrou em sua tarefa histórica de contribuir para a demolição da carcaça

moral carcomida de sua época, foi porque declinou do que (para nós) poderia ter se

dado como projeto revolucionário(que dinamitasse as estruturas mesmas do bem e do

mal) em detrimento da cômoda permanência no universo pré-hierarquizado que

escolheu viver na posição ambígua de vigilante revoltado de plantão. Os últimos

trechos do Poema do Haxixe são bem exemplares do flerte baudelairiano com a

liberdade que se desvirtua em assentimento voluntário e mesmo na propagação de

uma moral caduca: após as descrições supostamente ‘objetivas’ e ‘neutras’ das

viagens relatadas como a “procissão da imaginação humana até seu último e

esplêndido altar, até a crença do indivíduo na sua própria divindade”260, Baudelaire

258 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p.704-763. 259 Idem, p.750. 260 BAUDELAIRE, C. O Poema do Haxixe. p.80. “Deveria prosseguir na análise dessa vitoriosa monomania?Deverei explicar como, sob o domínio do veneno, nosso homem torna-se o centro do universo(...)É desnecessário prosseguir. Ninguém se surpreenderá se um pensamento final, supremo, surgir no cérebro do sonhador: <<Tornei-me Deus!>>(...)se as vontades e as crenças de um homem

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conclui: “Nos estudos filosóficos, o espírito humano, imitando o andamento dos

astros, deve seguir uma curva que o leve de volta a seu ponto de partida. Concluir é

fechar o círculo. Falei no início deste estado maravilhoso, onde o espírito do

homem encontrava-se às vezes projetado como por uma graça especial; disse que

aspirando sempre a reascender suas esperanças e elevar-se para o infinito,

mostrava, em todos os países e todos os tempos, um gosto frenético por todas as

substâncias, mesmo perigosas, que, exacerbando sua personalidade, podiam

suscitar, por um instante aos seus olhos, esse paraíso ocasional, objeto de todos os

seus desejos, e finalmente que esse espírito aventureiro indo, sem sabê-lo, até o

inferno, dava assim prova de sua grandeza original. Mas o homem não está tão

abandonado, tão carente de meios honestos para alcançar o céu, a ponto de ser

forçado a invocar a farmácia e a bruxaria(...)O que é um paraíso comprado em

troca de sua salvação eterna?”

Suas sentenças finais são bastante esclarecedoras da ambigüidade que

escolheu para si. Depois de transitar pelos labirintos vazios de sua consciência e pelas

infinitas visões possíveis de liberdade, Baudelaire, enfim, retorna com segurança ao

aconchego da “casa paterna” na qual ele escolheu deliberadamente viver: “ ‘Esses

infortunados que nem jejuaram nem oraram e recusaram a redenção, pedem à

magia negra os meios de elevar-se, de uma vez, até a existência sobrenatural. A

magia os engana e acende para eles uma falsa felicidade e uma falsa luz; enquanto

nós poetas e filósofos, regeneramos nossa alma pelo trabalho constante e a

contemplação, pelo exercício assíduo da força de vontade e a nobreza de intenção,

criamos para nosso uso, um jardim de beleza verdadeira. Confiantes na palavra que

diz que a fé move montanhas, cumprimos o único milagre para o qual Deus nos

concedeu licença!”261

Não precisaríamos certamente nem sequer mencionar, com tudo que vimos,

que este jardim divino e virtuoso que Baudelaire cultiva para si é puramente artificial.

É um cenário, nebuloso, difuso - erigido para amedrontá-lo - mas é um universo seu,

pessoal e intransferível. Sua vida foi, afirma Sartre, deste modo, arquitetada, ainda

que irrefletidamente, por suas escolhas, assim como, de maneira inadvertida mas no

limite voluntária, lhe vêm à ocasião da morte. Como o gosto fervoroso pelas

bêbado tivessem alguma virtude eficaz, este grito derrubaria os anjos disseminados nos caminhos do céu: <<Sou um Deus>>.”(idem, p.86.) 261 Idem, p.93.

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prostitutas mais, digamos, experientes, não lhe poderia trazer previsíveis

conseqüências? “Esta sífilis que o torturou toda a vida, que o conduz a senilidade e à

morte, seria dizer demais que ele a quis?”262

Com este capítulo um tanto longo e cansativo, afinal, desejamos a princípio,

sublinhar apenas a relevância de uma pequena sentença que poderíamos considerar

norteadora no horizonte de Sartre: “E se, ao contrário das idéias recebidas, os

homens não tem senão a vida que merecem?”263

Para Sartre, Baudelaire, como no limite, qualquer homem, merece plenamente

sua vida, visto que a arquiteta com as próprias escolhas.

Com o empreendimento da psicanálise existencial Sartre tenta fazer um esboço

vivo da complexidade inenarrável de um indivíduo imerso em seu projeto singular.

Ela é apenas um esboço, pois não se encerra com o desvelo do núcleo ontológico e

metafísico264 de sua problemática, ou seja, tomando Baudelaire como manifestação

singular de uma expressão universal da falta constitutiva da condição humana, mas

apenas formula seus questionamentos à sombra destes enigmas. A empresa de Sartre

se compreende sempre em esboço, sempre na forma de interrogação, pois admite

jamais ser capaz de remontar a complexidade pessoal e intransferível do indivíduo

quando imerso em seu singular e perspectivo presente histórico.

Como notamos, ainda que na forma de sobrevôo em Questão de Método, é

esta complexidade indevassável de cada agente histórico “que o contato com a

realidade complica ao infinito”265 que interessa a Sartre na maturidade como divisor

de águas do existencialismo em relação ao marxismo contemporâneo: trata-se de uma

reação filosófica ao poder das ideologias de dizimar a singularidade e complexidade

do homem em sua inserção problemática na história.

Nosso desvio argumentativo ao avançar e retroceder na temporalidade

constitutiva do pensamento de Sartre foi notar a importância da questão da opacidade

dos projetos de liberdade de um ponto de vista um pouco mais abrangente de sua

filosofia.

Por aí pudemos sondar também, um pouco mais de perto, a amplitude do

mergulho sartreano nas estruturas do real e da consciência. 262 Idem, p.83. 263 Idem, p.17. 264“(...) a ontologia parece poder definir-se como a explicação das estruturas de ser do existente tomado como totalidade, e definiremos melhor a metafísica como a colocação em questão da existência do existente.” (O Ser e o Nada ,p.379 – n.a: Repetimos conscientemente a citação.) 265 SARTRE, J-P. Baudelaire. p.94

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Nos caberá assinalar, doravante, a importância da expressão narrativa da

espessura dos dramas existências singulares, inscritos problematicamente a um só

tempo no registro da condição humana e da história.

*

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Cap.6)Literatura e dimensão interrogante

Quem sabe com as análises que efetuamos de A Náusea, O muro e Mortos Sem

Sepultura, sob o prisma da incompletude dos ‘destinos’ das personagens possamos

neste momento divisar, mesmo que com alguma nebulosidade, a questão da

necessidade da expressão literária para o equacionamento da problemática da

existência segundo o projeto filosófico de fundo ético de Sartre. Se “o homem é o ser

cujo próprio ser está continuamente em questão”, quem sabe a narratividade não seja

o único recurso capaz de manter o questionamento da existência na forma

interrogante. É isto que parece nos mostrar – por sinal com notável clareza, a

interpretação de Leopoldo e Silva: “A dualidade de expressão aparece, pelo menos

para a nossa interpretação, como o meio privilegiado, senão mesmo o único, de

tratar o problema ético inerente à existência. Se essa interpretação faz sentido, então

deverá ser possível mostrar que os textos teórico-filosóficos, os ensaios de crítica

literária e política, os estudos de psicanálise existencial e a obra de ficção se

organizam todos, de alguma maneira, em torno da questão ética(...)A elaboração das

questões se dá no horizonte da ordem humana, histórica.(...) Ora, o compromisso

entre o homem e a história é de ordem ética; esclarecer esse compromisso

examinando-o nas suas modulações é igualmente uma tarefa de ordem ética, quer o

façamos “no plano abstrato da reflexão filosófica”, quer no nível das “experiências

fictícias e concretas que são os romances”.(...)A reflexão filosófica e a experiência

fictícia comunicam-se pela própria manutenção de suas diferenças; o abstrato e o

concreto se interligam pela passagem interna entre a concretude do universal e a

irredutibilidade absoluta do particular(...) A articulação das instâncias humanas é

complexa porque não há nela a limpidez das idéias puras. É difícil e dramático

compreender a história que se faz, porque a contingência da ação corresponde à

opacidade da história imediatamente vivida. Somente à distância se pode montar uma

compreensão linear dos eventos históricos. E o historiador o faz justamente porque

está fora e além do presente vivido; dispõe do acontecido e não está em confronto

com o acontecimento. Mas ‘o acontecimento só aparece através das subjetividades’,

o que quer dizer que o presente não é transparente e o futuro é sempre uma

conjectura: toda consciência atual é semi-lúcida e semi-obscura.266 Compreender a

266 SARTRE, JP. Que é a Literatura? Ob. cit., pg. 166 e nota 11 – pg. 228.

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historicidade que caracteriza a existência certamente não é fazer história à distância.

Por isso tanto a reflexão filosófica quanto a experiência fictícia são tributárias do

esforço de compreensão desse misto de obscuridade e lucidez que é a consciência

empenhada no seu presente.”267

Neste sentido poderíamos sublinhar que as narrativas de Sartre por nós

acompanhadas se esforçam para restituir, não um sentido determinado para a história,

mas, ao contrário, a opacidade do presente e a impossibilidade de “evadir-se no

eterno”268 o que torna, no limite, todo engajamento político problemático e

circunstancial, não obstante imperativo.

Esta é, afinal, a preocupação fundamental que divide os partidários do

engajamento269, e que reflete bem a situação do escritor em 1947 de que fala Sartre

em O Que é a literatura?: “Se os nossos projetos, nossas paixões, nossos atos eram

explicáveis e relativos do ponto de vista da história feita, nesse desamparo eles

retomavam a incerteza e os riscos do presente, sua densidade irredutível. Não

ignorávamos que uma época viria em que os historiadores poderiam percorrer em

largas passadas esse período que vivíamos fervorosamente, minuto a minuto,

esclarecendo o nosso passado com aquilo que teria sido o nosso porvir, decidindo

quanto ao valor dos nossos empreendimentos pelos seus resultados, quanto à

sinceridade das nossas intenções pelo seu êxito; mas a irreversibilidade do nosso

tempo só pertencia a nós; era preciso salvar-nos ou perder-nos, às apalpadelas,

nesse tempo, irreversível; os eventos desabavam sobre nós como salteadores e era

preciso realizar o nosso ofício de homens em face do incompreensível e do

insustentável, apostar, conjecturar sem provas, empreender na incerteza e perseverar

sem esperança; a nossa época poderá ser explicada, mas isso não impede que, para

nós, ela tenha sido inexplicável, isso não tirará de nós o seu gosto amargo, esse gosto

que ela terá tido só para nós e que desaparecerá conosco.”270

A explicação de Sartre para o engajamento retoma numa dimensão puramente

histórica a idéia pascaliana da aposta271. Enquanto Pascal, esgotadas as possibilidades

do encontro do sentido da vida pela história, divisava na esperança transcendental da

religião o único socorro possível para o drama da contingência, Sartre entende que - 267 SILVA, F-L. Ética e literatura em Sartre – Ensaios introdutórios. pp.8-10. 268 SARTRE, JP. Que é a Literatura? p, 165. 269 Notar especialmente a correspondência “de ruptura” entre Sartre e Merleau Ponty datadas de julho de 1953. 270 SARTRE, JP. Que é a Literatura? p, 166. 271 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.233)

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“obrigado a jogar” o jogo concreto da finitude no qual unicamente os homens dão as

cartas - na iminência da morte e imerso na torrente avassaladora dos dramas

existenciais e dos eventos inexplicáveis da história, o compromisso com as próprias

escolhas(isto é com a liberdade) – com todos os riscos que ela comporta visto seu teor

opaco e perspectivo – faz-se o único lastro existencial possível para o humano. O

único refúgio para a contingência radical estaria, afinal, na instituição livre de valores

e fins.

A ruptura com Camus e, um ano depois, com Merleau-Ponty seria, talvez,

exemplar desta exigência característica de Sartre por uma perseguição de valores e

fins, mesmo que opacos e ainda mal delineados no horizonte da história. A acusação

de Sartre contra seus antigos camaradas é de que a coerência filosófica não pode

servir de alpinismo existencial, isto é, refúgio ou álibi para a necessidade do

comprometimento nas solicitações imediatas da história. Em contrapartida contra o

suposto “adesionismo” de Sartre reverberam até os dias atuais as temíveis acusações

de cartesianismo, dogmatismo, idealismo e finalismo, ainda mais com o crepúsculo de

grande parte dos valores e fins que o norteavam na maturidade.

Seria preciso sem dúvida um esforço tremendamente mais elaborado para

podermos sequer esboçar uma interpretação que fundamentasse em derradeiras

razões o comprometimento absoluto em questões da atualidade política efetuado por

Sartre. Não obstante, o que a paisagem de suas narrativas sugere – bem como os

textos filosóficos e os ensaios que acompanhamos - é que a aposta em determinados

fins passa menos por uma pressuposição de onisciência absoluta em relação ao fim da

história do que, de modo diametralmente contrário, por uma consciência hipertrofiada

da contingência radical e da incompletude da existência e da história. Com dirá no

enigmático Verdade e Existência, que gostaremos de aprofundar numa próxima

oportunidade, “O gênero humano tem um destino, a história tem um sentido(ainda

que seja o de uma sucessão de absurdos catastróficos, pois, então, como o homem é o

ser pelo qual o sentido vem ao mundo, o sentido da história seria o da

impossibilidade de um sentido para o ser que confere sentido ao Ser). Agora, esse

sentido da história só poderia aparecer para um ser situado fora da história, posto

que toda compreensão da história é ela mesma histórica e se temporaliza na

perspectiva de um futuro, e portanto, de novos fins. Por outro lado, não se trata

necessariamente de Deus nem de um demiurgo – poderia ser um homem que houvesse

resvalado para fora do humano - . Em todo caso , faz falta alguém para cerrar os

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olhos da humanidade. E dado que esse alguém impossível por princípio o homem é o

artífice de uma verdade que jamais ninguém conhecerá.”272

Em todo caso, é neste sentido que a atmosfera barroca da aposta de Pascal

poderá ainda mais uma vez nos servir de contraponto na distinção entre a metafísica

clássica e a metafísica contemporânea: se em Pascal a descoberta da dimensão

metafísica da incompletude torna o comprometimento religioso o único razoável, em

Sartre é o desvelar da dimensão histórico-metafísica273 (e existencial) da

incompletude que torna à ação politicamente engajada um imperativo absoluto.

Não nos parece, afinal, por um excessivo dogmatismo que surge a

inexorabilidade da via do engajamento para Sartre, mas sim pelo transbordamento

problemático da questão ética da existência. Neste sentido, obras como O Ser e o

Nada, Crítica da Razão dialética ou o Idiota da Família podem, sem dúvida, ser

consideradas obras de sistematização – mesmo que de teor inacabado visto que as

duas últimas permanecem de fato inconclusas e a primeira se encerra com páginas de

questionamentos sem resposta. Mas notemos que ali se encontram, afinal, ainda que

na forma de esboços, as múltiplas tentativas de sistematização, não das soluções, mas

das questões sobre a existência. Como diria Leopoldo e Silva: “O homem é o ser para

o qual o seu próprio ser está em questão: estar em questão significa nesse caso a

impossibilidade de uma resposta total e definitiva, e também a impossibilidade de

uma completa elaboração da pergunta.”274

De algum modo, assim como nas existências a pura espontaneidade do Para-si

se projeta fatalmente num deslize infrutífero em busca do Em-si-para-si,

cristalizando-se, pela “paixão inútil” de ser Deus275, também na história a paixão dos

homens - ludibriar a contingência pela ação e, portanto, compreender a história

vivendo-a - revela-se uma perda desnorteadora. Perda da esperança vã de capturar o

futuro em termos de presente, de captar uma finalidade possível para a história, de

272 idem.p.157. 273 Metafísica entendida aqui como questionamento do existente e intuição direta da contingência. 274 SILVA, F-L. Ética e literatura em Sartre – Ensaios introdutórios. p. 8 275 Como notamos a propósito do caso Baudelaire: “Cada realidade humana é ao mesmo tempo projeto direto de metamorfosear seu próprio Para-si em Em-si-Para-si e projeto de apropriação do mundo como totalidade de ser-Em-si, sob as espécies de uma qualidade fundamental. Toda realidade humana é uma paixão, já que projeta perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo tempo, constituir o Em-si que escape à contingência sendo fundamento de si mesmo, o Ens causa sui que as religiões chamam de Deus. Assim, a paixão do homem é inversa à de Cristo, pois o homem se perde enquanto homem para que Deus nasça. Mas a idéia de Deus é contraditória, e nos perdemos em vão; o homem é uma paixão inútil.”(SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p.750.)

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enfim, “fechar os olhos da humanidade.”276 Dificilmente poderíamos formular de

maneira mais adequada este escorregadio acorde de condenação à liberdade,

irrealização e nostalgia de sentido e totalização ( todas impressões que caracterizam

ainda que de forma parcial e claudicante a compreensão da história para Sartre) do

que nos utilizando de uma reflexão de Mathieu em Com a Morte na Alma – à beira de

seus 15 minutos finais de vida: “Decido que a morte era o sentido secreto de minha

vida, que vivi para morrer; morro para testemunhar que era impossível viver; meus

olhos apagarão o mundo e o fecharão para sempre.”277

*

276 SARTRE, J-P. Verdad y Existência, p.157. 277 SARTRE, J-P. Com a morte na alma, p. 200.

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7)Violência e engajamento

Buscando realizar um pequeno apanhado do itinerário que propusemos,

tivemos, até o momento a oportunidade de reconstituir, através da literatura, o

primeiro patamar do itinerário ético-filosófico de Sartre. Apresentamos o desvelo da

contingência como condição humana – em A Náusea (1938)– e, a partir deste

horizonte de inconstância radical, iluminamos(ainda que de maneira bruxuleante) o

vínculo inalienável do homem com suas escolhas na história, em O Muro(1939).

Posteriormente, o quadro da liberdade como condenação humana foi aprofundado em

Mortos sem sepultura(1946) por intermédio do qual acompanhamos a implicação

entre a questão da contingência e da liberdade com o problema da opacidade da

verdade histórica, a saber, em razão da imersão do homem na história e da

impossibilidade de qualquer afastamento ou isenção desta relação intrínseca, a

experiência da história se identificaria com sua percepção e concepção da verdade.

A análise de Baudelaire(1947), aprofundou o problema da liberdade, nos

levando a considerar, a partir da experiência singular do poeta, o horizonte inalienável

das escolhas individuais, mesmo que mediadas pelas forças internas, da família e do

grupo, que margeiam as intenções livres278. Em Baudelaire, assim - na forma de

impasse - entrelaça-se o problema da opacidade da história(notadamente da história

pessoal) e do condicionamento das ações pela situação sócio-econômica, histórica e

familiar do sujeito, ou seja, “como um homem totalmente condicionado por sua

existência social” pode, ou não, ser “suficientemente capaz de decisão para reassumir

este condicionamento e se tornar responsável.”279

Doravante precisamos compreender melhor, em Sartre, a inscrição da

violência no panorama desta imersão problemática da liberdade humana na história,

isto é, a um só tempo, sintoma radical e inescapável da contingência radical, e índice

do imperativo de uma postura ativa e responsável face à história. Este imperativo

sartreano de responsabilidade frente ao seu tempo – veremos - suscita a permanência

da violência como arma realista de transformação sociopolítica. Em Camus, veremos

doravante, ao contrário, há uma recusa peremptória do conceito de ação histórica

eficaz. Sublinharemos em Camus a repulsão pela conversão da violência em método 278 Como dirá mais tarde Sartre numa entrevista, o esforço de suas psicanálises existenciais consiste em mostrar que “o homem pode sempre fazer qualquer coisa daquilo que fazem dele.”( SARTRE, J-P. Situations, IX. p.101) 279 Idem.

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político-revolucionário ou em “mecanismo” endossado pelo conceito de “progresso”

histórico. Camus se mostrará um combatente intransigente da legitimação da

violência pelos conceitos de eficácia e de finalidade histórica que caracterizará como

o advento de uma nova e igualmente nociva espécie de messianismo, secularizado em

sua recente roupagem, pelo endeusamento das ideologias e das técnicas.

Uma situação comum entre os dois autores será o ponto de partida do esforço

que empreenderemos doravante na tentativa de esmiuçar o papel da violência na ética

sartreana e camusiana: o lançamento pelos E.U.A, em 07 de agosto de 1945, da

bomba atômica sobre Hiroshima, epílogo dantesco da II Guerra Mundial. A recepção

dos autores280 a este divisor de águas para a história da humanidade nos permitirá

delinear o prisma pelo qual cada um encara, de maneira mais abrangente, a violência

na história: Sartre com a resignação angustiada de quem prova de maneira totalizante

a perspectiva filosófica de que o gênero humano governa seu futuro inexoravelmente

contingente, Camus com a indignação de quem vê a dignidade humana sucumbir em

prol de uma concepção fatalista da história que naturaliza à ignomínia da violência.

Cremos que nos será possível entremostrar através desta aproximação inicial,

algumas diferenças cruciais entre as posturas ético-filosóficas de Sartre e de Camus

que prenunciarão a disparidade profunda entre suas concepções de engajamento,

embora ambos, veremos, compartilhem de uma angústia comum: o futuro sombrio da

humanidade após a “invenção” do “apocalipse” técnico-científico.

*

280 SARTRE, J-P. La fin de la guerre in Situations, III. e CAMUS, A. Essais – Actuelles, I. Morale et Politique. Combat, 8 août 1945.

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8)Sartre, Camus e a “engrenagem” da história: filósofos diante de Hiroshima

“(Jean) – Nós preparamos uma máquina - compreendes? Uma máquina formidável que possa, chegado o dia, fazer a um só tempo a greve geral e a Revolução pelas armas(...) - Tu sabes no que dará teu projeto, diz Lucien. Milhares de mortos de um lado e de outro. Eu...não poderei suportar a idéia de que eu seja o responsável por estas mortes. Eu...eu, Jean, tenho horror à violência.”(Jean-Paul Sartre. L’Engrenage.131-2)

Em A República do Silêncio e Paris sob ocupação presenciamos as análises de

Sartre sobre a situação dos franceses durante a guerra. São relatos “vivos” que

envolvem testemunhos extremamente pessoais sobre o cotidiano sob ocupação e

sobretudo põe em prática uma hermenêutica existencialista para a compreensão da

experiência humana da história, fazendo, como exige a prática fenomenológica, saltar

da realidade conceitos chave do existencialismo, como por ex. a condenação à

liberdade, a inevitabilidade das escolhas, a relevância das pequenas práticas sociais

como participantes do engajamento político, a nadificação pela intencionalidade do

olhar e pela capacidade imaginativa.

Concedemos especial relevo em nosso estudo anterior, para a reincidência do

termo “abandono”(délaissement)281,como representação da condição humana face à

história, tão livre quanto vulnerável, problemática magistralmente sintetizada numa

passagem de O Ser e o nada: “Sou abandonado(délaissé) no mundo, não no sentido

de que permanecesse desamparado e passivo em um universo hostil, tal como a tábua

que flutua sobre a água, mas, ao contrário, no sentido de que me deparo subitamente

sozinho e sem ajuda, comprometido em um mundo pelo qual sou inteiramente

responsável, sem poder, por mais que tente, livrar-me um instante sequer desta

responsabilidade, pois sou responsável até mesmo pelo meu próprio desejo de livrar-

me das responsabilidades(...)desde o instante de meu surgimento ao ser, carrego o

peso do mundo totalmente só, sem que nada e ninguém possa aliviá-lo."282

281 SARTRE, J-P. Situations, I pp.13-14-31; 282 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. p.680.

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Podemos imaginar que, jamais, este conceito sartreano de abandono - que

vincula desamparo individual com a responsabilidade coletiva – brotado da

experiência, a um só tempo, intrinsecamente pessoal e pública da guerra, fora tão

pertinente, quanto em agosto de 1945: “...esta pequena bomba que pode matar cem

mil homens de chofre e que, amanhã, matará duzentos mil, ela nos põe, de imediato,

em face de nossas responsabilidades.”283

Sartre relata a atmosfera de expectativa e indiferença que invadira os franceses

logo após a liberação de seu país; uns, colhidos pelo esmorecimento do sentido da

existência após o término gradual da luta, simplista, contra a encarnação do Mal –

outros – inspirados pela experiência transformadora do engajamento, sucumbem ao

assentimento morno às atrocidades da história convertidos em projeção para o amanhã

transformador: “Se nos inculcassem amanhã que um novo conflito acabara de

ocorrer, diríamos: <<Está na ordem>>, com um alçar de ombros resignado. Nos

melhores, descobri também um surdo consentimento à guerra que é como uma

adesão ao pleno trágico da condição humana.”284

A precisão exterminadora da Bomba de Hiroshima adverte aos partidários do

engajamento revolucionário que, para além das lutas e de suas exigências, para além

das ânsias transformadoras da sociedade, existe um denominador comum: o da

“fragilidade humana”285. Se, na reflexão sobre o abandono no momento d’O Ser e do

nada, Sartre se preocupava em afirmar o contorno moral do termo abandono -

responsabilidade em relação aos eventos - ele mostra-se, pelo menos em alguns

trechos de O Fim da Guerra, preocupado em associá-lo com a vulnerabilidade

existencial da humanidade em face aos sonhos futuros. Mas esta comiseração será

breve.

Assim, seria quase impossível deixar de notar certa formalidade nas palavras

de Sartre no momento de se referir, sucintamente, à fragilidade da condição humana à

luz da Bomba de Hiroshima, sem, a bem da verdade, exprimir qualquer repugnância

pelo pérfido fim destes homens, mulheres e crianças, civis indefesos de carne e osso

que, há apenas poucos dias, em dada hora, foram assassinados de maneira selvagem

pelo universo da técnica.

283 SARTRE, J-P. La fin de la guerre in Situations, III.p.68. 284 Idem, p.66. 285 Idem.p,68.

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Apesar de exprimir, à sua maneira, um humanismo, ainda que sisudo,

principalmente reiterando à angústia como o sentimento preponderante pós

Hiroshima, não encontramos sinal nenhum de indignação moral neste texto de

Sartre: é como se, passada a necessidade da mesura filosófica em relação a um

acontecimento de tal gravidade, o autor se pusesse a, escrupulosamente, medir os

impactos práticos desta variável em relação a sua “aposta”286 político-revolucionária,

nos termos de: - O que se arriscará? No que a bomba altera as condições do jogo? O

que se ganha do ponto de vista revolucionário?

A resposta de Sartre, à primeira questão talvez tenha despertado escândalo à

Camus, para quem “nenhuma certeza vale um cabelo de mulher.” Sartre nota que a

história não possui mais àquela antiga aura de eternidade e que a aniquilação pode,

afinal, chegar antes que o futuro revolucionário: “Na próxima, a terra pode sumir:

este fim absurdo deixaria em suspenso para sempre os problemas que fazem há dois

mil anos nossas preocupações. Ninguém jamais saberá se o homem teria podido

superar os ódios raciais, se teria encontrado solução às lutas de classe.”287À

primeira alternativa, a bomba não deixa margem à dúvida: a luta revolucionária terá a

partir deste momento, que pensar que a “partida” se desenrolará nos termos do tudo,

ou nada. Nunca se saberá se a humanidade será capaz de disputar um “segundo

tempo”

289 Jean-Paul diz ainda, “de agora em diante minha

liberdade é mais pura.”290

.

Mas é a alteração nas “condições de jogo” o que fascina Sartre, e a maneira

como a nova realidade, que se apresenta com a face mais cruel da história da

humanidade, depõe a favor das teses cardeais do existencialismo: abandono, liberdade

e responsabilidade conjugadas, engajamento. Assim, talvez não seja excessivo

acentuar um certo entusiasmo mórbido na maneira como Sartre é capaz de,

minuciosamente, extrair conseqüências teoricamente tão produtivas de premissa tão

ignóbil e sangrenta. Hábil em todos os aspectos, Sartre não parece se dar conta da

rudeza de seu pragmatismo288: “Seria necessário mesmo que um dia a humanidade

dispusesse de sua morte.”

286 Notar o vocabulário da página 71 do mesmo texto : “Il faut parier.” 287 Idem., 68. 288 Franqueza impossível em nosso ambiente atual recalcado pela hipocrisia do politicamente correto. 289 Idem,p.68. 290 Idem.p.69.

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Sartre se refere à radicalização da experiência do abandono que, se antes era

como que vivida individualmente, adquire, com a bomba atômica, uma dimensão

coletiva, a qual já se insinuava na conivência surgida durante os anos de guerra.

É logicamente inviável - pensa Jean-Paul - após o advento das armas

nucleares, que haja um Deus ou um responsável de fora pelas ações humanas, visto

que, agora em diante, toda a criação(toda a vida)se encontra como que dependente da

escolha humana de viver.

Contingência radical e redução do referencial humano à história para o qual já

apontava o existencialismo.

Sem Deus, e depois de Hiroshima, desprovido do abrigo da temporalidade291

que o inocentava do devir e o imiscuía das culpas do cotidiano, reduzido à

materialidade do presente, incerto de que mesmo o sol nascerá amanhã, eis o homem

confrontado com sua única possibilidade de futuro, o engajamento numa luta política

presente e continuada que o legitime no presente e para o futuro.

Como não notar nas palavras de Sartre uma espécie de semi-gozo milenarista

com o desvelo explosivo desta evidência apregoada há anos pelo existencialismo?

“ Retornamos ao ano Mil, cada manhã estaremos à beira do fim dos tempos; à

beira do dia no qual nossa honestidade, nossa coragem, nossa boa vontade não terão

mais sentido para ninguém(...) Depois do anúncio da morte de Deus, eis que

anunciam a morte do homem. De agora em diante minha liberdade é mais pura: este

ato que faço hoje, nem Deus nem Homem serão testemunhas perpétuas. É necessário

que eu seja, neste mesmo dia e na eternidade , minha própria testemunha.”292

Niilificado o solo da esperança transcendental, do abrigo do tempo, da

esperança do futuro, abandonado à sorte alheia(um núcleo do poder “consentia” a

partir de agora que o mundo vivesse) o homem está caracterizado, a rigor, no estilo

existencialista: alquebrado, tanto pelos acontecimentos quanto pela lógica implacável

e pelo estilo do escritor, ele está pronto a aceitar, sem reservas, a engrenagem da

história: “é preciso renunciar a construir a paz, a mais periclitante de todas, porque

nós não cremos mais na Paz, porque nosso país perdeu poder, porque o suicídio da

terra afoga nossos empreendimentos de um sutil nada? Ao contrário disso(...)é

necessário apostar(parier)pela terra(...)Nós apostaremos pela vida, por nossos 291 “cada homem<<antes de Hiroshima>> estava ao abrigo da multidão, protegido contra o nada anti-diluviano pelas gerações de seus pais, contra o nada futuro pelos seus sobrinhos, sempre em meio ao tempo, nunca em seus extremos.”(Idem.p.68.) 292 Idem.p.69.

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amigos, por nossa pessoa, apostaremos pela França, nos engajaremos a integrá-la

neste mundo rude e forte, nesta humanidade em perigo de morte.”293

Desvela-se a estratégia moraliste de Sartre, no melhor estilo da tradição do

pensamento apologético francês, fórmula parodiada por Camus tanto em O

Estrangeiro, quanto em A Peste: vende-se, afinal, barato uma solução pragmática no

beco sem saída ou no vale do desespero.

Podemos, no limite, comparar à apologia sartreana do engajamento à luz de

Hiroshima, brotada do desespero, com a simplória heurística do padre a quem foi

confiada à conversão de Meursault: “todos na sua situação se converteram”294, diz o

padre. Da apologética implacável do engajamento em Sartre, reflui também que só há

uma escapatória para o homem que teme o seu lobo: o engajamento revolucionário.

Não deixa de ser curioso o amálgama no qual Sartre funde todas às tendências

da política francesa sob a nomenclatura de França, para não mencionar às lutas

intestinas que esconde sob o tão portentoso quanto apaziguador nome de humanidade:

nem mesmo os melhores amigos detém a univocidade romanesca dos Três

Mosqueteiros... E Sartre o sabe. Por que então, tão indisfarçável má fé? Podemos

pensar que diante do fanal da conversão à política, os meios parecem como que

tremeluzir...

Indiferente a estes questionamentos de cunho camusiano, Sartre recita, em 20

de agosto de 1945, dias após o massacre, o corolário da panacéia existencialista para o

absurdo, isto é, o engajamento na construção do presente, como se servisse de consolo

para os sobreviventes(de todo mundo) da experiência de Hiroshima: “Mas, é

necessário apostar, a guerra morrendo, deixa o homem nu, sem ilusão, abandonado a

suas próprias forças, compreendendo enfim que não há com quem contar salvo com

ele mesmo.”295

Não é a toa que, a despeito do sofrimento de grande parte desta humanidade de

que se faz porta-voz, Sartre encerre seu discurso sob a situação humana diante de

Hiroshima, seguindo à paródia nietzschiana dos Evangelhos, numa tonalidade cara

aos discursos de ação, anunciando, embora num tom sombrio, não um amanhã, mas

293 Idem.p.70 294 CAMUS, A. L’Étranger.p.1210. 295 SARTRE, J-P. Situations, III. p,71.

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uma tarde, embora turbulenta, ou seja, um futuro de luta - “É a única boa nova que

anunciamos - outra tarde, esta cerimoniosa e glacial saraivada de canhões.”296

Não há dúvida de que o existencialismo sartreano, malgrado, à angústia297

inúmeras vezes reiterada, cultiva ao menos uma esperança: Que - enquanto houver

manhãs - a engrenagem dos dias e dos canhões testemunharão a luta dos homens em

resolver suas antigas questões.

Outro aspecto parece-nos relevante: Nas frases finais mencionadas acima

emanam o brilho de um desafio frente a esta demonstração assombrosa de poder que

pretende, pelo terror, fazer calar qualquer dissidência298.

Quanto à violência, ela é tão contingente quanto cada uma das manhãs após

Hiroshima: ela pode ser extirpada da vida humana - mas na medida em que o homem

e a terra podem, em conjunto, ser também extirpados da vida num só golpe.

Quanto à metodologia revolucionária à luz de Hiroshima nenhuma mudança

significativa. Sartre deixa clara, sem subterfúgios, sua postura em relação à

inevitabilidade da violência no desenrolar da história: poucos “ousam crer que se

pode passar sem ela.”299

Mas, as palavras mais duras se dirigem notadamente “aos otimistas”

incorrigíveis - dentre os quais certamente se encontra Camus de seu ponto de vista –

àqueles que persistem em cultivar o credo caduco da recusa à violência: estes, para

Sartre “acreditavam sem provas que a paz era a substância natural do universo, que

a guerra não era senão uma agitação temporária.”300 O evento da bomba foi, para

estes, pedagógico. Esta esperança foi devassada pela versão tecnológica do

apocalipse: “Hoje nós reconhecemos nosso erro: o fim da guerra é simplesmente o

fim desta guerra.”301 Poderíamos, no limite, pensar que, segundo a pedagogia

revolucionária, a bomba suscitou um ganho no coeficiente da lucidez humana acerca

de sua condição: ela demole suas últimas esperanças de felicidade fora da história – a

ubiqüidade da morte demonstrada pela Bomba Atômica não deixa margem aos

refúgios idílicos.

296 Idem.p.71. 297 Idem.pp.63-9,71. 298 Sartre, não poderíamos deixar de ressaltar, conhece bem a bipolarização da política mundial e que, assim, os EUA se anuncia o grande inimigo do socialismo. 299 Idem.p.67. 300 Idem.p.66. 301 Idem,p.66.

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Finalmente, quem sabe não seja excessivo indagar, diante da enumeração de

universais ajuntados como razões para o compromisso histórico-revolucionário

(apostar na “Humanidade”, na “França”, “em si”, “nos amigos” ou na “vida”-cada um

destes coletivos, por sinal, rigorosamente vazio e inexistente) qual seria o quinhão de

liberdade de recusa do homem pós-Hiroshima à engrenagem do engajamento: ou se

este estrangeiro estaria, como nos tempos da inquisição, reduzido em Sartre, à figura

do louco ou do sátiro - reduzido ao absurdo.

A bem da verdade, a caracterização do pacifismo que faz Sartre neste texto,

permite pensar que o autor nega uma autonomia à questão do pacifismo ou mesmo do

combate pacífico. Mais grave: ele os considera com a ironia e a condescendência de

quem lida com “bobos da corte”. Sartre assimila indiscriminadamente a não-violência

à religiosidade, provocando uma redução, de fato, ao absurdo à postura contrária à

engrenagem da morte: “ o pacifismo guardava ainda a esperança que um dia, à força

da paciência e da pureza, se faria descer o céu sobre a terra...”302

Quem sabe O Estrangeiro de Camus seja uma singular tentativa de resposta a

esta visão que associa a não-violência à religiosidade, ao mostrar que, mesmo num

mundo despovoado de qualquer esperança transcendental pode prevalecer o

imperativo de recusa da indiferença e do leitmotiv da violência.

*

Sete de agosto de 1945 desperta outro timbre filosófico em Albert Camus: o

redator chefe do jornal Combat se mostra surpreendido e indignado pela indiferença

geral em relação ao massacre e identifica, de chofre, a sociedade tecnológica, aliada à

sociedade do espetáculo que começa a surgir - inimigos da causa da dignidade

humana: “ O mundo é o que é. É o que todo mundo sabe depois de ontem, graça ao

formidável conceito que o rádio, os jornais e as agências de informação vieram

acionar(déclencher303)a respeito da bomba atômica. Ouvimos, em efeito, em meio a

uma multidão de comentários entusiastas, que não importa qual vila de importância

média pode ser totalmente arrasada por uma bomba do tamanho de uma bola de

futebol. Os jornais americanos, ingleses e franceses se derramam em dissertações

elegantes sobre o futuro, o passado, os inventores, o custo, a vocação pacífica e os 302 Idem.p.66. 303 O termo que em francês é retirado da mecânica e quer dizer “ativar de maneira rápida um mecanismo: uma máquina, um carro etc.”., é difícil de ser mantido em português, embora significativo conceitualmente pela analogia com o mecânico tão cara a Camus.(Le Petit Robert)

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efeitos guerreiros, as conseqüências políticas e mesmo o caráter independente da

bomba atômica.”304

Inútil procurar desdobramentos filosóficos úteis na Bomba H; Inútil enquadrá-

la num processo histórico e tecnológico – inútil atribuí-la à virtude de trazer término à

II Grande Guerra.

É com indignação que Camus resume o horror à resignação e mesmo, à euforia

geral, com os desdobramentos funestos da história: “Nós resumiremos em uma frase:

a civilização mecânica acaba de chegar ao seu último degrau de selvageria”305.

Enquanto Sartre entrevê o evento sob o prisma do que poderíamos considerar

resignação ao mal, visto não ter dúvidas, após a experiência do Holocausto, de quanto

mal o homem é capaz de produzir – de modo que encara o apocalipse tecnológico

dentro dos termos, até mesmo não surpreendentes, da violência real de um mundo

“rude e forte”, Camus questionará sobre esta suposta naturalidade do extermínio,

lançando, contra a banalização do mal, um apelo corrosivo e mordaz que reduz ao

absurdo à normatização do assassinato em massa. Uma nesga de lucidez e humanismo

basta para expor os admiradores da bomba ao ridículo. Ajuntemos ainda: Camus, ao

contrário de Sartre que jamais se questiona sobre o porquê da bomba306, contesta o

solo sob o qual vem sendo construída a história – o solo das conquistas técnicas e

científicas- suscitando a pensar, ao contrário de seu colega, que a história poderia se

recusar a esta mecânica repetição do mal: “Será necessário escolher, num futuro mais

ou menos próximo, entre o suicídio coletivo ou a utilização inteligente das conquistas

científicas. Enquanto isso é aconselhável pensar que há qualquer coisa de indecente

em celebrar assim uma descoberta, que se põe de começo ao serviço da mais

formidável fúria de destruição que, nunca, durante séculos, o homem experimentou.

Que num mundo relegado a todos os dilaceramentos da violência, incapaz de algum

controle, indiferente à justiça e à simples felicidade dos homens, a ciência se

consagre à morte organizada, ninguém, sem dúvida – salvo de um idealismo

incorrigível - sonharia se espantar.”307

Outra faceta do mecanismo da indiferença que detecta Camus e que contamina

de maneira crescente a sociedade depois das atrocidades da segunda guerra -

indiferença da qual o testemunho de Camus sob a recepção “festiva” da bomba sobre 304 CAMUS, A. Essais – Actuelles, I. Morale et Politique. Combat, 8 août 1945. p. 291 305 Idem.p.291. 306 O realismo de Sartre se contenta em notar que a bomba existe e o que fazer diante deste fato. 307 Idem.p.292.

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Hiroshima em todo o mundo é exemplar - é a aliança, então inovadora, que

mencionamos acima, entre a sociedade tecnológica e a sociedade de espetáculo:

aliança que, hoje sabemos, patrocina o endeusamento do conceito de progresso e a

conseqüente homogeneização entre o conceito de progresso e o de avanço

tecnológico. Este conluio é que projetará, para os homens saídos do após guerra, sua

imagem futura, deixando de fora desta projeção de amanhã, os valores, à dignidade ou

a simples - felicidade dos homens - de que fala Camus no trecho acima: “estas

descobertas devem ser registradas, comentadas segundo o que são, anunciadas ao

mundo para que o homem tenha uma idéia precisa de seu destino. Mas rodear estas

terríveis revelações de uma literatura pitoresca e até humorística, não é

suportável(...)Oferecem sem dúvida à humanidade sua última chance. E isto pode ser

pretexto para uma edição especial. Mas deveria ser motivo para alguns comentários

e muito silencio.”308

Talvez não seja demasiado notar que enquanto Sartre faz questão absoluta de

reiterar sua postura favorável à violência na luta de transformação sociopolítica no

texto consagrado à situação do fim da II Guerra(e ao comentário sobre os métodos

que os EUA empregaram para terminá-la), reiterando que, o que acabara “fora esta

guerra” e, portanto, num feixe hobbesiano, explicitando que a guerra não é um

fenômeno e sim um estado da condição humana309, Camus insiste, ao contrário –

reivindicando um horizonte também de gratuidade e indeterminação originais - como

veremos oportunamente em O Estrangeiro em O Mito de Sísifo – que a barbárie não

pode ser justificada e que paz deve ser perseguida, não apenas como um horizonte

possível, mas até mesmo, o único desejável: “Diante das perspectivas terríveis que se

mostram à humanidade, percebemos ainda melhor que a paz é o único combate que

vale apenas ser levado. Não é mais uma súplica(prière310), mas uma ordem que deve

308 Idem.p,292 309 O que nos parece até mesmo um tanto contraditório com a teoria da liberdade que é, por excelência, teoria da indeterminação. Porque a paz, num horizonte de liberdade e indeterminação radicais não é um dos possíveis? 310 Interessante notar que prière quer dizer num sentido concreto, “movimento da alma buscando uma comunicação com Deus”(Le Petit Robert)e, apenas num sentido figurado, súplica, pedido. Quem sabe a terminologia cristã tenha sido mal escolhida, quanto mais quando Camus busca se desvincular de um pensamento religioso ou da simples menção à esperança(veremos a seguir). A escolha é grave, talvez dada a rapidez com que foi escrito(o texto é publicado na Combat no dia seguinte ao massacre), pois a leitura permite a falsa interpretação de que a luta pela paz teria sido, noutros tempos, conduzida pelo Evangelho: “Ce n’est plus une prière, mais um ordre qui doit monter des peuples vers les gouvernements, l’ordre de choisir...”(idem.p.292) Para o leitor reincidente, entretanto, é freqüente a utilização deste vocabulário cristão por Camus. Notar o interessante artigo de Goldstein sobre o assunto: “Camus et la Bible.R-P.GOLDSTEIN in Revue des Lettres Modernes – Albert Camus 4.

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se elevar dos povos aos governos, ordem de escolher definitivamente entre o inferno e

a razão.”311

Assim para Camus, não há refúgio numa suposta dimensão útil, para a bomba

atômica. Ela não contribui à paz, ao progresso, à compreensão da contingência ou à

lucidez. Ela evidencia, ao contrário, o absurdo de todo combate que tem a selvageria

como premissa e que só recobraríamos o senso desativando a engrenagem da

legitimação da morte e da moral do cálculo e da indiferença.

Se dissemos que a única esperança semeada por Sartre depois de Hiroshima é

a do engajamento na luta de transformação, e, no limite, o triunfo sobre os algozes da

história, visto que a guerra se mostra a partir de então, feita de tudo ou nada – Camus,

de sua parte semeia inegavelmente, outra esperança: de que a inteligência e de que o

equilíbrio entre as nações impeça o mecanismo da guerra se alastrar: “...nós nos

recusamos a tirar de tão grave notícia outra coisa que a decisão de pleitear ainda

mais energicamente ainda em favor de uma verdadeira sociedade internacional, onde

as grandes potências não tenham direitos superiores às pequenas e às médias nações,

onde a guerra, peste(fléau) tornada definitiva por único efeito da inteligência

humana, não dependerá mais dos apetites ou das doutrinas de tal o tal estado.”312

A frase final deste texto de 08 de agosto de 1945 é um índice bem eloqüente

do tipo de fatalismo contingente expressos pela simbologia camusiana do sol ou da

peste a que nos referiremos oportunamente - que pouco tem a ver com uma

concepção do trágico ligado à pré-determinação: este mecanismo injusto e mortal da

natureza, cruel e indiferente, é uma ordem injusta que é reiterada voluntariamente

pelo homem a cada momento em que escolhe matar: “peste(fléau)tornada definitiva

por único efeito da inteligência humana.”313

A revolta de Camus é que, através das ideologias e do estado, das concepções

filosóficas da história e do progresso, o homem não somente legitima, mas venera

voluntariamente esta ordem da morte que é a negação mesma do homem. Resultado:

Transformação do horizonte do homem que deveria ser livre, inocente e feliz, numa

engrenagem inescapável e sangrenta que ele chama de lei, de progresso, de história.

Entretanto, talvez não seja excessivo impor a Camus réplicas de cunho

sartreano, que ainda prevalecem na atualidade do terceiro milênio: Como podemos

311CAMUS, A. Essais – Actuelles, I. Morale et Politique. Combat, 8 août 1945. p. 292. 312 Idem.292-3. 313 Idem.p.292.

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imaginar um equilíbrio entre nações sem o conceito de força ou sem que força

signifique violência – mesmo que coibindo à violência314? A recusa da violência não

significa a renúncia à luta de reversão da injustiça? Não teríamos que conceder à

Sartre que o poder esmagador da bomba não poderia, de forma alguma, pelo medo,

calar o clamor humano por justiça e igualdade?315

Por outro lado seria injusto não impor à Sartre outras interrogações

humanistas, no estilo camusiano, ao seu ímpeto transformador: Por que devemos

reiterar necessariamente, na indeterminação e liberdade que é nossa condição, à

determinação da ordem natural da morte e da crueldade? Por que a não-violência não

consistiria num dos horizontes possíveis para a liberdade humana? Desativar a

engrenagem da violência na história não consistiria num dos possíveis da história

mesma? Porque, com a amplitude do horizonte da contingência, aceitar com

resignação que o fim da guerra é a guerra sem fim?

*

Estes entre outros equacionamentos, nossos filósofos porão entre si e

submeterão à história, não apenas em textos nos quais é muito difícil estabelecer

fronteiras precisas entre ética, política e filosofia, mas também(e arriscaríamos dizer)

- de forma ainda mais genuína - através das problematizações éticas contidas nas

narrativas literárias.

Isto por que nos textos, como por exemplo, O fim da guerra, publicado na

Revista Les Temps Modernes e o editorial do dia 08 de agosto da Revista Combat, o

impacto e o grau de comprometimento de cada palavra empregada exige uma certa

clareza de opinião que não se pode “dar ao luxo” do duplo sentido, da ambigüidade,

do paradoxo ou mesmo da contrariedade.

O filósofo público, figura tradicional da cultura francesa, seja Pascal – vulgo

Louis de Montalte - seja Voltaire, sofre em seu contexto um processo de

simplificação, mais ou menos intencional: por um lado, esta popularização é salutar

na medida em que estando empenhado no debate de questões cotidianas, a recepção

dos textos é como que purificada no processo de popularização, das dissonâncias e

interferências que porventura se interponham entre a tese defendida e os leitores. Por

outro lado, este processo depura a opacidade do pensamento que pode ser, justamente, 314 É sempre curioso notar a contradição que existe nos assassinatos cometidos pelas forças de paz da ONU, por ex. 315 Deste ponto de vista poderíamos notar até mesmo certo heroísmo em Sartre desafiando o poder esmagador da superpotência americana, mesmo que ao custo do sangue alheio.

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o que define sua espessura e quilate. Em Voltaire, por exemplo, é a estampa de

otimismo que o ilustra: mas por trás da carcaça demolidora do deboche encontramos

também uma veia pessimista, como nas considerações sobre o terremoto de Lisboa,

além de um eterno retorno aos dilemas existências expressos pelo pessimismo, como

prova o tempo gasto na velhice debruçado novamente sobre os Pensamentos de

Pascal. Resultado: a eficácia do pensamento voltariano é dilatada pelo processo de

simplificação, mas em prejuízo de sua riqueza conceitual. Pascal, por sinal, é outro

autor devastado em sua densidade. É suficiente notar a rarefação das primeiras

edições dos Pensamentos elaboradas em Port-Royal logo após sua morte com o

objetivo de depurar as ambigüidades e a potência crítica que, conjuntamente ao

método de pensar pascaliano, hoje o sabemos, são os principais legados do autor para

os séculos seguintes da história da filosofia.

A propósito da literatura no contexto da filosofia pública, comenta-se, por

exemplo, a respeito de Sartre, o poder que a dimensão narrativa possui de mimetizar,

de apresentar e no limite, de popularizar os conceitos do existencialismo. Conquanto

isto seja em parte verdadeiro, a exposição que fizemos d’O Muro e de Mortos sem

sepultura, procurou notar que a problemática sartreana do engajamento não está de

maneira nenhuma simplificada na literatura de Sartre, mas que, ao contrário, existem

questões que não são verdadeiramente aprofundadas senão por intermédio da

literatura, como por ex., a questão da opacidade da história e da inserção do homem

na verdade, questões problematizadas nas narrativas, mas que nos foi possível

delinear somente utilizando referências ao Verdade e Existência, texto publicado

unicamente após a morte de Sartre.

Daí nos arriscarmos a dizer que, mais genuíno que como polemista, enquanto

ficcionista, Sartre não apenas exprime, mas desenvolve um questionamento ético do

instante histórico somente possível em tal amplitude, numa dimensão narrativa. O

conceito de situação neste sentido é bem eloqüente: só é possível compreender a

complexidade do presente histórico buscando testemunhar como que internamente

cada situação - como escritor, Sartre procura re-encadear os múltiplos testemunhos

internos à história recompondo os quadros que – juntos - reformulam, ainda que de

maneira fugidia, a complexidade da inscrição humana no presente. Deste exercício de

complexificação posto em prática pela literatura de Sartre, obtém-se algo como um

denominador comum: a ambigüidade.

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Mas a dificuldade da compreensão teórica do ambíguo e do opaco – problema

evidente quando notamos a linguagem gongórica e as difíceis formulações com as

quais deparamos em Verdade e Existência ou O Ser e o Nada – não é o único motivo

do velar da complexidade filosófica.

A ambigüidade é um fruto nem sempre benquisto no jardim do polemista.

Se pensarmos em O fim da guerra, por ex., imaginamos que Sartre, ao

escolher mencionar sua concepção sobre a inevitabilidade da violência num

comentário sobre Hiroshima, elege um foco extremamente determinado: impedir que

o medo amordace o processo revolucionário. É preciso mencionar a angústia, mas,

sobretudo, reduzir ao absurdo o quietismo e, assim, utilizando recursos quase que

cinematográficos - ressuscitando os conceitos cardeais de humanidade, de

coletividade, de amizade - Sartre cumpre, em certo sentido, o objetivo de “manter a

moral da tropa em alta”. Este aspecto, no limite maniqueísta, que podemos identificar

como os ossos do ofício do escritor engajado, é bem visível em O fim da guerra. De

todo modo, mesmo que em alguns textos filosóficos-políticos de Sartre, tais como A

República do Silêncio ou Paris sob ocupação, seja equacionado o problema da

ambigüidade é na problematização literária que esta temática será, sobretudo,

trabalhada.

Que não se compreenda, portanto, a literatura de Sartre como simplificação

das questões filosóficas: a literatura é a dimensão privilegiada da reflexão ética

destinada a investigar as dissonâncias e ambigüidades próprias à espessura das

questões humanas, paradoxos que são como que depurados quando se trata do

imperativo de fazer agir os conceitos. Neste sentido Sartre e Camus caminham numa

mesma direção, mesmo que em lados diferente da história. Em ambos a literatura não

é de forma alguma o lugar da simplificação, ou da receita. Em Sartre, o triunfo do

acaso316, do suicídio317, do assassinato318 e da indecisão319, não poderia ser definido

como o esteio expositivo de uma conduta revolucionária reta. Em Camus, nem o

regozijo do assassino320, nem a política da loucura321, nem os cumes da

indiferença322, podem significar um elogio humanista strictu sensu. Nos dois

316 O Muro. 317 Mortos sem sepultura. 318 Mortos sem sepultura. 319 Adjetivos apropriados ao herói Mathieu de Os Caminhos da Liberdade. 320 O Estrangeiro. 321 Calígula. 322 O Equívoco.

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pensadores, enfim, a dimensão narrativa aprofunda e potencializa a especificidade da

filosofia diante das outras disciplinas: o poder de questionar, não apenas à realidade,

mas a si própria em sua contradição interna.

Desta perspectiva, iremos investigar um exemplo do equacionamento ético

do problema da violência na história, através da literatura, elaborado por Sartre.

*

Num roteiro para cinema de 1948, A Engrenagem, Sartre problematiza a

questão da violência na história de maneira aprofundada, contextualizando,

investigando outros pontos de vista e, assim, de alguma maneira, até certo ponto,

projetando nuances na postura aparentemente inflexível do polemista revolucionário

de O fim da guerra.

Jean Aguerra é o comandante chefe de uma revolução popular, nascida de

intelectuais e trabalhadores, já instaurada no poder há anos, que se vê derrubado pelos

seus antigos companheiros de armas. Depois de uma batalha sangrenta para tentar

manter-se no poder, ele se rende, enfrentando um tribunal revolucionário similar

àquele que outrora ele mesmo estabelecera. As acusações são conhecidas aos

ambientes pós-revolucionários: tirania, assassinato, repressão à liberdade de

expressão, desprezo pelas demandas dentro do país: conivência com a mega-empresa

de petróleo (apoiada pela superpotência inimiga) que, a poucos quilômetros de

distância, sufoca e ameaça constantemente o sonho revolucionário da pequena ilha:

“(Jean) De que me acusais? Tu não sabes diz François. Depois, ele se vira para o

público: - Digam a ele! Uma espécie de coro de gritos enorme se eleva do público

que se põe a gritar. Sentimos que o auditório não hesita jamais sobre os apupos que

lança contra Jean. No tumulto três palavras sobressaem, dominando tudo: - Petróleo!

Assassino! A terceira: -Ditador. Na sala, um homem se levanta, monta sobre sua

cadeira e grita: - Ele prejudicou a Revolução em proveito próprio. Ele substituiu os

dirigentes do Partido por homens dele! Um outro se levanta: - Ele amordaçou a

imprensa. Ele assassinou Lucien Drelitsch. Um camponês sentado na segunda fila se

levanta, brandindo suas mãos queimadas e retorcidas: - Ele incendiou minha vila.

Uma camponesa grita: - Ele deportou meu marido!”323

Recriminam a Jean Aguerra, além das infrações à democracia socialista

mencionada acima, a manutenção do pagamento da dívida externa ao preço da

323 SARTRE, J-P. L’Engrenage.pp,25-6.

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pobreza do povo, e o respeito ao contrato de exploração de petróleo assinado com

uma “superpotência” vizinha há muitas gerações.

A resposta de Jean às acusações não contesta os fatos criminosos, mas dirige

uma dúvida àqueles que, agora, assumem o poder: “Serás mais tirano do que eu. És

demasiado abstrato François.”324

Este caráter inevitável da violência como que intrinsecamente ligada ao

processo da “ditadura do proletariado” na infância revolucionária, é a discussão

central do roteiro, focado na amizade entre Jean Aguerra e Lucien Drelitsch. O

roteiro, utilizando de forma abundante os recursos cinematográficos da montagem e

do flashback, inspiração inequívoca do cinema russo que será em alguns anos

apropriada pela Nouvelle Vague, remontará, no momento do julgamento, às

circunstâncias nas quais ocorrem as primeiras discordâncias, o rompimento e a

posterior ordenação da deportação de Lucien por Jean, em prol da saúde

revolucionária. O rompimento entre ambos se inicia quando Lucien, depois da

revolução instaurada é designado para assassinar um dos ativistas acusado de traição.

Sua recusa é exemplar da postura que, cara a Camus, se recusa, por princípio, a

compactuar com o terror mesmo que legitimado pela causa revolucionária ou pelo

conceito de fim da história: (Lucien) “ Haverá certamente violências. Eu não me

associarei nunca a um ato de violência.”325Mas, se a recusa por Lucien de executar

Benga detona o processo de rompimento, pela rememoração exigida no inquérito,

podemos sustentar que, desde a infância do processo revolucionário os dois ativistas

confrontam duas posturas possíveis da luta política.

Regressamos ao início do processo revolucionário, nos quais, lado a lado

como irmãos, Jean e Lucien discutem os métodos pelos quais podem lutar por reverter

à injustiça. Impossível não sublinhar neste diálogo praticamente todos os traços da

dicotomia que alimentará o rompimento entre Sartre Camus: “Lucien, chegou o

momento de mudar de política. Os salários são miseráveis. Os camponeses se

endividam para suportar. As vilas estão mal nutridas. Nós estamos numa situação

revolucionária(...)É necessário mudar de tática, diz Jean. Mais greves. Mais

distúrbios na usina e um Comitê Central que organiza um Partido revolucionário

clandestino com ramificações em todas as usinas.“(Jean) – Nós preparamos uma

máquina - compreendes? Uma máquina formidável que possa, chegado o dia, fazer a 324 Idem. p.21. 325 Idem.p.119.

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um só tempo a greve geral e a Revolução pelas armas. – De acordo? Silêncio de

Lucien. – O que não está certo? Pergunta Jean. Lucien levanta a cabeça. Ele guarda

um ar desolado e fala com hesitação. – Jean, eu não posso marchar com vocês. –

Mas, por que irmãozinho? - Tu sabes no que dará teu projeto, diz Lucien. Milhares de

mortos de um lado e de outro. Eu...não poderei suportar a idéia de que eu seja

responsável destas mortes. Jean, eu...eu tenho horror à violência.”326

Não é apenas uma dicotomia entre métodos revolucionários que é pensada

aqui, mas, sobretudo, duas formas de se fazer história: uma na qual o poder da palavra

seria suficiente para mudar não somente a sociedade, mas a maneira de ser da história,

no sentido em que se sonha não fazer mais da engrenagem da violência seu motor.

Outro, resignado à mecânica da força, encara de maneira supostamente realista que, o

sofrimento e a injustiça quando sustentados por um aparato ideológico e estratégico,

detonam uma engrenagem que, como que por si só desencadeia e sustenta o avanço

da história. Um busca a inocência pela pureza de sua conduta. Outro se inocenta pela

idéia de despertar um mecanismo necessário e irrefreável de realização da justiça. Os

diálogos de A engrenagem mostram que, embora unidos pelo sonho da justiça, os

companheiros se separam definitivamente por concepções diferentes sobre a ação

humana na história e, mais especificamente, sobre o papel que deve exercer o

intelectual para influenciá-la: “Olhe Lucien. Lá, existem milhares de operários

reduzidos à miséria. Eles não são vítimas da violência, eles também? E, se não lutas

contra ela, não és cúmplice? – (Lucien) Eu quero lutar contra ela, mas a minha

maneira. Não sou um homem de ação, eu, eu escrevo. Eu quero denunciá-la com a

minha pluma. Jean escarnece com um pouco de irritação – Tu não te queres molhar

ou o quê?! – É verdade. Eu quero tanto permanecer limpo. Não se poderia defendê-

los sem se sujar? É necessário derramar sangue? Eu quero...Eu quero fazer o que é

justo.327

Cremos que não seja excessivo ver aqui uma paródia da postura anti-belicista

defendida pelo redator chefe do jornal Combat. Em uma série de artigos publicados

em novembro de 1946 no Combat, Camus explicita seu engajamento contra a

violência defendendo-se das acusações de ingenuidade, extremismo utópico ou

mesmo covardia, como as empreendidos por Sartre: “Tendo um dia dito que não mais

326 Idem.p,131-2. 327 Esta passagem não deixa dúvidas de pesar certa ironia em relação à postura de Lucien. Lucien, diga-se de passagem, coincidência ou não é o nome do pai de Camus.

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admitiria, depois da experiência desses dois últimos anos, nenhuma verdade que me

pusesse na obrigação, direta ou indireta, de condenar um homem à morte, os

espíritos que eu estimava outrora, me assinalaram que eu estava na utopia, que não

haveria verdade política que um dia nos conduzisse a este extremismo, e que seria

necessário, ou correr o risco deste extremismo, ou aceitar o mundo tal como

era.”328Em Nem vítimas nem Carrascos a indignação de Camus está dirigida contra os

legitimadores profissionais de plantão que, em robe de chambre, incentivam e

planejam, de seus escritórios, o derramamento de sangue – alheio, seguramente; para

Camus os intelectuais como Sartre fazem parte da engrenagem da morte que se auto-

legitima e absolve pelo conceito de finalidade histórica que constroem da clausura

tépida dos gabinetes. São mais uma faceta da tecnologia do medo que, dos homens às

técnicas, mobiliza para matar: “Este argumento era apresentado com força. Acreditei

de começo que era me apresentado com tal força porque as pessoas que me

apresentavam não possuíam imaginação para a morte dos outros. É um defeito de

nosso século. Assim como se ama por telefone, e que se trabalha não mais sobre a

matéria, mas sobre a máquina, se mata e se morre hoje por procuração. A

‘limpeza’(propreté) é conquistada, mas a consciência perdida.”329

Para Camus, em nome de um realismo político, intelectuais como Sartre,

estimulam um fatalismo do tipo messiânico pois mistificam a violência como um

destino inescapável. A certeza das ideologias fantasia que, depois da travessia do

crime e da violência haveria o advento de uma rendição futura por intermédio da

justiça instaurada, no fim da noite da história. Esta submissão ao mecanismo da

violência histórica é que parece insuportável à Camus: “Vivemos no terror porque a

persuasão não é mais possível, porque o homem foi largado inteiramente à história e

porque ele não pode mais se voltar para esta parte dele mesmo, tão real quanto a

parte histórica, que reencontra na beleza do mundo e dos rostos: porque vivemos

num mundo da abstração, este dos escritórios e das máquinas, das idéias absolutas e

do messianismo sem nuances. Sufocamos entre pessoas que crêem ter absolutamente

razão, quer seja em suas máquinas ou em suas idéias.”330

De fato, se tomamos A Engrenagem de Sartre, a postura do revolucionário não

deixa dúvidas de que a violência encontra fundamento na certeza da causa

328 CAMUS, A. Ni victimes ni bourreaux – Sauver les corps in Essais - Pleyade. p.334 329 Idem.p.334. 330 CAMUS, A. Le siècle de la peur. In Idem.p.332.

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revolucionária e na esperança do advento pela luta, da justiça, fim da história. O fim

da guerra é a justiça. Conquanto, se observarmos a continuação do diálogo entre Jean

e Lucien, podemos perceber que Sartre, pelo menos na literatura331, se preocupa com

esta caracterização do engajamento intelectual-revolucionário, sem nuances,

desprovido de culpas e ressentimentos em relação “ao que é necessário fazer”. Se,

durante a leitura de O Muro e Mortos sem sepultura, notamos a reincidência da

temática da ambigüidade da ação histórica, e a culpa inerente a ela, aqui encontramos

um retorno desta questão aplicada especificamente ao caso da violência de estado.

Pelos diálogos entre Jean e Lucien, Sartre investiga e faz viver as contradições

internas do engajamento revolucionário: (Jean)“Nestas coisas é preciso sujar as

mãos. Mas tu tens razão. Há um limite. Eu também não gosto da violência. Se eu

pensasse que um dia teria sangue até o pescoço...Ele olha Lucien com um olhar

suplicante e prossegue: - Venha conosco, Lucien. Eu só te peço uma coisa: quando

nós quisermos empregar meios injustos ou sangrentos, tu serás lá para nos

dizer:<<Parem.>> Só tu pode fazê-lo, pois tu és puro.” 332 Este heroísmo de Lucien

forjado de “ paciência e pureza” é, sem dúvida, o mesmo com o qual se mostra irônico

Sartre no Situations III: “O pacifismo guardava ainda a esperança que um dia, à

força da paciência e da pureza, se faria descer o céu sobre a terra.”333 No trato

literário, entretanto, este pacifismo idílico e original está como que integrado na

gestação do sonho revolucionário, esperança abortada quando confrontada com a

praxis da manutenção do poder, isto é, quando a revolução instaurada perde a

fulguração do instante e se entretêm na sobrevivência de, pelo menos, uma imagem

vaga deste sonho, mesmo que a nostalgia da maquete, do projeto, desta idealização

primeira de mundo.

Lucien encarna a infância do sonho revolucionário ao qual se atêm - segundo

Sartre - àqueles que ainda não se “molharam”na história. São ideais outrora

partilhados, mas superados pelo imperativo da prática. As palavras de Helena no

tribunal exprimem a dor de quem vê a inocência da revolução mesma ser sacrificada

com o martírio de Lucien: (Helena)“ Sabeis que ele(Lucien) sustentou a palavra. Em

sua vida, ele jamais se associou a um ato de violência. – Nós sabemos, diz François.

A vida toda ele repetiu: <<Nenhum triunfo vale a perda de uma vida humana.>> - É

331 Foi o que observamos em relação a O Muro e a Mortos sem sepultura... 332 SARTRE, J-P. L’Engrenage.p.133. 333 SARTRE, J-P. Le fin de la guerre.p, 67.

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por isto que ele foi morto, porque quis conservar até o fim as mãos limpas.”334 É,

em certo sentido, segundo Jean-Sartre, a idade da razão, que os contra-

revolucionários não admitem ter chegado: Agora, no poder, eles rapidamente

descobrem-na, desde o momento onde batalham pela rendição de Jean até o momento

onde, no tribunal, pleiteiam a legitimação de sua morte: (Jean, preso ainda no palácio

do governo)“Quantos mortos tem vocês?Muitos, diz François. Duzentos? Mais.

(Jean)É muito para conseguir a minha pele.”335

O “martírio” de Lucien começa com a recusa de submeter a outro à violência

da lógica engrenagem revolucionária. Ele se recusa a matar o suposto traidor Benga,

que, morto por Jean, revelar-se-á mais tarde inocente. O diálogo entre eles é índice de

uma culpabilidade que, em nenhuma outra dimensão da obra de Sartre, se desvela

com tanta evidência: (Jean)“-Lucien! Eu te faço horror? –Tu tens sangue nas mãos. –

Sim, diz Jean. Eu tenho sangue nas mãos. Mas evitei que tivesses, tu, nas tuas. Tomei

tudo para mim. Tu pensas que não teria gostado, eu também, de permanecer com as

mãos puras?”336 Jean em sua culpa resignada, se vê encalacrado numa engrenagem

que ele mesmo deslanchou, a saber, o moto-contínuo da violência finalista de que ele

também será vitimado pela restauração da mecânica do poder pelos novos

revolucionários. Perseguição política, deportações, mortes, todos os empecilhos

morais são transpostos para manter o poder. Sartre se aproxima por intermédio da

expressão narrativa de uma reflexão ética bastante próxima de Camus acerca da

fatalidade construída da engrenagem histórica, arquitetada e legitimada pelas

ideologias finalistas da história: mecânica contra a qual veremos Camus se rebelar,

seja em O Estrangeiro, seja em Nem vítimas nem carrascos: (...) “Não sei quantas

vezes perguntei a mim próprio se havia exemplos de condenados à morte que

tivessem escapado ao mecanismo implacável(...)nada me permitia este luxo, tudo me

proibia, a engrenagem reconquistava-me.”337 “A morte nos re-envia, pois, à morte e

nós continuaremos a viver no terror, seja se o aceitarmos com resignação, seja se

quisermos suprimi-lo com meios que o substituirão por um outro terror.”338

Entretanto A Engrenagem de Sartre, embora contemple este questionamento,

apresenta, inegavelmente, uma espécie de comiseração e, no limite, indulgência, com

334 SARTRE, J-P. L’Engrenage.p.119. 335 Idem.p.21. 336 Idem.p.199. 337 CAMUS, A. L’Étranger.p. 204. 338 CAMUS, A. Sauver les corps in Camus à Combat.p.614.

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os sacrifícios necessários para manutenção da máquina revolucionária, como podemos

atestar pela confissão de Jean diante do tribunal: “Miséria! Violência! Para combater

à violência eu não vejo senão uma arma: a violência.”(...) “De começo eu havia

decidido lutar através da violência. Mas eu esperava não me serviria dela senão

contra nossos inimigos. Depois, compreendi que estava numa engrenagem e que

precisaria, por vezes, para salvar a causa, sacrificar até mesmo inocentes.”339

É esta ética do sacrifício em prol da realização da história que Camus

considera o renascimento do messiânico, do fatalismo inadmissível, e que combaterá

com o jornalismo, a filosofia e o teatro engajados. Às acusações de ingenuidade e

idealismo, de Sartre, entre outros, contra a postura pela não-violência, Camus

responde denunciando de maneira incisiva o idealismo utópico messiânico-

revolucionário que credita o sacrifício dos homens de carne e osso “à nostalgia de um

paraíso terrestre”.

Explicitando sua opinião sobre a ilegalidade dos abusos patrocinados pelas

ideologias de estado em Salvar les corps, Camus deixa clara esta dicotomia entre

utopias retratada de maneira até certo ponto bastante fiel por Sartre em A

Engrenagem: “O que me espanta, em meio às polêmicas, ameaças e explosões de

violência, é a boa vontade de todos. Todos, à esquerda e à direita estimam são

próprias a fazer a felicidade dos homens. Não obstante, a conjunção destas boas

vontades resulta neste mundo infernal onde os homens são ainda mortos, ameaçados,

deportados, onde a guerra se prepara, e onde é impossível dizer uma palavra sem ser

no instante insultado ou traído. É necessário concluir que, se pessoas como nós vivem

na contradição, elas não são as únicas, e aqueles que acusam de utopia vivem quem

sabe numa utopia diferente sem dúvida, porém, no fim, mais onerosa. É preciso, pois,

admitir que a recusa de legitimar a morte nos obriga a reconsiderar nossa noção de

utopia. Sobre isto, parece-me que se pode dizer assim: a utopia é o que esta em

contradição com a realidade. Deste ponto de vista, seria completamente utópico

querer que nenhuma pessoa mate ninguém. É utopia absoluta. Mas é uma utopia num

grau bem menor pedir que a morte não seja mais legítima. Por outro lado, as

ideologias marxista e capitalista, baseadas todas as duas na noção de progresso,

ambas persuadidas que a aplicação dos seus princípios levará fatalmente ao

equilíbrio da sociedade, são utopias em grau muito mais elevado. Além do mais, elas

339 SARTRE, J-P. L’Engrenage.p.199.

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estão nos custando muito caro.”340 Camus conclui sua precisão aos críticos sobre a

utopia ingênua da não-violência de maneira categórica, antecipando dramaticamente

os desdobramentos que veremos alastrar-se durante o século: “Pode-se concluir que,

praticamente, o combate que travaremos nos anos que virão não se estabelecerá

entre as forças da utopia e da realidade, mas entre utopias diferentes que procuram

se inserir no real, e, entre as quais, não se trata, senão, de escolher a menos onerosa.

Minha convicção é que nós não podemos mais razoavelmente ter a esperança de tudo

salvar, mas que nós podemos nos propor ao menos a salvar os corpos, para que o

futuro permaneça possível. Vê-se, pois, que o fato de recusar a legitimação do

assassinato não é mais utópico que as atitudes realistas de hoje(..)Se trata, em

resumo, de definir as condições de um pensamento político modesto, noutras

palavras, liberto de todo messianismo, e desembaraçado da nostalgia do paraíso

terrestre.”341

Voltando a narrativa de Sartre, notamos que a caracterização da postura da

não-violência não possui tanta sutileza. Embora digna de simpatia pelas boas

intenções, Sartre a pinta com as tintas fortes do ridículo: numa cena, Lucien,

intimidado por brutamontes se recusa a revidar: “Não pela força(...)eu não me

defenderei.”342 Defendido por Jean que toma suas dores, exclama: “A violência

chama violência.” Noutro esquete, um diálogo entre ambos é bastante ilustrativo do

paralelo possivelmente imaginado por Sartre entre Lucien e Camus. A comparação,

embora procedente, não é, entretanto, cavalheiresca: (Lucien) “A primeira condição

para ser um homem é recusar toda a participação direta e indireta num ato de

violência.343Jean escuta, dividido entre a admiração amical pela pureza de Lucien e

a ironia pela sua inexperiência. – E, que meios empregarás tu?Pergunta Jean.

(Lucien) – Todos. Os livros!Os jornais!O teatro!”344

Não obstante a ironia com a qual Sartre expõe a tese do combate unicamente

intelectual de Lucien, o prosseguimento da narrativa demonstra que esta estratégia

não é de maneira nenhuma inócua. Lucien, afastado do centro do poder -, e outrora

340 CAMUS, A. Sauver…Camus à Combat. p. 614-5 341 Idem.p.616. 342 CAMUS, A. L´Engrenage. Idem.p184-5. 343 Lembremos o texto de Camus no jornal Combat:“Tendo um dia dito que não mais admitiria, depois da experiência desses dois últimos anos, nenhuma verdade que me pusesse na obrigação, direta ou indireta, de condenar um homem à morte, os espíritos que eu estimava outrora, me assinalaram que eu estava na utopia...” 344 SARTRE, J-P. L’Engrenage.p.187.

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empossado por Jean como “diretor do jornal La Lumière” posto em

clandestinidade345 -, se torna o maior inimigo da revolução que ajudara a instaurar, e

do “irmão” que se denegrira em tirano.346 A própria deportação de Lucien por Jean,

irredutível em seu ímpeto de defender sua concepção de poder, é marca de que,

mesmo que destinada a alimentar outros processos de sangue, a dimensão intelectual

do engajamento é capaz de mudar a história.

Assim, não podemos negar que esta autópsia narrativa do sonho

revolucionário, abortado no processo mesmo de se constituir elaborado por Sartre,

torna mais complexa a concepção do engajamento segundo o autor: esta concepção do

engajamento é mais espessa e ambígua do que a retidão sem nuances que poderíamos

enganosamente retirar da simples leitura dos textos políticos ou mesmo, de teoria

filosófica. A literatura não é, assim, de maneira nenhuma um veículo de simplificação

da expressão político-filosófica, ao contrário, por seu intermédio são as nuances e

ambigüidades mais sutis das questões éticas que são investigadas e expressas.

Complexidades inexprimíveis de outro modo.

É esclarecedora, por ex., esta aproximação “conceitual” elaborada por Sartre

entre Jean e Lucien demonstrando a identificação entre seus propósitos originais na

infância do sonho revolucionário. Talvez ainda mais significativa seja, ainda, a

proximidade afetiva exprimida pelo autor entre Jean-Sartre e Lucien – diz o primeiro

ao outro, evocando a proximidade na distância, relação que talvez melhor caracterize

a relação Sartre-Camus: “Meu amigo, meu irmão, mas não meu igual.”347 Neste

mesmo sentido é extremamente interessante conceitualmente à compreensão de Jean

em relação ao idealismo ingênuo de Lucien, ensaiando assim uma coexistência entre

as duas visões de mundo, faceta que “na vida real” revelou-se inviável: (Jean) “Penso

que é preciso homens como tu e homens como eu. Lucien, nós fizemos o que pudemos,

nós fomos, um e outro, até o final...”348

345 Idem.p.154. Impossível não ver uma paródia do jornal Combat dirigido de 44-6 por Camus que, durante os dois primeiros anos, foi clandestino. 346 Outro confronto entre ambos nos repõe no questionamento sobre o conceito de eficácia, correlato ao de legitimação no processo de instauração e manutenção revolucionária: (Jean) “Porque tu escrevestes estes artigos?(Lucien)- Porque penso que eles são justos. (Jean)- É muito cedo!É muito cedo!(Lucien) - Não é nunca cedo demais para dizer a verdade. (...) (Jean) -Nós nos arriscaremos a uma guerra, é muito cedo!”Lucien faz um gesto de impaciência: - Muito cedo para a Constituição! Muito cedo para o petróleo! Muito cedo para uma imprensa livre!Mas, o que é isso Jean! Tu não queres afinal governar contra o país?- Por que não? Diz Jean maleficamente.(hargneusement)”(L´engrenage, 188) 347 Idem.p.187. 348 Idem.p.218.

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Mas esclarecedora ainda que esta confissão de afinidade é a manutenção muito

clara da oposição entre ambos. O diálogo final entre eles, travado no leito de morte de

Lucien - abandonado num hospital de um campo de prisioneiros deportados – exprime

com evidência a recusa do arrependimento, de ambas as partes. Assim como Lucien

permanece fiel ao desejo de partir “com as mãos limpas”, Jean permanece convicto

que suas opções, violentas, foram as mais acertadas para impedir ainda mais

violência: (Jean) “ - Eu não me arrependo de nada!Era necessário salvar a

revolução. Se eu tivesse nacionalizado o petróleo, haveria guerra. -Porque tu não

disses? Pergunta Lucien com estupor. – Eu não podia. – Eram necessárias tantas

deportações para salvar a Revolução?- Se os estrangeiros re-estabelecessem o

regente haveria cem vezes mais deportações?Era necessário escolher.”349

Por fim, é extremamente significativo que, embora Jean admita sua

culpabilidade ao ponto de desejar morrer, não obstante resignada e sem

arrependimento, Lucien, por fim, o absolva moralmente por seus atos, mesmo o que

provocou seu próprio sacrifício: (Jean) “Escuta. Um dia eles invadirão o palácio e me

condenarão à morte. Eu o desejo, quase. Mas há somente uma coisa que conta: quero

saber se tu me absolves? Lucien aperta a mão de Jean com força: - Tu fizeste o que

pôde. Jean passa seu braço entorno dos ombros de Lucien e os aperta contra ele: -

Meu irmãozinho.”350

As palavras finais de Jean ao moribundo Lucien bem poderia servir, aos olhos

de Camus, para uma representação narrativa desta eterna realimentação do sonho da

absolvição futura pela história, característica do ideário revolucionário, que o argelino

chama de messianismo ou “nostalgia do paraíso terrestre”: “Daqui há alguns, os

deportados voltarão, se poderá nacionalizar o petróleo, os homens serão felizes.

Graças a mim. A mim, o tirano que eles agora maldizem. E tu, que tu fizeste?De que

serve falar da justiça se não se tenta realizá-la?”351 Não obstante não é de maneira

nenhuma com esperança que se encerra A Engrenagem: no contexto da narrativa, este

trecho, a bem da verdade, é de uma grande amargura.

Da parte dos homens, o que resta é a culpa, o desejo de absolvição e uma triste

resignação: (Jean diante da condenação à morte) “Não desejo nada antes de

349 Idem. p.216. 350 Idem.p.218. 351 Idem. p.217.

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morrer.”352 Da parte do projeto revolucionário, encontramos o fracasso, o impasse, e,

enfim, a vitória da engrenagem da morte sob o sonho do homem: “Os camponeses

queimaram os tratores e as colheitas. Eu sabia que seria necessário queimar as

cidades e prender milhares de pessoas para aniquilar sua revolta. Sempre a

engrenagem...”353 A condenação à morte e a repetição do ritual de respeito do novo

governo em relação aos seus algozes estrangeiros, evidencia, não o imperativo de um

engajamento sem reservas, mas que, ao contrário, todo aquele uso sanguinário da

liberdade, fora, afinal, para nada.

Este desfecho de Sartre reforça a complexificação da questão do engajamento

em O Muro, Mortos sem sepultura e A Engrenagem, que, de maneira crescente, se

mostram prenhes dos problemas da ambigüidade, da opacidade e da incompletude

histórica.

Como, deste modo, compreender, ainda, que a literatura de Sartre seja uma

simplificação teórica de um panfleto político? Diametralmente oposto ao processo de

simplificação é a complexidade inexprimível do instante histórico que a dimensão

narrativa procura abarcar, mantendo, ao mesmo tempo, bem determinado o horizonte

moral que pretende assinalar.

*

Malgrado a opacidade do instante historio no qual está mergulhado o

revolucionário - que o roteirista-filósofo procura delinear - é preciso abrir os olhos e

admitir, textualmente, que por trás desta opacidade do presente que encarna a

ambigüidade das ações na história, cintila vivamente no personagem principal a

convicção clara e distinta de um futuro; situação típica dos revolucionários, de

qualquer época. Seria impossível não notar a “clarividência”, o tom resignado,

messiânico, de Jean quando assume plenamente sua política sem escrúpulos, visto que

a considera um passo adiante em seu futuro pré-determinado: embora consciente que

atuando historicamente ele encena uma “tragédia”, até o desfecho sangrento o

comandante está resignado a abraçar, e porque não, amar esta história monstruosa que

devora. Dir-se-ia que ele faria tudo outra vez: “ No começo, havia decidido lutar, pela

violência. Mas esperava que dela me serviria só contra os inimigos. E, depois,

compreendi que estava numa engrenagem e que seria necessário por vezes, para

352 Idem.p.219. 353 Idem.p.210..

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salvar a causa, sacrificar mesmo inocentes(...)É necessário salvar a revolução...”354

Antes de ser morto pela implacável lógica revolucionária da qual foi precursor, Jean

diz: “Obrigado.”355

É por isso que a violência se revela a Jean como uma fatalidade histórica

lamentável (mas inescapável) no horizonte nebuloso da liberdade revolucionária que

precisa avançar em sua trilha, apesar deste percalço crônico: “A violência! Sempre a

violência! Salvar-lhes à força! Industrializar à força o campo. O que fiz, bom Deus!

para ser condenado à violência?O que posso fazer?”356

A bem da verdade, em Jean se exprimem as amargas convicções do “realismo

profundo”357 do próprio Sartre, que embora problematize, como vimos, de maneira

multipolar - através da fenomenologia, da psicanálise existencial e da literatura - os

dilemas da contingência e da incompletude dos destinos, da complexidade enigmática

dos projetos, da inapreensibilidade do instante, da opacidade do presente, se pauta

politicamente por uma concepção totalizante da história, imaginando um futuro em

larga medida pré-moldado por um horizonte no qual predomina a idéia de evolução

pela revolução. Daí a situação clara e distinta do escritor engajado em 1947,

malgrado a opacidade profundamente problemática do presente, na ótica do filósofo

da liberdade: “...é preciso historializar a boa vontade do leitor, ou seja provocar, se

possível, pela organização formal da nossa obra, a sua intenção de tratar o

homem(...) Assim o levaremos pela mão até fazê-los perceber que o que ele de fato

quer é abolir a exploração do homem pelo homem,e que a Cidade dos Fins, que ele

baseou por completo na intuição estética, não passa de um ideal de que só nos

aproximamos ao cabo de uma longa evolução histórica. Em outros termos, devemos

transformar a sua boa vontade formal numa vontade concreta e material de mudar

este mundo, através de determinados meios, a fim de contribuir para o advento

futuro da sociedade concreta dos fins(...)É preciso, portanto, ensinar

simultaneamente a uns que o reino dos fins não pode realizar-se sem a Revolução, e

aos outros que a Revolução só é concebível se ela preparar o reino dos fins.”358

É neste sentido que Merleau-Ponty, em sua carta de ruptura, se insurge contra

as temerárias vicissitudes da postura político-filosófica de seu velho camarada 354 SARTRE, J-P. L´Engrenage. p. 199-202. “...Era necessário não tocar nos campos de petróleo para salvar a revolução...”(p.205) 355 SARTRE, J-P. L´Engrenage. p. 209. 356 SARTRE, J-P. L´Engrenage. p. 208. 357 ARONSON, R. Camus & Sartre – Amitié et Combat.p.210. 358 SARTRE, J-P. O que é literatura? –Situação do escritor em 1947.pp.202-203.

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normaliano, afinal, no ensejo de transformar o ordem da injustiça vigente, este

apressadamente infunde e legitima a cólera revolucionária - fazendo brotar da

filosofia eivados frutos - traindo assim a complexidade do presente e a “paciência do

conceito”, preferindo os sinais premonitório-filosóficos de um “reino dos fins”

preconizados pela álgebra da história: “Quando se está muito seguro do futuro, não se

está seguro do presente [...] Tens uma facilidade para construir e habitar o porvir

que é toda tua...”359

Comentando a realpolitik sartreana, uma célebre intérprete de nosso tempo

diz: “Sob a aparente modéstia daquele que, dissera Sartre, sabe que a condição

humana é a da escolha na ambigüidade, às cegas, na ignorância do todo, esconde-se

a presunção de ser Espírito Absoluto.”360

359 Carta de Merleau-Ponty a Sartre in CHAUI, M. Filosofia e Engajamento: Em torno das cartas da ruptura entre Merleau-Ponty e Sartre. 360 CHAUI, M. Filosofia e Engajamento: Em torno das cartas da ruptura entre Merleau-Ponty e Sartre. Era nossa intenção inicial notar, ainda nesta tese, a evolução da postura política de Sartre até 1952, momento da ruptura com Camus. Notaríamos que, com o acirramento dos embates revolucionários, Sartre põe em marcha sua “ética da situação”, espécie de “moral provisória” de seu ultra-realismo político, exprimindo-se de maneira resoluta, ainda que criticamente, sobre a inevitabilidade da violência na ação revolucionária. A trilha nos levaria à análise de Os Comunistas e a paz e, é claro, à interpretação detida da peça O diabo e o bom deus, na qual Sartre encarna em Goetz o amadurecimento filosófico que conduz, como acertadamente comenta Aronson, “da revolta à revolução.”(ARONSON, R. Camus & Sartre – Amitié et Combat.p.208.) Não obstante, o trabalho de Pós-Doutorado nos permitirá também aprimorar o conjunto da análise apenas inicial que efetuamos de Sartre até aqui, nos conduzindo, para além deste período determinado, ao esforço de resposta do filósofo da liberdade, em A Crítica da Razão Dialética e em O Idiota da Família, a Merleau-Ponty e às exigências de seu tempo, no que tange ao problema das mediações entre teoria e praxis: “Sartre dedica-se à compreensão da necessidade das mediações que constituem as relações sociais e o tecido histórico e sem as quais a articulação entre teoria e prática não pode ser formulada, nem a alienação pode ser compreendida e, finalmente, sem a qual uma filosofia da liberdade torna-se impossível ou miragem idealista. Donde a importância, nas Questões de Método, do estudo das chamadas “disciplinas auxiliares” e da idéia de um método pregressivo-regressivo que dê substrato histórico à noção de projeto.”(CHAUI, M. Filosofia e Engajamento: Em torno das cartas da ruptura entre Merleau-Ponty e Sartre)

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II Parte – Contingência e engajamento em Camus:

1)Vida e Contingência em O Mito de Sísifo

Se notamos em Sartre o “desvelo da contingência” como a atitude filosófica

“na origem” do percurso que encaminha em direção ao engajamento, veremos que em

Camus a contingência revela-se também o centro irradiador de suas preocupações

iniciais e um ponto de partida filosófico. Entretanto, se em Sartre será a partir da

análise fenomenológica que se dará o equacionamento da questão da contingência,

seja no plano teórico, seja no plano da exploração literária, isto é, o meio pelo qual

ver-se-á a contingência revelada como a condição metafísica essencial do homem e do

cosmo, em Camus, será o exame das práticas humanas face à contingência o foco

principal dos questionamentos filosóficos. Assim, se Sartre privilegia, de início, o

exame dos fundamentos da contingência exprimindo em Roquentin a descoberta desta

“condenação”361, Camus, interrogando-se pouco acerca dos fundamentos “teóricos”

desta “condição”, se concentrará sobretudo nas condutas humanas face ao “absurdo”

considerado no limite, como a mais dilacerante das “paixões”humanas.

O deslocamento da problemática da contingência nos dois autores, portanto,

é significativa. O desvelo da contingência de Sartre possui, afinal, uma pretensão

fundamentalmente heurística, em Camus, “o sentimento do absurdo” é uma

“evidência sensível ao coração”- que, como em Pascal, não necessita, ou, quem sabe,

não possa ser sondado362 integralmente no campo cognitivo.

A preocupação que Camus elege no Mito de Sísifo como tema fundamental

da investigação filosófica será, a bem da verdade, um indicativo da guinada que o

autor pretende estabelecer na orientação filosófica ela mesma.

Em contraponto ao foco da filosofia moderna e de seus desdobramentos

contemporâneos diretos, a saber, os edifícios intelectuais da fenomenologia e das

filosofias da história, que se ocupam, no limite, no estabelecimento de “verdades”

através de seus sistemas filosóficos, em Camus, encontramos, de início, o contraponto

do Mito. Em sua origem grega a função primordial do Mito, em seu poder de

materializar idéias em imagens, é, sobretudo, pedagógica. Em Camus, o objetivo da

filosofia está entre a pedagogia e a medicina: a virtude da filosofia é clínica. Camus

conscientemente resgata um ideário pré-socrático ao realinhar os ideais da filosofia e 361 A contingência e a liberdade são “condenações” fazem parte da “paixão” humana. 362 Veremos neste sentido no Mito, a crítica ao “salto no intelectualismo” de Husserl.

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da medicina: em O Mito de Sísifo tratar-se-á de um esforço de diagnosticar o mal-

estar da condição humana – e de elencar atitudes face à absurdidade.

Esta dimensão “clínica” em contraposição à concepção heurística da filosofia

está bem expressa nas premissas de O Mito de Sísifo: “É profundamente indiferente

saber qual dos dois, a Terra, ou o Sol, gira em torno do outro, isto é profundamente

indiferente. Em contrapartida vejo que muitas pessoas morrem porque consideram

que vida não vale a pena ser vivida(...)Julgo pois que o sentido da vida é a mais

premente das questões”363

O Mythe de Sisyphe contrapõe às elaborações filosóficas que visam estabelecer

concepções de mundo, o imperativo primordial do zelo para com a vida concreta:

“Não existe senão um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar

se a vida vale ou não a pena ser vivida, é responder a questão fundamental da

filosofia(...)Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal

outra, respondo que é pelas ações que ela engaja. ”364

A situação do suicida é de limiar, e se inscreve a um só tempo numa dimensão

cotidiana e metafísica. Ela inscreve o problema metafísico do sentido da vida em seu

invólucro mais contundente: a do homem singular que, no tranway, no cinema, ou

frente à desilusão da amizade, “uma tarde”, decide não prosseguir. A figura deste

“suicida” será esboçada aos poucos, pincelada, procurando, a cada página, realizar o

ideal que o próprio Camus enuncia em suas premissas, a procura de um eqüilíbrio

entre “o lirismo e a claridade”, “estas são evidências sensíveis aos coração mas que é

necessário aprofundar para lhes tornar claras ao espírito.”365

“A evidência sensível ao coração” que serve de premissa axiológica para esta

investigação filosófica revolucionária de Camus é o sentimento do absurdo: seu

objetivo é, à cabo, inibir a iniciativa do suicídio através do estabelecimento de algo

bem mais valioso para o homem do que “razões” de viver: estabelecendo um leque de

práticas de viver, apesar do absurdo.

363CAMUS, A. Le Mythe du Sisyphe. Doravante MS. p.99. Talvez não seja excessivo notar que num fragmento dos “Pensées” Pascal exprime também a premência do auto-conhecimento humano frente à investigação da natureza:(L.218-Br.164) “Commencement. Cachot. Je trouve bon qu’on n’approfondisse pas l’opinion de Copernic. Mais ceci : Il importe a toute la vie de savoir si l’âme est mortelle ou immortelle. » 364 MS, 99. “O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem em seguida. São jogos; é preciso primeiro responder.” 365 MS, 99.

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Seria portanto partilhar da indiferença da crítica especializada não notar nas

premissas de O Mito de Sísifo um radical contraponto ao projeto “moderno”366 de

filosofia (gestado no elã do controle e saber totais) que é o oposto da constituição de

uma filosofia preventiva que pretende compreender o sentimento mais auto-destrutivo

presente nos homens comuns – e remediá-lo - tendo em vista buscar alternativas para

seus impasses mais profundos: “num assunto a um só tempo humilde e tão carregado

de patético, a dialética sábia e clássica deve, pois, ceder lugar, penso, a uma atitude

de espíritro mais modesta que proceda ao mesmo tempo com bom senso e

simpatia.”367

Embora o termo “sympathie” possa passar despercebido, este termo mostrará

oportunamente sua importância pois se refere a um leitmotiv camusiano: o difícil

engajamento filosófico de “sofrer com o outro”, isto é, no limite, colocar-se no lugar

alheio, na especificidade de sua situação singular368. Por ora nos contenta dizer que

em contraponto ao formalismo clássico totalizante, Camus contrapõe o método da

modéstia e da “symphatie”, isto é, o método “interrogante” do reconhecimento afetivo

da alteridade: “Este jogo mortal que conduz da lucidez face à existencia à evasão fora

da luz, é necessário lhe seguir e lhe compreender.”369

É uma verdadeira propedêutica “da evidencia do coração” que será

desenvolvida neste début admirável de Camus. É preciso compreender, por dentro, o

“verme que se encontra no coração do homem.”370

É importante notar que a compreensão do “pensamento individual” e da

salvaguarda da vida concreta e singular está, portanto, já na origem de seu projeto

filosófico. Os filósofos costumam vangloriar o suicídio diante de uma “mesa bem

guarnecida”, como diz Camus, aludindo ao comportamento de Shoppenhauer. Camus

visa o contrário da idealização fria ou da estetização do problema do suicídio, ele

almeja compreender “a encarnação” da questão do sentido da vida nas condutas

singulares.

Neste sentido é significativa a constituição do “retrato” do “suicida” picelado

em rápidos croquis: o “agente imobiliário minado pela morte da filha”, ou o “amigo

magoado”, o passageiro do “tranway”, expressam que na origem e no destino do

366 Incluindo aí a filosofia contemporânea de sistema. 367 MS, 100. 368 MS,100 369 MS, 100. 370 MS, 100.

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projeto filosófico está o homem ordinário em sua inquietação latente: o método

filosófico, ele mesmo, consiste nesta “participação” no outro, que significa, no limite,

a busca de uma compreensão “afetiva” do outro, para além do entendimento abstrato.

Talvez não seja excessivo sublinhar que estas re-orientações do projeto da

filosofia por Camus, tematica e metodicamente, são, em si mesmas, extremamente

significativas filosoficamente: “o método definido aqui confessa o sentimento que

todo verdadeiro conhecimento é impossível. Só podem ser recenceadas as aparências

e se fazer sentir o ambiente.”371

Esta dimensão interrogativa imprimida à investigação filosófica é uma

oposição clara às idéias vigentes em sua época. Trata-se, pois, de um contraponto

direto às filosofias da história que, incorporando o ideal do determinismo totalizante

moderno em suas construções reformistas, sacrifica o homem concreto em virtude de

verdades pré-concebidas: “Vejo outros que paradoxalmente, deixam-se matar pelas

idéias ou ilusões que lhe dão para viver(o que denomina razão de viver é ao mesmo

tempo uma excelente razão de morrer).”372

No ambiente absurdo esboçado por Camus encontramos o espanto do homem

comum diante da indiferença generalizada, bem partilhada entre homens e natureza. É

o homem comum, somos nós, que sofremos um desvelo repentino de lucidez frente ao

automatismo cotidiano e a quem subitamente se revela o mal-estar de viver:

“Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro

horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no

mesmo ritmo(...)Um belo dia, surge o «porquê»...”373

A engrenagem da vida, que parece inexorável, “secreta” então, o

“inumano.”374

A sensação da fragilidade de nosso exílio frente ao universo acontece

subitamente: desbota repentinamente o verniz de sentido com o qual o automatismo

dos hábitos revestia o cotidiano. Aí se desvela esta sensação imediata de nossa

contingência frente ao tempo e à mecânica do cotidiano que nos ultrapassa.

Uma contrariedade original entre o homem e o mundo é experimentada -

clivagem, divórcio e antagonismo - que revela a limitação original do homem frente a

371 MS, 106. 372 MS, 99. 373 MS, 106-7. 374 MS, 108.

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um mundo de indiferença: “este divórcio entre o homem e seu cenário, é

propriamente o sentimento do absurdo.”375

A magnitude e a permanência indiferente da natureza contradizem o homem

na pequenez de seu desejo de prevalecer.

A natureza mascara sua relação de contrariedade original com o homem. Se a

felicidade em Camus está seguramente associada à unificação com as forças da

natureza - nos banhos de mar e no culto à sensorialidade mediterrânea talvez não seja

excessivo antecipar que, por outro lado, a natureza é, paradoxalmente, o cenário que

enclausura seus personagens, lembrando-lhes de sua fugacidade e de seus limites.

Veremos detidamente que, por ex., em O Estrangeiro ou em A Peste, o cenário, a

bem da verdade, mostra-se o personagem principal, pois, não somente interfere nos

destinos, ele os engole e os submete a sua ordem indiferente. A força colossal da

natureza, os “muros absurdos”, em contradição com a limitação do destino humano e

sua aspiração à felicidade e à permanência é um dos substratos do sentimento de

absurdo segundo Le Mythe de Sisyphe. O sentimento do absurdo é sobretudo esta

« revolta da carne » diante da própria fugacidade, « perceber que o mundo é

«espesso», entrever a que ponto uma pedra nos é estranha(...)com que intensidade a

natureza, uma paisagem, pode nos negar. No fundo de toda beleza jaz qualquer coisa

de inumano.” »376

À inutilidade da vida humana, sob o signo da morte e da temporalidade

indiferente da natureza, acrescenta-se a impossibilidade de pensar o mundo em sua

totalidade: supremo sentimento de melancolia diante do universo irredutível ao

aprisionamento aos conceitos: “Este mundo ele mesmo não é razoável, é tudo que

podemos dizer. Mas o que é absurdo é a confrontação deste irracional e deste desejo

premente de claridade, cujo apelo ressoa no mais profundo do homem. » 377 É o

próprio pensamento que descobre em si contradição desvelando a “não

inteligibilidade do mundo(...)em psicologia como em lógica, há verdades, mas não há

verdade.”378

375 MS, 101. 376 MS, 107. 377 MS, 113 378 Idem, MS,111.(L.406-Br.395) “Instinto, razão. Temos uma impotência de provar, invencível a todo dogmatismo. Temos uma idéia da verdade invencível a todo pirronismo.” Talvez não seja coerente, após comentarmos rapidamente sobre a importância da premissa camusiana da “evidência do coração” na constituição do método da “simpatia”(que busca o reconhecimento afetivo do outro) nos omitir acerca do notaremos mais tarde ser uma proximidade com Pascal. O fato não passa despercebido à Sartre que o utiliza contra o iniciante Camus: “A morte, o pluralismo irredutível da verdade e dos

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Há na apreciação da razão por Camus dois aspectos distintos mas

convergentes no fortalecimento do sentimento do absurdo. Primeiramente, uma

conscientização acerca dos limite da inteligência frente ao cosmo: “esse mundo se

fissura e desmorona: uma infinidade de cintilações reverberantes se oferece ao

conhecimento. É preciso desistir de reconstruir sua superfície familiar e tranqüila

que nos daria paz no coração.”379 Depois, a descoberta de um desejo de unidade e de

absoluto presente na origem de toda especulação humana que não é possível

apaziguar através da ciência: “esta nostalgia de unidade, este apetite de absoluto,

ilustra o movimento essencial do drama humano..”380 Camus mais adiante constata : “

o absurdo é a razão lúcida que constata seus limites.”381

Esta constatação se reflete também no que o homem conhece de sua

interioridade, visto que a opacidade que ele encontra diante da grande magnitude que

o transcende é proporcional às trevas de seu íntimo: “Efetivamente, sobre o quê e

sobre quem posso dizer: «Eu conheço isto!»?Este coração que há em mim, posso

senti-lo e julgo que ele existe. O mundo posso tocá-lo e também julgo que ele existe.

Aí se detém toda a minha ciência, o resto é construção. Pois quando tento captar este

eu no qual me asseguro, quando tento defini-lo ou resumi-lo, ele é apenas água que

escorre entre meus dedos(...)Este coração que é meu permanecerá indefinível para

sempre(...) Para sempre serei estranho a mim mesmo.”382 Neste sentido seria desleal

não notar que a argumentação de O Mito de Sísifo neste sentido se aproxima bastante

da argumentação tecida no célebre fragmento “desproporção do homem” de Pascal,

que desmente, do grande ao pequeno infinito à pretensão do racionalismo cartesiano

de conhecer e controlar totalmente homem e natureza: “não nos falta menos

capacidade de chegar ao nada do que para chegar ao todo(...)eis o nosso estado

verdadeiro, que nos torna capazes de saber com segurança e de ignorar totalmente.”

seres, a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os pólos do absurdo! Na verdade, estes temas não são muito novos, e Camus não nos apresenta como tal. Foram enumerados, desde o século XVII, por uma espécie de razão seca, curta e contemplativa, que é tipicamente francesa: constituíram lugares-comuns no pessimismo clássico. Não é Pascal que insiste na <<infelicidade natural da nossa condição débil e mortal e tão miserável que nada nos pode consolar quando pensamos nela de perto>>? Não é ele que põe a razão no seu lugar? E não aprovaria sem reserva essa frase de Camus:<<O mundo não é (inteiramente)racional nem tão irracional>>? Não nos demonstra que o <<costume>> e a <<diversão>> ocultam ao homem <<o seu nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua impotência, o seu vazio>>?Pelo estilo gelado do Mito de Sísifo, pelo assunto dos seus ensaios, Camus coloca-se na grande tradição desses moralistas franceses a que Andler chama com razão os precursores de Nietzsche...”(SARTRE, J-P. Situações I, 88,89) 379 MS, p.111. 380 MS, 110. 381 MS,p.134 382 MS, 111.

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383Camus retoma o contraponto do racionalismo moderno nos embates de seu tempo:

“esta razão universal, prática ou moral, este determinismo, estas categorias que

explicam tudo, tem do que fazer rir o homem honesto.”384

Assim, a vida cotidiana e a inteligência humana são igualmente perpassados pela

experiência do absurdo segundo Camus.

É a razão ela mesma que impulsiona a revelação do absurdo através da

decepção intermitente de seu elã de clareza: Desvelando a infinidade das duas

magnitudes, do grande e do pequeno infinito, a ciência humana confirma o absurdo ao

invés de apaziguá-lo; “...toda a ciência desta Terra não me dirá nada que me

assegure que este mundo me pertence. Vocês o descrevem e me ensinam a classificá-

lo. Vocês enumeram suas leis e, na minha sede de saber, aceito que elas são

verdadeiras. Vocês desmontam seu mecanismo e minha esperança aumenta. Por fim,

vocês me ensinam que este universo prodigioso e multicolor se reduz ao átomo e que

o próprio átomo se reduz ao elétron. Tudo isto é bom e espero que continuem. . Mas

me falam de um sistema planetário no qual os elétrons gravitam ao redor de um

núcleo. Explicam-me este mundo com uma imagem. Então percebo que chegaram a

poesia: nunca poderei conhecer. Assim, a ciência que deveria me ensinar tudo acaba

em hipótese, a lucidez sombria culmina em metáfora, a incerteza se resolve em obra

de arte. Que necessidade havia de tanto esforço?(...)“as linhas doces dessas colinas e

a mão da tarde sobre este coração agitado me ensina bem mais...”385

Na linguagem de Camus, a “singular trindade”386 - o homem, o mundo e o

antagonismo entre o desejo de verdade e a obscuridade do cosmo –formam “o três

personagens do drama”387do absurdo. É o elã humano para a felicidade, para a

unidade e para permanência que se debate contra a finitude indiferente de um cosmo

irracional: “o coração procura em vão o elo que lhe falta.”388 Nem no homem, nem

no mundo se encontra exatamente o absurdo, é precisamente na coexistência destas

magnitudes desproporcionais que se dá a ebulição do sentido. Portanto, no convívio,

na conivência e no confronto com a natureza se dá a experiência autêntica do absurdo,

que no mais das vezes é ocultada pelas engrenagens do cotidiano: Despertar, tranway,

segunda, terça... sexta - Camus detecta que uma das muitas perversidades das 383 PASCAL, B. Pensées. (L.199-Br.72) 384 MS, 113. 385 MS, 112. 386 MS, 120. 387 MS, 118. 388 MS, 106.

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escolhas da modernidade está nesta insensibilização progressiva devida a

mecanização do homem que finda por ocultar-lhe dele mesmo. A civilização técnica

vela as verdadeiras exigências da Terra: isto é, a exigência dos limites389.

O absurdo une homem e mundo numa realidade que resta invisível, alienada,

no cotidiano fatalista e mecânico do homem “civilizado”390.

Mas a “esquiva” também tem seu limite, a condição humana pode até mesmo

tardar em se revelar, mas não logra em suas determinações inexoráveis: o homem

refém da contingência, pertence ao tempo “e reconhece seu pior inimigo neste horror

que o invade.”391

O dilaceramento original então, mais cedo ou mais tarde, reaparece.

Quando o desejo de unidade e de clareza infesta a vida, quando as

determinações da natureza transtornam o homem em seu refúgio imaginário no

cotidiano desmanchando suas pretensões de controle do destino, suas ilusões de

permanência ou de felicidade: quando a máscara da completude, enfim, cai – este

Carlitos pode, finalmente, despertar do “ópio” dos dias392.

A constatação do absurdo para Camus é, afinal, preliminar. Podemos

qualificá-lo, como autoriza O Homem Revoltado, como absurdo metódico393, visto

que a tomada de consciência diante da absurdidade é a senda para o posicionamento

humano perante sua condição. Camus adverte: “o que me interessa não são tanto as

descobertas absurdas. São suas conseqüências. Se estamos certos destes fatos, o que

será preciso concluir(...)?Será preciso morrer voluntariamente, ou pode-se ter

esperança apesar de tudo?”394

Uma vez expressa a inexorabilidade do absurdo, O Mito de Sísifo proporá

“respostas” a ele, elencando diferentes modos de viver a paixão humana: “a partir do

momento em que é reconhecido, o absurdo é uma paixão, a mais dilacerante de

389 Veremos posteriormente a importância fundamental da experimentação da natureza em Camus. O convívio com a natureza permite uma vivência tácita dos limites: esta conivência revela o homem a si mesmo na medida em que o homem se reconhece na natureza como um ser que está para além do mecanismo do cotidiano, que o desumaniza: no convívio com a natureza o homem se reconhece ser vivo, para além do universo do trabalho, dos embates cotidianos, enfim, da história: a desmedida da modernidade pode em grande parte ser explicada pela perda do referencial da Terra.... “as linhas doces dessas colinas e a mão da tarde sobre este coração agitado me ensina bem mais...” 390 MS, 108.“Esse mal-estar diante da desumanidade do próprio homem, essa incalculável queda diante daquilo que somos, essa «náusea» como diz um autor de nossos dias, é também o absurdo.” 391 MS, 107. “O amanhã, ele ansiava o amanhã, quando tudo em si deveria rejeitá-lo.” 392 Veremos este processo de autenticidade crescente que brota do sol, da vida concreta - e não da elaboração fria - encarnado por Meursault em O Estrangeiro. 393 Camus se referirá a Descartes em HR. 394 MS, 109.

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todas. Mas a questão é saber se podemos viver com estas paixões, se podemos aceitar

sua lei profunda, que é queimar o coração que elas ao mesmo tempo exaltam.”395

Três atitudes possíveis diante do absurdo da existência são concebidas por

Camus em O Mito de Sísifo: o suicídio físico, o suicídio filosófico e a assunção do

absurdo.

A consideração da primeira hipótese é, como vimos, o elemento propulsor da

investigação filosófica. O suicídio é considerado “o único problema filosófico

verdadeiramente sério”, “saber se a vida vale ou não a pena ser vivida”. A hipótese do

suicídio, parece, no limite, aos olhos de Camus, a conseqüência lógica da

experimentação do absurdo.

Mas o pensamento lógico é o pensamento “injusto” par excellance : segundo

Camus é a “lógica absurda” que deve comandar a vida.

O absurdo do mundo nega ao homem as razões profundas de viver? O homem

lúcido responde com o apego redobrado à vida, apesar da absurdidade.

Camus recusa em muitos momentos em O Mito de Sísifo, e em outros lugares

de sua obra, o suicídio como resposta digna perante o absurdo. Ele bem pode ser

considerado legítimo na medida em que esta opção pela morte se consolida numa

vivência limite da condição de absurdidade. Todavia, a chave para a dignidade

humana segundo Camus está nesta confrontação mesma com a absurdidade da vida.

Certa nobreza do homem é recuperada justamente por intermédio da revolta contra

esta ordem injusta a qual se submete docilmente o suicida escolhendo a própria

aniquilação.

Viver é o desafio supremo do homem face à realidade que o contradiz.

As caracterizações que Camus faz do suicídio dão uma medida desta

abordagem. Para Camus, o suicídio é “fuga” ou “devaneio”(délivrance)396, “insulto a

existência”397, “evasão” 398, “salto”399, “aceitação”400, “desconhecimento”401,

“negação de si mesmo” 402, “negra exaltação.”403 O suicídio é a negação de um dos

pólos do absurdo: “o suicídio significaria o fim desta confrontação e o raciocínio

395 MS, 113. 396 HR, 416. 397 MS, 103. 398 MS, 103. 399 MS, 138. 400 MS, 138. 401 MS, 139. 402 HR, 414. 403 HR, 417.

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absurdo considera que não poderia admiti-lo a não ser negando suas próprias

premissas(o homem). Uma tal conclusão seria fuga ou devaneio”404

A liberdade digna segundo Camus afronta à adversidade do absurdo, é deste

confronto que ela alça seu vôo de grandeza. É, portanto, na afirmação da vida que se

encontra o primeiro passo em direção à revolta que se mostra antes de tudo, revolta

contra a condição de fragilidade e finitude humana.

Há, pois, uma ponte entre o absurdo e a revolta intermediada pela questão do

suicídio. Se a lógica absurda responde ao absurdo com a vida, como veremos

oportunamente, responderá à legitimação do assassinato pelas ideologias, negando-se

a matar: a mediação entre estes dois horizontes, do absurdo, e da revolta, se dá pelo

respeito à vida singular do homem concreto: “Suicídio e assassinato são duas faces de

uma mesma ordem, a de uma inteligência infeliz que prefere, ao sofrimento de uma

condição limitada, à negra exaltação onde terra e céu se aniquilam.”405 Suicídio,

assassinato e, notemos, a destruição da natureza, partilham da mesma nefasta

característica que engendra a desmedida nas escolhas da modernidade: “a indiferença

para com a vida que é a marca do niilismo.406” Interessante notar sob o foco da

questão do suicídio, o elo que Camus em O Mito começa a engendrar entre os homens

eles mesmos, e destes, com a natureza. Os denominadores comuns entre estes

elementos diversos e mesmo antagônicos são a fragilidade e a contingência,

características, antes de tudo, cósmicas.

Aliás, se pensarmos em termos de nossa atualidade, de fato, a aniquilação da

natureza equivale ao suicídio coletivo.

Para Camus, nenhum dos termos da trindade do absurdo pode ser sacrificado:

nem o confronto entre desejo de clareza e a obscuridade do mundo, nem o homem

singular, nem a natureza ela mesma. O enfrentamento solidário desta condição

comum de contingência radical, de homem e mundo, caracterizará, como veremos

posteriormente, o engajamento revoltado.

O suicídio filosófico é outra modalidade de enfrentamento do absurdo

descartado por Camus.

Filósofos, “parentes por nostalgia” partilham da metodologia de realçar os

cumes do desespero para realizar melhor o “salto na esperança”: o supremo engodo

404 C II, 109. 405 HR, 417. 406 HR, 416.

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“tricherie”, ou suprema “esquiva” é, segundo Camus, é o apaziguamento conformista

em “Deus”, ou no “eterno”, em suas variados disfarces.

As menções a Jaspers, Kierkegaard e Chestov em O Mito de Sísifo não

possuem grande densidade e não almejam uma re-construção de suas construções

filosóficas particulares, elas pretendem, entretanto, compor uma imagem fidedigna de

uma linha de pensamento de inspiração cristã que, de maneira mais ou menos velada,

opta pelo subterfúgio comum da esperança transmundana “é possível, e suficiente em

todo caso, de fazer sentir o ambiente(climat) que lhes é comum”407 Este filósofos

traem tanto a exigência de clareza que está no coração do homem, quanto o elã à

dignidade que conduz o homem lúcido a se contrapor à absurdidade. Eles partem “da

contradição, da antinomia, da angústia ou da impotência(...)para eles também, a bem

da verdade, o que importa é sobretudo as conclusões que se podem tirar destas

descobertas”408, mas traem a convicção do absurdo. Camus pretende precaver

seriamente contra esta crítica inautêntica tanto do sentido da vida, quanto das

categorias da modernidade, que faz “a razão estrebuchar”(trébucher) para melhor

calcar suas esperanças transcendentes. Esta tradição do “pensamento humilhado” se

mostra a arqui-rival do horizonte proposto por Camus em O Mito de Sísifo. Veremos

oportunamente que as figuras oportunistas dos padres, em O Estrangeiro ou em A

Peste, figuram de maneira até mesmo caricata, esta absoluta divergência de Camus

com a metafísica cristã.

Heidegger não é tributado à metafísica cristã mas é o primeiro a ser criticado

por Camus. Ele é descrito como gélido, formalista e derrotista. Capaz de mergulhar

nas profundezas abissais da “existência humana” humilhada, aonde encontra a

preocupação e a angústia como referências primordiais do sujeito, “este professor de

filosofia escreve sem tremer e na linguagem mais abstrata do mundo que «o caráter

finito e limitado da existência humana é mais primordial que o homem ele mesmo.»”

Além do desprezo pelo homem singular, segundo Camus a postura que Heidegger

adquire diante do absurdo é também questionável, considerando que, segundo o

alemão “o mundo não pode oferecer nada ao homem angustiado.”409 Entretanto o

407 MS, 115. 408 MS, 114. 409 MS, 115.

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Heidegger de Camus possui o mérito “ de se manter no mundo absurdo, acusando seu

caráter perecível.”410

O Jaspers de Camus por sua vez incorpora mais fielmente o contraste

almejado por Camus. Demonstrando a impossibilidade de conhecer e de demonstrar,

Jaspers reduz à nada os diversos sistemas filosóficos - e ao desespero - tido como

única atitude legítima frente ao absurdo para, posteriormente, “re-encontrar o fio de

Ariadne que conduz aos segredos divinos.”411 É uma cilada do pensamento

humilhado, que, segundo Camus está presente ali - das profundezas abissais de sua

humilhação, o pensamento místico re-encontra sua regeneração. Como acontecerá

posteriormente em Chestov, para Camus, Jaspers “ se redireciona a Deus para obter

o impossível.”412

A caracterização de Chestov é um degrau menos caricata413 do que dos dois

primeiros filósofos, mas não chega a ser elucidativa pois a crítica continua com sérias

dificuldades de encontrar em obras específicas a origem das passagens imputadas aos

pensadores ditos “existencialistas”414. Segundo Camus, Chestov compartilha da

mesma “evasão”415, infiel às raízes absurdas: descobrindo a absurdidade fundamental

de toda existência ele, à cabo de suas análises, não desvela o absurdo, mas, por

contraste, demonstra a necessidade de Deus: “Ele não diz: Eis, o absurdo. Mas, eis

Deus.”416 Por mais que Chestov impute o mal à responsabilidade divina, esboçando a

figura de um Deus odioso, um Padastro malévolo, ele mantêm uma esperança de um

sentido que ultrapasse as determinações da terra.

Figura na leitura detida de O Mito de Sísifo que Camus esboça estes croquis

do climat absurdo com a intenção primordial de se distanciar destes filósofos “do

salto” na esperança, de modo que, mais interessante do que abordar passo a passo

estes estranhos perfis é notar a enumeração de características que os distinguem, na

410 MS, 115. 411 MS, 115. 412 MS, 122-3. 413 Para Camus a posição de Jasper é ela mesma caricata em relação ao absurdo...(MS, 122.) 414 Notar os comentários sobre O Mito de Sísifo presente na edição das Oeuvres Complètes que se refere a dificuldade de sondar as “fontes” de Camus. Fato que não passa despercebido pela pluma feroz de Sartre. Sendo assim seria bastante temerário, e até mesmo inútil dado o intuito primordial de estabelecer uma análise do pensamento de Camus procurar confrontar suas análises - sua leitura da filosofia - com uma suposta concepção “verdadeira” destes filósofos elencados. Trata-se da leitura de Camus, e a compreenderemos como ele quis ser compreendido –à meia-luz. Esse é o climat camusiano: são os Ensaios de Montaigne, evidentemente, revisitados. Teremos que nos habituar a ele para compreender este procedimento “alusivo” tão disseminado em O Homem Revoltado. 415 MS, 122. 416 MS, 123.

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visão de Camus, do pensamento do absurdo: é a demonstração por contraste das teses

absurdas o motivo profundo destes retratos: “Ora se admitimos que o absurdo é o

contrário da esperança, vemos que o pensamento de Chestov pressupõe o absurdo,

mas não o demonstra senão com o propósito de lhe dissipar(...)A partir do instante no

qual essa noção se transforma em trampolim para a eternidade, ela não está mais

ligada à lucidez humana. ”417 Outra amostra emblemática desta propedêutica: “Para

Chestov, a razão é vã, mas há alguma coisa além da razão. Para o espírito absurdo,

a razão é vã e não há nada além da razão.”418

Mas o modelo paradigmático - que revela419 Camus - deste abominável “salto

religioso” a que ele veementemente se contrapõe é o dinamarquês Kierkegaard: “É o

cristianismo aterrorizante de sua infância que ressurgem sob a figura mais dura.”420

Kierkegaard parte também da irracionalidade do mundo assim como Jaspers e

Chestov, mas é nele que as antinomias e os paradoxos adquirem critérios solidamente

religiosos. Ele sublimaria a revolta na adesão “demente” à irracionalidade. Assim,

sacrificando o desejo de clareza421, Kierkegaard comprometeria um dos pólos que

sustentam o absurdo, a saber, o confronto entre o desejo de unidade e o mundo

irracional. Segundo Camus, o irracional ganha em Kierkegaard, a mesma face

apaziguadora de Deus: “ele dá a angústia moderna os meios de se acalmar nos

familiares cenários do eterno422.” A conseqüência é a supressão do horizonte ético

da revolta, diluída numa adesão submissa à injustiça e a irracionalidade: o

conformismo é a conseqüência lógica desta ruptura com o paradoxo inelutável da

condiçã

o humana.

O homem absurdo, ao contrário, cultiva este inconformismo em relação à

irracionalidade injusta da existência, a que ele chama revolta: “trata-se de viver nesse

estado do absurdo.”423 Este conflito originário contra um universo indiferente deve

ser admitido em toda sua radicalidade pois está nesta insubmissão a dignidade original

417 MS, 124. 418 MS, 124. 419 É extremamente interessante imaginar por que Pascal foi poupado destas análises sobre o salto da fé, visto que segundo alguns dos pesquisadores mais preocupados com o tema, os Pensées de Pascal está extremamente presente nas entrelinhas do discurso de Camus. Notar vídeo da discussão na ENS(Paris), 29 e 30 de março de 2007(www.ens.fr – em breve será disponível na diffusion des savoirs.) Quem sabe Camus conceda uma coerência à Pascal, que nega aos outros “existencialistas”?. A articulação do “coração” enquanto instância “média” entre o irracionalismo e a certeza dogmática é, por exemplo, comum aos dois filósofos... 420 MELANÇON, M. Albert Camus, analyse de sa pensée. EUF, 1976. 421 Camus diz: “é o terceiro sacrifício exigido por Ignácio de Loyola”(MS, 127.) 422 MS, 134. 423 MS, 129.

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do homem: “Entre o irracional do mundo e a nostalgia revoltada do absurdo,

Kierkegaard não mantém o equilíbrio. Ele não respeita a relação que faz

propriamente falando o sentimento do absurdo. Certo de não poder escapar ao

irracional, ele pode ao menos se salvar desta nostalgia desesperada que lhe parece

estéril e sem legado(...)Se ele substitui seu grito de revolta por uma adesão

demente(forcenée), ei-lo conduzido a ignorar o absurdo que iluminou até aqui, e a

divinizar a única certeza que ele possui doravante, o irracional.”424 Se o homem

absurdo desmascara as limitações da razão, ele todavia se recusa a entronar a

irracionalidade como uma espécie de anistia geral ao absurdo. O equilíbrio que

Camus sugere se diz mais refinado, buscando um acorde difícil entre a manutenção da

razão operacionalizada entre seus limites, e a indeterminação, pois,“...se reconheço os

limites da razão, não a nego completamente, reconhecendo seus poderes

relativos.”425 Camus retoma suas distâncias em relação aos profetas do caos

mostrando sua intenção de preservar este coeficiente de desejo de unidade que impede

uma glorificação da irracionalidade do mundo e impulsiona a revolta humana contra

a própria condição e a conseqüente solidariedade, ainda que latente, que ela engendra:

“quero apenas manter-me neste caminho médio(moyen) onde a inteligência pode

perman

absurdo que é o estado metafísico do homem consciente, não

conduz

um vocabulário impregnado de

cristian

ecer clara.”426

A oposição entre Camus e estas posturas da esperança é reafirmada

multipolarmente: “O

a Deus.”427

Todavia, por que, então, a manutenção de

ismo? “o absurdo é o pecado sem Deus.”428

Não obstante seja difícil precisar a causa “necessária” desta manutenção do

vocabulário cristão, o fato é que, pela primeira vez, o “pecado” será utilizado para

metaforizar esta culpabilidade inocente que será o nó górdio da assunção a uma

solidariedade metafísica perante a absurdidade. Segundo Camus, através da esperança

em Deus, Kierkegaard se reconcilia com a morte traindo à absurdidade primordial e à

responsabilidade que brota quando o homem absurdo assume efetivamente a

absurdidade, a saber, responsabilidade de recusar a morte do homem, de revoltar-se

424 MS, 126. 425 MS, 127. 426 MS, 127. 427 MS, 128. 428 MS, 128.

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contra o fado da contingência. O homem que assume a absurdidade vive como se

pecasse na medida em que se mantêm na angústia dos que ficam, partilhando, mesmo

involuntariamente, desta engrenagem que faz a infelicidade dos homens. Em O

Homem Revoltado dirá Camus: “ o homem não é inteiramente culpado, ele não

começou a história; nem completamente inocente visto que a continua(...)A revolta

nos dir

mesmo elã de completude que falseia a

experiê

eciona(...)na via de uma culpabilidade calculada.”429

O suicídio filosófico possui ainda um derradeiro contorno para Camus, “o

salto na abstração” representado pelo “retrato” bastante austero de Husserl e dos

“fenomenólogos” em geral. Se pensarmos que os contrapontos eleitos por Camus

dizem mais sobre ele mesmo, ou seja, sobre a ética do homem absurdo, do que

propriamente sobre os autores em questão – fato que se assevera, aliás, indiscutível –

podemos concluir que o contraponto final à Husserl indica bem mais uma espécie de

justificação teórica da ausência de teoria na elaboração filosófica de O Mito de Sísifo.

Mas, a bem da verdade, a crítica do intelectualismo vai além. Não se trataria em

absoluto de um mea culpa, ou uma tentativa de medir forças com a elaboração

sistemática: Camus se esforça para notar que tanto no elogio do irracionalismo quanto

no apogeu racionalista, encontra-se o

ncia humana de seus paradoxos.

De começo, o Husserl de Camus compartilha com o elã revoltado, na medida

em que confirma a proposição “ de que não existe verdade, existem verdades”430,

partilhando o esforço do homem absurdo de compreender o homem concreto - “a

fenomenologia nega explicar o mundo, quer ser simplesmente uma descrição do

vivido.”431 Entretanto, sempre segundo Camus, Husserl, em seguida, renega “esta

modéstia de pensamento” que lhe fazia partilhar da metodologia da “filosofia

interrogante” do homem genuinamente absurdo pois realizaria “o salto na abstração”

onde a elucubração racional lança-se “num politeísmo abstrato”432 na tentativa vã de

“compreender” a realidade. Neste sentido o irracionalismo de Kierkegaard toca este

esforço extravagante da razão de Husserl que almeja alçar da linguagem às certezas

negadas pelo real433: “ o essencial é explicar. Aqui a nostalgia é mais forte que a

429 CAMUS,A. L´Homme Revolté.p.700. Voltaremos a este ponto oportunamente.

elo concreto, mas um intelectualismo desenfreado para próprio concreto.”(MS, 133.)

430 MS, 129. 431 MS, 129. 432 MS, 131. 433 “O que encontro aqui não é o gosto pgeneralizar o

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ciência.”434 O diagnóstico de Camus é severo: “Entre o deus abstrato de Husserl e o

deus fulgurante de Kierkegaard a distância não é tão grande. A razão e o irracional

levam a mesma predicação. Na verdade o caminho para chegar pouco importa, a

vontade

o: “Kierkegaard suprime esta nostalgia e Husserl reúne esse

univers

de chegar basta para tudo.”435

O duplo contraponto erigido por Camus visa estabelecer por contraste um via

de equilíbrio que se pretende uma “terceira margem” entre o irracionalismo e o

dogmatismo abstrato. O pensamento absurdo pretende “ser fiel à evidência que o

despertou. Tal evidência é o absurdo, o divórcio entre o espírito que deseja e o

mundo que o decepciona, minha nostalgia de unidade, o universo disperso e a

contradição que os enlaça.”436Não obstante calcarem os alicerces do absurdo, estes

pensadores “ditos” existencialistas trairiam, afinal, as raízes paradoxais profundas do

homem lúcid

o.”437

No intuito de ressaltar esta alternativa de Camus, que compreende-se entre

dois pensamentos extremos, talvez não seja excessivo lembrar um procedimento

bastante análogo que encontramos no corpus pascaliano que consiste na oposição

entre ceticismo e dogmatismo. Uma das linhas mestras da compreensão dos Pensées

de Pascal está na correta avaliação desta oposição que reaparece com freqüência mas

que é ainda melhor sintetizada num texto conhecido como o “Entretien de Pascal e

M. de Saci sur Épitète et Montaigne”, contemporâneo da redação de sua obra capital

inacabada. Nele Pascal expõe, à sua maneira, sem preocupações filológicas, duas

concepções, segundo ele, antagônicas da razão: a de Epiteto e a de Montaigne. Assim

como em Camus, seria inútil procurar, a partir dos “retratos” esboçados por Pascal

dos dois filósofos, uma conformidade direta com suas intenções “verdadeiras”: a

descrição das duas “doutrinas”, uma que diviniza a razão, outra que a menospreza

completamente, serve, a bem da verdade, ao estabelecimento da alternativa pascaliana

da racionalidade e da existência que consiste também numa “terceira margem” entre

determinismo e ceticismo. Para Pascal, nem Epiteto, nem Montaigne dão conta deste

paradoxo tenso e insuperável entre vontade de clareza e impossibilidade de conhecer.

Epiteto, segundo Pascal, não obstante possua um vasto e útil calendário dos deveres

do homem, resvala na presunção e na soberba mascarando a experiência originária da

434 MS, 133. 435 MS, 133. 436 MS, 134-5. 437 MS, 135.

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incompletude pois vê-se como participante do intelecto divino, capaz de, pela simples

intervenção da própria vontade aceder ao sentido completo, e no limite, ao próprio

Deus: “que o homem pode por suas próprias potências conhecer perfeitamente Deus,

amá-lo, obedecê-lo,agradá-lo, curar-se de todos os vícios, adquirir todas as virtudes,

fazer-se o companheiro de Deus. Que a dor e a morte não são males, que podemos

nos matar quando se é tão perseguido que deve-se crer que Deus nos chama, e outras

ainda...”438 É inadmissível para Pascal está diluição infiel dos dramas humanos por

Epiteto que realinhava grosseiramente o dilaceramento original que é o significado

mesmo da existência humana. Por outro lado, Montaigne padece, segundo Pascal da

desmedida inversa, negando qualquer elã humano ao sentido e à unidade e

potencializando, com a metodologia do pirronismo, infinitamente as dúvidas abissais

que, de fato, fazem parte da experiência humana da vida: “ele põe todas as coisas

numa dúvida universal e tão geral que esta dúvida se lança contra ela mesma, isto é,

se duvida, e duvidando desta última suposição, sua incerteza gira em torno de si

mesma num círculo perpétuo e sem repouso...”439 Nos Pensamentos Pascal dedicará

vários fragmentos440 na confecção desta oposição, destacando em seguida sua própria

alternativa na qual intervém o coração como elemento complementar da

racionalidade: “Coração

Instinto

Princípios”441 “Conhecemos a verdade, não só pela razão, mas também

pelo coração(...)Os pirrônicos(...)trabalham inutilmente. Sabemos que não sonhamos,

por maior que seja nossa impotência de prová-lo com a razão...É sobre esses

conhecimentos do coração e do instinto é que a razão deve basear todos os seus

discursos. ”442 Na limitação da racionalidade ao seu âmbito possível, reduzida a um

meio termo útil e eficaz em meio a um duplo infinito443 de indeterminação, está a

chave para a grandeza do pensamento segundo Pascal. Em poucas palavras, na raiz de

sua oposição completa ao dogmatismo está o desvelo que na origem da racionalidade

438 PASCAL, B. Entretien de Pascal e M. de Saci sur Épictète et Montaigne. Intégrale, p.293ab. 439 Idem.p.293b 440 PASCAL, B. Pensées. (33,374);(109-392);(Papiers Classés, Section I, Contrariétés, VII);(406-395);(521-387);(655-377)(658-391)(691-432)(896-390);(905-385) 441 Idem. (155, 281) 442 PASCAL, Pensées. (110-282) Trataremos detidamente desta relação entre Pascal e Camus na conclusão deste trabalho, ocasião na qual demarcaremos mais precisamente fronteiras entre as duas concepções. Por ora, é suficiente notar a confluência temática e também metódica entre estas duas abordagens da filosofia que embora distantes, por vezes, tanto se aproximam. 443 Notar o fragmento 199-72 dos Pensées.

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encontra-se uma franja de indeterminação e de extra-racionalidade, indissociável da

experiência humana. Por outro lado, o coração é o elã de certeza do homem

pascaliano, sua fundamentação existencial tácita, o que o liga carnalmente à

materialidade da vida e o que o impulsiona a seguir, apesar da contingência: há,

consequentemente, uma duplicidade paradoxal do homem de Pascal que é, na

inquietude angustiada de seu combate por clareza face à obscuridade do real, um

contraponto radical aos edifícios filosóficos deterministas típicos do século XVII:

“Que quimera é pois o homem?que novidade, que monstro, que caos, que sujeito de

contradições, que prodígio?Juiz de todas as coisas, imbecil verme da terra,

depositário da verdade, cloaca de incerteza e de erro, glória e dejeto do

universo.”444A convergência entre Camus e Pascal neste sentido é duplamente

significativa: do ponto de vista temático, em ambos os autores se trata de resguardar

uma postura de manutenção dos paradoxos da existência contra soluções ilegítimas

que tentam, pelos vieses da desmesura, positiva e negativa, “evasão” à condição

absurda, seja no conformismo de uma concepção otimista da razão, seja numa

rejeição absoluta do elã humano para clareza. Metodologicamente, os dois autores

partilham, de algum modo, o procedimento de estabelecer suas “teses” éticas por

contraste, buscando, por intermédio de retratos extremamente pessoais e mesmo

caricatos de seus rivais, revelar a sutil significação de seus próprios pensamentos que

devem à dimensão interrogante impressa à filosofia e ao elogio da noção de limite, a

lucidez de suas posturas445. Não se pode negar, afinal, a partir da leitura atenta de

Camus e de Pascal o esforço comum de pensar a condição humana sem “esquivar-

se”446 de seu dilaceramento originário entre obscuridade e elã de lucidez: “Instinto,

razão. Temos uma incapacidade de provar invencível a todo dogmatismo. Temos uma

idéia de verdade invencível a todo o pirronismo.”447 “Posso negar tudo desta parte de

mim que vive de nostalgias incertas, menos esse desejo de unidade, esse apetite de

resolver, essa exigência de clareza e de coesão.”448

444 Idem. (131c, Papiers Classés II, Contrariétés, VII.) 445 Contudo, malgrado estas importantes convergências, obviamente, é preciso dizer que Pascal é um dos filósofos que realizam, como sabemos, o salto na esperança. Assim, ele não pode ser admitido expressamente como inspiração, mesmo que metódica para Camus que se contrapõe justamente ao existencialismo utilitarista dos pensadores cristãos. Há, de fato, muitas fontes “escondidas” no pensamento de Camus e Pascal é, sem dúvida, uma de suas influências mais zelosamente veladas. 446 447 PASCAL, B. Pensées. (L.406-Br.395) 448 MS, 136. “Essas duas certezas, meu apetite pelo absoluto e pela unidade e a irredutibilidade deste mundo a um princípio racional e razoável, sei também que não posso conciliá-las.”(Idem)

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Interessante notar que na única menção - não velada – a Pascal n´O Mito de

Sísifo, Camus define o termo “esquiva” como correlato ao tema do “divertimento” em

Pascal: “o essencial desta contradição(o ser para a morte no qual coabita a vontade de

viver) reside no que chamarei de «esquiva», visto que ela é a um só tempo mais e

menos que o «divertimento» no sentido pascaliano...a esquiva mortal(...)é a

esperança.”449 Camus, por conseguinte, não desconhece o método do renversement

continuel du por au contre que é o fundamento mesmo do fragmento

Divertissement(Pensées, L.136-Br.139). Trata-se de proceder a desmontagem

sucessiva de cada ótica particular, revelando as fraquezas de cada ponto de vista, na

intenção de ver, do patamar mais alto, a “razão dos efeitos” que, nesta situação,

explicaria os motivos profundos da inquietude humana. Ora, este é exatamente o

método de Camus n´O Mito de Sísifo que expõe, passo a passo, as fissuras do

pensamento “existencialista”, alçando, por fim, a assunção do absurdo ao patamar de

lucidez suprema: o absurdo é a “razão dos efeitos” para Camus – o pensamento oculto

que permite uma compreensão interrogante da condição humana paradoxal. Nos

esforços de Camus e de Pascal o que está em jogo é, no limite, e, em termos

contemporâneos, a recusa da alienação humana. O divertimento, e a esperança são

para Pascal e Camus, verso e reverso da mesma alienação em relação à condição

humana que é digna de combate. A convergência metodológica entre os dois autores,

por conseguinte, deve ser considerada, não apenas possível, mas real e extremamente

significativa.

Todavia é imprescindível comentar que, embora não mencione expressamente

Pascal, para Camus a “solução” pascaliana para o absurdo não poderia senão

permanecer, sem dúvida, no hall dos suicídios filosóficos, pois não se diferenciaria

profundamente da atitude kierkegaardiana, visto que a dialética tensa entre grandeza e

miséria seria em Pascal ainda preliminar e subsidiária do re-encontro do fio de

Ariadne que re-encaminha à fé pelo exaurimento das soluções existenciais. Em

Camus, ao contrário, 450como vimos, “a honestidade consiste em saber manter-se

nesta aresta vertiginosa(do absurdo), o resto é subterfúgio.”451

É afinal, a esperança a grande esquiva comum de todos os pensamentos

elencados por Camus. Ela desliza por entre brechas auspiciosas e inauditas se

449 MS, 102. 450 MS, 136. 451 MS, 135.

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revelando por detrás, tanto dos comportamentos mais austeros, quanto dos mais

absurdos.

O caso paradigmático escolhido para encarnar estas artimanhas da esperança é

o caso de Kirilov. Segundo Camus, este personagem é a materialização de raciocínios

empreendidos por Dostoievsky que conduzem o problema da relação do homem com

a eternidade ao seu limiar. Ele decidi “sair da vida” por uma idéia: “ele quer se

matar para tornar-se deus.”452

O raciocínio de Kirilov é, segundo Camus, de uma lógica cruel e rigorosa e

retoma o raciocínio caro a Nietzsche: “Se deus não existe, logo, eu sou deus.”

Demasiado humano, Kirilov tem todas as características do homem ordinário salvo

esta convicção de divindade que lhe transporta para além do horizonte da

normalidade: “De super-homem só tem a lógica e a idéia fixa, de homem tem todos os

registros. No entanto é que fala tranqüilamente de sua divindade.”453 Em certo

sentido ele parece realizar plenamente a condição absurda visto que sua

independência radical, sua liberdade refletida e obstinada lhe conferem este elã

inconformista que efetiva uma conduta absurda. Kirilov pretende se matar “por amor

à humanidade”, para “ensinar-lhes” a boa nova da morte de Deus, doravante., “tudo

depende de nós.” Mas, como a de Zaratustra, esta nova não é reformista, Kirilov

pretende dar um presente à humanidade. Seu suicídio é perfeitamente vão, lúcido,

absurdo.

Não é pois em Kirilov que devemos, afinal, buscar esta centelha de esperança

que fulgura ainda na atitude do suicida e que contradiz, afinal, sua dimensão absurda.

Mas sim na obra de Dostoievsky que, como um todo, destila um resíduo “existencial”.

Segundo Camus, Kirilov, no fundo, é derrotado por Aliocha que repõe o horizonte de

eternidade que está no âmago dos dilaceramentos de Dostoievsky. Kirilov encarna

uma pedagogia do absurdo que aponta, não sua lucidez, mas a face auto-destrutiva e

inútil da assunção do absurdo, visto que a vida no horizonte dostoievskiano só teria

sentido em função da eternidade. A liberdade de Kirilov, assim, não era “para nada”:

o suicídio foi uma atitude, de algum modo, em função da eternidade, determinado

pelo horizonte de algum modo depende da eternidade de Dostoievsky: “E assim,

452 MS, 183. 453 MS, 184.

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também, a pistola de Kirilov ressoou em alguma parte da Rússia, mas o mundo

continuou girando suas cegas esperanças.”454

Além do suicídio físico e filosófico, rejeitados, uma terceira postura é possível

frente à absurdidade, a saber, o enfrentamento sem subterfúgios da “paixão

dilacerada” do absurdo . Face ao absurdo “uma das únicas posições filosóficas

coerentes, é assim, a revolta. Ela é um perpétuo confronto do homem e sua própria

obscuridade. Ela é a exigência de uma impossível transparência.”455

Para Camus é necessário a assunção revoltada da absurdidade456 isto é a

aceitação da vida tal como ela se apresenta, em sua contingência e imanência mas

também em seu combate pelo sentido, na experimentação desta “verdade irrisória que

o opõe à criação”: “Que outra verdade poderia reconhecer sem mentir, sem

apresentar uma esperança que não tenho e que não significa nada nos limites da

minha condição?”457A revolta será caracterizada como “protesto”458, “desafio”459,

“recusa”460, “obstinação”461 e “confrontação.”462

Tratar-se-á então, na continuidade de O Mito de Sísifo, de seguir algumas

posturas possíveis que permitem viver o absurdo com paixão, aceitando sua lei

profunda “que é queimar o coração” 463que ao mesmo tempo exalta. Serão as

condutas humanas singulares face ao absurdo que serão doravante o objeto de

interesse de Camus.

Esta atenção devotada à concretude exige uma guinada no procedimento

metódico ou expressivo que Camus afirma de maneira extremamente feliz: “todos os

problemas recuperam sua lâmina. A evidência abstrata se retira diante do lirismo das

formas e das cores. Os conflitos espirituais se encarnam(incarnent)e voltam a

encontrar seu abrigo miserável e magnífico no coração do homem.”464

454 MS, 187. Camus entretanto 455 MS, 138. 456 “O que me interessa , quero repetir, não são tanto as descobertas absurdas. São suas conseqüências.” (MS.p.109) 457 MS, 135. 458 HR, 419. 459 MS, 139. 460 HR, 420. 461 MS, 137. 462 MS, 138. 463 MS, 113. 464 MS, 138.

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O homem lúcido será então encarnado em diversos personagens que

experimentam a vida guardando intactas as premissas do absurdo: “viver é fazer com

que o absurdo viva.”465

Este homem absurdo que será reencarnado e mis-en-abyme por Camus pelo

método da “obstinação” encontra-se numa conscientização perpétua, “sempre

renovada”, “sempre tensa”, do antagonismo primordial entre o mundo indiferente e

contingente e seu desejo de clareza e de permanência: a lucidez é característica

primordial da revolta. Entretanto, e isto é importante, o homem absurdo nega que seja

culpado pela condição humana de sofrimento. “Querem que reconheça sua culpa. Ele

se sente inocente. Na verdade, só sente isto, sua inocência irreparável. É ela que lhe

permite tudo.”466O homem absurdo vive, como vimos anteriormente, como se vivesse

“no pecado”467: se vincula ao sofrimento dos outros, mas ele não se sente responsável

pela precariedade da vida que possui uma origem antes de tudo metafísica: o absurdo

é, antes de tudo “o estado metafísico do homem consciente”, a revolta é o

enfrentamento desta condição antes de tudo metafísica de injustiça: “Ela é a exigência

de uma transparência impossível e questiona o mundo a cada segundo(...)Essa

revolta é apenas a certeza de um destino esmagador, sem a resignação que deveria

acompanhá-la.”468 “Consciência e revolta, estas recusas são o contrário da

renúncia.”469

O homem absurdo é obstinado. Neste sentido o homem absurdo é o antípoda

do suicida470(que resolve o absurdo)- e sua encarnação par excellance se dá“ na

extremidade do último pensamento do condenado à morte, aquele cadarço de sapato

que, apesar de tudo, percebe a poucos metros, bem na beirada de sua queda

vertiginosa.”471 O Estrangeiro, realizado conjuntamente e publicado antes de O Mito

antecipa, portanto, a realização desta síntese do pensamento através da imagem que

configurará a peculiaridade da orientação camusiana da filosofia. Meursault, lúcido, à 465 MS, 137. 466 MS, 137. 467 De fato a comiseração com o sofrimento, e a responsabilidade que ela acarreta, é uma característica latente do absurdo que será efetivamente resgatada n´O Homem Revoltado. Este homem absurdo, por ora, vive neste pecado sem Deus, numa ordem penal sem sentido, e goza, a bem da verdade, desta innocência radical “do escravo” que “não se pertence” logo, não tem deveres, nem responsabilidades.(MS, 1141) Esta dimensão perversa da liberdade desmedida que é consequência do absurdo será problematizada nas obras ficcionais de Camus, O Estrangeiro, Calígula, O Malentendido e também configurará a questão central d´O Homem Revoltado. 468 MS, 138. 469 MS, 470 MS, 138. “O contrário do suicida é o condenado à morte.” 471 MS, 138.

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beira do cadafalso, é o testemunho da única verdade do homem revoltado, a saber, o

desafio à própria condição.

O absurdo portanto se manifesta nas instâncias da vida ordinária, cotidiana,

histórica.

É antes de tudo numa liberdade re-organizada nos termos do absurdo que a

condição de absurdidade se efetiva: “A única que conheço é a liberdade de espírito e

de ação. Ora, se o absurdo aniquila todas as minhas possibilidades de liberdade

eterna, também me devolve e exalta, pelo contrário, minha liberdade de ação.”472

A liberdade de ação do homem absurdo é remodelada pela desesperança, que

resulta da assunção da contingência:473“Depois do absurdo, tudo fica abalado.”Nesta

re-configuração ética é a sua própria liberdade que está posta em questão pois o

homem absurdo descobre, antes de mais nada, que não é livre para não morrer.

Esta “evidência” lhe propicia ótica nova sobre seu cotidiano prisioneiro das

engrenagens sociais. Antes da “queda”, avaliava suas possibilidades, aposentadoria, o

trabalho, os filhos, o trabalho dos filhos, o trabalho dos filhos dos filhos - ele se

projetava numa imortalidade que se mostra ilusória à luz da lida absurda: “tudo isso

acaba sendo desmentido de maneira vertiginosa pelo absurdo de uma morte

possível.”474

Lúcido diante da contingência ele vê agora que não é capaz da liberdade

fundamental: ele não é livre “para existir.” Como então legitimar as postulações da

liberdade que “imprimem metas” para uma liberdade sem futuro? As tabulações entre

as quais se prostrava em seu sono de eternidade, atado a um futuro ilusório, sonhado,

mostram à luz do absurdo, quanto o homem era “prisioneiro de sua verdade”:475

“Assim o homem absurdo compreende que não era realmente livre.”476É o

pensamento da morte, o pensamento do verme, da limitação e da fragilidade da

condição humana que lança seu fel de inutilidade como uma sombra sobre os projetos

e propósitos humanos: “ O absurdo me esclarece o seguinte ponto: não há

amanhã”477.

472 MS, 140. 473 “Tal privação de esperança e de futuro significa um crescimento da disponibilidade do homem.” MS, 140. 474 MS, 141. 475 MS, 141. 476 MS,141. 477 MS, 141.

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Porém a limitação da vida humana redobra, entretanto, a paixão ilimitada de

viver do homem absurdo.

Em sua assunção plena à existência, o homem descrito em Le Mythe de

Sisyphe é desmesurado quando se trata da experimentação irrestrita da vida: a

experimentação é sua expressão privilegiada e a maneira pela qual ele contradiz a

limitação e a fragilidade de sua condição.

Paradoxalmente, à limitação da existência, o homem absurdo responde com

seu excesso e sua persistência: viver quantitativamente é, numa ética centrada sobre

os problemas metafísicos e individuais do sujeito, uma resposta desafiadora para o

sentido da vida: “a crença no absurdo equivale a substituir a qualidade das

experiências pela quantidade. Se eu me persuadir que esta vida tem como única face

o absurdo, se eu sentir que todo seu equilíbrio reside na perpétua oposição entre

minha revolta consciente e a obscuridade em que a vida se debate, se admitir que

minha liberdade só tem sentido em relação ao seu destino limitado, devo então

reconhecer que o que importa não é viver melhor, e sim viver mais.”478 A tarefa

repetida de Sísifo alude a este movimento incessante no qual a ação e o ato mesmo de

viver compensa e como que substitui o senso profundo da vida. Este desafio à

limitação do destino humano pela exacerbação da paixão de viver é uma das faces da

revolta que segundo Camus , como vimos a pouco, “ é uma das únicas posições

filosóficas coerentes” frente ao absurdo. As três conseqüências do absurdo, estão,

enfim, caracterizados: “minha revolta, minha liberdade e minha paixão.”479

O homem absurdo desafia apaixonadamente o próprio destino recusando a

limitação originária de sua condição. Esta contestação tem seu preço. A desmesura da

liberdade é sua revanche frente à ausência de sentido insuperável da Terra. A vida

sem apelo do homem absurdo mostra então a face de um individualismo temerário.

Ainda que o homem absurdo partilhe de maneira latente do sofrimento de todos nesta

ordem penal que é comum, sente-se, como vimos, irremediavelmente inocente e

injustiçado. Vê-se, por conseguinte, demitido de todas as responsabilidades por este

universo demente.

Ora, será a voracidade apaixonada e imoralista de viver, portanto, a resultante

maior do desafio absurdo.

478 MS, 143. 479 MS, 144.

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Interessante notar a imagem “esportiva” com a qual Camus representa esta

atitude absurdo-revoltada, “um aventureiro do cotidiano que, pela simples quantidade

de experiências, bateria todos os recordes e ganharia assim sua própria

moral(...)Bater todos os recordes é, antes de mais nada, e exclusivamente, estar

diante do mundo com maior freqüência possível.”480 Talvez não seja excessivo

sublinhar que este “jogo”481 que é considerado “a aposta”(pari)mesma na existência,

apesar do absurdo, é uma partida entretida face à morte, e não face aos outros

homens482: Como na aposta clássica de Pascal o homem “está obrigado” a jogar este

jogo que se desenrola, no limite, à sua revelia. Todavia, a aposta de Camus inverte

completamente às conseqüências do absurdo retiradas pelo homem clássico:

“transformo em regra de vida o que era convite à morte.”483

As três conseqüências do absurdo, revolta, liberdade e paixão aliam-se, pois,

no elã sem sentido de viver ao máximo que impulsiona o homem absurdo em seu

cotidiano desafiador: “Sentir o máximo possível sua vida, sua revolta, sua liberdade é

viver o máximo possível.”484(...) “O presente e a sucessão de presentes diante de uma

alma permanentemente consciente, eis o ideal do homem absurdo.”485

O projeto filosófico camusiano de compreensão das atitudes concretas de O

Mito de Sísifo se desdobrará neste movimento, mencionado anteriormente, de

“encarnação” de atitudes de assunção do absurdo. Serão estes homens486, que embora

nostálgicos, se devotam pela coragem e pelo raciocínio487 “sem apelo”, ao cotidiano,

as figuras deste engajamento supremo do homem absurdo com a vida.

480 MS, 144. “O universo aqui sugerido vive somente por oposição a esta constante exceção que é a morte.”(MS, 144) 481 Seria impossível não notar a inversão camusiana do procedimento da aposta. “Vamos morrer, escapar pelo salto, reconstruir uma casa de idéias e de formas à nossa medida?Ou pelo contrário, vamos manter a aposta(pari) dilacerante e maravilhosa do absurdo?”(MS, 137.) “Examinaremos, pois esse ponto, e digamos: ´Deus existe ou não existe´. Para que lado nos inclinaremos? A razão não o pode determinar: há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou coroa. Em que apostareis?”(Pensées, L.418-Br.233) 482 MS, 144. 483 MS, 146. 484 MS, 144. 485 MS, 145. Notar o timbre nietzschiano destas passagens... 486 “Será preciso desenvolver a idéia de que um exemplo não é forçosamente um exemplo a ser seguido(...)Estas ilustrações não são portanto, modelos(...)As atitudes de que falaremos só adquirem seu sentido quando considerados seus contrários... ”(MS, 150) 487 MS, 149 “Não que a nostalgia lhe seja alheia. Mas prefere a ela sua coragem e seu raciocínio. A primeira consiste em viver sem apelo e contentar-se do que tem, o segundo lhe ensina seus limites.”

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Eles partilham do mergulho no tempo como escolha lúcida frente à desrazão e

desta condenação à inocência que é fundamento da liberdade amarga488 do homem

absurdo que “não autoriza todos os atos. Tudo é permitido não significa que nada é

proibido(...)não recomenda o crime, seria pueril, mas restitui sua inutilidade ao

remorso.”489

Outra característica comum entre eles, uma contestação profunda da moral

estabelecida dada a relatividade de todas as escolhas frente à contingência: “o absurdo

apenas dá equivalência à conseqüência dos seus atos.”490 Para além de bem e mal,

eles observam com indiferença o funcionamento da “pequena justiça” que estabelece

convencionalmente a moral e entrevem o fel do absurdo por detrás da suposta

legitimidade dos hábitos e das leis e de suas respectivas condenações. Para os homens

absurdos “mesmo que possa haver responsáveis, não há culpados.”491

Eles estão dispostos à pagar o preço.

Camus almeja ilustrar éticas da vida nesta cristalização das atitudes absurdas

nas condutas do amante, do ator e do artista: “todos os problemas recuperam sua

lâmina. A evidência abstrata se retira diante do lirismo das formas e das cores. Os

conflitos espirituais se encarnam(incarnent)e voltam a encontrar seu abrigo

miserável e magnífico no coração do homem.”492

É difícil até mesmo perceber a importância capital deste movimento filosófico

em direção à singularidade radical que enuncia O Mito de Sísifo em razão da beleza

estilística do texto de Camus: a bem da verdade, o franco-argelino parece ser um dos

poucos filósofos que se mostram complicados e até mesmo um tanto obscuros,

justamente pelo fato de escrever demasiadamente bem. Seu estilo doce e lírico por

vezes esconde a coragem lúcida com a qual enfrenta séculos de tradição dogmática,

abstracionista e determinista. É claro que a aposta no homem concreto é bem

partilhada pelos contemporâneos de Camus, não é a toa que Kierkegaard, Heidegger,

Husserl e até mesmo Sartre estão presentes no horizonte conceitual do Mito, ou, em

linguagem camusiana, no climat do pensamento absurdo. Entretanto, Camus se

pretende mais radical. Seu projeto visa a “encarnação” destas éticas tácitas - destas

vivência absurdas - ilustradas nas condutas singulares: “Não são, então, regras éticas 488 “Não sei se ficou claro: não se trata de um grito de libertação e de alegria, mas de uma constatação amarga.”(MS, 149) 489 MS, 149-150. 490 MS, 149-150. 491 MS, 150. 492 MS, 137.

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o que o espírito absurdo pode buscar ao fim de seu raciocínio, mas sim ilustrações e

o sopro de vidas humanas. Os poucos esboços a seguir são deste tipo. Eles

prosseguem o raciocínio absurdo provendo sua atitude e seu calor.”493

De fato, veremos oportunamente, o esforço de expressão do pensamento por

imagem presente na obra ficcional/filosófica de Camus é tão bem sucedido que

podemos compreendê-lo, no limite, como realização efetiva de uma verdadeira re-

orientação da filosofia na qual o calor e o sopro humanos recobrariam sua

importância fundamental na interpretação do real.

*

493“Será preciso desenvolver a idéia de que um exemplo não é forçosamente um exemplo a ser seguido(...)Estas ilustrações não são portanto, modelos.”(MS, 150)

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2)Vivências do absurdo

Para Camus, na viagem incessante do desejo que conduz Don Juan de paixão

em paixão, procurando em cada aventura o reencontro do gosto infinito do amor

fugaz, figura “uma aposta contra o próprio céu”494na medida em que o amante

revitaliza com sua paixão sempre renovada, o sentido superficial e passageiro do

instante, única sabedoria possível para o homem absurdo, que não crê em amanhã: “O

que Don Juan põe em prática é uma ética da quantidade, ao contrário do santo, que

tende à qualidade.”495

A escolha don juanesca nos remete à ética do batedor de recordes, que à força

da obstinação cotidiana, vence renovadamente a letargia do conformismo recusando a

cristalização que empobrece e desumaniza: à cabo do exercício do reiterado desafio

do amor fugaz, o homem absurdo ganha seu prêmio, isto é, sua própria ética.

Nesta ética do absurdo, é o instante que goza de todos os privilégios. Consiste

no mergulho no presente, superficial e imediato, a senda de sabedoria e felicidade do

homem alçado à dignidade absurda: “A característica do homem absurdo é não

acreditar no sentido profundo das coisas. Ele percorre, armazena e queima os rostos

calorosos ou maravilhados. O tempo caminha com ele .”496

A vivência irrestrita da temporalidade que consiste na ética do Don Juan se

efetiva na re-invenção perpétua do amor que inunda e transtorna com suas cores

sempre diversas a letargia cinza do pensamento que não se esquece de sua própria

fugacidade: é a lucidez de seus limites497, e de sua transitoriedade que erige e

fundamenta o imperativo de sua paixão pelo instante. É nas mulheres que ele visa

exaurir enquanto pode este maravilhoso universo de diversidade, “esgota seu número,

e com elas , sua possibilidade de vida.”(...)Amar e possuir, conquistar e esgotar, eis

sua maneira de conhecer.” 498

O amor fiel é um calabouço para a encarnação Don Juan do homem absurdo

que entende que uma vivência que impossibilita o encontrado da multidão

transbordante de vida equivale à escolha pelo claustro do velho sono eterno. Toda a

metafísica ilusória da eternidade vela-se por detrás deste convencionalismo social

494 MS, 153. 495 MS, 154. 496 MS, 154. 497 “Faz lembrar estes artista que conhecem seus limites...”(MS,154.) 498 MS, 154,6.

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banal e devorador: “um único sentimento, um único ser, um único rosto, mas tudo

acaba devorado.”499 O encarceramento voluntário imposto ao homem mecanizado

pelo hábito significa negação da vida aos olhos do absurdo: “Você tem que ser

Werther, ou nada(...)há várias maneiras de suicidar-se, uma das quais é a doação

total e o esquecimento da própria pessoa.”500

“É outro amor a que faz Don Juan estremecer, e este é libertador.”501 A

profundidade e generosidade do amor fugaz está na abnegação total e em sua

gratuidade fundamental pois ele não visa nada, nenhuma ilusão, não possui nenhuma

esperança, afora a vivência do segundo; este amor dionisíaco, isto é fragmentado,

“traz consigo todos os rostos do mundo e seu tremor provém de saber-se

perecível”502(...) “Também aqui o homem absurdo multiplica o que não pode

unificar.”503

Enfim, segundo Camus, uma legítima encarnação de Don Juan deve sabe

envelhecer: “o homem absurdo é aquele que não se separa do tempo.”504 Como estes

artistas que “conhecem seus limites”505ele sabe se retirar de cena e conta até mesmo

com o ridículo; na velhice, “não oculta de si mesmo o seu horror.”506

O fim mais plausível que Camus imagina para este personagem absurdo é

aquele no qual o conquistador morre enclausurado num convento, “isto representa a

culminação lógica de uma vida totalmente impregnada de absurdo, o desenlace feroz

de uma existência dedicada a alegrias sem futuro. O gozo termina aqui em

ascese.

”507

Como um pirrônico que duvida da própria dúvida o Don Juan decaído de

Camus renova sua desesperança num Deus em que desacredita e menospreza: eis o

coroamento amargo do herói blasfemo: “Que miragem mais assustadora desejar: a de

um homem a quem seu corpo trai e que, por não ter morrido a tempo, consuma a

comédia esperando o fim, cara a cara com o deus que não adora, servindo-o como

499 MS, 155. 500 MS, 155. 501 MS, 155. 502 MS, 155. 503 MS, 155. 504 MS, 154. 505 MS, 152. 506 MS, 153. 507 MS, 157.

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serviu

e lúcida de sair de um jogo

que já

e é preciso se deter.”510 É a ilustração da moral do homem

absurdo, de seu desafio ao cosmo, e de sua am a sublimação: “O fim último(...)o fim

último é desprezível.”511

de maneira

lúcida

cester. Nesse breve período, ele os faz nascer e

a vida, ajoelhado diante do vazio com os braços estendidos para um céu sem

eloqüência e, como ele sabe, sem profundidade.”508

Contudo, nesta imagem da melancolia que poderia pertencer a Dürer ou

Chirico, um elã misterioso de dignidade se insinua: “Vejo Don Juan numa cela

daqueles monastérios espanhóis perdidos numa colina. E se ele olha para alguma

coisa, não é para os fantasmas dos amores fugidios, mas talvez, pelo balestreiro,

para alguma planície silenciosa da Espanha, terra magnífica e sem alma onde se

reconhece.”509 É a grandeza humana advinda da serenidad

se sabia perdido, levando para o túmulo a certeza de ter desafiado com sua

experiência moral à limitação originária de sua condição.

Interessante notar a importância que Camus dá a esta ilustração de lucidez que,

como uma espécie de síntese iconográfica, será re-encarnada, como veremos

oportunamente, na figura de Sísifo, entre outras: “Sim, é sobre esta imagem

melancólica e radiante qu

arg

*

Como um Don Juan o ator “reina no perecível”512.

Encarnando em múltiplos personagens, o ator realiza plenamente a

multiplicação no vazio que exige uma temporalidade sem sentido. Transformando-se

continuamente ele realiza inúmeras vezes as possibilidades de existir - e

- enquanto o homem comum, na pantomima do cotidiano que lhe foi atribuído

por ele mesmo, se mantém um autômato cativo das escolhas que elegeu.

“Experimentar a vida em toda sua diversidade”513face aos homens comuns

atados às engrenagens da sociedade e prisioneiros de seus papéis, este é o grande

trunfo dos comediantes que assumem o absurdo: “ O ator dispõe de três horas para

ser Iago ou Alceste, Fedra ou Glou

508 MS, 157. 509 MS, 157. 510 MS, 157. 511 MS, 157. 512 MS, 158. 513 MS, 158.

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morrer em cinqüenta metros quadrados de tábuas. Nunca o absurdo foi tão bem

ilustrado, nem por tanto tempo.”514

Através desta multiplicação infinita da representação, o ator absurdo vivencia

ao limite o equivalente íntimo da absurdidade cósmica, isto é, o caos, a contingência e

o vazio

e está presente no cosmo ele demonstra ao homem comum,

engess

característica absurda destacada por Camus é da efemeridade e da

gratuidade do ator visto que seu legado “se evapora” depois de se consumir no

tante

obra, mas na elaboração

que ele desvela em si e que partilha com seu Senhor(o absurdo): “Talvez, a

vida seja mesmo um sonho.”515 A esta disponibilidade intensa ele responde com sua

voracidade vampiresca: “Ele é o viajante do tempo, e, no caso dos melhores, o

viajante acossado das almas.”516

A exigência de mobilidade e diversidade que é sobretudo cósmica ele encarna

em sua continuada metamorfose corpórea. Executando na própria carne a

multiplicidade qu

ado e adormecido pelo cenário cotidiano, do que o corpo é capaz: De que, a

bem da verdade, somente o corpo é capaz e que é sempre no plano da aparência e da

superficialidade que é a dimensão efetiva da vida, que se resolvem as determinações

mais profundas.

O ator absurdo goza, então, plenamente da existência compreendida como

jogo e desempenha infatigavelmente seus papéis que se metamorfoseiam no tempo.

Os bons atores conhecem, portanto, seus limites, e é na assunção da temporalidade

que ele evolui e se glorifica.

Outra

ins da representação: “o ator nos deixará no máximo uma fotografia, e nada do

que era, seus gestos e silêncios, sua respiração curta ou seu hálito amoroso, chegará

te nós.” 517

*

Nesta compreensão da efemeridade cósmica que o ator expande na

generosidade desinteressada de sua arte o ator se assemelha à qualquer artista cuja

sabedoria consiste não na busca da eternização pela

continuada dele mesmo e de sua realidade por intermédio da criação: “Ao mesmo

tempo, sua única força é a criação contínua e inapreciável à qual se entregam, todos

e mantêm numa concepção ultrapassada de ator, visto que se nte aos atores de teatro.

514 MS, 159. 515 MS, 159. 516 MS, 159. 517 MS, 160. Notar que em 1939 Camus srefere visivelme

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os dias de sua vida, o comediante, o conquistador e todos os homens absurdos. Todos

tentam imitar, repetir e recriar sua própria realidade.”518

r o concreto.”522 A criação absurda, ao contrário

da epif

Esta recriação contínua se prolonga num ideal expressivo e instaura uma

metodologia de pensamento de Camus: “Para o homem absurdo, não se trata de

explicar e resolver, mas de sentir e descrever(...)Descrever, eis a suprema ambição

do pensamento absurdo.”519

O romance “de tese”, assim como a filosofia dogmática, pretende explicar e

resolver os enigmas e os paradoxos da condição humana: é a razão que ilude a si

mesma e que pela via do construto tenta unificar e recompor o dilaceramento original.

A obra de arte absurda, assim como o romance ou a filosofia absurda, mantém este

dilaceramento constitutivo por onde se mostra sua dignidade altiva. Na arte absurda é

o sentimento que é requisitado em complementaridade à razão limitada e que encarna

a diversidade paradoxal da vida: “a explicação é inútil mas a sensação perdura e,

com ela, os incessantes chamados de um universo inesgotável em quantidade.”520 Se

o homem é incapaz de pela razão conhecer e compreender um universo desprovido

intrinsecamente de sentido, que o coração instigado pela arte lhe fundamente sua

paixão pela exuberância de viver: “o coração aprende assim que a emoção que nos

transporta até as diferentes facetas do mundo não nos vem de sua profundidade, mas

de sua diversidade.”521A arte absurda não almeja nem resolver, nem curar os enigmas

humanos, ela os consolida e os assume na síntese da imagem. Esta alternativa pela

imagem na arte absurda “marca o triunfo do carnal”(...) “A obra de arte nasce da

renúncia da inteligência raciocina

ania, que implica à ascese e o sobrevôo, propicia o homem elaborar-se, sol à

sol, dentro e a partir dela, transformando-se e reconhecendo seus limites: “a obra

absurda exige um artista consciente dos seus limites e uma arte em que o concreto

não signifique nada além de si.”523

A consciência dos próprios limites pode ser considerada a lucidez fundamental

do criador, do artista absurdo: “a verdadeira obra de arte está sempre na medida

humana.”524 A conscientização dos limites está presente na elaboração da criação,

518 MS, 173-4. 519 MS, 174. 520 MS, 174. 521 MS, 174. 522 MS, 176. 523 MS, 176. 524 MS, 176.

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pois conceber é “limitar seu mundo”525, em sua efetivação, visto que se defronta com

a materialidade radical de um universo de leis, físicas, morais, financeiras, que lhe

contrad

beligerância humana. Livre e

sem am

A arte absurda alça sua dignid e de sua lucidez e de seu mergulho

interrogante nas representações reivindicadas pela vida, apesar de seu caráter inútil e

insensato529. Este modelo desesperançado de engajamento artístico repercute nas

dimensões filosófica e histórica do pensamento de Camus.

*

iz e o margeia, mas, sobretudo, na iniqüidade profunda de sua lida na

restauração de alguma justiça ou sentido profundo para si ou a para a ordem humana:

A criação “não pode ser o fim, o sentido e o consolo de uma vida. Criar e criar não

muda nada.”526

Assim como nas atitudes do conquistador e do ator, será a partir da gratuidade

que Camus alçará a dignidade da arte absurda. Consciente de seus limites ela não visa,

nem explicar o mundo restaurando ilusoriamente a quietude impossível, nem

transformá-lo, tornando-se um Cavalo de Tróia para a

anhã a arte absurda não retira dignidade de sua função de epifania, ópio527 ou

miragem útil à contemplação desesperançosa de um homem alquebrado528. Nem

tampouco, suporta a dignidade humana em virtude de seu poder pedagógico primitivo

pelo qual podem se insinuar as causas mais obscuras.

ad

525 MS, 176. 526 MS, 176. 527 Camus precaveu desta fácil resolução dos paradoxos da condição humana pela epifania artística: a arte absurda ao contrário, não é um epifania opilácea “não oferece uma saída pelo mal de espírito. É o contrário uma expressão deste mal que repercute em todo pensamento de um homem” (MS, 175.) 528 “Minha vida pode encontrar ali um sentido, isto é ridículo.”(MS, 180) 529 “Criar e não criar, não muda nada.”(MS,176.)

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3)A razão absurda: O pensamento interrogante

Para Camus não há distinção entre os horizontes da arte e o da filosofia:

“Nunca se insistirá o suficiente na arbitrariedade da antiga oposição entre arte e

filosofia.”530 Esta distinção só tem sentido numa concepção de filosofia na qual o

pensador foi dissolvido por seu sistema. O pensamento absurdo, ao contrário recusa

fronteiras entre disciplinas cujo esforço comum consiste em “compreender e amar.

Elas se interpenetram e a mesma angústia as confunde.”531 O pensador absurdo,

como o artista, evolui com sua criação na medida em que não se cristaliza nela, está

ao contrário em metamorfose, sempre adiante ou aquém de sua obra, na mesma

interrogação constitutiva e insatisfeita que caracteriza sua relação consigo mesmo e

com o universo.

Talvez não seja excessivo sublinhar que, portanto, quando Camus diz “artista”

ele diz também “filósofo”. Esta “recusa obstinada de sistema” do artista absurdo é

compartilhada por este mesmo - o “romancista-filósofo”532 do absurdo. Neles a

expressão pela imagem é marca, portanto, da mesma contestação profunda: “a opção

que fizeram de escrever com imagens mais que com raciocínios revela um certo

pensamento que lhes é comum, persuadido da inutilidade de todo princípio de

explicação e convencido da mensagem instrutiva da aparência sensível.”533 Ora,

compreendamos que esta filosofia, assim como as obras absurdas, não se pretende

edifica

a esperança de explicar.

nte. Ela é sobretudo instrutiva do que há de incognoscível da experiência

humana. É antes um testemunho que um mapa da absurdidade, e seu sentido profundo

se encontra em suas entrelinhas e não no que de fato diz.

Procurando ilustrar a condição humana, esta filosofia viva, recusa a tentação e

530 MS, 175. 531 MS, 175. 532 MS, 178. Camus cita Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoievsky, Proust, Maulraux e Kafka. 533 MS, 178.

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Rejeita também a tentação da eternidade, sabe-se efêmera por que calcada em

imagens do mundo que caducam a cada instante - juntamente com seu criador

também

própria

io de um “pensamento

satisfei

nsamento que liberta o espírito é o que

deixa s

erdida de início...Porém, se obstinam: “Trabalhar e criar

em constante metamorfose. Ambos encontram-se no devir. “um pensamento

profundo está em contínuo devir, abraça uma experiência de uma vida inteira e o dá

forma.”534 O pensamento possui, assim, uma dimensão carnal, sedimentado na vida

daquele que o pratica535.

Finalmente, a filosofia absurda partilha da lucidez profunda da consciência da

limitação que impulsiona as práticas, mesmo desmesuradas, dos homens

absurdos. Sua exigência consiste em interrogar sempre, visto que se considera um

esforço de inacabamento intrínseco. Ela é, portanto, o contrár

to.”536 O pensamento absurdo é lúcido, isto é, “limitado, mortal e rebelde.”537

Camus insiste nesta dimensão da lucidez absurda: “o absurdo é a razão lúcida

que constata seus limites.”538 “O único pe

ozinho, certo dos seus limites e de seu fim próximo.”539

Assim como os aventureiros do absurdo, o conquistador e o ator, os criadores

absurdos, sejam eles filósofos, artistas, romancista, etc., compactuam assim do mesmo

segredo terrível que não obstante, os anima.

Compreendem a inutilidade profunda de seu exercício no que concerne seu

dilaceramento - metafísico, existencial e histórico – constitutivo. Sabem que a aposta

contra a contingência está p

«para nada», esculpir na argila, saber que sua criação não tem futuro, ver essa obra

ser destruída em um dia, estando consciente de que, no fundo, isso não tem mais

importância do que construir para séculos, eis a difícil sabedoria que autoriza o

pensamento absurdo.”540

O contraponto de Camus com as filosofias dogmáticas modernas e seus

herdeiros no historicismo contemporâneo não poderia ser mais absoluto. À razão

abstrata, dogmática e determinista que sufoca prisioneira de seu sistema na ilusão da

verdade que apregoa, Camus contrapõe a encarnação interrogante dos paradoxos

Ética ela mesma, sob um de seus aspectos, não é senão gorosa confidência.(MS, 178)

534 MS, 191. 535 “o filósofo, mesmo que seja Kant, é criador. Tem seus personagens , seus símbolos e sua ação secreta. Tem seus desenlaces.”(MS,177.) “A uma longa e ri536 MS, 191. 537 MS, 191. 538 MS, 134. 539 MS, 191. 540 MS, 192.

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inesgotáveis da condição humana: “Não mais a fábula que diverte e cega, mas o rosto

e o drama terrenos em que se resumem uma difícil sabedoria e uma paixão sem

amanhã.”541

A dignidade e a lucidez da criação absurda revela, afinal, seu legado mais sutil

- não é na esperança de objetivos ou fins, afinal, que reside a primazia da criação, mas

no savoir vivre que ela implica: é no engajamento cotidiano, na discipina da

confrontação diária com os limites da condição humana exigida pela elaboração

continuada do pensamento insatisfeito, pela a de si e de seu

entorno que ela propicia, que consiste a potência de sua mágica que dignifica o

cotidiano miserável.

*

re-elaboração perpétu

541 MS, 1 2. 9

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4)Absurdo e engajamento em O Mito de Sísifo e nas Lettres à un ami allemand

Esta concepção original de engajamento “sem amanhã” se concilia com o

impera

capítulo sobre o

vínculo

anto por prova tomaram a grandeza e como outros concluíram pela

Foram levados uns contra os outros por um cálculo sem fim: sendo certo que, à

tivo de compreensão e de amor542 pela paixão humana (e manutenção de seus

paradoxos), expresso reiteradamente em O Mito de Sísifo, num

do absurdo com a história que, por sua acuidade filosófica e sua preocupação

humanista demonstra que as inquietações que serão objeto de investigação em O

Homem Revoltado já estão presentes em germe na origem do percurso camusiano.

Camus, desde O Mito de Sísifo, interpõe entre o homem e a ação histórica,

uma medida, a saber, a valorização de sua “verdadeira grandeza”.

Talvez seja bastante elucidativo nos afastar, por ora, da ótica de Camus, na

tentativa de compreender, à partir de outro ponto de vista, a problemática da

manutenção do paradoxo de grandeza e miséria do homem que será importante na

consolidação da perspectiva camusiana do engajamento. Se vimos, com a finalidade

de compreender a alternativa da racionalidade camusiana (nem Husserl, nem

Kierkegaard) que encontramos em Pascal, um procedimento filosófico que descarta

também os dois pólos da desmesura(nem Epicuro, nem Montaigne), veremos, por

ora543, rapidamente, que na origem desta dupla recusa de Pascal está uma concepção

própria da condição humana que afirma e mantém o paradoxo grandeza-miséria: “- A

miséria se conclui da grandeza e a grandeza da miséria, uns concluíram pela miséria,

tanto mais qu

grandeza só serviu de argumento aos segundos para concluir pela miséria, pois

somos tanto mais miseráveis quanto de mais alto caímos; e outros ao contrário.

542 MS, “compreender e amar. Elas se interpenetram e a mesma angústia as confunde”. 543 A conclusão deste trabalho será intitulada- Pascal e Camus: o pensamento dos limites onde se proporá uma leitura unitária do pensamento de Pascal por intermédio da problemática dos limites do homem. Problemática que é o âmago, aliás, do pensamento de Camus. Assim, veremos que Pascal e Camus podem ser vistos como partcipantes de uma espécie de “linhagem” filosófica: uma outra história da filosofia. História nostálgica da filosofia que versa sobre a alternativa derrotada da

binômio razão-desmesura, mas no par, coração-medida. civilização: uma civilização baseada, não no

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medida que os homens se esclarecem, tanto acham grandeza como miséria no

homem...”544

Em Pascal, a contingência radical que assola todas as dimensões da vida, as

antinomias da razão, a insignificância humana diante da natureza, a morte sempre à

espreita, a fugacidade do poder, colaboram em conjunto na descrição da miséria da

condição humana. Contudo, desta conscientização da limitação originária, o homem

pascaliano infere sua grandeza, isto é a consciência de seus limites: (Br.347-L.200) «-

O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço

pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor,

uma gota d´água basta para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o

homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, por que sabe que morre e a

vantagem que o universo tem sobre ele. Toda a nossa dignidade consiste pois, no

pensamento.” Está na conscientização da fragilidade humana radical diante de uma

natureza indiferente que se encontra o feitiço que em Pascal transmuta miséria, em

grandeza: obra de um pensamento lúcido que dignifica a condição humana pela

ciência de seu âmbito de atuação e de seus poderes limitados: “Numa palavra o

homem sabe que é miserável. Ele é pois, miserável, de vez que o é; mas é bem grande

de vez que o sabe.545” “A grandeza do homem é tão visível que se tira mesmo de sua

miséria.”546Por outro lado, a razão mais presunçosa de sua grandeza (determinista,

totalitária,dogmática e sistemática) é considera a mais ridícula, inútil, débil, ou seja, a

mais miserável. No mesmo sentido, a pompa, a elegância e o aparato que cercam os

Grandes demonstram, a bem da verdade, seu inútil esforço em velar sua fraqueza e

fugacidade. Nos poderosos, nos conquistadores e sobre tudo no rei, Pascal encarna a

seu sonho pérfido de grandeza: “- A

miséria se conclui da grandeza e a grandeza da miséria.” A dignificação do homem

dá-se p la luc ição, o que significa a manutenção dos

paradox ondição humana:547

Se ele se rebaixa, eu o gabo.

E o contradigo sempre.

profunda melancolia humana delirante em

e idez sobre a própria cond

os que calcam a absurdidade da c

“Se ele se gaba eu o rebaixo.

dida que os homens se esclarecem, tanto acham grandeza como miséria no homem.”(L-130-

544 PASCAL, B. Pensées. (L.122-Br.416) 545 PASCAL, B. Pensées. (L.122-Br.416) 546 PASCAL, B. Pensées (L.117-Br.409) 547 “à meBr.416)

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Até que ele compreenda

Que é um monstro incompreensível.”548

Camus diz em A conquista: “Desenvolver ambas as tarefas ao mesmo tempo,

negar por um lado, exaltar pelo outro...”549 “Exalto o homem diante do que o

esmaga”550(...)O mundo o tritura, eu o liberto.”551

O pensamento lúcido, absurdo, dispõe-se a defender o ser humano humilhado

diante dos sacrifícios impingidos pela história: “«Não» - diz o conquistador - «não

pensem que por amar a ação precisei desaprender a pensar.” 552 É na história que

Camus553 vê a materialização da miséria e da infelicidade cotidiana, será portanto a

ela que ele direcionará suas imprecações cotidianas: “ Para quem se sente solidário

ao destino deste mundo, o choque de civilizações tem qualquer coisa de angustiante.

Assumi esta angústia ao mesmo tempo em que quis entrar no jogo. Entre a história e

o eterno escolhi a história porque amo as certeza. Dela, ao menos, tenho certeza, e

como negar esta força que me esmaga?”554

O pensamento absurdo não é indiferente, portanto, ao sofrimento cotidiano, às

injustiças, ao sacrifício de seus iguais pelos mecanismos que os escravizam e que

compõe a imagem contemporânea da “ordem penal” a que o homem ordinário está

aprisionado: “Nossa época, suas ruínas e seu sangue, nos enchem de

evidências.”555(...)“Consciente de não poder me separar de meu tempo, decidi me

incorporar a ele.”556(...)“O mundo o tritura, eu o liberto.” 557

À aposta de Camus pela dignidade humana dar-se-á pela revolta contra o

fatalismo de sua época na busca de salvaguardar o homem concreto da engrenagem da

história que o reduz, processa e liquida no cotidiano servil e indiferente da sociedade

industr

ial: “Por isso, se dou tanto importância ao indivíduo, é porque ele me parece

ridículo e humilhado.”558

548 Idem. (L.130-Br.420) 549 MS, 190. “Esta é a tarefa do criador absurdo.” 550 MS,166. 551 MS,165-6 552 MS, 164. Trata-se do sub-capítulo La conquête. 553 Interessante notar que neste capítulo o texto, por vezes, ganha um tom em primeira pessoal que parece extremamente confessional e que difere consideravelmente do tom escolhido para tratar o restante da obra. 554 MS, 165. 555 MS, 165 556 MS, 165 557 MS, 165-6 558 MS, 165.

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É efetivamente uma concepção do engajamento histórico que se insinua, ainda

que de maneira não evidente, nestes significativos trechos de O Mito de Sísifo. O tom

confessional que adquirem estas reflexões sobre a história abrem um balestreiro por

onde vemos a convulsão da história cotidiana se desenrolando contemporaneamente à

escritura deste livro. Estamos às portas do inferno. O pensamento do absurdo de

Camus não dá às costas à história, prefere o confronto lúcido com ela: “ Sempre chega

o momento em que é preciso escolher entre a contemplação e a ação(...)Isto se chama

tornar-se homem. É preciso viver com o tempo e morrer com ele...”559

Entretanto, o requisito da lucidez exige um engajamento atípico. Mediante o

martírio do homem singular exigido pela história “a grandeza mudou de campo.”560 A

peculiaridade do engajamento camusiano é a consciência dos seus limites e da

ambigüidade constitutiva de suas ações na tentativa sempre contradita de evitar o

sofrimento humano : “Os conquistadores sabem que a ação é inútil em si mesma.”(...)

“Uma revolução é sempre contra os Deuses a começar a de Prometeu(...)Trata-se de

uma reivindicação humana contra o seu destino.”561 O pensamento absurdo não se

ilude na esperança de reformar à humanidade ou na extirpação do mal, ele sabe que

este dilaceramento está inscrito numa dimensão metafísica; não há ilusão de grandeza

ou de controle do destino neste engajamento que pretende tão somente poupar o

homem concreto. Há, entretanto, uma consciência hipertrofiada da contingência e da

fragilidade humana que se erige um imperativo contra o acréscimo do sacrifício e do

mal impingido cotidianamente pela história assombrosa: “a criatura é minha

pátria(...)Mesmo humilhada a carne é minha única certeza. Só posso viver

dela(...)Por isso escolhi este esforço absurdo e sem alcance. Por isso estou na

luta.”562

Como na propedêutica pascaliana, é o pensamento dos limites a verdadeira

grandez

a em Camus; a verdadeira conquista é a lucidez em relação à própria condição

de fragilidade – a consciência dos limites intrínsecos de sua luta contra a injustiça - e

não a grandeza “geográfica”563, estabelecida pelo conquistadores ordinários.

559 MS, 165. 560 MS, 166. 561 MS, 166. 562 MS, 166. 563 MS,166. “Até agora a grandeza de um conquistador era geográfica.” Notar em PASCAL, B. Pensées (Br.347) “Caniço pensante. Não é no espaço que devo buscar minha dignidade, mas na ordenação de meu pensamento. Não terei mais, possuindo terras; pelo espaço, o universo me abarca e traga como um ponto; pelo pensamento, eu o abarco.”

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O saber conquistador que o pensamento absurdo de Camus provê é a

consciência da medida humana dos empreendimentos: ele não é destituído, portanto,

de uma certa virtude contemplativa visto que está ciente dos limites profundos da

ação humana: “Se escolho a ação não pensem que para mim a contemplação seja

uma terra desconhecida.”564A grandeza sonhada pelos conquistadores ordinários se

exterio

Estado(...)Vede como ele

os atra

raposição completa a estes

projeto

riza, afinal, em miséria histórica porque sacrifica o homem concreto em virtude

da concretização de projetos de eternidade: “Só há uma vitória e ela é eterna. É

aquela que nunca conseguirei.”565

É o perigo da política convertida em religião a que Camus absolutamente se

contrapõe, retomando, neste sentido, a ótica de Nietzsche que vê nos construtos

políticos a presença da mesma nostalgia de absoluto e de eternidade que nutre as

religiões como bem mostra o capítulo de Assim Falou Zarastustra intitulado Do novo

ídolo566: “Ainda há povos e rebanhos, nalgum sítio, mas não entre nós, meus irmãos:

aqui há Estados(...)Estado?Que é isto?vou dizer-vos a minha palavra sobre a morte

dos povos. Chama-se Estado o mais frio de todos os monstros frios(...)Destruidores

são os que preparam armadilhas para muitos e as chamam

i a si, aos muitos-demais! Como os devora e mastiga e rumina!”567 “Não

ignoremos, todas as igrejas estão contra nós. Um coração tão tenso foge do eterno, e

todas as Igrejas, divinas ou políticas, fogem do eterno.”568

O engajamento camusiano configura-se na cont

s de eternidade que escravizam e trituram os homens concretos em troca de

promessas de futuro a que Nietzsche reúne sob a égide de Estado. Para Camus, “a

grandeza está no protesto e no sacrifício sem futuro.” 569

Mas ajuntemos: pautando-se, contudo, pela defesa do homem concreto e

humilhado, ele não se imiscui dos enfrentamentos cotidianos visto que a revolta se

nutre do mesmo elã digno e desafiador que alimenta as revoluções: “ Uma revolução

é sempre contra os deuses(...)Trata-se de uma reivindicação humana contra o seu

564 MS, 165. Sobre a escolha pela ação histórica Camus diz: “Não pensem, porém que isto me agrada.” Esta contrariedade com a participação na história Sartre ironizará na correspondência de

”, como veremos adiante.

ltado destinado à analise da O novo evangelho.

HE, F. Assim falou Zaratustra, p,65.

omo a criação artística absurda, este engajamento histórico absurdo é livre e gratuito.

“rompimento565 MS, 166. 566 Camus intitula, como veremos adiante, o capítulo d´O Homem Revosecularização da nostalgia de eterno pela política de567 NIETZSC568 MS, 167. 569 MS,166. C

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destino: a reivindicação do pobre é apenas um pretexto. Mas só posso captar esse

espírito em seu ato histórico, e é aí que me junto a ele.”570

Se no fundo resta qualquer coisa de insensato e vão nestes combates

cotidianos que farão do engajamento histórico uma das atitudes possíveis do absurdo -

visto que “no fim de tudo isso, apesar de tudo, está a morte”571 – o homem camusiano

entretanto não relegará esta disciplina de fogo, “exalto o homem diante do que o

esmaga, e minha liberdade, minha rebeldia e minha paixão se unem nessa tensão,

nessa clarividência e nessa repetição desmedida.”572

Se o sonho de Grandeza e de Verdade dos Impérios destila seu fel, sua

miséria, no martírio humano pela história, em contrapartida Camus reconhece na

fragilidade absoluta, na contingência e na miséria radical destes rostos humanos

aprisionados neste cotidiano ferrenho, a Grandeza absoluta de um gesto ou de uma

paixão singulares: “Rostos tensos, fraternidade ameaçada, amizade tão forte e tão

pudica dos homens entre si, estas são as verdadeiras riquezas, porque são

perecíveis.”573 “Como não entender que, nesse universo vulnerável, tudo que é

humano

da, mas também encontram os únicos valores que admiro, o homem e

seu sil

do último pensamento

e apenas humano adquire um sentido mais ardente?”574Em Camus, como em

Pascal “A miséria se conclui da grandeza e a grandeza da miséria.”575

Apesar de horrenda, a história é o único cenário humano e por conseguinte lá

encontra-se também a magnífica beleza de que a vida é capaz: “lá encontram a

criatura mutila

êncio.”576(...) “As chamas da Terra valem tanto quanto os perfumes

celestes.”577

Camus re-encontra a verdadeira grandeza na exegese do homem comum: nos

sentimentos nobres que silenciam e nos pequenos gestos miseráveis que revelam esta

lucidez clarividente e amarga que almeja o pensamento absurdo quando lhe vêem a

certeza da incapacidade de salvar o homem, “na extremidade

ão as verdadeiras riquezas

570 MS, 166. 571 MS, 167. 572 MS, 166. 573 MS, 167. 574 MS, 167. “...estas s (...)no meio delas o espírito capta melhor seus poderes e seus limites.” 575 PASCAL, B. Pensées (L.122-Br.416)

576 MS, 167. 577 1MS, 167.

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do con

a num esforço considerado estéril(...)exige um

esforço

umana, tão peculiar à Camus, que não obstante seja o

tema central de O Homem Revoltado, como v os, já se entrevê na moral do absurdo

descrita

denado à morte, aquele cadarço de sapato que, apesar de tudo, percebe a

poucos metros, bem na beirada de sua queda vertiginosa.”578

Todavia “carecer de esperança não equivale a desesperar.”579 Assim como o

criador alça sua dignidade não de sua obra, mas da disciplina de combate contra os

próprios limites que ela lhe impõe, o engajamento camusiano alça a própria dignidade

não de seu sucesso em amenizar o sofrimento humano, mas no próprio combate

intermitente, cotidiano e, no limite, vão, no qual sua solidariedade metafísica o

engaja. É este o testemunho perturbador de toda sua dignidade: “a revolta tenaz

contra sua condição, a perseveranç

, um domínio de si, apreciação exata dos limites do verdadeiro, ponderação e

força(...)Tudo isto«para nada».”580

Como veremos oportunamente, os voluntários da brigada sanitária de A Peste

encarnarão este engajamento contra a história fundamentado na solidariedade e na

compaixão581 pela condição h

im

em O Mito de Sísifo.

*

É extremamente importante notar que esta concepção que poderíamos

considerar interrogante de engajamento de Camus, se efetiva e inscreve num

presente imediato. Ler as Cartas a um amigo alemão permite observar do

balestreiro582 do projeto camusiano, os escombros da história que começam a se

desmanchar sobre ele. No prefácio da edição italiana publicada depois da guerra,

Camus esclarece sobre as circunstâncias de sua elaboração iniciada em julho de

entam.”(MS, 168) Ele se referirá à

es entorna. Visto o horizonte belicista do século XX, a analogia

578 MS, 138. 579 MS, 169. 580 MS, 131. 581 “compaixão(...)por consciência de nossa condição insignificante(...)é a única compaixão que nos parece aceitável(...)são os mais corajosos entre nós que a experimcorajosa compaixão também em O Homem Revoltado(HR, p.700). 582 A metodologia de explicação histórica deste trabalho será, na medida do possível, a técnica do balestreiro, isto é , encontrar balestreiros por intermédio dos quais, de dentro dos autores, possamos vislumbrar aspectos da realidade que lhdo balestreiro nos parece apropriada.

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1943583: “Elas foram escritas e publicadas na clandestinidade. Elas tinham um

objetivo que era de esclarecer um pouco o combate cego em que nós estávamos...”584

Ainda em 1943, publicando clandestinamente no segundo número da Revue

Libre, Camus, que se tornará Editor chefe do jornal clandestino Combat, o mais

importante da França durante o período de ocupação, de 1944 a 1946, exprime, além

da disp

, em crianças desencarnadas...”586 Foi preciso o

espetác

osição em afrontar os percalços históricos, suas reticências morais em relação

à luta: “é muito(...)avançar em direção à tortura e à morte, quando se têm completa

certeza que o ódio e a violência são coisas vãs por si mesmas(...)é muito bater-

se(...)desprezando à guerra.585

A escolha por matar para defender seu estilo de vida, sua liberdade, não é uma

alternativa fácil e evidente no plano moral. Camus estima inclusive que deve-se a uma

espécie de recusa íntima da guerra que seu povo sucumbiu tão facilmente à invasão de

seus algozes: “(...)nós pagamos muito caro. Nós pagamos com humilhações e em

silêncios, em amargores, em prisões, em manhãs de execução, em abandonos, em

separações, em fomes cotidianas

ulo cruel da ignomínia para que pudessem vencer à repugnância de descer,

eles mesmos, à ignomínia da violência: “ Nos foi necessário todo este tempo para ver

se nós tínhamos direito de matar os homens, se nos é permitido acrescentar(ajouter)

à atroz miséria deste mundo.”587

Talvez não seja excessivo notar a contextualização metafísica que podemos

conferir a esta frase acima, mediante as concepções recentemente assinaladas em O

Mito de Sísifo: sabemos que a ação não pode redimir completamente o homem de um

dilaceramento antes de tudo metafísico. A ação histórica arrisca a realimentar a

engrenagem da morte. Contudo, é o imperativo da manutenção da vida, imperativo

supremo do absurdo, que comanda o engajamento histórico: ele é “desafio”,

“obstinação”, “revolta” contra à injustiça e contra o sacrifício dos homens concretos.

A realidade da guerra é uma atualização humana da indiferença assassina do cosmo, é

um mecanismo que desdenha da fragilidade humana, que tritura e escraviza, uma

583 As quatro missivas que compõe as Lettres à un ami allemand, foram escritas respectivamente em julho de 1943(Revue Libre em publicação clandestina), dezembro de 1943(Cahiers de la Libération), abril de 1944(Libertés) e julho de 1944(Revue Libre). Foram publicados juntos após a libertação na

A. Lettres à un ami allemand(Doravante, LA) in Essais. p.219 Gallimard. 584 CAMUS, 585 LA, 222. 586 LA, 223. 587LA, 223.

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evidência indiscutível e nefasta contra a qual a revolta se debate. Mas, entretanto, é à

contragosto moral que se dá a amarga liberdade de engajar-se nas armas: “Nós

tivemos que vencer nosso gosto pelo homem, a imagem que fazíamos de um destino

pacífico, esta convicção profunda em que estávamos, que nenhuma vitória paga, visto

que a mutilação do homem é sem retorno.”588

O engajamento de Camus se apóia nesta “nuance” metafísica, no assentimento

a um pa

a e a astúcia.”589 Imerso no

elã bel

nidade do Reich à rivalização da política com um céu vazio, recipiente

do qua

radoxo que se mostra constitutivo: efetiva-se entre a certeza da necessidade de

lutar pelos homens concretos e a suspeita de que ação histórica não ameniza de

maneira absoluta seus sofrimentos. Como podemos acompanhar ao longo da carta, no

limite, o engajamento histórico de Camus é descrito como um prolongamento do

engajamento contra a condição de sofrimento e de injustiça que é a condição humana.

A disparidade profunda entre Camus e seu colega alemão se daria pela

compreensão diferenciada das conseqüências éticas diante deste diagnóstico comum

da absurdidade da condição humana. Na visão de Camus, a visão alemã sobre o

absurdo, se alicerça numa ideologização do sentimento do absurdo que sedimenta,

pouco a pouco, interpretações assassinas da realidade e que findam por instaurar a

legitimação da voracidade: “Jamais acreditaste no sentido deste mundo e extraíste a

idéia que tudo era equivalente e que o bem e o mal se definiam pelo que deles se

queria. Supuseste, que na ausência de toda moral humana ou divina os únicos valores

eram os que regiam o mundo animal, a saber, a violênci

icoso de sua época, à constatação do absurdo se degenera em seu colega

alemão, no niilismo, na desmesura e no desprezo pela singularidade humana:

“Concluíste que o homem não era nada e que se poderia matar sua alma, que, na

mais insensata das histórias, a tarefa do indivíduo não poderia ser senão a aventura

da potência, e sua moral, o realismo das conquistas.”590

Camus deriva diretamente, e sem reservas, a postura niilista e imperialista

alemã de sua ambientação ideológica e metafísica, creditando à indiferença à vida e a

vontade de eter

l o Estado visa se apoderar: “Vês, do mesmo princípio tiramos morais

diferentes(...)Visto que estavas em luta contra o céu, repousaste nesta fatigante

aventura na qual tua tarefa é mutilar as almas e destruir à terra. Para dizer tudo,

588 “a criatura é minha pátria(...)Mesmo humilhada a carne é minha única certeza. Só posso viver so escolhi este esforço absurdo e sem alcancedela(...)Por is . Por isso estou na luta.”MS, 166.

589 LA, 240. 590 LA, 240.

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escolheste a injustiça, te colocaste com os deuses. Sua lógica, não é senão,

aparente.”591

Outro é o elã camusiano, que, se atendo também à constatação do absurdo,

deriva dele, uma atitude oposta; crê o combate histórico como uma instância do

engajamento contra a injustiça cósmica: “Onde está a diferença? É que aceitas

levianamente desesperar e eu jamais consenti. É que admites o bastante a injustiça de

nossa condição para resolver à ela acrescentar(ajouter), enquanto que me parece que

o homem deveria afirmar a justiça para lutar contra a injustiça eterna.”592

Se o espírito genuíno da revolta é mantido, o indivíduo não pode consentir à

injustiça da condição humana, nem ajuntar à sua miséria cotidiana. Este princípio é

regulad

atação do absurdo pelo niilismo, Camus contrapõe sua

concep

or também das análises históricas de Camus. Como dirá posteriormente em O

Homem Revoltado, o assentimento total à indiferença e à injustiça do cosmo, “tudo

aceitar”, equivale a tudo permitir a si e aos outros. Pior do que permitir o sofrimento

individual, “tudo aceitar” significa legitimar à opção dos tiranos pela escravidão e

pela aniquilação totais.

À deturpação da const

ção de engajamento vinculado às origens da revolta. Camus é extremamente

claro quando enuncia, portanto, a premissa metafísica de sua ação histórica, balizada

por uma rememoração vigilante do significado das origem de seu combate, “afirmar a

justiça para lutar contra a injustiça eterna. Criar felicidade para protestar contra o

universo de infelicidade.”593

No engajamento interrogante de Camus, o afrontamento à história é, assim,

uma das faces inevitáveis do confronto do homem com seu destino, um dos aspectos

da condição humana a ser inevitavelmente confrontado por esta obstinação revoltada

que se quer insubmissa à injustiça e ao sofrimento: “Eu, recusando este desespero e

este mundo torturado, queria somente que os homens, reencontrem sua solidariedade

para entrar em luta contra seu destino revoltante.”594

Interessante assinalar que Annick Jauer595 não se isenta de notar à atmosfera

pascaliana das Lettres no que se refere à fundamentação pelo coração desta luta

contra à injustiça que é, antes de tudo, um clamor metafísico de unidade e .

0.

591 LA, 240-1592 LA, 240. 593 LA, 240. 594 LA, 24595 JAUER, A. Absurde et révolte dans les Lettres à un ami allemand in Albert Camus : la révolte. p.212.

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felicidade:“...não tenho nenhum argumento a lhe opor, senão um gosto violento da

justiça que, enfim, me parece tão insensato quanto a mais intempestiva das

paixões.”596A indignação, a insubmissão, a revolta contra o destino aterrador, mas

também o senso dos limites, e os elãs de felicidade e unidade que constituem a força

da justa revolta são sentimentos que simplesmente brotam da experiência camusiana

do absurdo, como a evidência de uma paixão, fundamentando, ainda que

sentimentalmente, o combate contra a história que é, indiscutivelmente herdeiro de

uma lu

ngajamento camusiano consiste, portanto, nesta re-

dignific

ta mais ampla pela dignidade humana: “Eu escolhi à justiça(...)para

permanecer fiel à terra. Continuo a crer que este mundo não tem um sentido superior.

Porém, sei que se alguma coisa nele tem sentido é o homem, pois ele é o único a

exigir um.”597

A face profunda do e

ação do homem e de suas exigências, de sentido, mas também de felicidade,

face às engrenagens da finitude e da injustiça, seja na figura da história, ou do destino:

“Este mundo tem pelo menos a verdade do homem, e nossa tarefa é de lhe dar razões

contra o próprio destino.”598

Estas considerações acerca das relações entre o destino humano e a história

nos permite sondar melhor a peculiaridade do engajamento de Camus, visto que sua

efetivação se mostra mediada e vinculada internamente pelas considerações

filosóficas acerca do absurdo da existência. A passagem seguinte da quarta carta, que

será, como veremos oportunamente, objeto de crítica da parte da dupla Jeanson-Sarte,

é bastante significativa da resistência de Camus de legitimar o acréscimo de

infelicidade ao mundo, resistindo maximamente à conivência com os meios

necessários ao combate histórico, mesmo quando se destinam a minimizar os males

da tirania e da desmesura: “Mas vocês fizeram o que era preciso, e nós entramos na

História. E durante cinco anos, não foi mais possível gozar do grito dos pássaros na

tepidez da tarde(...)Nós estávamos separados do mundo, pois há cada momento do

mundo se povoava de imagens mortais.”599

Na quarta carta, a natureza reaparece, em contraponto com a miséria da

história. O engajamento camusiano tem por premissa restaurar esta relação originária

596 LA, 240. “Estas noites de julho são, a um só tempo, leves e pesadas. Leves no Sena e nas árvores,

raçãopesadas no co daqueles que aguardam a única aurora que doravante eles desejam.” (LA, 239.) 597 LA, 241. 598 LA, 241. 599 LA, 241.

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do homem com a natureza e consigo mesmo que a necessidade do engajamento

histórico obnubila. É neste sentido que Michel Melançon considera que, para Camus,

a história: “perturba às relações do homem com a natureza”600. O homem re-encontra

sua grandeza, na apreciação de sua frágil figura diante desta magnitude que lhe

ultrapassa, ali ele descobre seus limites, mas também sua nobreza e lucidez. Como

vimos em O Mito de Sísifo, o homem, a natureza e a exigência de lucidez que nasce

do confronto entre ambos, estes são os protagonistas personagens do drama da

existência. O absurdo, donde nasce a revolta estão ali. Nesta dimensão cósmica do

drama da existência nasce também a solidariedade metafísica que dignifica a

existência humana. A natureza, oráculo dos limites, é enfim, o seu vinculo profundo

com a própria dignidade, é o espelho no qual o homem se vincula ao que ele é, para

além da história, um ser vivo, perplexo diante da própria fragilidade. Ora, a História,

para Ca

morte contra

a qual

erenciação das engrenagens trituradoras de Clio.

mus, é uma variante terrível e incontornável neste delicado equilíbrio no qual

o homem já se confronta originariamente contra sua condição finitude. Com suas

evidências que esmagam, a História cinde as vias do re-encontro da dignidade

homem: “Há cinco anos, e não estão asseguradas sob esta terra manhãs sem agonia,

tardes sem prisões, meios-dias sem carnificinas.”601

A História mimetiza e potencializa ao infinito a engrenagem da

se insurge o homem absurdo, cindindo-o de seu elã de dignidade que ele

estabelece em suas vivências pessoais e intransferíveis, em seu espelhamento e em

sua convivência cotidiana com a natureza que lhe aprimora, lhe elucida e dignifica, no

exercício de uma atenção devotada à vida que está para além das exigências de

mecanização e de indif

Os termos com as quais Camus define a história são indícios da suspeita que

lhe devota: “circo da história”602, “prisão da história”603, “mundo infernal”604,

“mundo ressecado pelo ódio”605, “mundo do assassinato”606, “nódulo”607,

ON, M. Albert Camus. Analyse de sa pensée. p.93.

ia, dezembro de 1957, II, 1079. 9.

600 MELANÇ601 HR, 241. 602 Conferênc603 HR, 48604 I, 334 605 II, 400. 606 I, 351. 607 II, 363.

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“espessura”608, “a servidão, a injustiça, a mentira são as pestes....Estas pestes são

hoje a matéria mesma de nossa história.”609

Para Camus, enfim, não obstante amparado pelo clamor da revolta, o

engajamento histórico mostra-se, no entanto, um exercício penoso, executado com

profundas relutâncias morais e filosóficas: “Sim, foi necessário seguir-lhes. Mas

nosso empreendimento difícil consistia em segui-los na guerra, sem esquecer-se da

felicidade.”610 “Foi necessário entrar na vossa filosofia, aceitar parecer um pouco

convosco(...)Nós fomos obrigados a vos imitar para não morrer.”611

Talvez não seja excessivo notar a importância da sutileza desta concepção

camusi

lvez não seja excessivo sublinhar que Camus, num momento

extrem

ana do engajamento, pautado por exigências metafísicas e morais, expresso em

meio a um “combate cego” no qual, no período em questão, seu país verdadeiramente

perecia. Do balestreiro camusiano, chefiando clandestinamente o jornal Combat neste

período ímpar, podemos entrever a atmosfera que ambientam estas palavras escritas

em junho de 1944: “Escrevo de uma cidade privada de tudo, afaimada, mas não

ainda apequenada.”612

É neste ambientação na qual se articula uma revanche sangrenta que Camus

esforça-se para exprimir os “escrúpulos”613, o rigorismo moral, os limites, e a

«certitude du coeur» que legitimam a escolha pelo combate, “eis porque nós

aceitamos agora a espada, depois de termos nos assegurado que o espírito estava

conosco”614. Ta

amente grave, lembra seus compatriotas - sedentos de justiçamento, e prestes a

virar o jogo da História, prontos a encarnar o papel de senhores comme il faut - das

origens de sua revolta. A grandeza da Resistência, lembra oportunamente Camus, não

está vinculada ao ódio, mas sim à exigência de vida, não é necessário mimetizar à

ignomínia miserável de seus algozes, é preciso “segui-los na guerra, sem esquecer da

felicidade”. 615

É mister sublinhar que Camus contrapõe à lógica das ideologias que conduz à

guerra,

e à “tragédia da inteligência da Europa” que é a História Contemporânea, às

608 II, 405.

A. Lettres à un ami allemand. (Doravante LA)p. 241. 609 II, 1073. 610 CAMUS, 611 LA, 242. 612 LA, 227. 613 LA, 223. 614 LA, 224. 615 LA, 241.

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evidências do coração que, sentimentalmente fundam esta medida da revolta que

lucidamente toma a fragilidade da condição humana como parâmetro de sua

insubmissão: “para sermos fiéis à nossa fé, seremos forçados a respeitar em vós o

que não respeitais nos outros homens(...)nós queremos vos destruir em vossa

potência, sem vos mutilar nas almas.”616

Articulando-se como que internamente à concepção do engajamento absurdo

descrita no capítulo Os conquistadores em O Mito de Sísifo,o legado das Cartas é,

afinal, bastante significativo se pretendemos compreender o horizonte pelo qual se

pautará o engajamento camusiano, isto é, buscando um equilíbrio difícil entre uma

moral da vida e às exigência de seu tempo, comprometido com a morte. À miséria da

história

o elã à dignidade e na

conscie

reto, mas conservando, entretanto, um desgosto expresso

pelos m

ente, rememorando suas

, Camus opõe à grandeza do reconhecimento da história como miséria;

reconhecimento da fragilidade da vida (“que a mutilação do homem é sem retorno”) e

a conscientização de que está na origem da revolta, n

ntização insubmissa da fragilidade da condição humana e de seus limites, a

fórmula da “grandeza que nos mobiliza”617. Mantendo o paradoxo da existência

humana absurda, Camus engaja-se na miséria da História, pela grandeza da

singularidade humana.

Outras características das Cartas valem também ser mencionadas. Camus

procura não diabolizar o inimigo (o que seria compreensível num estágio de guerra

total), mas compreendê-lo na limitação de sua perspectiva.

Esforça-se para compreender às conseqüências lógicas do niilismo presente

na ótica alemã, cindindo suas justas constatações iniciais sobre o absurdo da vida, de

suas derivações morais aterrorizantes. Ele procura notar que ambos partilham da

mesma perplexidade inicial sobre a absurdidade.

Camus exige um engajamento ferrenho e obstinado na luta armada pela

preservação do homem conc

eios da história, isto é, pela violência: “Entramos na história com o desprezo

que convêm.”618 A expressão sem véus desta reserva em relação à história da

violência, entremostra que o assassinato não pode ser legitimado profundamente e que

o engajamento, portanto, não pode ser irrestrito e cego. Ciente de sua limitação

intrínseca, o engajamento camusiano se reavalia continuam

616 LA, 242-3. 617 LA, 222. 618 CAMUS, A. Essais. p. 1466. Citado por RIOUX, J-P. Camus et la seconde guerre mondiale in Camus et la Politique(J-Y-Guérin). p. 97.

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origens

relação ao futuro dos algozes alemães que serão, em breve, vítimas

da reva

C

, suspeitando de si mesmo, e, neste sentido, podemos considerá-lo como um

engajamento interrogante.

Outra característica do texto de Camus é o desvelo de uma sincera

preocupação em

nche francesa. Ele antecipa, assim, o engajamento camusiano pós-guerra,

centrado sobre o tema do moto-contínuo da violência, na manutenção no horizonte

histórico da dualidade entre vítimas e carrascos da história.

amus busca percorrer, enfim, ambos os campos da batalha, buscando a

justeza e o equilíbrio no movimento e na agilidade do pensamento, procurando

incorporar também à ótica do inimigo no estabelecimento de suas próprias

convicções.

Não é à toa, portanto, a escolha da epígrafe para um dos mais significativos

textos sobre o engajamento interrogante de Camus: “Não mostramos nossa grandeza

ficando numa extremidade, mas tocando as duas ao mesmo tempo. Pascal.”619

julgamos bem; velhos demais, tampouco. Se meditamos bastante, se meditamos

demais, teimamos, e encasquetamos...620 “Infinito. Meio. Quando se lê rápido demais

Talvez não seja excessivo ressaltar que, de fato, a composição das Lettres faz

jus à epigrafe pascaliana. Além de manter o caráter paradoxal da existência,

admitindo a tensão entre grandeza do homem concreto e miséria da história humana,

Camus atualiza, num momento fundamental da história francesa, um modus operandi

praticamente esquecido da razão pós-cartesiana. A inclusão da perspectiva do outro -

das verdades do outro - na análise da realidade, mesmo no auge de uma guerra

bárbara.

Se nos ativéssemos, por exemplo, ainda que por um minuto, aos fragmentos

sobre o olhar nos Pensamentos, veríamos que eles ilustram esta reformulação crítica

do próprio conceito de Verdade presente no âmbito do Esprit de Finesse, âmbito das

análises das relações humanas, no qual o paradigma do engano consiste em omitir a

perspectiva contrária. Se o olhar é a metáfora preferencial para a razão no século

XVII, as análises relativistas pascalianas ilustram este resultado do mundo pós-

galilaico, a saber, a pulverização da realidade na poeira das verdades relativas,

atreladas aos seus pontos de vista particulares: “Se somos jovens demais, não

619 LA, 217.PASCAL, B. Pensées (L.681- Br.353)

1) 620PASCAL, B. Pensées (Br.21-L.38

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ou devagar demais não entendemos bem. »621 “ Não somente olhamos as coisas de

outros ângulos, mas com outros olhos ; não temos maneiras de achá-las iguais. »622

“Dir-se-ia que o homicídio é mau(…)Mas, que dirão que seja bom? Não matar?não,

pois as desordens seriam horríveis, e os maus matariam os bons. Matar? não, pois

isto destrói a natureza. Nós não temos nem verdadeiro, nem bem senão em parte e

misturado ao mal e a falsidade.623 “ O porto julga o que estão no barco, mas onde

encontrar um porto na moral?”624

De certo, o que resta do bom senso contemporâneo, deve muito ao esforço

pascaliano de pensar a política como a administração de um conflito entre verdades

contrárias, como bem compreende Pierre Bourdieu625. Pascal compreende o homem

no meio do universo(Br.72-L.199), destinado a procurar, também em política, uma

medida entre os extremos das paixões humanas. A amplitude e a agilidade, a busca

pela verdade oposta, que são imperativos da reflexões políticas, provam que, para

Pascal, a procura do “juste milieu”, não pressupõe nada de extático e “confortável”.

Em Pa

a ficando numa

extremidade, mas tocando as duas ao mesmo tempo.”627

Estas características de um pensamento vinculado ao esforço metódico do

reconhecimento da alteridade, e certo de seus limites e de seu valor perspectivo,

interrogante, Camus guardará para si. Como omenta numa entrevista à Revue du

Caire em 1948, “o erro vem sempre de uma exclusão, diz Pascal.”628

scal, neste sentido preciso, seguramente, precursor de Camus, à procura da

medida, do pensamento justo, implica movimento, amplitude e equilíbrio: “ A

natureza nos pôs de tal modo no meio que se nós alteramos um lado da balança nós

alteramos também o contrário...”626“Não mostramos nossa grandez

c

*

621PASCAL, B. Pensées (692-723) 622PASCAL, B. Pensées (672-124) 623 PASCAL, B. Pensées (385-905) 624 PASCAL, B. Pensées (383-697) 625 Bourdieu fala de Pascal como antídoto aos “sonhos de onipotência” do pensamento ocidental. BOURDIEU, P. Meditações Pascalianas. p.11. O livro de Bourdieu é uma amostra do reconhecimento contemporâneo de Pascal no que se refere ao esforço multipolar de compreender a política de modo complexo e interrogante, contraposição à fundamentação “escolástica”, absolutista e totalizante, almejada pelas ciências humanas. Notar especialmente à introdução e os capítulos, III e IV. 626 PASCAL, B. Pensées (70-519) 627 PASCAL, B. Pensées (353-681) 628 CAMUS, A. Œuvres Complètes. p.379. (Trois interviews)

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5) Camus em Co

mbat: à procura do juste milieu

do no meio que, se trocamos também o

outro: Je fesons, zôa trékei. Isso me leva a crer que há

a população sob os auspícios do governo de Vichy e sob à égide da

propag

continua também a guerra total contra a totalidade da França(...)Na verdade isto

“A natureza pôs-nos de tal motrocamos um lado da balança

molas em nossa cabeça, dispostas de tal maneira que, se toca uma, toca-se também a contrária.”(Pascal, B. Pensées. Br.70-L.519)

“O esforço que fiz para estabelecer meu próprio equilíbrio não é inteiramente vão. O que eu disse ou encontrei, pode servir, deve servir a outros.”(Camus, A. Carnets III)

A recusa da diabolização do inimigo não significa, de maneira alguma,

relaxamento no espírito de resistência à injustiça que anima Camus, implicando aí o

uso da força quando requerida. Observar sua evolução como editorialista da mais

importante publicação clandestina durante a ocupação alemã – o jornal Combat - nos

permite sondar a dimensão efetiva da busca pela “justa medida”, e pelo equilíbrio,

características fundamentais da orientação ética camusiana.

Em editoriais do Combat clandestino no período entre março a julho de 1944,

por exemplo, o que podemos divisar do “balestreiro” camusiano é o esforço, sem

nuances, de mobilizar os franceses em prol da resistência, desacreditando a

neutralidade, o conformismo e o espírito de colaboracionismo que se apoderaram de

grande parte d

anda massiva do Reich: “Vocês não podem dizer «isto não me concerne». Pois

isto lhes concerne. A verdade é que hoje a Alemanha não somente acionou uma

ofensiva contra os melhores e os mais orgulhosos de nossos compatriotas, ela

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concerne à todos(...)Vocês devem resistir pois isto nos concerne e não existem duas

Franças.”629

É de sobremaneira importante sublinhar que este editorial, que é assinado

coletivamente por Combat630, elenca e divulga as práticas legitimadas pela resistência

no esforço de guerra: “As sabotagens, as greves, as manifestações organizadas com o

conjunto da França são as únicas maneiras de responder a esta guerra. É isto que

esperamos de vocês.”631

Neste sentido, podemos divisar que o próprio Camus acorda com a vicissitude

par excellance do engajamento histórico, visto que, neste momento preciso de

radicalização da Segunda Grande Guerra, não apenas admite, mas apregoa sem

hesitaç

dverte Lévi-Válensi, há na justificativa ética da

ação da

ermitindo antecipar um nexo direto entre a postura

ética d

ão a utilização da violência com a finalidade de lutar contra a ocupação.

Endossado pelo elã de solidariedade contra a injustiça, Camus prescreve: “À ação nas

cidades para responder aos ataques no campo! À ação nas fábricas! À ação nas vias

de comunicação do inimigo. À ação contra a Milícia: todo miliciano é um assassino

possível.”632(...) “À guerra total, resistência total.”633

Roger Quilliot nota bem que, apesar deste editorial ser fruto, em tese, de um

esforço coletivo de redação como a

resistência proposta neste editorial de Combat uma atmosfera absolutamente

camusiana. Os termos que a publicação clandestina utiliza nos remetem à

fundamentação do engajamento contra a miséria da condição humana presente em O

Mito de Sísifo, “Nós aportaremos todos juntos esta grande força dos oprimidos que é

a solidariedade no sofrimento...”634

E Quilliot vai além, nos p

o engajamento histórico no difícil contexto do Combat, com a obra que

imortalizará de Camus posteriormente: “o acento que é posto no fato de que toda a

comunidade francesa é concernida pela Ocupação e pela Resistência, e a idéia que o

sofrimento partilhado é uma força para os oprimidos são os temas esseciais d´A

Peste, em gestação na época.”635

629 VALENSI, J. Combat clandestin: mars 1944. Cahier Albert Camus 8, pp121-2. 630 VALENSI, J. Cahier Albert Camus 8, p.121. 631 Idem. Combat clandestin: mars 1944. p. 121-5. 632 Idem. Combat clandestin nº55: mars 1944. p. 125. 633 Idem. Combat clandestin: mars nº55 1944. p. 121. 634 Idem. Combat clandestin: mars nº55 1944. p. 125. 635 Idem. Combat clandestin: mars nº55 1944. p. 122.

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De fato, se acompanhamos a evolução dos editoriais do clandestino Combat

calcado à sombra das misérias da guerra, re-encontramos com bastante evidência os

norteadores da atitude de revolta diante da absurdidade cujos prenúncios vimos ser

engendrados desde o tenro início de O Mito de Sísifo. Em boa parte dos editoriais, a

propedêutica camusiana está presente: A evidenciação da absurdidade, o

inconformismo diante da injustiça, a partilha do sofrimento que evolui em força

solidária de transformação, em ação consciente face à adversidade.

Contudo, é importante perceber que, a medida que os combates pela liberação

se inte

são: estamos vacinados contra o

horror.

Camus contrapõe à quantificação mecânica, fria e desencarnada dos números,

a força do relato humanizado da morte de seus compatriotas, com seus suores, seus

nsificam, a pluma camusiana do Combat Clandestin reivindica de maneira

cada vez mais intensiva, a única resposta que lhes parece possível diante da opressão

inclemente. O Combat nº 57, por exemplo, de maio de 1944, cujo título Durante três

horas fuzilaram os franceses, de início, já nos re-ingressa no esforço típico de Camus

de encarnação no outro636. Sua intenção “belicosa” pode, até mesmo ser

surpreendente para um leitor desavisado que imagina o engajamento camusiano um

pacifismo ipsis literis.

Neste texto específico Camus não deixa margem à dúvidas sobre a rigidez do

compromisso de que é portador quando se mostra o porta-voz par excellance da

Resistência Francesa. Ele se atêm, expressamente, à insensibilização progressiva que

vitima àqueles que sobrevivem em meio ao morticínio reiterado dos seus e,

prevenindo um esmorecimento da Resistência pela banalização da perda, relata, com

o talento que lhe é peculiar, a cena estarrecedora de um fuzilamento em massa

ocorrido em Ascq: “ É preciso dizer as coisas como

De começo, todos estes rostos desfigurados pelas balas e pelas botas, estes

homens triturados, estes inocentes assassinados, nos forneciam a revolta e o desgosto

que eram necessários para o ingresso consciente na luta. Agora, a luta de todos os

dias recobriu tudo e se nós não esquecemos nunca suas razões, pode nos ocorrer de

perdê-las de vista.”637(...) “Não sei se se imagina suficientemente o que está por trás

deste cálculo brutal. Mas é possível ler-se sem uma revolta e um desgosto de todo o

ser esta cifras simples: 86 homens e três horas.”638

636 Estilo literário que pode, a bem da verdade, ser considerado, com propriedade também, estilo

s 8, p.129. .

filosófico de Albert Camus. 637 VALENSI, J. Combat Clandestin, nº 57, mai 1944. Cahier Albert Camu638 Combat Clandestin, nº 57, mai 1944. Cahier Albert Camus 8, p.130-1

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rostos

inutos para cada um deles. Três

horas,

espetáculo de aventuras imaginárias. Durante três horas,

minuto

trânsitos de medo, cristalizados implacavelmente na ampulheta petrificada de

mais um dia de guerra que arrisca resvalar na indiferença: “Oitenta e seis homens

como você que lê este jornal passaram diante dos fuzis alemães, 86 homens que

poderiam encher três ou quatro cômodos como o que você está , 86 rostos inquietos

ou indômitos, transtornados pelo horror ou pelo ódio.”639

Croquis, por croquis, Camus esboça sua Guernica, na tentativa de

presentificar o sofrimento, compartilhá-lo, ou, antes, impingi-lo aos leitores -

culpados de antemão pelo simples fato de se darem ao luxo de respirar um dia após

mais esta tragédia coletiva: A culpabilização generalizada sobe à garganta; “E a

carnificina durou três horas, pouco mais de dois m

o tempo que alguns neste dia passaram jantando e conversando

agradavelmente com os amigos, o tempo de uma representação cinematográfica na

qual outros riam com o

após minuto, sem uma pausa, numa só cidade da França, as detonações se

sucederam e os corpos se retorceram ao chão.”640

A estratégia da “encarnação” da absurdidade é evidentemente camusiana, não

é à toa que Lévi-Válensi, entre outros, tributam o editorial nº 57 de Combat

inteiramente à Camus.

O que, entretanto, é extremamente significativo, tanto da complexidade do

engajamento de Camus, quanto da especificidade da exigência do momento histórico

da Segunda Grande Guerra, é o sentido estratégico que ganha esta evidenciação da

absurdidade, este desvelo da “injustiça”, na “propaganda” da revolta, isto é, no

ultimato em prol da Resistência.

Camus pretende, sem hesitação, utilizando o recurso do croquis moraliste em

sua brilhante incursão pelo jornalismo “tornado honorável”641, incitar, a bem da

verdade, ao combate sem reservas, solidário e conivente com os extremos dos

martírios dos resistentes, e - porque não? (Se o sofrimento absurdo da condição de

guerra e a memória dos que padeceram assim o exige) – Camus almeja incitar seus

compatriotas à vingança: “Eis a imagem que é necessário guardar diante dos olhos

para que nada seja esquecido, a imagem que é necessário mostrar aos franceses que

639 Combat Clandestin, nº 57, mai 1944. Cahier Albert Camus 8, p.131. 640 Combat Clandestin, nº 57, mai 1944. Cahier Albert Camus 8, p.131. Em O Estrangeiro, o filme de Fernandel também simboliza a indiferença de Meursault diante da morte da mãe. 641 Notar a opinião de Marcel Déat, deputado socialista oportunista da III República referida no nº58 de Combat (Idem,p.137).

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restam à distância(...)Não se trata de saber se os crimes serão perdoados, mas se

eles serão pagos. E se nós temos tendência à duvidar, a imagem desta cidade coberta

de sangue e agora povoada somente de viúvas e órfãos bastaria para nos assegurar

que o crime será pago visto que doravante depende de todos os franceses e visto que

diante deste novo massacre, nós descobrimos a solidariedade do martírio e as forças

da vingança(vengeance).”642

Notemos que, no momento que Camus escolhe empregar no editorial nº57 a

expressão “força da vingança”, mesmo que tenhamos em vista, do balestreiro

camusiano, a urgência na qual este texto foi concebido, o redator sabe bem o que faz.

Ora, Camus reitera em muitas oportunidades, a necessidade de falar precisamente,

claramente. Como dirá posteriormente na importante conferência de 1946, La crise de

l´homme, a qual teremos a ocasião de analisar oportunamente, “devemos, chamar as

coisas por seu nome”643. Se Camus descreve em detalhe neste editorial, assim como

fará na conferência de 1946, este caso atroz e terrivelmente cotidiano de massacre,

nos imprimindo na mente, a imagem dantesca da guerra, “ não é em razão de seu

caráter sensacional”; É que o mundo “prefere mais freqüentemente fechar os olhos

para guardar sua tranqüilidade.”644 Coerente com este ponto de vista, a vingança,

neste momento ímpar do engajamento camusiano – no qual sua postura coincide

inteiram

surreto exige justiçamento. Este ensejo se acentua com o

avanço das tropas aliadas, com o alastramento dos focos da resistência, e, finalmente,

utubro de 1944 Combat

ente com a da Resistência “total”, não é um termo utilizado ao léu. Vingança

é o termo exigido pela circunstância, pela realidade avassaladora da injustiça. É a

vingança que é exigida e é justa, em resposta ao sacrifício dos mártires, do ponto de

vista do combate de 1944.

No editorial seguinte, como que ratificando o emprego de palavras duras, de

ressonâncias extremas, é, sem dúvida Camus que entoa a ofensiva final da

Resistência, novamente, pela voz do editorial de Combat: “A Resistência vos diz que

nós estamos num tempo no qual todas as palavras contam, todas engajam...”645

A postura de Camus, impulsionando a força das ruas, legítima em sua ânsia de

estabelecimento da justiça é, neste instante, afinal, inflexível em seu elã de efetivação

histórica imediata: o in

com o frenesi da liberação de Paris. No editorial de 18 de o 642 Combat Clandestin, nº 57, mai 1944. Cahier Albert Camus 8, p.131-2.

in, nº 58, juillet 1944. Cahier Albert Camus 8, p.136.

643 CAMUS, A. Oeuvres Complètes. La crise de l´Homme. p, 744. 644 CAMUS, A. Oeuvres Complètes. La crise de l´Homme. p, 744. 645 Clandest

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comand

escombros e sob às sombras da

história

ocasião para Camus aprofundar, amadurecer e, o que é importante,

rememorar

a, à distância, o processo doloroso da depuração(épuration): “que ela seja

rápida e bem feita.”646

Combat e Camus, assim, evoluem em seu engajamento político em direção à

construção da França democrática, mas sobre os

recente: Sem nenhuma intenção de promover o esquecimento, o que

significaria aviltar o martírio dos que padeceram.

Na ordem do dia seguinte à liberação de Paris está o debate sobre o futuro dos

traidores e colaboracionistas com a Ocupação e com o governo de Vichy. Esta

discussão será

à luz da experiência recente, traços de sua concepção original de

ões

pública

e e um pied-noir filho do povo. Malagar e

traidores”649, mas, com o decorrer do

engajamento.

*

Simone de Beauvoir, no artigo “Olho por olho” na Temps Modernes de 1º de

fevereiro de 1946, relembra o dilaceramento sofrido pela sociedade francesa no

período pós – guerra, rememorando o processo de radicalização da depuração nos dias

que seguem à liberação de Paris, com execuções sumárias, castigos e humilhaç

s impingidos aos colaboracionistas: “A partir de junho de 1940, aprendemos o

ódio e a cólera. Nós desejamos a humilhação e a morte de nossos inimigos.”647

No debate sobre a “épuration” está em jogo a oposição entre duas genuínas

aspirações filosóficas, a misericórdia e a justiça. Ele motivará à oposição entre dois

personagens que, segundo um dos grandes especialistas da atualidade na temática da

época, Jean-Pierre Guérin, representam manifestações absolutamente opostas da

sociedade francesa: “Que oposição mais paradigmática que a de Mauriac e Camus?

Uma cria da grande burguesia bordelens

Belcourt. Le Quai Conti e Saint-Germais-des-Près. Grasset e Gallimard, Le Figaro e

Combat. Um crê no céu, o outro não”648

Ambos assinam um manifesto de escritores na revista Les Lettres Françaises

pedindo “ o justo castigo dos impostores e dos

processo de aplicação das penas, discordam em relação à extensão, à eficácia e,

finalmente, o valor ético-moral da depuração.

646 Combat 18 octobre 1944. Segundo Lévi-Valensi este texto muito provavelmente é exclusivamente de Camus. 647 BEAUVOIR, S. L´oeil par l´oeil. In Revue Les Temps Modernes. p.813. 648 GUÉRIN, J-P. Portrait de l´artiste en citoyen. p, 43. 649 GUÉRIN, J-P. Portrait de l´artiste en citoyen. p, 45.

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O editorial de 03 de outubro de 1944 Combat, com acentuação extremamente

camusiana diz: “a traição que conhecemos, por sua duração, sua extensão e sua

eficácia é única na história de uma nação(...)Nós estivemos muito doentes.” O

l chefe de gabinete que continuou a viver pelo hábito sem tocar, de

outra p

ue subiram às costas do

regime

acusando o editorial de “enrijecer”, insensibilizar à opinião pública francesa já

sedenta de vingança. Mauriac, se refere ao «mal-estar da sociedade francesa» em

processo de depuração, na ótica do Combat, é uma continuidade no processo de cura

da peste do totalitarismo, um remédio amargo, como retoma o editorial de 18 de

outubro: “Digamos que a depuração é necessária.”

O editorial de Combat, apoiando fortemente o processo de depuração,

concentra-se, contudo, nos limites e no equilíbrio de sua aplicação. Antecipando um

problema que virá a ser maior no processo de depuração, o editorial pretende

resguardar às devidas proporções de cada crime, evitando assim inculpar pequenos

deslizes ao invés de perseguir os grandes criminosos: “Não se trata de depurar muito,

é questão de depurar bem. Mas, o que é uma boa depuração?É uma depuração que

respeita o princípio geral da justiça sem sacrificar de maneira alguma, vidas de

pessoas. Qual é o princípio geral da justiça? Ele está na proporção. É ridículo

sacrificar tal ou ta

arte, aos grandes responsáveis da indústria ou do pensamento.”650(...) “Há

situações sociais nas quais o erro é possível. Existem outras nas quais ele não é

senão crime.”651

É importante sublinhar que o editorial de Combat consagra o adjetivo de

“grandes responsáveis” do colaboracionismo, aos industriais e aos pensadores. Num

período em que “cada palavra compromete”, “toutes engagent”652, Camus e Cia., não

pretendem deixar incólume os peixes grandes da infâmia: os que lucraram

financeiramente com a colaboração com o nazismo e os q

legitimando-o ideologicamente. É neste contexto tenso que Camus, na voz de

Combat exprime, dia 18 de outubro de 1944, a viva opinião sobre a depuração a que

já nos referimos acima: “que ela seja rápida e bem feita.”653

No dia seguinte, num artigo do Figaro intitulado «La Justice et la Guerre»,

François Mauriac se insurge contra o demasiado vigor das opiniões de Combat,

650 Combat 18 octobre 1944. p. 264. 651 Combat 18 octobre 1944. p. 266. 652 Combat Clandestin, nº 58, juillet 1944. Cahier Albert Camus 8, p.136. 653 Combat 18 octobre 1944. Segundo Lévi-Valensi este texto muito provavelmente é excluivamente de Camus.

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meio a um sistema no qual reina a «confusão» e o «arbitrário». Mauriac acrescenta

que os franceses não podem ser esclarecidos pela imprensa, resumida a um jornal

sperança

de justi

teresses, ela não

«único»: «o da resistência»654.

A resposta do Combat vem no dia seguinte: “Nós não concordamos com

M.François Mauriac(...)Não julgamos necessário matar nas esquinas nossos

concidadãos, nem diminuir a autoridade de um governo que espontaneamente

reconhecemos. Mas não é necessário que este justo sentimento nos conduza a

depreciar nossa própria ação e a renunciar à nossa esperança mais duradoura.”655

Fica claro que a depuração que os dois autores imaginavam subscrever no

manifesto da revista Les Lettres Modernes, não é da mesma intensidade. À e

ça de Camus se contrapõe à expectativa de misericórdia de Mauriac.

Combat rebate às acusações do católico não isento de mordacidade, ironizando

o mal-estar detectado, certamente, na alta-sociedade francesa, prenhe de pavor atrás

dos terços nos dias seguintes à liberação, e retoma também a idéia de mal-estar pelo

prisma da revolta Resistente: “ Há, seguramente, um mal-estar nos espíritos

franceses. Mas não o compreendemos pelas mesmas razões de M.Mauriac. Talvez

haja gente em nosso país que tem medo. Se eles tiverem medo durante alguns meses,

digamos que isto é coisa pouca, e que, a bem da verdade, isto ajudará a sua salvação

nesta terra. Contudo há também outras pessoas que se inquietam com a idéia que,

talvez, esta nação não compreendeu ainda que, traída por certos in

poderá reviver senão destruindo estes interesses sem piedade.”656

À acusação de que teria se tornado o jornal único do pós-guerra, Combat

responde à altura, por onde podemos notar a enorme responsabilidade e envergadura

moral que sustenta o jovem argelino Camus, publicamente reconhecido como seu

principal editorialista: “Não. Esta imprensa não é tão única como parece. M.Mauriac

se queixa que ela representa somente a Resistência, mas nós temos a fraqueza de crer

que a Resistência se identifica à França.”657

A contraposição entre a ânsia de Justiça de Combat e a concepção de

depuração branda, eivada de misericórdia apregoada por Mauriac se evidencia no

decorrer do artigo, acentuando suas tintas camusianas: “Nós temos o gosto da

654 Resumo do artigo de Mauriac é proposto por Lévi-Válensi em Cahier Albert Camus 8, p.270. 655 Combat 20 octobre 1944. p.271. 656 Combat 20 octobre 1944. p.271. 657 Combat 20 octobre 1944. p.271.

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verdade.”658(...)“M.Mauriac não fala senão dos excessos desta revolução.”(...)“Mas

não podemos ignorar que ela peca tanto por suas fraquezas quanto por seus

excessos.” 659A frase seguinte inaugura um argumento que virá, futuramente, a

constituir um verdadeiro leitmotiv camusiano como veremos na análise de O Homem

Revoltado: “Nosso dever é denunciar os dois ao mesmo tempo e mostrar o justo

caminho no qual a força das revoluções se alia às luzes da justiça.”660

O célebre intérprete de Pascal, certamente não poderia imaginar um

argumento deste naipe vindo do campo adversário. O que Camus evidencia ao célebre

Monsieur, o sábio ancião sabe de cor: “Não mostramos nossa grandeza ficando numa

extremi

obrigar à destruir

uma pa

dade, mas tocando as duas ao mesmo tempo.”661

O editorial de 20 de outubro de Combat se encerra enfaticamente “pró-

depuração”, intransigente em face do dever doloroso de fazer Justiça, desvelando,

pelo brilho de sua prosa, a identidade do exigente porta-voz da Resistência: “Nosso

tempo é desses e de sua terrível lei, que é vão discutir, que é de nos

rte ainda viva deste país para salvar sua própria alma.”662

Antes de qualquer objeção da parte de Mauriac, que virá inevitavelmente dois

dias mais tarde, Camus, obcecado sobre a questão da legitimidade da depuração,

insiste em tratá-la detidamente, no editorial do dia seguinte, 21 de outubro de 1944. O

tom se mostra ainda mais filosófico, passo a passo, mais evidentemente camusiano.

Notemos que os termos do editorial retomam, paradoxalmente, a argumentação de O

Mito de Sísifo empregando até mesmo de maneira literal termos caros ao âmago

conceitual das Lettres à um ami allemand, sublinhando, com isso, o enorme problema

ético que consiste decidir por “acrescentar à miséria deste mundo.”663 “Como

apreciar levianamente um drama tão difícil que pede ainda sangue a um país que

duas guerras esvaiu de sua substância mais profunda? E como os melhores entre nós

658 Combat 20 octobre 1944. p.272. 659 Combat 20 octobre 1944. p.272. 660 Combat 20 octobre 1944. p.272. 661 PASCAL, B. Pensées (L.681- Br.353) Epígrafe das Lettres à un ami allemand… 662 Combat 20 octobre 1944. p.272. M.Mauriac, em artigo do Figaro de 22 de outubro, pedirá esclarecimentos diretamente à Camus (“um dos «cadetes»pelos quais tenho mais admiração e

o de matar os homens, se nos

simpatia, e de quem muito aprecio, habitualmente, o estilo impecável) sobre “o que recobre esta linguagem teológica.”(Figaro, 22 de outubro de 1944) 663 “ Nos foi necessário todo este tempo para ver se nós tínhamos direitera permitido acrescentar(ajouter) à atroz miséria deste mundo.”(s´il nous était permis d´ajouter à l´atroce misère de ce monde.)(Lettres à um ami allemand, Essais, 223.)

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não se perguntariam, há certas horas, se tem o direito de acrescentar à dor deste

povo e à atroz miséria desta guerra?”664

É extremamente significativa do ponto de vista da ética camusiana, as

interrogações expressas acima, debatidas publicamente por intermédio deste editorial

de Combat, que entremostram o dilaceramento ético constitutivo da ação histórica

que almeja à justeza sem, no entanto, poder prescindir da violência. A conduta

interrogante que Camus exprime nesta ocasião, nos re-inscreve no âmago do

engajamento problemático deste jovem filósofo e, de algum modo, antecipa a

complexificação progressiva de sua postura em relação à depuração: “Nós não

apreciamos com leviandade(o drama da depuração) e é necessário que o mundo

inteiro saiba. A leviandade, neste caso, seria nunca duvidar.”665

Podemos considerar a postura histórica expressa no Combat, como um fruto

amargo oriundo da tensão dilacerante entre a interrogação constitutiva entorno da

ação e a necessidade de Justiça: “Nós desconfiamos de juízes que nunca duvidam e de

heróis

idos

vertido

deração: “O problema da justiça consiste

que nunca tremeram. Mas, na extremidade da dúvida, é necessário uma

resolução.”666

Neste sentido, podemos considerar o drama da depuração ganhando

proporções trágicas da ótica camusiana. Como em Antígona, há um dever moral e

filosófico para com os mortos que nem sequer às leis da cidade podem desrespeitar.

Por mais repugnante que seja o cadafalso, ainda mais quando dele pende a própria

carne, há um compromisso com a memória que não pode ser traído segundo à ótica do

Combat de 1945: “Nós sabemos bem que no dia que a primeira sentença de morte for

pronunciada em Paris, nos assomará a repugnância. Então, será necessário pensar

em outras sentenças de morte que atingiram homens puros, em rostos quer

s ao chão e à mãos que amaríamos de apertar(...)Por mais duro que pareça,

nós saberemos então que há perdões impossíveis e revoluções necessárias.”667

É em nome da justiça e da verdade que estão no âmago da moral

revolucionária que Camus responde ao pedido de esclarecimentos de Mauriac,

condenando sua demasiada pon

le et à l´atroce misere de cette guerre.”Combat 21 octobre 1944,

275.

664 “...ajouter la douleur de ce peupp.274. 665 Combat 21 octobre 1944, p.274. 666 Combat 21 octobre 1944, p.275. 667 Combat 21 octobre 1944, p.

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essencialmente em fazer calar a misericórdia de que fala M. Mauriac quando a

verdade de todos está em jogo.”668

Perdoar traidores, do ponto de vista do principal editorialista de Combat,

significaria retornar ao marasmo da “politicagem” que engendrou conluios sórdidos e

covardes como o de Vichy. Seria traição ao conteúdo moral da Resistência, fundada

na aspiração desvelada de justiça: e a justiça, diz o Combat, possui “negras

necessidades.”669 Camus reafirma a postura expressa no editorial O Tempo do

Desprezo de 30 de agosto de 1944, “quem ousaria falar de perdão? Posto que o

espírito compreendeu enfim que ele não poderia vencer a espada senão pela espada,

posto q

finida desde o editorial

Morale

ue pegou em armas(...)quem pediria para esquecer? Não é o ódio que falará

amanhã, mas a justiça ela mesma, fundada na memória.”670

A exasperante depuração, por mais paradoxal e inadmissível que ela pareça

aos olhos do humanismo do autor das Lettres a um ami allemand é, todavia, exigência

da “revolução” defendida neste momento pelo Combat, e de

et Politique de 4 de setembro de 1944: “estamos decididos a suprimir a

política pela moral. É o que chamamos uma revolução.”671

De um prisma aprofundado, o que está em questão, é um problema ético-

político

de assumir “en pleine

lumière

clássico; da possibilidade, ou não, de reunir as magnitudes contraditórias da

força e da justiça no para apaziguamento da história.

Para o Combat de até então, ainda sob o efeito das emanações utopistas da

Resistência que se crê, como vimos, síntese da França, trata-se

”672 as contradições dilacerantes da sociedade daquele tempo, promovendo

“um esforço desmedido que equilibrará a justiça e a força.”673

Mas, veremos a seguir, passo a passo, a medida que progride a desilusão em

relação à factibilidade da utopia da revolução moral proposta pelo Combat, quando se

acumulam os conchavos e as ignomínias do cotidiano da política, a postura de Camus,

cada vez mais independente, se aproximará cada vez mais, do ponto de vista prático,

da postura ponderada de Mauriac sobre a depuração, malgrado suas radicais

divergências em matéria de pressupostos filosófico-metafísicos. A moral, veremos,

668Combat 25 octobre 1944, p.287. Essais, 1535. Texto assinado por Camus, resposta direta à Mauriac(Réponse à Combat). 669 Combat 21 octobre 1944, p.275. 670 CAMUS, A. Essais, p.259. Combat 30 août 1944, p.158. 671 Combat 5 septembre 1944, p.171. 672 Combat 21 octobre 1944, p.275. 673 Combat 21 octobre 1944, p.276.

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ainda m

etoma o abismo existente, já apontado por

Pascal,

ara e

organiz

ser vencidos, suas obras nefastas permanecem676(...)Nós

aspiramos melhor que uma dança das cadeiras(chassé-croisé)entre carrascos e

udará de campo para Camus, se re-inscrevendo, novamente, num plano

filosófico mais abrangente no qual é a História mesma que será contestada, como

prenunciavam O Mito de Sísifo e, principalmente, as Lettres.

Mauriac, por sinal, questiona a depuração desde seu projeto inicial, com base,

numa divergência “ontológica”, primordial, bastante pascaliana, entre Justiça e força.

Como os mecanismos brutais da força podem equivaler ou coincidir com à aspirações

de uma verdadeira justiça? É à força arbitrária e transtornada pelo ódio a que se

contrapõe Mauriac em seu texto de 19 de outubro de 1944 no Figaro, intitulado A

Justiça e a Guerra – que, essencialmente, r

entre duas magnitudes, segundo ele, inconciliáveis, entre a execução pela

força do arbítrio de uma justiça provisória e “sedenta” e o verdadeiro elã de Justiça

obnubilado pela névoa das circunstâncias.

O Cahier Noir de Mauriac, por exemplo, argumenta entorno da dignidade

humana, segundo J.P.Guérin, “com uma acentuação camusiana”674. Segundo

Mauriac, se o nazismo insultou, pela sua metodologia da morte, a dignidade humana,

é preciso “romper com seus métodos”: “A separação da política e da moral que nós

denunciamos com todas as nossas exíguas forças inunda e continua a inundar o

mundo inteiro de sangue. Maquiavel é o pai do crime coletivo; ele o prep

a; ele o legitima , e glorifica.(...)Nós somos desses que crêem que o homem

escapa da lei do entre-devoramento e, não somente, que ele escapa, mas que toda sua

dignidade reside na resistência que lhe opõe de todo coração e espírito.”675

Se Camus, pelo Combat de setembro, apregoa seu conceito de revolução - a

substituição da política pela moral - e por este conceito mesmo de moral,

intransigente, é, em outubro, contundente na exigência de uma depuração “rápida e

eficaz”, sem o abrandamento dos conchavos políticos, Mauriac, pelo Figaro, em

artigos de setembro e outubro, um dos quais intitulado La vraie justice, apela pelo

acordo entre moral e política, pleiteando, contrariamente, ponderação e prudência à

depuração, criticando generalizadamente o “regime policial” da França do pós-guerra,

mímese, segundo ele, dos métodos da Gestapo: “Àqueles que, na Europa, separaram

moral e política podem

674 GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen.p, 45. 675 MAURIAC, F. Le Cahier noir. Ed.Minuit, 1944. p.12-3. 676 MAURIAC, F. Vers un socialisme humaniste. Figaro 11 de outubro de 1944.(Archives ENS)

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ví (...)Um povo não pode viver impunemente na atmosfera degradante dos

regimes policiais.”

timas

auriac execra os epifenômenos da força:

“Nós ex

, como vimos, e como bem detecta J-P.Guérin, criticando a parcimônia

de Ma

as exigências(...)Um cristão poderia pensar

que a

677

Tendo assinado o manifesto das Lettres Françaises em favor da depuração,

Mauriac, assim como o Camus do pós-guerra não se opõe à pena de morte por traição,

como evidencia a leitura do artigo Justice do Figaro de 12 de dezembro de 1944:

“Àqueles que os serviram e que enriqueceram a seu serviço devem ser castigados

depois de capturados” (...)“Os franceses que entregaram ao inimigo outros franceses

devem ser passados(passés)pelas armas.”678Contudo, Mauriac se atêm

veementemente aos meios pelos quais a Justiça deve ser exercida, repudiando o

instrumento dos tribunais populares e como vimos, condenando os excessos

persecutórios do clã da Resistência agora encarregado de arbitrar sobre a vida e a

morte de seus concidadãos. Em suma, M

igimos o castigo dos culpados, não dos suspeitos; e não vendemos barato nem

a vida nem a liberdade do inocente.”679

Camus

uriac, crê “ que a indulgência e o esquecimento seriam insultos aos

mártires”680.

Camus vai além no editorial assinado de 25 de outubro de 1944 de Combat,

resposta direta ao pedido de explicações de Mauriac publicado dois dias antes no

Figaro: Propondo-se a opinar diretamente sobre a primeira condenação à morte

requerida pelo tribunal da Resistência681, Camus promove um esclarecimento sobre o

conceito “laico” de justiça promovido pelo Combat, tributando o desvelo de

misericórdia de Mauriac a seu background metafísico, que, de um prisma profundo,

enquadraria a justiça num contexto escatológico: “M.Mauriac dirá que ele é cristão e

que seu papel não é condenar. Mas nós, e é neste ponto que pedimos atenção, nós

decidimos, justamente porque não somos cristãos, de nos responsabilizar por este

problema e de assumi-lo com todas as su

justiça humana é sempre suplementada pela justiça divina e que, por

conseguinte, a indulgência é preferível.”

677 MAURIAC, F. La vrai justice. Figaro 8 de setembro de 1944. 678 MAURIAC, F. Justice. Figaro de 12 de dezembro de 1944. 679 MAURIAC, F. Révolution et révolution. Figaro de 10 de outubro de 1944. 680 GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen.p,48. 681“Segunda-feira, a primeira condenação capital foi pronunciada em Paris. É diante deste terrível exemplo que nós devemos nos posicionar. Aprovaremos ou não esta condenação?Eis, o problema é terrível.”(CAMUS, A. Essais, 1536. Combat 25 octobre 1944, p.288.)

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Camus promove um ataque franco ao discurso misericordioso de Mauriac pois

o compreende eivado do conformismo e do “salto na esperança” metafísica ao qual se

contrapôs veementemente em sua obra inaugural, O Mito de Sísifo - oposição franca

ao existencialismo cristão. Na opinião de Camus, é a malévola esperança na Justiça

transmundana que nos cristãos como Mauriac, arrefece a revolta constitutiva contra a

injustiç

uta moral, concentrada na restauração da grandeza

humana

a, os apartando de seus deveres de solidariedade com seu semelhante, traindo,

no caso do pós-guerra, os deveres da verdade e da memória pela barganha da Justiça

Eterna.

Mantendo-se, em larga medida, fiel ao espírito do Mythe de Sisyphe e das

Lettres à un ami allemand, Camus, em sua resposta à Mauriac, retoma os

pressupostos de uma ética sem transcendência que descobre na solidariedade contra a

injustiça seu horizonte de cond

: “...que M.Mauriac considere o conflito no qual se encontram homens que

ignoram a sentença divina e que guardam, entretanto, o gosto do homem e a

esperança de sua grandeza.”682

Não obstante prenhe de escrúpulos, Camus, centrado em sua recusa da

transcendência e em sua ética da solidariedade face ao sofrimento comum, assume os

riscos de seu engajamento histórico interrogante: “Nós escolhemos assumir a justiça

humana com suas terríveis imperfeições, preocupados unicamente de a corrigir por

uma honestidade suportada desesperadamente.”683 Como já mencionara no artido

Morale et Politique de 4 de setembro: “Contra uma condição tão desesperante, a

dura e maravilhosa tarefa deste século é a de construir a justiça no mais injusto dos

mundos...”684

À metafísica cristã de Mauriac, Camus contrasta a ética do homem absurdo,

revoltado pela injustiça que assoma seus semelhantes, reivindicando uma força

solidária re-encontrada na contramão da adversidade: “Esta linguagem é tão horrível

quanto pensa M.Mauriac? Certamente, não é a linguagem da graça. Mas a

linguagem de uma geração de homens educados no espetáculo da injustiça,

estrangeiro à Deus, amoroso do homem e resoluto a lhe servir contra um destino tão

freqüentemente irracional.”685

682 CAMUS, A. Essais, p.1536. Combat 25 octobre 1944, p.288. 683 CAMUS, A. Essais, p.1536. Combat 25 octobre 1944, p.288. 684 CAMUS, A. Essais, pp.271-2. Morale et politique. Combat, 8 septembre 1944. 685 CAMUS, A. Essais, p.1537. Combat 25 octobre 1944, p.289-90

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À “razão” militante, e à esperança metafísica, Camus contrasta a linguagem da

pulsão ética da vida, imbuída na restauração da dignidade coletiva, mesmo que a um

alto custo: “É a linguagem dos corações decididos a se responsabilizar pelos seus

deveres, à viver com a tragédia de seu século e a servir à grandeza humana, em meio

de um mundo de estupidez.”686

Talvez não seja excessivo assinalar, novamente, o dilaceramento constitutivo,

verdadeiramente trágico687, exigido pela coabitação entre o elã de justiça, o dever da

memória, e os profundos compromissos de Camus para com uma ética da vida, os

quais expusemos em nossa leitura de O Mito de Sísifo e das Cartas a um amigo

alemão, pressupostos absolutamente contraditórios com os instrumentos de

efetivação histórica da justiça. Em sua resposta a Mauriac, ele sublinha este drama

inacabado que paira, projetando suas sombras, sobre o engajamento interrogante de

que é porta-voz: “Nós não temos o gosto do assassinato. E a pessoa humana figura

tudo que respeitamos no mundo. Nosso primeiro movimento diante desta

condenação é, pois, repugnância. Ser-nos-ia fácil pensar que nossa tarefa não é de

destruir os homens, mas somente fazer qualquer coisa pelo bem deste país...Nós

nunca pedimos uma repressão cega e convulsiva. Nós detestamos o arbitrário e a

estupidez criminal, nós almejamos que a França mantenha as mãos puras. Mas nós

as na defesa, até certo ponto, consensual, sobre a necessidade de

almejamos, para tanto, uma justiça apropriada e limitada no tempo, a repressão

imediata dos crimes mais evidentes, e, em seguida(...)o esquecimento razoável dos

erros que tantos franceses de fato cometeram.”688

Como podemos constatar, apesar da profunda divergência do background

metafísico e social dos dois autores; malgrado à resistência, de ambas as partes, de

verem acordados ângulos tão divergentes do espaço intelectual francês; não obstante o

contraste que os opõe acerca da intensidade e urgência da depuração: É preciso notar

que, analisadas friamente, suas posturas se harmonizam por intermédio de melodias

diferenciad

salvaguardar a dignidade da vida singular e a grandeza humana durante este período

conturbado que não poderia de forma alguma abnegar seu acerto de contas com a

memória.

686 CAMUS, A. Essais, p.1537. Combat 25 octobre 1944, p.290. 687 Ressaltemos o dilema que ecoa Antígona, visto seu esforço de fazer justiça à memória dos mártires. 688 CAMUS, A. Essais, p.1536. Combat 25 octobre 1944, p.288-9.

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A bem da verdade, a leitura sucessiva dos textos evidencia que, à medida que

as exigências de sangue da história se intensificam, esmorece o samurai, e o iogue

camusiano ressurge com mais intensidade. Um editorial não assinado do Combat de 7

de dezembro, em resposta ao anúncio no qual o General Leclerc difunde que fuzilará

cinco reféns alemães para cada militar francês assassinado, entremostra que os

compromissos assumidos face a absurdidade, tão preciosamente descritos em O Mito

e nas Lettres, ressurgem à ordem do dia do editorialista chefe do veículo de

divulgação par excellance da expressão Resistente, suplantando assim, de maneira

evidente, os interesses dos enfrentamento cotidianos: “A consciência francesa, e a

consciência ela mesma, repugnam o sistema de reféns. Apreciamos a vida humana e

nossa diferença em relação aos hitleristas é que nós não matamos senão obrigados e

forçados, enquanto eles assassinam com simplicidade. Nós não queremos lhes

parecer. E isto faz nossa força e nossa fraqueza(...)Nós nunca mataremos um

inocente(...)Nós sempre recusaremos assassinar reféns(...)Nós jamais

acrescentaremos à miséria deste mundo.”689

Posto que não divergem nem em relação à finalidade, nem sequer - de um

o,

ual se

conformismo eivado de moralina cristã. Como ressalta, ainda em

temb

ponto de vista aprofundado - dos meios pelos quais deveria se pautar a depuraçã

q ria, então, a causa da virulência de Camus no ataque à salutar consciência

hipertrofiada de Mauriac, dedicado a velar pela justiça durante àqueles dias

nebulosos?

Sem dúvida, é a Igreja na pele de Mauriac que Camus e Combat vituperam.

Do ponto de vista filosófico, Camus nota que se destila da misericórdia de

Mauriac um

se ro de 44, o cristianismo, “doutrina da injustiça”, é “fundado no sacrifício de

um inocente e na aceitação deste sacrifício. A justiça, ao contrário, e Paris vem

provar com suas noites iluminadas pelas chamas da insurreição, não existe sem

revolta.”690

À luz da história, este diagnóstico de conformismo não apenas se confirma

como se redobra, posto que somente em dezembro de 1944 o Papa Pio XII exprime

uma opinião favorável da Igreja a respeito da democracia, o que desperta fúria do

editorialista chefe do Combat de 26 de dezembro: “há anos esperávamos que a maior

autoridade deste tempo se prestasse em condenar, em termos claros o 689 GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste em citoyen. p, 46.(Combat de 7 de dezembro de 1944)

bre 1944. 690 CAMUS, A. Essais, pp.271-2. Morale et politique. Combat, 8 septem

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empreendimento das ditaduras(...)Esta voz que vem declarar ao mundo católico que

partido tomar, era a única que poderia falar em meio às torturas e aos gritos, a única

que poderia negá-la sem temer a força cega dos blindados.”691

Mauriac, por sua vez, segundo a arguta interpretação de Guérin, acorda uma

absolvição sem reservas da Igreja francesa durante a ocupação: “sua honra” - diz no

artigo “A inquietude católica na França” do Figaro de 28 de outubro, antes, portanto,

a man

neficia,

por traição –– do “lambari”-intelectual anglófobo Henri Béraud:

No fu

o Camus, pelo Combat de 18 de outubro, pleiteava um justiç

d ifestação de Pio XII - “jamais foi contestada.”692 Em 9 novembro, arremata

em “A Igreja mãe dos homens”: “A Igreja na figura de seus pastores fez bem se

escondendo.”693

Portanto, quando Camus ataca Mauriac contra suas críticas aos excessos da

depuração, embora sejam perceptíveis, de um ponto de vista prático, a existência de

divergências tão somente pontuais a respeito dos meios da instauração da justiça,

notemos que um panorama mais amplo permite distinguir nitidamente suas vultosas

divergências político-filosóficas: é todo o conservadorismo francês que se be

aos olhos de Camus, dos justos pudores de François Mauriac. Não é à toa, portanto, o

apelido irônico que o semanário cômico francês Le canard enchaîné depositara nesta

respeitada figura da alta sociedade francesa: “Saint François des Assises.”694

De sua ótica, Mauriac teme, antes de tudo, a derrocada pela guerra civil,

considerando que uma radicalização do processo de depuração tornaria impossível a

reconciliação. Outro fator não passa despercebido pelo crivo de Guérin, lembrando o

papel importante do conservador na mobilização da opinião pública contra a

condenação à morte

“ ndo, Mauriac é um político bastante fino para ter compreendido que os

intelectuais pagavam pelos altos funcionários e industriais, os quais souberam ser

mais discretos.”695

Ora, quand amento

rápido e justo - “..é ridículo sacrificar tal ou tal chefe de gabinete que continuou a

viver pelo hábito sem tocar, de outra parte, aos grandes responsáveis da indústria ou

do pensamento” - ainda

691 CAMUS, A. Essais. p, 284. Combat, 26 décembre. 1944, p.408-9. 692 GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen. p, 49. 693 MAURIAC, F. in Le Figaro, 9 de novembro de 1944. 694 “São Francisco dos Sentados”(Jogo de palavras entre “Assis”, santo católico e “assises”, “sentados”, em francês. Preciosa anedota histórica relembrada por Guérin. GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste em citoyen. p.51. 695 GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen. p, 55.

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guardava esperanças de uma justiça proporcional, justa. Contudo, quando Camus

assina a petição, que também subscrevia Mauriac, contra a aplicação da pena de morte

ao escritor fascista Brasillach e, em seguida, escreve justificando, em caráter privado,

sua atitude à Marcel Aymé, a máscara da defesa da “legalidade” já não cabe na

intimidade do autor de O Estrangeiro: “Eu sempre tive horror da condenação à

morte e julguei que, ao menos enquanto indivíduo, dela eu não poderia participar,

nem por abstenção. É tudo.”696

“À medida que a França ideal se evapora face à França real”697, o

abrandamento dilacerado de Camus, torna-se, pouco a pouco, público. Cindido entre o

compro

rvir realmente

à justiç

ndado, o que está em questão

é o pro

de algum modo, se

vincula decessor, que, a bem da verdade, aproxima

metodi

a efetiva incomensurabilidade, como podemos perceber nos referindo,

ainda q

misso com a memória - o elã de justiça – e a frustração com o ignóbil

transcorrer da melancólica história cotidiana: “Teria sido necessário ir até o fim na

nossa contradição e resolutamente aceitar de parecer injustos para se

a.”698

Como nos referimos acima, de um prisma aprofu

blema ético-político clássico da possibilidade, ou não, de reunir as magnitudes

contraditórias da força e da justiça no para apaziguamento da história.

É na resposta negativa a esta questão que, malgrado eles mesmos, Camus e

Mauriac terminam por concordar face às circunstancias.

Ora, estes dois argutos leitores de Pascal, certamente,

m, afinal, ao pessimismo deste pre

camente as magnitudes da justiça e da força tão somente com o intuito de

demonstrar su

ue de passagem, ao fragmento 298 dos Pensamentos699:

(L.103-Br.298)“+Justiça, força.

É justo que o que é justo seja seguido; é necessário que o que é o mais forte

seja seguido.

A justiça sem a força é impotente; a força sem a justificação é tirânica.

A justiça sem a força é contradita, porque sempre existem pessoas más. A

força sem a justiça é acusada. É preciso, pois, colocar juntas a justiça e a força, e,

para isso,fazer com aquilo que é justo seja forte ou que o que é forte seja justo.”

696 CAMUS, A. Carta reproduzida no Boletim da Sociedade dos estudos camusianos(nº15, été 1987, p.8) 697 GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen. p, 55. 698 CAMUS, A. Carta reproduzida no Boletim da Sociedade dos estudos camusianos(nº15, été 1987, p.8) 699 PASCAL, B. Pensées. (L.103-Br.298)

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Se, na primeira metade do fragmento podemos notar uma análise em separado

das noções – justiça e força - e vislumbrar uma possibilidade de conciliação entre as

duas magnitudes, a leitura da conclusão do fragmento nos desvela que não há

reconci

oral” arbitrária.

iscussão. Assim, não se pôde dar força à justiça, porque a força

contrad

liação possível entre ambas. A justiça da “cidade”, para Pascal, é uma

nomenclatura vazia desprovida de significado efetivo. É o poder do constrangimento

físico – a força em todos os seus perfis - que se oculta sob o véus da lei, da ordem e

mesmo da suposta “m

(L.103-Br.298) “(...)A justiça está sujeita à discussão. A força é bem

reconhecível e sem d

isse a justiça e disse que ela era injusta, e disse que era ela,a força, que era

justa.

E assim não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o

é forte fosse justo.”

iça, não é a justiça aplicada pelos carrascos

iciais

ramento ter conhecido a injustiça crendo servir à justiça(...)Reconhecer

Mesmo que inadvertidamente, estes dois leitores de Pascal, de maneiras

diferentes, o ratificam e atualizam em seu ceticismo político e histórico.

Para Mauriac, a Verdadeira just

of .

Para Camus, por razões diferentes, mas com idêntico pessimismo, também

não: “Dilace

que a total justiça social não existe.”700

O que passa despercebido pelo conjunto de comentadores é que o que

prevalece, não é a opinião de Mauriac sobre a de Camus a respeito do valor da

depuração.

O que prevalece e se fortifica com a experiência efetiva do engajamento é a

tre o

omem ta do usufruto de sua grandeza originária.

injustiça que é a ordem cósmica. É a pedra que é preciso carregar, lucidamente.

intuição pessimista original de Camus sobre a História, bastante bem delineada em O

Mito de Sísifo e nas Lettres à um ami allemand701 - com as tintas que são peculiares a

Camus. Trata-se da constatação redobrada de que a História é turbulência en

h e a natureza, “a pedra” que o afas

A História “vivida” se mostra, afinal, apropriada aos conceitos intuídos pelo

jovem Camus. História é miséria. Mimetismo humano da ordem da indiferença e da

700 CAMUS, A. Cahier, II. (p.250) 701 Intuição ética que possui, como veremos oportunamente,ramificações narrativas como n´O Estrangeiro e n´O Malentendido.

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Em agosto de 1945, Hiroshima.

Tivemos ocasião de expor(conferir na parte I), em contraponto com a atitude

de Sartre, a atmosfera camusiana da recepção do acontecimento-testemunho de que “a

a alheia à perspicaz interpretação da história do

civilização mecânica acaba de atingir o ápice da selvageria.”702 Que o leitor tenha

em mente os termos do competente literato e historiador Jean-Pierre Guérin: “quase

sozinho, Camus se horrorizou com a nadificação de Hiroshima.”703

É interessante notar que sej

engajamento de Camus elaborada por Guérin, a íntima relação entre o massacre

promovido pelos EUA e a atitude camusiana a ele posterior, incluindo aí o

cambaleante debate com Mauriac.

A partir de Hiroshima, a terrível evidência pascaliana torna-se incontornável

pela esperança idealista do Resistente: não podendo fazer com que o que é justo fosse

forte, faz-se com que o é forte, seja justo.

Da indignação, Camus passa à revolta contra o leitmotiv da violência:

podemos considerar que ele muda seu eixo de revolta para permanecer fiel ao seu elã

originário.

Trata-se, a bem da verdade, de um retorno ao paradigma de Sísifo que é

manifesto pelos dois extremamente contundentes artigos que encerram, em ordem

inversa da ordem cronológica, o cuidadoso compêndio intitulado Actuelles I –

a evidência,

equivalente camusiano das Situations de Sartre: “Doravante é certo que a depuração

na França está não somente perdida como desacreditada. A palavra «épuration» já

era bastante penosa. A coisa tornou-se odiosa.”704

É, afinal, Hiroshima que encerra a polêmica com Mauriac, com su

que, aliás, se arrasta até hoje na atualidade do terceiro milênio como a radioatividade:

“Diante de perspectivas terrificantes que se abrem à humanidade, nós percebemos

ainda melhor que a paz é o único combate que merece ser travado.”705

Como na concepção pascaliana do “tição de fogo”, Camus circulou

constantemente através da espiral histórica procurando, pelo movimento mesmo,

equilibrar-se com sua intuição primitiva de justiça.

Numa palestra no convento de dominicanos Latour-Maubourg em 1948, ele

sinaliza, numa frase austera, mas plenamente significativa, o rumo de seu

702 CAMUS, A.Essais.p, 291. Combat 08, août 1945. 703 GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen. p, 91. 704 CAMUS, A.Essais.p, 289. Combat 30 août 1945. 705 CAMUS, A.Essais.p, 291. Combat, 01 août 1945.

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engajamento do pós-guerra: “...malgrado alguns excessos de linguagem vindos da

parte de François Mauriac, nunca deixei de meditar no que ele dizia. Ao fim desta

reflexão, e assim lhes dou minha opinião sobre a utilidade do diálogo crédulo-

incrédulo(croyant-incroyant), fui levado a reconhecer em mim mesmo, e

publicamente aqui, que, de um ponto de vista profundo, e sobre o ponto preciso de

nossa controvérsia, M.François Mauriac tinha razão contra mim.”706

*

Através de uma carta a seu amigo e antigo professor de filosofia Jean Grénier,

podemos pressentir a atmosfera ética que se conclui da experiência da depuração na

ótica de Camus. Notemos que trata-se de uma “confirmação experimental” das

intuições do “jovem” Camus que, anos antes, veremos oportunamente, escrevera O

Estrangeiro: “ Depois da Liberação, fui ver um processo da depuração. O acusado, a

meu ver, era culpado. Eu, no entanto, abandonei o processo antes do fim, pois

«estava com ele»(o acusado) e nunca voltei num processo deste tipo. Em todo

culpado, há uma parte inocente. O que torna revoltante toda condenação

absoluta.”707

Outro é o ambiente que circunda Merleau-Ponty que publicando Humanismo e

Terror,

Humanismo e Terror consiste numa reflexão sobre a violência que toma por

Zero e Infin 709 a questão da

da intelectualidade francesa do pós-guerra.

segundo Guérin, “traça um paralelo entre a depuração e os processos de

Moscou. Em ambos os casos a situação era revolucionária(...)se apóia-se a

depuração deve-se apoiar o processo de Moscou e vice-versa.”708

princípio o livro ito de Arthur Koestler, que põe “

violência comunista à ordem do dia”710

ens. Fragments d´un exposé fait au convent

.

706 CAMUS, A. Essais. pp.371-2. L´incroyant et les chrétides dominicains de Latour-Maubourg, 1948. 707 CAMUS, A. Correspondance Jean Grénier-Camus.(p.141) Carta de 21 de janeiro de 1948. Grifo e comentário nossos. 708 GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen. p, 60709 Trata-se da epopéia de Roubachov, que durante anos vivera “na ignorância do subjetivo”, face à depuração soviética: “Roubachov é opositor pois não suporta a nova política do partido e sua disciplina inumana. Mas como se trata de uma rebelião moral, e como sua moral foi sempre obedecer ao partido, acaba por capitular sem restrições.”p.XVI. 710 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror. p, 10. Arthur Koestler é um oficial húngaro, dissidente, ex-integrante do Komintern e precursor das denúncias contra o totalitarismo soviético. Seus livros, Zero e Infinito e o Yogi e o comissário, assim como o Retour de l´U.R.S.S de André Gide, serão fundamentais na consolidação da postura anti-totalitarista de Camus, se remetendo, em conjunto, sobre a nadificação do indivíduo - zero diante do infinito – frente ao “fatalismo econômico” e à magnitude do Estado Comunista, de pretensões messiânicas. Segundo Ronald Aronson, “Camus tornara-se íntimo de Koestler no plano pessoal e também no plano político, e se encontra mergulhado numa revisão radical de seu pensamento político, que apresentará mais tarde numa série de artigos intitulados Nem vítimas, nem carrascos entre 19 e 30 de novembro de 1946.”(ARONSO, R. Camus et Sartre- Amitié et Combat,

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Trata-se de uma cuidadosa resposta articulada contra o “anti-comunismo” de

Koestler, no qual Merleau-Ponty procura uma distinção entre a “violência retrógrada”

e uma “violência progressista”, legitimada pela concepção de ação revolucionária.

Procuremos esmiuçar o ponto de vista do diretor político da revista Les Temps

Modernes. A primeira parte da obra se chama «O Terror» e é consagrado aos

processos de Moscou, analisando se existe uma relação entre a violência histórica, e a

violência teórica. A segunda parte, «A perspectiva humanista», se dedica às

transformações políticas da União Soviética à luz das exigências das circunstâncias

históricas, notando a diferença entre o projeto marxista e sua dimensão

efetiva(diferença entre o proletário e o comissário). Posteriormente , Merleau-Ponty,

analisa a situação presente à luz de sua própria crítica da política marxista e

questionará se o marxismo está superado, ou se existe uma outra via de conhecimento

do homem pelo homem.

De começo, Merleau-Ponty, embora se mantenha independente face ao Partido

Comunista, põe-se já no âmbito do marxismo e, desde o prefácio, é a crítica ao ponto

de vista “liberal” que mostra-se o objetivo central de sua análise sobre a violência.

Trata-se de expor a mistificação na qual repousam os “princípios” “puros” do

capitalismo internacional: “Discute-se freqüentemente o comunismo opondo à mentira

ou à astúcia o respeito à verdade, à violência, o respeito à lei, à propaganda, o

respeito das consciências, enfim, ao realismo político os valores liberais. Os

comunistas respondem que, acobertados nos princípios liberais, a astúcia, a

violência, a propaganda, o realismo sem princípio fazem, nas democracias, a

substância da política estrangeira ou colonial e mesmo a política social. O respeito à

lei ou à liberdade serviu para justificar a repressão policial nas greves na América;

serve hoje para justificar a repressão militar na Indochina ou na Palestina e o

desenvolvimento do império americano no Oriente Médio.”711

Merleau-Ponty é enfático; é a opressão pura e simples pela força que se

camufla atrás da moralidade ofendida da pseudo-“justiça” da ordem capitalista: “A

p.110.) Embora a referência histórica seja correta no que concerne a ligação Camus-Koestler - como Les Forces des choses de Simone de Beauvoir atesta - contestamos Aronson nesta suposta “reviravolta”que atribui a obra camusiana. Nem vítimas, nem carrascos, será, a bem da verdade, como veremos a seguir - tal como no caso Mauriac - um aprofundamento do humanismo camusiano face ao absurdo, concepções já esboçadas em O Mito e nas Lettres à un ami allemand e não, absolutamente, “revisão radical de seu pensamento político” como pretende Aronson. 711 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror. p.9. (Biblioteca Tempo Universitário). p.XIII(Gallimard)

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civilização moral e material da Inglaterra supõe a exploração das colônias. A pureza

dos princípios, não apenas tolera, mas necessita da violência. Há , portanto, uma

mistificação liberal.”712 A partir desta constatação, ele adverte “não é pelo discurso

que se analisa um sistema político, mas por sua prática cotidiana”713. Partindo desta

crítica ideológica do marxismo ao liberalismo, Merleau-Ponty, se propõe doravante, a

e época” tendo

universalidade”718. A violência “progressista” revolucionária seria, segundo ele, o

aplicá-la ao marxismo ele mesmo, isto é, analisar a relação da teoria marxista com a

violência e a própria prática histórica marxista na violência do Estado soviético.

Sua argumentação ressalta o ponto de partida pessimista do marxismo em

relação ao homem que se atêm Merleau-Ponty, citando Hegel: “cada consciência

persegue a morte da outra”714. A luta de todos contra todos é uma evidência que os

imperativos kantianos não podem calar. Na concepção de Merleau-Ponty,

Maquiavel715 está também presente na fundação filosófica do marxismo visto que o

florentino é o paradigma da compreensão do funcionamento do Estado e da

desmistificação da ética do bom governo. Ora, Merleau-Ponty, contudo, adverte: “o

problema ao qual o marxismo se propõe, é resolver radicalmente o problema da

coexistência humana.”716: “o comunismo deve ser considerado e discutido como um

ensaio de solução do problema humano, e não tratado no tom de uma injúria.”717 A

contradição reside na ambigüidade visceral deste projeto - que Camus chamará mais

tarde de messiânico – pois a solução dos problemas de coexistência humana transita

necessariamente pelo uso extremado da violência, e mesmo, do Terror. A superação

do antagonismo originário da insociável insociabilidade de que fala Hegel, evolui na

violência, e Merleau-Ponty não poderia se opor a esta constatação “d

em vista o extermínio repetido da origem destas contradições, isto é, do próprio

homem - com seus rostos singulares, como gosta de ressaltar Camus.

Entoado um discurso afinado com o marxismo, segundo Merleau-Ponty,

poder-se-ia considerar como violência progressiva(progressive), a violência pela qual

o proletário, durante a luta de classes, faz a “experiência plena da liberdade e da

712 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror. p.9. (Biblioteca Tempo Universitário). p.XIII(Gallimard) 713 WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 111. 714 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur. p.XIII(Gallimard) 715 Notar que M.Ponty é estudioso de Machiavel. MERLEAU-PONTY, M. Éloge de la philosophie et autres essais. Gallimard, 1965. (Note sur Machiavel) 716 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.111. 717 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.191. 718 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.122.

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contrário do círculo vicioso aonde hominis lúpus se entre-devoram, pois ela “possui

uma lógica interna de sua condição”719 e portanto, na ótica do realismo político, seria

o único instrumento capaz de romper com a engrenagem da violência720. Merleau-

Ponty admite, “o marxismo é uma teoria da violência e uma justificação do

terror”721, contudo, em 1946, ele ainda prescreve, “o marxismo faz surgir a razão do

desatino”722. A continuação da sentença, de todo modo, impõe sua linha

investigativa: “a violência que ela legitima deve portar um sinal que a distinga da

violência retrógrada.”723

Merleau-Ponty, partindo deste pressuposto, analisará por conseguinte, se a

violência soviética, no caso dos Processos de Moscou, é “progressiva”, se “as grandes

linhas ao menos convergem em direção ao desenvolvimento do proletariado em

consciência e em poder.”724Em caso afirmativo, o exercício da violência pelo tribunal

proletário seria um instrumento legítimo de evolução, pois, afinal, “não somos

espectadores de uma história acabada, somos atores de uma história aberta(...)o

mundo não é apenas para ser contemplado, mas também para ser transformado.”725

Porém, é extremamente importante notar que Merleau –Ponty se atêm, para

além da “teoria” do jovem Marx, à decalagem entre o discurso teórico do marxismo e

suas condições de efetivação histórica, notando as condições particulares da

estruturação do Estado Soviético: “dos três temas fundamentais que uma filosofia

proletária da história põe na ordem do dia – iniciativa de massas, internacionalismo

e construção das bases econômicas – a história efetiva não tendo permitido a

revolução senão num só país e num país ainda não equipado, o terceiro passa ao

primeiro plano enquanto o primeiro e o segundo entram em regressão.”726 Deste

modo, continua Merleau-Ponty (ressaltando a dificuldade da efetivação histórica do

marxismo em sua aspiração filosófica libertária original), o caráter subjetivista do

marxismo foi obnubilado pela necessidade da construção das bases econômicas - com

mão forte - conduzindo a uma concentração do poder no partido e à imposição da

719 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.120. 720 É notável como a argumentação de Merleau-Ponty será retomada por Sartre, outro editor da revista Les Temps Modernes, pela boca de Jean, no roteiro cinematográfico A engrenagem(conferir pp.112-136) que analisamos à luz da atmosfera pós –Hiroshima. 721 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.105. 722 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.105. 723 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.105. 724 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.141. 725 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.109. 726 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.145.

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coletivização e da industrialização: “Eis o paradoxo do Terror, vinte anos após o

início da Revolução(...)Dizemos que a construção das bases socialistas da economia

se acom

undo, nem concebida

como s

no universo dialético de Platão, mas no universo fluente de

Herácl

realidade efetiva da história, embaraça Merleau-Ponty: “a história é

cruel.”

panha da regressão da ideologia proletária.”727

Merleau-Ponty portanto, ressaltemos, não dá “carta branca” ao marxismo da

URSS: “As massas não conduzem mais ao regime, obedecem. As decisões não são

mais submetidas à base do partido, elas se impõe pela disciplina.”728 Ele demonstra

cauteloso distanciamento com o regime soviético. Noutro trecho, ele remete-se à

evaporação da subjetividade pelas exigências do Estado totalitário: Com nuances

críticas ele lamenta, “a prática não é mais como nos começos da Revolução, fundado

sobre um exame permanente do movimento revolucionário no m

imples prolongamento do curso natural da história.”729

Assim podemos constatar que Merleau-Ponty admite a decalagem entre teoria

e efetivação histórica e lamenta pelos incomensuráveis desvios exigidos face à “force

des choses”. Chega até mesmo a admitir, melancolicamente, que a nobre (esperança)

dialética “é doravante ilegível, ela é pura transformação de contrário em

contrário.”730 Merleau-Ponty num tom de espanto quase caricatural, tendo em vista

sua postura de racionalista empedernido, ressalta ainda, quase taciturnamente: “Não

estamos mais

ito731.

A 732

Ora, comenta, ele, no contexto de Moscou, “ser Revolucionário é julgar o que

é em nome do que ainda não é, tomando-o como mais real do que o real.”733. Ele

explica, analisando principalmente o processo que culminou na condenação à morte

de Boukharine ocorrido de 2 a 13 março de 1938 “os processos permanecem no

subjetivo e jamais se aproximam do que se chama a «verdadeira» justiça, objetiva e

intemporal porque se referem a fatos ainda abertos para o futuro, que não são ainda

unívocos e que não tomam definitivamente um caráter criminoso senão em condição

727 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.146.

mpo Universitário)

728 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.39. 729 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.39. 730 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.154. 731 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.156. 732 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror. p.24. (Biblioteca Te733 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.30.

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de ser vistos dentro da perspectiva do futuro dos homens no poder.”734 Isto porque,

explicita Merleau-Ponty, “qualquer que tenha sido a instrução preparatória, mantida

em segredo, não é em onze dias de debate que o Tribunal soviético podia acabar esse

trabalho relativo a vinte e um acusados (...)àqueles que podiam testemunhar

encontravam, por isso mesmo, implicados no processo: as únicas testemunhas

competentes eram acusados, e disso resulta que seus depoimentos não nos fornecem

jamais depoimentos em estado bruto.”735 Num tom resignado, Merleau-Ponty admite:

“a culpabilidade não é aqui a união evidente de um gesto definido com móveis

definidos e conseqüências definidas.Não é aquela do criminoso do qual se sabe, pelo

testemunho do porteiro, que ele veio na tarde do crime entre nove e dez horas(...)a

trama das causas, das intenções ,dos meios e dos efeitos da atividade oposicionista

não é reconstituída.”736 Merleau-Ponty acrescenta, entretanto, prudentemente, dado

seu compromisso com a esquerda internacional: “Escrevendo isto nós não

pretendemos polemizar...”737

Talvez seja bastante conveniente abrir um pequeno parêntesis com a finalidade

de ressaltar que Merleau-Ponty entremostra certa nostalgia das ciências exatas,

almejando uma objetividade praticamente “galilaica” para seu estudo, que, segundo

ele, pretende “se limitar a enunciar o que podiam ser os processos de Moscou na

condição em que estavam constituídos, - e a formular essa impressão de uma

cerimônia de linguagem que deixa O Relato Estenográfico dos Debates.”738 Merleau-

Ponty, no mesmo elã cartesiano, comenta lamuriosamente a suspeita que paira sob a

legitimidade dos Processos de Moscou: “A questão não se colocaria se os Processos

de Moscou tivessem provado os atos de sabotagem e de espionagem com se prova um

fato no laboratório...”739

Malgrado a enumeração destes “detalhes” bastante esclarecedores sobre o

procedimento do processo Boukharine, Merleau-Ponty ressalta em contrapartida que a

suspeita do “mundo liberal” devotada aos Processos de Moscou, advém, a seu ver,

principalmente, da incompreensão que o “pensamento liberal” tem da concepção

marxista da responsabilidade. O que é incompreensível aos olhos da civilização

capitalista, para Merleau-Ponty, é que os culpados estejam de tal modo engajados no 734 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.pp.56-7.Grifo de M.Ponty. 735 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.55. 736 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.56. 737 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.55. 738 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.56. 739 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.55.

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sentido coletivista da responsabilidade que admitam seus crimes, insuspeitos até então

a eles próprios, como no caso de Roubachov, quando elucidados convenientemente

pelo Tribunal de qual o malefício de sua atitude como “ato histórico”, isto é, para o

futuro da coletividade. Como esclarece Maurice Weyemberg, “os atos dos acusados

são julgados não em função de suas intenções, mas a partir de suas repercussões

previsíveis e o impacto que terão no futuro do país da revolução. O aspecto mais

impressionante deste processo é que os acusadores e acusados falam a mesma

linguagem: são marxistas que julgam marxistas; dos dois lados da audiência fala-se

a mesma linguagem, e se está de acordo sobre a noção de responsabilidade

históric

refácio: “A ação política é por si mesma impura visto que ela é

ação à

nem pura

raciona

o pode se justificar pelo imprevisto. Ora, há o

imprev

a.”740

De acordo com a gênese marxista da história proposta por Merleau-Ponty o

magma originário da sociedade é o combate de todos contra todos, hobbesiano; Deste

modo os atos humanos não se configuram somente um resultado das intenções, mas se

contaminam ao se inscreverem num “contexto social”, repercutindo na vida comum,

com comenta no P

muitos.”741

Weyenberg ressalta que o conceito de responsabilidade marxista se deriva

desta concepção no qual o ato está intrinsecamente implicado num contexto amplo no

qual é necessário imprimir “linhas de força e perspectiva de futuro; sua opinião sobre

a situação na qual (e sobre a qual) ele deve agir resulta de uma interpretação que

permanece necessariamente parcial e sujeita a erro. A história não é

lidade, nem pura contingência, ela é essencialmente ambígua.”742

Ressaltemos que a questão da ambigüidade paira sobre o conjunto de reflexões

de Merleau-Ponty desde o prefácio do Humanismo e Terror743: “Governar, como se

diz é prever, e a política nã

isível. Eis a tragédia.”744

Este problema da ambigüidade da ação histórica reiterada inúmeras vezes por

Merleau-Ponty no Humanismo e Terror, talvez não seja excessivo assinalar, pode ser

considerada análogo ao dilema da “opacidade” história que é tema central das

preocupações de Sartre em Verité et Existence, e eixo constitutivo, como vimos, de

740 WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 115. 741 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.XXVIII 742 WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 115. 743 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.65, 71, 80, 83, 87, 101-2. 744 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.XXVIII.Tempo Universitário.p.22.

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toda a expressão literária do engajamento sartreano. No que se refere a O Muro,

Mortos sem Sepultura, A Engrenagem, as vicissitudes do engajamento e a questão da

opacidade e contingência da história são problemas que se configuram, não apenas

como temas significativos, mas como o próprio âmbito do equacionamento ético de

Sartre.

nas

esboça

No caso do Humanismo e Terror, trata-se de evidenciar este drama da

ambigüidade no contexto do Estado Soviético, legitimando de algum modo, a partir

do conceito de responsabilidade marxista, a existência dos Tribunais. Se ambas as

partes estão de acordo sobre a ambigüidade e opacidade constitutiva das ações e que

os homens devem se medir pela conseqüência de seus atos e não por suas intenções;

se, marxistas, juízes e condenados, compreendem os riscos inerentes a cada ato,

sabem, por conseguinte que todos estão sujeitos ao erro e ninguém pode se abster das

responsabilidades inerentes a ele. Da ótica de Merleau-Ponty, a aceitação do veredicto

pelos acusados de traição, tais como Roubachov ou Boukharine, advém, afinal, para

incompreensão do pensamento liberal, desta partilha entre vítimas e carrascos –

voluntária – da visão marxista da história e do conceito marxista de responsabilidade:

“Considerado pelo ângulo do direito comum, o processo Boukharine foi ape

do. Ao contrário,tudo se aclara, se nós o tomamos como ato histórico.”745

Assunção irrestrita à concepção da responsabilidade coletiva inerente à ação

individual e à visão marxista finalista da história. Comenta Weyemberg “esta ótica é

o pano

es falhas no processo Boukharine e lamenta a

radicali

de fundo dos processos de Moscou.”746

Merleau-Ponty, assim mesmo, credita legitimidade aos Processos de Moscou -

fundados em seu âmago, no conceito de responsabilidade e na visão marxista da

história - admitindo, como vimos, grav

zação da depuração de Stalin.

No entanto, fundamentando os métodos do regime soviético através de uma

teoria da ação e uma filosofia da história, Merleau-Ponty de algum modo atribui,

paradoxalmente, o “crepúsculo da política” à “ambigüidade” e contingência da

história: “ Mostramos que uma ação pode produzir outra coisa além da visada, e que.

no entanto, o homem político assume suas responsabilidades(...)É sempre

assim(...)Enquanto houver homens, sociedade, uma história aberta, tais conflitos

serão possíveis, a nossa responsabilidade histórica ou objetiva não será senão a 745 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.58. 746 WEYEMBERG, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 116.

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nossa responsabilidade aos olhos dos outros, nós não poderemos nos sentir inocentes

no processo que nos fazem, eles nos poderão condenar no próprio momento em que

nós não nos sentimos com outra culpa que esta – comum a todos os homens, de ter

julgado sem provas absolutas.”747

Poderíamos, no limite, considerar que, do ponto de vista de Merleau-Ponty,

não seria, afinal, uma tragédia da desmedida humana que se evidenciaria com o

extermínio político tornado método por Stalin e Cia., mas, uma tragédia devida a

própria imprevisibilidade da história que exige uma política “de risco”748: “o político

não é jamais aos olhos de outrem o que é aos seus olhos(...)aceitando um papel

político,uma oportunidade de glória, aceita também um risco de infâmia, uma e outra

«imere

crito no inverno de 1946750, A Engrenagem, intitulado inicialmente Les

Mains Sales

que lei? (François) A nossa. Eu não me defenderei. Vocês me matarão, diz

Jean.”7

. Jean admite, sem recorrer, ser morto por seus atos de

revolucionário consciente.

cidas»749

É absolutamente imprescindível assinalar que a argumentação de Merleau-

Ponty que valida teórica e historicamente os processos de Moscou, conservando,

entretanto, um “desgosto” pela violência é desenvolvida narrativamente por Sartre em

seu roteiro, es

.

Em A Engrenagem, recordemos, acompanhamos o itinerário do herói

sartreano Jean que de juiz(comandante em chefe revolucionário) passa - com o

decurso sinuoso e imprevisível da história (minada de percalços) e tendo cumprido

zelosamente suas exigências para com a manutenção da Revolução - à réu:

(Jean)“Quem fará meu processo?François faz um gesto circular. – Nós todos. (Jean)

– Segundo 51

À luz da depuração soviética, notemos que o eixo da narrativa de Sartre está

na questão da responsabilidade face à história e das vicissitudes do engajamento

revolucionário. Notemos que Jean assume, sem titubear, os riscos de seus atos

históricos e aceita igualmente, sem constrangimento, que seus excessos de violência e

sua morosidade em nacionalizar campos de petróleo, sejam considerados crimes pelo

Tribunal de seus sucessores

747 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.pp.25 -60. 748 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.pp.24. 749 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.pp.22. 750 SARTRE, J-P. L´Engrenage, Paris. Nagel, 1948. Nota introdutória. 751 SARTRE, J-P. L´Engrenage, p, 20-1.

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Trata-se, pois, da expressão da legitimidade de um processo Revolucionário

forjado num conceito de responsabilidade que, imbuído de uma concepção de algum

modo finalista da história, se corrige, em detrimento, se necessário, de seus próprios

integrantes.

O que está em jogo, afinal, em A Engrenagem, assim como no intrincada

argumentação de Merleau-Ponty, é a legitimação da atitude revolucionária, isto é, a

aceitação da visão de história e de ação que, fundada numa moral da responsabilidade,

considera a violência como único veículo de transformação histórica ; “Nós dissemos

que uma política não pode se justificar por suas boas intenções.”752

Ponty comenta ainda: “A política é por essência imoral. Ela comporta «um

pacto com as potência infernais...”753 A divergência com Camus não poderia ser

mais abismal: vimos que o editorialista de Combat almeja entrementes “a substituição

da política pela moral”.

Para Merleau-Ponty a política realista deve se medir pela “moral da

responsabilidade” - “ que julga, não segundo a intenção, mas segundo as

conseqüências dos seus atos.”754

Lembrando o caso da condenação de Sócrates, Merleau-Ponty fornece um

subsídio universal para a moral da responsabilidade: “cabe ao homem julgar a lei com

o risco de ser julgado por ela.”755

Reforcemos o laço entre as posturas destes dois editores de Temps Modernes à

luz de nossa interpretação anterior de A Engrenagem (conferir pp.112-136). Côté

Sartre, se podemos detectar alguns traços da melancolia na atitude de Jean, não há

entretanto, nem sombra de arrependimento de sua parte, somente a constatação de um

pessimismo acentuado sobre as exigências subterrâneas da história: (Jean)“ Miséria!

Violência! Contra a violência, eu não vejo senão uma arma: a violência!”756(...) “

Face ao tribunal, diz Jean(Paul Sartre): “Vocês sabem o que sucedeu. Os camponeses

destruíram os tratores e queimaram as lavouras. Eu sabia que o fariam. Eu sabia que

seria necessário queimar as cidades e prender milhares de pessoas para quebrar a

revolta(...) Sempre a engrenagem.”757 À Lucien, chefe do jornal clandestino La

lumière, de certo, inspirado, como vimos, em Camus – personagem que se encontra 752 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.23. 753 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.28. 754 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.27. 755 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.26. 756 SARTRE, J-P. L´Engrenage, p, 183. 757 SARTRE, J-P. L´Engrenage, p, 210.

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moribundo de tuberculose num campo de concentração por ordem sua - diz Jean:

(Jean) “ Digo que não me arrependo de nada! Era necessário salvar a Revolução.”

(Lucien) “Era necessário deportar tantas pessoas para salvar a Revolução? – Se o

estrangeiro houvesse re-estabelecido o Regente, diz Jean, crês que não haveria cem

vezes mais deportados?Era necessário escolher.”758

Merleau-Ponty ratifica também, embora bem mais obliquamente, a perspectiva

revolucionária da violência responsável: “Num mundo de luta, - e para um marxista,

a história é a história da luta de classes, - não há essa margem de ações indiferentes

que o pensamento clássico reserva aos indivíduos, cada ação nos compromete e nós

somos responsáveis por suas conseqüências.”759(...)“Toda lei é violência”760

A segunda parte de Humanismo e Terror, intitulada A Perspectiva Humanista

desvela que , de fato, Jean de A Engrenagem poderia, na época, também ser

considerado convenientemente um alter-ego de Merleau-Ponty. Embora Ponty

mantenha distância cautelosa do regime de Moscou, alinha-se fielmente a sua postura

de responsabilidade face às exigências históricas, como se entremostra pela sua

cuidadosa exposição da ótica marxista da inexorabilidade da violência : “Não temos

escolha entre a pureza e a violência, mas entre as diferentes espécies de violência. A

violência é nosso destino enquanto nós estamos encarnados(...)o que conta e o que

deve se discutir, não é a violência, é o seu sentido ou o seu futuro”761Se detendo na

diferença entre o proletário e o comissário, ou seja, nas transformações políticas da

União Soviética à sombra das exigências das circunstâncias históricas, Merleau-Ponty

frisa a diferença entre o projeto marxista original e sua efetivação histórica cerceada

pela epistemologia contingente do devir, minado de exigências. Como mencionamos,

ele expõe sombras que pairam sobre a dimensão histórica do marxismo;

“peculiaridades” sobre os Processos de Moscou; questionamentos sobre os métodos

de manutenção do poder, e embora haja uma éphoké em relação aos excessos do

regime Soviético, estes equacionamentos estão, acreditamos, de tal modo submersos

numa epistemologia da ambigüidade e contingência históricas e numa verdadeira

apologia da moral da responsabilidade que, afinal, estes dramas parecem, no limite,

758 SARTRE, J-P. L´Engrenage, p, 216. 759 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.61. 760 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.24 761 MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.121.

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tributados às exigências da história . Como comenta Weyemberg762, é como se a

história se mostrasse o génie malin de Merleau-Ponty.

Assim, no conjunto, se Merleau-Ponty mantêm cautelosa independência em

relação ao regime Soviético, entretanto, em contrapartida, vai além do “endosso” da

teoria da ação e da responsabilidade marxista. O que lemos em Humanismo e Terror

é, com olhos camusianos, o perigoso salto na esperança do conceito – e às custas do

sangue dos outros – pois Merleau-Ponty vê no marxismo uma via imperativa,

insuperável, no esforço “do século”, a saber, compreender o homem pelo homem.

Comenta Weyemberg sobre Merleau-Ponty: “mesmo que a visão marxista da história

não se realize, isto não implica que a crítica marxista esteja caduca. Sua

desmistificação da política liberal, seu aspecto crítico continuam uma aquisição da

mais alta valia(...)o marxismo é a única filosofia que pode tornar a história

racional.”763

A bem da verdade, para além do marxismo, o que está em jogo para o

Merleau-Ponty de 1944, é a própria racionalidade da história: “estamos acuados à

escolha entre uma história racional, respondendo a visão marxista e uma história

irracional que seria como um «tumulto insensato»”764.

Para Merleau-Ponty, afinal, temos que optar entre o sentido e o não-sentido765.

Buscando uma impossível transparência, Merleau-Ponty não se curva diante de um

mundo insistentemente heraclitiano.

É esta postura, livre em relação ao comunismo de Estado, mas, em larga

medida, pró-revolucionária, que Merleau-Ponty, nos anos sessenta, em As aventuras

da dialética, chamará, retrospectivamente, de «atentismo marxista»: “não podemos

não ser comunistas, não podemos ser comunistas.”766

A ambigüidade da argumentação e da postura política de Merleau-Ponty não

escapa à fina análise de Maurice Weyemberg: “sua atitude é ambígua, como aliás, é

ambígua a situação que analisa.”767

Aos olhos de Camus, veremos, não há ambigüidade nas posturas de seus

camaradas. Existem esforços, mais ou menos velados, de legitimação da aniquilação

762 WEYEMBERG, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. 763 WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 121. 764 WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 110. 765 MERLEAU-PONTY, M. Sens et non-sens. Paris, 1961. 766 MERLEAU-PONTY, M. Les aventures de la dialectique. Paris. Gallimard. pp. 306-7,(1955).Em l´Opium des intellectuels, Raymond Aron qualifica esta postura de « idealismo revolucionário». 767 WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 116.

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lógica em massa. Um partidário do racionalismo histórico do quilate de Sartre,

apregoa expressamente, em nome de uma política realista, a naturalização do uso da

violência; Merleau-Ponty, abstencionista, dilacerado entre sens et non sens, é

criminoso não apenas por sua abstenção na condenação ampla e irrestrita da

depuração soviética, mas, sobretudo, por sua legitimação teórica, generalizada, da

engrenagem da morte, endossada por uma teoria da ação e uma filosofia da história.

Camus constata: O maquinário refinado da filosofia, e até mesmo da literatura, está

sendo revertido, por seus próprios camaradas, para alimentar e legitimar o leitmotiv do

assassinato político. Trata-se do apogeu da era do assassinato lógico, como dirá

posteriormente em O Homem Revoltado.

Mas retomemos, ainda por um momento a análise de Humanismo e Terror na

intenção de sublinhar a relação efetuada por Merleau-Ponty entre a depuração

francesa e a depuração soviética.

Para Merleau-Ponty, afinal, é a concepção da responsabilidade histórica sobre

a ação que permite uma relação direta entre os Processos de Moscou e a épuration do

pós guerra francês: “se apóia-se a depuração deve-se apoiar o processo de Moscou e

vice-versa.”768. Em ambos os casos-limite, nos quais o futuro dos povos está em jogo,

“a diversidade de opiniões” não seria mais “legítima”769. Como nos casos de Pétain

ou Laval, pouco importavam, como comenta Weyemberg, se seus “arrière-

pensées”770 eram “puros”: “as intenções não contavam mais, somente os atos.”771

Não é à toa, portanto, que comentadores da perspicácia de Jean-Yves

Guérin772e Maurice Weyemberg773 convergem na hipótese de que a leitura de

Humanismo e Terror tenha contribuído na consolidação da ótica “madura” de Camus

sobre a depuração. Ora, se Camus, como vimos, apoiava fortemente a depuração

francesa, o fazia em nome da justiça e da memória, e não de uma teoria da ação ou de

uma filosofia da história. Ver este expediente de exceção legitimado e universalizado

por uma teoria filosófica, lhe desvela o grau de sofisticação que atinge o “temps des

meurtrières”.774

768 GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste em citoyen. p, 60. 769 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.39. 770 WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p.117. 771 MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.40. 772 GUÉRIN, J-Y. Portrait de l´artiste en citoyen. p.60. 773 WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p.119. 774 CAMUS, A. Le Temps des meurtrières. In Camus voyageur en Amérique du Sud. Archives Camus nº7(Fernade Bartfeld, 1995). Título de uma conferência de Camus em São Paulo, em dezembro de

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*

Sob o impacto de Hiroshima, ainda em setembro de 1945, Camus se pergunta,

em solilóquio, no fragmento que inaugura o Cahier V, procurando sintetizar a

problemática do engajamento filosófico-político-moral-histórico contemporâneo : “O

único problema contemporâneo: podemos transformar o mundo sem crer no poder

absoluto da razão?”775

Segue-se um silêncio significativo. Camus se afasta, escrevendo A Peste, que

configurará, como veremos oportunamente, a expressão narrativa mais madura de seu

engajamento ético-filosófico.

Pelos cadernos de Camus, entre setembro e outubro de 1946 - entre muitos

fragmentos que testemunham a transfiguração da problemática ética do engajamento

na dimensão narrativa de A Peste - podemos suspeitar da ambientação intelectual

tensa que circunda a confecção da série de artigos que será a única contribuição para o

Combat deste ano. Neles, encontramos vestígios776 dos encontros com Koestler,

Sperber777, Malraux(M)778 e Sartre, no qual, ainda companheiros de estrada, os

escritores discutem suas posturas sobre os caminhos do engajamento socialista à luz

das denúncias, crescentes, sobre as deportações na U.R.S.S.

Este relato dos Cahiers V que se segue é, assim, um valiosíssimo testemunho

do elã que doravante governará o engajamento filosófico-literário de Camus, bem

como da postura política que desenvolverá na coletânea de artigos intitulada Nem

vítimas, nem carrascos. Ajuntemos ainda que este relato consiste também num

significativo testemunho da postura de Sartre, contemporâneo da redação de A

Engrenagem, elaborado no mesmo inverno. Vejamos que, na síntese de Camus(C),

enquanto Koestler (K) , seguido por Sperber (2º S), insistem na necessidade da

denúncia do totalitarismo, Sartre(1º S), embora consinta nas crítica à Moscou, prefere

se ater aos flagelos do capitalismo, igualmente assombrosos, que se manifestam, de

seu ponto de vista, no entanto, bem mais sutilmente. Camus, por sua vez, esboça a

1946. Le Temps des meurtrières, faz, claramente, uma alusão a linha editorial da revista Les Temps Modernes. 775 CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Carnets. Cahier V.p.1026. 776 Notar também Conversations avec Koestler, em Cahiers V, p.1072 777 Manès Sperber(1905-1984), ensaísta e romancista de origem austríaca, publicou em 1938 Análise da Tirania no qual se interroga sobre o engajamento intelectual face ao totalitarismo. Arthur Koestler(1905-1983). Húngaro, publicou o já referido Zero e Infinito que reflete sua experiência no alto escalão do comunismo internacional. Participou da Guerra da Espanha. 778André Malraux. General da Resistência, autor da Condição Humana entre outros, tornou-se porta-voz de De Gaulle e, posteriormente, ministro da cultura da França.

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defesa de uma “utopia relativa, modesta, refutando niilismo e «realismo político»”779:

“29 octobre. Koestler-Sartre-Malraux-Sperber e eu. Entre Piero de La Franscesca e

Dubuffet. K. – Necessidade de definir uma moral política mínima(...)Exame de

consciência. A ordem das injustiças(...)M.–Impossibilidade momentânea de tocar o

proletariado. É o proletário o mais alto valor histórico?(...)C. - A utopia. Uma

utopia, hoje, lhes custaria menos caro que uma guerra. O contrário da utopia é a

guerra. De uma parte. De outra parte: « Vocês não crêem que nós somos todos

responsáveis pela ausência de valores? E que, se nós, que viemos do

nitzschianismo, do niilismo e do realismo histórico, nós disséssemos, publicamente,

que nos enganamos e que existem valores morais e que doravante nós faremos o que

for necessário para lhes fundar e lhes ilustrar, vocês não crêem que seria o começo

de uma esperança?» S. Não posso guinar meus valores morais unicamente contra a

União Soviética. Pois é verdade que a deportação de vários milhares de homens é

mais grave que o linchamento de um negro. Mas o linchamento de um negro é

resultado de uma situação que dura mais de cem anos, e mais, representa, finalmente,

a infelicidade de tantos milhões de negros através do tempo quanto «Tcherkesses»

deportadas. K. É necessário dizer que, enquanto escritores, nós traímos à história

se não denunciamos o que é preciso denunciar. A conspiração do silêncio é nossa

condenação aos olhos daqueles que nos seguirão. S.-Sim.”780

A fresta para a intimidade de Camus, fornecida pelos cadernos, entremostra o

dilema, par excellance, de uma época: “Estamos num mundo no qual é preciso

escolher ser vítima ou carrasco. A escolha não é fácil.”781 Em outubro, Camus

confessa: “Dilaceramento no qual estou, com a idéia de fazer estes artigos para

Combat.”782

O primeiro artigo de Nem vítimas nem carrascos – a que já nos referimos no

momento da análise de A Engrenagem (cf.na parte I) - aparece em Combat em 19 de

779 LÉVI-VALENSI, J. Camus à Combat.p.607. 780 CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Carnets. Cahier V.p.1073-4.(29,octobre) Notemos que, como em A Engrenagem, Sartre admite os percalços e mesmo as injustiças do processo revolucionário. Contudo, o eixo de sua postura ainda se mantém nas exigências da história e na inexorabilidade da moral da responsabilidade, condenação à liberdade em linguagem sartreana. Lembremos a “tomada final” na cena da “despedida” entre Jean e Lucien, na qual, deportado e moribundo, o editor do jornal clandestino La lumière “absolve” o chefe-revolucionário que o exilara: “Lucien aperta as mãos de Jean entre as suas com força: - Você fez o que pôde. Jean passa seu braço entorno dos ombros de Lucien e o aperta contra si: - Meu irmãozinho...”(SARTRE, J-P. L´Engrenage, p.218.) 781 CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Carnets. Cahier V.p.1016(septembre) : 782 CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Carnets. Cahier V.p.1072.(octobre)

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novembro de 1946783, e se intitula O século do medo: “O século XVII foi o século das

matemáticas. O século XVIII o das ciências físicas e da biologia. O nosso século XX é

o século do medo.”784

Camus, como tivemos a oportunidade de mencionar, à luz do artigo sobre

Hiroshima, de 8 de agosto de 1945785, se atêm, primeiramente, à crítica das escolhas

da modernidade, questionando os rumos da “civilização mecânica” - da ciência -

confrontada ao “seu último degrau de selvageria:”786 “seus últimos progressos

teóricos ameaçam negá-la a si própria, e visto que seus aperfeiçoamentos práticos

ameaçam a terra inteira de destruição.”787

Com uma análise de extrema propriedade até mesmo para a compreensão da

geopolítica da atualidade do terceiro milênio, Camus prossegue notando que a

civilização contemporânea de seu tempo se aprimora no ideal hobbesiano de tornar,

mais do que nunca, o medo, uma técnica de controle social: “se o medo em si não

pode ser considerado como uma ciência, não há dúvida que ele seja, entretanto, uma

técnica.”788

Este homem mecanizado, dominado pelo medo, traumatizado pela guerra,

silenciado pela indiferença a quem se dirige Camus, “segrega desumanidade” pois se

encontra aprisionado pelo fatalismo. A engrenagem da morte dele se apoderou: Ele

não fala mais a linguagem humana, apenas decanta a cifra das ideologias, e mata por

procuração: “Hoje, ninguém fala mais(salvo os que se repetem), pois o mundo nos

parece conduzido por forças cegas e surdas que não ouvem os gritos de advertência,

nem os conselhos, nem as súplicas. Alguma coisa em nós foi destruída pelo

espetáculo desses anos que viemos de passar.”789

Camus ressalta a dissolução da singularidade humana face o apogeu da

abstração das ideologias e o esvair dos denominadores comuns que tornam a

comunicação e conseqüentemente, o reconhecimento dos homens entre si possível: “

783 A publicação segue nos dias 20, 21, 23, 26, 27, 29 e 30 de novembro de 1946. O título geral, Nem vítimas nem carrascos, que aparece em primeira página, em grandes letras, é retomado a cada novo artigo. Lembremos que Merleau-Ponty publica Humanismo e Terror em Les Temps Modernes entre outubro e dezembro de 1946 e julho de 1947. 784 CAMUS, A . Camus à Combat, p.609. Ni victimes ni bourreaux, Combat 19 novembre 1946. 785 CAMUS, A. Essais, 291-3. Combat 08 octobre 1945. Nossa análise se encontra nas páginas anteriores, pp. 119-123 786 CAMUS, A. Essais, 291-3. Combat 08 octobre 1945. 787 CAMUS, A . Camus à Combat, p.609. Ni victimes ni bourreaux, Combat 19 novembre 1946. (Essais, 331.)(Oeuvres Complètes, p.436) 788 CAMUS, A . Camus à Combat, p.609. Combat 19 novembre 1946. (E, 331.)(OC, p.436). 789 CAMUS, A . Camus à Combat, p.609. Combat 19 novembre 1946. (E, 331.)(OC, p.436).

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O que em nós foi destruído foi a eterna confiança no homem que sempre lhe fez crer

que se poderia retirar de outro homem, reações humanas, falando-lhe a linguagem da

humanidade. Nós vimos mentir, aviltar, matar, deportar, torturar, e a cada vez, não

foi possível persuadir aos que o faziam, que o fizessem, porque eles estavam seguros

de si e porque não se persuade uma abstração, a saber, o representante de uma

ideologia.”790

É uma crise de reconhecimento do outro, a perda de um coeficiente comum da

humanidade que Camus detecta em seu tempo, e que sintetiza pelo impasse

comunicativo: “ o longo diálogo dos homens acaba de se interromper. E, entenda-se,

um homem a quem não se pode persuadir é um homem que amedronta.”791

Como no filme de Stanley Kubrick Dr.Fantástico, que metaforiza o período

em questão, a engrenagem da morte parece ter sido acionada, e nenhuma palavra é

capaz de detê-la. Em Dr. Fantástico, um general americano transtornado pela

obsessão da guerra, envia, em código, a ordem de soltar bombas atômicas em

território soviético à um avião militar em missão no Alaska. O medo da

“interferência” do inimigo, exige que a linguagem humana seja substituída pelos

enigmas dos códigos militares: a ordem é que o rádio seja cortado e, doravante,

nenhuma comunicação é possível; o mecanismo da morte, do lado americano,

finamente concebido e irrepreensível, está definitivamente acionado. Do lado

Soviético, a tecnologia do medo impede qualquer esperança de salvação para a

humanidade. Entrementes, os soviéticos haviam criado, sob sigilo, “a bomba do fim

do mundo”, um artefato nuclear elaborado para, sem recurso do homem, detonar uma

gigantesca explosão capaz de destruir a Terra, caso o território soviético fosse

atingido por armas nucleares: o mega-armamento soviético, tal como o de seus

inimigos, não pode ser desarmado. Concebido pela técnica do medo, o mecanismo

soviético absolutamente preciso é irrefreável, foi parido para operar mesmo no

silêncio profundo das terras aniquiladas. Assim, os homens, de um lado e de outro “do

rio” se encontram, portanto, reféns da tecnologia que dispõe, e não podem mais

impedir, de modo algum, o decurso sinistro escolhido previamente por eles mesmos.

Apenas duas esperanças restam à humanidade, segundo a lógica implacável do roteiro

de Kubrick. A primeira, é a esperança que ocorra alguma falha ou interrupção no

intrincado mecanismo da morte concebido para levar à cabo de modo absolutamente 790 CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437). 791 CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437).

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preciso e eficaz a idéia sinistra de seus elaboradores. (Os espectadores – partilhando a

vontade de viver da humanidade - aguardam ansiosos todo o transcurso do filme,

aguardando, ironicamente, este erro humano “providencial” que devolveria as

esperanças de viver.) A outra esperança, que parece ainda mais promissora é a

“quebra de protocolo” e o encaminhamento de uma conversa “direta” – embora

mediada por tradutores – entre o presidente americano e o premier soviético. Nesta

conversação desesperada, carregada de emoções humanas, na qual a salvação de seus

povos está em jogo, os dois inimigos, antes incomunicáveis pela “interferência” das

ideologias, encontram, pela voz, tarde demais, seu denominador comum: a fragilidade

humana. Mas o(s) Dr(s).Fantástico(s), os senhores da guerra, com suas engrenagens

implacáveis– todos representados pelo mesmo ator - já acionaram o mecanismo da

morte que, apressando a ampulheta do tempo, mimetiza a ordem fatal da natureza: lei

irrevogável de aniquilação. A este mecanismo, surdo, não se persuade. Não há retorno

quando, em virtude das técnicas ou das ideologias, a comunicação entre homens e, por

conseguinte, a persuasão, não é mais possível. A obra de Kubrick se encerra com a

imagem de um “belíssimo” cogumelo atômico, irradiando o silêncio eterno impingido

pelas escolhas da modernidade: “ o longo diálogo dos homens acaba de se

interromper.”792

Ora, é esta paisagem dilacerante que Camus descreve. As ideologias são, de

seu ponto de vista, tecnologias que dissolvem o que há de humano no homem,

cerceiam suas “reações humanas” - e impedem o reconhecimento de seus

denominadores comuns: sua fragilidade e seu amor pela vida. No filme de Kubrick, é

extremamente significativo o fato dos “senhores da guerra” serem representados pelo

mesmo ator, o brilhante Peter Sellers. Ora, interpretando camusianamente este

aspecto, diríamos que os homens moldados pelas ideologias são, de fato, o mesmo. Os

“senhores da guerra” são clones oriundos da mesma forma, “que se repetem”, visto

que entoam a cantilena pré-fabricada pelos discursos refratários das ideologias. Não

são homens, são mecanismos da burocracia de estado, títeres pré-programados pelo

messianismo das ideologias que, à direita e à esquerda, se atêm às suas concepções

abstratas de progresso793.

792 CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437). 793 Como diz Camus, à época, numa mesa-redonda promovida por Civilization: “num plano técnico, de mais em mais, a presença humana, o contato humano é substuído pelo instrumento mecânico. Isto é válido também no plano social pois há um fenômeno internacional chamado de burocracia que faz que

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Camus detecta que está na perda da dimensão efetivamente humana da vida, a

razão profunda do colapso de sua época: “ Nós vivemos no terror porque a persuasão

não é mais possível, porque o homem foi abandonado inteiramente à história e ele

não pode se voltar para esta parte dele mesmo tão verdadeira quanto a parte

histórica, e que ele reencontra diante da beleza do mundo e dos rostos; porque

vivemos no mundo da abstração, dos carrascos e das máquinas, das idéias absolutas

e do messianismo sem nuances.”794

Entre inimigos que se dilaceram em vista de concepções de futuro, silenciados

pelos discursos blindados pelo maniqueísmo, Camus denuncia a “conspiração do

silêncio”795 e apela pela humanização do diálogo, revigorado pela conscientização

comum de que a existência humana frágil possui uma dimensão interrogante: “Nós

sufocamos entre pessoas que crêem ter absolutamente razão, seja em sua máquinas,

seja em suas idéias. Para todos àqueles que não podem viver senão no diálogo e na

amizade dos homens, este silêncio é o fim do mundo.”796

A alternativa que Camus assume se contrapõe às “ideologias assassinas” e

reúne àqueles que, segundo ele, estão “fartos de violência e mentira”, e “repugnam

matar seus iguais”797.

Do ponto de vista da responsabilidade do intelectual, para Camus, vencer à

técnica do “medo”, significa, então, testemunhar a injustiça de ambos os lados da

“trincheira”, cruzando o fosso que separa as ideologias e que impõe o silêncio

comedido diante da injustiça: “«Vocês não devem falar da depuração dos artistas, na

Rússia, porque disto se aproveitaria à reação.» «Vocês devem se calar sobre o apoio

dos Anglo-Saxões à Franco, porque o comunismo se aproveitaria disto.”798

em todos os escalões da relação com o Estado não se incida jamais numa pessoa humana.”(Camus, A. Oeuvres Complètes.p.679.) 794 CAMUS, A . Camus à Combat, p.611. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437). 795 Lembremos que, segundo o Cahier V, este é um termo e uma exigência de Koestler. Cf. CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Carnets. Cahier V.p.1074.(29,octobre) 796 CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437). 797 CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437). 798 CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437). De um lado, Camus, quebrando a “conspiração do silêncio”, sintetiza as constatações relatadas, tanto em Zero e Infinito de Koestler, quanto em De volta da U.R.S.S de Gide, nas quais os autores, em uníssono, denunciam à dissolução dos indivíduos frente ao projeto de futuro levado à cabo pelo totalitarismo stalinista, como podemos entremostrar numa passagem significativa do livro deste arraigado socialista defrontado ao espírito vigente nos processos e deportações promovidos por Moscou: “ O espírito crítico não é mais adequado(...)O que se exige presentemente é a aceitação, o conformismo. O que se exige, é uma aprovação de tudo que é feito na U.R.S.S; o que o regime procura obter, é que esta aprovação seja, não resignada, mas sincera, entusiasta mesmo. E o mais impressionante, é que conseguem. Por outro lado, a menor crítica é passível das piores penas, e de resto, logo sufocada. E duvido que em outro país de hoje, salvo talvez na Alemanha de Hitler, o espírito seja menos livre, mais

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Os objetivos de Camus, cruzar o fosso que a idéia - fixa das ideologias cava,

desumanizando o outro e cavando novos fossos, na medida em que as ideologias

facilmente identificam “outros” em meio a si mesmos. Evitar a normatização da

indiferença e do assassinato, recusar a configuração macabra que escolhe sua época.

Enfim, recusar peremptoriamente “um mundo no qual o assassinato é legítimo e a

vida humana considerada fútil.”799

Camus apela para um esforço de reconhecimento mútuo, no qual a

conscientização da fragilidade humana seja o denominador comum. Sauver les corps,

artigo seguinte de Nem vítimas nem carrascos, a que tivemos ocasião de nos referir no

momento da interpretação de A Engrenagem, procura restaurar o caráter transgressor

do assassinato, restituindo-lhe seu horror e, sobretudo, negando-lhe a legitimidade e o

referendo das idéias. Para tanto, ele exprime o elã de uma ”utopia relativa”, como

comenta Jacqueline Lévi-Valensi, pois, afinal, rejeita o “mundo tal como ele é”800: “

Em suma, gente como eu almejaria um mundo, não onde não se mate mais(não somos

tão loucos)Mas no qual a morte não seja mais legítima...”801

É neste sentido que podemos compreender o texto de Camus como um ato em

defesa de uma concepção rigorosa, e no limite, intransigente, da responsabilidade

intelectual. Enquanto, em nome de uma moral da responsabilidade, do lado de Sartre e

Merleau-Ponty legitima-se, no período, a violência “progressiva”, Camus se insurge

contra a filosofia da legitimação do assassinato: o que se mostra inadmissível, como

dissemos, é que, em robe de chambre, os filósofos, de seus escritórios, legitimem e

incentivam o derramamento de sangue: sobretudo se é o sangue alheio que está em

questão.

curvado, mais amedrontado(aterrorizado), mais vassalizado.”(GIDE, A. Retour de l´U.R.S.S. Paris. Gallimard, 1936.p. 67) De outro, Camus denuncia o liberalismo individualista capitalista e seu “fatalismo” economicista, que martiriza igualmente a singularidade humana reduzindo-a à sua dimensão produtiva. A ética capitalista protestante, neste sentido, para Camus, se traduz em termos humanos, na escravidão pelo trabalho. 799 CAMUS, A . Camus à Combat, p.612. Combat 19 novembre 1946. (E, 333.)(OC, p.438.) 800 CAMUS, A . Camus à Combat, p.612. Combat 19 novembre 1946. (E, 333.)(OC, p.438.) O trecho a que nos referimos talvez seja de alguma valia rememorar: “Tendo um dia dito que não mais admitiria, depois da experiência desses dois últimos anos, nenhuma verdade que me pusesse na obrigação, direta ou indireta, de condenar um homem à morte, os espíritos que eu estimava outrora, me assinalaram que eu estava na utopia, que não haveria verdade política que um dia nos conduzisse a este extremismo, e que seria necessário, ou correr o risco deste extremismo, ou aceitar o mundo tal como ele é.” 801 CAMUS, A . Camus à Combat, p.614. Combat 20 novembre 1946. (E, 334.)(OC, p.439.)

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O fato é que, aos olhos de Camus, os filósofos do Quartier Latin “não possuem

imaginação para a morte dos outros. 802 É um defeito de nosso século. Assim como se

ama por telefone, e que se trabalha não mais sobre a matéria, mas sobre a máquina,

se mata e se morre hoje por procuração. A ‘limpeza’(propreté) é conquistada, mas a

consciência perdida.”803

Esta “assepsia de gabinete” dos editores da Temps Modernes, que pretende

sujar as mãos com sangue dos outros, certamente, contrasta com a atitude camusiana.

Enquanto do Deux Margots, do Flore ou da cour aux ErNeSt, os elegantes editores da

Temps Modernes, passado o sufoco, seus amigos incentivam tecnicamente o

assassinato lógico de seus pares revolucionários, compensando sua inação por um

furor teórico, Camus, que conhece bem mais de perto as exigências da história,

encarnadas, seja na miséria do subúrbio da África do Norte aonde nasceu e se criou,

seja nas alcovas da Resistência parisiense, esforça-se para construir uma salvaguarda

filosófica da vida. Como ele próprio admite: “Estamos aqui, em efeito, na utopia e na

contradição. Pois nós vivemos, justamente, num mundo no qual a morte é legítima, e

nós devemos mudá-lo se não o desejamos assim.”804

Contra a utopia de que a engrenagem da violência progressiva, ou dos regimes

policiais quaisquer que eles sejam, instaurem a justiça terrestre, Camus contrasta sua

utopia modesta e, portanto, “menos onerosa” - um mundo no qual a violência não seja

mais legítima: “A morte nos re-envia, pois, à morte e nós continuaremos a viver no

terror, seja se o aceitarmos com resignação, seja se quisermos suprimi-lo com meios

que o substituirão por um outro terror.”805(...)É necessário concluir que, se pessoas

como nós vivem na contradição, elas não são as únicas, e aqueles que acusam de

utopia vivem quem sabe numa utopia diferente sem dúvida, porém, no fim, mais

onerosa.”806

O imperativo ético de “salvar os corpos”, “utopia em menor grau”, é erigido

portanto contra as ideologias absolutas que, à esquerda e à direita sacrificam os

homens singulares à história, em virtude de suas diferentes concepções do progresso:

802 Esta é uma chave importante para compreender a dimensão ética da narrativa em Camus: À pobreza da experiência de seus pares universitários, Camus contrasta a experiência da pobreza(ou da miséria da história). Seria impossível não lembrar do Walter Benjamin do anos trinta. O projeto de descrever e sensibilizar - ampliar a imaginação - “para a morte dos outros”, será retomado em O Estrangeiro e, principalmente, em A Peste. 803 CAMUS, A . Camus à Combat, p.614. Combat 20 novembre 1946. (E, 334.)(OC, p.439.) 804 CAMUS, A . Camus à Combat, p.614. Combat 20 novembre 1946. (E, 334.)(OC, p.439.) 805 CAMUS, A. Camus à Combat, p.614. Combat 20 novembre 1946. (E, 334.)(OC, p.439.) 806 CAMUS, A . Camus à Combat, p.615. Combat 20 novembre 1946. (E, 334.)(OC, p.439.)

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“...as ideologias marxista e capitalista, ambos baseados na noção de progresso,

ambos persuadidas que a aplicação de seus princípios devem conduzir fatalmente ao

equilíbrio da sociedade, são utopias em grau bem mais forte. E mais, elas estão nos

custando muito caro.”807

Camus anuncia os termos do dilema do engajamento da perspectiva do pós-

guerra: “o combate que esse engajará nos anos que virão não se estabelecerá entre as

forças da utopia e as da realidade, mas entre utopias diferentes que procuram se

inserir no real, e entre as quais não se trata senão de escolher a menos onerosa.”808

Contra os que o acusam de socialista utópico, Camus responde: “Vê-se que a

recusa da legitimação do assassinato não é mais utópica do que as atitudes realistas

de hoje. Toda questão é de saber se estas últimas custarão mais ou menos caro.”809

Entre os que batalham às cegas, em nome de idéias pré-concebidas, Camus

interpõe, afinal, o imperativo de um novo engajamento humanista.

Engajamento pela trégua, pelo reconhecimento mútuo, pela conscientização da

fragilidade humana, finalmente, pela salvaguarda daquilo que no homem está para

além dos interesses da história,“e que ele reencontra diante da beleza do mundo e dos

rostos”810: “Minha convicção é que nós não podemos mais possuir, razoavelmente, a

esperança de tudo salvar, mas que nós podemos nos propor, ao menos, a salvar os

corpos, para que o futuro seja possível.”811

Como tivemos já ocasião de sublinhar, “se trata, em resumo, de definir as

condições de um pensamento político modesto, noutras palavras, liberto de todo

messianismo, e desembaraçado da nostalgia do paraíso terrestre.”812

Assim, vale ressaltar, estes dois textos inaugurais de Nem vítimas nem

carrascos, já enunciam os pontos cardeais do engajamento ético-filosófico

camusiano.

*

Não obstante os dois primeiros artigos de Nem vítimas nem carrascos

representarem o âmago da postura de Camus, será importante, pacientemente,

reconstruir a argumentação que delineia a enunciação deste horizonte ético para seu

engajamento humanista. 807 CAMUS, A . Camus à Combat, p.614. Combat 20 novembre 1946. (E, 334.)(OC, p.439.) 808 CAMUS, A . Camus à Combat, p.614-5. Combat 20 novembre 1946. (E, 335.)(OC, p.439-40.) 809 CAMUS, A . Camus à Combat, p.615-6. Combat 20 novembre 1946. (E, 335.)(OC, p.440.) 810 CAMUS, A . Camus à Combat, p.611. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437). 811 CAMUS, A . Camus à Combat, p.614-5. Combat 20 novembre 1946. (E, 335.)(OC, p.440.) 812 CAMUS, A . Camus à Combat, p.616. Combat 20 novembre 1946. (E, 335.)(OC, p.440.)

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O artigo “O socialismo mistificado”, publicado no Combat do dia seguinte,

demonstra o esforço de Camus de criticar abertamente os rumos do comunismo em

prática no mundo, especialmente seu caráter absolutista e messiânico, se mantendo,

entretanto, numa perspectiva intransigentemente socialista. Camus se vale, aliás, do

elã socialista original - de justiça e de liberdade – para demonstrar que o totalitarismo

stalinista provoca o acirramento da contradição entre estas duas legítimas aspirações

socialistas, tornando-as absolutamente inconciliáveis.

De chofre, Camus, crítico de Maquiavel, pergunta se os socialistas, às voltas

com o terror813 de estado, devem, de fato, curvar-se ao princípio norteador do

realismo político: “pois o terror não se legitima senão se admitimos o princípio: «O

fim justifica os meios.»”814

Camus critica o preceito chave do maquiavelismo reavivando uma discussão

filosófica que dura mais de quinhentos anos; trata-se da contestação da precedência da

eficácia, que o realismo aponta como horizonte inescapável da política: “Não se pode

admitir este princípio senão postulando a eficácia de uma ação como seu fim

absoluto, como é o caso nas ideologias niilistas(tudo é permitido, o importante é

conseguir) ou nas filosofias que fazem da história um absoluto(Hegel, depois Marx:

sendo o fim a sociedade sem classes, tudo que a ela conduza, é bom).”

Para Camus, neste ponto, discípulo de Montaigne, também “é um erro julgar a

beleza e a grandeza de uma ação pela sua utilidade e imaginar que devemos fazer e

considerar honesto tudo que é útil.”815

Camus se dirige aos seus pares socialistas, relembrando seus vínculos

humanistas mais íntimos, anteriores ao verniz impermeabilizante das ideologias: Eles

aceitarão, como fazem os “comunistas”, e “como gostaria sua filosofia”, exercer eles

mesmos a violência em nome da “lógica da história”?816 Matar, deportar e calar, pelo

dever a um Estado instaurado em nome de uma filosofia da história que se pretende

813Camus, de fato tem por rival o terror. Contudo, “terror”, para Camus, significa, sobretudo terrorismo de Estado. É triste notar que esta dimensão do termo “terror”foi abolida do vocabulário mundial da atualidade do terceiro milênio. A reprogramação neurolinguística-midiática nos vela que a violência de estado é também, e sobretudo ela, “terrorista”. 814 CAMUS, A . Camus à Combat, p.617. Combat 21 novembre 1946. (E, 336.)(OC, p.441.) 815 MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.371. Montaigne, na época, está entre as leitura de Camus, como atesta o Cahier V, p.1081. 816 CAMUS, A . Camus à Combat, p.617. Combat 21 novembre 1946. (E, 336.)(OC, p.441.)

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“absolutamente verdadeira”? 817 Ora, diria Montaigne, “há regras falsas e muito

elásticas na filosofia.”818

O editor de Combat ressalta que os preceitos íntimos dos socialistas, ou,

noutras palavras, suas concepções, partilhadas, de um mundo honesto – isto é, justo e

equilibrado – são absolutamente contraditórias com os métodos empregados pelos

comunistas de seu tempo: se os valores humanistas do socialismo são

“fundamentados” no anseio primordial de justiça e no ela de liberdade, então, a

ideologia marxista, que se pretende verdade absoluta, é uma impostura: “Os

comunistas estão fundamentados razoavelmente a utilizar a mentira e a violência, que

não querem os socialistas.”819

Ainda com ecos da compreensão montaigniana do valor da moralidade no

exercício da justa política, Camus considera que as convicções humanistas do

socialismo não podem ser abandonadas em razão da “dialética irrefutável” da filosofia

marxista, pois, como diria o célebre diplomata de Bordeaux, “há coisas que um

homem de bem não faz nem em defesa do rei, nem em defesa da ordem e da lei, pois

«a pátria não destrói todos os deveres...»”820

Camus apela para que os socialistas abandonem a dialética inflexível da

concepção finalista da história marxista que “ludibria a justiça” e “suprime de

antemão a liberdade”821, em detrimento da “tênue esperança”822 de construir uma

sociedade “feliz e digna”823 no qual “os homens sejam livres, numa sociedade

justa.”824 É, afinal, uma alternativa ao “socialismo mistificado” ou à “revolução

travestida” que propõe Camus aos seus pares socialistas, estratégia que conserva a

crítica econômica do capital de Marx, desvinculando-a de suas práticas totalitaristas:

“ou admitimos que o fim justifica os meios, e , pois, que o assassinato pode ser

legitimado, ou renunciamos ao marxismo como filosofia absoluta, se limitando a

reter seu aspecto crítico, freqüentemente válido.”825

817 CAMUS, A . Camus à Combat, p.619. Combat 21 novembre 1946. (E, 336.)(OC, p.441.) 818 MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.370. 819 CAMUS, A . Camus à Combat, p.619. Combat 21 novembre 1946. (E, 336.)(OC, p.441.) 820 MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.371. 821 CAMUS, A . Camus à Combat, p.620. Combat 21 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.442.) 822 “faible espoir”(p.620) 823 CAMUS, A . Camus à Combat, p.620. Combat 21 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.442.) 824 CAMUS, A . Camus à Combat, p.620. Combat 21 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.442.) 825 CAMUS, A . Camus à Combat, p.620. Combat 21 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.442.)

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Camus desvincula o socialismo, fundado na exigência de dignos preceitos

morais originários, do “comunismo” marxista - maquiavelismo messiânico –

propondo perseguir a realização de uma “utopia” socialista “mais modesta”: uma

sociedade na qual o assassinato não seja mais legítimo, aonde o crime conserve sua

dimensão de horror, de transgressão absoluta.

É um engajamento modesto, mas que se traduz em termos de uma

responsabilidade intelectual intransigente: o pensamento não pode trabalhar em prol

da morte.

Ainda aqui, uma vez mais será esclarecedora a aproximação com o Montaigne

Do útil e do honesto. O diplomata de Bordeaux enfatiza: “Soneguemos aos perversos,

aos sanguinários e traidores, pretexto para se entregarem a seus instintos;

desprezemos essa justiça excessiva e atentemos para exemplos mais humanos.”826

Em Camus, trata-se também, como no humanismo de Montaigne, de sonegar,

ou melhor, suprimir, os pretextos intelectuais para a aniquilação “do outro”: seja ele

“oponente” ou “inimigo”. Recusar, pois, à legitimação e normatização intelectual da

morte, sob o pretexto da eficácia política ou do “reino dos fins”. É preciso negar-se à

alimentar o moto-contínuo da crueldade e da indiferença e admitir, com Montaigne,

que “mesmo contra o inimigo, nem tudo é permitido.”827

Vale ainda ressaltar, talvez, o lúcido presságio de Camus sobre o crepúsculo

da época das idéias absolutas: falência da esperança de uma racionalidade absoluta da

história que é um dos primeiros a testemunhar. Segundo o editorialista de Combat, se

seus pares escolherem permanecer na esperança messiânica,“eles demonstrarão que

este tempo marca o fim das ideologias, a saber, das utopias absolutas que se

destroem elas mesmas , na história, pelo preço que acabam por custar.”828

*

Os artigos seguintes se detém na crítica do conceito de revolução, propondo

uma renovação, uma redefinição da terminologia à luz do contexto político

internacional contemporâneo.

“Idealmente”, diz Camus, “a revolução é uma mudança nas instituições

políticas e econômicas adequadas ao reino de mais liberdade e justiça no mundo.”829

À luz da experiência histórica, adverte com mordacidade circunspeta, o conceito 826 MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.371. 827 MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.371. 828 CAMUS, A . Camus à Combat, p.621. Combat 21 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.) 829 CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.)

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muda de figura: “Na prática, é um conjunto de acontecimentos freqüentemente

infelizes que conduzem à feliz mudança.”830

Continua o editorialista, o que significa “revolução” quando, na atualidade,

pensamos no termo? “Mudança dos meios de produção, seja por uma legislação

segundo as leis da maioria, seja por ocasião da tomada de poder por uma

minoria.”831 Camus ressalta a inviabilidade e caducidade deste projeto: “É fácil ver

que este conjunto de noções não possui nenhum sentido nas condições históricas

atuais.”832

Camus ressalta, primeiramente, a caducidade do romantismo revolucionário,

inviável diante da corrida armamentista: “A tomada de poder pela violência é uma

idéia romântica que o progresso dos armamentos tornou ilusória.”833 Ele nota o

abismo existente entre a teorias revolucionárias concebidas no século XIX, e a

realidade contemporânea que exige redobrado ceticismo: “1789 e 1917 são ainda

datas, mas não são mais exemplos.”834

Por outro lado, Camus, diagnosticando o processo de mundialização

econômica, se mostra absolutamente cético em relação à mudança no sistema

produtivo através da legislação democrática. Segundo ele, no atrelamento atual da

economia européia à americana, a supressão das relações mediadas pelo liberalismo

entre estes dois países causada por uma eventual mudança no sistema produtivo traria

“tais repercussões sobre os créditos americanos que nossa economia se encontraria

ameaçada de morte.”835

Assim, pondera Camus, os franceses, de um ponto de vista lúcido, não podem

almejar produzir, sozinhos, uma revolução: não poderiam romper as barreiras,

militares e econômicas que determinam seu alinhamento.

Outra alternativa por ele descartada é a tese da “revolução em cascata”,

esperança na qual processos revolucionários nacionais permitissem, posteriormente,

uma internacionalização e generalização do movimento. Camus comenta ceticamente,

“foi-se um tempo no qual se pensava que a reforma internacional se faria pela

830 CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.) 831 CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.) 832 CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.) 833 “O aparelho repressivo de um governo tem toda a força de tanques e aviões. Seriam necessários tanques e aviões só para equilibrar.”( CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.)) 834 CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.) 835 CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.)

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conjunção ou pela sincronização de muitas revoluções nacionais; de algum modo,

uma adição de milagres.”836

Seguindo este raciocínio, à luz do contexto internacional, segundo Camus, só

há, portanto, uma alternativa para os partidários de uma “revolução” nos termos

clássicos: “não podemos pensar senão a extensão de uma revolução já sucedida.”837

E o editorialista de Combat não é o único, de seu ponto de vista, a compreendê-lo: “É

uma coisa que Stalin viu muito bem e também a explicação mais generosa que se

pode dar de sua política.”838

No melhor dos casos, portanto, segundo Camus, os partidários de uma

revolução socialista européia no senso clássico, devem almejar uma “minoridade bem

armada”839capaz de tomar o poder e, alinhada a Moscou, disposta a uma integração

posterior à Revolução Soviética.

Ora, seguindo a lógica da “guerra fria”, sendo os Estados Unidos uma potência

contrária, no mínimo, de força equitativa à hipotética “aliança internacional

socialista”, segundo o prognóstico de Camus, o significado do termo “revolução”,

adquirirá, de cada lado do conflito, o caráter de “guerra ideológica”: “mais

precisamente, a revolução internacional não existe sem o risco extremo de

guerra.”840 Ajuntemos: não sendo nação hegemônica neste conflito de proporções

mundiais, qualquer que seja o resultado do embate, escolher - no contexto francês que

Camus reivindica - a revolução, seria optar viver à sombra de impérios pré-

constituídos. Assim, acompanhando a lógica pró-revolucionária em suas

conseqüências lógicas, Camus ressalta “toda revolução do futuro será uma revolução

estrangeira. Ela começará por uma ocupação militar”841. E acrescenta, indo adiante:

“A revolução do futuro não terá sentido senão a partir da vitória definitiva e a

ocupação de todo o resto do mundo.”842

À sombra deste contexto pessimista Camus procura sublinhar, para um

público dominado pelos discursos pré-fabricados das ideologias, o que, de fato, está

em jogo, em termos humanos, quando se apregoa a revolução. É interessante notar

836 CAMUS, A . Camus à Combat, p.623. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 837 CAMUS, A . Camus à Combat, p.623. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 838 CAMUS, A . Camus à Combat, p.623. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 839 CAMUS, A . Camus à Combat, p.623. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 840 CAMUS, A . Camus à Combat, p.623-4. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 841 CAMUS, A . Camus à Combat, p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) O que fato de asseverou verdadeiro para os habitantes da “cortina de ferro”. 842 CAMUS, A . Camus à Combat, p.633.. Combat 27 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)

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que, em certo sentido, Camus, a partir de uma análise da conjuntura internacional,

refaz os cálculos da eficácia revolucionária: “No interior das nações, as revoluções já

custam caro. Mas, considerando o progresso que supostamente trariam, geralmente

se aceita a necessidade destes prejuízos. Hoje o preço que custaria a guerra da

humanidade deve ser objetivamente avaliado em relação ao progresso que se pode

esperar pela tomada de poder pela Rússia ou pela América.”843

A contribuição do engajamento de Camus, mostra-se então, antecipando a

dimensão ética de suas narrativas, um esforço (múltiplo) de avivar a curta imaginação

que cultivam os intelectuais em geral “para a morte dos outros”; No caso de Nem

vítimas nem carrascos, esforço de conscientização dos que “falam levianamente

(légèrement) de revolução”:844 “Creio de uma importância definitiva que se avalie e

que, ao menos uma vez, se imagine o que seria um planeta, no qual jazem insepultos

trinta milhões de cadáveres, depois de um cataclismo que nos custaria dez vezes

mais.”845

Para Camus, a idéia tradicional de revolução é anacrônica846, pois não leva em

conta nem uma economia mundializada, “onde não há ilhas”, e “as fronteiras são

vãs”847, nem “o progresso vertiginoso dos armamentos”848. Mesmo sendo

benevolente, raciocina Camus, isto é, “mesmo acordando, o que não creio, que a

guerra possa não ser atômica(...)a guerra de amanhã deixaria a humanidade tão

mutilada que a idéia mesma de ordem tornar-se-ia anacrônica.”849

Talvez seja interessante ressaltar, ainda que por um momento, o movimento

estratégico do texto. Notemos que, de começo, Camus contesta a política realista da

eficácia, pelo prisma moral, recusando sacrificar o “honesto” pelo “útil”.

No entanto, sua argumentação evolui procurando comportar a lógica do

adversário: Camus reverte então a premissa da eficácia da ação, por intermédio de

uma arguta análise da configuração política internacional, contra as esperanças

revolucionárias: “Marx podia justificar como o fez a guerra de 1870, pois ela era a 843 CAMUS, A . Camus à Combat, p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 844 CAMUS, A . Camus à Combat, p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 845 CAMUS, A . Camus à Combat. p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 846 De fato , no artigo seguinte, dia 26, Camus estende sua re-contextualização da concepção tradicional de “revolução”, aprofundando a lógica interna que a comanda, e, assumindo uma análise da conjuntura internacional que prenuncia a mundialização econômica, assinala seu anacronismo e suas conseqüências históricas possivelmente deletérias.(CAMUS, A . Camus à Combat, p.625-9. Combat 26 novembre 1946. (E, 33?.)(OC, p.44?.)) 847 CAMUS, A . Camus à Combat, p.628. Combat 26 novembre 1946. (E, 343.)(OC, p.448.) 848 CAMUS, A . Camus à Combat, p.628. Combat 26 novembre 1946. (E, 343.)(OC, p.448.) 849 CAMUS, A . Camus à Combat, p.633.. Combat 27 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)

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guerra do fuzil Chassepot e ela era localizada. Na perspectiva do marxismo, cem mil

mortos não são nada, em efeito, como pagamento pela felicidade de centanas de

milhares de pessoas. Mas a morte certa de centenas de milhares de pessoas, pela

suposta felicidade dos que restam, é um preço muito elevado.”(...) “Nós recusamos

objetivamente correr(...)um risco tão definitivo.850

Deste ponto de vista, a utopia relativa de Camus se mostra uma alternativa

consistente mesmo conservando a premissa de eficácia do realismo político: Afinal,

do prisma de um mundo alicerçado na tecnologia nuclear, a alternativa da “utopia

relativa” de “preservar a vida”, não é apenas uma escolha acertada do ponto de vista

moral, ela é, também e sobretudo, uma consistente alternativa estratégica. À sombra

de armas atrozes, como aliás, sublinharia um grande admirador de Epaminondas, é

“útil” ser “honesto”.

“O mundo tem a escolha entre o pensamento político anacrônico e o

pensamento utópico.”851 E adverte: “o pensamento anacrônico está nos matando.”852

A alternativa está desvelada, cabe, segundo Camus, enfileirar-se: ou aceitar as

conseqüências lógicas das premissas da revolução, isto é, assumir a responsabilidade

pela “imobilização da história”853 e pela guerra que se configura no horizonte desta

escolha, ou empreender “o renovação do conteúdo da palavra revolução”854, isto é,

engajar-se numa “utopia relativa”: construção de um mundo no qual a vida humana

não seja desprezada.

Camus, afinal, aposta na alternativa de procurar construir o presente, ao invés

de preparar o futuro: “Tratar-se-á unicamente de procurar um estilo de vida.”855

O objetivo é, talvez, modesto, mas, sem dúvida, nobre e lúcido: “fixar um

sentido à vida de todos os dias.”856

As expectativas revolucionárias de futuro, humanamente dispendiosas e

arriscadas, são substituídas pela utopia socialista modesta da renovação do presente

pelo estabelecimento de “normas indispensáveis a um mundo pacífico”857; “um

código de justiça internacional cujo primeiro artigo seria a abolição geral da pena

850 CAMUS, A . Camus à Combat, p.628. Combat 26 novembre 1946. (E, 337.)(OC, p.442.) 851 CAMUS, A . Camus à Combat, p.633.. Combat 27 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 852 CAMUS, A . Camus à Combat, p.633.. Combat 27 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 853 CAMUS, A . Camus à Combat, p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 854 CAMUS, A . Camus à Combat, p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) 855 CAMUS, A . Camus à Combat, p.638. Combat 29 novembre 1946. (E, 347)(OC, p.452.) 856 CAMUS, A . Camus à Combat, p.643. Combat 30 novembre 1946. (E, 351)(OC, p.456.) 857 CAMUS, A . Camus à Combat, p.638. Combat 29 novembre 1946. (E, 347)(OC, p.452.)

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de morte, um esclarecimento dos princípios necessários à toda civilização do diálogo

poderiam ser os primeiros objetivos...”858

Os artigos finais resumem a postura através da qual Camus – defendendo um

«novo contrato social» - pretende estimular o reconhecimento mútuo e suplantar as

barreiras ideológicas tendo em vista a salvaguarda da vida e dignidade humanas:

“salvar àquilo que ainda pode ser salvo para tornar o futuro possível, eis o grande

objetivo.”859

Sintetizando: “o que é preciso combater hoje, é o medo e o silêncio, e, com

eles, a separação dos espíritos e das almas que eles amealham. O que é preciso

defender, é o diálogo e a comunicação860 universal dos homens entre eles.”861 Ainda

aqui encontramos ressonâncias montaignianas na postura de Camus: “que nossas

penas molhem na tinta e não no sangue.”862

Outros dois aspectos de Nem vítimas nem carrascos valem ser seguramente

assinalados como manifestações expressas da concepção camusiano do engajamento,

que terá ramificações futuras.

Primeiramente, a analogia entre o mal e a peste: aspecto histórico-metafísico

que Camus se recusa banalizar: “a servidão, a injustiça e a mentira são pestes que

estilhaçam a comunicação e impedem o diálogo. É por isso que devemos recusá-

las.”863 Lamenta Camus, “estas pestes são, hoje, a matéria mesma da história e

muitos homens as consideram males necessários.”864

Depois, e não menos importante, a enunciação de uma concepção de

“resistência metafísica” - rebelião contra a injustiça da finitude - que se manifesta na

ação histórica se contrapondo ao sacrifício da vida singular à história, ou seja, como

dissemos noutra parte, delineamento de um engajamento contra a miséria humana na

história: “ É certo que nós não podemos escapar à história, visto que estamos

mergulhados nela até o pescoço. Mas podemos pretender lutar na história para

preservar esta parte do homem que não lhe pertence.”865

858 CAMUS, A . Camus à Combat, p.638. Combat 29 novembre 1946. (E, 347)(OC, p.452.) 859 CAMUS, A . Camus à Combat, p.641. Combat 30 novembre 1946. (E, 345)(OC, p.453.) 860 Notar que, para Camus, um é o diálogo, outra, a comunicação. Como veremos oportunamente, a comunicação exige um reconhecimento “afetivo” do outro (compassion, sympathie). 861 CAMUS, A . Camus à Combat, p.642. Combat 30 novembre 1946. (E, 345)(OC, p.453.) 862 MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.371. 863 CAMUS, A . Camus à Combat, p.642. Combat 30 novembre 1946. (E, 345)(OC, p.453.) 864 CAMUS, A . Camus à Combat, p.642. Combat 30 novembre 1946. (E, 350)(OC, p.455.) 865 Camus à Combat, p.642. Combat 30 novembre 1946. (E, 350)(OC, p.455.)

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Assim, é possível assinalar que, de certo modo, Camus procura re-situar o

termo “revolução” no sentido que lhe fixava Combat nos dias seguinte à liberação de

Paris: “suprimir a política para substituí-la pela moral.”866

Segundo Camus, esta “utopia relativa”, “revolução moral” pela preservação

intransigente da vida, seria a única utopia que, nos tempos assassinos que se

prenunciam, mereceria ser perseguida, pois, finalmente, seria “a única possível e ela,

somente, inspirada no elã(esprit)de realidade.”867

Talvez não seja excessivo sublinhar que este engajamento “pelos limites” de

Camus foi acusado de “angelismo” pela esquerda da época e, também, encarnado, de

maneira bem pouco cortês, no personagem “Lucien” que, em A Engrenagem de Sartre

(roteiro escrito no mesmo inverno) é editor do jornal clandestino “La Lumière”:

(Lucien) “Vocês conhecem este provérbio: «Não fazemos omelete sem quebrar os

ovos»? Pois bem, eu não gosto de quebrar os ovos, nem para fazer uma omelete».”868

Como Camus diz em seus cadernos do período, ressuscitando em estilo e

mordacidade os moralistes du XVIIème siècle: “Miséria deste século. Não faz muito

tempo, eram as más ações que mereciam ser justificadas, hoje, são as boas.”869

*

Antes de seguir adiante, nos parece útil procurar sintetizar a evolução da

postura de Camus face à história rememorando algumas importantes nuances

delineadas já no capítulo Os conquistadores de O Mito de Sísifo, passando pelas

Lettres à um ami allemand e por uma análise de conjunto de sua contribuição como

editorialista de Combat.

Em O Mito de Sísifo Camus já se referia ao imperativo de lutar contra a

miséria humana que testemunha na história em seu tempo. Rememoremos algumas

passagens esclarecedoras desta dimensão “engajada” do ensaio filosófico de estréia de

Camus: “Nossa época, suas ruínas e seu sangue, nos enchem de

866 “...É o que chamamos uma revolução.”(Combat, 4 de setembro 1944, Morale et Politique. p.171.) Merleau-Ponty, de sua parte, diz na mesma época: “A política é por essência imoral. Ela comporta «um pacto com as potência infernais»...”(MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror. Tempo Universitário.p.28.) Não é à toa, portanto, que André Abbou, um dos editores das obras completas de Camus trave uma relação de antagonismo direto entre Nem vítimas nem carrascos e o Humanismo e Terror: “ «Nem vítimas nem carrascos» é o exato oposto dos estudos de Merleau-Ponty.”( Oeuvres Complètes, II.1279.)Lembremos que Merleau-Ponty publica Humanismo e Terror em Les Temps Modernes também na forma de artigos, entre outubro e dezembro de 1946 e julho de 1947. 867 CAMUS, A . Camus à Combat, p.625. Combat 23 novembre 1946. (E, 341.)(OC, p.446.)Notar também Camus à Combat, p.633. Combat 27 novembre 1946. (E, 346.)(OC, p.451.) 868 SARTRE, J-P. L´Engrenage. p, 90. 869 CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Cahier V. p.1090.

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evidências.”870(...)“Consciente de não poder me separar de meu tempo, decidi me

incorporar a ele.”871(...) Assumi esta angústia ao mesmo tempo em que quis entrar no

jogo. Entre a história e o eterno escolhi a história porque amo as certeza. Dela, ao

menos, tenho certeza, e como negar esta força que me esmaga?”872 “ Sempre chega o

momento em que é preciso escolher entre a contemplação e a ação(...)Isto se chama

tornar-se homem. É preciso viver com o tempo e morrer com ele...”873Em sua

primeira elaboração do pensamento do absurdo, Camus, às vésperas da Segunda

Guerra mundial, já norteia sua concepção de confronto lúcido com a história,

almejando minimizar os prejuízos à dignidade humana causados pela monstruosidade

dos Estados: “ O mundo o tritura, eu o liberto.” 874 Embora passe despercebido por

boa parte dos comentadores, em O Mito, a conscientização do absurdo da condição

humana incide, pois, na história – trata-se, portanto, da primeira formulação expressa

do engajamento histórico-filosófico camusiano - pois a solidariedade metafísica que

ela engendra reverbera na recusa de sacrificar a singularidade da vida, dos homens

presentes, aos imperativos abstratos que apostam na construção do homem futuro.

Assim – sublinhemos - já neste texto primoroso, tanto por seu estilo, quanto pela

nobreza de sua intuição ética, Camus enxerga que o engajamento lúcido – que se

deriva da conscientização da condição humana absurda - é o que “se sente solidário

ao destino deste mundo”875, testemunhando pelo homem singular “ridículo e

humilhado”876 pelas forças surdas da história877.

Arriscando ser repetitivos, notemos que este esforço múltiplo de rejeição do

sacrifício humano à história ajuntada à solidariedade intransigente face à injustiça,

reconhecimento da alteridade e busca da humanização do diálogo surdo da guerra, são

os elementos que discernimos nas Lettres à um ami allemand: Este texto, como

tivemos ocasião de observar, representa um norteador moral da Resistência, pois, a

um só tempo, fundamenta e baliza a insubmissão pela violência como resposta à

violência da ocupação. Rememoremos que a atmosfera das Lettres está em

870 CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, p.165 871 CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, p.165. 872 CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, pp.165. 873 CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, pp.165. 874 CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, pp.165-6. 875 CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, p.165. 876 CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, p.165. 877 Veremos no capítulo seguinte que a dimensão narrativa da obra de Camus encarna este objetivo expresso de “dar rosto” ao homem niilizado pela indiferença das burocracias de estado, reavivando assim a pouca imaginação dos intelectuais para “a morte dos outros”.

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consonância absoluta com as preocupações presentes n O Mito: trata-se de resignar-

se878 à agir na história utilizando a única linguagem reconhecida pela força -

acrescentando, pelo consentimento pontual - em caráter de exceção absoluta - à

engrenagem da violência, “à atroz miséria deste mundo.”879 Nas Lettres, o

assentimento ao uso da violência na insurreição Resistente está também ancorado,

num sentido profundo, no engajamento metafísico contra a injustiça da condição

humana, “me parece que o homem deveria afirmar a justiça para lutar contra a

injustiça eterna.”880 Não custa ainda lembrar um significativo trecho da última carta,

no qual o propósito maior do engajamento camusiano de então é enunciado, a saber,

“afirmar a justiça para lutar contra a injustiça eterna. Criar felicidade para protestar

contra o universo de infelicidade.”881

Reagindo às exigências de seu tempo, e assumindo a postura enunciada n O

Mito de viver nele, Camus, em seus primeiros editoriais em Combat, alicerçado na

moral enunciada nas Lettres - lutar contra a injustiça mantendo o gosto pelo homem -

se atêm ao imperativo do engajamento “total” contra a injustiça e contra o sacrifício

inocente à história, que significa, fins de 1944, do “balestreiro camusiano”, opor à

“guerra total”, “resistência total.”882 Camus, neste período, colabora ativamente

através dos editoriais do clandestino Combat na mobilização não apenas da opinião

pública em prol da Resistência, mas sobretudo na mobilização da “ação” pública,

incitando, assim, à sabotagem, à morte de milicianos e, estimulando, como vimos, até

mesmo, à vingança “de sangue”, tendo em vista as recentes atrocidades da ocupação

nazista e a exigência de justiça aos mártires sacrificados pela liberação. Após a

liberação de Paris, e durante a consolidação da liberação da França, período

conhecido como “depuração”, Camus mantém o tom intransigente em relação à

justiça devida à memória dos mártires, exigindo severidade na aplicação de penas aos

colaboracionistas, inclusive a pena capital, manifestando em Combat o desejo de “que

878 Nós fomos obrigados a vos imitar para não morrer.” CAMUS, A. Lettres à um ami allemand. OC, p. 242. 879CAMUS, A. Lettres à um ami allemand. OC, p. 223. “é muito(...)avançar em direção à tortura e à morte, quando se têm completa certeza que o ódio e a violência são coisas vãs por si mesmas(...)é muito bater-se(...)desprezando à guerra.” (LA, 222) 880 CAMUS, A. Lettres à um ami allemand. OC, p. 240. “Eu, recusando este desespero e este mundo torturado, queria somente que os homens, reencontrem sua solidariedade para entrar em luta contra seu destino revoltante.” (p. 240) 881 LA, 240. 882 Notar Combat clandestin: mars nº55 1944. p. 121.

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ela (a depuração) seja rápida e bem feita.”883 Camus não acredita que a re-construção

de uma sociedade dilacerada por guerras intestinas possa prosseguir sem o acerto de

contas com a memória: o esquecimento, afinal, é um dos ingredientes preferenciais do

niilismo contemporâneo, calcado na indiferença de fatos e valores. Perdoar, neste

sentido, significaria compactuar. Porém, o desenvolvimento da polêmica com

Mauriac revela que o compromisso de Camus com a memória se defronta com as

vicissitudes das barganhas morais da política cotidiana e teme ser dissolvido pela

mecânica dos tribunais da depuração. Após a desilusão de substituir a política pela

moral e de assistir pessoalmente aos tribunais, Camus ressalta o fracasso da

depuração, e conclui pela impossiblidade de erigir uma condenação à pena de morte:

“Em todo culpado, há uma parte inocente. O que torna revoltante toda condenação

absoluta.”884Filiando-se a um pessimismo político comum à Mauriac, Camus se

recusa, finalmente, a admitir à força como substituição à justiça.

Assim, de fato, Camus evolui em seu engajamento histórico-filosófico. Porém,

notemos, ele não evolui senão em direção às origens.

Ora, quando Camus universaliza sua condenação aos tribunais “políticos” e ao

“terrorismo” de Estado em Nem Vítimas nem carrasco, ele se re-inscreve no âmbito

de um engajamento face ao absurdo já delineado em textos anteriores.

Se equivoca, portanto, Raymond Aronson quando atribui uma reviravolta à

postura de Camus confrontado com o engajamento prudente de Mauriac. Guérin e

Weyemberg tampouco reforçam este solo ético que, afinal, O Mito de Sísifo e as

Lettres à um ami allemand reivindicam.

De certo há, de fato um aprendizado maior com a polêmica com Mauriac: com

o aprofundamento do díalogo crente - incrédulo Camus compreende a necessidade de

formular um engajamento “ecumênico” pela salvaguarda da vida humana. Como dirá

posteriormente, se “o absoluto é um assunto de cada um e não de todos”885,em

contrapartida, o engajamento pela salvaguarda da vida “é um trabalho de todos”886 no

qual “todos os homens de boa vontade poderão se re-encontrar.”887Veremos

oportunamente que a adesão do Padre Panneloux à brigada sanitária n´A Peste

simbolizará este universalismo reivindicado pelo engajamento camusiano; dirá Rieux 883 Combat 18 octobre 1944. Segundo Lévi-Valensi este texto muito provavelmente é exclusivamente de Camus. 884 CAMUS, A. Correspondance Jean Grénier-Camus.(p.141) Carta de 21 de janeiro de 1948. 885 CAMUS, A. La crise de l´homme. OC,II, p.744. 886 CAMUS, A. La crise de l´homme. OC,II, p.745. 887 CAMUS, A. La crise de l´homme. OC,II, p.744.

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ao velho sacerdote engajado nas “brigadas sanitárias” de Oran: “Trabalhamos juntos

por alguma coisa que nos rúne além das blasfêmias e das preces. É o que

importa(...)Odeio a morte e o mal, o senhor sabe. E queira ou não queira, estamos

juntos para sofrê-los e combatê-los.”888

Não obstante, é preciso frisar, não é Mauriac o irradiador deste compromisso

com a vida que caracteriza o engajamento de Camus, mas seu alicerce ético

originário, a pedra de toque de seu edifício ético, isto é, a de Sísifo. É seu próprio

alicerce que Camus volta a reivindicar, suas próprias convicções originárias. São,

afinal, principalmente, as origens de seu próprio pensamento que inspiram sua

abordagem renovada do presente.

Suas intenções e inclinações primitivas, consolidadas desde a assunção do

absurdo da condição humana n O Mito de Sísifo, lhe re-orientam.

É a evolução às origens, em seu primeiro degrau, que se consolida na última

contribuição de Camus para Combat: necessidade de consolidar um pensamento

interrogante, “ciente de seus limites” e resignado no esforço de promover a

salvaguarda da grandeza e da singularidade humana, dissolvida pelo fatalismo das

engrenagens da miséria histórica. Neste sentido o artigo fundamental Salvar os

corpos, que circunscreve o âmago do engajamento humanista “maduro” de Camus -

utopia relativa de construção de uma sociedade na qual a vida humana não seja

desprezada, na qual o assassinato não seja mais legítimo - pode ser considerado um

desdobramento direto de um engajamento filosófico-histórico já enunciado, aliás

magistralmente, em linhas extremamente significativas de O Mito de Sísifo: “a

criatura é minha pátria(...)Mesmo humilhada a carne é minha única certeza. Só posso

viver dela(...)Por isso escolhi este esforço absurdo e sem alcance. Por isso estou na

luta.”889

Há, entretanto, uma tênue mas significativa nuance que diferencia os dois

momentos. Se bem que todo engajamento camusiano esteja alicerçado num

diagnóstico histórico pessimista, e sobretudo, num diagnóstico pessimista da condição

humana, em Nem vítimas nem carrascos se exprime abertamente uma postura de

“predicação”ética, ou seja, de tentativa de constituição positiva de um valor – o valor

da vida singular - erigido como único valor válido num mundo destituído de todos os

valores. A fragilidade da vida contra a qual se insurgia o homem absurdo, a 888CAMUS,A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397. 889 MS, 166.

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solidariedade nascida entre os homens diante da lei cósmica da finitude que o

sentimento do absurdo consolidava, prenúncios de uma moral tácita e, no limite,

individual em O Mito de Sísifo, tornam-se, em Nem vítimas nem carrascos, os eixos

de uma argumentação verdadeiramente ética que, tendo por foco as exigências

coletivas da conjuntura histórica imediata, aprofunda a reflexão sobre os limites da

ação e do pensamento: o que se mostrava, anteriormente, uma intuição moral,

consolida-se numa reivindicação ético-histórico-filosófica responsável, não obstante

“modesta” face aos empreendimentos revolucionários de seu tempo; a constituição de

um novo contrato social, em torno da preservação da vida.

Na postura de Camus, portanto, não há reviravolta: ele busca, admitindo e

enfrentando os paradoxos que a realidade lhe apresenta - “conciliando aspectos

contraditórios”890 - amplitude e equilíbrio; em suma, procura encontrar “a justa

medida”. Por intermédio da mudança, busca coincidir consigo mesmo na medida em

que se mantêm fiel, mesmo se moldando aos impactos da realidade, às premissas

éticas originais do absurdo. Impossível não perceber a insinuação ainda que

inconfessa de uma metodologia pascaliana de pensamento que insistimos ser

apropriado restaurar: “Não mostramos nossa grandeza ficando numa extremidade,

mas tocando as duas ao mesmo tempo e enchendo todo o intervalo(...)talvez seja um

súbito movimento da alma de um ponto a outro desses extremos, e talvez ela não seja

senão num ponto, como o tição de fogo.”891 Como no fragmento do “tição de fogo”,

em Combat Camus perfaz uma passagem contínua do pró ao contra - num circuito que

envolve o escrutínio dos extremos - procurando, pelo movimento mesmo, equilíbrio

com seu elã de vida e de justiça892. Neste sentido, ele faz a experimentação do

pensamento interrogante que se constrói e re-constrói à medida que é elaborado e re-

elabora a realidade presente de seu mentor: é assim que a razão absurda constata e

convive com seus limites.

Observadora arguta deste período, Simone de Beauvoir sintetiza a querela da

época depositando um olhar mordaz sobre os escrúpulos “clássicos” do argelino:

“Mauriac pregava o perdão(...)os comunistas exigiam rigor(...)Merleau-Ponty

subordinava a moral à política de maneira bem mais resoluta do que jamais outro 890 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, I. p. 679. “O empreendimento de pensar, de reconstruir, de conciliação entre os aspectos contraditórios...”(Mesa-Redonda promovido por Civilization, novembro de 1946) 891 PASCAL, B. Pensées. (L.681-Br.353) 892 Como, alias, bem nota D. H.Walker em WALKER, D-H. Albert Camus – Les Extremes et l´Equilibre. p.iv.

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existencialista fizera. Nós saltamos este passo com ele, conscientes de que o

moralismo era a última cidadela do idealismo burguês(...) em Combat, Camus

procurava um «juste milieu».”893

***

893 BEAUVOIR, S. La Force des Choses. pp.31-151.

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6) Engajamento filosófico, engajamento literário: a dimensão ética da imagem em

Camus

“A pintura faz uma escolha. Ela«isola», que é a sua maneira de unificar. A paisagem isola no espaço o que normalmente se perde na perspectiva. A pintura de cenas isola no tempo um gesto que normalmente se perde num outro gesto. Os grandes pintores são aqueles que dão a impressão que a fixação acabou de ser feita (Piero della Francesca) como se o aparelho de projeção acabasse de parar.”(CAMUS, A. Cahier V.p.1079-80)

No mesmo mês da publicação de Humanismo e Terror e Nem vítimas nem

carrascos, novembro de 1946, Merleau-Ponty e Albert Camus debatem em Paris

numa mesa-redonda promovida pela revista Civilization sobre a “atualidade” e os

desafios do pós-guerra. Será significativo constatar nestas transcrições,

primeiramente, um diagnóstico ainda mais contundente de Camus a respeito dos

problemas ético-históricos que acometem sua época, além do esforço claro, ainda que

modesto, de propor um engajamento ético-histórico-filosófico alternativo face à

paisagem crepuscular que se prenuncia. Será possível notar também, por intermédio

das réplicas de Merleau-Ponty e de Georges Friedmann ao pronunciamento de Camus,

duas das objeções maiores erigidas contra seu pensamento: as acusações de utopia e

de pessimismo político. Antes de partir para a análise das narrativas de Camus

acrescentaremos ainda referências a outros dois textos extremamente expressivos na

intenção de delinear de maneira ainda mais fidedigna e aprofundada, tanto a postura

histórico-filosófica de Camus - Nous autres meurtrières - quanto com o objetivo de

compreender melhor a dimensão ética da imagem na constituição da filosofia

camusiana - La crise de l´homme. Observemos que ressaltar de maneira

pormenorizada o engajamento alternativo de Camus, permitirá fixar melhor e, de

alguma maneira, antever, a intertextualidade ética de suas obras literárias, que partem,

como nas análises da “atualidade”894, do diagnóstico da civilização à prescrição(ou

prédication)ética. Numa palavra, Le Malentendu será abordado a partir da temática

do esquecimento - do outro e das origens - e do fatalismo; Caligula será entrevisto

sob o prisma dos problemas da vontade de potência, da desmedida e do niilismo 894 “Actuelles” versus “Situations”.

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contemporâneos. O Estrangeiro, a partir da temática da revitalização da

singularidade, do engajamento pela “grandeza humana” e das denúncias da

indiferença e do terrorismo de Estado; A Peste, como modelo simbólico do

engajamento ético-histórico-filosófico camusiano. Encerrará este capítulo uma

menção ao mito de Sísifo, re-situando assim a concepção de engajamento decorrente

da intertextualidade dos escritos ético-políticos, d O Estrangeiro e d A Peste, à luz do

elã filosófico original de Camus.

*

Na mesa-redonda promovida pela revista Civilization, à pergunta “ o que pode

e deve der salvo ?”895Camus responde por intermédio de uma longa elocução bastante

clara e organizada, de começo, reformulando e precisando à questão: “«Qual é o

destino do indivíduo?» Nós todos sabemos, todos nós pressentimos que ele vai ser

morto(...)Se nós queremos salvá-lo, então duas questões se impõem. Primeiramente:

quais são os princípios de fraqueza que no indivíduo de hoje, lhe conduzem a ser

sacrificado mais cedo ou mais tarde? E, em segundo, quais são os fatores exteriores,

históricos e ideológicos que ameaçam o indivíduo e o sacrificarão mais cedo ou mais

tarde?”896

Para Camus, os princípios de fraqueza do homem contemporâneos são o

“individualismo anárquico” que está “ultrapassado pela história” e que “nós

carregamos em nós mesmos”897 e a inclinação à solidão - ao esquecimento da

existência dos outros - noutras palavras, a tentação da indiferença: “estou

profundamente convencido de que o homem não está só.”898 Para Camus, é, afinal, de

começo, a própria psicologia do homem contemporâneo, fundada no individualismo e

na indiferença, que lhe conduz “a ser sacrificado mais cedo ou mais tarde.”899

895 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 678. A pergunta é lançada em meio a uma discussão da qual participam também Jean Wahl e Maurice de Gandillac, no momento em que Georges Friedmann admite a existência de um denominador comum entre a América e a U.R.S.S - o advento da “«civilização técnica»”, que impõe uma clivagem absoluta entre “«meio urbano» e «meio natural»”, conduzindo à “mecanização da vida” e produzindo “alienação social” e, ademais, arriscando dissolver por completo a singularidade dos indivíduos. Friedmann, no entanto, pondera que “«um Estado socialista está bem melhor armado que um Estado capitalista para resolver estes problemas»”, acrescentando “«que desde o século XIX, o estatismo crescente dos estados democráticos ameaça a liberdade dos indivíduos. Trata-se hoje« não de lamentar o passado, mas de ver como ajudar o florescimento do indivíduo nas civilizações que hoje se preparam...»”(OC, II, pp.677-8) 896 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 678. 897 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 678. 898 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 678. 899 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 678.

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Do ponto de vista dos fatores exteriores que o ameaçam, continua Camus, o

fator que, de começo, promove o sentimento dominante de medo é “o silêncio” –

“Não há mais diálogo possível num mundo aonde todos são surdos”900 : “O que

aprendemos nestes anos é que não podemos viver senão num mundo aonde

entretendo com um homem raciocínios humanos, receberemos reações humanas. Ora,

aprendemos que há espécies de homens com os quais de nada vale entreter

raciocínios humanos. Nenhum dos internos dos campos de concentração teria tido a

idéia de persuadir aos S.S. que deles se ocupavam, de que não deveriam fazê-lo.

Deste ponto de vista, nós estamos num mundo do silêncio, ou seja, da violência.”901

Depois, continua Camus, elencando às forças que alquebram o homem

contemporâneo, “a abstração” do homem singular, dissolvido pelas ideologias e pelas

burocracias de Estado (Leviatãs cada vez mais cegos e indiferentes à dimensão

efetivamente humana da existência): “num plano técnico, de mais em mais, a

presença humana, o contato humano é substuído pelo instrumento mecânico. Isto é

válido também no plano social pois há um fenômeno internacional chamado de

burocracia que faz que em todos os escalões da relação com o Estado não se incida

jamais numa pessoa humana.”902

“Uma terceira característica da época atual”, continua Camus, “é a

substituição progressiva e inevitável do homem real, do homem de todos os dias, do

homem concreto, pelo homem histórico. ”903 “Mais e mais”, adverte Camus em tom

sombrio, “estamos politizados...” 904

Sublinhemos que Camus atribui esta desumanização progressiva do homem, à

politização progressiva da sociedade, no sentido que é o domínio dos discursos pré-

fabricados, das ideologias, que impermeabiliza às reações e percepções humanas. Se,

na experiência humanizada da comunicação, existe bem mais do que simples troca de

palavras, é necessário sobretudo um esforço de reconhecimento do outro905,

fenômeno idêntico de refração ocorre nos testemunhos às atrocidades cometidas em

nome deste duelo entre concepções de civilização: a observação dos fatos está

desviada, diluída ou corrompida pelo verniz dos pressupostos políticos. Camus

900 CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes,II. p. 687. 901 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679. 902 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679. 903 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679. 904 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679. 905Quando esta experiência de interlocução é mediada pela cifra das ideologias, mesmo havendo diálogo, não há comunicação e o que impera é o silêncio amedrontador.

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declara: “Vocês sabem, mais e mais a política interfere em suas reações e em suas

maneiras de considerar o mundo.”906

Arriscando uma analogia filosófica ilustrativa, se é, afinal, “o silêncio eterno

dos espaços infinitos”907 que amedronta o pós-copernicano Pascal, é “o silêncio

eterno do diálogo político”, refratário, que apavora o filósofo testemunha de

Auschwitz e de Hiroshima908: “amanhã será o monólogo do vencedor e o silêncio do

escravo.”909

Outra característica que ameaça o homem de sua época, assinala Camus, é “a

vontade de potência”910.

Segundo o diagnóstico de Camus na mesa-redonda de Civilization, este

conjunto de características - o silêncio refratário produzido pelas ideologias, a

abstração e a alienação produzida pelas burocracias de Estado, o esquecimento da

dimensão concreta do homem e multifacetada da vida e a vontade de potência

disseminada pelas concepções de política e de história – configuram a doença de uma

época, que se manifesta no sintoma contagioso e paralisante do “terror”911.

Paralisado pela alquimia do terror912, o mundo contemporâneo se conforma ao

fatalismo apregoado pelos senhores da guerra, esquecendo em seu presente vazio

dominado pela idéia de futuro, valores norteadores anteriores às expectativas de

felicidade e de sucesso sugestionadas pelas ideologias: “na medida em que o homem

crê no progresso inevitável, na medida em que o homem crê numa lógica histórica

inevitável, crê por exemplo, que, da sociedade feudal deve fatalmente suceder à

anarquia primeira, que as nações devem sair deste estágio feudal para o

internacionalismo, ou se preferem, a Sociedade das Nações, e, em seguida, para a

sociedade sem classes, e, se baseando sobre este raciocínio absoluto, estabelece estes

objetivos históricos que se trata de atingir acima dos valores(...)Se, pois, nos

906 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679. 907 “Le silence éternel de ces espaces infinis n´effraie.”(Pascal, B. Pensées.L.201-Br.206) 908 Talvez seja interessante ressaltar que na origem destas duas “apreciações” estaria a conscientização lúcida da fragilidade humana. “Entre nós e o inferno, ou o céu,há apenas a vida, a coisa mais frágil do mundo(La chose du monde la plus fragile).”(Pascal, B. Pensées. (L.152-Br.213)) 909 CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687. 910 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679. “É por isso que os homens tem razão de ter medo, pois num mundo como esse é sempre por acaso ou por uma boa vontade arbitrária que sua vida ou de seus filhos é poupada.” CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687. 911 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679-80. “...dos 912 “Me parece incontestável que vivemos num mundo do terror, e com a sensação mais ou menos confusa, mais ou menos precisa do terror.” CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679.

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baseamos no racionalismo absoluto ou na idéia de progresso, qual quer que ela seja,

nós admitimos o princípio de que os fins justificam os meios.”913

As conseqüências lógicas desta submissão incondicional e fatalista à

concepção materialista da história, que reduz a vida ao progresso, segundo Camus,

são palpáveis nos crimes praticados, legitimados ou esquecidos em nome da

racionalidade política contemporânea: “se é inevitável que devemos chegar a esta

sociedade sem classes, não iremos hesitar na escolha dos meios, e a mentira, a

violência, o assassinato do homem, podem ser lamentáveis no costume das pessoas,

mas, em todo caso, não devem ser recusados, se, ao que se deve chegar, é uma coisa

inevitável, histórica e desejável.”914 Fatalismo maquiavélico idêntico, fundamenta o

cotidiano tautológico da sociedade (capitalista) da indiferença, consolidada numa

escatologia do sucesso: “Todo mundo hoje quer sucesso, pelo dinheiro ou pelo jogo.

Todo mundo quer triunfar(...)Tem-se razão quando se consegue. E quanto mais se

consegue, mais se tem razão. No limite é a justificação do assassinato.”915

Para Camus, o problema que infesta todos os domínios da ação incluindo aí a

tentação do fatalismo que circunda a contemporaneidade, é o de como se opor aos

refinados instrumentos coercitivos e deterministas da história, na absoluta “ausência

de valores”: “não possuímos nenhum Valor fundamentado a opor” às ideologias “e

se não temos nenhum valor – e me limito a constatar um estado de fatos – estamos no

niilismo.”916 Camus explicita a dimensão histórica do eclipse dos valores humanos,

intimamente ligado, a seu ver, ao conformismo e a indiferença: “as pessoas que não

acreditavam em nada durante a guerra, não tinham nada a dizer à Hitler porque sob

este aspecto, o niilismo absoluto tem o mesmo efeito que o racionalismo absoluto.”917

Neste ponto, a elocução de Camus, procurando sintetizar as forças que

dilaceram o homem contemporâneo, deixa o terreno do diagnóstico da civilização e

procura alçar uma dimensão “prescritiva”918, ainda que modesta para a época: “Se

913 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679-80. “...dos valores que estamos habituados por educação ou pré-julgamentos considerados como válidos.” 914 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 680. 915 CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes,II. p. 687. 916 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 680. 917 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 680. 918 O Dicionário Houaiss concede uma definição do verbete “prescrição” exata do sentido que pretendemos atribuir à dimensão “edificante” do pensamento de Camus: “5– conjunto das medidas não-cirúrgicas(medicamentos, dietas, outros cuidados)determinados pelo médico para o tratamento dos doentes.”(HOUAISS, A.Dicionário da língua portuguesa). À doutrina(intervenção cirúrgica), Camus oporia sua prescrição(isenta de dogmatismos, menos periclitante do ponto de vista do doente).

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pensamos que, de uma parte, o indivíduo tem seus erros, de outra, que ele está diante

de fenômenos coercitivos, nós devemos então nos dizer que é necessário se opor tanto

quanto possível a este destino.”919

É neste panorama no qual coabitam o declínio do homem e o eclipse dos

valores que, afinal, Camus inscreve seu engajamento alternativo, a necessidade de

estabelecer “as condições necessárias de um pensamento modesto”920: “o

empreendimento do pensamento, da reconstrução, da conciliação dos aspectos

contraditórios, não pode se fazer numa atmosfera de medo.”921

Camus almeja criar a possibilidade de um pensamento interrogante, capaz de

se construir à medida que constrói o presente, ao invés de suprimi-lo na esperança de

futuro. Ao invés de buscar construir uma verdade pré-deteminada, tratar-se-ia de

construir as condições da própria busca: Para tanto seria preciso fomentar, não a

uniformização das expectativas de futuro, mas a liberdade da experimentação, da

criatividade e do questionamento, forças de re-construção de uma realidade presente

permeada por aspectos contraditórios: “As pessoas que não possuem Verdade

absoluta não querem matar ninguém e pedem que não matem ninguém. As pessoas

almejam procura a verdade e para tanto precisam de certas condições históricas que

permitam esta procura.”922

Assim segundo a prescrição de Camus, como paliativo para o “terror”

generalizado do “outro” seria preciso desmantelar, primeiramente, o terrorismo de

estado, “para talvez aliviar as tensões”923 . Antes de tudo seria necessário, afinal,

“salvar os corpos para que o futuro seja possível”924, o que significaria “exigir a

supressão da pena de morte(...)Se isto puder ser feito(...)é o único procedimento que

pode hoje salvar o indivíduo.”925

Moralmente intransigente, o “pensamento modesto” de Camus se contrapõe

diretamente à “vontade de potência” da política em vigor - mesmo em sua roupagem

Contudo o termo empregado neste texto, veremos oportunamente, é mais contundentemente moralista, prédication. 919 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 680. Vale antecipar: eis uma chave de leitura valiosa para O Estrangeiro. 920 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. 921 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. Diga-se de passagem: Eis uma boa definição do pensamento segundo Camus – pensamento dos limites como veremos oportunamente - delineado pela premissa da modéstia: reconstrução, conciliação dos aspectos contraditórios. 922 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. 923 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. 924 CAMUS, A. Ni victimes ni bourreaux. 925 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681.

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socialista. Neste sentido, se o engajamento de Camus é compreendido – veremos -

como comedido do ponto de vista do elã político reformista típico de seu tempo,

notemos, entretanto, que do ponto de vista ético-filosófico ele se mostra até mesmo

rigorista: “...a política deste mundo, qual que ela seja, é baseada na vontade de

potência, no realismo e, conseqüentemente, em princípios que são falsos, nós

devemos rejeitá-los totalmente e retirar totalmente a confiança depositada à todos

os governos, quaisquer que eles sejam.”926

Mas, se do ponto de vista da conduta ético-político Camus é moralmente

rigorista na medida em que persiste substituindo - como acusa Sartre927 - a política

pela moral, é do prisma da responsabilidade do intelectual, como já tivemos ocasião

de mencionar, que o filósofo mediterrâneo se mostra verdadeiramente intransigente

926 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. Não é à toa que na mesa-redonda “uma longa intervenção de Friedmmann critique o pessimismo político de Camus” preferindo fomentar uma esperança teórica para o dilema entre moral e política: “A dialética de Hegel que tem por eixo «a ação recíproca da causa e do efeito» está no coração do problema «e permite encontrar como realizar concretamente esta interação do esforço político e moral.»”(CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 685.) Notemos que, apesar do sociólogo Georges Friedmann, normaliano philosophe da promoção de 1921, poder ser considerado um debatedor esclarecido, visto que se dedica ao estudo das relações do homem com a técnica - sua tese universitária, de 1946, O Problema do maquinismo industrial é precursora da “sociologia do trabalho - vê-se, contudo, que estando profundamente impregnado da linguagem hegeliana - marxista do racionalismo da época e à U.R.S.S (que visitou muitas vezes entre 1932 e 1936), ainda paira no diálogo com Camus, o problema da incomunicabilidade causada pelo jargão cifrado das ideologias: “Não há mais diálogo possível num mundo aonde todos são surdos”(CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687.) De um ponto de vista profundo a divergência intelectual entre Camus e Friedmann e Merleau-Ponty, pode ser considerada ainda mais vasta. Ora, a dupla de ex-normalianos é cultivada nos racionalismos de Spinoza e Leibniz e, em busca de relaxamento à luz dos parcos feixes de sol sob as árvores da cour aux Ernest, apreciavam certamente a leitura de um bom Descartes. De algum modo, as grandes esperanças do racionalismo metafísico ocidental ressurgem em suas abordagens da realidade, que, por intermédio ou não do marxismo, procuram re-estabelecer uma racionalidade absoluta para a história. Como diria Kuhn, em As Estruturas das Revoluções Científicas, a “matriz disciplinar” de Camus é oposta: Pascal, Montaigne, Epicuro, as praias de Argel e o panteon da deusa nêmesis. No caso de Camus, a filosofia procura ilustrar um estilo de vida condizente com a irracionalidade intrínseca da história: É neste sentido que procuraremos oportunamente salientar a importância de refazer a matriz disciplinar filosófica para uma adequada compreensão ética da atualidade. Renovar as fontes de abordagem crítica, revigorar autores tais que Pascal e Montaigne, por exemplo, nos permite pensar mais apropriadamente, afinal, um mundo (des)estruturado pela irracionalidade e pela paixão, como diagnosticou Pierre Hansen recentemente numa conferência na tradicional École Normale da rue d´Ulm - Une géopolitique des passions, novembro de 2006.(ENS, Diffusion des savoirs) É bastante significativo que num recente colóquio internacional dedicado aos pensamentos de Pascal e de Spinoza, final de 2006 no Cológio Internacional de Filosofia de Paris (Rue Descartes), o eixo das discussões, notadamente da parte de Anthony Mackenna e André Comte-Sponville, tenha sido o grande apelo atual do pensamento de Pascal e a caducidade de racionalismos totalizantes como o de Spinoza. Mesmo diagnóstico é o de Pierre Bourdieu que, com seu Meditações Pascalianas, lega, em seu última obra, a necessidade de abandonar as bitolas do sistema e da ambição totalizante para a sobrevivência da sociologia, se esforçando em notar nas críticas pascalianas ao racionalismo cartesiano uma alternativa “malograda”para a história da cultura. Camus, acreditamos, nos permite retomar este elo perdido com as antropologias da lucidez. Sobre Friedmann notar o recente GREMION-LOISON, P-F. Georges Friedmann. Un sociologue dans le siècle,1902.1977. Paris, 2004. 927 BEAUVOIR, S. La force des choses.p.152

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principalmente se imaginamos a audiência esperançosa, majoritariamente socialista,

que escuta sua enfática exposição: “todos aqueles que, direta ou indiretamente,

aprovam princípios deste tipo devem se considerar como assassinos e admitir que

até o momento eles agiram como assassinos, indiretamente, e por vezes

diretamente.”928 Camus conclui (para sobressalto de Merleau-Ponty), “ não se pensa

mal porque se é um criminoso, se é um criminoso porque se pensa mal.”929 É a sina

do “crime lógico” que ocupará O Homem Revoltado que Camus prenuncia aqui: “Se o

mundo é conduzido por falsos princípios se produz matematicamente o crime e o

assassinato.”930

É neste sentido que podemos considerar a alternativa de engajamento proposta

por Camus, não obstante estando fundamentada na premissa da modéstia, - forjada

sob o signo da incompletude e da interrogação -, de algum modo, dotada de

significativa radicalidade do prisma tanto ético-político, quanto do ângulo histórico-

filosófico. O engajamento camusiano, afinal, lida com as exigências do presente como

quem, efetivamente, se responsabiliza pelos aspectos obscuros da história931,

procurando neste momento crucial do pós-guerra não apenas “ não acrescentar” à

“miséria humana” - como se tratava nas Lettres à um ami allemand – mas, combatê-

la, como podemos observar pela atmosfera tanto da fala da mesa-redonda de

Civilization quanto do texto elaborado na mesma época, que, não por acaso, se intitula

Nós os assassinos: “...se não podemos suportá-la, devemos denunciá-la. E a primeira

coisa é justamente incitar este grito de revolta.”932

Em ambos os casos, delineia-se uma concepção intransigente da

responsabilidade do intelectual. Trata-se de emitir uma mensagem clara aos filósofos

de plantão - que molham suas penas no sangue e não na tinta – entrincheirados em

suas belicosas escolas e universidades, da barricada dos birôs ou sitiados nos cafés:

“as pessoas crêem que se fez bem o bastante não matando ninguém diretamente. Mas

na verdade, nenhum homem pode morrer em paz se não fez tudo o possível para que

os outros vivam...”(...)“Que um só homem possa justificar os princípios que

conduzem à guerra e ao terror e haverá guerra e terror(...)Existe terror porque os

928 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. 929 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. 930 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. 931 Camus execra àqueles “que não tem vontade de pensar muito tempo na miséria humana, preferindo falar de maneira muito geral e dizer que esta crise do homem é de todos os tempos...” (CAMUS, A. Nous autres meurtrières. Oeuvres Complètes,II. p. 686.) 932 CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 686.

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valores humanos foram substituídos pelos valores do desprezo e da eficácia, a

vontade de liberdade pela vontade de dominação.”933 Camus explicita seu

contraponto ferrenho em relação ao elã filosófico de seu tempo: “...àqueles que vivem

num mundo como esse sem condená-lo com todas as suas forças são, à sua maneira,

tão assassinos quanto os outros.”934

Camus propõe-se, por conseguinte, empreender uma empreitada que é antítese

daquela empreendida pelos seus colegas da revista Les Temps Modernes quando

publicam Humanismo e Terror enaltecendo uma teoria da responsabilidade sobre a

ação histórica que no limite justifica o crime de Estado, como diz Beauvoir,

“conscientes de que o moralismo era a última cidadela do idealismo burguês.”935

Camus se engaja na construção de um “novo contrato social”, no qual a morte não

seja legítima, como notamos em Nem vítimas nem carrascos, atitude que é a tônica

também do pronunciamento na mesa-redonda de Civilization bem como do conjunto

de textos ético-políticos de Camus neste período: “Trata-se de tomar partido.”936

Como ele diz algures, “cada palavra engaja.”937

A sociedade contemporânea refuga o homem coagindo-o em direção à morte

por intermédio das engrenagens do fatalismo e da indiferença: A filosofia do

“realismo político” é apreendida por Camus como a dimensão mais sofisticada desta

engrenagem da morte.

Pois bem, do balestreiro camusiano é necessário denunciá-la, incitar o grito de

revolta938, mas também, sublinhamos, restaurar valores necessários à preservação da

vida em contraponto ao niilismo - “exercendo a predicação”939: “se os valores

exemplares podem ser propostos em oposição a estes valores da potência, eu diria

que haveria uma chance sobre mil para que o indivíduo possa ainda conservar seu

lugar num mundo que ameaça suprimi-lo totalmente.” 940

933 CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687. 934 CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687. 935 BEAUVOIR, S. La Force des Choses. p.151. 936 CAMUS, A. Oeuvres Complètes,II. p. 682. 937 CAMUS, A Combat Clandestin, nº 58, juillet 1944. Cahier Albert Camus 8, p.136. 938 CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 686. 939 “prédication” in CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 682. 940 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 682. Vale talvez antecipar uma chave de leitura para O Estrangeiro colaborando na tese da intertextualidade ética entre a dimensão literária e política do engajamento de Camus: o indivíduo se enconta, afinal, como estrangeiro num mundo elaborado para a morte. Como já diagnosticara O Mito de Sísifo notando a perda do sentido da existência, a sociedade contemporânea refuga e impulsiona o homem em direção à morte, pelos mecanismos, mais e menos sofisticados da indiferença, sendo que a filosofia é vista como a dimensão mais sofisticada deste mecanismo...

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Seria talvez interessante relembrar um trecho do relato da conversa sobre os

rumos do engajamento pós-guerra com Koestler, Sartre, Merleau-Ponty e Sperber nos

cadernos de Camus que reforçam a postura de comprometimento pela restauração de

justos valores: « Vocês não crêem que nós somos todos responsáveis pela ausência de

valores?E que, se nós, que viemos do nitzschianismo, do niilismo e do realismo

histórico, nós disséssemos, publicamente, que nos enganamos e que existem valores

morais e que doravante nós faremos o que for necessário para lhes fundar e lhes

ilustrar, vocês não crêem que seria o começo de uma esperança?» 941

Camus equilibra pessimismo, persistência e modéstia, também no

pronunciamento na mesa-redonda de Civilization, preferindo prescrever uma lenta

construção da realidade presente pela renovação do “estilo de vida”942 pelos valores

humanos, face aos empreendimentos cirúrgicos de seu tempo: “esta ação teria algo

como uma chance sobre mil. Não é uma boa razão para não tentar.”943 Paira uma

atmosfera barroca sobre este dilema, pois, afinal - como na aposta imaginada por

Pascal - no que tange à aposta pela vida num mundo tangenciado para morte, “quem

perder já estará perdido.”944

Deste modo, como tivemos ocasião de mencionar no capítulo anterior por

intermédio de uma relação com Montaigne, procurar prescrever o exemplo moral, a

“utopia relativa” do honesto, face ao utilitarismo maquiavélico da política, num

mundo eivado pelo dilaceramento da desmedida é, em larga medida, “eficaz”, visto

que, nos termos de Nem vítimas nem carrascos, as outras utopias são

comprovadamente bem mais “onerosas”.

Vale ressaltar que a “predicação” dos valores humanos, do honesto em Camus,

assim como em Montaigne ou em Pascal(herdeiro crítico de Montaigne) nasce de uma

análise absoltamente pessimista da política e da história. Tomando em Montaigne, O

útil e o Honesto por paradigma, o exemplo de Epaminondas contrasta com dezenas de

outros exemplos da mal-sucedida prática universal da infâmia na política: “...os

direitos da virtude precisam sobrepor-se a qualquer outros. Coloquei Epaminondas

entre os homens mais eminentes; não volto atrás pois ergueu muito alto o que

considerava ser seu dever pessoal. Jamais matou um vencido; ainda que fosse para

libertar seu país, houvera eliminado um tirano ou seus cúmplices sem ser pelos meios 941 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. Carnets. Cahier V.p.1073-4. 942 CAMUS, A. Ni victimes ni bourreaux. 943 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. 944 PASCAL, B. Pensées. L.233-Br.418

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legais; e julgara perverso quem não poupasse o amigo porventura militando nas

fileiras do inimigo. Rica era sua alma, pois nas mais violentas e rudes ações humanas

permanecia bom e generoso e isso nas condições mais delicadas previstas na

filosofia945(...)Aprendamos pois com tão nobre modelo...”946 Em Pascal, tomando por

paradigma os Três Discursos sobre a Condição dos Grandes, a “edificação” pela

exemplaridade moral é conclusão de uma articulação para demolir a fundamentação

política e a “ordem histórica” visto que esfacela o direito divino, natural e “de mérito”

dos Reis: “Não evitareis vos perder, mas ao menos perderei-vos como homem

honesto. Há pessoas que se danam tão neciamente, pela avareza, pela brutalidade,

pelo deboche, pela violência, pelo furor! O meio que vos ofereço é sem dúvida mais

honesto.”947 Em Camus, o engajamento pelos “valores exemplares”948 é também

oriundo de um diagnóstico fatal, um último recurso contra a engrenagem da violência

que se alastra: “Nós estamos no limiar, será a morte ou uma nova civilização; e nossa

geração, quero dizer, àqueles que estão vivos hoje, é que devem prepará-la.”949

Se Montaigne contrapõe ao vasto elenco de hábitos pútridos dos governantes o

paradigma moral do bem sucedido general Epaminondas - “...senhor tão indiscutível

da guerra que a forçava a inclinar-se ante sua bondade”950 - Camus opõe ao monstro

frio dos Estados calculado pela álgebra do realismo político o exemplo da

“comunidade Barbu”951, fundada por Michel Barbu que, “cansado de esperar cinco

geraçãos pelo triunfo da história”952, em 1944, cede seus direitos de propriedade aos

945 “...Essa coragem tão grande, essa tenacidade e resistência à dor, à morte, à pobreza, foi por arte ou temperamento que as alcançou?Coberto de sangue, obstinado sob os golpes, enfrenta e vence uma nação que ninguém vencera; e, em plena batalha, evita ferir o amigo! Senhor tão indiscutível da guerra, que a forçava à inclinar-se ante sua bondade, e isso em meio aos maiores horrores, na excitação dos combates, e do estrondo das armas!É milagroso introduzir em ações dessa ordem uma imagem da justiça e somente pelo rigor de seus princípios pôde Epaminondas associá-las à doçura e à prática dos bons costumes, da tolerância e da mais pura inocência.” (MONTAIGNE, M. Ensaios, III- Do útil e do honesto. p.371) 946 “...a pensar que, mesmo contra o inimigo, nem tudo é permitido.” (MONTAIGNE, M. Ensaios, III- Do útil e do honesto. p.371) 947 PASCAL, B. Les Trois discours sur la condition des grands. Intégrale.p.368. 948 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 682. 949 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 682. 950 MONTAIGNE, M. Ensaios, III- Do útil e do honesto. p.371. 951 É bastante interessante o comentário de Du Teil que devota à communauté Barbu – depois chamada de communauté Boimondau - o mesmo respeito que Camus: DU TEIL, R. Communauté de travail, l´éxperience révolutionnaire de Marcel Barbu, Paris, PUF, 1949. No Homem Revoltado, o autor se aterá ao exemplo do engajamento sindical como forma de luta pela construção da justiça social. De um ponto de vista histórico Camus refere-se ao estoicismo grego como um movimento de re-estruturação exemplar: “Houve um movimento deste gênero no fim do mundo grego, quando tudo ia mal, que se chamava socedade estóica, internacional tanto que ela podia ser na época e que preparava um giro na civilização...”(CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 682.) 952 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 685.

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seus trabalhadores, constituindo uma experiência de trabalho cooperativo, fundado

nos valores da solidariedade e dignidade: “É uma impressionante marca da vontade

de indivíduos que se desolidarizam com o que há de mal e continuam na sociedade o

que há de bom. É uma posição que tenta manter o que há de válido...”953 Como

podemos notar por um trecho de do esboço de Nem vítimas nem carrascos, para

Camus, a comunidade Barbu exemplifica seu engajamento alternativo pois zela pela

reconstrução do presente e não fundamenta seu sacrifício por uma escatologia da

história, “ ela, pelo menos, durante oito anos subtraiu alguns refens da miséria do

mundo. Ela não prometeu em quatro gerações estabelecer a dignidade e a paz

interior a todos estes trabalhadores, ela lhes deu e lhes dá durante todos esses

anos...”954É com esta expectativa de resconstrução das condições de uma vida digna

que Camus exprime em Nem vítimas nem carrascos, a alternativa de desenvolver um

“movimento pela paz(...)articulado do interior das nações a partir de comunidades de

trabalho e comunidades de reflexão, por sobre as fronteiras; as primeiras, apoiadas

em contratos acordados pelo modo cooperativo socorreriam(soulageraient)o maior

número possível de indivíduos, e as segundas, tentariam definir os valores de que

viverá esta ordem internacional ao mesmo tempo que advogam por ela, em todas as

ocasiões...”955Assim, embora Camus possua um diagnóstico pessimista in extremis da

condição humana, incluíndo aí sua dimensão política, seu esforço é o de “conciliar

um pensamento pessimista e uma ação otimista”956, é neste sentido que, na mesa-

redonda de Civilization, rejeita, ao menos em parte, a acusação de Friedmann: “Eu

não sou tão pessimista.”957

Camus visa estabelecer a possibilidade de um engajamento humanista

condizente à realidade pós-Hiroshima, que tentaria fundar as condições da procura de

um estilo de vida alternativo958: “Nós temos todos que construir, fora dos partidos e

953 Num trecho dos rascunhos de Nem vítimas nem carrascos Camus refere-se longamente sobre a comunidade Barbu: “o tipo de sociedade contratual que repensa nossa sociedade até no modo de produção encontra, em efeito, uma excelente ilustração tal com a concebeu e realizou Marcel Barbu , em Valença. Ela comporta 150 homens de todos os credos (marxistas, cristãos, sem partido) que se declaram felizes...”(CAMUS, A. Camus à Combat.p. 637.) 954“...a liberação definitiva depende da reforma internacional. Mas experiências como a de Marcel Barbu, que cria um tipo de relação humana saído da livre decisão dos homens, respeituoso das diferenças e da liberdade nos mostra que, aguardando, nos é possível realizar algumas conquistas provisórias sobre a desordem e ódio universais.” (CAMUS, A. Camus à Combat.pp. 637-8.) 955 CAMUS, A. Camus à Combat.p. 637. 956CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744. 957 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. 958 “...é bem evidente que não se trataria de edificar uma nova ideologia. Se trataria somente de procurar um estilo de vida.”(CAMUS, A. Ni victimes ni bourreaux. Camus à Combat. p.638)

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dos governos, comunidades de reflexão que iniciarão o diálogo através das nações e

que afirmarão pelas suas vidas e seus discursos que este mundo deve parar de ser dos

policiais, dos soldados e do dinheiro para tornar-se o mundo do homem e da mulher,

do trabalho fecundo e do lazer refletido.”959

Para Camus, é este engajamento alternativo por um novo estilo de vida que é

preciso ser “fundado” e “ilustrado.” 960 Como já prenunciava O Mito de Sísifo - “a

grandeza mudou de campo.”961 O “conquistador” lúcido, no horizonte terrível que se

delineia, procurará conquistar o que interessa. O único engajamento lúcido é o que se

dispõe a tentar preservar a vida: “Todas as nossas disputas são vãs. Uma única coisa

importa que é a paz.”962

É como se Camus opusesse aos seus pares filósofos da mesa-redonda de

Civilization de 1946, o esforço que Pascal contrapunha aos Grandes em sua

conferência em Port-Royal no primeiro trimestre de 1660, “Espelho de Príncipe”

dedicado ao filho do Duque de Luynes: “...me basta vos desviar das vias brutais nas

quais vejo muitas pessoas de vossa condição se deixarem levar por não conhecer o

estado verdadeiro dessa condição.”963

Não será desinteressante nos determos, ainda que rapidamente, no relato da

réplica de Merleau-Ponty pela qual podemos notar a incompreensão sofrida pelo

pensamento de Camus confrontada com uma audiência cultivada e afinada e com as

esperanças do Grande Racionalismo: “Merleau-Ponty se pergunta, se Camus, de

quem ele aprecia a modéstia das proposições, traz realmente uma solução ou se ele

sobretudo recai, recomendando uma atitude apolítica, na guerra do individualismo

que ele pretende banir(...)«Se não procuramos encontrar uma forma de Estado

organizado, resvalamos na pura moral»964

Camus responde de maneira bastante lacônica, por intermédio do que

podemos notar que, embora modesto, o engajamento de Camus se mostra, no entanto,

inflexível: “Queremos ou não salvar o indivíduo?Se queremos, na minha opinião,

959 CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 746. 960 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. Carnets. Cahier V.p.1073-4. 961 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.p.166. 962 CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687. 963 PASCAL, B. Les Trois discours sur la condition des grands. Troisième Discours. Intégrale.p.368. 964 Merleau-Ponty retoma a recriminação que, segundo Beauvoir, Sartre faz de Camus: “Um dia Sartre o havia recriminado (a Camus) esta confusão: “«Combat faz muita moral e não faz política o bastante».”(BEAUVOIR, S. La force de choses.p.152.)

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recusamos o assassinato(...)a política do realismo, seja ela de direita ou de esquerda,

leva ao assassinato.”965

Às acusações de “moralismo” e de “a-politismo” lançadas por Merleau-Ponty,

nas quais se destila o fel da ironia, Camus responde de maneira não menos exemplar

do tom intransigente de seu engajamento intelectual pela restauração dos valores

necessários à construção de um presente efetivamente plural: “Não pretendo que

vivamos retirados em nossa casa de campo estudando os Antigos. Eu pretendo que

permaneçamos na vida e na política, que em cada lugar testemunhemos, mas que

este testemunho seja ao mesmo tempo que nosso, o de muitos.”966Camus finaliza sua

resposta a Merleau-Ponty fornecendo assim um extremamente valioso prisma que

permite orientar eticamente todo seu espectro expressivo: “E, se eu empreguei o

termo prédication, não foi inutilmente.”967

*

Exaurindo à questão, talvez não seja excessivo sintetizar em máximas a

formulação camusiana do engajamento, utilizando uma passagem de uma conferência

pronunciada em março de 1946 em Nova York, intitulada A Crise do Homem: “Nós

devemos: 1)chamar as coisas por seus nomes e nos dar conta de que nós matamos

milhões de homens a cada vez que consentimos pensar certos pensamentos. Não se

pensa mal porque se é um assassino, se é um assassino porque se pensa mal. É deste

modo que se pode ser um assassino sem jamais ter matado aparentemente. E é assim

que, mais ou menos, nós somos todos assassinos. A primeira coisa a fazer é, então,

pura e simplesmente, rejeitar pelo pensamento e pela ação, toda forma de

pensamento realista ou fatalista. É o trabalho de cada um de nós(...)Recusaremos

sempre adorar o acontecimento, o fato, a riqueza, a potência, a História como ela se

faz e o mundo como ele vai.”968

“2)A segunda coisa a fazer é descongestionar o mundo do terror que reina e

impede que se pense bem. E como deixei dizer que a Organização das Nações Unidas

possui nesta cidade uma importante sessão, nós podíamos lhes sugerir que o primeiro

texto escrito desta organização mundial deveria proclamar solenemente a supressão

965 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 683. 966 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 683. 967 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 683. 968 CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744.

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da pena de morte sobre toda a extensão do universo. É o trabalho dos

governantes.”969

“3)A terceira coisa a fazer é recolocar, a cada vez que for possível, a política

em seu verdadeiro lugar, que é um lugar secundário. Não se trata, em efeito, de dar a

este mundo um evangelho ou um catecismo moral. A grande infelicidade de nossa

época é que a política pretende nos munir, ao mesmo tempo, de um catecismo, de

uma filosofia completa e mesmo, por vezes, de uma arte de amar. Ora, o papel da

política é organizar e não regrar nossos problemas interiores. Ignoro se existe um

absoluto. Mas sei que ele não é de uma ordem política. O absoluto não é assunto de

todos: ele é assunto de cada um.”970

“4) A quarta coisa a fazer é de procurar e de criar, a partir da negação, os

valores positivos que permitirão conciliar um pensamento pessimista e uma ação

otimista. É o trabalho dos filósofos.”971

5) “A quinta coisa a fazer é compreender bem que esta atitude remete à

criação de um universalismo no qual todos os homens de boa vontade poderão se re-

encontrar. É um trabalho de todos.”972

*

Se “cada palavra engaja”, cada imagem também: a imagem é um testemunho

ético; ela “ilustra” valores - os “funda” - sem, no entanto, propriamente, edificá-los.

Notamos em A crise do homem, que “não se trata, em efeito, de dar a este mundo um

evangelho ou um catecismo moral”, entretanto, “dar rosto” aos dramas humanos,

sempre se configurou o modus operandi da criação absurda e persiste sendo a

969 CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744. 970 CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744. 971 CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744. 972 CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744. À luz do desfecho da polêmica com Mauriac – ambos se acordam sobre o imperativo de salvaguardar à vida - e da exaltação da “comunidade Barbu” – na qual se declaram felizes pessoas de todos os credos (cristãos, agnósticos, marxistas) esta passagem entremostra sua força: trata-se da reivindicação “ecumênica” do engajamento camusiano. Se “o absoluto é um assunto de cada um e não de todos”, em contrapartida, o engajamento pela salvaguarda da vida “é um trabalho de todos” no qual “todos os homens de boa vontade poderão se re-encontrar.” Como já mencionamos, oportunamente notaremos que a adesão do Padre Panneloux à brigada sanitária n´A Peste encarnará este universalismo almejado pelo engajamento do nosso filósofo: Sublinhemos a relevância do esforço de procurar estabelecer o denomindor comum da preservação da vida entre horizontes metafísicos incompatíveis, ou mesmo, antagônicos. Camus, de fato, preconiza que a incomunicabilidade entre ideologias é um problema que antecipa um dilema ainda mais amplo: a incomunicabilidade e o conflito entre civilizações. Jacqueline Lévi-Válensi nota “a lucidez premonitória” de Camus nesta passagem de Nem vítimas, nem carrascos: “O choque dos impérios está em vias de tornar-se secundário em relação ao choque das civilizações(...)Em dez anos, em cinquenta anos, será a proeminência da civilização ocidental que será questionada.”(Ni Victimes ni bourreaux. - Le monde va vite. Camus à Combat, 27 novembre 1946, p.631.)

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estratégia ética maior da filosofia camusiana como podemos notar pela abertura desta

conferência que pretende sintetizar o compromisso ético-político-filosófico

camusiano: “1)Num imóvel da Gestapo de uma capital Européia, depois de uma noite

de interrogatório, dois inculpados ainda sangrando se trovam algemados e a

zeladora do imóvel[faz cuidadosamente a limpeza], o coração em paz visto que ela

sem dúvida tomou seu café da manhã. À recriminação de um dos torturados, ela

responde com indignação, com uma frase que, traduzida em francês, seria algo

como: «não me ocupo do que fazem os meus locatários.»2)Em Lyon, um dos meus

camaradas foi retirado de sua cela para um terceiro interrogatório. Como lhes

haviam dilacerado as orelhas, por ocasião de um interrogatório precedente, ele

portava uma bandagem em volta da cabeça. O oficial alemão que o conduziu é o

mesmo que já assistiu às primeiras sessões e, não obstante, é ele que lhe pergunta

com uma nuance de afeição e de solicitude na voz: «Então, como vão as

orelhas?»9733)Na Grécia(...)um oficial Alemão se prepara para fuzilar três irmãos

que tomara como reféns. A velha mãe se joga a seus pés e ele consente poupar-lhe

apenas um, mas na condição que ela própria designe qual. Como ela não consegue se

decidir, ele lhes prepara. Ela escolhe o mais velho, visto que ele se encarregava da

família, mas de um só golpe, ela condenou os outros dois como queria o oficial

alemão.4)Um grupo de mulheres deportadas, por meio dos quais se encontra uma

camarada nossa, é repatriada na França pela Suíça. Logo na entrada do território

suíço, elas percebem um enterro civil. E este espetáculo único lhes faz cair numa

gargalhada histérica: « É assim que tratam os mortos aqui», se dizem.”974

Como diz Camus em O Mito de Sísifo, “não são morais que as imagens

propõem e elas não engajam julgamentos: elas são desenhos.”975 As imagens

delineiam os dramas humanos, a atmosfera dos tempos, e como no caso da

conferência A Crise do Homem permitem sintetizar e partilhar os sintomas das

doenças contemporâneas: “Existe uma Crise do Homem, visto que a morte ou a

tortura de um ser, pode ser, em nosso mundo, examinada com um sentimento de

indiferença ou de interesse amical ou de experimentação , ou de simples

passividade(...)visto que o extermínio de um ser pode ser visto de outra maneira que

não a do horror e a do escândalo que devia suscitar(...)É fácil demais acusar somente 973 Notemos que no estágio atual do “terror” é toda a política internacional que se rege por esta dubiedade, incluindo aí os organismos humanitários. 974 CAMUS, A. La Crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 738-9. 975 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. Essais. p. 169.

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Hitler e dizer que estando a besta morta o veneno desapareceu. Pois sabemos bem

que o veneno não desapareceu, que nós o guardamos nos nossos próprios corações e

isto se sente na maneira pela qual, as nações, os partidos e os indivíduos, ainda se

olham com cólera...”976

A opção pela imagem remonta ao “romancistas filósofos”,“Sade, Melville,

Stendhal, Dostoievsky, Proust, Malraux, Kafka, para só citar alguns”977, e, de nossa

parte ajuntemos, deve muito ao universo da mitologia e da tragédia gregas, aos

moralistes du XVIIéme siècle - Pascal, La Bruyère, La Rochefaucault – e a Nietzsche.

Contra o caráter abstrato das doutrinas, Camus contrasta a dimensão ética interrogante

da imagem: “todos os problemas recuperam sua lâmina. A evidência abstrata se

retira diante do lirismo das formas e das cores. Os conflitos espirituais se

encarnam(incarnent)e voltam a encontrar seu abrigo miserável e magnífico no

coração do homem.”978

Sublinhemos que assim como acontecia na ilustração das condutas absurdas

que visualizamos n O Mito de Sísifo – que figuram somente estilos de vida - a

expressão narrativa é expressão de um estilo filosófico norteado pela noções de limite

e de inacabamento intrínseco, em contraste com o absolutismo das filosofias

totalizantes de seu tempo: "a escolha(...)de escrever por imagens mais do que por

raciocínios é revelador de um certo pensamento, persuadido da inutilidade de todo

princípio de explicação e convencido da mensagem educadora(enseignant)da

aparência sensível(...)Ela é a conclusão de uma filosofia freqüentemente inconfessa,

sua ilustração e seu coroamento. Mas ela não é completa senão pelos subentendidos

desta filosofia.”979

Não é à toa que, desde os cadernos íntimos de janeiro de 1936, Camus já

exprima a necessidade de recorrer à imagem para captar, com a acuidade exigida por

seu paradigma de filosofia(ancorado na tradição da anatomia moral de inspiração

moraliste), os dramas concretos da existência: “Não se pensa senão por imagens. Se

você quer ser filósofo, escreva romances.”980

Generalizando este pressuposto filosófico da imagem, consideramos toda sua

obra literária como constituinte do projeto filosófico camusiano: uma passagem de

976 CAMUS, A. La Crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 739. 977 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. Essais. p. 178. 978 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. Essais. P.137. 979 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. Essais. p. 179. 980 CAMUS, A. Carnets 1935-1948. Cahier I, janvier 1936. OC, II.p.800.

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seus cadernos íntimos exprime de maneira inequívoca a intertextualidade filosófica

existente entre as diversas dimensões expressivas - romance, ensaio, teatro -

referindo-se a O Estrangeiro, O Mito de Sísifo e a peça Calígula, como integrantes de

um esforço multipolar de questionamento ético-filosófico; “Terminado Sísifo. Os três

Absurdos estão terminados.”981

Doravante, procuraremos entrever temáticas caras ao diagnóstico camusiano

da civilização, bem como elementos norteadores de seu engajamento ético-filosófico,

por intermédio dos dramas concretos da existência encarnados na dimensão narrativa

de sua obra. Talvez não seja excessivo re-afirmar o itinerário que perseguiremos neste

capítulo: Le Malentendu será abordado a partir das temáticas do silêncio, do

fatalismo e do esquecimento - do outro e das origens; Calígula será entrevisto sob o

prisma dos problemas da vontade de potência, da desmedida e do niilismo

contemporâneos. O Estrangeiro, a partir da temática da revitalização da

singularidade, do engajamento pela “grandeza humana” e das denúncias da

indiferença e do terrorismo de Estado; A Peste, finalmente, como modelo simbólico

do engajamento ético-histórico-filosófico camusiano. Assim, do diagnóstico da

civilização, passaremos à prescrição(ou prédication)ética do engajamento camusiano.

Lembremos que encerrará este capítulo uma análise do mito de Sísifo, re-situando

assim a concepção de engajamento decorrente da intertextualidade dos escritos éticos-

políticos, d O Estrangeiro e d A Peste, à luz do elã filosófico original de Camus.

*

981 CAMUS, A. Carnets 1935-1948. Cahier III, 21février 1941. OC, II. p.920. Cremos poder considerar a peça Le Malentendu, esboçada na primavera de 1939(OC, I.p.LXXVII), escrita definitivamente durante a ocupação em 1943, e encenada em 1944, um “quarto pólo” do absurdo.

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A) Silêncio das origens, império dos fins: álgebra de uma histórica

equivocada

Num pequeno albergue na Europa Central, mãe e filha aguardam o retorno de

um hóspede promissor - “sozinho e rico”982 - para, então, “recomeçar”983...

Apesar da sala de recepção ser clara e limpa, o “cansaço”(lassitude) que

ressoa da entonação das duas mulheres projeta sua nuvem cinza na atmosfera lúgubre

da pensão. Enquanto a anciã rende-se à melancolia e a acedia, prostrando-se no

conformismo da mecânica cotidiana, a filha obnubila seus dias enfadonhos na triste

Europa numa viva projeção de uma felicidade vindoura, norteada pelo signo dos

elementos de uma natureza idealizada: [A mãe (abatida)] “: Estou cansada, filha,

nada mais. Eu queria repousar(...)aspiro somente a paz e o abandono. É estúpido

falar isto Martha, mas há noites em que me sinto atraída pela religião. [Martha]

“Não é assim tão velha para chegar a isso. Tens coisa melhor a fazer(...)Ah, mãe!

Quando tivermos juntado muito dinheiro e pudermos abandonar estas terras sem

horizonte, quando deixarmos atrás de nós esta cidade chuvosa, e esquecermos este

país de sombra, no dia que, enfim, estivermos diante do mar com o qual tenho

sonhado tanto, nesse dia, ver-me-à sorrir! Mas, é necessário muito dinheiro para

viver livre junto ao mar. É por isso que não devemos ter medo das palavras. É por

isso que nos devemos nos ocupar daquele que deve chegar.”984

Enquanto a filha, como o Ráskolnikov de Crime e Castigo, pauta sua

metodologia cotidiana, racionalmente, na materialização, através do acúmulo de

capital, de sua idéia de futuro – este croquis camusiano de “mãe” (vergada sob o peso

da desesperança, quase cega) nos remete seguramente a figuração da “melancolia”

que desde a antigüidade, passando por Albert Dürer, delineia seus traços até os nossos

dias985. Se, segundo O Mito de Sísifo, “o cansaço está no fim dos atos de uma vida

maquinal mas inaugura ao mesmo tempo o movimento da consciência(...)(em seguida

é o retorno inconsciente à cadeia (chaine) ou o despertar definitivo)”986, a mãe, com

982 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.457. 983 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.457. 984 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.457-8. 985 CLAIR, J. Mélancolie – génie et folie en Occident. Paris. Gallimard, 2005. Em exposição ocorrida nas Galeries nationales du Grand Palais, Paris(10 octobre 2005-16 janvier 2006).- brilhantemente sintetizada em publicação da Gallimard, encontramos um percurso da antiguidade à arte contemporânea dedicado às figuras da melancolia. 986 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. p.29(Folio Gallimard)

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seu “cansaço” resignado, simboliza o reiterado “retorno inconsciente à engrenagem”,

noutras palavras, o consentimento niilista à metodologia dos “fins”, abertamente

apregoada por Martha. Sua dificuldade de visão, figura a recusa do reconhecimento

do outro requerida para a aplicação de métodos de conquista de futuros pré-

concebidos: [A mãe] : “Eu não sei. Vejo mal e mal o vi. Sei, por experiência, que é

melhor não olhá-los. É mais fácil matar o que não se conhece(...)matar é

terrivelmente fatigante.”987

Martha, por sua vez, dissolve a transgressão absoluta dos crimes que pratica

na expectativa da partida - “será um grande momento”988, e na convicção da precisão

indolor de seus métodos de extermínio – abatedouro que propicia uma assepsia até

mesmo moral visto que reserva ao rio à responsabilidade pelo desenlace de sua

armadilha - atribuindo assim um verdadeiro horror antes à vida do que ao

assassinato, pois um mundo indiferente instiga voluntariamente ao suicídio: [Martha]:

“Ele beberá seu chá, ele dormirá, e vivo ainda, o levaremos ao rio. O descobrirão

passado muito tempo, encalhado na represa, com outros que não tiveram a mesma

sorte que a sua e se lançaram na água, com os olhos abertos. No dia no qual

assistimos a limpeza da barragem, tu me dizias, são os nossos que sofreram menos, a

vida é mais cruel do que nós.”989

É no mimetismo da crueldade da natureza e do mundo que mãe e filha

procuram expurgar suas culpas mútuas; nele, depositam sua esperanças de absolvição:

[A Mãe] “É apenas um crime, apenas uma intervenção, um ligeiro empurrão dado em

vidas desconhecidas. É verdade que a vida é mais cruel do que nós. É talvez, por isso

que me é difícil sentir-me culpada.”990

Na própria idealização que Martha empreende do idílico futuro que prepara,

calcado numa colagem desencarnada de um “paraíso perdido”, repousa o ensejo de

mergulhar num mar que é símbolo tanto da soberania e da profunda e cruel

indiferença da natureza, quanto do elã de absolvição e de esquecimento dos homens.

Seja no sono, seja no mergulho, ambas as mulheres, afinal, procuram sublimar a

miséria de seus cotidianos na expectativa de alcançar um Reino dos Fins inocente,

robsoneano, mesmo que, paradoxalmente, forjado pelo crime e pela culpa: este reino

dos fins exige assim, o silêncio, o esvaecimento e o esquecimento numa natureza 987 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.459. 988 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.459. 989 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.459. 990 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.459.

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imperiosa na qual o homem não está ou se encontra destituído: [A mãe]: “Me

disseram que o sol devora tudo. [Martha]: Li num livro que ele come até as almas e

que ele fabrica corpos resplandecentes mas esvaziados interiormente(...)Imagino com

delícia este outro país aonde o versão tudo arrasa, aonde as chuvas de inverno

inundam as cidades e aonde, enfim, as coisas são como são. [A mãe]: É com isto

Martha, que sonhas? [Martha]: Sim, estou farta de sempre carregar minha alma,

anseio por encontrar este país aonde o sol mata as questões...[A mãe]: “...seria

qualquer coisa se eu encontrasse de uma vez o sono e o esquecimento.”991

Presencia este diálogo entre mãe e filha - nos quais transparece de um lado, as

mais elevadas aspirações de felicidade, grandeza e purificação, de outro, os mais

miseráveis meios de expressão destes nobres anseios - um velho doméstico, cuja

figura dissimulada e impassível nos conduzirá, bisbilhotando por uma janela, a

testemunhar também o tocante diálogo entre Jan e sua doce e amorosa esposa Maria,

que acabam de chegar ao Albergue: [Jan]: “Tu me seguiste?[Maria]Perdoa-me, eu

não podia. Partirei, talvez, logo. Mas deixa-me ver o lugar no qual te deixo.”992

No outro pólo do absurdo, Jan, que passara anos fora de casa procurando

construir uma vida digna e feliz longe da tristeza européia, se recusa a falar a simples

linguagem humana, recusando-se a - com a humildade de quem reconhece os poderes

deletérios do tempo e da ausência - apresentar-se, simplesmente, como quem é, à

família de quem há tanto tempo se distanciara. A frustração de ser considerado

“estrangeiro” pelos entes queridos na primeira visita, de se sentir, de algum modo,

esquecido e contingente, altera seus propósitos iniciais de se desvelar de “rosto

erguido e coração aberto”993: “Elas me acolheram sem palavra. Me serviram a

cerveja que pedi. Elas me olhavam, elas não me viam.”994 Ele lastima, surpreendido e

traído pela corrosão promovida pelo esquecimento; na atmosfera contemporânea de

silêncio e de desconfiança - na qual impera o medo - as esperanças de reconciliação

não passam de lendárias expectativas natimortas: “Tudo foi mais difícil do que

acreditei(...)eu que esperava um pouco a refeição do pródigo, me deram cerveja em

troca de dinheiro.”995

991 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.460 e 477. 992 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.461. 993 MONTAIGNE, M . Ensaios. III.p.371. 994 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.461. 995 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.461.

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Maria tenta convencer seu amado de se apresentar simplesmente, rompendo

com a engrenagem do silêncio vigente: [Maria] “Teria sido suficiente uma

palavra.”996 Todavia, Jean, sem atinar que sem fazer justiça à memória é impossível

agir justa e coerentemente, prefere, ao invés de se apresentar às claras, justificar sua

ausência passada pelo preço de uma felicidade porvir, que está convencido de aportar:

[Jan] “Não estou apressado, vim trazer minha fortuna e, se posso, a felicidade(...)Mas

suponho que não seja tão fácil como se diz regressar à nossa casa, que é preciso um

pouco mais de tempo para fazer dum estranho, um filho...”997

Maria é porta-voz da “moral da sinceridade”998. Ela nos remete ao esforço

que, desde as fundações de O Mito de Sísifo, procura revitalizar o coração - irradiador

ético de reconhecimento afetivo da alteridade - em contraponto ao silêncio da razão e

das ideologias que implicam na cegueira e na aniquilação do estrangeiro (isto é, do

desconhecido, do distante, do outro, que nada mais é do que um igual posto em

regime de alteridade radical). Do ponto de vista de Maria, contra os ardis da razão, a

única estratégia cabível é o coração desvelado: [Maria] “Só há uma maneira, é fazer o

que faria o primeiro que chegasse, é deixar falar a língua do coração.”999A

linguagem que Maria prescreve para resolver o dilema de Jan, traduz a translucidez de

seu propósito de restaurar a dimensão humana da linguagem: “Quando se quer ser

reconhecido, diz-se o nome, é uma evidência(...)mas não use senão palavras simples.

E não é tão difícil dizer:«Sou seu filho, eis minha mulher. Nós vivemos juntos num

país que amamos, junto ao mar e ao sol. Mas eu não era bastante feliz e hoje, eu

preciso de vocês.»”1000

Outra característica reveladora de Maria é sua contundente denúncia da

tristeza européia, atitude que, aliás, prenuncia, como veremos oportunamente, o

“pensamento mediterrâneo” do autor argelino: [Maria]: “...desconfio de tudo desde

que cheguei neste país no qual procuro em vão um rosto feliz. Esta Europa é tão

triste(...)Partamos, Jan, não encontraremos a felicidade aqui(...)às tardes deste país

me metem medo.”1001

Quando Jan, contrariando às prescrições de Maria, entra novamente no

albergue de sua família imbuído dos ardis da razão, se depara com a frieza burocrática 996 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.461. 997 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.461. 998 CAMUS, A. Présentation - Le malentendu. OC, I.p.507. 999 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.462. 1000 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.462. 1001 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.462.

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da linguagem de Martha, através da qual a anfitriã se mantém à distância de qualquer

afetividade periclitantemente humana. Entre eles se estabelece o silêncio dos

monólogos à dois: [Martha] “Preciso pedir-lhe sobrenome e nome(...)Karl, é

tudo?(...)Data e lugar de nascimento?(...)Você nasceu onde?(...)Vem de

onde?”1002[Jan]:“Hasek, Karl(...)É tudo(...)Tenho trinta e oito anos(...)[hesitando]na

Boêmia(...)Venho da África.[ela faz cara de não compreender] Do outro lado do

mar.”1003 As respostas em parte sinceras de Jan poderiam talvez aportar alguma

reminiscência à Martha, mas quando ele busca aprofundar seu auto-retrato e

perscrutar sobre suas vidas no albergue, a irmã, no entanto, o repõe em seu devido

lugar na relação absolutamente formal que almeja estabelecer com seus hóspedes -

pautada pela premissa da recusa de reconhecimento da alteridade: “Mantenha-se no

seu lugar de cliente, que por direito lhe pertence; mas não exija mais.”1004

Martha vela-se por detrás da linguagem robótica e desumanizada das

burocracias. Ela repreende Jan por não se pautar pela língua “atonal” convencionada

para a relação puramente comercial nas sociedades civilizadas – àquela que prescinde

de qualquer reconhecimento (que dirá afetivo?) da alteridade: [Martha]: “Me parece

que o senhor se obstina em falar num tom que não deveria ser o seu(...)Não é uma

vantagem, para ambas as partes, manter nossas distâncias(garder nos distances)?Se o

senhor continuar a não falar a linguagem de um cliente, será muito simples, nós

recusaremos a recebê-lo(...)nada o impede de falar a linguagem dos clientes. ”1005

Jan, de sua parte, procura estabelecer, em vão, um canal humano de

comunicação com a irmã. É significativo o surgimento do termo “sympathie” – face

positiva da compassion1006 - que veremos oportunamente, será um dos termos

importantes na configuração do engajamento camusiano pela humanização das

relações: [Jan]: “Eu peço perdão. Eu queria mostrar minha simpatia(sympathie), e

1002 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.466. 1003 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.466. 1004 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.468. 1005 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.468. 1006 Sympathie. Do grego Syn+pathos: sofrer, sentir conjuntamente; sentir com o outro. Compassion: do latin compassione. Possui sentido análogo; partilhar a paixão, qualquer que ela seja. Os termos possuem uma simetria bipolar (o primeiro versa sobre a partilha de sentimentos ligados ao reconhecimento efetivo do outro, o segundo, da partilha do sofrimento). Estes termos nos remetem ao reconhecimento afetivo da alteridade e ressurgirão, veremos, n´A Peste e n´O Homem Revoltado, como termos-chave no “pensamento mediterrâneo”, engajemento camusiano pelo reconhecimento mútuo, pela salvaguarda daquilo que no homem não pertence à história.

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minha intenção não era aborrecê-la. Pareceu-me, simplesmente, que nós não éramos

assim tão estranhos(étrangers)um para o outro.”1007

Mas é com a chegada da mãe à recepção que o risco do coração parece mais

evidente às engrenagens da aniquilação.

Jan procura encontrar ocasião para se desvelar diante da mãe, buscando o

itinerário da reminiscência e do sentimento, procurando aludir em suas considerações

sobre a desesperança e sobre o esquecimento da anciã, às suas próprias faltas como

filho: [Jan]“Tenho um coração fiel...É compreensível,[hesitando um momento]se

tivesse tido um filho que a amparasse, talvez não tivesse se esquecido dele”1008

Quanto à mãe, alquebrada pelo conformismo, ela ensaia com seu habitual cansaço,

um semi-despertar letárgico: [Mãe]: “...Um filho! Oh, mas eu já sou muito velha. As

velhas desaprendem até mesmo a amar os filhos. O coração gasta-se...senhor.”1009

Martha, em muitos sentidos discípula de Mme de Merteuil1010, detecta, talvez

instintivamente, que a linguagem do coração pouco à pouco se infiltra na

conversação, ameaçando minar a pureza retilínea de sua álgebra da felicidade. Esta:

[Martha]: “O coração não tem nada a fazer aqui(...)Se sois rico, isto é bom. Mas não

fale mais do seu coração.”1011

Ela se interpõe entre mãe e filho que ameaçam, pela permissividade das

palavras, re-encontrar a dimensão humana que os uniria: [Martha, se colocando entre

eles decididamente]: “Um filho que entrasse aqui encontraria o que qualquer cliente

pode estar seguro de encontrar: uma indiferença indulgente(bienveillante).Todos os

homens que recebemos se acomodaram. Eles pagaram seus quartos e receberam uma

chave. Eles não falaram de seu coração. Isto simplificava nosso trabalho(...)Não fale

mais de seu coração, não podemos nada por ele(...)Pegue sua chave,se assegure de

seu quarto. Mas saiba que estás numa casa sem recursos para o coração ”1012

Posteriormente, numa conversa particular com sua mãe, Martha exprime sua

1007 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.468. Uma passagem, antes da chegada da mãe à recepção, vale ser comentada: trata-se da cena na qual Jan entrega seu passaporte à irmã que, interrompida abruptamente pelo velho funcionário sorumbático, não chega a lê-lo. 1008 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.470. 1009 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.471. 1010 Interessante notar que o risco maior dos métodos “balísticos” “libertinos” de Mme. Martha e Mme. de Merteuil é o inesperado amor. Notar em LACLOS, C. As relações perigosas. Abril Editorial. 1011 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.471. 1012 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.471.

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preocupação metódica: “O que tornar-se-á o mundo se os condenados à morte se

pusessem a confiar aos carrascos suas mágoas do coração?”1013

Notemos que a recusa do reconhecimento da alteridade, o fatalismo finalista, o

esquecimento dos valores, das origens e da dimensão afetiva da vida encarnados por

Martha e sua mãe, são, no contexto do Malentendu, produtos diretos da tristeza

européia: [Martha diz a Jan] “Muitos anos cinza se passaram nesta cidadezinha e em

nós. Eles, pouco a pouco, regelaram esta casa. Eles nos tiraram o gosto pela

simpatia(symphatie). Terás o que nós sempre reservamos aos nossos raros viajantes

– e o que lhes reservamos nada tem a ver com as paixões do coração.”1014

Todo o empreendimento de sangue das duas mulheres está fundamentado pela

obsessão de fugir “deste horizonte fechado”1015, da caduca Europa. Enquanto Jan

descreve a promessa de grandeza que constitui a vida que escolheu para si, fundido à

natureza nas praias da costa africana, Martha brada sua revolta contra a atmosfera

miserável, avara e desesperançada do velho continente ao qual permanece prisioneira:

[Jan]: “Lá, a primavera lhe sobe à garganta, as flores explodem aos milhões acima

dos muros brancos. Se passeias por uma hora nas colinas que entornam minha

cidade, trarias em teu vestido o odor de mel das flores amarelas...”1016 [Martha]:

“Isto é maravilhoso. O que chamamos primavera, aqui, é uma rosa e dois botões que

acabam de nascer no jardim do claustro.[Com desprezo]: Isso basta para perturbar

os homens de meu país. Seus corações parecem esta rosa avara(...) Já se esgotou

minha paciência com esta Europa aonde o outono tem cara de primavera, e a

primavera cheiro de miséria.”1017

Para Martha, a conversa com Jan, que fala da beleza transtornante das tarde do

mediterrâneo1018, só lhe apura o desejo de levar à cabo sua engrenagem da morte para

escapar, a qualquer custo, da realidade européia: [Martha à Jan] “....não pelo dinheiro,

mas pelo esquecimento deste país e por uma casa diante do mar(...)Meu gosto pelo

mar e pelo país do sol acabará por ganhar(...)O que tenho de humano, é o que

1013 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.473. 1014 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.471. 1015 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.473. 1016 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.477. 1017 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.477. 1018 [Jan]: “Nada lembra o homem. De manhãzinha, se encontra na areia os traços deixados pelas patas dos pássaros do mar.São os únicos sinais de vida. Quanto às tardes...[Martha, lentamente] : E quanto às tardes, senhor? [Jan] As tardes são transtornantes...” (CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.476.) Jan diz ainda à Martha: “me parece que, pela primeira vez, usas comigo uma linguagem humana.” (CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.476.)

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desejo, e para obter o que desejo, esmagaria tudo à minha passagem.”1019 Tomando

por premissa a concretização da felicidade futura, o assassinato é um método eficaz e,

portanto, desejável.

Jan começa a se resignar de se ver dissolvido pela lógica contemporânea da

indiferença que legitima e produz, por intermédio de suas filosofias, de sua inação e

de sua indefinição moral, à tirania e à barbárie: [Jan]: “Se compreendo bem, uma de

vocês me admite por interesse, outra, por indiferença.”1020

Não importa que Jan ainda diga às mulheres, “que cultiva por elas um

sentimento de simpatia, e mesmo de grande simpatia”1021 ou que a mãe, assomada

por uma compaixão irresistível por este estrangeiro ímpar, ainda bata à porta de seu

quarto na tentativa de salvá-lo.

A álgebra de uma história equivocada está completa - o silêncio desumanizado

(das burocracias e das ideologias), o esquecimento das origens, o conformismo, o

fatalismo das concepções pré-determinadas, idealistas e fixas de felicidade, calcadas

intransigentemente por uma política da eficácia: [Jan, pega a taça, a olha...]: “ Um

copo de cerveja em troca de dinheiro; uma taça de chá e por engano. [Ele pega a taça

e a retém um momento em silêncio.] (...) Então, honremos à festa do pródigo! [Ele

bebe...]”1022 Mais tarde Martha dirá à Maria: “houve um mal-entendido. E por pouco

que conheças o mundo, não te surpreenderás.”1023 Se evidencia a inversão da

parábola de Lucas XV, 11-32, à sombra da cena trágica contemporânea.

Se no universo da teleologia cristã o sofrimento de Jó ou o perdão do filho

pródigo se inscrevem numa absurdidade redimida por um nexo que a transcende e que

pretende restaurar o sentido da existência, na tragédia contemporânea governada pela

contingência e que se vale do non sens para a concretização de seus fins deletérios, o

nexo re-afirmado cotidianamente, e até mesmo reivindicado, é o da própria

absurdidade, vínculo a partir do qual o homem se relaciona com todas as esferas da

realidade com a voracidade da inocência primordial: [Mãe]: “...esse mundo mesmo

não é racional e posso bem dizer que, eu, de tudo provei, da criação à

destruição.”1024 [Martha]: “...isto aconteceu como tinha que acontecer. Tu mesma

1019 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.pp.473-8. 1020 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.478. 1021 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.481. 1022 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.480. 1023 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.494. 1024 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.488.

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disses, esse mundo não é racional.”1025 É uma mimesis cínica da indiferença cósmica

que, afinal, fabrica as políticas da aniquilação e da indiferença contemporâneas.

É a procura de uma absolvição nietzschiana que, principalmente Martha,

encarna; a assunção plena a uma cosmologia da indiferença, heraclitiana, na qual a

noção de injustiça está como que dissolvida pela lei cósmica da guerra, da aniquilação

e da des-razão: [Martha]: “Pois é agora que estamos na ordem. É preciso se

persuadir. [Maria]: Que ordem? [Martha]: Àquela na qual pessoa jamais é

reconhecida.”1026

Se a revolta de Martha possui a nobreza irrepreensível de se insurgir contra a

tristeza e a avareza européias, ela no entanto se corrompe e se nega pela lógica da

eficácia suicida que empreende, enfim (como veremos oportunamente), pelo

desconhecimento da noção de limite. A desmedida da justa rebeldia degenera em

niilismo, matriz da tragédia contemporânea. Conseqüência lógica: tudo, até mesmo a

barbárie, é permitido: [Martha]: “para obter o que desejo, esmagaria tudo à minha

passagem.”1027(...)“Eis-nos todos na ordem. Compreendei que, nem para ele, nem

para nós, nem na vida, nem na morte, não há nem pátria, nem paz.”1028

Mas vale sublinhar: O fatalismo sanguinário de Martha é sintoma de uma

doença contemporânea, de uma atmosfera que, por si, conspira e impulsiona ao

suicídio ou ao assassinato. Se há um destino que paira sobre a ação de O Equívoco é o

fado de uma humanidade que arquiteta pacientemente sua própria aniquilação pelas

malhas do silêncio, do fatalismo e da indiferença que tece. Com a álgebra da

desesperança e do silêncio esculpida pela sensibilidade contemporânea, obtemos a

aniquilação como conseqüência lógica, “por pouco que conheças o mundo, não te

surpreenderás.”1029 É o caldo cultural do niilismo contemporâneo irrompendo

irresistivelmente na história; é a tristeza européia produzindo seus eivados frutos:

[Martha]: “...não se pode chamar de pátria a esta terra estreita, privada de luz, onde

damos de comer aos animais cegos(...)esta casa terrível(épouvantable)onde ficaremos

apertados uns contra os outros.”1030

Quem sabe, este velho funcionário-fantasma que ronda o albergue, impassível

e cruel, que intervém somente para a concretização da tragédia – de começo 1025 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.489. 1026 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.496. 1027 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.pp.473-8. 1028 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.496. 1029 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.494. 1030 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.496.

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impedindo que Jan seja reconhecido e, após sua morte, restituindo seu passaporte às

assassinas – simbolize o velho continente, estéril, indiferente, tirânico e avaro, incapaz

de restituir felicidade aos seus: [O Velho à Maria, com uma voz nítida e firme]: “Me

chamaste? [Maria]: Oh, não sei! Me ajude, eu preciso de ajuda. Tenha piedade e

consinta me ajudar! [O Velho, com a mesma voz]: Não.”1031

Quem sabe, este velho fantasma hamletiano não seja senão uma figura do

intelectual em silêncio, inacessível e indisponível para promover um passo em prol da

reconciliação dos homens.

De todo modo, Le malentendu é um fait divers, um fato absolutamente

condizente com a atmosfera dos semanários e bastante “natural” se considerado do

ângulo de outras presas das engrenagens da indiferença tais como atesta o comentário

de Meursault sobre a notícia que lê no único jornal disponível em sua cela: “ ”1032

*

Com notável distanciamento crítico, é assim que Camus rememora na

apresentação dos Fundos Camus, atualmente na Biblioteca Mejànes em Aix-en-

Provence, as circunstâncias da elaboração desta obra teatral: “ O Malentendido foi

escrito em 1943 na França ocupada. Eu vivia então, defendendo ao meu corpo, no

meio das montanhas da França. Esta situação histórica e geográfica seria suficiente

para explicar esta espécie de claustrofobia da qual sofria então e que se reflete nesta

peça. Respira-se mal, é fato, mas neste momento, tínhamos todos a respiração

curta.”1033 Camus se refere à internação para tratamento da tuberculose em Saint-

Etienne, vilarejo no valle du Rhône entre 1942 e 1943. A doença recrudescente,

companheira do autor desde a infância, o impedira de ser mobilizado em 1939,

embora Camus tenha pedido formalmente integração no exército francês, como

atestam documentos da época1034. Quem lhe recomenda o tratamento que o priva

definitivamente das praias de Argel é o médico e amigo Cviklinski1035. É em Saint-

Etienne, mais precisamenta na pensão Oettly, que Camus faz os primeiros contatos

com membros da resistência ligados ao movimento Resistente Combat1036que

integrará.

1031 CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.497. 1032 CAMUS, A. L´Étranger.p. 1033 CAMUS, A. Présentation du Malentendu. OC, I.p.505. 1034 TODD, A. Albert Camus – une vie. (ilustração 29) 1035 TODD, A. Albert Camus – une vie. pp.436 e 411. 1036 TODD, A. Albert Camus – une vie. pp.439.

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O mesmo documento dá valiosos indícios do valor do Malentendido no

sistema de pensamento camusiano: “Proporei ao leitor para encorajá-lo a abordar a

peça, de um lado, a considerar Le Malentendu como uma das tentativas da tragédia

moderna e, de outro, a observar que a moralidade da peça não é inteiramente

negativa.”1037

Embora Camus admita que a peça “é uma imagem muito sombria da

condição humana”1038 o autor não a considera, no entanto, tão-somente como um

diagnóstico da dimensão trágica contemporânea. Simbolizando o esforço de conciliar

um pensamento pessimista e uma ação otimista, da peça, segundo Camus, pode se

resgatar uma dimensão “prescritiva”. A imagem sombria da condição humana “pode

se conciliar com um otimismo relativo no que concerne ao homem. Pois, enfim, isto

equivale a dizer que tudo poderia ter se dado diferentemente se o filho tivesse dito: «

Sou eu, este é meu nome».1039

Quebrar o silêncio, artífice do medo e da desumanização para combater a

tragédia do fatalismo contemporâneo, esta seria a prescrição ética que pairaria, afinal,

no horizonte sombrio da cena camusiana: “Se um homem quer ser reconhecido, é

preciso dizer simplesmente quem ele é. Se ele se cala, ou se mente, ele morre só, e

tudo ao seu redor está condenado à desgraça(malheur).”1040“Isto equivaleria a dizer

que, num mundo injusto ou indiferente, o homem pode se salvar a si mesmo e os

outros pelo uso da sinceridade, a mais simples, e a palavra, a mais justa.”1041

A dimensão prescritiva da peça de Camus, residiria, assim, no engajamento

pela palavra: “peça de revolta”1042 ela comporta paradoxalmente, “uma moral da

sinceridade.”1043

Le Malentendu, de certo modo, re-atualizando o tema do fatalismo da tragédia

antiga, ilustra “a formidável aposta”1044que Camus ver se desenrolar na história

contemporânea: “se as palavras são mais fortes que as balas”1045.

1037 CAMUS, A. Présentation du Malentendu. OC, I.p.505. 1038 CAMUS, A. Présentation du Malentendu- Version du «Figaro» Littéraire. OC, I.p.505. 1039 CAMUS, A. Présentation du Malentendu- Version du «Figaro» Littéraire. OC, I.p.506. 1040 CAMUS, A. Présentation du Malentendu. Dernier version du Fond Camus. OC, I.p.506. 1041 CAMUS, A. Présentation du Malentendu- Version du «Figaro» Littéraire. OC, I.p.506. 1042 CAMUS, A. Présentation du Malentendu. Dernier version du Fond Camus. OC, I.p.506. 1043 CAMUS, A. Présentation du Malentendu. Dernier version du Fond Camus. OC, I.p.506. 1044 CAMUS.A. Ni victimes ni bourreaux. Camus à Combat. p.643. 1045 CAMUS.A. Ni victimes ni bourreaux. Camus à Combat. p.643. É sintomático observar que Roger Quilliot, em seu La mer et Les prisions, não cofira a relevância devida ao panorama histórico-filosófico que Le Malentendu tão evidentemente simboliza. QUILLIOT, R. La mer et le prisons. Le retour du prodigue. Gallimard. Paris.1970.

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O resultado desta partida está de antemão determinado pelas equivocadas1046

premissas da contemporaneidade.

A “moral da sinceridade” surge, então, como uma franja ainda que alquebrada

de positividade que brota de uma cosmologia e de um diagnóstico histórico

contundentemente pessimistas. Assim, num invólucro que inclui os temas capitais da

problemática contemporânea ressurge, de maneira renovada, o sentido íntimo do

trágico antigo: “«O trágico, diz Lawrence, deveria ser algo como um pontapé dado na

desgraça(malheur).»”1047

***

1046 Equívoco, segundo o Le Petit Robert é o primeiro sentido para o termo malentendu. 1047 CAMUS, A. Présentation du Malentendu. Dernier version du Fond Camus. OC, I.p.506.

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B) A concepção estética (ou lúdica) da existência de Calígula

“Je veux!Je veux!”(William Blake. The Gates of the Paradise)1048 “Por trás de todas as transgressões das leis vi Erínias julgadoras. Vi o mundo inteiro como o espetáculo de uma justiça reinante, e forças naturais, demoniacamente onipresentes, subordinadas a seu serviço.” (Heráclito segundo Nietzsche, em A Filosofia na Época da Tragédia Grega1049)

“Não conheço outro modo de lidar com grandes tarefas senão o jogo...”1050(NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p.51.) “O que é a guerra?Nada. Ele é profundamente indiferente ser civil ou militar, fazê-la ou combatê-la. O homem visto por Nietzsche(Crepúsculo dos Ídolos).”(CAMUS,A. Cahier III)

“Imagina: um pequenino no baços trêmulos da mãe, e em redor deles os homens: preparam a sua deliciosa brincadeira: acarinham a criança, riem para a fazer rir, e o conseguem; o menino está radiante. No mesmo instante um dos algozes aponta a pistola a quatro polegadas do rosto do pequeno. O menino ri, encantado, estende a mãozinha para segurar a arma, e de

1048 ROBB, A. Alchimie & Mystique. p.256. Nanquim de Blake que também serve como frontispício deste trabalho. 1049 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época da Tragédia Grega, V. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho.Col Os Pensadores, p.103. 1050 Grifado por Camus na versão do Ecce Homo que consta em seu volumoso acervo sobre Nietzsche. Notar ARNOLD, J-A. Camus lecteur de Nietzsche. Em Cahiers Albert Camus 9.pp.96-7.

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repente o artista aperta o gatilho e lhe estoura a cabeça...Estético, não é verdade? (DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov. p.638)

A experiência da morte de sua irmã e amante Drusilla conduz o imperador

Calígula a uma lúcida constatação sobre a condição humana: “Os homens morrem e

eles não são felizes.” 1051

Desta evidência amarga trazida pela experiência pessoal da finitude, o

imperador romano, homem-deus, deduz a lei cósmica da transitoriedade. Dilacerado

pela dor da perda, Calígula procura um sentido para a transitoriedade da vida: sua

obsessão pela lua encarna a busca por uma justificação, no limite, estética para um

cosmo indiferente e destruidor, desproporcional à fragilidade humana: “... Sei o que tu

pensas. Quanta história por causa da morte duma mulher! Não não é isso. Creio

recordam-me, é verdade, de ter morrido há alguns dias a mulher que amava. Mas, o

que é o amor? Pouca coisa. Juro-te que esta morte não quer dizer nada, apenas

significa uma verdade que torna a lua necessária.” 1052

A descoberta da transitoriedade radical da vida é a lucidez clarividente de

Calígula, e é esta verdade dilaceradora, reservada a poucos, que o imperador decide

“democratizar", imputando-a ao seu povo. Poderoso, Calígula confere uma dimensão

política, isto é colossal, à constatação da injusta ordem da morte ditada pelos deuses.

Deus entre os deuses, procurando exercer seu papel, ele apressa-se em por em curso

uma vida que justifique a si mesma, amando-a como ela se dá, inscrita numa

cosmologia da crueldade. Calígula, após a morte de sua amada, zelará - como um

tirano vigilante - para que a ordem do cosmo se efetive, mimetizando sua cegueira,

impulsionando o moto contínuo indiferente de um Aiôn1053 que devora seus filhos: “...

é porque tudo à minha volta é mentira, e eu, eu quero a verdade! E, justamente, tenho

meios para obrigá-los a viver na verdade. Porque eu sei o que lhes falta (...)Eles

1051 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.332. 1052 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.332. “...Não sou louco e aliás, nunca fui tão racional. Simplesmente, senti num só golpe a necessidade do impossível. As coisas, tais como são não me parecem satisfatórias(...)antes não o sabia. Agora, sei. Este mundo tal como ele é, não é suportável. Eu preciso da lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa que seja demente talvez, mas que não seja deste mundo.”(Caligula. OC, I. p.331) 1053 Nos referimos aqui especificamente ao emprego do termo por Heráclito. Fg.52 In Hipólito, Refutação, IX,9. “Tempo(Aiôn) é criança brincando, jogando; de criança o reinado.”(Trad. José Cavalcante de Souza)

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estão privados de conhecimento, porque lhes falta um professor que conheça aquilo

que ensina.”1054

Calígula apressa a ampulheta do tempo, gira a engrenagem da morte,

demonstrando, pela vileza de suas ações em prol do Tesouro público1055, pelo copioso

recurso às punições e execuções de Estado, pelo menosprezo cotidiano à dignidade

humana, a evidência cósmica da absurdidade e da injustiça que aprendeu com a

desaparição de Drusilla: “Findaste por compreender que não é necessário ter feito

algo para morrer.”1056 É a lógica de um cosmo indiferente em operação, convertida

numa política de Estado assassina: “Decidi ser lógico e visto que tenho o poder,

verão quanto à lógica pode custar. Exterminarei os contraditores e as contradições.

Se for necessário, começarei por ti.”1057 À Cherea, Calígula exprime o raciocínio dos

tiranos que desfrutam das prerrogativas de um cosmo que tudo absorve e absolve em

sua magnitude impassível: “Este mundo é sem importância e quem o reconhece

conquista sua liberdade.”1058(...) “Acabei de compreender a utilidade do

poder(...)Hoje, e pelo tempo que virá, minha liberdade não tem mais fronteiras.”1059

A metáfora do totalitarismo como uma peste, produzida pela convicção

filosófica de que o homem não encontra fronteiras ou limites diante de um cosmo

indiferente, se cristaliza na rivalização metódica de Calígula com a crueldade dos

deuses: “Farás fechar os celeiros públicos(...)Digo que vai haver fome amanhã.

Todo mundo conhece a fome, é uma peste. Amanhã, haverá peste...e pararei a peste

quando me aprouver. [explicando aos outros] É que, apesar de tudo, não tenho

muitas maneiras de provar que sou livre. É-se sempre livre à custa de alguém...”1060

Num mundo descrito com a clarividência dos olhos de um físico, privado de

ilusões, Calígula re-fundamenta a política, flutuante desde o crepúsculo dos ídolos -

ela se alicerça doravante no esteio da crueldade natural do cosmo: “Para um homem

que ama o poder, a rivalidade com os deuses tem algo de irritante. Suprimi isto.

Provei a estes deuses ilusórios que, um homem, se tem vontade, pode exercer, sem

aprendizagem, sua ridícula profissão.”1061

1054 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.332. 1055 “Se oTesouro tem importância, então a vida humana não tem.” CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.333. 1056 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.346. 1057 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.336. 1058 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.337. 1059 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.336. 1060 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.359. 1061 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.362.

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Os indícios estão dados, o Calígula de 1943 de Camus1062 encarna a aurora de

um pensamento de substituição às religiões opiáceas que caducaram há muito em

seu tempo. Está na vontade de potência a “pedra de toque” da transladação

“apolínea” da desgraça cósmica em virtude, em condição humana, em método

político. É a naturalização do crime que enaltece Calígula, fundamentando às

práticas do poder sem medida: “É a clarividência. Eu simplesmente compreendi que

não há senão uma maneira de se igualar aos deuses: é suficiente ser tão cruel

quanto eles.”1063

Vale reiterar: trata-se de uma re-fundamentação metafísica da política nos

termos de uma cosmologia da crueldade que Camus cristaliza na figura de Calígula.

É neste sentido que é certo que Cherea seja o alter ego de Camus visto que,

na versão de 1943, ele é interlocutor privilegiado do imperador e porta-voz,

primeiramente, do diagnóstico camusiano sobre a “doença” da vontade de potência:

“Imperadores loucos, nós conhecemos. Mas este não é louco o bastante. E o que

detesto nele, é que ele sabe o que faz(...)Sem dúvida, não é a primeira vez que, entre

nós, um homem dispõe de um poder sem limites, mas é a primeira vez que dele se

serve sem limites, até negar o homem e o mundo.”1064 Depois, de sua prescrição

ética, desvelando um engajamento inusitado aos olhos de um leitor desatento de

Camus, a saber, o engajamento contra o nietzschianismo: “(aos senadores)

Partilharei(a vingança) com vocês. Mas compreendam, que não é para tomar

partido de suas pequenas humilhações. É para lutar contra uma grande idéia cuja

vitória significaria o fim do mundo.”1065 Cherea-Camus enfatiza seu contraponto

filosófico: “Ele transforma sua filosofia em cadáveres e, para nossa infelicidade, é

uma filosofia sem objeções.”1066 A prescrição de Cherea, sua metodologia para a

deposição de Calígula baseada no próprio niilismo do imperador, nos remete ainda à

metodologia que opera Camus em sua própria leitura de Nietzsche no artigo

Niilismo e História que integrará, como veremos oportunamente, O Homem

Revoltado1067 no qual investiga as conseqüências éticas últimas das premissas do

1062 Mencionaremos oportunamente a importante re-estruturação sofrida pela peça face às solicitações da guerra entre 1941 e 1943. 1063 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.362. 1064 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.342. 1065 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.342. 1066 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.343. 1067 ?

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filósofo da visão de Surlei: “É necessário empurrá-la em seu sentido (pousser dans

son sens), esperar que esta lógica converta-se em demência.”1068

Para Camus, portanto, a “grande idéia cuja vitória significaria o fim do

mundo”, a “filosofia que se transforma em cadáveres” é, do ponto de vista de 1943,

momento no qual uma reflexão sobre a vontade de potência alemã se impõe, o

nietzschianismo1069, herdeiro direto de uma concepção heraclitiana do mundo.

Calígula brada aos quatro ventos sua clarividência heraclitiana: “Eu sei que

nada permanece!(Je sais qui rien ne dure!)Oh, saber isto! Fomos apenas dois ou três

na história que tivemos a verdadeira experiência disto, que pudemos atingir esta

felicidade demente.”1070

Ora, leia-se: Calígula, “ou o jogador”1071, Nietzsche e Heráclito. No cerne

da experiência cósmico-existêncial de Calígula está à fluidez radical de um cosmo que

não se detém em seu jogo eternamente renovado de combate e de destruição, que se

perpetua indiferentemente e à revelia de qualquer sentido ou justiça tributável

humanamente. Calígula bem que poderia ter dito aos pés de Drusilla: “Vejo o vir-a-

ser.”1072

A obsessão de Calígula pelo jogo, pela transgressão, pela re-codificação

fastidiosa dos valores, pela coisificação dos seres, pela imputação arbitrária de

deveres e de punições que torna a singularidade humana ridícula e desprezível, em

suma, pela eterna renovação do mundo através do movimento de destruição e criação,

de vidas e valores, advém desta assunção plena à concepção lúdica da existência,

1068 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.343. 1069 Notadamente, veremos oportunamente, o nietzchianismo banalizado pela história... 1070 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.386. 1071 “Caligula ou le joeur” é o primeiro sub-título concedido por Camus à peça segundo os Manuscritos dos Fundos Camus (version A). Notar ARNOLD, J-A. Camus lecteur de Nietzsche. Em Cahiers Albert Camus 9.. A passagem seguinte do Ecce Homo da biblioteca de Camus(edição de 1932), retém a atenção de James Arnold, ela se encontra “sublinhada contrariamente ao hábito de Camus à tinta, caprichosamente, com uma mão firme”(p.96):“Não conheço outro modo de lidar com grandes tarefas senão o jogo...” (Na versão brasileira, NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p.51.) Arnold subscreve: “É muito possível que este aspecto do jogo esteja em relação com o ato II do Calígula...”(Op.cit.p.96) Outras frases em relação direta com o Calígula estão também grifadas, no volume do Crepúsculo dos Ídolos utilizado por Camus e em seu volume da Origem da Tragédia: “A afirmação da vida em seus aspectos mais estranhos e árduos; a vontade de vida...esta felicidade que traz ainda com ela a felicidade da nadificação...” (edition Mercure de France.p.94) “que a existência do mundo não pode se justificar senão como fenômeno estético(...)um deus puramente artista, absolutamente desprovido de escrúpulos e de moral, para quem a criação ou a destruição, o bem ou o mal são manifestações de seu capricho indiferente e de sua toda - potência; que se desembaraça, fabricando mundos, do tormento de sua plenitude...”(editem Mercúrio de France p.10) em ARNOLD, J-A. Camus lítio de Nietzsche. Em Cahiers Albert Camus 9.pp.96-98. 1072 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.102-3.

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compreendida como império cego de um tempo-criança às voltas consigo mesmo:

“Tempo (aiôn) é criança brincando, jogando; de criança o reinado.” 1073

Na ótica de Camus, as engrenagens do poder, munidas das premissas da

inocência primordial, materializam historicamente às conseqüências da descrição

heraclitiana-nietzschiana de mundo, transformando em leitmotiv de toda uma época:

“O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns revelou deuses, outros

homens; de uns fez escravos, de outros livres.”1074

Calígula brande as palavras de ordem que fundamentam o cotidiano

político de um cosmo cruel: “Quem ousaria me condenar neste mundo sem juiz...”1075

Se a lição dos elementos nos ilustra uma desordem predadora como sendo a

própria verdade e harmonia do cosmo, cuja lei e direito é um feroz combate pautado

pela aniquilação, quem ousaria pautar uma política antinaturalista? “É preciso saber

que o combate é o-que-é-com, e justiça (é) discórdia, e que todas (as coisas) vêm a

ser segundo discórdia e necessidade.”1076 Num universo no qual o crime é a própria

lei, Calígula diz: “todas as coisas são equivalentes.”1077 Revela-se o projeto

heraclitiano-nietzschiano do político: “Eu quero misturar o céu e o mar, confundir

feiúra e beleza, fazer brotar o riso do sofrimento.”1078

O desespero de Cesônia face ao projeto histórico-filosófico de Calígula de

transfigurar a miséria na grandeza, quem sabe aluda à fúria de Aristóteles mencionada

por Nietzsche contra a subversão heraclitiana1079: “Há o bom e o mau, o que é grande

e o que é baixo, o justo e o injusto. Juro-te que isto não mudará!”1080

1073 HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 52 in Hipólito, Refutação, IX, 9. Trad. José Cavalcante de Souza. 1074 HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 52 in Hipólito, Refutação, IX, 9. Trad. José Cavalcante de Souza. 1075 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.387. 1076 HERÁCLITO. Fragmentos. Fog. 80 in Orígenes contra Celso, vI, 12. Trad. José Cavalcante de Souza. 1077 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.369. Em Heráclito: “A rota para cima e para baixo é uma e a mesma.” In Hipólito. Refutações. IX, 10. 1078 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.339. Em Heráclito: “Direções do fogo: primeiro mar, e do mar metade terra, metade incandescência...Terra dilui-se em mar e se mede no mesmo logos, tal como era antes de se tornar terra.” In Clemente de Alexandria. Tapeçarias, V, 105. “O deus e dia e noite, inverno verão, guerra paz, saciedade fome...” In Hipólito. Refutações. IX, 10. “As (coisas) frias esquentam, quente esfria, úmido seca, seco umedece.” Tzetzes, Escólios para a Exegese da Ilíada. “O mel segundo Heráclito, é a um tempo amargo e doce, e o próprio mundo é um vaso de mistura que tem que ser continuamente agitado.” (NIEZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica dos Gregos.p.104) A ótica heraclitiana é retomado pelo Zaratustra de Nietzsche: “A dor é também um prazer, a maldição é também uma benção, a noite é também um sol; ide embora daqui, senão aprendereis: um sábio é também um louco.”(NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.(O canto do Ébrio)p.324.) 1079 “...«Tudo tem, em todo tempo, o oposto em si», com tanta insolência que Aristóteles o acusa de crime supremo diante do tribunal da razão, de ter pecado contra o princípio de não-contradição.” (NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.103.) 1080 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.339.

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Ora, para os que experimentaram os abismos da lucidez, como Calígula,

Nietzsche e Heráclito, estas são certezas colapsadas pelas características cataclísmicas

do universo. Como bem sabemos, a epistemologia heraclitiana-nietzschiana constitui

irresistivelmente uma ética da indiferença moral: “Para o deus são belas todas as

coisas e boas e justas, mas homens umas tomam(como)injustas,

outras(como)justas.”1081

Em A Filosofia da Época Trágica dos Gregos, Nietzsche louva este

amoralismo inscrito no cosmo desvelado por Heráclito que transmuta “dor em

prazer”, naturalizando o eixo do combate pela sobrevivência como cerne da condição,

a um só tempo, humana e cósmica: “Tudo ocorre conforme a esse conflito, e é

exatamente este conflito que manifesta a eterna justiça.”1082 Ele se detém na gênese

desta imagem bélica do cosmo fornecida pelo físico de Éfeso: “Heráclito media o

universo movido sem descanso, a«efetividade», com o olho do espectador afortunado,

que vê inúmeros pares lutar em alegre torneio sob a tutela de rigorosos árbitros; não

podia considerar os pares em luta e os juízes separados uns dos outros, os próprios

juízes pareciam combater, os próprios combatentes pareciam julgar-se – sim, como

no fundo só percebia a justiça uma, eternamente reinante, ele ousou proclamar: «o

próprio conflito do múltiplo é a pura justiça».”1083 Nietzsche é um entusiasta desta

“contemplação puramente estética do mundo”1084: “(Heráclito) ele ergueu a cortina

desse espetáculo máximo.” 1085

O filósofo-músico admira a clarividência liberadora do mestre Heráclito no

desvelamento deste cosmo contingente e feroz que transfigura a guerra em dança: “ É

uma representação maravilhosa, haurida da mais pura fonte do helenismo, que

considera o conflito como o império constante de uma justiça unitária, rigorosa,

vinculada a leis eternas. ”1086(...)Heráclito não tem nenhuma razão para ter que

demonstrar como Leibniz que este mundo é o melhor de todos; bastava-lhe que ele

fosse o belo, o inocente jogo do Aion.”1087

1081 HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 52 in Porfírio, Questões Homéricas, Iliáda, IV, 4. Trad. José Cavalcante de Souza. 1082 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.104. 1083 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.105. 1084 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.108. 1085 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.110. 1086 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.104-5. 1087 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.108.

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Nietzsche exclama a partir de Heráclito: “Quem pedirá ainda de tal

filosofia uma ética!”1088

Calígula, como vimos, os acompanha: “Quem ousará me condenar neste

mundo sem juiz...”1089

Nietzsche deduz as conseqüências ético-político-filosóficas do cosmo

heraclitiano que exige o estabelecimento de um prisma artístico-aristocrático para ser

compreendido: “Há culpa, injustiça, contradição, dor neste mundo?Sim, exclama

Heráclito, mas somente para o homem limitado, que vê em separado e não em

conjunto, não para o deus constitutivo; para este, todo conflitante conflui em

harmonia, invisível, decerto, ao olho humano habitual, mas inteligível àquele que,

como Heráclito, é semelhante ao deus contemplativo. Diante de seu olhar de fogo,

não resta nenhuma gota de injustiça no mundo esvaído em torno dele; e mesmo

aquele espanto cardeal – Como pode o fogo assumir formas tão impuras?- é

superado por ele com uma comparação sublime. Um vir-a-ser e perecer, um construir

destruir, sem nenhum discernimento moral, eternamente na mesma inocência, têm,

neste mundo, somente o jogo do artista e da criança. E assim como joga a criança e o

artista, joga o fogo eternamente vivo, constrói e destrói em inocência – e esse jogo o

Aiôn joga consigo mesmo.”1090

Calígula, o jogador, encarna a dimensão política, histórica, do usufruto

pleno destas prerrogativas de inocência liberticidas extraídas deste segredo

“prometeico”, para poucos, apenas insinuado por Heráclito: “Este mundo não tem

importância e quem o sabe, conquista sua liberdade.”1091(...)“minha liberdade não

tem mais fronteiras.”1092

Nietzsche assume em diversos momentos de sua obra, tal como Heráclito

reivindica violentamente, esta dimensão aristocrática para sua filosofia, segundo ele,

inacessível ao “homem limitado”1093 e reservada “somente ao homem estético”1094,

capaz de “intuir o mundo”1095: “Pois cães ladram contra os que eles não

1088 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.108. 1089 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.387. 1090 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107. 1091 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.336-7. 1092 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.337. 1093 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107. 1094 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107. 1095 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107.

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conhecem.”1096 “Pois cadáveres, mais do que estercos, são para se jogar fora.” 1097

“O asno prefere a palha ao ouro.”1098 “Porcos em lama se comprazem, mais do que

em água limpa.”1099 “- Quem sabe respirar o ar dos meus escritos sabe que é um ar

das alturas, um ar forte. É preciso ser feito para ele, se não há o perigo de se

resfriar. O gelo está próximo, a solidão é monstruosa –mas quão tranqüilas banham-

se as coisas na luz! Com que liberdade se respira!”1100 “Más testemunhas para os

homens são olhos e ouvidos, se almas bárbaras eles tem.”1101 Esta dimensão

aristocrática do saber é requerida para a compreensão adequada da condição humana

inscrita no cosmo indiferente heraclitiano-nietzcshiano: “Sombrio, melancólico,

lacrimoso, escuro, atrabiliário, pessimista e, de modo geral, odioso, só acham de

Heráclito aqueles que não tem motivo para ficar satisfeitos com sua descrição

natural do homem.”1102

Calígula, aliás como Zaratustra, está para além do aristocrata - “conquistei

a divina clarividência do solitário.”1103 O imperador encontra-se, obviamente, para

além de bem e mal: “Tais homens vivem em seu próprio sistema solar.”1104 Em seu

universo “artístico”, de deus constitutivo e contemplativo1105, cercada pelos jogos,

pela música, pela poesia, pelo teatro vivo, seu desvelo pela destruição e pelo crime

encontra-se absolutamente integrado em sua arte de viver. Imperador e artista

dionisíaco, Calígula, em sua “concepção estética básica do jogo do mundo”1106 está

além das fronteiras morais e seus excessos são constitutivos de sua arte de amar a

vida: “Não é o ânimo criminoso, mas o impulso lúdico que sempre desperta o novo,

que chama à vida outros mundos. Às vezes, a criança atira fora o seu brinquedo:

mas logo recomeça, em humor inocente.”1107 Se Calígula aniquila, pouco a pouco, a

1096 HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. In Seni Res Publica gerenda sit, 7. Trad. José Cavalcante de Souza. 1097 HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 96 in Banquete, IV. Trad. José Cavalcante de Souza. 1098 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107. Citando Heráclito mencionado em Ética a Nicômaco, VIII. 1099 HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 13 in Clemente de Alexandria, Tapeçarias, I, 2. Trad. José Cavalcante de Souza. 1100 NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Prólogo.p.18. 1101 HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 102 In Porfírio, Questões Homéricas, Ilíada, IV, 4. 1102 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.108-9. 1103 Lembremos que até aos “homens superiores”, Zaratustra abandona no desfecho de seu percurso: “Pois bem!Ainda dormem, esses homens superiores, quando eu já estou acordado: não são esses os companheiros próprios para mim!”(NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.p. 326.) 1104 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.110. 1105 É o ator que mais perfeitamente realiza a função de 1106 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.109. 1107 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107.

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todos, arrasando um a um, em cena, em banhos de sangue, cada um dos coadjuvantes

de seu espetáculo, desfilando na cidade suas alegorias da crueldade – “É um jogo, não

o tomeis tão pateticamente e, antes de tudo, não o tomeis moralmente”1108 - isto é

apenas a sua dança. Ele é o “homem estético”1109 de Nietzsche legitimando sua moral

aristocrática de artista-tirano através de uma filosofia do combate e da transitoriedade.

Aprendamos com o músico, “assim intui o mundo somente o homem estético que

aprendeu com o artista e com o nascimento da obra de arte como o conflito da

pluralidade pode trazer consigo lei e direito, como o artista fica em contemplação e

em ação na obra de arte, como necessidade e jogo, conflito e harmonia tem de

emparelhar-se para gerar a obra de arte.”1110 Calígula diz, conferindo “calor e rosto”

para a concepção lúdica e estética da existência de Nietzsche: “O erro de todos estes

homens é de não crer o bastante no teatro. Sem isto, eles saberiam que é permitido a

todo homem representar(jouer)tragédias celestes e tornar-se deus. É suficiente

endurecer o coração.”1111 Ator, ele mimetiza a crueldade e a indiferença do cosmo

até a completa desfiguração humana: “Não se compreende o destino, e é por isso que

me fiz destino. Tomei o rosto animalesco e incompreensível dos deuses.”1112

A alusão à máscara dionisíaca do Zaratustra-Nietzsche, do autor que

finaliza sua auto-biografia filosófica explicando – Por que sou um destino1113 - não é

uma mera coincidência. Nas palavras de Raymond Gay-Crosier: “Calígula é o

ermitão de Silvaplana transferido numa ambientação Romana, aonde ele tem, por

uma vez somente, a chance de realizar suas idéias, e jogar seu jogo cruel até o

fim.”1114 Diante de universo tão cruel – e com professores tão argutos - não é à toa,

portanto, que o vigilante obreiro do caos, Calígula, assuma obstinadamente a

reivindicação do “impossível”1115, da “lua”1116, que justificaria seu ímpeto insaciável

1108 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.108. 1109 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107(5º parágrafo). 1110 NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107-8. 1111 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.363. 1112 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.363. 1113 Cf. NIETZSCHE, F. Ecce Homo. 1114 GAY-CROSIER. R. Les envers d´un échec. Étude sur Le théâtre d´Albert Camus.p.61. 1115 “Este mundo,tal como é, não é suportável. Eu, então preciso da lua ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa que seja demente talvez, mas que não seja desse mundo.”(CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.331.) “Somos dois ou três na história a ter feito verdadeiramente a experiência disto, e atingir esta felicidade demente.”(CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.386.) 1116 “...a morte não é nada, te juro: ela é apenas o sinal de uma verdade que torna a lua necessária.” (CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.332.)

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de existir na beleza e na plenitude - “Eu ainda não esgotei tudo aquilo que me faz

viver. É por isso que quero a lua.”1117

Como diz Zaratustra - “Acaso a lua não nos embriaga?”1118

A lua é o símbolo supremo desta busca pela transfiguração trágica da dor

em prazer - espécie de hóstia ou de Santo Graal – procurada seja pelo ébrio

dionisíaco, seja pelo tirano-artista.

Zaratustra e Calígula procuram, embora de modos diferenciados1119,

redenção e justificação cósmica na lua, isto é, na beleza, no prazer - na arte - no

movimento bramânico de criação e destruição. Trata-se de um movimento de

“eternização” pela efetivação e contemplação do vir-a-ser: “Todo o prazer quer

eternidade para as coisas(...)Ó homens superiores, por vós almeja o prazer, o

indomável, bem-aventurado –almeja pelo vosso sofrimento, ó criaturas

malogradas!Por coisas malogradas, almeja o eterno prazer...Aprendeste agora o meu

canto?Adivinhaste o que ele quer?Cantai para mim, agora, homens superiores, a

minha cantiga de roda!(...)Profundo é o mundo!E mais profundo do que pensa o dia.

Profundo é o seu sofrimento – E o prazer – mais profundo que a ansiedade. A dor diz:

«Passa, momento!»Mas quer todo o prazer eternidade. Quer profunda, profunda

eternidade.”1120 “Vivo, mato, exerço o poder delirante do destruidor, ao pé do qual o

do criador parece uma macaquice. É isso ser feliz. É isso a felicidade, essa

insuportável libertação, esse desprezo universal, o sangue, o ódio em meu redor, esse

isolamento sem par do homem que põe toda a sua vida diante de si, a alegria

desmedida do assassino impune, essa lógica implacável que rebenta as vidas

humanas(Ri), que te destrói Cesônia, para perfazer, enfim, a solidão eterna que

desejo.”1121

Calígula desempenhará o solitário papel de protagonista do Aiôn até o

desfecho lógico de seu jogo, com a lucidez de um teórico refinado das artes do

combate mas, sobretudo, com a embriaguez de um esteta e de um contemplador

convicto. Guiado pelo sopro de sua própria concepção lúdica da vida, com

indiferença, ele se presta a protagonizar o papel de presa na armadilha que o conluio

1117 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.365. 1118 NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.p.321.(O Canto de Ébrio) 1119 Seria preciso um estudo bem mais completo, que deixaremos para o pós-doutorado, para consignar uma análise fundamentada de comparação em detalhe entre Calígula e Zaratustra. Seguramente seria preciso estudar mais demoradamente o universo deste último. 1120 NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.p.324-5.(O Canto de Ébrio) 1121 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.387.

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do tempo, por ele semeado, lhe arquiteta. Seu exercício, por três anos, de uma

rigorosa política fundamentada no mimetismo da crueldade cósmica, revela, afinal,

um subliminar projeto suicida.

Na cena final da versão de 1943 do Calígula de Camus coabitam, afinal,

desenlace trágico e engajamento filosófico na medida em que o golpe “em pleno

rosto”1122 de Cherea em Calígula encarna a recusa de uma “filosofia que se

transforma em cadáveres”1123 e o compromisso de “lutar contra uma grande idéia

cuja vitória significaria o fim do mundo.”1124

O sentido engajado da peça, orientado num horizonte que problematiza a

questão da responsabilidade intelectual, é evidenciado no diagnóstico de Cherea sobre

o jogo poético-existencial de Calígula: “É preciso, pois, compreender, que isto trata

do poder assassino da poesia.”1125

A dimensão ética anti-nietzschiana1126 que o autor lhe infunde em meio à

luta viva contra o totalitarismo da Segunda Grande Guerra, provoca, num indício

importante do liame entre engajamento literário e engajamento filosófico em Camus,

até mesmo a incorporação, na versão de 1943, de um mea culpa de Calígula que fere à

extrema coerência deste “herói” trágico, bem preservada na versão de 1941. Como

comenta James Arnold: “Esta abjuração de si impõe ao protagonista e a seu destino

trágico o reconhecimento de uma falta moral que vai de encontro às intenções

originais do autor.”1127

Um Calígula demasiado shakespeariano, demasiado visceral1128, some da

versão madura: “Se eu tivesse tido a lua, ou Drusilla, ou o mundo, ou a felicidade,

tudo teria mudado!”1129 E, sobretudo, uma tomada de consciência contemporânea é

incorporada à trama eticamente engajada do autor que concebia ao mesmo tempo as

1122 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.388. 1123 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.343. 1124 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.342. 1125 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.349. 1126 “Sem dúvida, para Camus, Calígula não é somente uma refutação da vontade de potência nietzschiana, é preciso vê-lo como um processo inclemente contra o totalitarismo. O verídico é tão claro quanto simples: o pensamento conquistador é culpado sob qualquer aspecto.” (GAY-CROSIER. R. Les envers d´un échec. Étude sur Le théâtre d´Albert Camus. Minard, 1967.) 1127JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4. Gallimard.p.1984.p.172. 1128 “...soi para ti cheio de ódio – e tu és para mim como uma ferida que eu gostaria de dilacerar com minhas unhas para que o sangue e o pus misturados à minha vida saia em gordas borbulhas.” CAMUS, A . Caligula version de 1941. Cahiers Albert Camus 4. Gallimard.1984.p.119. 1129 CAMUS, A . Caligula version de 1941. Cahiers Albert Camus 4. Gallimard.1984. p.119.

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Lettres à um ami allemand1130: [ Calígula estende as mãos para o espelho] “Procurei

o impossível nos limites do mundo, nos confins de mim mesmo1131. Estendi as minhas

mãos[gritando], estendo as minhas mãos e é a ti que encontro, sempre a ti diante de

mim, e eis-me cheio de ódio diante de ti. Não escolhi o caminho que era preciso, não

cheguei à nada. A minha liberdade não é a correta (Ma liberté n´est pas la

bonne.)”1132

É importante assinalar, no entanto, que em ambas as versões do Calígula de

Camus conste o mesmo presságio lúcido prenunciado pelas derradeiras palavras do

imperador antes de sucumbir à lógica predadora da qual se fez pedagogo: “À história,

Calígula, à história.[O espelho quebra-se e, nesse instante, entram por todas as portas

os conjurados, as armas. Calígula faz-lhes frente, com um riso de louco. O Velho

Patrício fere-o pelas costas, e Cherea em pleno rosto1133. O riso de Calígula se

transforma em soluços. Todos os ferem. Num último soluço, Calígula, rindo e

estrebuchando, grita]: Ainda estou vivo!”1134

Trata-se da evidenciação do intertexto político e histórico desta obra teatral

seguramente engajada na construção de uma “ética da solidariedade nascida da

experiência da Europa esmagada pela tirania.”1135

*

Contudo, seria temerário sublinhar tão somente os aspectos tirânicos do

Calígula de Camus sem aludir a sua inquietante simpatia em cena. Por exemplo,

qualquer espectador da encenação levada à cabo por Charles Berling em 2005 em

Paris, no Théâtre de l´Atelier – montagem que conservando fidelidade absoluta ao

texto camusiano, encarna sua mensagem sobre o poder num cenário atual, o dos

1130 O vocabulário de Cesônia desvela que nos encontramos no mesmo registro, histórico e ético, das Lettres: “...se o mal está sobre a terra porque querer a ele acrescentar(pourquoi vouloir y ajouter)?” (CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.338.) “É que admites o bastante a injustiça de nossa condição para resolver a ela acrescentar (ajouter), enquanto que me parece que o homem deveria afirmar a justiça para lutar contra a injustiça eterna.”(CAMUS, A. Lettres à un ami allemand.Essais. p.240.) 1131 “Procurei-me a mim mesmo.”(HERÁCLITO. Fg.101. In Contra Colotes, 20.) 1132 A parte grifada foi incorporada na versão de 1943. Notar CAMUS, A . Calígula version de 1941. Cahiers Albert Camus 4. Gallimard.1984. p.119 e CAMUS, A. Calígula. Oeuvres Complètes I. p.388. Perceber que Maria diz a Jan no Malentendu(I,4): “seu método não é o correto.(ta méthode n´est pas la bonne.)”(CAMUS, A. Le Malentendu. OC, I. p.464.) 1133 “Cherea esta sobre ele e o fere com seu punhal, três vezes no rosto...” Única diferenciação em relação a cenografia do desfecho da versão de 1941. (CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.388 e CAMUS, A . Calígula version de 1941. Cahiers Albert Camus 4. Gallimard.1984. pp.119) 1134 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.388 e CAMUS, A . Calígula version de 1941. Cahiers Albert Camus 4. Gallimard.1984. pp.119-20. 1135JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4. Gallimard.p.1984.p.175.

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elegantes políticos engravatados em seus reservados “palácios”, nos quais se decide

da vida e da morte, para além de bem e mal - defronta-se, de chofre, com a

ambigüidade da figura de Calígula.

Além de um apaixonado, de um lírico dotado de um coração de poeta, o

tirano de Camus é, de começo, um portador da justa revolta contra a ordem da

finitude: “..de que me serve poder tão admirável se não posso mudar a ordem das

coisas, se não posso fazer que o sol se pouse no leste, que o sofrimento decresça e

que os homens não morram mais?”1136 Sua reação ao destino humano absurdo oscila

entre a rivalização e o mimetismo apaixonado da crueldade cósmica, procedimento

que se cristaliza num populismo sanguinário: “Minha vontade é de mudar. Eu darei a

este século o presente da igualdade. E quando tudo estiver aplainado, o impossível

enfim sobre a terra, a lua nas minhas mãos, então, talvez, eu mesmo estarei

transformado e o mundo comigo; então, enfim, os homens não morrerão e eles serão

felizes.”1137 É este projeto de eternidade, cujo o fim é de um populismo exacerbado

como atesta a frase acima, que legitima Calígula no exercício de sua metodologia do

saque e do crime generalizados. Tudo é permitido em prol do Tesouro público que

sintetiza sua metodologia conquistadora: “O amor, Cesônia![Ele a toma nos braços e

a sacode] Aprendi que isto não é nada! É outro que tem razão: o Tesouro público.

Compreendeste, não é?Tudo começa com isso...”1138

O Calígula de paletó de Camus-Berling exprime a realpolitik, o

intercâmbio entre seres, valores e produtos, nesta indistinção a-moral característica do

universo contemporâneo mercantilizado ao limiar do absurdo em todas as suas

dimensões, incapaz de distinguir entre as esferas, pública e privada, obcecada pela

idéia de acúmulo e pela ética da quantidade: “O Tesouro é de um potente(puissant)

interesse. Tudo é importante: as finanças, a moralidade pública, a política exterior, o

aprovisionamento do exército e as leis agrárias! Tudo é capital . Tudo está no mesmo

pé: a grandeza de Roma e as crises de artrite. Me ocuparei de tudo isto!”1139 Há algo

de tragicômico nesta encarnação da metodologia e dos pressupostos do poder político-

econômico, ancorado na lógica da indistinção e da prepotência, conduzidos ao

paroxismo - ao deboche; Calígula guia a platéia em direção a um riso desconfortável:

“Me escute bem imbecil. Se o Tesouro tem importância, então a vida humana não 1136 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.338. 1137 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.339. 1138 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.339. 1139 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.334.

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tem. Isto é claro. Todos aqueles que pensam como tu devem admitir este raciocínio e

ter sua vida por nada visto que pensam que o dinheiro é tudo. Enquanto isto, eu

decidi ser lógico e visto que tenho o poder, verás quanto esta lógica irá vos custar.

Eu exterminarei os contraditores e as contradições. Se for preciso, começarei por

ti.”1140Esta simpatia mórbida de Calígula entra em cena principalmente porque o

espectador é conduzido a partilhar com o “herói” do desprezo pela ambientação

cortesã, palaciana, corrompida e viciada –isto é política(no senso brasileiro do termo)-

que o cerca. Assim, como não compactuar - ainda que pelo riso - com a lógica da

voracidade, quando ela é, pela primeira vez, aplicada à risca aos seus mais

proeminentes mentores, tantas vezes triunfantes em sua impunidade? “Vamos, seção

três, parágrafo primeiro. [Helicon, se levanta e recita mecanicamente] «A execução

conforta e liberta. Ela é universal, fortificante e justa em suas aplicações assim como

em suas intenções. Morre-se porque se é culpado. Se é culpado porque se é sujeito à

Calígula. Ora, todo mundo é sujeito à Calígula. Logo, todo mundo é culpado. Donde

se conclui que todo mundo morre. É uma questão de tempo e de

paciência.»”1141Enigma da “cordialidade”, assim como aniquila facilmente, o

Calígula de Camus, ama e é amado facilmente: “Sou puro no bem, como sou puro no

mal.”1142

Além desta franja lírica da revolta de Calígula contra a finitude, outro

aspecto caro as preocupações de Camus ajuda a delinear os traços ambíguos que

compõe o retrato do tirano: na pele de Calígula vemos o horizonte trágico de uma

política que, apesar de virtualmente nobre, está fadada ao fracasso pelo desprezo dos

métodos pelos quais se efetiva. Trata-se do messianismo historicista, que, segundo

Camus, confunde as dimensões histórica e metafísica da condição humana numa

política pautada em função da construção da eternidade e não do presente. Camus

afirma n O Mito de Sísifo, “ uma revolução é sempre contra os deuses(...)Trata-se de

uma reivindicação humana contra o seu destino.”1143 Ora, a voracidade de Calígula,

que deseja o “impossível enfim sobre a terra”, “a lua na mãos”, encarna o potencial

transgressor e destruidor da justa reivindicação humana contra o absurdo da condição

humana, quando esta desconhece a noção de limite. Há, afinal, muitos traços de

1140 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.335-6. 1141 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.359. 1142 CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.359. 1143 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. In Essais.p.166.

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interrogações evidentemente camusianas complementares ao perfil nietzschiano deste

Zaratustra político, esteja ele de toga ou de paletó.

É neste sentido que James Arnold e Raymond Gay-Croisier confluem em

apontar que as transformações atestadas entre o primeiro e o Calígula maduro

sinalizam para a evolução da própria interpretação camusiana de Nietzsche à luz da

experiência da Segunda Grande Guerra: “A re-escritura de Calígula em 1943 é feita

em função de uma mudança estratégica em seu pensamento. A utilização racista que

os nazistas haviam feito de Nietzsche – restando os escritos de Alfred Rosenberg sem

dúvida o exemplo mais lúgubre – estimulou uma viva reação em Camus(...)Não teria

servido nada insistir, em 1943, para lembrar que Nietzsche havia divisado seu Super-

homem(surhomme) como um criador de valores superiores, e mesmo a repugnância

que o nacional socialismo alemão nele tinha inspirado pesaram pouco na balança,

em face da conduta bárbara dos S.S e de outros super-homens do momento(...)É

certamente em nome da resistência intelectual e artística contra uma vontade de

potência global, que Camus pôde operar, publicamente, esta transmutação de seus

próprios valores.”1144

Um fragmento dos Cadernos de fevereiro de 1943 demonstra que Camus

opera, a partir de um raciocínio pascaliano – trata-se da metodologia do renversement

continuel du pour au countre 1145- uma escolha refletida em favor de um engajamento

para além de Nietzsche: “Um espírito um pouco experimentado à ginástica da

inteligência sabe, como Pascal, que todo erro vem de uma exclusão(...)Mas, a

ocasião força a escolha. Foi assim que pareceu necessário a Nietzsche atacar com

argumentos de força Sócrates e o cristianismo. Mas é assim ao contrário que é

necessário que nós defendamos hoje Sócrates, ou ao menos o que ele representa,

visto que a época ameaça de o substituir por valores que são a negação de toda a

cultura e que Nietzsche arriscaria obter aqui uma vitória a qual ele não

desejaria.”1146

James Arnold resume a escolha filosófica de Camus que, como veremos

oportunamente, se prolongará com a crítica de Nietzsche elaborada n O Homem

Revoltado: “Doravante, e até o fim da guerra, Camus irá queimar o que havia 1144 JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4. Gallimard. pp.169-175. 1145 Trataremos novamente da interpretação camusiana de Nietzsche no capítulo dedicado a interpretação d´O Homem Revoltado. Conferir o capítulo Entre as dimensões metafísica e histórica da revolta. Neste trabalho pp.358-380? 1146 CAMUS, A. Carnets 1935-1948. Carnets IV. Février 1943.OC.p.984.

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adorado. Ele escreverá sobre Nietzsche comentários que não se compreendem senão

num contexto de luta contra o totalitarismo.”1147

Segundo Arnold, que manifesta um comentário arriscado e bastante difícil

de ser fundamentado, diante das transformações submetidas ao substrato ético da

versão de 1943, diante do imperativo “de liquidar as ocorrências do nietzschianismo

em sua própria obra, começando por Calígula”1148 - diante de Camus - “estamos em

presença de um fenômeno bastante raro: um escritor que empreende pensar e

escrever contra si mesmo porque entrevê e teme a perversão provável de uma

verdade a qual ele ainda se atêm.”1149

Neste ponto determinado, Gay-Croisier e Weyemberg nos parecem ainda

mais lúcidos ao preferirem notar de maneira menos audaz um simples

amadurecimento da leitura de Camus sobre Nietzsche, ensombrecida pela ótica da

guerra.

Weyemberg ressalta, aliás, a procedência da leitura camusiana de Nietzsche

durante a Segunda Guerra, aproximando-a da interpretação de Lukács para quem as

“qualidades de Nietzsche o fazem bem mais perigoso do que o nacional-

socialismo”1150: “se Nietzsche é, por suas qualidades, incomparavelmente superior às

ideologias nazistas, não é menos verdade que sua doutrina de adesão ao mundo e o

eterno retorno fecham o universo sobre ele mesmo, eternizam e transfiguram os

conflitos e a violência que aí reinam. A ausência de transcendência, vertical ou

horizontal que daí resulta aproxima incontestavelmente Nietzsche da concepção

nacional-socialista de um universo livrado sem fim à luta das espécies e das

raças.”1151

Camus, afinal, parece amadurecer, “sob pressão da história”1152 sua

interpretação do pensamento de Nietzsche. Se a constatação do absurdo presente n O

Mito de Sísifo e válida na maturidade filosófica do autor, permanece tributária de uma

epistemologia heraclitiana-nietzschiana do cosmo, eticamente, entretanto, Camus

almeja ultrapassar a descrição do físico, do contemplador: o autor argelino reivindica

1147 JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4. Gallimard.p.169 1148 JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4. Gallimard.p.173. 1149 JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4. Gallimard.p.173. 1150 WEYEMBERG, M. Camus et Nietzsche: evolution d´une affinité in Albert Camus 1980.p.229. 1151 WEYEMBERG, M. Camus et Nietzsche: evolution d´une affinité in Albert Camus 1980.pp.229-30 1152 CAMUS, A. Conférence prononcé à Athènes sur l´avenir de la tragédie. Essais.p. 1705.

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o prisma do filósofo socrático, em luta contra um infortunado destino humano

comum, que resiste, estrangeiro, ao conluio da indiferença universal.

Duas pedras, duas visões de mundo: enquanto Nietzsche com a visão da

pedra de Surlei1153 contempla o eterno retorno do processo bramânico de criação e

destruição – “o mundo absurdo não recebe senão uma justificação estética”1154 – o

Sísifo de Camus envergado, mas altivo sob o peso da pedra do destino que enfrenta de

sol a sol, vivencia, lucidamente, o drama da condição cósmica absurda: “son rocher

est sa chose.”1155

Duas concepções filosófica que, afinal se entrechocam pois para Camus não

há pedra de toque capaz de transformar dor em prazer, injustiça em justiça,

assassinato em lei, contingência radical em eterno retorno. Embora “seja necessário

imaginar Sísifo feliz”1156, “é necessário”, por outro lado,“ser um louco ou um

covarde para consentir na peste, e, em face dela a única palavra de ordem de um

homem é a revolta.”1157

De todo modo, o veredicto de Camus sobre Nietzsche em 1943 é

contundente e se materializa com força no Calígula que encarna as conseqüências

lógicas últimas da naturalização do crime por intermédio de uma concepção

puramente estética ou lúdica da existência e do cosmo.

Camus assinala a conseqüência histórica-política da assunção ao vale-tudo

da inocência cósmica: a legitimação do assassinato em massa pela espiral da

indiferença, num universo político prenhe de nostalgia do absoluto e livrado às lutas

abissais das espécies em franco combate pela preponderância.

É neste sentido que a leitura camusiana de Nietzsche nos parece, hoje,

novamente, em meio à efetivação definitiva de uma geopolítica internacional ditada

pelas paixões, pela conquista e pela indiferença, e de uma política interna governada

pelo leitmotiv da violência e do imoralismo, perfeitamente compreensível. Ora,

Camus escreve “sobre Nietzsche comentários que não se compreendem senão num

contexto de luta contra o totalitarismo.” 1158

***

1153 Notar em (HALEVY, D. Nietzsche), o capítulo dedicado à visão de Surlei. 1154 CAMUS, A. Carnets 1935-1948. Carnets IV. Décembre 1942.OC.p.974. 1155 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe in Essais.p.197. 1156 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe in Essais.p.198. 1157 CAMUS, A. Carnets 1935-1948. Carnets IV. Janvier 1943.OC.p.978. 1158 JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4. Gallimard.p.169

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C) O Estrangeiro e a engrenagem: a grandeza e a miséria do homem segundo

Camus

“…o mecanismo mais uma vez esmagava tudo: era-se morto discretamente, talvez com um pouco de vergonha, mas com muita precisão.”(O Estrangeiro. p.1203, Nouvelles, Récits...)

“Imagine-se certo número de homens presos e todos condenados à morte, sendo uns degolados diariamente diante dos outros e os que sobram vendo sua própria condição na de seus semelhantes e se contemplando uns aos outros com tristeza e sem esperança, À espera de sua vez. Eis a imagem da condição dos homens.” (Pascal. Pensées. Br. 199)

A fatalidade irrompe no cotidiano de Meursault. A fruição dos dias, os banhos

de mar, a namorada, enfim, a simples e banal enumeração que compõe os indícios de

uma pacata vida de funcionário em Argel é interrompida pela notícia de Marengo:

“Hoje minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem...”1159A suave mecânica que

governava continuamente à sucessão dos dias se abalara: este evento “de fora” pôs

termo ao encadeamento irrefletido do cotidiano e à imersão neste hábito de viver a

que os clássicos chamam costume.

Outra ordem desponta no céu luminoso de Argel, outra significação até então

dormente é desperta nos elementos malgrado à ânsia do herói em permanecer na

quietude da cronologia analítica dos funcionários submissos aos cartões de ponto:

“Tomo o ônibus às duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar

e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao meu patrão e, com uma

desculpa destas, ele não podia recusar. Mas ele não tinha um ar lá muito satisfeito.

Cheguei mesmo a dizer-lhe: - A culpa não é minha.”1160

Nunca Meursault se sentira tão inocente: embora os elementos “prenunciem” o

invólucro da fatalidade (a súbita inconveniência do calor, e os incômodos pêsames

1159 CAMUS, A. L’Étranger. p.1127(Pleyade)- 1160 Idem.p,1127-1128

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dos amigos) é a irreflexão mecânica que confere uma absurdidade quase irônica à

descrição de sua ida ao enterro. Como um títere, Meursault age na medida dos

impulsos exteriores que recebe: é uma anti-ação que protagoniza na medida em que

esta é, a bem da verdade, “reação”, às pessoas ou aos elementos. É somente da

resposta mecânica que é capaz nosso herói: somente a réplica lhe faz viver.

Persistentemente imerso na temporalidade irreflexiva do cotidiano ele nega, por ora,

sua condição(humana)de solitário, através do sono, signo maior, seja da

inconsciência, seja da inocência: “Tomei o ônibus às duas horas. Fazia muito calor.

Como de costume, almocei no restaurante do Celeste. Estavam todos com muita pena

de mim e o Celeste me disse: - Mãe, há só uma. – quando saí, acompanharam-me à

porta(...) Tive de correr para não perder o ônibus. Esta pressa, esta correria e,

talvez, também os solavancos, o cheiro de gasolina, a luminosidade da estrada e do

céu, tudo isso contribuiu para que eu adormecesse no caminho. Dormi quase o tempo

todo. E, quando acordei, estava apertado de encontro a um soldado que me sorriu e

me perguntou se eu vinha de longe. Disse que sim, para não ter que voltar a

falar.”1161

É esta materialidade da história simbolizada seja pelo corpo do soldado, seja

pelo corpo da mãe enclausurado no féretro, que Meursault nega pela fantasmagoria

de sua ‘presença vazia’. A presença de Meursault é tênue e exígua: um mero eco.

No limite é uma participação na história na forma da ausência que se esboça

aqui – e que atingirá seu ápice no assassinato do árabe anônimo - tal é o

distanciamento, ou “altitude” que a personagem insiste em guardar em relação aos

acontecimentos e sua indisposição ao aplainamento ao nível terreno e mesmo

subterrâneo da condição humana: “- Fecharam-no, mas eu vou desparafusá-lo, para

que o senhor a possa ver. – Aproximava-se do caixão, quando eu o detive. Disse-me:

- Não quer? – Respondi: - Não. – Calou-se e eu estava embaraçado porque sentia que

não devia ter dito isto. Ao fim de uns momentos, ele olhou-me e perguntou: - Por

quê? – mas sem um ar de censura, como se pedisse uma informação. Eu disse: - Não

sei.”1162

1161 CAMUS. Idem, p.1127,1128. 1162 Idem, 1129.

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Mas há algo de ambíguo nesta atitude impassível de Meursault diante da morte

de sua mãe: esta linearidade de seu estado psíquico, esta ausência de qualquer

sobressalto ou espasmo pela perda, esta continuidade do sentimento, este apego à

rotina da alma e do corpo que poderíamos caracterizar de “frieza” não é uma atitude

puramente robótica. É antes um mecanismo, e até mesmo extenuante, de lidar com o

presente quando este se apresenta na forma da adversidade: modus operandi da

indiferença e da fruição do instante que se desvela, afinal, o grande algoz da

personagem.

Entrementes, a resposta rápida e furtiva ao outro, a estranheza de cada rosto

que encarna os passos do ritual social do enterro é pincelada por vezes de uma

memória afetiva muito sutil, que, com o passar da obra se torna cada vez mais

presente em seu monólogo interior1163. É também ambígua esta inocência

(simbolizados pela tranqüilidade e pelo sono) – perante uma morte que não desejava –

como que permeada por uma culpa que, embora não admitida, sobrevoa sempre seu

horizonte íntimo1164: “Acordei, porque alguém roçou em mim(...) Quando se

sentaram, a maioria deles olhou-me e abanou a cabeça embaraçadamente, os beiços

comidos pelas bocas desdentadas, sem que tivesse percebido ao certo se me estavam

a cumprimentar, ou se era apenas um tique. Acreditei que me cumprimentavam. Foi

neste momento que reparei que estavam todos em frente de mim, balançando as

cabeças, em volta do porteiro. Por instantes, tive a impressão ridícula de que estavam

ali para me julgar.”1165

Ambíguos também são estes anônimos personagens sem rosto, ofuscados, na

madrugada, pela luz branca intensa e artificial do velório, ou pela luminosidade cega

do dia. Embora demonstrem respeito e dor é a artificialidade que domina seus gestos,

como se encenassem uma coreografia inúmeras vezes ensaiada, mas, não obstante,

1163 “Bebi. Tive então vontade de fumar. Mas hesitei, porque não sabia se podia diante de minha mãe(...)Através das fileiras de ciprestes que levavam às colunas perto do céu, desta terra ruiva e verde, destas casas raras e bem desenhadas: eu compreendia a minha mãe.”(p.1131)Preso, Meursault recorre constantemente à memória da mãe e seu zelo na evocação nos faz notar que o vínculo entre ambos é bem maior e mais profundo do que se poderia imaginar no início da obra;“Lembrei-me nestes momentos de uma história de minha mãe. (p.1203)”(...) “Mamãe dizia que não se é jamais completamente infeliz.”(p.1205) 1164 “A culpa não é minha.” (p,1127) “- Não tem nada que se justificar, meu filho.”(p.1128) “Mas por um lado, não é culpa minha se o enterro foi ontem em vez de ser hoje, e, por outro lado, teria tido, de qualquer maneira, o sábado e o domingo livres.”(p.1138) 1165 Idem, p.1132.

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vazia: “estavam tão absortos em seus pensamentos, que nem se davam por isso. Tinha

mesmo a impressão de que esta morta, ali deitada, nada significava para eles.”1166

Os gestos precisos destes autômatos do rito são daqueles que desabam ao raiar do dia,

revelando à armação mecanicamente imperfeita da pantomima carpideira: “ Lembro-

me de que, a certa, altura, abri os olhos e reparei que os velhos dormiam dobrados

sobre si mesmos, com a exceção de um único que de queixo encostado às costas das

mãos, e com estas agarradas à bengala, me olhava fixamente, como se estivesse à

espera de me ver acordar. Depois, voltei a adormecer.”1167

As cenas do enterro da mãe de Meursault reforçam em um tom quase que

caricatural esta sinistra e ordinária mecânica do rito: os estágios se sucedem como que

encadeados por um movimento irrefreável e inumano sob o sol inclemente – ‘levou-

me para o quarto’, ‘mandou-me assinar vários documentos’; ‘descer’, ‘agradecer’,

‘calar’. ‘Seguir’ o padre: com o ‘carro funerário à espera, ouvi-lo principiar suas

orações’; “tudo se passou muito depressa(...) tanta rapidez, tanta certeza, tanta

naturalidade, que já não me lembro de nada.”1168

“Se vamos muito devagar, arriscamo-nos uma insolação. Mas, se vamos muito

depressa, transpiramos e na igreja apanhamos calor e frio. – Tinha razão. Não há

saída.”1169Mesmo o esforço do ‘alquebrado’ ancião que, no fim dos seus dias, sua

mãe adotara como “noivo”, exaurido e por fim desmaiado pelos esforços exigidos

pelo enterro sob o sol escaldante - parece envolto desta artificialidade exageradamente

mecânica e patética, que vulgariza os gestos humanos, que encontramos

freqüentemente no teatro de marionetes: “Grossas lágrimas de enervamento e de

tristeza corriam-lhe pela cara abaixo. Mas, por causa das rugas, não caíam.

Dividiam-se, juntavam-se e formavam uma máscara de água nessa cara

arruinada(...)<<no momento do desmaio>>(dir-se-ia um boneco partido.)”1170

Quatro aspectos podem ser até aqui acentuados como simbolicamente

representativos de uma concepção antropológica particular ao pensamento de Camus.

Primeiramente, a diluição do verniz do sentido, ou seja, o desvelo do absurdo da

1166 Idem, p.1132. 1167 Idem, p.1133 1168 Idem, pp.1134, 1136-7 1169 Idem, p.1137. 1170 Idem, p.1137.

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existência como que estampado na superficialidade dos atos e ritos da vida. Podemos

considerar a descrição da crua banalidade que circunda a morte “alheia” (e que reflui

para aniquilar o sentido da vida) como a versão camusiana da “náusea”sartreana: “Os

homens também segregam desumanidade. Em certas horas de lucidez, o aspecto

mecânico de seus gestos, sua pantomima desprovida de sentido torna estúpido tudo

que os rodeia. Um homem fala ao telefone atrás de uma divisória de vidro; não se

ouve o que ele diz, mas vemos sua mímica sem sentido: perguntamo-nos por que ele

vive. Esse mal-estar diante da desumanidade do próprio homem, essa incalculável

queda diante da imagem daquilo que somos, essa ‘náusea’, como diz um autor de

nossos dias, é também o absurdo.”(...)“Sob a iluminação mortal deste destino,

aparece a inutilidade.”1171

Também importante é o apego visceral do homem ao hábito de viver, mesmo

que nos mais absurdos e rudimentares contornos com os quais podemos conceber a

vida1172 (leitmotiv d’ O Mito de Sísifo) presente no usufruto das grandezas da vida

pelo funcionário- hedonista Meursault, ocupado entre a repartição e os banhos de

mar, ou no singelo passeio pelo campo que distraia o alquebrado Perez e a agora

falecida mãe de nosso herói, “através das fileiras de ciprestes que levavam às colunas

perto do céu, desta terra ruiva e verde, destas casas raras e bem desenhadas...”1173

Outro aspecto relevante pode ser considerado legado do pessimismo clássico,

pois está profundamente presente, por exemplo, nas reflexões antropológicas de

Pascal: a impossibilidade do homem conceber a dimensão ética da morte, mesmo

quando se depara com a morte de outrem, mesmo imerso na experiência na morte de

seu próximo1174. A opacidade que separa a conduta cotidiana do homem da

1171 CAMUS, A. O Mito de Sísifo. pp,29-30. 1172 “Quando estava lá em casa, mamãe passava o tempo a seguir-me em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias de asilo, chorava muitas vezes. Mas era por causa do hábito(habitude). Ao fim de alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao hábito. Foi um pouco por isto que, no último ano, quase não a fui visitar. E também porque a visita me tomava o domingo...”(p.1128) 1173 CAMUS, A. O Estrangeiro. p.1135. 1174 São célebres os fragmentos dos Pensamentos que descrevem a impossibilidade do homem de pensar na própria condição através da evidência da morte: “(L.136-Br.139) “Como se explica que esse homem, que perdeu há poucos meses o filho único, e que, atormentado, por processos e brigas, estava ontem tão perturbado, já não pense mais nisso agora ? Não vos admireis: ele está ocupado em ver por onde passará o javali que os cães perseguem com tanto ardor há seis horas. Não precisa nada mais.” (L.522-Br.140) “Esse homem tão abatido com a morte de sua mulher e de seu único filho e sujeito ao tormento de tão grande dor, por que não está triste neste momento, e o vemos tão isento destes pensamentos penosos e inquietantes? Não há motivo para estranharmos: acabam de entregar-lhe uma bola e cabe-lhe atirá-la a seu companheiro, e ei-lo a pegá-la de modo a marcar um ponto. Como

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apreciação ética e da ‘realização’(no sentido intelectual) do evento da morte (com a

diluição de sentido existencial que ela exigiria) só começa a ser transposta quando o

sujeito está, por si mesmo, separado por um fio da vida: diz Camus no Mito de Sísifo

retomando a célebre argumentação sobre o divertissement1175em Pascal: “é sempre

surpreendente o fato de que todo mundo viva como se ninguém ‘soubesse.”1176

Um outro aspecto relevante para o estabelecimento da ética camusiana vale

ser salientado a partir desta primeira parte d’O Estrangeiro: a duplicidade simbólica

dos elementos, da natureza, que, por um lado, exprime a experiência da grandeza

humana da vida, sua aspiração pela beleza e sua vivência do prazer e, por outro,

simboliza a engrenagem implacável1177 e a irredutibilidade daquilo tudo que, na vida

humana, escapa ao governo e à inteligência: a docilidade e a crueldade alternam-se e

as imagens naturais indicam a bipolaridade paradoxal da condição humana, nos

extremos da grandeza e da miséria: “Por cima das colinas que separam Marengo do

mar, o céu estava cheio de tonalidades de vermelho. E o vento, que passava por cima

delas, trazia um cheiro de sal. Era um bonito dia que se estava a preparar. Havia

muito tempo que não vinha ao campo e teria tido imenso prazer em passear, se não

fosse por mamãe(...)O céu estava já cheio de sol. Começava a pesar sobre a terra e o

calor aumentava rapidamente(...)Eu olhava os campos ao meu redor. Através das

fileiras de ciprestes que levavam às colunas perto do céu, desta terra ruiva e verde,

destas casas raras e bem desenhadas: eu compreendia a minha mãe. A noite, neste

sítio, devia ser como que um melancólico período de tréguas. Hoje, o sol excessivo

que fazia estremecer a paisagem tornava-a deprimente e inumana.(...)Eu estava

admirado pela rapidez com o que o sol subia no horizonte(...)O suor caía-me cara

abaixo(...)Em volta de mim, era sempre a mesma paisagem luminosa, inundada de

sol. O brilho do céu era insustentável(...)O sol derretia o asfalto. Os pés enterravam-

se, deixando aberta a carne luzidia do asfalto. Sentia-me um pouco perdido entre o

céu azul e branco e a monotonia destas cores, negro pegajoso do asfalto aberto,

negro baço das roupas, negro laqueado do carro. Tudo isto, o sol, o cheiro da

borracha e de óleo do automóvel, o do verniz e o do incenso, o cansaço de uma noite

quereis que pense em seus tormentos, se tão grande assunto o preocupa?”Em Montaigne encontramos esta temática, por exemplo, nos Ensaios Que Filosofar é aprender a morrer e Apologia de Raymond Sebond. 1175 PASCAL, B. Pensamentos. (L.10, Br.167); 36-164;101-364;132-170;133-168;136-139. 1176 CAMUS, A. O Mito de Sísifo. p.29. 1177 “Se vamos muito divagar, arriscamo-nos a uma insolação. Mas, se vamos muito depressa, transpiramos e na igreja apanhamos calor e frio. – Tinha razão. Não há saída.”(p.1137)

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de insônia, me perturbava o olhar e as idéias(...)Houve ainda a igreja e os aldeões

nos passeios, os gerânios vermelhos nos jazigos do cemitério, o desmaio de

Perez(dir-se-ia um boneco partido), a terra cor de sangue que atiravam em cima do

caixão de minha mãe, a carne branca das raízes que se lhe juntavam(...)e a minha

alegria quando o ônibus entrou no ninho de luzes de Argel e eu pensei que ia me

deitar e dormir durante doze horas.”1178

Embora divorciados pelas aspirações humanas à vida sem limites, a simbiose

da natureza e da condição humana é exemplar. Indiferentes, injustificáveis e

despóticos tanto em suas belezas quanto em suas misérias – saídos e retornando ao

nada: reunidos na forma da diáspora e do litígio, ambos, na forma de um(o cosmo),

estão condenados a existir sem sentido. É esta miserável injustificação o fundamento

mesmo da grandeza de ambos, são componentes conexos “da espessura e da

estranheza do mundo”1179 – “ No fundo de toda beleza jaz algo de desumano, e essas

colinas do céu, esses desenhos de árvores, eis que no mesmo instante perdem o

sentido ilusório com que os revestimos, agora mais longínquos que um paraíso

perdido. A hostilidade primitiva do mundo, através dos milênios, remonta até

nós...”1180 E lembremos, “os homens também segregam desumanidade.”1181

O que se segue é o encontro de Meursault com esta hostil desumanidade que

pode ser chamada de destino, mas que é, entretanto, nascida do seio da contingência

da vida e da ação livre.

De começo é o automatismo com o qual Meursault retoma seus hábitos

cotidianos de homem livre e “inocente” que segrega ‘desumanidade’. A liberdade

convidativa de um fim-de-semana de sol e praia repõe o funcionário no ritmo da terra:

“Estava um dia ótimo(...)Tinha o céu inteiro nos olhos, e o céu estava azul e

dourado(...)Ficamos muito tempo na bóia, meio adormecidos. Quando o sol se tornou

forte demais, ela mergulhou e eu também.”1182

Mergulho no mar, isto é, na ordem na natural que é da irreflexão, da

indiferença, da absolvição.

1178 Idem.pp, 1131-1137. Grifos nossos. 1179 CAMUS, A. O Mito de Sísifo. p.29. 1180 CAMUS, A. O Mito de Sísifo, p.28-29. 1181 Idem. P, 29. 1182 CAMUS, A. L’Étranger, p.1139.

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A busca de refúgio no que resta da grandeza humana, isto é, na imersão

apaixonada e dormente na fluidez cósmica simbolizada pelo mergulho no mar,

compreende certa ambigüidade na medida em que significa o mimetismo pelo

humano, do ritmo da indiferença cósmica.

Esta assunção irrefletida à ordem dos elementos pode ser considerada paralela

ao tema pascaliano do “divertimento”, que em Pascal simboliza a esquiva por meio da

qual o homem se nega a compreender a condição humana: “ – Divertimento – não

tendo conseguido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se,

para ser felizes, de não pensar nisso tudo.”1183

Por um lado, o divertimento é o vínculo humano com o elã de felicidade e com

a aspiração reiterada à vida digna e bela, por outro, ele demonstra quão tênue, frágil e

patética é a condição humana e a própria insistência vã do homem em viver. Como

em Pascal, em Camus, aquilo através do qual o homem se sente grande é também

aquilo que mostra sua miséria: “ – Miséria - A única coisa que nos consola é o

divertimento e, no entanto, essa é a maior de nossas misérias. Com efeito, é isso que

nos impede principalmente em pensar em nós(...)o divertimento alegra-nos e leva-nos

insensivelmente à morte.”1184

Segundo Camus, o homem é grande quando re-encontra sua dignidade através

da beleza e do prazer - quando realiza sua aspiração “estrangeira” à vida sem limites

no usufruto do átimo de um mergulho - em face de um cosmo todo elaborado para a

morte. Ele é miserável quando sucumbe às sinuosas e sutis engrenagens do

conformismo e da indiferença cósmicas que o privam do significado humano do

eclipse de uma vida singular.

Meursault vive até então na “esquiva”(esquive) - termo de Camus, paralelo

ao “erro” de Pascal ou a “má fé” sartreana - Ele se entrincheira nos elementos e na

engrenagem do cotidiano se esquivando ao pensamento “do verme”1185: “Cultivamos

o hábito de viver antes de adquirir o de pensar. Nesta corrida que todo dia nos

precipita um pouco mais em direção à morte, o corpo mantém uma dianteira

irrecuperável. Enfim o essencial desta contradição é o que vou chamar de esquiva, 1183 PASCAL, B. Pensées. (Br.169-L. ?) 1184 PASCAL, B. Pensées. (Br.171-L. ?) 1185 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. ?

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porque ela é ao mesmo tempo menos e mais que o divertimento(divertissement) no

senso pascaliano.”1186

A praia, Maria, o riso, um filme de Fernandel. Meursault testemunha de

maneira ingênua a crueldade da ordem do tempo que prossegue sem olhar para trás.

Os bondes e os carros transitam. Os transeuntes que se apressam rumo ao cinema e

“aos espetáculos” que “começavam por toda parte.”1187 A noite que cai, e, pouco a

pouco, vai vencendo a energia dos homens e impondo seu silêncio. O homem que

durante o dia reinava, grandioso, sentindo sob o sol “o corpo de Maria latejar

suavemente”1188 é o mesmo que jaz na madrugada entre a “lâmpada de álcool e uns

pedaços de pão.”1189 Grande e miserável, inocente e culpado1190, Meursault está

imerso na evidência da continuidade indiferente dos dias e constata fleumático:

“Pensei que passara mais um domingo, que mamãe já estava enterrada, que ia

regressar ao meu trabalho e que, no fim das contas, nada havia mudado.”1191

Esta constatação não é, entretanto, uma aquisição intelectual ou ética de

Meursault, nem mesmo configura um prenúncio de um pensamento sobre a

contingência ou o sentido da vida - como pudemos notar a partir do itinerário de

Roquentin n’A Náusea de Sartre, que não obstante nebuloso e opaco se mostra dotado

de uma centelha de lucidez.

Meursault até aqui, ao contrário do intelectualmente inquieto Roquentin, não

apenas se limita ao testemunho da indiferença, mas ele é a indiferença1192: a imagem

literário-filosófica desta conivência serena e irreflexiva com a ordem despótica do

tempo que é a da finitude. Talvez possamos tomar a relação de Meursault com o sol

como símbolo desta esquiva existencial através da assimilação do ritmo cósmico: o

sol cálido dos banhos de mar, da alforria do entardecer e do prenúncio do amanhã, de

1186 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.p23. 1187 Idem, p.1141. 1188 Idem. p.1139. 1189 Idem. p.1142. 1190 (à Maria): “ – Morreu ontem. – Tive vontade de dizer-lhe que a culpa não era minha, mas detive-me porque me pareceu já ter dito isso mesmo ao meu patrão...”(Idem. p.1138) 1191 Idem. p.1142. 1192 “Disse que sim, mas no fundo me era indiferente.”(dans le fonde cela m’était égal.)(Idem.1155) “Pensando bem não era infeliz(...)Quando abandonei os estudos, compreendi muito depressa que essas coisas não tinham importância.”(Idem.1155.) “Nesse caso, porque casar comigo?-disse ela. Respondi que isso não tinha importância e que, se ela quisesse, poderíamos casar.”(Idem.p1155)

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fato, trapaceia1193a relação do homem com a natureza que é de oposição originária:

Meursault é a sua vítima exemplar. Meursault, o amante do dia, pensa que o ritmo da

terra conspira em seu favor, que o sol forja sua inocência. Mas o sol lancinante do dia

do enterro é o presságio de que o cosmo, a bem da verdade, joga contra a felicidade

dos homens: é o que o impede de prosseguir1194. O homem não se conforma à

limitação de sua existência: a natureza o engole em sua determinação inescapável de

finitude.

O sol que até então se mostrara redentor na vida de Meursault mascarara seu

poder de calcinar até o dia do enterro. O sol – a tirânica ordem do cosmo - que é da

beleza, mas também da indiferença e da injustiça, mostrará sua face cruel numa tarde

na praia, desumanizando peremptoriamente nosso herói, repondo-o na facticidade que

é a cronologia do homem: “O sol caía quase a pique sobre a areia e o seu brilho no

mar era insustentável.”(...) “Mal se respirava, neste calor de rachar que subia do

chão”(...) “A areia e ferver parecia-me vermelha”(...) “O sol estava agora

esmagador. Estilhaçava-se na praia e ao mar.”(...) “Quando Raymond me deu o

revólver, o sol refletiu-se na arma...Pensei neste instante que disparar ou não

disparar, era tudo o mesmo”(...) “Ficar e partir vinha a dar na mesma”(...) “Era o

mesmo brilho avermelhado”(...) “Pensei que me bastava voltar para trás e tudo

ficaria resolvido. Mas atrás de mim comprimia-se uma imensa praia vibrante de

sol(...)A ardência do sol queimava-me as faces e senti o suor amontoar-se nas

sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que minha mãe foi enterrada ,e, como

então, doía-me a testa(...)Por causa desta queimadura que já não podia suportar

mais, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estúpido, que não iria

desembaraçar do sol simplesmente por dar um passo a frente. Mas dei um passo, um

só para frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a navalha do bolso e a

mostrou ao sol. A luz refletiu-se no aço e era como uma longa lâmina faiscante que

me atingisse a testa. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de

lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a

espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim(...)Foi aí que tudo vacilou.

O mar enviou-me um sopro fervente e espesso(...)Parece-me que o céu se abria em

toda sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se tesou e

1193 Em francês, “tricherie” é um termo utilizado em Le Mythe de Sisyphe,p23.(Folio Essais) 1194 Lembremos a via crucis do enterro sob o sol crepitante e o desmaio de Perez.

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crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da

coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo

principiou.”1195

O sol é o mediador entre Meursault e uma culpabilidade latente que se

escondia por sob o verniz do cotidiano. Durante o inquérito ele alegará o sol como o

motivo do crime1196. Entretanto, se o primeiro disparo dir-se-ia de uma fatalidade

inescapável(vivido como pura contingência do instante do ponto de vista dão

funcionário), o prosseguimento da cena dá conta de que é a liberdade sem

subterfúgios quem cumpre o destino trágico, como que lançando voluntariamente o

criminoso em direção à reparação ritual da abominável transgressão do assassinato: “

Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia

onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo

inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro

breves pancadas à porta da desgraça.(malheur)”1197

Meursault engatilhara a “engrenagem”: detonara a contagem regressiva que

culminará no derramamento de seu sangue em troca do sangue por ele derramado.

Pseudo-triunfo inútil de uma justiça cruel e desumana – e, portanto, injusta -

indiferente como o cosmo.

Alguns aspectos necessitam ser mencionados sobre os acontecimentos que

antecedem a condenação à morte de Meursault.

Primeiramente a indiferença de nosso herói em relação à aniquilação do outro:

um “árabe”, um anônimo, um mero obstáculo entre Meursault e a antiga felicidade de

seus dias. Se Meursault se mostrara impassível diante da morte do próximo, que dizer

da aniquilação do distante. Nem um vestígio de arrependimento. A culpa é como que

sanada de modo antecipado pela certeza da reparação ritual do dano: < o juiz de 1195 Idem. pp.1165-8 1196“Quando o promotor se sentou, houve um momento de silêncio bastante longo. Quanto a mim, estava atordoado pelo calor e pela perplexidade. O presidente tossiu um pouco e, em tom muito baixo, perguntou se eu tinha algo a acrescentar. Levantei-me e, com estava com vontade de falar, disse, aliás, um pouco ao acaso, que não tinha tido intenção de matar o árabe. O presidente respondeu que isto era uma afirmação; que até então não percebera muito bem o meu sistema de defesa e que gostaria, antes de ouvir o meu advogado, que eu especificasse os motivos que inspiraram o meu ato. Disse rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do meu ridículo, que fora por causa do sol. Houve risos na sala.”p.1198. 1197 Idem. p1168.

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instrução>“ quis saber se eu já escolhera meu advogado. Respondo que não e

perguntei se era absolutamente necessário em advogado. – Por quê? – Disse ele.

Repliquei , afirmando que achava o meu caso simples.”1198

Outro aspecto relevante é o desvelo da “teatralidade” da justiça. De fato, o

inquérito e o julgamento possuem uma dimensão puramente ritual, quase inquisitorial,

pois versam quase que de forma onipresente sobre o enterro da mãe de Meursault e

quando muito, sob a curiosa psicologia criminal do acusado; insensível, desprovido de

consciência, banhista e ateu. Nenhuma palavra sobre a vítima, quem era - seu nome -

sua família. A justiça é cega para a dramaticidade dos eventos e a materialidade

ambígua do instante, indiferente em relação a quem morreu ou quem matará, mas, por

outro lado, implacável com a aplicação do código moral, isto é com a imposição da

culpabilidade e da reparação ritual – a pena de morte. Poderíamos, no limite, pensar

que do ponto de vista narrativo o castigo que Meursault recebe não está ligado ao

assassinato que cometeu, mas remete a necessidade da justiça de afirmar a priori o

imperativo moral e às convenções sociais vigentes: é a insensibilidade o suicídio

jurídico-social de Meursault que só um sacrifício, equitativamente insensível poderia

reparar.

A justiça, assim, reverbera a violência que suscitou sua intervenção

multiplicando a injustiça e o sangue.

É esta injustiça interna à Justiça que inocenta o mais culpado dos homens –

mesmo Meursault - visto que mata em nome da lei e do código moral - não para

glorificar o inocente ceifado, mas para estabelecer, através da proliferação do

martírio, a incontestabilidade de sua letra e de sua força.

“Quando a suprema justiça induz somente ao vômito o homem honesto, a que

ela supostamente deveria proteger, parece difícil sustentar que ela é destinada, como

deveria ser sua função, a ajuntar mais paz e ordem na cidade. Manifesta, ao

contrário que ela não é menos revoltante que o crime, e que este novo assassinato,

longe de reparar a ofensa feita ao corpo social, aporta uma nova mácula à

1198 Idem, 1171.

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primeira”1199: É esta postura humanista o arcabouço ético que Camus emprega na

descrição dos dias enclausurados do condenado à morte e do “martírio” diante da

aproximação gradual do instante do cumprimento ‘refletido’, ‘justo’ e ‘preciso’ da lei.

Antes da condenação, o “senhor anticristo”1200 espera na prisão o dia do

julgamento na inocência de quem se doou ao sacrifício. A prisão o ajuda de alguma

forma na eliminação do convívio, do peso dos laços e das mesuras sociais, algo que

sempre pairou como tentação para um homem solitário, de poucas palavras e avesso a

explicações. Meursault se resigna ao silêncio do quarto, às lembranças ainda frescas e

a adivinhar o cheiro doce das tardes de verão à volta de sua cela.

A vida, mesmo reduzida àquela caverna, ainda valia à pena, com a fumaça dos

cigarros queimados, os azulejos e o sono quase ininterrupto.

Com a clausura, a memória se avivara, entremostrando, através das treliças da

sonolência, raios de lucidez: “Mamãe dizia que não se é jamais completamente

infeliz. Mesmo na prisão continuava a concordar com ela, quando o céu se coloria e

um novo dia entrava em minha cela”1201

Este apego apaixonado à vida, renovado a cada raio de sol, não permite que

Meursaut permaneça indiferente após sua condenação à morte, a qual recebe sem

surpresa.

A imagem da condenação à morte em vida - que é a própria condição humana

– em que jamais refletira, agora é seu espelho. Não há mais lugar para o divertimento,

a esquiva, salvo o refúgio do imaginário (a trapaça ou esperança1202) que permanece

projetando um futuro natimorto pela engrenagem da indiferença: “Recusei-me, pela

terceira vez, a receber o capelão. Não tenho nada a lhe dizer, não me apetece falar,

tenho muito tempo para o ver. O que neste momento me interessa é fugir à

engrenagem(mécanique), saber se o inevitável pode ter uma saída.”(...) “Já não sei

quantas vezes me perguntei se havia exemplos de condenados à morte que tivessem

1199 CAMUS, A. Réflexions sur la guilhotine in Réflexions sur la peine capitale.p.144. Este panfleto humanista contra a pena de morte se inicia com a narração do que seria a história de seu pai - quando este presencia a execução de um criminoso em Argel. Este mesmo fato será também narrado n’O Estrangeiro, a seguir. 1200 Idem. p.1176. Como ficara conhecido durante o inquérito. 1201 Idem. p.1205. 1202 CAMUS, A . Le Mythe de Sisyphe. p,23.

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escapado ao mecanismo implacável.”(...) “Censurava-me por não ter prestado

atenção suficiente às histórias de execuções.. Lera como toda a gente reportagens

sobre o assunto. Mas havia com certeza livros especializados, que nunca tivera

curiosidade de consultar. Talvez aí pudesse ter achado narrativas de evasões.

Poderia ter sabido que, pelo menos num caso, a roda se tinha detido e que, nesta

irresistível precipitação, o acaso e a sorte, havia desempenhado um papel. Uma

única vez!(...)creio bem que isto bastaria. Meu coração faria o resto.”1203

Podemos distinguir duas camadas de problemas éticos na narrativa de Camus,

ambas com grande ressonância em sua obra.

Primeiramente, a desumanização da justiça quando se propõe a aplicar à pena

capital: a mediadora encarregada de supostamente humanizar o convívio entre os

homens, ao contrário, mostra-se o mais impassível dos mecanismos1204, uma

engrenagem irrefreável, um moto-contínuo encarregado de inscrever a violência

peremptoriamente no seio das relações humanas. A imagem da justiça como a roda da

tortura é, possivelmente, inspirada n’A Colônia Penal de Kafka e o expediente

narrativo de Camus é semelhante: o leitor compactua com o olhar do condenado, é ele

quem viveu a contingência do crime, é ele quem ama a vida, é ele quem agora, ver se

anunciar o horror do cadafalso. Em A Colônia Penal de Kafka o leitor é convidado

para uma visita à penitenciária: lhe são confiados os mínimos segredos do escrupuloso

e eficiente funcionamento da colônia e, em especial, da máquina encarregada de

inscrever lenta e meticulosamente na carne do condenado a sentença que

fundamentara seu castigo. Subitamente o leitor realiza que é ele também um

condenado que será supliciado. Em O Estrangeiro, a linearidade da vida de Meursault

também não permite adivinhar um destino trágico. A mensagem de Camus faz-se

ouvir pela voz interior de Meursault: “Nunca se sabe o que pode acontecer.”1205

Do ponto de vista da narrativa, a pena capital, além da mecânica desumana e

cruel que engendra, é inócua também “pedagogicamente”, se pensarmos no debate,

infelizmente ainda atual, sobre a eficácia de sua aplicação.

1203 Idem.p.1202 1204 “…o mecanismo mais uma vez esmagava tudo: era-se morto discretamente, talvez com um pouco de vergonha, mas com muita precisão.”(Idem, 1203) 1205 Idem. p. 1202.

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Primeiramente, ela não influencia o criminoso contrariamente ao seu delito, ao

contrário, ela o inspira. Retomando o trecho do assassinato do árabe1206, escrito em

1937 à luz das Reflexões sobre a Guilhotina, vinte anos depois, podemos ressaltar que

Meursault, rompido o equilíbrio do dia, bate não uma, mas quatro vezes à porta da

desgraça, como que suplicando à expiação: “Acontece assim que o criminoso não

deseja tão-somente o crime, mas a desgraça(malheur) que o acompanha, mesmo, e,

sobretudo, se esta desgraça(malheur) é desmedida. Quando este estranho(étrange)

desejo cresce e reina, não apenas a perspectiva de uma condenação à morte, não

impede o criminoso, mas é provável que ela contribua ainda para a vertigem na qual

ele se perde. Mata-se para morrer, de uma certa maneira.”(...) “É provável que o

desejo de matar coincida freqüentemente com o desejo de morrer ou de se

nadificar(anéantir).” 1207

Depois, ainda do ponto de vista do criminoso, a pena de morte não inspira o

“estranho-estrangeiro” ao arrependimento, ao contrário, o liberta de todo peso da

culpa, exonerada pela certeza da expiação. Pode-se dizer que Meursault se sente mais

culpado pela morte da mãe do que pelo extermínio de seu semelhante, visto que

fornece ao último sua vida como reparação.

Além disso, contrariamente ao respeito à lei, a justiça inspira ao criminoso à

revolta, e ao sentimento de absolvição1208 quando aplica a pena capital, pois explicita

através da violência a injustiça despótica tanto dos seus meios quanto de seus fins: a

justiça atesta e ratifica, com toda sua força, que a violência e a desmedida são a ordem

natural do universo e dos homens. Desvinculando o justo da justiça, o código penal

incentiva o imoralismo. Como dissemos acima, enfim, o fim da pena não é a

reparação do dano – como na cultura dos ancestrais índios brasileiros na qual o

condenado era dado como refeição à tribo como que para preencher o vazio que

causara - mas o exemplo: “Ora o condenado é cortado em dois, menos pelo crime

que cometeu, que em virtude de todos os crimes que poderiam ter acontecido e não

aconteceram, que podem acontecer, mas não acontecerão. A incerteza mais vasta 1206 “ Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte, onde as balas se enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da desgraça(malheur).” 1207 Idem, p.159 1208“Sentia-me agora outra vez calmo(...)Como se esta grande cólera me tivesse limpado do mal...”(L’Étranger, 1210-2.)

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autoriza aqui a certeza mais implacável(...)A morte, ela, não comporta nem graus

nem probabilidades. Ela fixa todas as coisas, tanto a culpabilidade quanto o corpo,

numa rigidez definitiva.”1209 Camus ajunta em seguida: “Que Caim não seja morto,

mas que conserve aos olhos dos homens um signo de reprovação...”1210

Ora, do ponto de vista da sociedade, segundo a narrativa d’O Estrangeiro, a

pena de morte também não é eficaz pedagogicamente, pois pode, quando muito,

induzir à náusea o homem honesto1211, como relata Meursault incorporando aqui um

acontecimento significativo na biografia de Camus: “Lembrei-me nestes momentos de

uma história que a minha mãe costumava contar-me a respeito de meu pai. Eu nunca

o conhecera. Tudo o que sabia de preciso a respeito deste homem era talvez o que a

minha mãe me dizia: fora assistir à execução de um assassino. A idéia de ir ponha-o

doente. Mas não deixara de ir, e à volta vomitara durante quase todo o

dia(...)compreendia-o, a reação era natural...”1212

A pena de morte, enfim, neutraliza moralmente à lei - desmoralizada pelos

seus meios e pelos seus fins inconfessáveis.

Não é à toa, que Meursault, em relação à justiça, cultiva apenas uma nesga de

revolta, de náusea, e, sobretudo, de desprezo: “Que importa se, acusado de um crime,

era executado por não ter chorado no enterro de minha mãe?”1213

Assim, podemos divisar n’O Estrangeiro, uma dimensão ética muito bem

delineada no que diz respeito à recusa da pena capital, de modo que podemos

considerá-lo de certa perspectiva, até mesmo uma heurística da inutilidade e do horror

de sua aplicação. Dilatando o conteúdo da representação da pena de morte, podemos

assinalar que a narrativa da condenação de Meursault, manifesta uma postura

humanista de recusa, que é mais abrangente, da violência - em especial da violência

de estado que é legitimada pela lei.

É neste sentido que as insinuações éticas d O Estrangeiro soam transpostas

conceitualmente nas Reflexões sobre a guilhotina, escrita vinte anos depois, a pedido 1209 CAMUS, A. Réflexions sur la guilhotine.pp.160, 1. 1210 Idem.p.197 1211 CAMUS, A. Réflexions sur la guilhotine in Réflexions sur la peine capitale.p.144. 1212 CAMUS, L’Étranger. p.1203. 1213 Idem, p.1211.

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de Koestler. Der algum modo suas intuições poderosas estão presentes nos pleitos de

Camus junto ao governo da França pela revogação da pena de morte dos estudantes

árabes Bem Sadok e Taleb Abderrahmane condenados na guerra de liberação colonial

na Argélia: “Diante do crime, como se define em efeito nossa civilização?A resposta é

simples: nesses trintas anos, os crimes de Estado superam de longe os crimes dos

indivíduos(...)O número de indivíduos mortos diretamente pelo Estado tomou

proporções astronômicas e ultrapassa infinitamente os assassinatos particulares.”1214

Mas, retornando à narrativa d’O Estrangeiro, há outra dimensão filosófica,

que poderíamos caracterizar de ético-antropológica no romance de Camus: a reflexão

sobre a contingência gêmea da noção de absurdo: deste prisma é a significação da

vida a partir da experiência da morte o sujeito filosófico do romance de Camus.

A morte é um dos mais tradicionais topos da filosofia. Entre os filósofos pré-

socráticos, especialmente em Heráclito pode-se compreender que a finitude faz parte

da justa injustiça do cosmo: a mesma ordem que sustenta a tirania do forte sobre o

fraco. Esta naturalização da crueldade do cosmo é um aspecto retomado muitas vezes

pelo conceito de amor fati na filosofia de Nietzsche, como nos referimos no capítulo

anterior. No teatro grego, por outro lado, como por ex. em Agamenon, ou Édipo Rei,

a lei dos Deuses no mais das vezes se confronta com a lei dos homens: através do

oráculo os deuses exigem, por ex., o sacrifício de Ifigênia ou precipitam

ignominiosamente Édipo ao parricídio. Na tradição cristã se mantêm a oposição entre

lei humana e divina, como no caso dos martírios de Jó - ou do próprio Cristo - mas a

injustiça é como que neutralizada mediante a escatologia da salvação que a desvela

justa aos olhos da fé. Em linhas gerais, podemos identificar nos filósofos pré-

socráticos uma naturalização da crueldade através da postulação de uma ordem

cosmológica da injustiça; nos gregos pós-socráticos, uma tendência à contestação da

ordem divina - embora com a clara manutenção do horizonte metafísico, e, nos

cristãos, uma decodificação do sofrimento pelo prisma da fé, em esperança, chave da

compreensão da dor e da finitude da existência.

A narrativa d’O Estrangeiro é eloqüente na rejeição da esperança como

fundamento existencial e ético para compreensão da história ou do sofrimento. Assim

1214 CAMUS, A. Réflexions sur la guillotine. p.194.

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como fará em A Peste, Camus ridiculariza - à beira do ódio – a profilática espiritual

da Igreja que lhe aparece como parasitismo do pensamento “do verme”(le ver)1215:

“Foi neste instante preciso que o capelão entrou na minha cela(...)- Por que recusas

minha visitas? – Respondi que não tinha fé. Quis saber se tinha a certeza e eu

respondi que não valia a pena fazer-me esta pergunta(...)Afastou os olhos e, sempre

sem mudar de posição, perguntou-me se eu não falava assim por excesso desespero.

Explique-me que não me sentia desesperado, Tinha apenas medo, - Deus o ajudará –

afirmou então. - Todos os que conheci no seu caso voltaram-se para Ele. –

Reconheci que estavam no seu direito1216(...) – Não tem então nenhuma esperança e

consegue viver com o pensamento de que vai morrer inteiramente? – Sim – respondi.

Disse que lamentava. Achava que tal atitude seria difícil de suportar.”1217

Na narrativa, o padre se aproveita do pensamento da morte como que para

nutrir a Igreja pela desgraça do homem e pela injustiça do mundo. Ele negocia com

Meursault à absolvição de sua alma como se oferecesse barato um sentido para sua

malograda existência. A revolta de Meursault, que se devota, mais do que à justiça,

sobretudo, contra o mercantilismo de esperanças é eloqüente da recusa da esperança

ou da salvação em Camus: “Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-lhe

para não rezar e que, mesmo que houvesse um inferno, não me importava, pois era

melhor ser queimado no fogo do que desaparecer.”1218

Meursault se rebela não pelo fato de ser morto pela crueldade de uma justiça

injusta, ou pela ausência do paraíso após a morte, mas simplesmente, por deixar de

viver. Embora seja a morte a margem da questão, é um problema de vida que lhe

ocupa. Trata-se de atribuir um sentido – mesmo que o da incompreensibilidade – a

esta vida como ela lhe aparece no calor desta expectativa do cadafalso: sofrida,

absurda, mas emanando tonalidades de luz e aromas da terra, desejos, lembranças, e a

nostalgia destes vinte anos que estava prestes a não viver.

Qual poderia ser o sentido da vida deste homem que vivera, vira morrer,

matara, e iria morrer? 1215 Idem.p.19. O pensamento do verme é o pensamento da morte segundo Le Mythe de Sisyphe. 1216 “Quando acabou, dirigiu-me a palavra tratando-me por ‘meu amigo’: se me falava desta forma, não era por eu ser um condenado à morte; na sua opinião, todos nós éramos condenados à morte.”(p.1210) 1217 Idem.1210. 1218 Idem.p.1210.

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“Agarrava-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele <<do padre>>todo

o fundo de meu coração com impulsos de alegria e de cólera. (...)Tinha tido razão.

Vivera de uma dada maneira e poderia ter vivido de outra maneira. E depois? Era

como se durante este tempo todo tivesse estado à espera deste minuto...e dessa

madrugada em que seria justificado.(justifié)”1219

Na narrativa d’O Estrangeiro a pena de morte inocenta e legitima a vida sem

porquê do condenado. Não apenas, pois, do ponto de vista político-jurídico, exibe a

flagrante injustiça dos métodos judiciários, mas porque, do ponto de vista filosófico-

antropológico, é a ordem cósmica do tempo e da finitude que se expressa de maneira

peremptória através da meticulosa crueldade da lei. A lei imita a crueldade da

natureza fazendo refluir o absurdo do cosmo para o seio da experiência humana. A

violência pragmática da justiça reforça o absurdo que exala da vida, que, em qualquer

das suas formas, aguarda, mais cedo ou mais tarde, seu fim: “ Nada, nada tinha

importância e eu sabia bem por quê. Também ele sabia por quê. Do fundo do meu

futuro , durante toda esta vida absurda que eu levava, subira até mim, através dos

anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava na sua

passagem tudo o que me propunham nos anos, não mais reais, em que eu

vivia(...)Que me importa a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o

seu Deus, as vidas que se escolhem e os destinos que se elegem?1220(...) Também os

outros seriam um dia condenados.”1221

Talvez não seja excessivo abrirmos um parêntesis para notar que, nesta

narrativa de Camus, a exemplo do teatro grego ou do pessimismo clássico de Pascal,

não há diferença do ponto de vista existencial, entre fatalidade e contingência.

Poderíamos dizer que o contingente é a face humana do destino em realização ou que

a fatalidade é um modo humano de apreensão da contingência. N’O Estrangeiro, não

há contrariedade entre a ordem da natureza e a justiça, e o que faz eticamente

inaceitável a “justiça de estado”, do ponto de vista da condenação à morte, é

1219 Idem, 1210. Talvez não seja excessivo notar que justifié, significa a um só tempo, justificar, legitimar e inocentar.(Le Petit Robert)

1220 “…já que um só destino devia eleger-me a mim próprio e comigo milhares de privilegiados que, como ele, se diziam meus irmãos?”(p.1211) 1221 Idem, 1211.

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justamente esta reafirmação da crueldade do cosmo, pois promove um triunfo

legitimado do niilismo.

Do ponto de vista simbólico, por ex., o sol do enterro da mãe de Meursault, o

sol que reflete na navalha do árabe e em seu revólver é o mesmo temido sol do

alvorecer no cadafalso. O sol anuncia a engrenagem do tempo e a justa injustiça da

forças naturais que refluem, “desde as florestas primitivas”1222 até os atos e penas

humanas. A ditadura do sol está como que vivificada pela lei dos carrascos.

Para nos ajudar a harmonizar às duas trincheiras metodológicas que cavamos

para compreender melhor o difícil quadro ético que pretende emitir O Estrangeiro

com a utilização de imagens, quem sabe não seja abusivo nos remetermos às

Reflexões sobre a guilhotina aonde Camus une, entorno da ética, preocupações

antropológicas e políticas: “A lei, por definição, não pode obedecer às mesmas regras

que a natureza. Se a morte está na natureza, a lei não é feita para imitar ou

reproduzir esta natureza. Ela é feita para a corrigir.”1223

É esta reposição, como dissemos acima, pela engrenagem da lei, da ordem

cósmica da finitude que parece ignominiosa à Camus e que é simbolizada pela via

crucis de Meursault. Fazendo triunfar a inutilidade e o absurdo Camus, herdeiro dos

moralistas franceses, instala, de certo, no leitor d’O Estrangeiro a náusea, o mal-estar,

a estranheza, tanto em relação à justiça quanto à ordem cósmica – ordens da

indiferença.

Estranheza, mas também cumplicidade: é no mais distante que encontramos os

traços ocultos em nós, “nossas paixões e nossos tormentos”. O homem comum(o

leitor) e o assassino são solidários no apego à patética soma de hábitos, memórias e

expectativas a que chamam de vida - no sofrimento pelas perdas e faltas acumuladas –

na nostalgia do destino fracassado e das outras vidas possíveis não vividas. O homem

honesto e o homicida estão vinculados, afinal, pela condição que é humana de

condenados em vida.

1222 CAMUS, A. Réflexions sur la guillotine.p 165 1223 Idem, p.165.

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Não obstante o incômodo não-sentido, a inutilidade triunfante, e a recusa

absoluta da esperança, não é o desespero o legado desta fábula camusiana da condição

humana prisioneira da indiferença.

Nos trechos finais d’O Estrangeiro é que se alça um dos mais dissonantes

acordes éticos que pretende exprimir Camus: A persistência do amor à vida e o

imperativo de perseverar mesmo em face à desrazão e à indiferença - “Julgo que

dormi, pois acordei com estrelas sobre o rosto. Subiam até mim ruídos campesinos.

Aromas de noite, de terra e de sol refrescaram-me as têmporas. A paz maravilhosa

deste verão adormecido entrava em mim como uma maré. Pela primeira vez, havia

muito tempo, pensei na minha ‘mãe’. Julguei ter compreendido por que é que, no fim

da vida, arranjara um ‘noivo’, por que é que fingira recomeçar. Também lá, em redor

deste asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma treva melancólica. Tão

perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido liberada e pronta a tudo reviver.

Ninguém, ninguém tinha direito de chorar por ela. Também eu me sinto pronto a tudo

reviver.”1224 Esta persistência no amor à vida, de tudo reviver - e, no limite, a

felicidade diante do absurdo é que tentaremos, ainda que rapidamente, esmiuçar

entrelaçando os itinerários de Meursault e Sísifo.

Em O Mito de Sísifo Camus narra as “paixões” e os “tormentos” deste “herói

do absurdo”1225: “Os deuses condenaram Sísifo a empurrar incessantemente uma

rocha até o alto da montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso.

Pensaram que não há castigo maior que o trabalho inútil e sem esperança”1226.

À condenação, a desesperança é a situação que partilham. Meursault e Sísifo

nutrem também três características exemplares da conduta absurda: o desprezo por

uma significação oculta para a vida, o ódio à morte, e a paixão insaciável de viver1227.

Esta alquimia de elementos, quando iluminada pela lucidez (a descida, em

Sísifo e a ira, em Meursault), transforma o sofrimento e o desespero pela ausência de

sentido em desafio ao impasse da existência – fardo comum do homem. Como

dissemos anteriormente, Meursault, lúcido, à beira do cadafalso, é o testemunho da

1224 CAMUS, A. L’Étranger.p.1211-2. 1225 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.p.164. 1226 Idem.163. 1227 “Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo o ser se empenha e não terminar coisa alguma. É o preço pelas paixões da Terra.” (CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.p.164.)

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única verdade do homem revoltado, a saber, o desafio à própria condição. Aceitando,

sem a mediação dos deuses, o sofrimento e a finitude como um fardo humano,

Meursault e Sísifo encontram a felicidade nos áridos cumes nadificados pela revolta

nos quais só sobreviveria o desespero. Assim como Édipo1228 e Sísifo, Meursault

saboreia, à beira do cadafalso, a experiência que, afinal de contas, tudo vale à pena,

pois sente que na aventura mesma de viver reside a grandeza inexplicável da vida:

“Como se esta grande cólera me tivesse limpado do mal, esvaziado de esperança,

diante desta noite carregada de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna

indiferença do mundo. Por o sentir tão parecido comigo, tão fraternal, senti que fora

feliz e que ainda o era”1229; “Também Sísifo acha que está tudo bem. Este universo

sem dono adiante não lhe parece nem estéril, nem fútil. Cada um dos grãos desta

pedra, cada fragmento mineral desta montanha repleta de noite, formam por si sós

um mundo. A luta para chegar aos cumes basta para preencher um coração de

homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.”1230

Nenhum traço de arrependimento no horizonte liberto de culpa de Meursault,

preenchido pela certeza da condenação universal, o que se evidencia pelo discurso

final, aclamado às portas da aurora de sua morte: “Para que tudo ficasse consumado,

para que eu me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no

dia da minha execução e que os expectadores me recebessem com gritos de ódio.”1231

A felicidade de Meursault é o índice de uma audaciosa positividade ética

reafirmada em face ao mais sinistro aspecto que a vida pode comportar1232: mesmo

em face da miserável engrenagem da morte e da indiferença, o homem é capaz de

reafirmar sua dignidade e grandeza. “na extremidade do último pensamento do

condenado à morte, aquele cadarço de sapato que, apesar de tudo, percebe a poucos

metros, bem na beirada de sua queda vertiginosa.”1233 Encarnada em Meursault, “a

grandeza do homem é tão visível que se tira mesmo de sua miséria.”1234 Como diz

Camus em Entre sim e não, “sentimos nosso abandono(détresse) e nos amamos mais.

1228 “Apesar de tantas provas, minha idade avançada e a grandeza da minha alma me levam a julgar que tudo está bem.”<<Édipo, de Sófocles>> in CAMUS, A. Le Mythe..164. 1229 CAMUS.A. L’Étranger.p.1122. 1230 Idem. p.168. 1231 CAMUS, A. L’Étranger. p, 1211. 1232 Podemos pensar, cotejando O Estrangeiro com o tema d’O Mito de Sísifo, que, filosoficamente, é a recusa do suicídio que se dá aqui: mesmo quando a vida perde seu verniz de sentido. 1233 MS, 138. 1234 PASCAL, B. Pensées. (Br. 409)

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Sim, talvez seja esta a felicidade, o sentimento condolente(apitoyé)de nossa

desgraça(malheur).”1235

A ousadia do estrangeiro face à engrenagem gerou controvérsias: não é a toa

que o texto foi compreendido por alguns, à luz do desafio final de Meursault -

insolentemente afrontando morte, justiça, sociedade e fazendo-os chafurdar consigo

no mesmo leito cosmológico da injustiça e da indiferença - como uma anistia

filosófica de criminosos de toda espécie. De fato, muitas vezes, e, segundo Jean-Bloch

Michel - mesmo recentemente - assassinos invocaram O Estrangeiro como

“circunstância atenuante”: como em 1950, no caso do assassinato do jovem Alain

Guyader por Claude Panconi.

Entretanto a narrativa de Camus está longe de fazer um elogio ao crime ou do

imoralismo.

Em primeiro lugar, o primeiro desafio que se impõe ao leitor é considerar o

amor e a vontade de viver acima de qualquer valor “moral”: nem mesmo no mais

cruel dos assassinos o amor à vida pode ser repreendido. Parodiando Descartes, “esta

é coisa do mundo melhor partilhada”.

Depois - ao contrário de um elogio do crime - à maneira moraliste, Camus

elabora, a bem da verdade, uma tragédia sobre a transgressão1236, e lança o leitor

numa tentação à indiferença, similar àquela protagonizada por Meursault.

O mal-estar causado pelo desfecho lógico da vida absurda de Meursault

advém da aceitação, até certo ponto, imposta ao leitor, desta ordem ignominiosa da

morte e da indiferença que é a do absurdo, da finitude; nós somos os expectadores

que, ao compactuarem com o assassinato de Meursault achando-o aceitável, nos

tornamos semelhantes a ele, em seu conformismo exterminador: em sua indiferença

(generalizada) ao outro.

Cabe ao leitor negar-se a compactuar com a “simples e precisa” engrenagem

do absurdo e alçar-se eticamente à postura de solidário em relação à miséria (sempre

pincelada de aspirações à grandeza) que é a característica comum da condição dos

prisioneiros da finitude.

Cabe ao leitor alçar-se à solidariedade para com o distante e não reiniciar o

moto-contínuo da morte e da indiferença iniciado por Meursault no seu

desconhecimento patológico da alteridade típico de sua época armamentista. Cabe ao 1235 CAMUS, A. L´Envers et l´Endroit. Entre oui et non. OC, I. p.48 1236 Aquele que mata, morrerá...

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leitor, como agente ético, associar voluntariamente o sim à vida (apesar do absurdo)

com a recusa de matar (nem tudo é permitido, mesmo ao condenado) 1237.

O leitor ético deve comiserar-se com o homem, feito de carne e luz - da

mesma matéria de nossos sonhos, culpas e frustrações (heróico em sua persistência

apaixonada de viver) e indignar-se contra a “engrenagem”: seja a do cosmo - que

mata - seja a da lei, que, imitando a crueldade do tempo aniquila em virtude de uma

suposta ordem: “Se a morte está na natureza, a lei não é feita para imitar ou

reproduzir esta natureza. Ela é feita para a corrigir.” 1238

Esta engrenagem avassaladora é, afinal, em Camus, símbolo da história tal

como o homem (insignificante em relação aos acontecimentos) a percebe: recoberta

por forças aparentemente irresistíveis.

Talvez não seja excessivo notar que recusar-se à mecânica da engrenagem

histórica - à vingança de sangue, e às ideologias que coroam a eficácia da barbárie - é,

em meio às guerras e lutas revolucionárias da primeira metade do século anterior, uma

postura ética de absoluto rigorismo. Neste ponto, a oposição de Camus à postura

política de Sartre, nas décadas de 40 e 50, se mostrará evidente: “Dos idílios

humanitaristas do século XVIII aos cadafalsos sanguinolentos, a rota é reta e os

carrascos de hoje, cada um o sabe, são humanistas.” 1239

A resposta de Camus ao pai do assassino confesso Claude Panconi - que pede

sua intervenção no momento da condenação à morte do filho - é índice desta chave

humanista de leitura: “Sim, eu nego, e sem ressalvas que O Estrangeiro possa incitar

ao crime: este livro, como todos os meus outros livros, sem exceção, ilustra a sua

maneira, meu horror do castigo absoluto e a interrogação angustiada diante de toda

culpabilidade1240. Minha profissão, meu senhor, e digo pela primeira vez com

tristeza, não consiste em acusar os homens - Consiste em os compreender, a dar uma

voz à sua infelicidade comum.”1241

Dar voz a infelicidade comum da condição humana, revitalizar o valor da vida

humana singular em meio ao niilismo cego, ao silêncio das ideologias, à diluição dos

1237 Tema que será contemplado pelo O Homem Revoltado. 1238 CAMUS, A. Réflexions sur la guilhotine.p,165. 1239 Idem, 195. 1240 Interrogação angustiada sobre a culpabilidade que paira na obra futura de Camus, como em Tarrou de A Peste, “que recusava aos homens o direito de condenar alguém, sabendo no entanto que não podemos deixar de condenar, e que mesmo as vítimas se encontram às vezes como carrascos, vivera no dilaceramento e na contradição, sem conhecer nunca a esperança.”(CAMUS,A. La Peste. p.1459) 1241 CAMUS, A. Réflexions sur la guillotine.p.165.

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indivíduos pelas burocracias de estado e à violenta insensibilização provocada pelo

horror da história na primeira metade do século XX, dominada pelas pseudo-

fatalidades do progresso, da guerra, da “justiça” e da realpolitik: este é o objetivo

filosófico que paira, afinal, no conjunto da primeira fase da obra literário-filosófica de

Camus que compreende além d’O Estrangeiro e do Mito de Sísifo, Calígula e O

Equívoco. As palavras de Tarrou atestam que A Peste, aliás, assim como O Homem

Revoltado, prolongarão o engajamento camusiano contra o leitmotiv da morte e da

indiferença: “Acreditei que a sociedade na qual eu vivia era baseada na condenação

à morte e que a combatendo, eu combateria o assassinato...”1242 Da nossa parte

ajuntemos: prolongar esta missão humanista nos parece a única odisséia filosófica

possível no horizonte dilacerado que a aurora de fogo do terceiro milênio anuncia.

*

1242 CAMUS, A. La Peste. Théâtre Récits, Nouvelles.p.1423. (Tarrou)

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D)Engajamento em face da fragilidade: metafísica e história

“Os números lhe flutuavam na memória: umas trinta grandes pestes conhecidas tinham feito quase cem milhões de mortos. Na guerra, já nem sabemos que é um morto. E se uma pessoa morta só nos impressiona quando a vemos, cem milhões de cadáveres semeados na história representam na imaginação uma vaga fumaça.” (Camus, A. A Peste.) “Perguntávamos onde estava a guerra – o que, nela, era ignóbil. E percebemos que sabemos onde ela está, que a temos em si – que ela é, para a maioria, este incômodo, esta obrigação de escolher, que lhes faz partir com remorso de não ter sido bastante corajoso para se abster, ou que os faz abster com o arrependimento de não partilhar a morte dos outros. Ela está aí, verdadeiramente aí, e nós a procuramos no céu azul e na indiferença do mundo. Ela está nesta solidão terrível do combatente e do não-combatente, neste desespero humilhado que é comum à todos e nesta abjeção crescente que se sente subir às faces à medida que os dias escorrem. O reino das bestas começou.”(CAMUS. A. Cahier III) “Encontrar uma desmedida na medida.”1243(CAMUS, A. Cahier II) “Quem mantém o meio-termo que apareça e prove.”1244(PASCAL, B. Pensamentos .Papéis Classificados. Vanidade II)

Quando a palavra “peste” é pronunciada pela primeira vez, encontramos o

doutor Rieux junto à janela, “absorto”, sofrendo do mesmo espanto paralisante que os

demais habitantes de Orã – incrédulos e amedrontados - confrontados repentinamente

a uma realidade tão cruel quanto inescapável em suas determinações avassaladoras. A

terrível palavra, que abriga em si milênios de vidas ceifadas, imanta no médico, agora

sozindo em seu gabinete, uma sensação de abandono e de fragilidade que ressoa ao

longo da noite dos tempos: “As calamidades são com efeito ordinárias, mas

1243 “Trouver une démesure dans la mesure.”(Février, 1938.) 1244 (Br.82-L.44)“Qui tient le juste milieu qu´il paraisse et qu´il prouve.”

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dificilmente acreditamos nelas quando nos chegam. Sempre houve no mundo pestes e

guerras; entretanto, pestes e guerras nos acham desprevenidos.”1245

Cunhado, como os demais, nos moldes tradicionais de uma sociedade erigida e

fundamentada numa razão prepotente, Rieux hesita confrontar-se com um

acontecimento tão paradigmático da absurdidade quanto as guerras, revelador, tanto

quanto elas, do crepúsculo das ilusões de altivez e prevalência antropocêntricas: “O

doutor estava desprevenido, como os outros; assim compreendemos suas hesitações.

Inquietava-se e confiava. Quando estoura uma guerra, os homens dizem: - ´Isso dura

pouco, é idiota´. Sem dúvida a guerra é idiota, mas não deixa de prolongar-se. A

tolice continua; não a percebemos porque sempre estamos a pensar em nós mesmos.

Noutras palavras, eram humanistas; não acreditavam nos flagelos. O flagelo escapa

às previsões do homem – e dizemos que o flagelo é irreal, um sonho mal que vai

desaparecer. Não desaparece -e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que

desaparecem, os humanistas em primeiro lugar, pois não tomam precauções.”1246

Rieux se pergunta como os moradores de Orã, absortos e adestrados em seus

cotidianos pré-moldados, colonizados na arrogância do humanismo, conviverão com a

nova realidade instaurada pouco a pouco pela peste, que, inexoravelmente – calcula –

em breve cristalizará seus mais belos projetos: “Os habitantes da cidade não tinham

culpa de ser assim; esqueciam a modéstia, julgavam que tudo ainda era possível para

eles, o que supõe que os flagelos são impossíveis. Continuavam a fazer negócios,

projetavam passeios e tinham opiniões. Como iriam ocupar-se da peste, que suprime

o futuro, as mudanças, as discussões?”1247

O médico sintetiza suas inquietações quanto ao despreparo de seus

concidadãos para o flagelo, visto que estes se mantém culturalmente reféns de um

narcisismo antropocêntrico natimorto: “Julgavam-se livres – e ninguém nunca será

livre enquanto houverem flagelos.”1248

Preocupa o doutor Rieux a falta de “imaginação para a morte dos outros”1249

de seus concidadãos, a incapacidade de perceber o quanto todos, sem excessão, estão

1245 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1247. Sempre que tecnicamente possível, conservamos a tradução brasileira de Graciliano Ramos(Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1973) 1246 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1247. 1247 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1247-8. 1248 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1248. 1249 Vale notar o retorno à preocupação de Nem Vítimas, Nem carrascos: “Este argumento foi apresentado com força[acusação de utopia contra a recusa da legitimação da violência por Camus]. Mas creio que se o apresentam com tanta força é porque as pessoas que o apresentam não tem imaginação para a morte dos outros. É um defeito de nosso século. Assim como se ama por telefone, e

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implicados neste caso - avaliando de maneira realista que a ordem da aniquilação está

em vigor – inaptidão para a compaixão que mede pela sua própria dificuldade de

conceber e “projetar” o sofrimento humano em larga escala: “...o perigo permanecia

irreal para ele. Mas, quando se é médico, faz-se uma idéia da dor e tem-se um pouco

mais de imaginação (...) Procurava juntar no espírito o que sabia daquela doença. Os

números lhe flutuavam na memória: umas trinta grandes pestes conhecidas tinham

feito quase cem milhões de mortos. Na guerra, já nem sabemos que é um morto. E se

uma pessoa morta só nos impressiona quando a vemos, cem milhões de cadáveres

semeados na história representam na imaginação uma vaga fumaça.”1250

Rieux se esforça para traduzir em termos de uma significação verdadeiramente

humana os dados provenientes dos relatos históricos caricaturados pelo tempo e pela

frieza das estatísticas, ambos desencarnados: “O doutor se lembravada da peste de

Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas num dia.Cinco

vezes o público de um grande cinema. Eis o que seria necessário experimentar.

Reunir as pessoas à saída de cinco cinemas, levá-las a uma praça e matá-

las.Teríamos alguma clareza, pelo menos daríamos rostos conhecidos a esse

agrupamento anônimo.”1251

Diz Rieux, ingenuamente, em meio aos conturbados e densamente nebulosos

anos quarenta1252: “É impossível realizar isso, naturalmente, e ademais, quem

conhece dez mil rostos?”1253

Atiçando a própria imaginação, “o doutor se impacientava”1254 - Ora, como

diria Pascal, ressaltando na faculdade imaginativa seu caráter não apenas pedagógico

mas verdadeiramente construtor da conceção humana do mundo, “o maior filósofo do

mundo, sobre uma táboa(planche), por mais larga que seja, se houver embaixo um

precipício, embora a razão o convença de sua segurança, a imaginação prevalecerá.

que se trabalha não mais sobre a matéria, mas sobre a máquina, se mata e se morre hoje por procuração. A‘limpeza’(propreté) é conquistada, mas a consciência perdida (CAMUS, A . Camus à Combat, p.614. Combat 20 novembre 1946.) (E, 334.)(OC, p.439.) 1250 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1248. 1251 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1248. 12521252 “Os curiosos acontecimentos que são objetos desta crônica se produziram em 194.,em Oran.” (CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1219.) 1253 Talvez não seja excessivo assinalar que metodologia similar se asseverará não apenas possível mas legítima na conjuntura de dezenas de regimes, totalitários ou messiânicos, através da história do século XX e do recente século XXI. CAMUS, A. La Peste.Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1248. 1254 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1248.

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Muitos não poderiam pensar sequer nisso sem empalidecer e suar...”1255 - “Atenas

empestada pelos pássaros; cidades chinesas cheias de moribundos silenciosos; os

corpos dos galés de Marselha empilhados em buracos, liquefazendo-se; a muralha

erguida em Provença para conter o vento furioso da peste; Jafa e seus mendigos

horrorosos; camas úmidas e podres no chão sem ladrilho do hospital de

Constantinopla; doentes suspensos em ganchos; o carnaval dos médicos mascarados,

na peste negra; ajuntamento de vivos no cimitério de Milão; carretas de mortos a

apavorar Londres; e noites e dias, sempre, em toda parte, cheios dos gritos

intermináveis dos homens.”1256 “Estamos presos por um fio”1257: Rieux procura em

vão se habituar - pela disciplina de um imaginário lúcido, pelo exercício de uma

memória ética ancestral - com o terror que terá que enfrentar, mas é vencido pelo

acalanto emanado de uma razão de altivez insistente e pela vitalidade iluminada do

mediterrâneo1258: “Mas esta vertigem não prevalecia diante da razão(...)Não. Tudo

isso não é ainda bastante forte para matar a paz daquele dia(...) e uma tranquilidade

tão pacífica e tão indiferente negava quase sem esforço as velhas imagens do

flagelo.”1259

O que se segue é o relato da coexistência dos cidadãos de Oran com a

percepção e a expectativa, doravante agudas, da finitude; com o confinamento e o

exílio, com a privação e o sofrimento; com o definhamento progressivo da dignidade

e da esperança; noutras palavras, com a experimentação efetiva do mal.

E é a absoluta banalidade do mal que escorre do relato dos acontecimentos.

A engrenagem da morte seria vivida com bastante naturalidade se não fosse

pelos contratempos do exílio e do confinamento: “Na miséria comum, preservava-os

o egoísmo do amor, e só se lembravam da peste porque ela ameaçava eternizar a

separação.”1260

1255 PASCAL, B. Pensées. (Br.82) Neste sentido a dimensão ética da imagem de Camus é herdeira direta do legado dos moralistes do século XVII, para quem a imagem, no caso de Pascal pulverizada no caleidoscópio dos Pensamentos, é constitutiva do procedimento da anatomia antropológica e moral. Como em Rembrandt, em Pascal (e em Camus) o pensamento se exprime na imagem e o esforço central de A Peste é o de unificar, pela imagem, o problema da condenação da condição humana às engrenagens, históricas e metafísicas, da ordem penal. 1256 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1249. 1257 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1249. 1258 “Só o mar, além do tabuleiro baço das casas, afirmava a inquietação do mundo.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1249.) 1259 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1249. 1260 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1249.

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Caso paradigmático é o de Rambert, jornalista forasteiro surpeendido pela

peste quando fazia uma reportagem sobre as condições de vida dos árabes1261 na

cidade, agora sitiada. Transtornado pelas dores da separação e obsecado pelo re-

encontro com a amada, Rambert, de começo, procura contornar a profilaxia

empregada pelas autoridades, incluindo aí Rieux, visto que o bloqueio das fronteiras

decretado para minimizar os males causados pelo avanço da peste, atinge em cheio

seus projetos de felicidade: “Afinal – dissera Rambert – sou um estranho aqui(...) - É

que ela e eu nos conhecemos há pouco tempo, e nos entendemos bem. Rieux não

falava. - Estou amolando o senhor – prosseguiu Rambert. – Queria apenas saber se

podia dar atestado de que não tenho essa maldita doença. - Entendo perfeitamente –

disse por fim Rieux – mas o senhor não raciocina bem. Não lhe posso dar o atestado,

porque ignoro se está doente ou não. Se não estiver, pode adoecer enquanto sai do

meu consultório e entra na prefeitura. E depois...–Depois? - disse Rambert. Se lhe

desse o atestado, isto não lhe serviria. – Por quê? –Porque na cidade há milhares de

pessoas em situação igual que não conseguiram sair. – E se não estão doentes da

peste? –Isso não é razão suficiente. Esta história é estúpida, eu sei bem , mas ela nos

concerne a todos.”1262O apaixonado Rambert se insurge contra o aparente calculismo

da metodologia do doutor Rieux; o médico, embora compreenda sem esforço a

peculiaridade da situação de Rambert, permanece infexível em suas convicções,

“desejava sinceramente que Rambert visse denovo a mulher, e que todos aqueles que

se amavam pudessem encontrar-se, mas havia decretos e leis, e havia a peste, seu

papel era fazer o que fosse necessáro.”1263: “Não, diz Rambert com amargura. – O

senhor não compreende. Essa linguagem é a da razão, da abstração. O doutor

levanta os olhos sobre a República e diz que não sabia se falava a linguagem da

razão, mas que falava a linguagem da evidência o que não é necessariamente a

mesma coisa.”1264 Notemos, no entanto, que o rigorismo de Rieux não apenas admite,

como exige, uma constante interrogação sobre esta forma de atuação histórica que,

afinal de contas, lhe parece minimamente eficaz e plausível em face dos

acontecimentos: “Depois de um momento o doutor sacode a cabeça. O jornalista

tinha razão em sua impaciência de felicidade. Tinha razão acusando-o?«O senhor

1261 O próprio Camus faz uma reportagem em 1939 sobre o tema, intitulado Misère en Kabylie, mais tarde reprisado nas Croniques algeriènnes(1939-1958). 1262 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1288-9. 1263 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1289. 1264 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1289-90.

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vive na abstração.» Seriam abstrações os dias passados no hospital, onde a peste se

fartava elavando para quinhentos o número de vítimas por semana. Bem havia na

desgraça uma parte de abstração e de irrealidade. Mas quando a abstração se põe a

matar, é bem necessário se ocupar dela.”1265

Mas enquanto Rieux, entre outros, se confronta contra o absurdo da peste com

as parcas armas que dispõe para a luta, isto é - com os recursos profiláticos do

isolamento, do trato e do acompanhamento dos pacientes1266 - para a grande maioria

dos habitantes de Oran, a realidade esmagadora do flagelo permanecia embotada num

cotidiano esvaziado de sentido e preenchido por “precupações pessoais”1267 e

completamente alheias à ordem vigente da aniquilação - tais como a de Rambert – e,

principalmente, pelo simples ato de matar o tempo através de todos os tipos de

divertimento: “...Tive a impressão que os automóveis davam voltas(...)Orã tomou,

assim, aspecto singular. O número de pedestres aumentou, e pessoas reduzidas à

inação, pelo fechamento de casas comerciais e escritórios, enchiam ruas e cafés. Por

enquanto não haviam perdido os empregos, estavam de licença. Pelas três da tarde,

sob um belo céu, Orã dava a idéia falsa de uma cidade em festa, onde tivessem

abolido o trânsito e fechado lojas pra facilitar qualquer manifestação pública,

permitindo aos habitantes invadir as ruas e participar dos festejos. Com essas férias

generalizadas, os cinemas passaram a exibir o mesmo filme continuamente, sem que

a receita diminuísse. Por outro lado onde o comércio de vinhos e álcool tinha o

primeiro lugar ,os cafés puderam igualmente atender à freguesia . Para dizer a

verdade, bebia-se muito(...)Todas as noites , pelas duas da madrugada, grande

número de bêbados expulsos dos cafés povoavam as ruas, divulgando propósitos

otimistas.”1268 Só quando a peste atingia um parente, ou um vizinho, o povo de Oran

se acabrunhava, vendo sua imagem na de seu semelhante. Antes disso, os oranenses

procuravam ao máximo burlar o tédio e o medo, talvez sabiamente, como mostra a

análise do divertissement por Pascal, esquecendo - pelo movimento –da própria 1265 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1290-1. 1266 “Numa saleta, perto do consultório, improvisara uma antecâmara. No chão cavado formava-se um lago de desinfetante e no centro havia uma ilhota de tijolos. O doente era colocado em cima da ilha, despiam-no, a roupa caía na água. Lavado, enxuto, metido na áspera camisa do hospital o doente era levado a outra sala. Fora preciso utilzar os pátios de recreio de uma escola, onde havia agora quinhentos leitos, todos eles ocupados. Depois do trabalho de manhã, que ele mesmo dirigia, vacinas em doentes, bulbões incisados, Rieux examinava as estatísticas, regressava para as consultas da tarde. Ao anoitecer, finalmente, fazia visitas e recolhia-se tarde.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1291.) 1267 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1283. 1268 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. pp.1284.

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condição miserável: “...os homens que que percebem naturalmente a sua condição

evitam por todos os modos o repouso e tudo fazem para procurar o

tumulto”1269(...)Nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total, sem

paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividade. Sente então seu nada, seu

abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio.”1270

A tranquilidade enganadora das tardes da cidade sitiada só é quebrada pelos

gritos esparsos e pelas sirenes exigidas pelo trabalho exasperante e, por que não,

violento, de Rieux - diagnosticar e exigir o isolamento dos doentes, se necessário por

meio de aparatos policiais, conforme a metodologia sanitária conveniada como

apropriada para a convivência com o flagelo: “´Tenha pena doutor´, implorava a Sra.

Loret, mãe da arrumadeira que trabalhava no hotel de Tarrou. Que significava isso?

Pena ele tinha, é claro. Mas isso não ajudava ninguém. E logo soava a campainha da

ambulância.”1271

Enquanto os dias e os números de vítimas se multiplicam, o doutor Rieux,

interroga-se continuamente sobre sua dura função no ritual macabro e preciso exigido

pelo flagelo. Perscrutando seu trabalho cotidiano, ele nota em si mesmo um

progressivo distanciamento nascido da exigência mesma de cumprir

responsavelmente sua tarefa: “Na sensação deste coração fechando-se lentamente em

si mesmo, o doutor encontrava o único alívio nesses dias esmagadores. Ele sabia que

sua tarefa ia ser facilitada. É por isso que se alegrava(...)Para lutar contra a

abstração, é preciso assemelhar-se um pouco com ela.”1272

Se alguns habitantes de Orã fogem à peste pelo esquecimento - no

divertimento – outros, pela pura indiferença - como no caso do “homem dos gatos”,

que permanece entretido com suas pequenas maldades – outros ainda, dela se nutrem.

Cottard, por exemplo, sobrevivente de uma tentativa malograda de suicídio,

subitamente retoma o bom humor diante da calamidade - e, com o avanço da doença,

até mesmo prospera às custas do mercado negro surgido com o fechamento da cidade;

1269 PASCAL, B. Pensées. Br.139 –L.136. 1270 PASCAL, B. Pensées. Br.131 –L.622. “O povo tem opiniões muito sadias: por exemplo: 1)Escolher o divertimento, e a caça no lugar da prêsa: os semi-hábeis zombam e triunfam, mostrando com isso a loucura do mundo; mas por uma razão que não penetram, o povo tem razão.”(Br.324-L-110) 1271 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. pp.1282,1291. 1272 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1293. Se evidencia o intertexto com a concepção de engajamento histórico delineado nas Lettres à un ami allemand: “Foi necessário entrar na vossa filosofia, aceitar parecer um pouco convosco(...)Nós fomos obrigados a vos imitar para não morrer.”(CAMUS, A. Lettres à un ami allemand.p. 242)

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“Cottard se acha à vontade no terror”1273: “Saindo do hospital, dois dias depois do

fechamento das portas, o doutor Rieux encontrou Cottard, que parecia muito

satisfeito. Rieux gabou-lhe a aparência. – Sim as coisas vão muito bem- disse o

homenzinho. – Mas, doutor, que peste miserável, hem? Está ficando séria. O doutor

concordou. E o outro afirmou com certa jovialidade. – Não há razão para que ela

pare agora. Vai-se escangalhar tudo.”1274

Mas é o padre Paneloux que é paradigma desta nutrição pela morte que é a

fundamentação mesma da Igreja para Camus - convicção prenunciada pela explosão

de ira de um Meursault atormentado à beira do cadafalso por um vampiresco

capelão1275.

Alquebrados pela privação, pela clausura e pela separação, amedrontados,

abandonados à própria sorte, fragilizados, expulsos da vida em vida1276, os oranenses

se apressam à missa em busca de uma escatologia para sua expiação coletiva, “a

catedral de nossa cidade, em todo caso, esteve abarrotada de fiéis quase toda a

semana.”1277 A pregação do padre Paneloux - na sorumbática catedral de Orã,

cheirando à “incenso e roupa molhada”, sob uma “chuva torrencial” - sedimentada

por milênios de uma “verdade”1278 preparada sob medida para tempos de desgraça

absoluta, encarna este procedimento parasitário de nutrição pela adversidade

constitutiva da condição humana, típico do cristianismo: “Meus irmãos, vocês se

encontram na desgraça, meus irmãos, vocês a mereceram(...)Citou a passagem do

Êxodo relativa à peste no Egito e disse: - «Foi para abater os inimigos de Deus que

pela primeira vez houva na história o flagelo. Faraó contrariou os desígnios eternos,

mas a peste o fez cair de joelhos. Desde a origem da história o flagelo de Deus feriu

cegos e orgulhosos.» Meditai nisso e prostai-vos.”1279

Naquele dia, no alto do púlpito, vestido à caráter, Paneloux se valia, é claro, de

milênios de adestramento religioso pela atrição, das mais refinadas artes da oratória,

mas também da atmosfera apocalíptica fornecida pelo dilúvio que se abatia sobre a

1273 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1380-1. 1274 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1284. (Tradução de referência de Graciliano Ramos) 1275 “....qualquer coisa se partiu dentro de mim. Comecei a gritar aos berros, insultei-o e disse-lhe para não rezar. Agarrara-o pela gola da batina(...)Nenhuma de suas certezas vale um cabelo de mulher.”(CAMUS, A. L´Étranger. p.211.) 1276 Situação de condenação à morte encarnada por Meursault. 1277 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1295. 1278 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1294. 1279 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1296.

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cidade sitiada: “Fora a chuva redobrava, e a última frase, lançada no silêncio do

auditório, mais profunda pela crepitação das águas nos vitrais, escoava de tal modo

que, depois de hesitar, alguns ouvinets resvalaram pouco a pouco nos genuflexórios.

Outros resolveram seguir o exemplo, e, no leve rumor de cadeiras a ranger, todas as

pessoas enfim se ajoelharam. Panneloux endireitou-se, respirou profundamente e

recomeçou em tom mais forte: «- “Se hoje a peste fez de vós o seu alvo, é que chegou

o momento de refletir. Os justos não devem recear, mas os pecadores tremem com

razão. Na granja imensa do universo, a debulhadora implacável baterá o trigo

humano até separar o grão da palha. Haverá mais palha que grão, mais chamados

que eleitos. Deus não desejou tal desgraça(...)Bastava o arrependimento(...)A

misericórdia divina faria o resto(...)Deus(...)cansou de esperar(...)E ei-nos, privados

da luz de Deus, submersos nas trevas da peste.”»1280

A um só tempo, astuto e rigoroso em sua rede ideológica pré-concebida,

poderoso e “patético”1281, o sermão de Paneloux é apresentado em detalhe, e guarda

ainda maior intensidade narrativa, na medida que compreendemos a sinceridade, a

intensidade, e a convicção íntima absoluta do velho pregador: “Sentia-se que

Paneloux findara. A chuva cessara. Um céu de água e sol lançava na praça uma luz

doce(...)Parecia-lhe que tudo estava claro. Lembrou apenas que, na grande peste de

Marselha, o cronista Mathieu Marais se queixava de ter sido mergulhado no inferno,

aí viver sem socorro nem esperança. Pois bem, Mathieu Marais estava cego. Agora,

mais que nunca, padre Paneloux sentia o socorro divino, a esperança cristã ao

alcance de todos. Esperava que, a despeito do horror desses dias e dos gritos dos

agonizantes, os homens dirigissem ao céu as únicas palavras realmente cristãs,

palavras de amor. Deus faria o resto.”1282

Mais tarde, com a voracidade terrível da doença aumentando de maneira

exponencial, e com a aparente impassibilidade divina, Paneloux resolverá integrar as

recém fundadas “formações sanitárias”- uma legião de voluntários reunidos pelo

ativista humanitário profissional Tarrou1283, para lutar, com os meios que se dispunha,

contra o avanço do flagelo.

1280 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. pp.1296-7. 1281 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1296. 1282 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. pp.1299-1300. 1283 “...embora a cidade pouco a pouco se habituasse a ele, ninguém sabia donde vinha e nem porque estava ali...” (p.1235) Mais tarde, Tarrou confessa a Rieux, “...não há um país na Europa aonde eu não tenha partilhado lutas.” CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1423.

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Aliás, como o próprio narrador admite, talvez não seja necessário “dar às

formações sanitárias mais importância do que tiveram.”1284 Mesmo porque, se

passados os acontecimentos, os cidadãos de Orã “cedem à tentação de exagerar seu

papel”1285, sabe-se, entretanto, refletidamente, que foi questionável a eficácia de suas

ações em face do flagelo. Segundo o narrador, entretanto, além da nobreza de seu

combate cotidiano, no qual os sanitaristas empenhavam a própria vida, é louvável nas

“formações” a contribuição na conscientização da população para a dimensão coletiva

do problema incontornável que os afligia: “O mérito dos que se dedicaram às

organizações sanitárias não foi grande, pois não podiam se comportar de outro

modo, e o contrário é que teria sido incrível. Esses indivíduos levaram a pupulação a

habituar-se ao flagelo, e todos afinal se convenceram de que a doença estava ali e e

era precso lutar contra ela. Tornando-se a peste ocupação de alguns, apresentou-se

realmente o que era, problema geral. Até aqui tudo bem. Mas não felicitamos um

mestre por ensinar que dois e dois são quatro.Talvez o felicitemos por ter escolhido

tão bela profissão.”1286

As formações sanitárias nascem de uma reinvindicação de Tarrou junto à

Rieux - encarregado dos assuntos sanitários junto à prefeitura. Ele exige uma

coletivização da luta contra a peste que supra o imobilismo oficial a quem “falta

imaginação” e que “não percebe os flagelos” - “se continuarem assim , morrerão

todos e nós com eles”1287: “- Dentro de quinze dias ou de mês, o senhor não será

mais útil aqui. Foi vencido pelos acontecimentos. – É exato. – disse Rieux. A

organização do serviço sanitário é má. Faltam-lhes homens e tempo(...)Planejei

organizar formações sanitárias voluntárias(...)Tenho amigos em toda parte.

Formarão o primeiro núcleo, e naturalmente participarei dele.”1288

O caráter por vezes frio, “abstrato” e de firmeza quase ditatorial da

metodologia posta em prática por Rieux como encarregado da saúde do município, se

potencializa com o alastramento do flagelo e com os aperfeiçoamentos impostos pelas

“formações sanitárias voluntárias”, organizadas por Tarrou.

1284 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1326. Se evidencia, como veremos adiante mais detidamente, a analogia com a Resistência Francesa – movimento extremamente importante e significativo, mas não propriamente pela eficácia de sua ação histórica. 1285 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1326. 1286 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1327. 1287 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1321. 1288 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1320-1.

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São necessárias medidas cada vez mais estritas de controle epidemiológico,

aliás, de eficácia duvidosa visto que o flagelo se determina bem mais pelas oscilações

climáticas e mesmo ao sabor dos ventos, do que pelo esforço dos voluntários, e, à

força das circunstâncias. O estado policial é incrementado e são progressivamente

eliminados os mínimos direitos à dignidade das vítimas e de seus familiares, em nome

da engenharia profilática: “No interior da cidade tiveram a idéia de isolar alguns

bairros particularmente ameaçados, de só deixar de sair deles os homens

indispensáveis ao serviço. Os que ali viviam eram levados a julgar essa medida de

uma violência especial e tinham inveja dos habitantes dos outros bairros(...)surgiram

muitos incêndios(...)as pessoas de quarentena, meio loucas na desgraça e no luto,

queimavam as próprias casas(...)foram preciso medidas muito severas contra esses

inocentes incendiários. Sem dúvida os infelizes não recuaram pela idéia de prisão,

mas pela certeza que a prisão significava morte, vista a excessiva mortalidade que

havia nos cárceres municipais.”1289 A metodologia dos enterros sob a administração

de Tarrou e de Rieux, descrita com minúncia e objetividade pelo narrador, dá uma

ideía do formalismo e da violência, julgado necessários, dos métodos vigentes no

estado de excessão decretado pela peste: “1290Agora os caixões eram cada vez mais

raros, faltava pano para as mortalhas, minguava lugar no cemitério. Necessário

refletir. O mais simples, e sempre por razões de eficácia, pareceu juntar as

cerimônias e, quando era preciso, multiplicar as viagens do hospital ao cemitério. O

hospital de Rieux dispunha de cinco ataúdes. Enchiam-nos, punham-nos na

ambulância, levavam-nos ao cemitério, esvaziavam-se-nos; os corpos cor de ferro

eram transportados em macas, estacionavam num alpendre reservado a isto. Os

caixões, molhados em solução antisséptica, regressavam, de novo se enchiam, e o

trabalho recomeçava enquanto fosse necessário. A organização era, pois, muito boa,

e o prefeito exibia contentamento. Chegou a dizer a Rieux que aquilo era melhor que

as carretas de mortos puxadas por negros, vistas nas crônicas de pestes antigas. –

Sim disse Rieux – é o mesmo enterro, mas nós, nós fazemos fichas. O progresso é

incontestável. Apesar desse êxito da administração, o desagradável aspecto das

formalidades obrigou a prefeitura a afastar das cerimônias os parentes. Apenas lhe

1289 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1356-7. 1290 “De começo o que caracterizava nossos enterros era a rapidez!(...)tudo se passava verdadeiramente com o máximo de rapidez e o mínimo de riscos. Sem dúvida, pelo menos no princípio, o sentimento natural das famílias se ofendeu(...)E tudo estaria bem se a epidemia não tivesse propagado, conforme vimos. ”( CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1360.)

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consentiam chegar à porta do cemitério, e isso não era oficial, pois na última

cerimônia, as coisas tinham mudado um pouco. No extremo do cemitério, num espaço

coberto de almecegueiras, tinham aberto duas enormes fossas, uma para homens,

outras para mulheres. Como se vê, a administração respeitava as conveniências, e só

muito mais tarde esse pudor final desapareceu: homens e mulheres se juntaram nas

covas, sem nunhuma decência. Felizmente essa confusão veio nos derradeiros

momentos do flagelo. No período que nos ocupa existia separação das fossas,

mantida com rigor(...)No outro dia os parentes eram convidados a assinar um papel,

e isto indicava a diferença que pode haver entre os homens e os cães, por exemplo: o

registro ainda era possível.” 1291

Não pode passar despercebida a premissa da eficacidade pela qual se pauta a

administração das “formações sanitárias” – “até o fim de agosto nossos concidadãos

foram sepultados, senão decentemente, pelo menos de modo à sugerir à

administração a consciência de cumprir o seu dever.”1292

O limiar desta desumanização administrativa produzida pelas necessidades da

peste é sintetizada pelos “bondes da praia”, convenientemente reformados e

desviados “para a linha do forno, que se tornou estação final.”1293

Também é de limiar a situação de desumanização sofrida pela criança

empestada, sem nome, filho do juiz, isolado dos pais por força dos imperativos

categóricos do estado de excessão1294 - deixada nas mãos de nossos administradores

da peste - que, agora, nela infundem, pela primeira vez, e sem nenhuma garantia, um

soro experimental: “Experimentou-se no fim de outubro o soro de Castel.”1295

“Instaram a criança no hospital auxiliar, numa velha sala de classe, onde

haviam posto dez camas. Ao cabo de vinte horas, Rieux julgou o caso perdido(...)Por

isso Rieux teve a idéia de experimentar o soro de Castel. À noite, depois do jantar,

fizeram a demorada inoculação sem obter uma única reação da criança. No dia 1291 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1361. Os intelectuais que não possuem imaginação “para a morte dos outros”, quem sabe tomem proveito desta soturna descrição, que nada mais é do que a transposição camusiana da desumanização do homem provocado pelas pestes da guerra e da indiferença – pragas que nos assolam mais do que nunca hoje - tantas vezes fomentadas e legitimadas pela presunção da verdade. 1292 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1363. 1293 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1364. Escrito entre 1939 e 1944, mas publicado somente em 1946, deixamos em aberto se esta invocação imagética de Camus, tão significativa da maligna aliança contemporânea entre eficácia e indiferença, é testamental ou premonitória. 1294 “Era necessário, se um deles estivesse infectado sem saber, não multiplicar as probabilidades do contágio.” CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1363. 1295 “...que le sérum de Castel fut essayé.”( CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1391)

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seguinte, pela madrugada, reuniram-se todos em torno do menino para julgar aquela

experiência decisiva.”1296

Já não era um garotinho que jazia ali: mas um experimento decisivo.

Submetida, à revelia dos pais ao constrangimento da análise e da intervenção

agressiva, observado e medido, - “Castel, sentado(ao pé da cama), lia, com aparência

tranquila, uma obra antiga” - isto é, reduzido e coisificado como uma cobaia, o

martírio da “criança” sem nome é redobrado: “- Não houve remissão matinal, não é

verdade Rieux? Não tinha havido, mas a criança resistia mais tempo que o

previsto.”1297

Na narrativa de Camus, a profilaxia se mostra tão onerosa quanto a peste:

moralmente, parece ainda mais avassaladora visto que o mal e a privação são como

que produzido por homens e não por um destino esmagador.

O experimento prossegue, numa agonia vigiada e julgada por um corpo

administrativo que, afinal, não parece sequer conhecer o nome da “criança”: “À

cabeceira, o corpo maciço de Tarrou(...)ao pé da cama, Rieux se conservava em pé;

Castel(...)lia, com aparência tranquila(...)Pouco a pouco, à medida que a luz

aparecia na velha sala da escola, os outros foram chegando(...)Primeiro Paneloux,

depois Tarrou(...)Grand chegou às sete horas (ficaria apenas um

instante)(....)Rambert encostou-se à cama próxima, tirou um maço de cigarros. Olhou

a criança, meteu os cigarros no bolso(...)Sabiam já o resultado, com certeza. Em

silêncio, Rieux mostrou o menino, que, de olhos fechados, as feições descompostas, os

queixos cerrados, o corpo imóvel, agitava a cabeça de um lado para o outro no

travesseiro sem fronha.”1298

Mas a imparcialidade do julgamento objetivo do experimento é quebrado pela

progressiva comiseração da administração, principalmente de Rieux, que até então “se

conservava em pé”. Com o acirramento do combate do garoto pela vida, os

voluntários demovem seu corações embotados pelas exigências cotidianas: “Tinham

assistido à morte de crianças, pois o terror, meses e meses,não fazia escolha, mas

ainda não tinham seguido, como agora, minuto a minuto, o sofrimento delas.”1299

Para os voluntários, “a dor inflingida aos inocentes nunca deixará de parecer o que

era na verdade: um escândalo. Mas até aquele momento o escândalo fora mais ou 1296 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394. 1297 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394. 1298CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394. 1299 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394.

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menos abstrato, pois nunca haviam examinado tanto tempo a agonia de um

inocente.”1300

“Como se ferissem o estômago, o menino se revolvia de novo, com um fraco

gemido. Ficou assim longos minutos, agitado por arrepios e tremores convulsos,

como se a carcaça frágil vergasse ao vento furioso da peste e estalasse aos repetidos

sopros da febre. A febre parecia retirar-se, abandoná-lo ofegante num leito úmido e

envenenado, onde o repouso já se avizinhava da morte. A onda ardente atingiu-o pela

terceira vez, ergeu-o um pouco, e o menino se encolheu, recuou para o fundo da

cama, aterrado pelo fogo que o queimava, agitou doidamente a cabeça, afastando o

cobertor. Correram lágrimas da pálpebras inflamadas, espalharam-se no rosto cor

de chumbo, e , passada a crise, exausta, estirando as pernas ossudas e os braços

descarnados em quarenta e oito horas, a criança tomou a feição de um crucificado

ridículo.”1301

Mas apesar da comiseração generalizada que se apodera dos voluntários,

apenas o padre Paneloux questiona a tentativa de manutenção artificial e

desenganada da vida deste garoto torturado, pelo soro de Castel: “ – Se ele tem que

morrer, terá sofrido ainda mais.”1302

Aos escrúpulos de Paneloux – justos e lúcidos - mas sem dúvida esculpidos

por uma desconfiança e um ceticismo apriorístico em relação aos poderes da ciência

humana para combater um mal que julga ser de ordem divina, Rieux responde com

um olhar fulminante que transparece uma ira contida1303.

Paneloux, entrementes, insiste em sua escatologia do sofrimento infantil:

“...talvez devamos amar o que não podemos compreender.”1304

Na ira comedida de Rieux contra a escatologia do sofrimento da condição

humana apregoada por Paneloux, aos pés do garoto moribundo, se exprime a diretriz

norteadora do engajamento de Rieux, nascido de uma tácita revolta contra “a ordem

1300 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394. O intertexto com o diálogo entre Ivan Karamazov e Aliocha, a que Camus faz referência em O Homem Revoltado como veremos a seguir, se mostra bastante evidente: “Quisera falar do sofrimento da humanidade em geral, mas detenhamo-nos antes no sofrimento das crianças. Isso reduzirá minha argumentação a um décimo(...)Escuta: se todos devemos sofrer para pagar a harmonia eterna sob preço do nosso sofrimento, qual a razão do sofrimento das crianças?.”(DOSTOIEVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p. 643) 1301 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394. 1302 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394. 1303 “Rieux se voltou subitamente para o eclesiástico, abriu a boca, engoliu a palavra, fez um esforço visível para dominar-se...”( CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394-5) 1304 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.

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do mundo regulada pela morte”1305, móvel confesso à Tarrou dias antes: “ – Não

padre. Tenho do amor outra idéia. E recusarei até a morte essa criação que tortura

as crianças.”1306(...)“- Esse pelo menos era inocente, o senhor sabe.”1307

Rieux retoma, de maneira bastante evidente, a argumentação de Ivan em face

de Aliócha, quando o mais velho procura inculcar no noviço sua revolta metafísica:

“A harmonia universal não vale uma única das lágrimas de uma dessas crianças

torturadas.”1308

Ele já expusera à Tarrou sua divergência fundamental em relação ao padre

Paneloux, embora este, como já mencionamos, integre, desde o recrudescimento da

doença, aliás com bastante honradez, as “formações sanitárias”: “Paneloux é um

homem de estudo. Não viu muita gente morrer; por isso fala em nome de uma

verdade.”1309

O médico, confessa à Tarrou, prefere agir com base na empiria e na

interrogação, ao invés de fundar-se em certezas ou razões “imaginárias”: “ - Vivi

muito em hospitais para aceitar a idéia de castigo coletivo(...)Não sei o que me

espera nem o que haverá depois disto. Hoje sei que há doentes e é preciso curá-los.

Mais tarde eles refletirão e eu também. O mais urgente é curá-los. Defendo-os como

posso, é tudo.”1310

Por aí, se exprime com clareza que a fundamentação do engajamento

profissional de Rieux reside numa contraposição, tácita e interrogante, à “ordem

mesma do mundo”1311: “Ao menos nisso Rieux julgava seguir o caminho da

verdade, lutando contra a criação tal como ela era.”1312

A contraposição de Rieux à metafísica cristã de Paneloux está, afinal, fundada

numa revolta1313, ainda que tácita, contra a contingência: “Como a ordem no mundo é

regulada pela morte, talvez convenha a Deus não crermos nele, por todos os meios

lutarmos contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se cala.”1314

1305 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1323. 1306 “Num movimento arrebatado, Rieux voltou-se, exclamou com violência”(p.1397) 1307 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397. 1308 DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p. 643 1309 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1322. 1310 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1323. 1311 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1323. 1312 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1322. 1313 “Há horas que apenas sinto a minha revolta.” (CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.) 1314 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1323.

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Se evidencia que são a modéstia e a obstinação, as armas preferidas de Rieux

em sua luta cotidiana contra a ordem da contingência.

Neste ponto, sublinhemos que, não obstante confluírem em sua luta comum

contra a morte, a contraposição entre Rieux e Tarrou não poderia ser mais absoluta no

que concerne a fundamentação de seu combate. Se Tarrou fundamenta sua luta na

convicção de “conhecer tudo”1315, Rieux, por sua vez, reafirma constantemente sua

conduta interrogante: “- Não sei nada, Tarrou, juro-lhe que não sei nada.”1316“- Não

sei nada, realmente.”1317

De certo, em seu embate cotidiano, alerta Tarrou, “suas vitórias são sempre

passageiras”1318. Para o doutor Rieux, “isso, porém, não é razão para abandonar a

luta.”1319Contra a miséria da ordem deste mundo, contra a bofetada cotidiana recebida

da criação, para Rieux. só é pertinente o contraponto da grandeza (ainda que

irrefletida) da obstinação altiva contra a injustiça do real: “O contrário é que teria

sido incrível.” 1320

É uma fundamentçção tácita, uma conduta interrogante contra a ordem da

aniquilação que, afinal, “autoriza” Rieux a aplicar o soro no menino desenganado.

Rieux se recusa a “habituar-se” com a morte1321.

Sua revolta é que lhe faz agir na incerteza e no risco de “acrescentar à atroz

miséria deste mundo”1322, e é ela que aflora aos pés do garoto, depois de meses de

comedimento, “de um coração fechando-se sobre si”1323, resguardando-se para a luta,

1315 “[Tarrou]- Aprendi muito.” “ Conhece a vida, hem?Julga conhecer tudo – murmurou Rieux. A resposta veio na mesma voz tranquila. –Acho que sim.”(p.1325) Notar que se Tarrou, humanista profissional, julga ter “aprendido muito” com a peste enquanto que Rieux considera ter aprendido tão somente algo: “A miséria.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1324) 1316 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1323. 1317 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1325. 1318 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1324. 1319 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1324. 1320 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1327. Vale assinalar que o contraponto “tácito” e sem fundamentação teórica de Rieux contra o sofrimento imposto pela “criação”, poderia afinal nos remeter a 3º “opinião sadia do povo” segundo Pascal: (Br.324-L.101)“- O povo tem opiniões muito sadias: por exemplo(...)3)Ofender-se por ter recebido uma bofetada(...)um homem que recebe uma bofetada sem se magoar é acabrunhado por injúrias e necessidades.” 1321 “....Já ouviu uma mulher gritar «Nunca!» Na hora da morte?Eu já ouvi. E não pude me acostumar a isso. Era de novo, a ordem do mundo me repugnava. Depois fiquei mais modesto. Apenas não me habituei a ver morrer.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1323.) 1322 CAMUS, A. Lettres à un ami allemand. Essais. p.223. 1323 “Na sensação deste coração fechando-se lentamente em si mesmo, o doutor encontrava o único alívio nesses dias esmagadores. Ele sabia que sua tarefa ia ser facilitada. É por isso que se alegrava(...)Para lutar contra a abstração, é preciso assemelhar-se um pouco com ela.”(CAMUS, A. La Peste.Théâtre,Récits,Nouvelles.p.1293.)

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e dela procurando até mesmo um refúgio “no céu fresco de primavera”1324 e na

“tranquilidade pacífica e indiferente”1325de sua ensolarada cidade.

Aos pés do garoto, a revolta de Rieux se exprime doravante em compaixão.

Num gesto que sintetiza o exercício de uma racionalidade afetiva, o médico procura

em vão sincronizar seu coração como o coração do paciente que se apega à vida por

um fio: “...era como se os doentes já não sentissem o pavor do começo; havia uma

espécie de consentimento no jeito que se comportavam. Só o menino se debatia com

todas as suas forças. Rieux de tempo a tempo lhe tomava o pulso, num gesto

maquinal, para sair da imobilidade impotente em que se achava, e sentia, fechando

os olhos, aquela agitação misturar-se no tumulto do seu próprio sangue. Confundia-

se então com o menino supliciado, queria sustentá-lo com a força que lhe restava.

Mas o pulsar de seus corações, de acordo por um momento se desarmonizava, a

criança fugia e seu esforço resvalava no vazio.”1326

Poder-se-ia dizer - entremostrando por aí a constituição progressiva da ética

camusiana, centrada no reconhecimento afetivo da alteridade - que só a partir do

momento que Rieux se dispôs a sofrer conjuntamente à criança ele, afinal, começa a

compreender efetivamente - isto é, afetivamente - seu paciente, e, através dele, o que é

a peste, e o que é o mal: “a miséria.”1327

A compreensão afetiva do outro, testemunha que a condição humana é

miserável, indigna e beira o insuportável1328.

“[O menino] Abriu os olhos pela primeira vez, olhou Rieux. No rosto

cavado,máscara de argila pardacenta, abriu-se a boca e em seguida se ouviu um

grito contínuo, apenas graduado pela respiração; de repente o grito encheu a sala de

um protesto monótono, discorde e tão pocuo humano que parecia vir de todos os

homens juntos. Rieux apertou os dentes, Tarrou desviou-se(...)”1329

“Mas o menino continuava a gritar e, em roda, os doentes se agitaram. O das

exclamações regulares, no fim da sala, precipitou o ritmo, e o queixume se

transformou es grito verdadeiro, enquanto os outros gemiam cada vez mais alto. Uma

1324 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1249. 1325 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1249. 1326 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1395. 1327 Notar que se Tarrou, humanista profissional, julga ter “aprendido muito” com a peste, o dr.Rieux considera ter aprendido tão somente algo: “A miséria.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1324) 1328 [Paneloux] “Para mim também esse espetáculo é insuportável.”(p.1397) 1329 “Castel fechou o livro abandonado sob os joelhos...” (p.1395.)

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torrente de soluços inundou a sala, cobrindo a oração de Paneloux. Rieux segurou-se

à barra da cama, fechou os olhos, ébrio de fadiga e de desgosto. Abriu os olhos , viu

Tarrou perto: « Preciso sair, diz Rieux, não suporto mais isso.» ”1330

“Súbito os doentes se calaram. O doutor percebeu então que o grito do

menino havia enfraquecido, ainda enfraquecia, parava. Os lamentos voltaram,

surdos, repercussão longínqua que findava. Findara. Castel rodeou a cama e disse

que tudo estava findo. A boca aberta, muda, a criança repousava entre as cobertas

em desordem, agora encolhida, com restos de lágrimas no rosto.”1331

São significativos os segundos seguintes dos sobreviventes deste testemunho

atroz.

Tarrou imediatamente após o fim do experimento dirige-se a Castel e,

pragmaticamente, reinicia os esforços para o combate do mal : “- É preciso

recomeçar? – O velho médico agitou a cabeça, respondeu com o sorriso crispado: -

Talvez. Enfim ele resistiu muito.”1332

Rieux, exaurido, “não sentindo mais que revolta”1333, procura renovação no ar

livre: “sentou-se num banco perto de árvores poeirentas, enxugou o suor do rosto.

Desejava gritar ainda para desatar o nó violento que lhe apertava o coração. O calor

descia vagaroso entre os ramos das árvores. O céu azul da manhã vestia rápido uma

fronha alvadia que tonava o ar mais sufocante. Rieux se deixou ficar no banco.

Olhava os ramos, o céu, recobrando lentamente a respiração, vencendo pouco a

pouco a fadiga.”1334

Paneloux, abalado, insiste para Rieux e para si mesmo em sua escatologia do

sofrimento, encontrando ainda esperanças para dizer: “acabo de compreender o que é

a graça”1335

Nesta conversa que exprime, por um lado, a partilha da dor entre Rieux e

Paneloux, de outro, a impermeabilidade absoluta entre os horizontes metafísicos do

cristianismo e da “revolta”, que, da boca do médico sanitarista, Camus faz brotar um

dos focos norteadores de seu engajamento ético-político do pós-guerra, a saber, “a

criação de um universalismo”, fundado no “trabalho de todos”, “no qual todos os

1330 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1396. 1331 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1396. 1332 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1396 1333 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397. 1334 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397. 1335 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.

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homens de boa vontade poderão se re-encontrar.”1336 Rieux diz ao padre Paneloux,

engajado como ele contra a propagação do mal - que a esta altura se revela,

seguramente, um personagem inspirado em François Mauriac1337: “Nós trabalhamos

juntos por qualquer coisa que nos reúne para além das blasfêmias e das preces. Isto,

unicamente, é importante(...)O que odeio é a morte e o mal, o senhor sabe, e, queira

ou não queira, estamos juntos para suportá-los e combatê-los.”1338

Por aí podemos divisar que embora engajados contra o mesmo mal, Rieux e

Paneloux, no entanto, se pautam por concepções absolutamente diferentes do

engajamento.

Paneloux – de certo modo como Tarrou, que pensa “saber tudo” – infunde ao

sofrimento humano a inversão histórica tradicional do cristianismo: por que a

realidade do cristão começa, afinal, após a morte, o padre compreende o sofrimento

humano como uma mera travessia em direção à “graça”. Do ponto de vista profundo,

seu foco é a alma e não o corpo. Ele está lá, no combate cotidiano contra o

sofrimento, para aliviar os percalços desta trajetória pré-estabelecida pela ordem

penal: é a salvação(salut)do homem que lhe interessa.

Rieux, por sua vez, comprometido com a modéstia, exerce um engajamento

interrogante contra o sofrimento: “Salvação é palavra um pouco grande para mim.

Não vou tão longe. É a saúde que me interessa.”1339

Há, afinal, uma passagem oblíqua entre as concepções do engajamento de

Paneloux1340 e de Tarrou que se evidencia após uma visita que o ativista e o doutor

Rieux fazem aos acampamentos nos quais os infectados, por força da ação pública

eficaz, mantinham-se isolados dos outros habitantes de Orã.

Se o sofrimento da criança anônima inoculada pelo soro experimental de

Castel metaforiza a dimensão metafísica da luta comum contra a absurdidade que é a

1336 CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744. 1337 Remetemos, neste mesmo trabalho, ao capítulo Camus em Combat, no qual estudamos a polêmica entre Camus e Mauriac. Ali pudemos notar que, embora com horizontes metafísicos distintos, e mesmo antagônicos, Mauriac e Camus, segundo este último, podem se acordar no que concerne a defesa da vida e o combate à injustiça. É o que uma palestra de Camus pronunciada no covento Latour- Malbourg em 1948, intitulada l´Incroyant et les chrétiens,(Essais, p. 371) procurará delinear, redendo homenagem à François Mauriac(Idem. p.372). 1338 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397. 1339 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397. 1340 Abandonamos à míngua este personagem que em algumas páginas definha e morre misteriosamente, como se após o confronto, -de perto -, com a evidência do sofrimento dos inocentes, Paneloux se desmotivasse à lutar, até mesmo pela sua própria existência. Sua morte pela peste não é confirmada: a narrativa insinua que uma “crise mística” encadeia a “desistência” do personagem. O óbito de Paneloux corresponde ao enterro da concepção metafísica cristã para Camus.

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ordem da finitude e do sofrimento da condição humana, a longa confissão de Tarrou à

Rieux - perspicazmente notada por J-P-Guérin como “uma narrativa dentro da

narrativa”1341 – demonstra a intenção de alinhavar o combate antes de tudo

metafísico contra a ordem cósmica do sofrimento e da finitude da condição humana

com a luta histórica contra a mimetismo da ordem cósmica da aniquilação pelas

forças

i um

ativista

humanas.

Tarrou, que, por sinal, ninguém sabe como chegou à Oran, confessa a Rieux:

“partilhei lutas por todas os países da europa.”1342Guérin observa:“Tarrou fo

internacionalista do anos 30 como foi por exemplo Arthur Koestler.”1343

Ele conta a Rieux como se converteu num militante internacionalista. Tarrou é

perseguido pela idéia de que, na infância, “indiretamente subscreveu à morte milhares

de homens”1344, “achando bons os princípios” que endossam à legitimação do

assassinato: “Digamos para simplificar, Rieux, que eu já tinha a peste antes de

conhecer esta cidade e esta epidemia. Basta vos dizer que sou como toda a gente.

Mas há pessoas que ignoramo estado em que vivem, sentem-se bem nesse estado,

outra que não ignoram desejariam sair dele. Sempre desejei sair.”1345

Tarrou descreve a descoberta, com horror, dos mecanismos de uma justiça

abstrata1346 e cruel aplicada com frieza no extermínio de seres humanos. Quando

jovem1347 ele é levado por seu pai, promotor de justiça, primeiramente, ao julgamento

e depois à execução de um condenado: “Desse dia, entretanto, guardei apenas uma

imagem, a do réu. Creio que era realmente culpado, nem sei de quê, pouco importa.

Mas aquele homenszinho de trinta anos, cabelos ruivos e escassos, parecia resolvido

a confessar tudo(...)Quase nada escutei, mas sentiam que desejamvam matar aquele

homem, e um instinto, uma vaga formidável,me impeli para ele com uma espécie de

cegueira teimosa. O requisitório de meu pai despertou-me(...)Percebi que, em nome

da sociedade,ele exigia a pena de morte do homem, pedia que lhe cortassem o

pescoço. Dizia somente: - «Essa cabeça deve cair.» E obteve-a, com efeito. Apenas

não teve precisão de cortá-la. Mas enfim a diferença não era grande. Acompanhei o

1341 GUÉRIN, J-P. Portrait de l´artiste en citoyen. p.79. 1342 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1423. 1343 GUÉRIN, J-P. Portrait de l´artiste en citoyen. p.79. 1344 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1424. 1345 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1420. 1346 Tarrou se revolta contra seu pai, funcionário aplicado, com um pendor irresistível pela abstração, que ganha a vida exigindo a execução de homens, e sabe de cor o guia Chaix - com os horários dos trens de toda a europa - não obstante desconheça empiricamente tanto os homens como as viagens. 1347 “Quando jovem vivia com a idéia de minha inocência, isto é, sem idéia de nada.”(p.1420)

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processo até aconclusão, e tive com com o infeliz uma intimidade vertiginosa, que

meu pai não tivera nunca. Este devia, segundo o costume, assistir aos «derradeiros

momentos», expressão polida com que se designava o mais abjeto dos

homicídios(...)Insisti muito nesse princípio porque ele foi realmente o princípio de

tudo.”1348

O militante internacionalista confessa que no cerne de seu combate contra a

ordem penal da existência, está um contraponto primitivo à condenação à morte, e de

sua fala se desprende uma nova conceitualização do termo peste, entendida também

como metáfora da indiferença ao sofrimento e à ordem penal da existência: “O que me

preocupava era a condenação à morte. Queria aceitar as contas com o mocho ruivo.

Em consequência, faço política como se diz. Em suma, procurava não ser um

empestado. Acreditei que a sociedade em que eu vivia era baseada na pena de morte

e supus, combatendo-a, combater o assassinato.”1349

A passagem seguinte reforça a tese de que a figura do militante

internacionalista de A Peste, seja inspirada em Arthur Koestler, pois Tarrou relata

como, no decurso de sua luta contra à “ordem penal”, ao lado de “pessoas estimadas”,

percebe que seu combate contra a injustiça e a violência se materializava, a bem da

verdade, no leitmotiv da violência e da condenação à morte : “Associei-me a pessoas

estimadas (aimais)que nunca deixei de estimar, fiquei longo tempo com elas, e

envolvi-me em lutas por todos os países da Europa(...)Não ignorava,é claro, que

também nós às vezes pronuciaávamos condenações. Mas essas poucas mortes,

diziam-me, eram necessárias para chegarmos num mundo isento e homicídios(...)Isso

durou até que assisti a uma execução, na Hungria(...)«Você nunca viu um

fuzilamento. Nunca viu decerto. Você se limita ao que viu nas estampas dos livros.

Uma venda, um poste, alguns soldados longe. Pois não é assim. Sabe que o pelotão

de fuzilamento se coloca a um metro e cinquenta do condenado? Sabe que, se o

condenado avançasse dois passos bateria com o peito nos fuzis? Sabe que, nessa

curta distância, os fuziladores concentram o fogo no coração e fazem, com balas

grossas, um buraco onde a gente poderia colocar uma mão fechada? Não, você não

sabe dessas coisas: são pormenores de que ninguém fala. O sono dos homens é mais

1348 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1422. 1349 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1423.

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precioso que a vida das criaturas empestadas. Eu, desde dia, não dormi direito. O

mau gosto ficou-me na boca, e não deixei de insistir, isto é, pensar.”1350

Talvez não seja excessivo sublinhar, a esta altura, a dimensão ética da

imagem em Camus: trata-se de insistir em provisionar, principalmente aos

intelectuais, engajados em causas nobres, mas carentes de experiências efetivas,

imaginação para a morte dos outros. É, afinal, onipresente a precupação com a

questão das engrenagens da violência alimentadas pela boa vontade dos

revolucionários que, afinal, mimetizam a crueldade e a indiferença cósmica ao

reintro

as necessidades ceitas pelos pequenos empestados, não deveríamos

recusar

duzirem em suas ações a injustiça e o sofrimento contra a qual originalmente se

contrapunham.

Observemos a postura de Tarrou, que, como o húngaro Koestler, tendo

participado ativamente do movimento revolucionário internacionalista, passa,

posteriormente, à oposição ferrenhe contra o totalitarismo, uma vez confrontado com

a veritá effetualle della cosa , isto é com a realpolitik em voga nos “Estados

revolucionários”: é o eixo do questionamento sobre a responsabilidade intelectual que

volta à tona na narrativa d´A Peste: “Compreendi então que me conservava empestado

nos longos anos em que, de todo o coração, julga lutar contra a peste. Havia,

indiretamente aprovado a morte de milhares de homens, chegara a provocar esta

morte aceitando as ações e os princípios que fatalmente a determinavam. Os outros

não pareciam inquietar-se, pelos menos nunca falavam disso espontâneamente. Eu

tinha um bolo na garganta. Estava com eles e me sentia só. Quando resolvia expor

meus escrúpulos, diziam-me que era preciso refletir no caso, davam-me com

frequência razões impressionantes para fazer-me tolerar o que eu não conseguia

engolir. Respondia-lhes que os grandes empestados,os que usam becas vermelhas,

também se apegam a excelentes razões nesses casos, e se admitíssemos as razões de

força maior e

as dos grandes. E achava que, cedendo uma vez mais, já não tínhamos meio

de parar.”1351

Tarrou verbaliza os escrúpulos do engajamento camusiano, que embora

afinado com as intenções originárias dos revolucionários de esquerda, se recusa a

compactuar com seu pragmatismo no poder: “Me parece que a história me deu razão:

hoje matam cada vez mais. Eles estão todos no furor do assassinato e não podem

. 1350 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1423. 1351 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1424-5

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comportar-se de outro modo.”1352 Em sua confissão, Tarrou contrapõe a abstração

das teorias e da “boa vontade” revolucionária à realidade visceral dos homens

singulares e presentes, aniquilados pelas concepções de Estado e de futuro: “Minha

preocupação pessoal, em todo caso, não era o raciocínio. Era o mocho ruivo, a

imunda aventura, bocas sujas e empestadas anunciando a um homem preso que ele ia

morrer, regulando tudo para a morte depois de noites e noites de agonia, um infeliz

de olhos abertos esperando a hora de ser assassinado. Preocupava-me o buraco no

peito.”1353

É um verdadeiro leitmotiv camusiano que entra em cena, a saber, a recusa

veemente da legitimação do assassinato: “Dizia a mim mesmo que me negaria a dar

uma razão – uma razão só, percebe? – a essa repugnante carnificina.”1354

Tarrou é emissário desta postura rigorista em relação à responsabilidade do

intelectual que vimos ser esculpida com o aprofundamento da guerra pela experiência

do editorialista chefe do jornal Combat entre 1944 e 1946. Seria impossível não notar

também na confissão do militante internacionalista, os questionamentos acerca da

culpabilidade intrínseca da condição humana, reflexões que posteriormente serão

aprofundados por Clemence em A Queda1355: “Não mudei. Tenho há muito, vergonha

de ter sido, embora de longe, embora com boa vontade(bonne volonté), um assassino

também. Depois, notei que até os melhores não poderiam deixar de matar , ou

consentir que matassem, pois esta era da lógica admitida, e não fazíamos um gesto

nesse mundo sem nos arriscaros a matar. Continuei a ter vergonha, percebi que

vivíamos todos na peste – e perdi a paz(...)”1356

Pela boca de Tarrou, o pragmático cérebro das “formações voluntárias”,

escutamos uma espécie de síntese do engajamento camusiano do pós-guerra, ou

melhor, desfecho de sua busca por uma postura ético-política eqülibrada com seu

sentimento de justiça: “Sei somente que é necessário fazer tudo que for preciso para

não ser um pestiferado(...)É o que pode aliviar os homens e, senão salvá-los,não lhes

fazer muito mal, oferecer-lhes de qundo em quando algum bem. É por isso que decidi

1352 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425. 1353 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425. 1354 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425. 1355 O desafio de analisar este obra de maturidade de Camus deixaremos para o pós-doutorado, ocasião na qual teremos possibilidade de analisar o conjunto dos textos posteriores a O Homem Revoltado. 1356CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425.

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recusar tudo que, de perto ou de longe, por boas ou por más razões, mata ou

justifica que se mate.”1357

É, afinal, sob um prisma rigorista da responsabilidade do intelectual que a fala

de Tarrou deve ser compreendida.

Por aí percebemos, sem sombra de dúvida, que a metáfora da “peste” possui

uma dupla inscrição problemática, a saber, metafísica e histórica. Ela simboliza de

maneira genérica o mal - a natureza humana frágil e finita - de ancoragem metafísica

- e a propagação e banalização do mal e da indiferença - de raízes históricas: “Assim,

esta epidemia nada me ensina; sei que, junto a você, devo combatê-la. Sei de

ciência certa – aprendi na vida, Rieux, você me entende –que trazemos conosco a

peste e ninguém, ninguém no mundo está livre dela. E precisamos vigiar-nos em

descanso para, um descuido momentâneo, não respirar na cara de outro e levar-lhe

a infecção.”1358

Camus exprime através de Tarrou a conjugação entre“ótica pessimista de

mundo”1359 e ação social “otimista”, nos termos da conferência A Crise do

Homem1360de março de 1946, ano de publicação de A Peste: “O que é natural é o

micróbio. O resto, saúde, integridade, limpeza, o que você quiser, tudo é

consequência da vontade, de uma vontade que não deve parar nunca. O homem

honesto(hônnete homme), aquele que não infecta quase ninguém, é o que menos se

distrai. É preciso vontade e tensão para não se distrair nunca!”1361

“O que vos digo não é de grande alcance. Se permanecerdes aí, não deixarás

de vos perder, mas ao menos vos perderá como homem honesto(hônnete homme).”1362

Observemos a terminologia de referência da conduta ideal, de um pensamento

e de uma ação lúcidos, rigorosos e responsáveis, segundo Tarrou: l´honnête homme,

exemplar moral caro ao horizonte dos moralistes do século XVII1363.

1357 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425. “Ouvi argumentos numerosos, que me viraram quase a cabeça e foram suficientes para levarem outras cabeças consentirem no assassinato e percebi que a desgraça dos homens vinha de não usarem a linguagem clara. Decidi então falar e proceder claro, entrar no bom caminho...”(p.1426) 1358 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425-6. 1359 CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 745. 1360 4) A quarta coisa a fazer é de procurar e de criar, a partir da negação, os valores positivos que permitirão conciliar um pensamento pessimista e uma ação otimista. É o trabalho dos filósofos.”

4.

m honesto . Esta é a única qualidade que ”

CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 741361 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426. 1362 PASCAL,B . Trois Discours sur la condition des grands. L´Intègrale.p. 366. 1363 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.35-L.647) “Homem honesto. É preciso que se possa dizer, não é nem matemático, nem predicador, nem eloqüente, mas homeme agrada.” (Br.38 –L.732) “Poeta e não homem honesto.

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Segundo Tarrou, é a vigilância reiterada, a observância, a procura constante da

compreensão da alteridade1364que caracterizam l´hônnete homme. É preciso vigilância

permanente para não destilar e principalmente inocular os venenos da

contemporaneidade, a saber, a violência e a indiferença. : “Sim Rieux, é bem fatigante

ser um empestado. Mas é ainda mais cansativo não querer sê-lo. É por isso que todo

mundo, hoje, mostra cansaço, pois todo mundo, hoje, se encontra empestado.”1365

É, sobretudo, necessário “simpatia”1366 para o engajamento apregoado por

Tarrou-Camus, isto é, “trata-se de compreender o máximo de homens possível.”1367

Do grego “sumpatheia” – significando originariamente “participação do sofrimento

do outro”, a “simpatia” de Tarrou, se inscreve num ideal de reconhecimeto afetivo

da alteridade1368, perspectiva, aliás, que fundamenta a dimensão ética da imagem

por Camus: dar “calor e rosto” aos dramas humanos.

Com esta postura rigorista - visto que os empreendimentos contemporâneos da

política se pautam pela negação mesma da singularidade, da alteridade e das

condições efetivas da vida presente, ou seja, pela abstração - Tarrou admite seu exílio

em face do empreendimentos historicistas do século XX: “...sei que nada valho neste

mundo: a partir do momento que renunciei a matar, me condenei a um exílio

definitivo. Serão os outros que farão a história.”1369

O engajamento de Tarrou contra a ordem penal, seja ela cósmica ou histórica,

manifesta uma postura que vem se matizando em Camus desde as Cartas a um amigo

alemão, passando pelo conjunto de textos de Combat e pela conferência La crise de

l´homme que, afinal, procura sintetizar o difícil eqüilíbrio ético buscado pelo filósofo

em face dos desafios do pós-guerra: “Nós pretendemos somente lutar na História

para preservar da História esta parte do Homem que não lhe

pertence.”1370“Aprendi a modéstia. Digo somente que há sobre esta terra flagelos e

vítimas e que é preciso, tanto quanto possível recusar estar com os flagelos.”(...)“É

do

rsement du pour au contre, numa palavra, na multiplicação de pontos

. 745.

1364 Como veremos em breve com o ideal da “simpatia”. 1365 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426. 1366 “Depois de um silêncio o doutor se ergue um pouco e pergunta, se Tarrou tem uma idéia caminho que seria necessário para chegar à paz. «Sim, a simpatia(sympathie)» (La Peste. p.1427) 1367 Variante da passagem supracitada em A. CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.2000. 1368 Esforço de reconhecimento da alteridade que é notório, por sinal,em toda a política pascaliana, inscrita na metodologia do revede vista possíveis sobre o real. 1369 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426. 1370 CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p

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por isso que decidi me por ao lado da vítimas, em todo caso, para limitar os

danos.”1371

É Tarrou, curiosamente - o “calculista” e “comedido” ativista internacional,

organizador profissional de catástrofes humanitárias - quem exprime, afinal, com a

lucidez

c

a

que lhe é característica, algumas das chaves-mestra do engajamento

amusiano do pós-guerra, procurando conjugar indignação e justeza, compreensão

fetiva da alteridade e ação histórica “modesta”, porém eficaz: “Digo, pois, que há

agelo e vítimas, nada mais. Se, apesar disto, me torno flagelo também, não consinto

isto. Procuro ser um assassino inocente

fl

n . Não é grande ambição, você está vendo. 1372

Tarrou expõe uma preocupação constitutiva do pensamento de Camus, a saber,

a busca de uma ação histórica eqüilibrada, eficaz, sem sacr

ifícios à virtude e ciente

de seus limites. O Homem Revoltado prosseguirá o tratamento do problema se

dedicando a análise das idéias e das ações revolucionários, avaliando-os em relação

às origens da revolta, procurando eqüalizar na ação histórica, indignação e medida.

Os Justos, prolonagará por sua vez o tema dos assassinos inocentes, ou assassinos

delicados, buscando matizar a partir do ensaio da Revolução Russa de 1905, um

união possível entre a ação revolucionária eficaz e virtude.

“Encontrar uma desmedida na medida”1373 é o imperativo que ressoa nos

cadernos íntimos do autor e no conjunto de sua obra dedicada a problematizar a

questã

de Camus, âmago de sua concepção madura de

engajam

o do engajamento ético-político-filosófico.

Ora, o transcorrer da cena camusiana, o desfecho da conversa entre Tarrou e

Rieux, e posteriormente, a evolução indiferente da peste, nos encaminha diretamente

ao núcleo do pensamento dos limites

ento ético-político-filosófico que consite no esforço de eqüilibrar desmedida

e medida, indignação e justeza, nas dimensões do pensamento e da ação histórica.

Utilizando um recurso cinematográfico caro ao inglês Mike Figgs1374,

deixemos por ora de escutar o que dizem – vemos claramente que prosseguem

trocando estas nobres palavras - e nos concentremos na ambientação que os cerca e no

que fazem.

1371 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426. 1372 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426. 1373 “Trouver une démesure dans la mesure.”(Février, 1938. Camus, A. Cahier II) 1374 Notar, o excelente Inocência.

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Os dois amigos mantém esta conversação humanista e serena, à noite, num

terraço às portas da cidade sitiada, nos confins da peste – à saida de uma visita a um

dos campos de concentração dos infectados – entre exclamações, gritos de homens

apanhados que procuravam escapar, bem perto deles, ao cerco policial, sirenes

militares e de ambulância, berros de dor, e, seguramente, o cheiro pútrido das

catástro

io do mar, trazendo cheiro de sal. Percebia-se agora

distinta

ente, entram no carro e fogem do transtorno da cidade convulsionada e

seguem

Tarrou e Rieux passam pela fronteira inexpugnável, “transpondo os

terraplanos cobertos de pipas, entre os cheiros de vinhos e de peixe, diigiram-se ao

cais. Sentiram, antes de chegar, o odor das algas e do iodo, ouviram o rumor das

fes intermináveis: “Um grande clarão veio do lugar onde haviam gritado e,

vencendo o rumor do vento vieram os gritos de homens, o barulho da descarga e a

vozeria da multidão.”1375 Ouvia-se também, ao longe, as “batidas nas portas”

características da fiscalização das “formações sanitárias voluntárias” e dos aparatos

policiais que obrigatoriamente os acompanhavam. Entretanto, “a aragem tornou-se

mais forte, um sopro ve

mente a surda respiração das ondas na falésia.”1376

Os dois interrompem a conversa, que - pelos seus rostos divisamos - findara

em gracejos e sorrisos: focamos neste sorriso aberto de Rieux1377. Ambos, decidida e

animadam

em direção ao mar - que rugia ainda mais forte e do qual se sentia já a

humidade tépida - adentrando na zona proibida do cais do porto, fechado desde o

início do cerco à cidade.

Quando o carro chega ao cais e os homens descem, a lua havia se erguido na

costa de Orã: “Um céu leitoso estendia por todos os lados sombras pálidas. Vinha das

alturas da cidade um sopro ardente e malsão que impelia os dois homens para o

mar.”1378

Vemos os dois homens chegarem a um posto policial que guarda o cais

lacrado pelos imperativos irretorquíveis da saúde pública: “Exibiram papéis a um

guarda que os examinou longamente.”1379

ondas.”1380

ade dos nossos “heróis”, que utilizam seus “salvo-condutos” oficiais, de autoridades

1375 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427. 1376 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427. 1377 “Rieux souriait”(p.1427) 1378 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428. 1379 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428. 1380 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428 Talvez não seja excessivo assinalar o abuso de autorid

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“O mar sopramava docemente ao pé dos grandes blocos do cais; surgiu,

espesso como um veludo, flexível e manso como um animal. Chegaram, subiram nos

Depois de algumas braçadas, achou-as realmente

esita.

pela luz da lua.

ta a partir do

Tarrou, com a certeza de quem julga saber tudo, revela então, a desmedida de

política pois, apesar dos escrúpulos de revolucionário experimentado,

rochedos. As águas subiam e desciam lentas. Essa respiração calma expunha e logo

escondia reflexos oleosos na superfície. Diante deles estirava-se a noite, sem

limites.”1381

“Rieux sentia sob os dedos a cara da pedra gasta e experimentava uma

felicidade estranha. Voltou-se para Tarrou, advinhou no rosto calmo e grave do

amigo a mesma felicidade, que nada esquecia, nem o homicídio.”1382

“Despiram-se, Rieux mergulhou. Frias no começo, as águas pareceram

mornas quando veio à tona.

mornas: naquela noite o mar de outono roubava à terra o calor guardado longos

meses. Nadava com regularidade. O movimento dos pés deixava atrás dele uma

efervescência de espuma...”1383

Se Rieux mergulha sem hesitação no mar espesso (épaisse) - enfrentando a

espessura mesma da existência humana, fundida em sua fragilidade constitutiva numa

magnitude cósmica que lhe ultrapassa, Tarrou h

Podemos quase observá-lo contemplando o mar, ou a Rieux, ou a si mesmo,

diante da magnitude avassaladora na qual seu amigo se perdia, ínfimo, por entre as

ondas escuras e tremeluzentes

Talvez possamos comprender a hesitação de Tarrou diante do mar,

retrocedendo na cena, e sondando melhor a personalidade do ativis

desfecho da conversa Rieux.

Minutos antes, ainda no terraço, eis o que Tarrou dizia “com simplicidade” ao

médico: “o me interessa é saber como um homem se torna santo”1384

Rieux reluta: “- Mas você não acredita em Deus.”1385

sua arrogância

tre, Récits, Nouvelles. p.1427.

sanitárias - com poderes absolutos em regime de exceção – para usufruírem de algo nem sequer sonhado pelo conjunto da população – que dirá pelos confinados em campos de concentração para infectados. 1381 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428 1382 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428 1383 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428 1384 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427. 1385 CAMUS, A. La Peste. Théâ

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inimigo da ordem penal, ele ainda se pauta pela premissa de “descer o céu à terra”1386:

“Justamente. Podemos ser santos sem Deus, é o único problema concreto que

conheç

projeto de poder

desmed

ansponíveis. Tirano “artista”: seu ódio à morte é oriundo de um elã de

eternid

ante da eternidade mergulharia sem hesitação na espessura seu

véu do

o na história vindoura,

mergul

o hoje.”1387

Vê-se que Tarrou não acedeu completamente ao pensamento da modéstia, e, à

sua maneira escrupulosa de “assassino inocente”, permanece sendo um ensaio de

mais um Grande Inquisidor - um Aliócha- que afinal, de algum modo, corre o risco

de permanecer nutrindo, da miséria, seus projetos e esperanças angelicais de futuro:

mais um santo urdido pelo Novo Evangelho1388. De um ponto de vista profundo, do

angelismo de humanitarista profissional de Tarrou, reverbera, insistentemente – por

detrás de um aparente altivez desinteressada1389 - um

ido1390: “a virtude toda pura é assassina.”1391

Sua aptidão para a burocracia da morte, para o cálculo e para a organização

policial, sua frieza pragmática1392, sua serenidade amistosa e viril1393, antecipam,

talvez, “virtudes” de um ditador da boa vontade - desses que terminam por construir

castelos intr

ade.

E como um am

mar noturno?

Como um “futuro santo1394”, procurando absolviçã

haria sem pudor num cosmo sem laços com o porvir?

1386 Tema que será desenvolvido de maneira multipolar em O Homem Revoltado. Nesta tese, a questão é tratada mais especificamente, com sua referência dostoiévskiana norteadora, no capítulo Entre as dimensões metafísica e histórica da revolta. Notemos a passagem que Camus capta dos diários de Dostoiévsky: “Se Aliochatornado imediatamente

tivesse concluído que não há nem Deus, nem imortalidade, ele teria se ateu e socialista. Isso porque o socialismo não é apenas a questão operária, é

sobretudo a questão do ateísmo, de sua encarnação contemporânea, a questão da Torre de Babel, que se constrói sem Deus, não para alcançar os céus e sim para rebaixar os céus à terra.”(CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.469-70.) 1387 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427. 1388 Notar o capítulo Le nouvel Évangile em L´Homme Revolté. p.523 1389 “...serão os outros que farão a história.”(p.1426) 1390 A situação de Tarrou é bastante elucidativa da atual geopolítica internacional e até mesmo nacional, na qual o humanitarismo, seja na forma do humanitarismo profissional, seja na forma do popu(lu)lismo, tornou-se um para-poderio econômico, político e até mesmo militar estratégico. O Homem Revoltado volta ao tema da relação entre desmedida e santidade: “É bem verdade que a desmedida pode ser uma forma de santidade, quando o seu preço é a loucura de Nietzsche.”(CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.703.) 1391 “...Eis porque a verborragia humanitária não é menos fundada do que a provocação cínica.”( CAMUS, A. L´Homme Révolté. pp.699-70) 1392 “Tarrou murmurou que aquilo não tinha acabado, que haveria vítimas, pois isto era da ordem.”(p.1427) 1393 Que lembre, talvez, as maneiras amistosas de um Mussolini, um Pol. PT ou um IdiAmin Dada... 1394 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428.

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Cai a máscara de Tarrou, e por estes deslizes e hesitações, divisamos que

embora o personagem exprima questionamentos e posturas evidentemente

sintonizadas com os eqüacionamentos ético-político-filosóficos de Camus, este

teórico

m Rieux, que responde ao

candida

da simpatia e chefe das formações sanitárias não exprime sozinho a voz

filosófica do texto.

Tarrou hesita diante do mar, ele que age sempre a partir de uma

fundamentação teórica, contempla sobretudo a si em face de um cosmo que o

contradiz em sua pretensão de perenidade, de ordem, de ascese.

Tarrou é, a bem da verdade, ainda um aprendiz de hônnete homme – o tempo

não tardará a esculpir em seu corpo sua derradeira lição de modéstia - e vê-se que ele

é um aplicado aluno da peste num derradeiro diálogo co

to a santo, com seu exercício cotidiano de lucidez: “[Rieux] ...sinto mais

solidariedade com os vencidos do que com os santos. O heroímo e a santidade não

me atraem. O que me interessa é ser homem. [Tarrou] – Sim procuramos a mesma

coisa, mas eu sou menos ambicioso. Rieux julgou que Tarrou gracejava, olhou-o. Na

vaga luz que vinha do céu, viu um rosto sério e triste.”1395

“Sempre chega o momento em que é preciso escolher entre a contemplação e

a ação(...)Isto se chama tornar-se homem. É preciso viver com o tempo e morrer

com ele”1396: “Rieux mergulhou. Frias no começo, as águas pareceram mornas

quando veio à tona(...)Nadava com regularidade .”1397

É Rieux quem imediatamente mergulha na espessura de uma vida frágil e

depend

erteza, solidariedade e

consciência dos limites: “Tarrou se aproximava. Rieux ouviu a respiração dele,

ente das paisagem cósmicas; ele busca assimilar os ritmos da natureza e gozar

da grandiosidade deste instante de transcendência horizontal na qual homem e mundo

reencontram na virtude da beleza seu elo indissociável e sua dignidade perdida1398:

“Rieux ficou de costas, imóvel, olhando o céu cheio do luar e das estrelas. Respirou

profundamente.”1399

Seu mergulho no azul profundo exprime o exercício de um pensamento e de

uma ação interrogantes que eqüilibra dignidade, ação na inc

1395 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427.

va que omme Revolté. p. 679-80.)

1396 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.165. 1397 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428. 1398 “Ao manter a beleza preparamos o dia do renascimento em que a civilização colocará no centro de sua reflexão, longe dos princípios formais e dos valores degradados da história, essa virtude vifundamenta a dignidade comum do homem...”(CAMUS, A. L´H1399 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1429.

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voltou-se, nadou junto ao amigo, esforçando-se por acompanhá-lo. Durante alguns

minutos avançaram na mesma cadência, longe do mundo, livres enfim da peste e da

cidade. Rieux parou, regressaram devagar, entraram numa corrente gelada,

apressaram-se fustigados por aquela surpresa do mar.”1400

Com seu mergulho expontâneo, porém, observemos, cauteloso no mar - “Celui

qui s´arrête fait remarquer l´emportement des autres.” 1401 - sob o luar, no limiar do

confronto com a peste, Rieux, realiza – é curioso notar - mesmo que

inadver a do povotidamente, a derradeira e fundamental “opinião sadi ” segundo

Pascal, a qual, por sinal, sintetiza bem a dimensão ética que o autor seiscentista, à

exemplo de Camus, também infunde à incerteza: “4. Travailler por l´incertain, aller

sur mer, passer sur une planche.”1402

É possível que Rieux tenha escapado à peste por acaso.

Mas é provável que Rieux tenha atravessado à adversidade abissal da peste por

ter seguido pelo precipício à risca de uma estreita planche, ou passagem: a da ação

interro - mas com

absolut

punha além dos

limites

ta às ninharias humanas: ficou de

costas, imóvel, olhando o céu cheio do luar e das estrelas. Respirou

gante fundada no pensamento da modéstia – ação obstinada1403

a imaginação(isto é, consciência)para os seus limites. Para Camus, afinal, “o

vício mais desesperador é a ignorância que presume saber tudo e se arroga o direito

de matar.”1404

Tarrou hesita em face do desconhecido, e não tem a mesma sorte.

Sua atitude contemplatória, signo de um angelismo que se

de homem, o expõe à cólera da deusa nêmesis. “todo pensamento, toda ação

que ultrapassa um certo ponto nega a si mesma.”1405 Neste momento de hesitação

antropocêntrica diante do mar, a peste alcança o santo. Neste átimo talvez. Antes da

queda. Tempo de algumas braçadas de Rieux no ritmo de poseidon.

Tempo deste deslize necessário para fora do humano de quem conhece como o

médico que, apesar das determinações avassaladoras do cosmos é preciso também

usufruir de sua beleza e de sua indiferença absolu

1400 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1429. 1401 “Rieux s´arrêta le premier...” (CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1429.) “Celui

exemple…”(PASCAL, B. Pensées. (BR.324 – L.101)) , age-se com razão...”

et Démesure.p. 697.

qui s´arrête fait remarquer l´emportement des autres. Comme un point fixe.”(PASCAL,B.Pensées.(Br.382-L.699) 1402 “Le peuple a les opinions très saines. Par(Br.233-L.418):“Quando se trabalha para o amanhã, e o incerto1403 “Era preciso, agora, recomeçar.”(p.1429) 1404 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1326. 1405 CAMUS, A. L´Homme Revolté- Mésure

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profun

águas

subiam a e logo escondia reflexos

oleosos

damente.”1406 Este conluio parcial com o cosmo, ainda que prenhe de

desconfiança, é, portanto, um imperativo absoluto de sobrevivência para Rieux: “É

preciso viver com o tempo e morrer com ele.”1407

Ser feliz, apesar do mal, é, neste sentido, uma ambição de homem que escapa

ao santo. Em meio a uma história que é um “jogo certo para tudo perder”1408, Rieux

ainda cultiva, como Sísifo, a suprema ousadia da felicidade: “O mar sopramava

docemente ao pé dos grandes blocos do cais; surgiu, espesso como um veludo,

flexível e manso como um animal. Chegaram, subiram nos rochedos. As

e desciam lentas. Essa respiração calma expunh

na superfície. Diante deles estirava-se a noite, sem limites. Rieux sentia sobre

os dedos a cara da pedra gasta e experimentava uma felicidade estranha.”1409

ânicas regenerativas procuradas pelo experiente Rieux.

“guarda” nem o “recria” - sem a guarita da solidariedade - até mesmo o

santo p

timas na segunda-feira de deixá-las

escapa

flagelo regridir e, finalmente, se extingüir por completo, ou quase. Nem

Ânimo que talvez não embale Tarrou. Ele hesita.

É em vão que Tarrou busca absolvição no mar. Melhor seria beber nele as

emanações braham

E neste único e breve momento de solidão, deslize no qual o olhar de seu

colega nem o

erece.

Que a doença de Tarrou avance na contramão da peste, é, portanto, bastante

significativo.

A “evolução” caprichosa da peste exprime sua absurdidade constitutiva.

A aparente ordenação matemática pela qual funcionava, começa por fraquejar,

desvelando uma contingência originária: “Ela perdia num curto espaço de tempo, a

quase toda a força em longos meses conseguida.Vendo-a soltar presas certas, como

Grand e a moça de Rieux; exarcebar-se dois ou três dias nalguns bairros e

desaparecer completamente noutros; agarrar ví

r quase todas na quarta;esbaforir-se ou precipitar-se – podíamos julgar que

ela se desorganizava por enervamento e cansaço, perdia o autodomínio, a eficácia

matemática e soberana que fazia sua força.”1410

Observemos: não são os esforços dos “voluntários das formações sanitárias”

que faz o

1406 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1429. 1407 CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.165. 1408 PASCAL, B. Pensamentos. Br.294 1409 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428 1410 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1440.

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mesmo

e inunda nossa cidade de uma luz ininterrupta”1411 parecem, em

larga m

e se tratava de uma vitória. Éramos obrigados a

reconh rços

human

os rígidos controles de segurança sanitária, mantido à duras penas. Não é,

assinalemos, o soro experimental de Castel, que manteve até o fim sua eficácia

duvidosa.

O frio invernal, o céu – “que nunca havia sido tão azul que com seu esplendor

imóvel e gelado qu

edida, livrar a cidade da peste: “Neste ar purificado, a peste, em três semanas

e por quedas sucessivas, pareceu esgotar-se nos cadáveres menos e menos numerosos

que alinhava.”1412

O que se sabe é que a peste recua – “talvez se retirasse depois de alcançar

todos os objetivos”1413 - deixando nos que ficaram a impressão amarga de um fim de

partida que se desenrou à revelia dos homens. Sem nexo, nem vencedor: “A bem da

verdade, era difícil dizer-s

ecer que a doença partira como tinha chegado.”1414A pequenez dos efo

os frente a magnitude da doença é constatada laconicamente: “De algum modo,

concluíra seu trabalho.”1415

Na narrativa d´A Peste, a recusa do antropocentrismo é, portanto, radical.

A fulminação de Tarrou, quando a “lógica” indicava o esgotamento do mal,

aniquila de vez a pretensão de “descer o céu à terra”, de angelização da vida, de

ordem e de controle completo da condição humana, atrelada, a bem da verdade, à

determinações que muito a ultrapassam: “Némésis – deusa da medida. Todos àqueles

que ultrapassarem a medida serão implacavelmente destruidos.”1416Talvez não seja

excessivo sublinhar o intertexto absolutamente significativo com O Homem

Revoltado: “todo pensamento, toda ação que ultrapassa um certo ponto nega a si

mesma.”1417

Se pensamos na analogia renascentista entre macrocosmo e microcosmo,

grande e pequeno infinitos da ótica do século XVII, a ação do “micróbio”1418 é

reflexo - ou analogia - da inscrição cósmica da condição humana.

1411 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1440. 1412 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1440. 1413 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1440. 1414 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1440-1.

p.1441.

ca renascentista e clássica passa por uma

1415 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. 1416 CAMUS, A. Cahier V, juin 1947. OC, II.p.1082. 1417 CAMUS, A. L´Homme Revolté- Mésure et Démesure.p. 697. 1418 Obviamente a idéia de um microorganismo intruso passa despercebida pelos renascentistas e clássicos. Entretanto, a disfunção do corpo na óticompreensão de sua interatividade com os elementos.

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O sofrimento do “santo” Tarrou encarna, corporifica e desvela a “natureza

comum dos homens”1419, a saber, a fragilidade – o limite.

Uma ínfima parcela de microcosmo, e toda a magnitude das determinações

avassal

inal do recito, à

“compr

adoras e irretorquíveis do universo se intromete e quebra esta casca frágil que

se chama vida humana.

As pretensões do antropocentrismo são, afinal, dissolvidas, pelo olhar detido

no sofrimento e na indignidade provocada pela doença.

Notemos que a “lente” sobre o sofrimento humano aumenta progressivamente.

Da aniquilação do “distante” - dos números abstratos dos cadáveres enfileirados - ao

sofrimento da criança, ainda sem nome, “evoluímos”, no f

eensão”, isto é, ao sofrimento conjunto, à procura do conhecimento afetivo da

alteridade, através do participação no padecimento do “próximo”.

A compaixão de Rieux com Tarrou simboliza a “ética da simpatia”1420,

teorizada pelo último. Sofrer conjuntamente é, afinal, procurar compreender.1421

Em breve O Homem Revoltado se referirá à “fière compassion” que conduz

do moralismo individual do Mito de Sísifo ao “nous sommes” da revolta. Compaixão

orgulhosa que nutre a indignação do homem lúcido que se mantém aceso na

solidariedade dos que partilham a mesma jangada de medusa1422.

Compreeder afetivamente - sublinhemos, única maneira de conhecimento

efetivo - o “duro combate”1423 que se realiza, antes de tudo, pela vida, nas entranhas

do cosmo do qual somos visceralmente constituídos e constituintes – em simbiose.

É este aprendizado da simpatia, que vemos se produzir: Rieux adianta o

primeiro passo em busca da compreensão afetiva, quebrando os protocolos inflexíveis

que implementara com a ajuda do amigo doente. O médico, que já quebrara o cerco à

cidade para brahamanicamente se revovar num banho de mar regenerador, pela

segunda vez, contradiz o formalismo kantiano e se recusa a isolar o amigo como

apregoou e impôs aos demais habitantes de Orã durante meses. Como o general

a-se de o máximo de homens possível.” CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.

1419 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697. 1420 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427. 1421 “tratp.2000. 1422 A referência à Delacroix não é vã: “...o artista está embarcado. Embarcado aqui me parece mais justo do que engajado. Não se trata, em efeito, para o artista de uma engajamento voluntário, mas de um serviço militar obrigatório(...)Nós estamos em pleno mar. Todo artista hoje está embarcado na galera de seu tempo.O artista, como os outros, por sua vez, deve remar, sem morrer, se ele pode, isto

écembre 1957.p.1079.) é, continuar a viver e a criar.”(CAMUS, A. Conférence du 14 d1423 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1453.

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Epaminondas1424, em meio a um combate feroz ele curva seus imperativos

profissionais aos deveres da amizade: “Tarrou sorriu com esforço: - É a primeira vez

que se emprega o soro e não se ordena logo o isolamento.”1425

Se multiplica a analogia irresistível entre o engajamento histórico contra o

totalitarismo e a luta metafísica contra a tirania de uma existência contigente:

[Tarrou]“Eu não quero morrer e lutarei(...)Para tornar-se um santo, é necessário

viver.”1426 “A noite começava para ele na luta e Rieux sabia que este duro combate

conm o anjo da peste devia durar até o alvorecer.”1427“Tarrou lutava,

imóvel(...)combatendo somente com toda espessura e com todo silêncio.”1428 “Tarrou

olhou de novo o amigo, percebeu no rosto dele um gesto de encorajamento, mas o

sorriso que esboçou logo se perdeu nos maxilare contraídos, nos lábios cimentados

por uma espuma alvacenta. Na face dura os olhos ainda brilhavam com toda a força

da coragem.”1429

Trata-se da dupla inscrição, metafísica e histórica, conferida por Camus, ao

engame

al, as crianças morrerão sempre

injusta

nto em face do absurdo, da contingência e da miséria da condição humana.

E podemos, pela expiação de Tarrou, avaliar o quão pessimista é a ótica

camusiana sobre a ordem do mundo, visto que os esforços humanos para romper com

a engrenagem da morte se revalam inúteis, vãos: signo de uma concepção de

engajamento ético-político-filosófico que considera “limitado” todo empreendimento

histórico fundado no combate à injustiça constitutiva da existência: “[o homem] deve

reparar na criação o que puder ser. Afin

mente mesmo na sociedade perfeita.”1430

Se é limitada e frágil a vida humana, que dirá dos empreendimentos que visam

minimizar ou curar àquilo que mina e aniquila? “Esta forma humana que havia sido

tão próxima, transpassado por golpes de lança, queimado por mal sobre-humano,

torcido por todos os ventos raivosos do céu, mergulhava ante seus olhos nas águas da

peste, e ele não podia evitar o naufrágio. Mais uma vez devia ficar à margem, as

o útil e do honesto. 1424 Conferir em Montaigne. MONTAIGNE, M. Ensaios III – D

1425 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1452. 1426 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1453. 1427 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1453. 1428 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1454. 1429 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1456. 1430 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.706.

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mãos vazias e o coração oprimido, sem armas e sem recurso contra esse

desastre.”1431

“No fim foram as lágrimas de impotência que não deixaram Rieux ver Tarrou

virar-se de chofre contra à parede e expirar sem queixa, como se nele hovesse

partido uma corda essencial. Depois, a noite, não de luta, mas de silêncio.”1432

Reiteremos , visto a importância constitutiva deste tema para o pensamento de

Camus: O “fim” de Tarrou revela, “a medida das coisas e do homem”1433 - a

“natureza comum dos homens”1434 - isto é, o limite, a fragilidade: “Sempre a mesma

pausa, o mesmo intervalo solene, o mesmo sossego depois dos combates, o silêncio

da derrota.”1435

Mas se o combate contra a contingência da condição humana n´A Peste é

vão1436 do ponto de vista da eficácia histórica, malogro inscrito numa situação

metafísica, se é incapaz de sanar este dilaceramento constitutivo, ele é, entretanto,

altivo e

uta,

impera

cotiano do artista e no embelezamento mundo de que ele é capaz - no dia-a-dia do

nobre em face da absurdidade. A lembrança de Tarrou em seu leito - na face

dura os olhos ainda brilhavam com toda a força da coragem”1437- vigora ainda.

Sobretudo, o engajamento dos voluntários-resistentes da peste – possivelmente

inútil do ponto de vista de sua real eficácia1438 foi, entretanto, passada à l

tivo no que diz respeito à dignificação coletiva, e, principalmente, na

construção daqueles que se aliaram em seu desafio à absurdidade e ao fatalismo.

A nobreza altiva não obstante vã da luta contra a absurdidade está na re-

criação dos próprios combatentes e do real à sua volta – na recusa das pestes da

indiferença e do conformismo1439. Assim como o valor do pensamento interrogante

está na re-criação do pensador e do pensamento, o valor da arte na recriação do

1431 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1457. 1432 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1457. 1433 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697. 1434 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697. 1435 “C´était partout la meme pause, le meme intervalle solennel, toujpurs le meme apaisement qui suivait les combats, c´était le silence de la défaite.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1457.) 1436 É peciso não cair na tentação do obscurantismo e notar que o soro de Castel, se bem que com a ajuda do inverno ensolarado do Mediterrâneo, encontra sucesso “relativo”, embora ainda permaneça predominantemente inócuo, como no caso de Tarrou. 1437 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1456. 1438 Seria impossível não notar insistir na analogia entre os “voluntários” e os Resistentes: notar que a “nulidade” estratégico -militar da Resistência Francesa em relação às forças que efetivamente comandavam os confrontos da segunda guerra é bastante evidenciada. 1439 “O problema mais sério que se põe aos espíritos contemporâneos: o conformismo.”(CAMUS, A. CahierV.p.1088.)

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combatente revoltado com o real, que se pauta por uma conduta interrogante, modesta

, não vale a prêsa, mas a caça1440: a caça obstinada, mesmo que infrutífera, da justiça

que é s

ntão no único pensamento fiel a essas fontes, o

pensam

vezes, alegria sem igual no auge da orgulhosa compaixão(fière

compa

eu clamor original1441.

Neste sentido, para Camus, o pensamento e a ação são permutáveis na nobreza

de sua obstinação por vezes vazia. Agir, “ insistir, isto é pensar”1442: “Se o limite

descoberto pela revolta transfigura tudo; se todo pensamento, toda a ação que

ultrapassa um certo ponto nega a si própria, há, efetivamente, uma medida das coisas

e do homem(...)se quiser continuar vivo, ele deve portanto retemperar-se nas fontes

da revolta, inspirando-se e

ento dos limites.”1443

Outra experiência é absolutamente significativa na construção ética dos

engajados d´A Peste: o aprendizado de uma solidariedade humana constitutiva,

metafísica visto que ela nasce da perplexidade original em relação às determinações

da absurdidade, sejam elas cósmicas ou históricas, a que Camus chama de

compaixão(compassion)1444: “...sociedade e disciplina perdem seu sentido se elas

negam o « nós somos». Sozinho, em certo sentido, eu suporto a dignidade comum que

não posso depreciar nem mim, nem nos outros. Este individualismo não é gozo, ele é

luta, sempre, e, às

ssion).”1445

Assim, da lucidez em relação aos limites da condição humana - de fragilidade;

da indignação em relação a injustiça da finitude; da recusa das ilusões religiosas; da

negação das esperanças e das promessas de futuro e de eternidade; brota uma

1440“Eles não sabem que é só a caça e não a presa que procuram”(PASCAL, B. Pensamentos. Br.139-L.136) “O povo tem opiniões muito sadias. Por exemplo. 1)Escolher(...) a caça em lugar da presa: os

próximo capítulo, Origens da Revolta, tratará detidamente desta questão. É preciso

MUS, A. La Peste. Théâtre, Récits,

semi-sábios zombam e triunfam, mostrando com isso a loucura do mundo; mas, por uma razão que não penetram, o povo tem razão.”(PASCAL, B. Pensamentos. Br.324-L.110) 1441 Nesta tese, omanter-se fiel às “origens da revolta”, ao pensamento dos limites, nos empreendimentos históricos-revolucionários. 1442 “...Je n´ai pás cesse d´insister, c´est-à-dire d´y penser.”(CANouvelles. p.1424.) 1443 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697. 1444“O fim do movimento absurdo , revoltado, etc., o fim do mundo contemporâneo por conseguinte, é a compaixão no sentido primeiro, isto é, para terminar o amor e a poesia.” O restante do fragmento dos Cadernos de 1947, demonstra o rigorismo moraliste do autor –consigo mesmo - rigorismo que se exprimirá, mais tarde, na voz de Clemence de A Queda: “Mas isto exige uma inocência que não tenho mais. Tudo que posso fazer é reconhecer corretamente o caminho que conduz a ela e deixar vir o tempo dos inocentes. Vê-lo, ao menos, antes de morrer.” (CAMUS, A. Cahier V.p.1084.) 1445 CAMUS, A. L´Homme Revolté. p.700.

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transcendência horizontal1446 simbolizada por esta re-descoberta generalizada da

importância de cada um dos dos outros homens, da sobrevivência de cada

corpo1447(sem o qual o exílio para muitos seria definitivo) dos imperativos do amor ,

da amizade e do companherismo, em suma, da beleza pungente da vida cotidiana. O

aperto de mãos - orgulhosa compaixão – entre Rieux e Paneloux sela este pacto

silencioso entre os homens que, mesmo díspares, estão irmanados em face de um

destino que os contradiz: “1448...Rieux segurava a mão de Paneloux. - O senhor vê –

disse evitando os olhos dele. – Hoje nem Deus pode separar-nos.”1449

Mas são os abraços intermináveis, os copiosos estreitamentos entre as

pessoas, a dansa coletiva da cidade liberada, que imaginamos como se Orã fosse

subitamente pintada por Brughel - torvelinho de desafio às forças subterrâneas – os

símbolos mais contundentes desta transcendência horizontal que é próprio da

metafisica da solidariedade em Camus: “Na plataforma da estação, onde

recomeçavam a vida, sentiam ainda comunicabilidade na troca de olhares e sorrisos.

Mas, ao ver a fumaça do trem, apagava-se neles rapidamente a ensação de exílio, ao

cho que de uma alegria perturbadora. O trem parou, as separações intermináveis,

principiadas às vezes naquela plataforma, ali findaram num momento, quando braços

apertaram com exultante avareza corpos de que se tinha perdido a forma viva. Antes

que Rambert visse a forma correr para ele, já a sentia junto ao peito. E apertando-a

com força, comprimindo a cabeça que apenas mostrava os cabelos familiares, deixou

correr as lágrimas, sem saber se eram efeitos da atual felicidade ou de uma dor

longamente reprimida. As lágrimas não lhe permitiam ver se o rosto que se

aconchegava ao seu ombro era aquele imaginado tantas vezes ou de uma estranha.

Mais tarde saberia se a sua desconfiança era verdadeira. Ali queria ser igual aos

outros(...) Outros, às portas das casas, surgiam na luz fraca olhando –se com enleio

e fortemente abraçados(...) Agarrados(...)Dançavam em todas as

1446Boiando de costas no mar, Rieux encarna a busca da “transcendência horizontal” num reino – da

re-encontro generalizado da familiaridade “nos outros” seres (que também

os, de Ni victimes ni bourreaux é bastante

juntos para suportá-los e lles. p.1398.)

natureza – anterior à história. Este movimento de “transcendência horizontal”- recusa do exílio da história - se multiplica nessenão pertencem à história.) 1447 O interterxto ético de A Peste com o artigo Salvar os corpeloqüente aos olhos de um leitor experimentado de Camus. 1448 “Odeio a morte e o mal, o senhor sabe. E queira ou não queira, estamoscombatê-los...” (CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouve1449 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1398

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praças.”(...)“Sabiam agora que uma coisa podemos desejar sempre e obter às vezes:

a ternura humana.”1450

muros da cidade enferma. Estava nas urzes

cheiroz

ia e de sua

ignorân

de Tarrou: “O que é natural é o micróbio. O resto,

saúde,

*

É preciso ainda insistir, isto é, pensar, em quem seria afinal o personagem

porta-voz de Camus.

Se, como vimos detidamente, Tarrou enuncia alguns dos leitmotiv capitais de

Camus, Rieux é, seguramente, quem encarna melhor, ainda que irrefletidamente –

talvez lhe falte a lucidez de Sísifo - a forma final de uma “desmedida na

medida”1451que Camus procura estabelecer desde a conclusão do Mito de Sísifo,

passando pelas Cartas a um amigo alemão, e pelos editoriais em Combat, buscando

alcançar um tênue equilíbrio ético entre a justa revolta e a ação lúcida contra a ordem

cósmica e histórica da finitude. Rieux, além de advinhar que a felicidade, “que a

verdadeira pátria, estava além dos

as das colinas, no mar, nas terras livres e na força do amor”1452 - é, afinal,

poupado destes tempos devoradores por seu exercício cotidiano de modést

cia calculada: “- Não sei nada, realmente.”1453 “Rieux marchait

toujours(...)Rieux ne savait rien.”1454

Mas a morte da mulher de Rieux, revelada através de um telegrama – a cidade

aberta - revela a desatenção do médico à vigilância extenuante da medida.

À lembrança, a advertência

integridade, limpeza, o que você quiser, tudo é consequência da vontade, de

uma vontade que não deve parar nunca. O homem honesto(hônnete homme), aquele

que não infecta quase ninguém, é o que menos se distrai. É preciso vontade e tensão

para não se distrair nunca!”1455

Ao embarcar na urgência dos enfrentamentos cotidianos e esquecer da esposa

gravemente doente em alguma parte do recito – Rieux e o leitor1456 – comungam na

1450 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1463-1467

ste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1324.

avessos à intromissão biográfica na interpretação Argélia enquanto compartilha a luta de

1451 CAMUS, A. Cahier II.p.849 “Trouver une démesure dans la mesure.” 1452 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1467 1453 “E o senhor, que é que o senhor sabe?” CAMUS, A. La Pe1454 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1466. 1455 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426. 1456 E Camus. Embora sejamos completamentefilosófica é preciso que se diga que Camus deixa Francine naseu tempo. (TODD, O. Albert Camus – une vie.)

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distração da indiferença. A condenação à dor perpétua é previsível: “o bacilo da peste

nunca morre nem desaparece...”1457

“Némésis – deusa da medida. Todos àqueles que ultrapassarem a medida

serão implacavelmente destruídos.”1458

Rieux afinal, também não corresponde sozinho à voz filosófica que busca o

equilíbrio entre medida e desmedida.

Como pudemos notar através de um aforisma do pós-guerra, nem mesmo o

próprio Camus, rigorista moraliste do século XX, julga corresponder à

“intransigência extenuante da medida”1459: “O fim do movimento absurdo ,

revoltado, etc., o fim do mundo contemporâneo por conseguinte, é a compaixão no

sentido primeiro, isto é, para terminar o amor e a poesia.Mas isto exige uma

inocência que eu não tenho mais. Tudo que posso fazer é reconhecer corretamente

o caminho que conduz a ela e deixar vir o tempo dos inocentes. Vê-lo, ao menos,

antes de morrer.”1460

“Quem mantém o meio-termo que apareça e prove.”1461

Nem Tarrou, nem Rieux. É a dimensão socrática que Camus atribui a própria

filosofia que se evidencia aqui: a ética da revolta esboçada em A Peste se encontra no

diálogo e não em cada um de seus personagens – nem mesmo na somatória deles: o

legítimo engajamento de Sísifo -“uma interminável tensão e a serenidade

crispada”1462 - conjugação entre a lúcida indignação e a obstinação meticulosa, se dá

na própria busca1463 do difícil equilíbrio ético, procura de um meio-termo tenso –

percurso que conduz pelos extremos - entre Tarrou (que pensa tudo saber1464) e Rieux

(que julga nada saber): “Existem portanto para o homem uma ação e um

pensamento possíveis no nível médio que é o seu.”1465

*

1457 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1474. 1458 CAMUS, A. Cahier V, juin 1947. OC, II.p.1082. 1459 CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme. p.705. 1460 CAMUS, A. Cahier V. OC, II.p.1084 1461 (Br.82-L.44)“Qui tient le juste milieu qu´il paraisse et qu´il prouve.” (Imaginação. Papéis Classificados. Vanidade II) 1462 CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme. p.705. 1463 “A medida, nasce da revolta, só pode ser vivida pela revolta. Ela é um conflito constante, perpetuamente despertado e dominado pela inteligência. Ela não vence nem a impossbilidade , nem o abismo. Ela se equilibra com eles.” (CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme. p.705.) 1464 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1325 1465 CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme. p.705.

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Cap.7)O pensamento dos limites: uma arte de viver para um tempo de

catástrofe1466

Suè

ossíveis no

nível m

“...forjar uma arte de viver para um

tempo de catástrofe...”(CAMUS, A. Discours de de -10 décembre)

“Existem portanto para o homem uma ação e um pensamento p

édio(niveau moyen)que é o seu”1467 em face das pestes contemporâneas, a

saber, do conformismo e do silêncio1468, da vontade de potência1469, do leitmotiv da

miséria, da violência e da indiferença 1470 - “a servidão1471, a injustiça, a mentira são

as pestes....Estas pestes são hoje a matéria mesma de nossa história.”1472

Relembremos algumas das definições de história de Camus: “miséria da

história”1473, “circo da história”1474, “movimento destruidor da história”1475,

“história demente”1476, “mundo infernal”1477, “mundo ressecado pelo ódio”1478,

1466 Procurando enfatizar um intertexto evidente entre as conclusões éticas de A Peste com as reflexões filosóficas de O Homem Revoltado, anteciparemos neste capítulo o âmago deste ensaio filosófico de Camus. Este atalho será absolutamente necessário visto que não foi possível tratar, ainda neste trabalho, os capítulos finais de O Homem Revoltado, a partir do capítulo A Revolta Histórica. O objetivo de analisar, pois, a maturidade da filosofia de Camus, incluindo aí uma investigação cautelosa

uerras mundias do século XX, será outorado.

Au-delà du nihilisme. p.705.

fere aqui. Notar CHARBIT, D. “L´Homme s –Albert

bre 1946. (E, 350)(OC, p.455.) 1957.p.1081. 1957.p.1079.

ais. p.400.

do itinerário de Camus pela história da revolta, dos gregos às gconcretizado somente no trabalho de pós-d1467 CAMUS, A. L´Homme Revolté. 1468 Problematizados em Le Malentendu. 1469 Problematizados em Calígula. 1470 Problematizados em O Estrangeiro e em A Peste. 1471 É também da servidão intelectual a que Camus se reRévolté: grandeur et servitude de la fonction intellectuelle in L´Homme Revolté 50 ans aprèCamus 19. Lettres Modernes. Minard. Paris-Caen, 2000. 1472 CAMUS, A . Camus à Combat, p.642. Combat 30 novem1473 CAMUS, A. Conférence du 14 décembre1474 CAMUS, A. Conférence du 14 décembre1475 CAMUS, A. Discours de Suède.p.1074. 1476 CAMUS, A. Discours de Suède.p.1072. 1477 CAMUS, A. Ni Victimes ni bourreaux. Essais. p. 334 1478 CAMUS, A . Le témoin de la liberté. Ess

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“mundo do assassinato”1479, “nódulo”1480, “inextrincável espessura”1481, “reino da

morte.”1482

Neste sentido, embora simbolize de maneira ampla, como vimos, a dupla

inscrição metafísica e histórica do mal e da condição humana, a engrenagem de

miséria da peste é sem dúvida metáfora da própria “galera”1483 ou da prisão da

história”1484para Camus: “É tão razoável representar uma espécie de aprisionamento

por outra como representar qualquer coisa que existe por algo que não existe.”1485

Novamente, a alusão à Jangada de Medusa de Delacroix1486nos parece útil na

intenção de compor uma imagem fiel do engajamento contra a história de Camus

pois, seja do ponto de vista do pensamento, da ação ou da criação, o homem se

mostra, como na pintura do século XIX, visceralmente solidário à sorte de seus

semelhantes em face de um tempo tempestuoso e aniquilador: “...o artista está

stamos em pleno mar. Todo artista hoje está embarcado na

embarcado. Embarcado aqui me parece mais justo do que engajado. Não se trata, em

efeito, para o artista de uma engajamento voluntário, mas de um serviço militar

obrigatório(...)Nós e

galera de seu tempo.O artista, como os outros, por sua vez, deve remar, sem morrer,

se ele pode, isto é, continuar a viver e a criar.”1487

O “pensamento dos limites” 1488 de Camus procura, assim, “forjar uma arte de

viver para um tempo de catástrofe(...)contra o instinto de morte em operação na

nossa história.”1489

Camus opõe às concepções totalizantes de história e de razão, um paradigma

de racionalidade e da ação fundamentados na modéstia e na interrogação perene.

“Existem portanto para o homem uma ação e um pensamento possíveis no

nível médio que é o seu.”1490

1479 CAMUS, A. Ni Victimes ni bourreaux.Essais. p. 351. 1480 CAMUS, A. Réponde à E. Astier.363.

sais.p.405.

mbre 1957.p.1079.

La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. Epígrafe. Daniel Defoe em Journal de l´année

uvre, na seção de pintura francesa de grandes formatos,

rt)...”CAMUS, A. Discours de Suède -10 décembre .p.1073 “

1481 CAMUS, A . Le témoin de la liberté. Es1482 CAMUS, A. Essais. Citado por Michel Melançon em Albert Camus: analyse de sa pensée. 1483 CAMUS, A. Conférence du 14 déce1484 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p. 489. 1485 CAMUS, A. de la peste.(R.Quilliot in Essais. 1936) 1486 O quadro se encontra em Paris, no Loséculo XIX. 1487 CAMUS, A. Conférence du 14 décembre 1957.p.1079. 1488 CAMUS, A. L´Homme Revolté. p. 693. 1489 “...para nascer uma segunda vez, e lutar em seguida, com o rosto erguido(visage découve

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O paradigma camusiano, revisita a presunção logocêntrica cultivada desde o

século XVII, desmistificando sua placidez cartesiano-galilaica-newtoniana à luz da

incerteza cosmologicamente constitutiva revelada pelo olhar científico pós-

relatividade. Para Camus, é o paradigma caduco de razão absoluta, neutra e total,

constituída pelo Grande Racionalismo do século XVII, que se metamorfoseia e

cristaliza nas concepções totalizantes, finalistas e, afinal, genocidas da história do

século XX: “Atualmente toda reflexão, niilista ou positivista, às vezes sem sabê-lo, dá

origem a essa medida das coisas que a própria ciência confirma. Os quanta, a

relatividade até o momento, as relações de incerteza definem um mundo que só tem

realidade definível na escala das grandezas médias que é a nossa. As ideologias que

orientam o nosso mundo nasceram no tempo das grandezas científicas absolutas.

Nossos conhecimentos reais só autorizam, ao contrário, um pensamento de

grandezas relativas.”1491

“O pensamento aproximativo é o único gerador de real”1492: Camus enfatiza

a necessidade de constituição de um paradigma interrogativo e modesto para a

racionalidade e para a ação que revigora, quer queira que não, um combate clássico

contra a razão dogmática: “Descartes: inútil e incerto”1493 – (...)Eis o nosso estado

verdadeiro que nos impede de saber certamente e de ignorar absolutamente.

Vagamos num meio-termo (milieu) vasto sempre incertos e flutuantes.” 1494 “É sair da 5

ma desmedida na medida

se trata de um ponto médio geométrico-

humanidade deixar o meio(milieu).”149

Já tivemos ocasião de mencionar que esta procura do juste milieu em Pascal,

assim como na busca de u de Camus, “o erro consiste numa

exclusão”1496, o que eqüivale a dizer que não

moral procurado pelos nossos filósofos ante as questões de suas épocas, mas da busca

1490 Nos permitimos reiterar pela terceira vez a frase de Camus visto a importância que concedemos a ela como elemento unificador de sua reflexão.CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme. p.705. 1491 CAMUS, A. L´Homme Revolté. pp.697-8 1492 CAMUS, A. L´Homme Revolté. pp.698. 1493 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.78-L.887) “É preciso dizer, grosso modo: isto se faz por figura e movimento, porque isso é verdadeiro; mas dizer quais e montar a máquina, é ridículo, pois é inútil, incerto e penoso....” 1494 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.72-L.199) “ Bornés en toute genre c´est état qui tient le mileu entre deux extremes se trouve em toutes nous puissances.” 1495 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.378-L.518) 1496 Recordemos que Camus cita Pascal numa entrevista significativa para a Revue du Caire em 1948. CAMUS, A. Essais. Trois Interviews. p.379. Há também uma menção significativa nos cadernos de 1942: “Pascal: o erro vem de uma exclusão.”(CAMUS,A. Cahier II, 1942. OC II. p.970)

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de um difícil e extenuante eqüilíbrio ético através dos extremos1497 : “Encontrar

uma desmedida na medida.”1498 “A natureza pôs-nos de tal modo no meio (milieu)

que, se trocamos um lado da balança trocamos também o outro.”1499 “Nem vítima,

nem carrasco”, diz Camus numa correpondência a Jean Grenier: “Em ambos os casos

um equilíbrio se romperá e a catástrofe retomará suas chances.”1500 E ainda, em O

Homem Revoltado: “A medida, nasce da revolta, só pode ser vivida pela revolta. Ela

é um conflito constante, perpetuamente despertado e dominado pela inteligência. Ela

não vence nem a impossbilidade , nem o abismo. Ela se equilibra com eles.”1501

É o próprio Camus, recordemos, quem cita o fragmento do tição de fogo de

Pascal1502 - aforisma que concentra em si uma hermenêutica do reconhecimento da

alteridade – como epígrafe das absolutamente fundamentais Lettres à un ami

allemand: “Não se mostra bem sua grandeza estando numa extremidade, mas tocando

as duas ao mesmo tempo.”1503

E ajuntemos: este paradigma de racionalidade pascaliano-camusiano do

pensamento de “milieu”(Pascal) ou de “niveau moyen”(Camus), se converte numa

verdadeira ética da contingência e do engajamento nos dois autores; “Limitados em

tudo, esse meio-termo (milieu) entre os dois extremos encontra-se em todas as nossas

1497 “...aquele que aborda seriamente o problema moral deve ir aos extremos. Que sejamos por (Pascal) ou contra (Nietzsche), é suficiente que o sejamos seriamente, e vemos que o problema moral não é senão sangue, loucura e gritos.”(CAMUS,A. Cahier II, 1943. OC Ifragmento a referência explícita ao reversement continuel du pour au co

I. p.1016) Notemos neste ntre, método pascaliano de

reconhecsoit pour

dedica às coisas que não são essenciais. E todas essas opiniões são destruídas. Mostramos, em seguida, que todas essas opiniões são muito sadias e que, destrate, sendo todas as vaidades muito bem fundadas, o povo não é tão vão quanto se diz. E, assim, destruímos a opinião que destruía a do povo. Mas é preciso destruir, agora, esta última proposição, e mostrar que continua sendo verdadeiro que o povo é vão, embora suas opiniões sejam sadias, porque não sente a verdade delas, onde esta verdade

.93) “...Assim vão-se sucedendo as opiniões do pró ao contra, segundo a teriorização da metodologia de pensamento pascaliano

L, B. Pensamentos. (Br.70-L.519) ance 1932-1960. Paris. Gallimard, 1981. Recordemos uma

assagem dos Cadernos: “O esforço que fiz para estabelecer meu próprio equilíbrio

imento da alteridade pela multiplicação de postos de vista possíveis sobre a realidade: “qu´on (Pascal)ou contre(Nietzsche).”(p.1016) “- Razão dos Efeitos – Passagem contínua do pró ao

contra(renversemet continuel du pour ou contre). Mostramos que o homem é vão pela estima que

existe e porque...”(Br.328-Lluz que se tem.”(Br.337-L.90)Vemos que a inpor Camus é profunda. Notaremos adiante, principalmente na análise camusiana de Nietzsche, sua aplicação vigorar também na leitura de textos filosóficos. 1498 CAMUS A. Cahier II. 1499 PASCA1500 CAMUS, A. Jean Grenier, Correspondp não é

em a busca de equilíbrio camusiano .p.iv.

entos (Br. 353. L-681))

inteiramente vão. O que eu disse ou encontrei, pode servir, deve servir a outros.”(Camus, A. Carnets III. p.215.) 1501 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p. 704 1502 Como bem lembrou David Walker no colóquio americano que tpor tema: WALKER, D. Albert Camus: les extremes et l´éqüilibre1503 CAMUS, A. Lettres à um ami allemand.p.217 (PASCAL, B. Pensam

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forças.”1504 “Se o limite descoberto pela revolta transfigura tudo; se todo

pensamento, toda a ação que ultrapassa um certo ponto nega a si própria, há,

efetivamente, uma medida das coisas e do homem(...)se quiser continuar vivo, ele

deve portanto retemperar-se nas fontes da revolta, inspirando-se então no único

pensamento fiel a essas fontes, o pensamento dos limites.”1505

Em Camus, assim como em Pascal, a consciência da fragilidade, do

“limite”1506 como “natureza comum”1507 dos homens, torna-se “o primeiro

valor”1508norteador: “A grandeza do homem é grande na medida em que ele se

conhece miserável.”1509

Para Camus, a traição dos movimentos históricos revolucionários

contemporâneos à premissa de luta contra a injustiça pela qual originalmente se

pautavam, se dá pelo esquecimento deste valor primitivo que reúne os homens numa

solidariedade metafísica - o da frágil vida humana singular em contraponto

constitutivo à ordem cósmica da finitude: “Os desvios revolucionários explicam-se,

em primeiro lugar pela ignorância ou pelo desconhecimento sistemático desse limite

que parece inseparável da natureza humana e que a revolta, justamente, revela.”1510

Segundo Camus, o valor do limite e da fragilidade da condição humana

precisa ser anteposto entre o homem singular e uma história trituradora que aniquila

tanto pelas garras do conformismo, da indiferença e da escravidão legitimadas pela

“desumana desmedida da divisão do trabalho”1511, quanto pelo próprio ímpeto

igualmente desmedido de atingir uma alternativa “pré-concebida” para a sociedade

futura: “Ou esse valor de limite será realizado, ou, de toda forma, a desmedida

contemporânea só encontrará sua regra e a sua paz na destruição universal.”1512

Para Camus nas ideologias que fundamentam, seja o progresso pela produção

e pelo acúmulo, seja o advento de um “idílio universal”, vigora a desmesurada

presunção do conhecimento e da ação em vista da totalidade: “A totalidade, com

1504 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.72-L.199) 1505 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697. 1506 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.699.

émesure. p.699.

procurar a sua t Démesure. p.698.

1507 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697. 1508 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et D1509 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.397-L.114) 1510 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697. 1511 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.698. 1512 “...Este limite era simbolizado por Nêmesis, deusa da medida, fatal aos desmedidos. Uma reflexão que quisesse levar em conta as contradições contemporâneas da revolta deveria inspiração nesta deusa.”CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure e

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efeito, não é mais que o antigo sonho de unidade comum aos crentes e aos revoltados,

mas projetados horizontalmente sobre uma terra privada de Deus.”1513

As concepções finalistas da história por ex., produtoras da convicção de um

Reino dos fins vindouro, constituem segundo Camus, o messianismo secularizado de

século XX.

Ora, recordemos a Situação do escritor em 1947, segundo o “incerto” J-

P.Sarte: “...é preciso historializar a boa vontade do leitor, ou seja provocar, se

possível, pela organização formal da nossa obra, a sua intenção de tratar o

homem(...) Assim o levaremos pela mão até fazê-los perceber que o que ele de fato

quer é abolir a exploração do homem pelo homem, e que a Cidade dos Fins, que ele

baseou por completo na intuição estética, não passa de um ideal de que só nos

aproximamos ao cabo de uma longa evolução histórica. Em outros termos, devemos

transformar a sua boa vontade formal numa vontade concreta e material de mudar

este mundo, através de determinados meios, a fim de contribuir para o advento futuro

da sociedade concreta dos fins(...)É preciso, portanto, ensinar simultaneamente a uns

que o reino dos fins não pode realizar-se sem a Revolução, e aos outros que a

Revolução só é concebível se ela preparar o reino dos fins.”1514

rsal.”

engajamento sartreano, que pretende “ganhar”1518 e “levar pela mão”

Camus comenta, potencializando sua crítica às esperanças do Grande

Racionalismo totalizante ressurgidas em concepções messiânicas tais com a de seu

amigo1515filósofo, que aliás, constituem a mainstream da inteligentsia da época:

“Sartre: ou a nostalgia do idílio unive 1516

O autor argelino adverte sobre a engrenagem da razão que legitima a supressão

da liberdade presente, em troca de uma esperança trans-histórica: “...a liberdade foi

também incorporada ao movimento da história(...)Identificada com o dinamismo da

história, ela só poderá desfrutar a si mesma quando a história se detiver, na Cidade

universal.”1517

De maneira bastante significativa, ele sintetiza sua ótica sobre o “tipo” de

1519 o coro dos

para o advento descontentes “através de determinados meios, a fim de contribuir

1513 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.636. 1514 SARTRE, J-P. O que é literatura? –Situação do escritor em 1947.pp.202-203.

em 1947.pp.202-203.

1515 A ruptura data de 1951. 1516 CAMUS, A. OC, II. Cahier V, 1947. 1517 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.636. 1518 SARTRE, J-P. O que é literatura? –Situação do escritor em 1947.p.202. 1519 SARTRE, J-P. O que é literatura? –Situação do escritor

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futuro da sociedade concreta dos fins 1520, notando que, em contato com a

realidade, ideais filosóficos ultra-humanistas abstratos e pré-estabelecidos como estes,

constituem promessas que se convertem, afinal, em seu contrário, nas mãos dos

revolucionários profissionais dominados pela lógica finalista militarizada da eficácia,

geralmente ensandecidos pelo poder e pela idéia: “Os indivíduos nos regimes

totalitários não são livres, embora o homem coletivo esteja libertado. No fim, quando

o Império emancipar a espécie inteira, a liberdade reinará sobre rebanhos de

escravos, que pelo menos estarão livres em relação a Deus e, em geral, a toda

transcendência.”1521 Hábil no aforisma, Camus diz adiante: “a revolução sem outros

limites que a eficácia histórica significa a servidão ilimitada.”1522

Os idílios da filosofia política, alerta Camus, acabam degenerando em sangue

bem longe dos gabinetes aonde foram concebidos: “A filosofia das luzes levou à

Europa do toque de recolher. Pela lógica da história e da doutrina, a Cidade

Universal, que devia realizar-se na história expontânea dos humilhados, foi pouco a

pouco recoberta pelo Império, imposto pelos meios da potência(moyens de la

puissance).”1523 A “profecia revolucionária” de Marx, cultivada na idéia de

“progresso”e no “culto à técnica e à produção”1524 denota a potência dilacerante da

filosofia visto que produz e legitima o terrorismo de estado, concebido como “terror

racional”1525 do ponto de vista da sociedade dos fins. Camus transcreve a resposta de

Engels, segundo ele, “com a aprovação de Marx”, ao Apelo aos eslavos de Bakhunin

notando com isso o furor inconseqüente da função intelectual ao subordinar a história

à idéia, prenúncio do malogro da profecia marxista: “A próxima guerra mundial fará

com que desapareçam da superfície da terra não apenas classes e dinastias

reacionárias, mas também povos inteiros reacionários. Isso também faz parte do

progresso.”1526

De outro lado, Camus se atêm também à ambientação intelectual formadora do

niilismo, que entende prover e alimentar o terrorismo de estado, na versão irracional

1520 SARTRE, J-P. O que é literatura? –Situação do escritor em 1947.p.202. É preciso que se diga,

s Fins numa sociedade concreta e velmente” que há uma implicação

lité et le Procès. p.636. e et Démesure. p.697.

entretanto, que neste texto Sartre milita para “converter a Cidade doaberta...”(p.201) Sua tarefa em 1947 consiste em “mostrar infatigada militância, “da pessoa e da revolução socialista”(p.203) 1521 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Tota1522 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésur1523 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.638. 1524 CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.615. 1525CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.615. 1526 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.638.

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de Mussolini e Hitler: “A diferença entre eles e o movimento revolucionário clássico

é que, no legado niilista, eles decidiram deificar o irracional, em vez de divinizar a

razão. Ao mesmo tempo renunciavam ao universal(...)Isso não impede(...)que Hitler

invoque Nietzsche.”1527Ele analisará atentamente a filosofia nietzschiana, procurando

notar como ela pôde, legitimamente, ser promovida pelo nazi-fascismo à cânone da

violência, da indiferença1528 e do aristocratismo cínico.

Em suma, à direita e à esquerda, Camus em O Homem Revoltado, mediante a

análise das “produções”1529 “burguesa” e “revolucionária”1530, ambas nascidas da

fascinação pela ciência, pela técnica e pela conversão de coisas e de seres em produto

– ambas pautadas pela ética da quantidade e pela obsessão do progresso – procura

compre

nativo de racionalidade e de ação

fundam

ender como, “a terra do humanismo tornou-se esta Europa, terra

desumana.”1531

Camus contrapõe às alternativas da guerra fria, que reduzem o homem a sua

dimensão histórica, seu paradigma alter

entados na consciência lúcida da fragilidade comum da vida singular: “...a

revolta, no homem, é a recusa de ser tratado como coisa e de ser reduzido à simples

história. Ela é a afirmação de uma natureza comum a todos os homens, que escapa

ao mundo do poder.”1532

É um engajamento ético-político-filosófico contra às determinações

avassaladoras da história que Camus fundamenta em sua ética dos limites:

Certamente, a história é um dos limites do homem(...)Mas o homem, em sua revolta, “

coloca por sua vez um limite à história.”1533

Contra uma história divinizada que é reino de eficácia, e crepúsculo do

omem e dos valores, Camus interpõe o limite do respeito à fragilidade da vida

umana singular como “primeiro valor”1534: “A história não pode mais ser erigida

h

h

em objeto de culto”(...) “Neste limite nasce a promessa de um valor.”1535 *

27 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.637. 28 Conferir neste trabalho o capítulo Entre as dimensões metafísica e histórica da revolta.

1529 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.651.

15

15

1530 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.651 1531 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.652. 1532 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.652 1533 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.651 1534 CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. pp.699-705. 1535 CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.653.

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“Em 1950, a demedida é sempre um

e comum da condiçao humana - mas,

*

conforto e, às vezes, uma carreira. A medida, ao contrário, é pura tensão.”(CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.704.) “Il n´y a pas de justice, il n´y a que des limites.”(CAMUS, A. Cahier V, 1947. OC II. p.1108)

“Milieu.”1536Midi.

Meio-termo1537, meio-dia1538.

“La pensée de Midi”1539, que encerra O Homem Revoltado é um paradigma

alternativo de racionalidade e de ação que se põe entre a “alvorada” grega e a “noite

européia”1540: “2 Infinis. Milieu.”1541

Nem a inocência do assentimento irrefletido ao devir e ao destino trágico, nem

a culpabilidade religiosa intrometida nos regimes totalitários messiânicos imbuídos de

um escatologia secularizada. Camus exprime o elã de um pensamento e de uma ação

nas quais a responsabilidade histórica e a solidariedade, conceitos inexistentes no

mundo grego, desempenhem papéis centrais - impulsionando um permanente

combate indignado contra a infelicidad

entretanto, ciente de seus limites de atuação. Camus mantém o entendimento ,

obnubilado pela desmedida contemporânea, que o homem é parte integrante de uma

1536 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.82-L.44); (Br. 257-L. 160);(Br. 208-L. 190);Br. 72-L. 199);(Br.

prudência, a sugestão de tadução de Sérgio Milliet. significa também Mediterrâneo, meio-termo solar entre a

378 -L. 518);(Br.69-L.723);(Br.70-L.519);(Br.160-L.257) 1537 Utilizamos, com1538 Do francês midi. Em Camus “midi” Grécia e a Europa. 1539 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.700. 1540 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.703. 1541 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.69-L.723)

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magnitude cósmica, “um mundo que é seu primeiro e último amor”1542, que,

constitutivamente, o enobrece, mas também o contradiz permanentemente,

ensinando, assim, seus limites: “O homem, enfim, não é inteiramente culpado, ele não

começou a história; nem de modo algum inocente, visto que a continua . Aqueles que

passam deste limite e afirmam sua inocência total acabam na loucura da

culpabilidade definitiva. A revolta, ao contrário, coloca-nos no caminho de uma

cupabilidade calculada.”1543

O paradigma camusiano se constitui, assim, pelo exercício de uma tensão

permanente entre a consciência da contingência e a responsabilidade concreta, entre a

vivência dos dramas solitários do indivíduo, a procura obstinada por uma

omprec ensão afetiva da alteridade através do exercício da “simpatia”1544, ou seja, de

uma compaixão metódica, e pelo empenho de concretizar uma “ação coletiva”1545

modesta, porém eficaz: “Neste limite, o «Nós existimos» define paradoxalmente um

novo individualismo. «Nós existimos» diante da história, e a história deve contar com

este «Nós existimos» que, por sua vez, deve manter-se na história. Tenho necessidade

sentido,

suporto

dos outros que tem necessidade de mim e de cada um(...)Só eu, em certo

a dignidade comum que não consigo degradar nem em mim nem nos outros.

Esse individualismo não é gozo, é sempre luta e, às vezes, alegria ímpar, no auge da

orgulhosa compaixão (fière compassion).”1546

É neste sentido que Camus compreende ser a “ética da revolta” - conjugação

entre indignação, lucidez, ímpeto e modéstia – um contraponto vital aos

empreendimentos políticos totalizantes e aniquiladores de seu tempo: “Longe de ser

um romantismo, a revolta toma ao contrário o partido do verdadeiro realismo. Se

quer uma revolução, ela a quer em favor da vida, não contra ela.”1547

“A política não é religião: do contrário, não passa de inquisição.”1548

Camus prefere trabalhar na construção do presente através de uma indignação

revoltada e de um combate continuado contra as injustiças sociais, ao invés de

aniquilá-lo desde a raíz, legitimado em promessas filosóficas de amanhã: “..a revolta

se apóia no real para encampar um combate perpétuo até a verdade.”(...)“apóia-se

pelo exercício da “ética da simpatia” em A Peste.

1542 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.708. 1543 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.700. 1544 Como pudemos notar pela construção e1545 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.700. 1546 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.700. 1547 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701. 1548 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.705.

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primeiro nas realidade mais concretas, como a profissão, a aldeia, nas quais

transparecem a existência, o coração vivo das coisas e dos homens. Para ela a

política deve submeter-se a essas verdades.”1549

Ele que, como vimos, em meados de 1946, depositava esperança e valor no

regime comunitário de trabalho e de vida da comunidade alternativa Barbu1550,

experiê

ioria das conquistas do sindicalismo. É que o sindicalismo partia da

amentista.

“...qua

om o cosmo: “Este contraponto, este esprito que mesura a vida, é o

mesmo

a sempre eqüilibrou-se ao devir.”1554

ncia concreta de melhoria significativa da qualidade de vida do pós-guerra,

prefere conferir valor, em 1951, ao “engajamento revolucionário sindical”: “Este

próprio sindicalismo não seria ineficaz?A resposta é simples: foi ele quem, em um

século, melhorou prodigiosamente a condição operária, desde a jornada de dezesseis

horas até a semana de quarenta horas. O Império ideológico fez o socialismo regridir

e destruir a ma

base concreta, a profissão(...)enquanto a revolução cesariana parte da doutrina, nela

introduzindo à força o real(...)O sindicalismo(...)é a negação em favor do real, do

centralismo burocrático e abstrato.”1551

Engajar-se modestamente nos enfrentamentos cotidianos da democracia pela

construção progressiva de uma melhoria da justiça social, aos olhos de Camus, é a

opção menos dilacerante para um futuro enrijecido pela sociedade arm

ndo a revolta faz avançar a história e alivia o sofrimento dos homens, ela o

faz sem terror, ou até mesmo, sem violência, nas condições políticas mais

diversas.”1552

É sobretudo contra a desumanização desmedida do homem pelas engrenagens

históricas do trabalho alienado, ou da sociedade abstrata dos fins, que Camus

contrapõe à “medida Grega da vida”1553, fundada numa relação de simbiose absoluta

com a natureza, c

que anima a longa tradição daquilo que se pode chamar de pensamento solar,

no qual, desde os gregos, a naturez

Camus ressalta a importância vital de um engajamento que evolua às origens

da civilização, em busca de uma re-união afetiva entre homem e natureza, que

transcenda a relação de dominação e de transformação típicos do materialismo

1549 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701. 1550Notar, neste mesmo trabalho, a conclusão do capítulo Camus em Combat: à procura do juste mileu. 1551 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701. 1552 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701. 1553 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701. 1554 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701.

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histórico, aplicado na conversão sistemática de seres e coisas em produtos1555:

“Privados de nossa meditações, exilados da beleza natural, estamos novamente no

mundo do antigo testamento, espremidos entre faraós cruéis e um céu

implac

pela noite.”1557

ável.”1556

São, segundo Camus, os “belos frutos” de uma civilização que se degrada

“eclipsando o dia

Camus sintetiza seu elã de construir a partir do pensamento do meio-dia, o que

poderíamos chamar de ecologia humana , que reúna e preserve homem e natureza

num laço ético e existencial inextrincável contra o dilaceramento generalizado

produzido pela história: “Na miséria comum, renasce a velha exigência: a natureza

volta à insurgir-se contra a história.”1558

Lúcida e premonitoriamente Camus alerta, na vanguarda de um engajamento

planetário: “Este é um pensamento do qual o mundo de hoje não pode se privar

mais tempo.”1559

Às acusações de demasiada modéstia de pensamento e de ação, como a de

Merleau-Ponty na mesa-redonda da Revista Civilization em 19461560, Camus

responde como o realista Moore respondia ao ceticismo epistemológico

contemporâneo, ainda impossibilitado, mesmo em face de uma história esmagadora,

de provar rigorosamente a existência do mundo exterior: erguendo e balançando a

própria equenos

e?”1561

Em face das evidências da contem raneidade, prisioneira de uma desmedida

esumana, Camus exprime um rigorismo na modéstia e na conduta interrogante. É o

isterioso narrador de A Peste quem enuncia o exercício de uma dimensão socrática

ara a ação e para o pensamento: “o vício mais desesperador é a ignorância que

mão, em sua incontestável evidência de carne e osso: “Estes p

europeus que nos mostram uma face avarenta, se não têm mais força para sorrir, por

que pretenderiam dar suas convulsões desesperadas como exemplos de

superioridad

po

d

m

p

presume saber tudo e se arroga o direito de matar.”1562

55 “A natureza, que deixa de ser objeto de contemplação e de admiração, não pode ser em seguida não a matéria de uma ação que visa transformá-la.” CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.702.

1556 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.703.

ão do capítulo Camus em Combat: à procura do juste mileu.

Nouvelles. p.1326.

15

se

1557 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.703. 1558 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.703. 1559 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.703. 1560 Notar, neste mesmo trabalho, a conclus1561 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.704. 1562 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits,

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Estes são, afinal, os pontos cardeias da ética e da filosofia camusiana.

“Se a revolta pudesse criar uma filosofia, seria uma filosofia dos limites, da

ignorância calculada e do risco. Aquele que não pode tudo saber, não pode tudo

matar.”1563

*

*

AMUS, . L´Homme Révolté.p.708.)

détournés du point fixe et rayonnant.” (CAMUS, A.

Pensées.(Br.383-L.697)

Camus como epígrafe das Lettres à un ami allemand e, como vimos, central para a

“O segredo da Europa é que ela não ama mais a vida.”(CA

“Les hommes d´Europe, abandonnés aux ombres, se sont

L´Homme Révolté.p.708.) “Il faut avoir un poit fixe pour en juger.Le port juge ceux qui sont dans un vaisseau, mais òu prendrons-nous un port dans la morale?”(PASCAL, B.

“Celui qui s´arrête fait remarquer l´emportement des autres. Comme un point fixe.”(PASCAL,B. Pensées.(Br.382-L.699)

“Não mostramos nossa grandeza fincando numa extremidade, mas tocando as

duas ao mesmo tempo e enchendo todo o intervalo.”1564

Analisar melhor este fragmento dos Pensamentos de Pascal, utilizado por

compreensão de seu método de pensamento, nos permite aprofundar ainda um degrau

1563 CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.693. 1564 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.353-L.681) Camus suprime em sua epígrafe o fim da frase: “... e enchendo todo o intervalo.”

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nossa compreensão do papel desempenhado pela natureza na crítica camusiana da

civilização contemporânea.

Ora, a continuidade do fragmento de Pascal nos desvela a imagem completa

produzida pelo seiscentista, a do “tição de fogo”: “Mas talvez seja apenas um súbito

movimento da alma de um a outro desses extremos, e talvez ela não esteja nunca

senão num ponto, como o tição de fogo.”1565 Em Pascal o “deus escondido”1566 é o

prisma que se mantém aceso em movimento no “tição de fogo.”1567Dois aforismas dos

Pensamentos, e estamos no âmago da “razão dos efeitos”(raison des effets)

pascaliana, desfecho do renversement continuel du pour au contre1568: “Raison des

effets. É preciso ter um pensamento oculto1569e tudo julgar por ele, falando

entretanto como o povo.”1570

Ora, em seu método de análise multipolar do real, Pascal mantém em seu

horizon

arrête fait

remarq

r contra os excessos de seu tempo.

“pensamento oculto” camusiano, seu point fixe, que, em larga medida,

preside

istória das idéias, é a intimidade afetiva profunda que o moraliste

te de investigação, desde a origem, malgrados seus esforços efetivos de

compreensão multipolar da complexidade do real e da alteridade1571, um porto moral

“escondido” através do qual - de um ponto fixo – o moraliste julga o arrebatamento

dos outros: “Il faut avoir un poit fixe pour en juger.Le port juge ceux qui sont dans un

vaisseau, mais òu prendrons-nous un port dans la morale?”1572“Celui qui s´

uer l´emportement des autres. Comme un point fixe.”1573

O “pensamento oculto” pascaliano, seu point fixe, é este Deus íntimo do

jansenismo, oculto na indignação lúcida que o moraliste du XVIIème siècle exprime

de maneira multipola

O

e orienta o conjunto das análises camusianas sobre o real, incluindo aí a

história e a h

1565 PASCAL, B. Pensamentos. (Br.353-L.681)

, B. Pensamentos. (Br.353-L.681) os ao canônico, HARRINGTON,

rton tem um também canônico artigo sobre o ponto-fixo

trabalho - Entre as .

nsamentos. (Br.337-L.90) . (Br.336-L.91)

gundo à luz que se tem”, do povo, do nobre, do caçador, do uiz, do sapateiro, etc.

99)

1566 Nos remetemos a análise canônica de Lucien Goldmann. GOLDMANN, L. Le Dieu Caché. 1567 “Não mostramos nossa grandeza fincando numa extremidade, mas tocando as duas ao mesmo tempo e enchendo todo o intervalo.”PASCAL1568 Sobre estes temas específicos do jargão pascaliano nos remetemT. Verité et méthode chez Pascal. Scarlett Maem Pascal na revista Discurso. Existem também referências em minha tese de mestrado A dimensão ética da incerteza em Pascal e, também no sub-capítulo dedicado a Nietzsche neste dimensões histórica e metafísica da revolta1569 “pensées de derrière.”PASCAL, B. Pe1570 PASCAL, B. Pensamentos1571 Notemos o esforço de compreensão “serei, do libertino, do advogado bem pago, do j1572 PASCAL, B. Pensées.(Br.383-L.697) 1573 PASCAL,B. Pensées.(Br.382-L.6

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contemporâneo cultiva com “os verões da Argélia”1574: “Les hommes d´Europe,

abandonnés aux ombres, se sont détournés du point fixe et rayonnant.”1575

Para Camus, pensador do meio-dia, a natureza é o oráculo dos limites, a pítia

inspiradora, e o “radiante ponto fixo” contradito pelo “movimento destruidor da

história”1576- “Compreende-se então que a revolta não possa prescindir de um

estranho amor.”1577

“Miséria e grandeza deste mundo: ele não oferece nenhuma verdade, mas

amores.”1578

Se Pascal busca um porto, Camus tem o próprio mar como ponto fixo, na

medida em que nele opera sua busca quixotesca pelo absoluto e efetiva sua

transcendência horizontal: “Rieux ficou de costas, imóvel, olhando o céu cheio do luar

e das estrelas. Respirou profundamente.”1579

Camus denuncia a condição atual do homem contemporâneo, exilado da

beleza

as de uma história dedicada ao progresso e a transformação,

sem es

s tarde(...)Ao negarem a justa grandeza do mundo, precisaram apostar na

própria s se divinizaram e sua desgraça

ama mais a vida.”1582

resso,

regrinando às fontes”1584, revigorando o laço

e da grandeza da vida, diluído como uma cifra num universo estatístico,

escravizado pelas garr

paço para suas buscas pessoais de absoluto1580, nem tempo para a vivência de

sua dignidade constitutiva: “Eles trocam o presente pelo futuro, a humanidade pela

fumaça do poder, a miséria dos subúrbios da cidade por uma cidade

fulgurante(...)Por isso, quiseram apagar a alegria do quadro do mundo, adiando-a

para mai

excelência. Na falta de coisa melhor ele

começou(...)estes deuses tem os olhos vazados.”1581

Camus diagnostica o mal-estar ocidental: “O segredo da Europa é que ele não

Em contraponto à escravidão contemporânea pelo fatalismo do prog

Camus evolui às origens1583, “pe

1574 CAMUS, A. Noces.p, 76. 1575 CAMUS, A. L´Homme Révolté.p.708. 1576 CAMUS, A. Discours de Suède.p.1074. 1577 CAMUS, A. L´Homme Révolté.p.707. 1578 CAMUS, A. Cahier II.p.855. 1579 CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1429. 1580 “Talvez cada qual busque por todos esse absoluto.”(CAMUS, A. L´Homme Révolté.p.708) 1581 CAMUS, A. L´Homme Révolté.p.708. 1582 CAMUS, A. L´Homme Révolté.p.708.

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indelével, a simbiose que une homem-natureza numa natureza comum paradoxal, de

fragilidade e de grandeza: “Na luz, o mundo continua a ser o nosso primeiro e último

amor.”

“A absurdidade reina e o amor salva.”1585

Em O Exílio de Helena, obra de maturidade que analisaremos em detalhe

oportunamente1586, Camus prosseguirá sua denúncia do niilismo, da tristeza e do

exílio da beleza que constituem verdadeiras escolhas contemporâneas: “Nietzsche está

ultrapa Europa filosofa, mas a tiros de

canhão

contemporâneas – difíceis de serem recompostas - Camus em O

Exílio

ssado. Não é mais a golpes de martelo que a

.”1587

Camus nota também que as escolhas da modernidade põe em risco eminente a

aventura humana no cosmo: “A natureza esta sempre aí. Ela opõe seus céus calmos e

suas razões à loucura dos homens. Até que o átomo se incendeie também e que a

história se acabe no triunfo da razão e na agonia da espécie.”1588

- “Presunção, regressão do progresso”1589 -

Contudo, ao fim de um diagnóstico histórico absolutamente pessimista, que

podemos julgar, lucidamente, até mesmo dilacerado pois se mostra consciente das

grandes fraturas

de Helena, como aliás no conjunto de sua obra de maturidade, se obstina na

O Verão (1954) revisita as intuições originais apreendidas nas

Núpciasnossa pe e C

a uma árvore, encontra-se a novela inacabada O Primeiro Homem que versa sobre dos pied noir de Camus, na Argélia.

1584 É Ro r Quillior que se refere assim à Retour à Tipasa.(Essais.p.1818) 1585 CAMUS, A. Cahier II.p.855. “Misère et grandeur de ce monde: il n´offre point de vérités mais des amours. L´absurdité règne et l´amour en sauve.” A referência simbólica e a proximidade de estilo e de pensamento entre Camus e Pascal se evidencia novamente. Notar um texto de minha autora publicado

ia do homem segundo a ótica do duplo infinito. capítulo a Dimensão histórica da revolta em O Homem

1583 Às suas próprias origens visto que (1936) com o oráculo dos limites, isto é, a natureza. Esta evolução às origens, veremos em squisa de pós-doutorado, ganha tristes contornos com a morte d amus: no porta-luvas de seu

carro, colidido contra vida dos antepassa

ge

na revista Primeiros Escritos: Grandeza e misér1586 Texto de O Verão quem conjuntamente aoRevoltado, será objeto de estudo detalhado em nossa pesquisa futura de pós-doutorado. 1587 CAMUS,A. L´Été. L´Exil d´Hèléne.p.855. 1588 CAMUS,A. L´Été. L´Exil d´Hèléne.p.855. 1589 CAMUS,A. L´Été. L´Exil d´Hèléne.p.854. A citação camusiana de Heráclito nos lembra da força multipolar do Obscuro, visto que, enquanto o legado de Nietzsche, como vimos na análise de Calígula, ressalta em Heráclito o téorico da inocência do vir-a-ser, a herança camusiana prefere pensá-lo como mentor da desmedida na medida: “Heráclito, inventor do devir,concedia, entretanto, um limite a este escoamento perpétuo.”(CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.699) Ambos interpretam diferentemente o fragmento seguinte: “Por trás de todas as transgressões das leis vi Erínias julgadoras. Vi o mundo inteiro como o espetáculo de uma justiça reinante, e forças naturais, demoniacamente onipresentes, subordinadas a seu serviço.”(Heráclito segundo Nietzsche, em A Filosofia na Época da Tragédia Grega ). Camus retorna ao seu modo de leitura particular de Heráclito em O Exílio de Helena:

e limites ao universo físico ele mesmo«O sol não rdam a justiça saberão descobrí-lo.»”(p.852) “A

US,A. L´Été. L´Exil d´Hèléne.p.855.)

“Heráclito já imaginava que a justiça impõultrapassará seus limites, senão as Erínias que guadesmedida é um incêdio segundo Heráclito.” (CAM

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constitu ite européia,

a aurora do pensamento dos limites

ição de um contraponto construtivo revitalizando, em face da no

: “A ignorância do fanatismo, os limites do mundo

e do ho

Cap.8) A lógica da preservação da vida em O Homem Revoltado

mem, o rosto amado, a beleza enfim, eis o campo no qual encontramos os

gregos(...)Uma vez mais, a filosofia das trevas se dissipará em face de um mar

cintilante.”1590

Como admitiu na conferência A Crise do Homem, trata-se do esforço reiterado

– e nem sempre bem compreendido – de “unir uma visão pessimista do mundo e um

profundo otimismo no homem.”1591

Eis a “arte de viver para um tempo de catástrofe”1592 que Albert Camus lega

ao nosso tempo.

to da questão do engajamento político e histórico, que vimos

problem

Como tivemos a oportunidade de acompanhar nos capítulos anteriores, o

engajamento de Camus durante a segunda guerra revela uma dupla preocupação: não

faltar às exigências de seu tempo, isto é, agir com os meios necessários à defesa de

sua concepção de mundo e de justiça conservando, por outro lado, a premissa ético-

filosófica de preservação da vida. A violência histórica se revela um fato

incontornável, malgrado à resistência moral em compactuar com os meios necessários

à efetivação de uma ação histórica eficaz. Contudo, se é utópica uma concepção de

ação histórica que elimine o uso da violência e empeça definitivamente a aniquilação

do homem, é possível, entretanto, erigir uma recusa definitiva da legitimação da

morte.

O Homem Revoltado de 1951 nasce do prolongamento das reflexões sobre o

absurdo presentes n O Mito de Sísifo, em Calígula e n O Equívoco e é permeado pelo

aprofundamen

atizados nos textos políticos de Camus e encarnados nos personagens de A

Peste. Todavia, Camus, que em O Mito de Sísifo, rejeitara às distinções entre

disciplinas que visam “compreender e amar o homem”, desta vez exprime com

convicção o campo no qual pretende atuar, visto que intercede denunciando a que

julga ser a responsável pela legitimação das atrocidades cometidas em seu século:

1590 CAMUS,A. L´Été. L´Exil d´Hèléne.p.857. 1591 CAMUS, A. La Crise de l´homme. OC II. p.745. 1592 CAMUS, A. Discours de Suède -10 décembre

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“Há crimes de paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro,

bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do

crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que

invocavam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a

filosofia pode servir para tudo, até mesmo para transformar assassinos em

juízes.”1593

Esta primeira distinção efetuada por Camus entre crime de paixão e crime de

lógica, nos introduz no âmago de uma contestação ampla da racionalidade aplicada à

história. Se Heathcliff em O morro dos ventos uivantes, simboliza o criminoso

“inocente” visto que mata por amor e por impulso1594, na história contemporânea, em

contrapartida, o assassinato é legitimado pelos sistemas políticos, endossados pela

filosofia, enfim, recebem todo o enleio da racionalidade. A filosofia contribui, afinal,

para indignação de Camus, de maneira determinante, no refinado sistema racional que

opera na história contemporânea que visa retirar o aspecto transgressor do crime: o

crime “era solitário como o grito, ei-lo universal como a ciência.”1595 É contra esta

abominável “normatização” e legitimação da morte que já havia sido alvejada em O

Estrangeiro, a que se contrapõe Camus neste início corajoso de O Homem Revoltado

que se pretende efetivamente uma re-leitura reflexiva da história e das história das

idéias contemporâneas: “O propósito deste ensaio é, uma vez mais, aceitar a

realida

a

culpabi

certo sentido, o julgamento.”1596

de do momento, que é o crime lógico, e examinar cuidadosamente suas

justificações: trata-se de uma tentativa de compreender o meu tempo. Pode-se achar

uma época que em cinqüenta anos desterra, escraviza ou mata setenta milhões de

seres humanos deve apenas, e antes de tudo, ser julgada. Mas é necessário que a su

lidade seja entendida. Nos tempos ingênuos em que o tirano arrasava cidades

para sua maior glória; em que o escravo acorrentado à biga do vencedor era

arrastado pelas ruas em festa, em que o inimigo era atirado às feras diante do povo

reunido, diante de crimes tão cândidos, a consciência conseguia ser firme e o

julgamento, claro. Mas os campos de escravos sob a flâmula da liberdade,os

massacres justificados pelo amor ao homem pelo desejo de além-

humanidade(sûrhumanité) anuviam , em

1593 CAMUS, A. L´Homme Revolté. (Doravante HR, 413). 1594 Tratar-se-á também do caso de Meursault n´O Estrangeiro que, como vimos, mata “por acaso”,

ção e posterioremente é aniquilado pela engrenagem, pelo sistema da morte.

.

sem premedita1595 HR, 413. 1596 HR, 413-4

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Às “práticas rituais” e, no limite, “românticas” do passado do assassinato,

Camus contrapõe à sistematização e a sofisticada legitimação conferida ao crime em

seu tempo. A intervenção da legitimação racional efetiva a transmigração do crime

em virtude, transformando o assassinato numa ação requerida pela virtude mesma.

A análise de Camus pretende investigar o âmago desta normatização do

extermínio que está na ordem do dia na história contemporânea. Se em O Mito de

Sísifo Camus avalia o impacto do niilismo na avaliação da vida singular, em O

Homem Revoltado indagará sobre o alastramento do niilismo de Estado: ambas as

faces d

ação da vida ela mesma,

ressalta

gnóstico de seu tempo

evident

do absurdo e têm por conseqüência, a opção pela morte: “Há trinta anos, antes de se

este mesmo niilismo se voltam contra à vida singular: “no tempo da negação

podia ser útil examinar o problema do suicídio. No tempo das ideologias, é preciso

decidir-se quanto ao assassinato.”1597

Estes dois eixos de análise partilham, além do objetivo final de preservar o

valor da vida singular, o método de mergulhar na avali

ndo seu valor por intermédio de uma conscientização permanente. Se é o

sentido profundo de viver o objetivo principal do ensaio inicial de Camus, será o

sentido profundo de matar o objetivo deste ensaio do pós-guerra: “Só conseguimos

agir no nosso próprio tempo, entre os homens que nos cercam. Nada saberemos,

enquanto não soubermos se temos o direito de matar este outro que se acha diante de

nós ou de consentir que ele seja morto.”1598

A questão que Camus pretende investigar é, portanto, premente, e não possui a

pretensão da objetividade e do desinteresse. Todos os homens estão concernidos pois,

“se o assassinato tem suas razões, nossa época e nós mesmos estamos dentro da

conseqüência(...)É nossa tarefa, em todo caso, responder claramente à questão que

nos é formulada, no sangue e nos clamores do século.”1599

Camus procede, como em O Mito de Sísifo, à partir do diagnóstico da

condição existencial e histórica do homem de seu mundo, procurando, mais do que

remontá-lo, “saber como conduzir-se nele”. Este dia

emente não supera o ponto de partida do absurdo como condição humana, e de

início Camus já empreende a primeira amostra do que virá a ser a tônica do livro, a

saber, a implicação entre às dimensões histórica e metafísica do niilismo que resultam

1597 HR, 414. 1598 HR, 414. 1599 HR, 414.

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tomar a decisão de matar, tinha-se negado muito, a ponto de negar a si mesmo pelo

suicídio. Deus trapaceia, todos são trapaceiros como ele, inclusive eu, logo, resolvo

morrer: o suicídio era a questão. Atualmente a ideologia nega apenas os outros, só

eles são trapaceiros. É então que se mata.”1600 Segundo Camus o suicídio e o

assassinato são expressões da mesma indiferença: os dois raciocínios se alicerçam na

constatação do absurdo. À indiferença de viver, o suicida responde aniquilando-se: a

mesma indiferença mobiliza e legitima a morte de outrem.

Camus desvela a periculosidade desta lógica da indiferença derivada de uma

radicalização absoluta e irrefletida da constatação do absurdo: “O sentimento do

absurdo, quando dele se pretende, em primeiro lugar, tirar uma regra de ação, torna

o crime de morte pelo menos indiferente e, por conseguinte, possível1601. Se não se

acredita em nada, se nada faz sentido e se não podemos afirmar nenhum valor, tudo é

possível e nada tem importância.”1602 Desta vivência irrefletida do absurdo é que o

niilismo se alimenta, fortificado pela desrazão cotidiana que é o espetáculo

reincidente do século XX: na mão dos Estados ele se converte numa potência

transgressora e aniquiladora sem limites: “Não há nem pró, nem contra, o assassino

não está nem certo, nem errado.”1603No outro extremo da ação desmesurada, o

niilism

”, adverte

Camus

em justos ou injustos, mas em senhores e escravos. Desta

forma,

o também opera na inação opiácea e indiferente à história - que é outra postura

coerente de uma vivência irrefletida do absurdo. Este “diletantismo trágico

, é tão nocivo quanto à ação desmesurada pois é igualmente indiferente à vida,

própria ou alheia. Equilibrados no âmago da indiferença e da desrazão, num mundo

onde o sentimento do absurdo é dominante e irrefletido, os diferencias entre ação e

inação, bom e mau, justo e injusto estão definitivamente solapados por um universo

sem sentido no qual é a força e a coação que arbitram indiscriminadamente: “o mundo

não estará mais dividido

não importa para que lado nos voltemos, no âmago da negação e do niilismo,

o assassinato tem seu lugar privilegiado.”1604

O niilismo seria, em certa medida, uma conseqüência lógica da radicalização

da postura advinda de uma vivência, de certo modo, irrefletida do absurdo.

se insinua em vários trechos e, principalmente, no capítulo Os Conquistadores de O

1600 HR, 414. 1601 Esta radicalização da atitude absurda omite, por ora, a concepção de preservação do homem concreto que jáMito de Sísifo. 1602 HR, 415. 1603 HR, 415 1604 HR, 415.

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Isto porque, como vimos n O Mito de Sísifo, a conseqüência última do

raciocínio do absurdo não é a rejeição e à indiferença para com a vida, é, ao contrário,

a potencialização da paixão de viver, ainda que maneira interrogante e inconformada,

e a exaltação máxima da vida singular: “a conclusão última do raciocínio do absurdo

é, na verdade, a rejeição do suicídio e a manutenção entre a interrogação humana e

o silêncio do mundo.”1605

É neste sentido que a lógica absurda subverte a engrenagem da morte: à

insensatez do universo, ela responde com à vida, à indiferença que comanda à

aniquilação da humanidade, ela responde negando-se à matar. Segundo Camus, “a

partir d

o e na

legitim

o instante em que se reconhece esse bem(da vida) como tal, ele é de toda a

humanidade. Não se pode dar uma coerência ao assassinato, se a recusamos ao

suicídio.”1606 Assumir à absurdidade significa manter os pólos que configuram o

absurdo - homem, natureza, e o confronto lúcido entre ambos: respondendo com a

vida o homem instaura a lógica absurda que têm por decorrência última a

universalização deste valor. A legitimação do assassinato não é , portanto, plausível

numa concepção refinada do absurdo: “A mente imbuída da idéia de absurdo admite,

sem dúvida, o crime como fatalidade; mas não saberia aceitar o crime por raciocínio.

Diante do confronto, assassinato e suicídio são a mesma coisa: ou se aceitam ambos

ou se rejeitam ambos.”1607

A cultura da morte que está presente no incentivo, na aceitaçã

ação do suicídio operam em escala gigantesca na indiferença ao assassinato

que o mecanismo das ideologias disseminou e legalizou na Europa do século XX :

“Esta lógica levou os valores de suicídio, dos quais nosso tempo se alimentou, às suas

últimas conseqüências , ou seja, ao assassinato legitimado. Do mesmo modo,ela

culmina no suicídio coletivo. A demonstração mais notável foi fornecida pelo

apocalipse hitlerista de 1945. A auto-destruição não era nada para se preparavam

nos covis para uma morte apocalíptica. O essencial era não se destruir sozinho,

arrastando consigo um mundo inteiro.”(...) “Suicídio e assassinato são duas faces da

mesma ordem – a de uma inteligência infeliz, que prefere ao sofrimento de uma

condição limitada a negra exaltação onde a terra e o céu se aniquilam.”1608

1605 HR, 416. 1606 HR, 416. 1607 HR, 417. 1608 HR, 416-7.

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À resposta de Camus à legitimação da engrenagem da morte estabelecida

pelas ideologias é a mesma contraposta ao diagnóstico do absurdo observado pelo seu

prisma individual: a vida concreta e singular - o único valor que assume o homem

absurdo em sua persistência mesma de viver - deve ser assumida como valor a ser

entrepo homem absurdo e às exigências de uma história coletiva: “o

raciocínio absurdo não pode ao mesmo tempo preservar a vida daquele que fala e

aceitar o sacrifício dos outros. A partir do momento em que se reconhece a

impossibilidade da negação absoluta, e é reconhecê-la o fato de viver de algum

modo, a primeira coisa que não se pode negar é a vida de outrem.”(...) “Respirar é

julgar.” . Se escolhe preservar a si - escolha que efetiva simplesmente vivendo - o

homem úcido deve escolher, por exigência deste mesmo sentido que ele contrasta à

desrazão do mundo, preservar também aos outros homens.

*

sto entre o

1609

l

1609 HR, 7-8. 41

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9)Origens da revolta

Contudo, esta assunção lúcida do absurdo que implica a preservação da vida e

está pa

Ora, é esta contradição que surpreende o homem revoltado em seu elã

transformador. Como vimos n O Mito de Sísifo, uma das únicas atitudes coerente

ra além do niilismo que propõe Camus está longe de ser evidente como poderia

se supor pelo niilismo alastrado pela história contemporânea.

Camus admite que a constatação da absurdidade que diagnosticou em seu

presente e que é bem partilhada pela sensibilidade contemporânea, não sirva senão

como ponto de partida bastante geral, e até mesmo permissivo, para as várias

condutas isentas de valores que dela se derivam: entre estas posturas possíveis está,

em seu limite extremo, a aniquilação do outro dada à banalização e à indiferença com

a qual a absurdidade do universo aplaina às ações humanas. Este hábito não pode nem

mesmo ser considerado um vício solitário se observada minimamente a história

contemporânea. É, ao contrário, um risco assumido largamente pela sensibilidade e

pelos empreendimentos contemporâneos desde o grito que ecoou de Ivan Karamazov:

“Se Deus está morto, tudo é permitido.”1610

1610 DOSTOIÉVSKY, F. Os irmãos Karamazov, p. 459. Notemos a formulação de Rakitine sobre o raciocínio de Ivan: “Não há imortalidade da alma, e portanto, não há boas ações – quer dizer que tudo é lícito.”

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diante d

”1613 que ele nomeia revolta humana, na tentativa de

diagnos

i se evoca é a história do

orgulho

cessos e seus

desvios, e re-orientando a revolta aos seus fundamentos originais, recuperar à

dignida

a absurdidade é a revolta1611. Todavia, para o Camus de O Homem Revoltado,

esta revolta que é antes de tudo desafio obstinado à injustiça da condição humana -

inconformismo e lucidez - se institui acrescentando mal à história, somando

sofrimento e punição a este mesmo homem que visa resgatar e solidarizar: assim, o

dilema que cerca a atitude revoltada é que seu desejo de transformação resulta, na

maioria dos casos, numa calamidade ainda mais feroz: “A revolta clama, exige, ela

quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente aquilo que até então se

escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar . Mas transformar é

agir, amanhã, será matar, enquanto ela não sabe ainda se matar é legítimo(...)É

preciso que ela consinta em examinar-se para aprender a conduzir-se.”1612

Camus examinará em O Homem Revoltado os traços desta “reivindicação de

ordem em meio ao caos

ticar a razão de seus desequilíbrios em contato com a história; compreendendo

as conseqüências no mais das vezes destrutivas para o cotidiano do homem desta

conscientização mais ou menos lúcida do dilaceramento constitutivo de nossa

condição comum, indagando, por intermédio destes esclarecimentos, sobre a suposta

legitimidade ou mesmo sobre o dever de matar por vezes aludido pelos pensadores

que exacerbam a transformação histórica: “Dois séculos de revolta, metafísica e

histórica, se oferecem justamente à nossa reflexão(...)As páginas que seguem propõe

apenas alguns marcos históricos(....)explicam em parte o rumo e, quase inteiramente

os excessos do nosso tempo. A história prodigiosa que aqu

europeu.”1614

Se a revolta intervêm em O Mito de Sísifo como atestado da recusa do homem

de sucumbir ao absurdo da condição humana - lucidez e dignidade face à desrazão e à

evasão - tratar-se-á em O Homem Revoltado de, diagnosticando seus ex

de e lucidez originárias esvaídas mediante uma materialização histórica nociva

e desmedida: “A questão é saber se esta recusa não pode levá-lo senão à destruição

dos outros e de si próprio, se toda revolta deve acabar em justificação do assassinato

1611 “a primeira e única evidência que assim me é dada, no âmbito da experiência absurda, é a revolta. Privado de qualquer conhecimento, impelido a matar ou consentir que se mate, só disponho desta evidência , que é reforçada pelo dilaceramento em que me encontro.”( HR, 418). 1612 HR, 419. 1613 HR, 419. 1614 HR, 420.

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universal ou, se, pelo contrário, sem pretensão a uma impossível inocência, ela pode

descobrir o princípio de uma culpabilidade razoável.”1615

Para influir nesta nova orientação da revolta, Camus perscrutará as origens

deste sentimento, suas conseqüências morais e valores, vislumbrando no que ele

difere e o que ele guarda em comum com este “espanto” antes de tudo metafísico

diante da finitude que caracteriza a experimentação da lucidez absurda.

*

A primeira caracterização que Camus concede do insurreto em O Homem

Revolta

ue

estende

que o oprime uma espécie de

direito

ão e uma assunção, ainda que ainda irrefletida, ao que se é:

“ há em

escravo institui uma dignidade a si que contradiz intrinsecamente a situação que lhe

do é a do escravo que, após se submeter a uma condição injusta dócil e

repetidamente durante toda a sua vida, um dia, nega-se a aceitar a ordem de seus

superiores. Neste momento, segundo Camus, o escravo instaura um duplo movimento,

paradoxal, de negação e de afirmação: por um lado, nega a ordem monótona a que

era acorrentado, dizendo que há afinal um “limite”1616 que não pode ser ultrapassado,

“a mesma idéia de limite no sentimento do revoltado de que o outro «exagera», q

seu direito para uma fronteira a partir da qual um outro direito o enfrenta e o

delimita.”1617 Por outro, o escravo afirma a existência desta fronteira mesma, na qual

“o sentimento de que se têm razão”1618, insinua, ainda que tacitamente, que ele

mesmo é possuidor de um direito, que ele “tem algo em si mesmo «que vale à pena»”

e que é preciso preservar: “ele contrapõe à ordem

a não ser oprimido além daquilo que pode admitir.”1619

Neste átimo se inicia o processo de dignificação do homem empreendido pelo

ato mesmo da revolta pois ela conduz a um reconhecimento, ainda que tácito e

confuso, da própria condiç

toda revolta uma adesão integral e instantânea do homem a uma certa parte

de si mesmo.”1620 É, pois, um juízo de valor, a avaliação da própria dignidade que

desponta no horizonte do escravo, como um amanhecer, por intermédio da revolta.

Este movimento de dignificação pela revolta se expande naturalmente da

instância particular à uma postura universal pois no instante que recusa o silêncio o

1615 HR, 420. 1616 HR, 423. 1617 HR, 423. 1618 HR, 423. 1619 HR, 423. 1620 HR, 423.

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era imposta: “O escravo, no instante em que rejeita a ordem humilhante de seu

superior, rejeita a própria condição de escravo.”1621

mo nas filosofias puramente históricas”1626, age em nome de um valor

que, em

confuso, mas que pelo menos sente ser em comum a si próprio e a todos os

Segundo Camus, a contestação particular do escravo engendra

espontaneamente por conseguinte uma negação geral da condição de escravidão,

afinal, “o que era de início uma resistência irredutível do homem transforma-se no

homem por inteiro...”1622

Desvelando esta dignidade inaudita o escravo não pode mais aceitar às

determinações que lhe eram antes impostas. A revolta o distancia daquela condição

inautêntica em que vivia acorrentado, exigindo transformação, empenhando nela seu

único bem. É o que Camus chama de instauração do regime do “Tudo ou Nada”:

Vindo à tona a consciência com a revolta, o escravo coloca então “esta parte de si

próprio que ele queria fazer respeitar, acima do resto e a proclama preferível à tudo,

mesmo à vida.”1623

Nesta passagem ao ato, onde o direito tácito que se insinuava na primeira

cintilação de lucidez do escravo começa a exigir e se materializar em sua insatisfação

na história – passagem do “seria necessário que assim fosse”, ao “quero que assim

seja”1624 – Camus entrevê uma característica fundamental que é partilhada por toda

atitude verdadeiramente revoltada: uma abnegação em relação à própria vida e um

impulso para a coletividade que entremostra um questionamento da noção mesma de

indivíduo: “Se com efeito o indivíduo aceita morrer,e morre quando surge a ocasião,

no movimento de sua revolta, ele mostra com isso que se sacrifica em prol de um bem

que julga transcender o seu próprio destino.”1625 Segundo Camus, o indivíduo, neste

movimento de revolta, não age em nome de uma finalidade específica, ou em termos

de eficácia “co

bora não compreenda expressamente, julga, afinal, maior que si mesmo. Se

ele julga, ainda que tacitamente, que este valor permanece malgrado à própria

desaparição é porque, ainda que tacitamente, reconhece que sua condição é coletiva:

“Se prefere a eventualidade da morte à negação desse direito que ele defende, é

porque o coloca acima de si mesmo. Age, portanto, em nome de um valor, ainda que

1621 HR, 424. 1622 HR, 424. 1623 HR, 424. 1624 HR, 424. 1625 HR, 425. 1626 HR, 425.

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homens.”1627Esta projeção do valor individual ao coletivo, que é desencadeada pela

vivência comum do sofrimento é sinal, segundo Camus, de que há, em toda revolta

algo que transcende o indivíduo e que o “retira de sua solidão, fornecendo-lhe razões

para agir”1628(...)“algo que não pertence apenas a ele, mas que é comum a todos os

homens...”1629

Talvez não seja excessivo sublinhar que Camus é enfático na oposição às

filosofias de seu tempo quando reaviva “a suspeita” de que haja uma espécie de

natureza humana advinda da fragilidade de sua condição comum: “A análise da

revolta nos leva pelo menos a suspeita de que há uma natureza humana, como

pensavam os gregos, e contrariamente aos postulados do pensamento

contemporâneo.”1630 Esta suspeita da existência de uma natureza humana comum

estaria implícita para Camus nesta abnegação característica do revoltado, disposto a

abrir mão de seu único bem que é a vida, e neste ímpeto que remete seus valores

individ

mem se transcende no outro, e,

uais aos seus semelhantes: “ Sem dúvida, ele exige para si o respeito, mas

apenas na medida em que se identifica com uma comunidade natural.”1631 Este

espelhamento da condição individual na coletiva, que é, afinal, uma exteriorização

inevitável deste processo de auto-reconhecimento empreendido pela revolta, alude,

segundo Camus, à solidariedade metafísica que, no limite, como veremos

oportunamente no desenvolvimento d O Homem Revoltado, é comprobatória da

prevalência de uma certa natureza humana comum: “a revolta não nasce, única e

obrigatoriamente, entre os oprimidos, podendo também nascer do espetáculo da

opressão cuja vítima é um outro(...)Na revolta, o ho

desse ponto de vista, a solidariedade humana é metafísica.”1632

Por ora, Camus não aprofunda a investigação sobre a existência desta suposta

“natureza humana”, consente tão somente a metamorfose que a revolta empreende na

esterilidade solitária da experiência do absurdo: na vivência do absurdo o sofrimento é

individual enquanto que, “a partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência

de ser coletivo, é a aventura de todos.”1633 Consolidando ainda melhor esta

descoberta da existência enquanto condição partilhada engendrada pela revolta - por

1627 HR, 425.

1628 HR, 425. 1629 HR, 425. 1630 HR, 425. 1631 HR, 426. 1632 HR, 426. 1633 HR, 431-2

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intermédio do qual se estabelece uma solidariedade metafísica mas com profundas

ressonâncias históricas, Camus diz: “o mal que apenas um homem sentia torna-se

peste coletiva.”1634(...)“Eu me revolto, logo existimos.”1635

ofredora com a qual partilhamos nossa “provação(épreuve)cotidiana” –

isto é,

filosofi

antes de mais nada, num plano cósmico,

como v

ja e pela falta. É a superabundância de

É profunda e bela a inversão operada por Camus do cogito cartesiano neste

início d O Homem Revoltado. Se em Descartes à dúvida metódica sucede o cogito,

que significa um último refúgio, solitário, abstrato e desencarnado para um homem

reduzido à coisa pensante, em Camus, cujo o absurdo é o ponto de partida equivalente

à dúvida metódica, o cogito revoltado subverte à ordem dos interesses clássicos: trata-

se de re-encontrar como evidência, a impossibilidade do refúgio(somos res extensa), a

vida dolorosa que possui a eloqüência da ferida aberta e o re-encontro de uma

coletividade s

tudo que é contrário ao princípio abstrato imune à dúvida buscado por

Descartes: todas as evidências do escândalo da história são empíricas e sobre elas não

pairam dúvidas.

Não se trata, afinal, do esforço clássico de preservar à razão: na ótica de

Camus, que inverte completamente o propósito do cogito cartesiano, e da própria

a, o interesse supremo visará a preservação da vida concreta nos embates

cotidianos da história. No imperativo camusiano está portanto, não o re-encontro dos

fundamentos do conhecimento, mas o re-estabelecimentos dos laços entre os homens,

o re-encontro do homem consigo mesmo e com o mundo à sua volta: “a realidade

humana em sua totalidade, sofre com este distanciamento a si mesma e ao

mundo.”1636

Contrariamente à Descartes, para Camus, o re-encontro do homem consigo

mesmo se dá, assim, fora de si, entre os homens e a natureza, visto que a

conscientização incitada pela revolta se dará sobretudo pelo reconhecimento que sua

condição sofredora é coletiva, e que ele é,

eremos oportunamente, um ser vivo.

A transcendência humana no outro – a solidariedade metafísica engendrada

pela partilha do sofrimento - a exigência de integridade e dignidade explícita na

postura do revoltado, afasta, para Camus, o universo da revolta, daquele do

ressentimento que é caracterizado pela inve

1634 HR, 432. 1635 HR, 432. 1636 HR, 432.

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dignidade que impulsiona e empreende seu desafio à injustiça: o revoltado não quer o

que não tem “ele defende aquilo que ele é”1637 e neste movimento ele defende “a

dignidade comum a todos os homens.”1638 Assim Camus sublinha o valor afirmativo

da revolta que se obnubila por sob sua carapaça contestadora: “Aparentemente

negativa, já que nada cria, a revolta é profundamente positiva., porque revela aquilo

que no homem precisa ser defendido.”1639

Camus, entretanto, refina esta postura revoltada, exprimindo que ela não é

eivada do abstracionismo que sublima seu zelo pelo homem no idealismo de um vago

amor à humanidade1640, imbuído de uma confiança tão-somente teórica na natureza

humana. Camus, ao contrário, filia esta revolta solidária à encarnação apaixonada da

revolta na pele de Ivan Karamazov no qual o dilaceramento original consiste na

paixão radical pelos homens – comiseração absoluta com o sofrimento dos

«inocentes» - que transforma-se em exigência de afrontamento obstinado à Ordem

Divina, como podemos acompanhar ainda que ligeiramente, nestas palavras ditas ao

seu irmão noviço, Alióscha: “Todo o universo do conhecimento não vale o pranto

dessa c

l”, compreendida ela

mesma

riancinha suplicando a ajuda de Deus(...)não quero que a mãe beije o verdugo

que lhe fez estraçalhar o filho; ela não o pode perdoar(...)Recuso essa harmonia,

recuso-a por amor à humanidade(...)Revolta?(...)Pode-se viver revoltado?Pois assim

quero viver.”1641 É desta contraposição obstinada e até mesmo vã ao sofrimento

singular que Camus filia à atitude genuinamente revoltada. Ela dá às costas ao

universo da finalidade e da eficácia imposto pelas filosofia da história. Sua dimensão

positiva provêm da defesa indiscriminada do homem “carna

, como valor. A revolta tira sua dignidade, portanto, do movimento mesmo de

revolta, do ato de revoltar-se, e não necessariamente de seu êxito em transformar a

condição humana.

Neste sentido Camus vê a revolta como uma atitude que só encontra sentido

em uma sociedade ocidental1642cujo presente é de uma dessacralização absoluta, onde

se compreenderia de outro modo senão como revolta? E a China de Mao? Obviamente, a o está presente nestes dois movimentos anti-tradicionalistas, mas eles não são

1637 HR, 427. 1638 HR, 427. 1639 HR, 428. 1640 Este abstracionismo “aplicar-se-ia talvez a certas formas vagas de idealismo humanitário ou às técnicas do terror.”(HR, 428) 1641 DOSTOIÉVSKY, F. Os irmãos Karamazov, p. 640-4. 1642 Comentário que possibilita notar o teor “particular” das argumentações de Camus. Elas não se preocupam com uma exatidão histórica absoluta: afinal, como desconhecer a atuação de Gandhi na Índia que não dessacralizaçã

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o mundo se consolida como um assunto exclusivamente de homens. Neste sentido, a

revolta histórica seria, em certa medida, uma conseqüência do desenvolvimento

ideológ

o ocidente: “A atualidade do problema da

ico do ocidente, pois “só pode haver para a mente humana dois universos

possíveis: o do sagrado(ou , em linguagem cristã, o da graça)e o da revolta. O

desaparecimento de um equivale ao surgimento do outro ”1643

Camus exprime claramente sua opinião peculiar sobre a implicação entre a

revolta histórica e a condição metafísica d

revolta depende apenas do fato de sociedades inteiras desejarem manter hoje em dia

uma distância em relação ao sagrado.”1644 Opinião que reitera no manuscrito de O

Homem Revoltado de posse de René Char, “o espetáculo da revolta se dá numa

escala histórica. Isto nos ajudará a demonstrar que, mesmo no plano histórico, o

problema é metafísico.”1645

Nos concentremos ainda que por um instante neste aspecto importante do

pensamento de Camus, a saber, a implicação entre as dimensões metafísica e histórica

da revo

ndição de escravo; o revoltado metafísico, contra sua

condiçã

lta. Segundo Camus “a revolta metafísica é o movimento pelo qual um homem

se insurge contra sua condição e contra a criação. Ela é metafísica porque contesta

os fins do homem e de sua criação.”1646

Neste sentido, o escravo e o revoltado metafísico clamam, em ordens

diferentes, contra a injustiça comum de sua condição, “o escravo protesta contra sua

condição no interior de sua co

o na qualidade de homem.”1647 Em ambos os casos, Camus detecta este juízo

de valor tácito a partir do qual os revoltados recusam sua condição. Revoltado

metafísico e histórico “contrapõe o princípio de justiça que nele existe ao princípio

de injustiça que vê no mundo.”1648

Assim, Camus considera que os protestos dos revoltados metafísico e

histórico, partilham a recusa do sofrimento e, no limite, da morte - reivindicação de

“uma unidade feliz contra o sofrimento de viver e morrer.”1649 Paradoxalmente, em

necessariamente, como sabemos pelo caso indiano, movimentos ocidentalizantes.... Em contrapartida notamos no mundo atual – de certo não imaginado por Camus - o fortaleciemnto do terrorismo islâmico. Ora, este movimentos, caracterizados pela revolta são movimento de sacralização da história. 1643 HR, 431. 1644 HR,431. 1645 HR, 1637. 1646 HR, 435, 39. 1647 HR, 435. 1648 HR, 435, 40. 1649 HR, 436.

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toda revolta, repousa, portanto, uma exigência de ordem. É este imperativo de

felicidade e unidade que conduz segundo Camus à radicalização das posturas da

revolta metafísica e histórica.

A exigência de uma ordem justa conduz, na revolta metafísica, primeiro à

blasfêmia, isto é, à recusa de compactuar com a ordem divina, mas com a manutenção

do horizonte metafísico dualista, o “revoltado metafísico portanto, certamente, não é

ateu(...)ele desafia mais do que nega. Pelo menos de início, ele não elimina Deus:

simplesmente fala-lhe de igual por igual. Mas não se trata de um diálogo cortês...”

Subseqüentemente, como veremos oportunamente, passa-se à negação absoluta e, no

limite, ao “tudo é permitido” a que aludimos no início deste capítulo. A dimensão

metafísica da revolta se reverte, finalmente, como veremos a seguir, numa postura

inevitavelmente histórica.

ma incursão

Na revolta histórica, por outro lado, segundo Camus, o escravo que começa a

dignificar-se pelo primeiro não que responde ao seu amo, que é, como vimos, um sim,

visto que é afirmação de sua integridade, com seu desafio nivela à todos os homens

numa condição histórica de instabilidade própria à transformação e à transgressão

absolutas. Assim como entende que haja uma ultrapassagem da revolta metafísica em

direção à histórica, Camus entrevê nesta verve transformadora radical do revoltado

histórico, o percurso inverso, isto é, um deslize em direção a um anseio, a bem da

verdade, metafísico: “O escravo começa reclamando justiça e termina querendo a

realeza(...)Insurgir-se contra a condição humana transforma-se em u

desmedida contra o céu para capturar um rei, que será primeiro destronado, para em

seguida ser condenado à morte. A rebelião humana acaba em revolução

metafísica.”1650

Contudo, é necessário estar atento às nuances da argumentação sempre

sinuosa e escorregadia de Camus: A dessacralização é a ordem das coisas na história

contem

porânea, ora, seguindo o lema camusiano, não é tão necessário remontar às

suas origens quanto saber como se comportar nela1651. A revolta, seja metafísica ou

histórica, é antes de tudo, justa: é, como vimos reiteradamente, uma assunção absoluta

da absurdidade que é, afinal de contas, corajosa lucidez e afronta à injustiça original

da condição humana. A revolta também é, como vimos, positiva, na medida em que

montar às origens das coisas,mas, sendo o mundo como é, saber como le.”(HR 413.)

1650 HR, 437 1651 “O essencial, não é ainda reconduzir-se ne

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visa uma integridade humana na qual sua dignidade está incluída – ela teima em

preservar àquilo que no homem não pode ser sacrificado pela injustiça.

etafísica não esmorece nem

atenua

A história do século XX é um diário desta maré de contestação lúcida e

dolorosa, claudicante, e por vezes inútil que configura, de maneira ou de outra, a

origem das rebeliões históricas deste século. Por este prisma, o espírito de revolta

que incendeia o século, se trata, nas palavras de Camus “de uma consciência cada vez

mais ampla que a espécie humana toma de si mesma ao logo de sua aventura.”1652

Assim, por conseguinte, em Camus, a condição m

o conteúdo corrosivo da revolta. Se trata de viver na revolta e saber comportar-

se, não diante dela, mas nela: na opacidade e na espessura de sua efetivação

histórica: “Ela é nossa realidade histórica. A menos que se fuja à realidade, seria

necessário que nela encontrássemos nossos valores. Longe do sagrado e de seus

valores absolutos, pode-se encontrar uma regra de conduta?Esta é a pergunta

formulada pela revolta.”1653

A investigação de Camus pretende, afinal, estabelecer, de dentro da revolta -

do balestreiro mesma da contestação - o valor, ou valores, norteadores da verdadeira

rebelião

revoltado às suas origens

, para que o princípio originário da revolta não se perca à força de sua

efetivação histórica: “Nossa tarefa será examinar o que acontece com o conteúdo da

revolta nas ações que acarreta e apontar o rumo a que leva a infidelidade ou a

fidelidade do .”1654

aquilo que

conside

Camus não antecipa seu resultado crítico em relação aos movimentos

revolucionários em voga em seu tempo, mas sua expressão reiterada d

ra ser o valor fundamental de toda revolta1655, já entremostra o diagnóstico

pessimista de sua época: “A solidariedade dos homens se fundamenta no movimento

de revolta e esta, por sua vez, só encontra justificação nessa cumplicidade. Isto nos

dá o direito de dizer, portanto, que toda revolta que se permite negar ou destruir a

solidariedade perde, ao mesmo tempo, o nome de revolta e coincide, na realidade,

com um consentimento assassino.”1656

O diagnóstico de Camus é definitivo, e indício das razões profundas de sua

paciente e multifacetada elucubração em O Homem Revoltado: A revolta que trai à

os que o fundamento deste valor é a revolta ela mesma.”(HR, 430)

1652 HR, 429. 1653 HR, 431. 1654 HR, 437. 1655 “observem1656 HR, 431.

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404

solidari

ulantes do século XX.

nto que é constitutivo o

revolta

no exprime sem temor sua reprovação deste movimento

desenfr

edade original ao sofrimento e à fragilidade humana que lhe deu origem, perde

a si mesma.

É a este esquecimento das origens a que Camus tributa o deslize das

revoluções históricas nas calamidades de sangue ul

Em sua ânsia transformadora o revoltado que se empossa do trono de Deus

almeja instaurar na história esta unidade e felicidade que reivindica para a ordem

humana; é então que surge o perigoso deslize no qual o desejo de ordem assume uma

dimensão metafísica. Buscando realinhavar um dilacerame

do opera, então, num regime de absoluta desmedida, “começa então o esforço

desesperado para fundar, ainda que ao preço do crime, se for o caso, o império dos

homens.”1657

O diagnóstico camusia

eado em direção à reforma absoluta da condição humana que os movimentos

revolucionários contemporâneos protagonizam: “Isso não se fará sem conseqüências

terríveis, das quais só conhecemos algumas.”1658

Entretanto, Camus adverte: “essas conseqüências não se devem absolutamente

à revolta em si ou, pelo menos, elas só vêm à tona na medida em que o revoltado

esquece as suas origens, cansa da dura tensão entre o sim e o não, entregando-se por

fim à negação de todas as coisas ou à submissão total.”1659

Como bem compreendeu Maurice Weyembergh1660, o segredo da manutenção

do elã original da revolta para Camus está num perpétuo movimento de rememoração

de suas origens. O tesouro do homem revoltado está na rememoração dos limites e da

fragilid

1661.

ade de sua condição.

Camus pretende elaborar em O Homem Revoltado, portanto, uma espécie de

memorial da revolta, na intenção de submeter este movimento multiforme à

interrogação constante, numa intenção que podemos caracterizar, no limite, como

rigorista: trata-se de perscrutar de maneira intransigente as diversas manifestações da

revolta submetendo-as ao crivo de seus valores originários

mémoire des origines.p, 224. seguir que Camus empreenderá suas análises em duas frentes: a revolta metafísica e a

1657 HR, 437. 1658 HR, 437. 1659 HR, 437. 1660“Toda obra de Camus é disposta sob o signo da memória e da comemoração.”WEYEMBERG, M. Albert Camus ou la1661Veremos arevolta histórica.

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Uma vez mais se impõe a metodologia do pensamento e da conduta

interrog pode privar-se de memória: ele é uma

nsão perpétua. Ao segui-lo em suas obras e nos seus atos, teremos que dizer, a cada

vez, se

ante, “o pensamento revoltado não

te

ele continua fiel à sua nobreza primeira ou se, por cansaço ou loucura,

esquece-a, pelo contrário, em uma embriaguez de tirania ou de servidão.”1662

Como se verá oportunamente de maneira mais aprofundada, o eixo deste

drama revoltado está, segundo Camus, justamente no esquecimento tanto dos limites

de seu

e ela descobre em si própria e

no qua

poder transformador, quanto da limitação originária oriunda da absurdidade,

antes de tudo, cósmica, de que o homem é refém: “Para existir, o homem deve

revoltar-se, mas sua revolta deve respeitar o limite qu

l os homens, ao se unirem, começam a existir.”1663

*

10)A dimensão metafísica da revolta

Para Camus, é Sade quem primeiro procede uma ofensiva coerente contra a

ordem metafísica, mas antes dele, desde os gregos até às portas do século XVIII, o

escritor entrevê uma linhagem insurreta que instiga, em diferentes níveis, à

contestação da condição humana.

Se Prometeu é o ícone da rebelião par excellance aos olhos contemporâneos,

Camus se apressará em diferenciar rigorosamente a contestação empreendida no

mundo Grego, daquela empreendida posteriormente.

Prometeu se assevera, sem dúvida, um modelo de insurreição, mesmo que no

seio de uma cultura na qual a noção de limite é central - traços, segundo Camus,

prometéicos como “a luta contra a morte” e o “o messianismo” serão caros às

manifestações contemporâneas da revolta. Contudo, Camus compreende que o

diferencial maior das duas esferas da contestação está na compreensão do “destino”

que, no mundo grego, impõe um limite interno à revolta: “o seu rebelde não se volta

contra

toda a criação,e sim, contra Zeus, que é sempre apenas um dos deuses, e cujos

dias estão contados.”1664 O homem antigo, imerso no destino, que é ele mesmo a

natureza, desconhece esta contestação absoluta da ordem que promove a manifestação

1662 HR,431. 1663 HR, 431. 1664 HR, 439.

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contemporânea da revolta: “Revoltar-se contra a natureza corresponde a revoltar-se

contra si mesmo. É bater com a cabeça na parede.”1665

Assim, Camus expressa uma diferença manifesta entre a revolta antiga e a

revolta metafísica contemporânea; Em sua primeira roupagem, a revolta é inseparável

de uma concepção cósmica que implica a mesura: “O grego pinta, sem dúvida, a

desproporção, posto que ela existe, mas atribui-lhe um lugar e, assim, um limite.”1666

Enquanto que, em sua manifestação contemporânea, como veremos, a revolta

desconhece protocolos.

No mundo grego, reforça Camus, a situação humana não se dá, portanto,

uma r

rimento está, para Camus, como que diluída numa dimensão cósmica com

direção à negação absoluta se aprofunda, entretanto, já no fim da

n elação de exterioridade com o universo que permitiria, como na perspectiva

ulterior, um julgamento da ordem do mundo, da injustiça da ordem do mundo – como

na feição contemporânea da revolta. Numa relação de imersão total no destino-

natureza, isto é, implicado na ordem do tempo, no homem grego a responsabilidade

sobre o sof

a qual a perspectiva humana não pretende rivalizar. Daí o reconhecimento de Édipo

que, “cego e desgraçado”1667 compreende que “tudo está bem”1668. No universo

grego as culpas humanas são partilhadas pelo cosmo: “há mais erros do que crimes,

sendo a desproporção o único crime definitivo”1669Camus reforça a disparidade

profunda entre o elã antigo e o espírito contemporâneo da contestação: “no mundo

totalmente histórico que o nosso ameaça ser, não há mais erros, só há crimes, dos

quais o primeiro é a ponderação.”1670

Se em sua expressão mais abrangente o mundo grego manteve, portanto, o

espírito de revolta como que margeado por um horizonte metafísico, segundo Camus,

a gradação em

antigüidade nas filosofias de Epicuro e no remodelamento do epicurismo por

Lucrécio.

É de sobremaneira importância notar a interpretação extremamente

interessada e, no limite, pessoal que Camus opera do filósofo grego. Para Camus, é

um movimento de “revolta defensiva” que conduz Epicuro a banir à morte do

horizonte de preocupações humanas: a elaboração filosófica de uma concepção de

1665 HR, 439. 1666 HR, 439. 1667 HR, 439. 1668 HR, 439. 1669 HR, 439. 1670 HR, 440.

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universo no qual a morte perde seu sentido, seria uma expressão da angústia profunda

diante da impotência humana frente à finitude. Citando a segunda máxima capital de

Epicuro, Camus, inverte o senso primordial que este autor assume tradicionalmente na

história do pensamento: “a morte não tem nenhuma relação conosco; pois aquele que

se encontra dissoluto é insensível, e o que é insensível não possui nenhuma relação

conosco.”1671

De fato, Epicuro reforça esta opinião em outras partes dos textos que dele nos

restaram, tais como na carta a Ménécée: “Da maneira que foi esboçada pelos deuses,

da morte se diz que, pelo fato de ser um estado que não comunica com o estado do

vivo, ela não pode ser tomada, de um ponto de vista físico, por algo que possa

perturbar a organização da vida.”1672 Entretanto, segundo a opinião balizada de Jean-

Marie Guyau, por exemplo, o esforço de Epicuro comportaria um conteúdo mais

positivo daquele restaurado por Camus, pois ele visaria, não insinuar uma contestação

contra a condição humana, mas, ao contrário, “apaziguar este temor ainda primitivo

da morte.”1673 Para Guyau, seja em Epicuro, seja em Lucrécio, o temor da morte é

uma potência sobretudo imaginativa que é a origem de todos os grilhões humanos,

pois ela submete o homem ao temor constante e à submissão aos deuses. No sistema

epicurista, no qual homem e natureza partilham da mesma essência, átomos e

movimento, a morte tornar-se –ia simplesmente uma conseqüência natural e

irreprimível de um cosmo tão contingente quanto o homem. Só o que vive e sente

participa do universo, logo, para Epicuro, a morte não pode ser uma experiência de

vida: “quando a morte é, não somos mais. Ela não é pois nem para os vivos, nem

para os mortos; pois, para aqueles que são, ela não é; e para aqueles para quem ela

é, não são mais.”1674 Opinião semelhante divulga Lucrécio para quem a indiferença

para com a morte é traço de almejada sabedoria: “A morte não é nada para nós e não

nos toca em nada visto que o espírito revela sua natureza mortal.”1675 As opiniões de

Lucrécio sobre o caráter irrisório da morte em sua obra, Da natureza, segundo Guyau,

re-afirmam as convicções de Epicuro; ambos pretenderiam, afinal, deslindar os

homens de seu tempo do aprisionamento do medo que lhes amarga a vida, lhes

cerceia à liberdade e os submete aos deuses. Construindo uma concepção de universo

99. HR, 440. 1671 EPICURO. Lettres, Máximes, Sentences, p.1

1672 EPICURO. Lettre à Ménécée (124-127). Idem.p, 115. 1673 GUYAU, J-M. La morale d´Épicure.p, 166. 1674 EPICURO. Lettre à Ménécée (124-127). Idem.p, 193. 1675 LUCRECIO. De la nature. III, 830. Flammarion, p.227.

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onde a morte é absolutamente natural e parte da estrutura cósmica, Epicuro e Lucrécio

fundem homem e natureza numa absurdidade1676 fundamental em que morte e vida se

sucedem numa temporalidade vazia. Homem e natureza se espelham em sua

primordial fugacidade: “É necessário matéria para as novas gerações, as quais, suas

vidas acabadas, te seguirão na morte. Pois, assim como tu, um dia elas morrerão.

Assim os seres não cessam de nascer um e outro. Nenhum recebe a vida como

propriedade; somente a usufruem, esta é a lei para todos. E veja, atrás de ti, que

nada foram para nós a eternidade do tempo antes de nosso nascimento. Eis, pois, o

espelho onde a natureza nos mostra o futuro, sim, o tempo que seguirá nossa morte.

Nada assustadora ela lhe parecerá? Nada triste?Não seria uma tranqüilidade maior

do que qualquer sono?”1677 Segundo Guyau, estabelecendo um movimento

espontâneo do átomo na geração da vida, o clinamen, que é aludido por Camus,

Epicuro instala, de maneira inaudita até então, a mesma contingência radical

instaurada na ordem humana na ordem divina, enlaçando, assim, homem e natureza

no espectro da necessidade absoluta e fatal do cosmo: “o átomo poderá, pois, tirar de

si o movimento que o aproximará dos outros átomos; e poderá se alçando

espontaneamente à necessidade que o arrasta, se alçar, por aí, à solidão e começar a

criar o cosmo.”(...) “O vazio se povoa de formas estranhas, e todos esses mundos

nascem, cuja a harmonia regular, uma vez produzida, nos faz crer falsamente numa

fatalidade primitiva.” 1678 Esta concepção epistemológica universal concebida por

Epicuro e reiterada por Lucrécio, segundo Guyau, é ancorada num objetivo moral

expresso: a supressão da necessidade e, no limite, do domínio dos deuses: “a partir de

então não é mais necessário, para compreender o universo, recorrer à un «deux ex

machinà», à uma causa superior e sobrenatural, que tornar-se-ia para o homem uma

potência tirânica; o mundo pode passar sem deuses, ele pode passar sem uma

inteligência ordenadora, conseqüentemente necessitante.”1679 A potência da

umearg ntação epistemológica de Epicuro é, assim, retumbante do ponto de vista ético:

“a iniciativa dos átomos pode substituir a iniciativa de um criador; sua vontade

espontânea, que tornar-se-á liberdade no homem, pode se substituir à vontade

refletida de um demiurgo ou de uma providência.”1680 Por onde podemos

1676 O termo aplicado a Epicuro e Lucrécio é de Guyau. GUYAU, J-M. La morale d´Épicure.p. 137.

on, p.235. 1677 LUCRECIO. De la nature. III, 975. Flammari1678 GUYAU, J-M. La morale d´Épicure.p, 130-1. 1679 GUYAU, J-M. La morale d´Épicure.p, 131. 1680 GUYAU, J-M. La morale d´Épicure.p, 132.

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compreender, não a negação dos deuses1681 em Epicuro, mas o afastamento radical do

âmbito divino, da esfera da vida e das preocupações humanas: os deuses não podem

interferir nos assuntos humanos assim como a morte não guarda qualquer relação com

a experiência humana da vida. Tanto o medo da morte, quanto o temor aos deuses são

, assim, rechaçados no mesmo movimento de compreensão do universo: “pois não há

nada a temer no fato de viver, para quem compreendeu autenticamente que não há

nada a temer no fato de morrer.”1682 Jean-François Balaudé é enfático, “a

assimilação desta análise nos libera(do pensamento)da morte.”1683

Ora, se poderíamos divisar por este prisma o conteúdo corrosivo da filosofia

epicurista para o ambiente metafísico do fim da antigüidade, a análise de Camus

prefere salientar, por um outro ângulo o conteúdo crítico dos esforços de Epicuro e

Lucrécio. Camus questiona a dimensão “positiva” da afirmação epicureana da

liberdade, preferindo notar a persistência da temática da morte e a iniqüidade da

reflexão filosófica para uma autêntica solução moral do dilema da finitude. A análise

de Epicuro, afinal, nos liberará de fato do “pensamento” da morte? Sobretudo se a

morte, ela mesma, ubíqua e cruel, assola e destrói com indiferença à tudo e à todos,

malgrado o esquecimento metódico dos construtos filosóficos? De início, Camus

contesta a “ambientação” libertária e positiva do epicurismo restaurada pela crítica

contemporânea: “A terrível tristeza de Epicuro já traz um novo diapasão. Ela nasce,

sem dúvida, de uma angústia da morte que não é estranha ao espírito grego. Mas o

tom patético que essa angústia assume é revelador. «Podemos nos precaver contra

toda espécie de coisas; mas no que concerne à morte, continuamos como habitantes

de uma cidadela arrasada». Lucrécio afirma: «A substância deste vasto mundo está

reservada para a morte e a ruína. Por que então, adiar o gozo para mais tarde?»”1684

Preocupado com o que o experimento filosófico epicureano vela da experiência

efetiva dos homens gregos, Camus nota na estratégia de Epicuro um violento

cerceamento, irreal e forçado, da dimensão efetiva, afetiva, que a sombra da morte

projeta na experiência humana: “Já que a morte nos ameaça, é preciso demonstrar

que a morte não é nada. Como Epiteto e Marco Aurélio, Epicuro vai banir a morte da

1681 “Pois os deuses existem”. EPICURO. Lettre à Ménécée (124-127). Idem.p, 192. 1682 EPICURO. Lettre à Ménécée (124-127). Idem.p, 192. 1683 BALAUDÉ, J-F. in EPICURO. Lettre à Ménécée. Introduction, p.115. 1684 HR, 440.

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existência humana(...)1685O ser é pedra. A singular volúpia da qual nos fala Epicuro

reside sobretudo na ausência de sofrimento; é a felicidade das pedras. Para escapar

ao destino, em um admirável movimento que reencontraremos nos nossos grandes

clássicos, Epicuro mata a sensibilidade; e já de saída, o primeiro grito da

sensibilidade, que é a esperança”1686

No banimento conceitual da morte e no afastamento do âmbito divino da

esfera humana empreendido por Epicuro, a leitura camusiana privilegia, não o

surgimento de uma potência humana livre do espectro amedrontador dos deuses, mas,

simplesmente, uma negação radical da esperança. Já que seus construtos não detém,

nem tampouco desmentem ou apaziguam a tragédia cotidiana da morte, o legado

profundo de Epicuro não é a tranqüilidade indiferente, mas o desespero

desesperançado e circunspecto: preâmbulo e germe de uma revolta metafísica que se

alastrará e potencializará brevemente. O que a postura de Epicuro salienta, por

contraste, segundo Camus, é a inutilidade dos esforços da elucubração humana para

apaziguar o sofrimento da finitude. A persistência dilacerante deste horizonte de

contingência, de absurdidade, antecipa o desespero silencioso que repousará também

nos sistemas contemporâneos que pretendem vencer à absurdidade unicamente pela

virtude da coesão argumentativa e da convicção em seus próprias cidadelas

conceituais. Na construção de Epicuro e de Lucrécio o sistema filosófico é, assim, o

último refúgio: uma “cidadela cega”1687(citadelle aveugle) contra a evidência

irredutível de um mundo em decomposição. Esta perseguição obstinada e, no fundo,

desesperada por uma ascese sem esperança em meio ao caos, antecâmara do ódio e do

clamor contra o absurdo e contra a injustiça universais, Camus entrevê radicalizada

nas páginas finais do Rerum Natura de Lucrécio, na “prodigiosa imagem de

santuários divinos cheios de cadáveres da peste.”1688 Negados ao homem o recurso

do socorro aos deuses, aos mitos - à esperança – cabe contemplar de maneira

consciente e indignada a absurdidade absoluta da peste testemunhando o sofrimento

atroz de nossa condição: “Agora direi a causa da epidemia , donde surge esta força

mórbida soprando destruição e morte sobre os homens e as rezes. Para começar

existem, como demonstrei acima os átomos de coisas que nos são salutares mas assim 1685 Camus cita a II Máxima de Epicuro a que nos referimos a pouco. “a morte não tem nenhuma relação conosco; pois aquele que se encontra dissoluto é insensível, e o que é insensível não possui nenhuma relação conosco.” EPICURO. Lettres, Máximes, Sentences, p.199. HR, 440. 1686 HR, 440-1. 1687 HR, 442. 1688 HR, 443.

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também voam mil germes de doença e de morte; quando, por acaso eles se unem e

perturbam o céu, o ar torna-se mórbido. E todo este poder de doença, esta

pestilência, nos vêm seja do exterior, como das neblinas e das brumas que caem do

céu, seja da terra ela mesma na qual o mal surge quando no solo úmido se putrefaz,

...)depois, pela garganta, a doença se alastra ao

, viviam amputados

pelo fer

rte ou o luto não atentava(...)

grande

javam lutas sangrentas, tudo

revoltado e o passo adiante que Camus entrevê em Epicuro e, principalmente, em

batido de chuvas e sóis intempestivos(...)Esta é a causa da peste(...)De começo eles

sentem a cabeça queimar, em chamas, os olhos invadidos de um estrondoso

vermelho. Suas gargantas negras, transpiram também por dentro, o sangue, as

úlceras obstruem o canal e a voz(

peito, afluindo em massa para um coração dolorido(...)o interior do homem em

brasa até os ossos, um fogo queimando o estômago, os nervos e as mãos se

contratavam, o corpo tremia(...)terríveis úlceras, um fluxo negro nos

intestinos(...)alguns gravemente terrificados pelo limiar da morte

ro das partes viris, outro sem mãos ou sem pés persistiam à viver, outro ainda

permanecia sem os olhos, tamanho o medo da morte lhes havia invadido(...)Não se

poderia encontrar uma pessoa que a doença, a mo

parte se acamava de mágoa(...)A urgência e a misérias inspiram os maiores

horrores. Sob as fogueiras construídas por outros, os homens berravam depositando

os de seu sangue, aproximavam-se da chama, enga

menos abandonar os corpos.”1689

De fato, no melancólico desfecho do Rerum Natura é bem evidente a desproporção

absoluta entre o conhecimento das causas e a experimentação dos efeitos, sobretudo

no que tange àquilo que é propriamente humano. De que serve o saber frente ao

testemunho e ao próprio padecer?

De certo que o filósofo desesperançado na intervenção dos deuses toma para si

o zelo para com o homem, assumindo, de alguma maneira “ o seu lugar”1690. Mas sua

ciência das coisas, nada significa, não salva e não consola: só há silêncio na cidadela

conceitual que cala cedendo lugar ao horror puro do testemunho.

O desespero contido diante do espetáculo do mundo é, afinal, o legado

Lucrécio, em direção à negação metafísica absoluta.

1689 LUCRECIO. De la nature. VI. (1090; 1140, 1150,1160 ; 1250 ; 1290) ; Flammarion, p.457-67. 1690 HR, 443.

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Para Camus, nos despojos destes dois filósofos já se insinuam uma nova

sensibilidade que originará o deus antropomórfico dos cristão, “a quem a revolta pode

pedir pessoalmente uma prestação de contas.”1691

Planejado por Deus, o assassinato de Abel por Caim é o primeiro piparote da

revolta represada pela concepção antiga do destino: “Com Caim, a primeira revolta,

coincide com o primeiro crime.”1692 A face oculta do Deus terrível do Antigo

Testamento “irá mobilizar a energia revoltada.”1693Todos os olhos que clamam por

justiça voltam a face ao Deus escondido, e é de dentro desta nova religião que se

alastra, que se respira, a atmosfera da revolta. Visto esta personificação do autor das

“regras

ao criar um intercessor entre ele e o homem.”1696O Cristo

vem, n

” perversas, do “mestre do jogo”1694, e do campo de batalha - a história - o

revoltado da modernidade em seu itinerário de negação é herdeiro da insubmissão do

primeiro criminoso: “A história da revolta, tal como a vivemos atualmente, é muito

mais a dos filhos de Caim do que a dos discípulos de Prometeu.”1695 Para Camus, o

Novo Testamento procura corrigir o rumo inexoravelmente violento do anterior, no

qual o abismo absoluto entre o escravo e seu Mestre implacável insuflava o ódio e a

imprecação, visando “responder antecipadamente a todos os Caim do mundo ao

suavizar a figura de Deus e

a leitura de Camus, amenizar a revolta, mostrar que o próprio Deus sofre e se

desespera, “o mal e a morte não mais lhe são imputáveis, já que ele está dilacerado e

morre.”(...) A noite do Gólgota só tem importância na história dos homens porque

nessas trevas a divindade, abandonando ostensivamente os seus previlégios

tradicionais, viveu até o fim, incluindo o desespero, a angústia da morte. 1697

Seguramente é significativo assinalar que na transição entre o Deus Terrível

do antigo testamento e a figura intermediadora do Cristo, Pascal simbolize para

Camus o recalque da revolta, a domesticação forçosa e difícil da dúvida e do

inconformismo diante da absurdidade – traços insinuados de dentro mesmo do

cristianismo - através de uma sublimação “cega” na fé:“Inversamente, é preciso

submeter-se ao Deus de Abrãao, de Isaac e de Jacó, quando completou, como Pascal,

1692 HR, 443. 1693 HR, 443.

berba intrepretação de Laurent Thirouin sobre o jogo de Deus em Pascal. THIROUIN, L. s réglès. Le modèle du jeu dans la pensée de Pascal.

1691 HR, 443.

1694 Notar a soL´Hasard et le1695 HR, 443. 1696 HR, 443. 1697 HR, 444.

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a carreira da inteligência revoltada. A alma que mais duvida aspira ao jansenismo

mais exarcerbado .”. 1698

Embora demasiado ligeira, e desprovida, como de hábito, de qualquer

referên

duas esferas do cristianismo e, sobretudo, a latência reprimida da revolta nesta

cia, a menção de Camus faz jus à Pascal na medida em que o dilaceramento,

talvez, constitutivo do pensamento do seiscentista seja, de fato, a coexistência entre o

desvelo absolutamente desencantado do acaso como fundador da ordem social, a

recusa das mesuras necessárias ao poder político desmascarado como puramente

arbitrário e convencional, a denúncia da violência, da morte e do medo como únicos

horizontes da história, a conscientização angustiada que o sofrimento humano é parte

da Ordem Penal, do jogo perverso de Deus, e, -malgrado este percurso que conduz

aos cumes da dúvida, do desespero e do abandono -, encontramos à cabo, à rendição,

exaurida e carente de eternidade, nas brumas de um Deus cego, surdo, mudo e

escondido. Neste sentido, Pascal sintetiza a manutenção paradoxal e problemática das

doutrina.

Muitos fragmentos dos Pensamentos colaboram nesta perspectiva que

entremostra de maneira bastante evidente este movimento de indignação

constantemente contraposto à assunção à Ordem Penal em Pascal.

Os aforismas dedicados ao acaso, por exemplo, são numerosos, e todas as

esferas da condição humana estão perpassados pela constatação da contingência da

existência: o acaso do nascimento1699, do amor1700, das leis1701, da política1702, do

costumes e das escolha das profissões1703, da riqueza e do poder1704, da guerra1705, da

1698 HR, 443. Será preciso dispor em outro momento deste trabalho um comentário longo à respeito da referência ao Memorial de Pascal que Camus lança aqui. Um comentário completo sobre a dimensão da revolta em Pascal será elaborado oportunamente.

de do acaso que semeou as leis

rrer às leis fundamentais e primitivas do

dores.” a condition des Grands, 366. “Vós herdais, dizeis, vossas

mil acasos que vossos ancestrais as adquiriram e as

1699“...não tendes direito algum por vós próprio ou por vosso nascimento: e foi uma infinidade de acasos que não só vos fez um filho de um duque, como até mesmo vir a este mundo...”(Pascal, B. Trois Discours sur la condition des Grands, 366.) 1700PASCAL,B. Pensées. (Br.163-L.197) “(Nada mostra melhor a vaidade dos homens que considerar a causa e os efeitos do amor, pois todo o universo muda. O nariz de Cléopâtre.)” 1701PASCAL,B. Pensées.(Br.294-L.60)“Nada é tão falível como estas leis que reparam as faltas(…)Decerto a sustentariam obstinadamente, se a temeridahumanas,tivesse encontrado nelas pelo menos uma que fosse universal(...)Quem a reduz ao seu princípio esmaga-a...” 1702 PASCAL,B. Pensées. (Br.294-L.60) “Três graus de elevação no pólo derrubam à jurisprudência. Um meridiano decide a verdade.” (...)É preciso, diz-se, recoEstado(...)é um jogo certo para tudo perder.” 1703 PASCAL,B. Pensées. (Br.97-L.634)“A coisa mais importante do mundo é a escolha da profissão. O acaso a dispõe.O costume faz pedreiros, soldados e empalha1704 PASCAL, B. Trois Discours sur lriquezas de vossos ancestrais; mas não é por

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história1706 - o acaso que paira no desfecho malquisto e sempre inesperado da

morte1707. Com estas constatações, que, passo a passo, minam as vias do sentido da

existência, Pascal se encaminha ao limiar da absurdidade, ante-sala da revolta: “O

silêncio eterno dos espaços infinitos me apavora.”1708“Por que é limitado meu

conhecimento? Meu porte? Minha duração, antes a cem do que a mil anos?Que

razão teve a natureza para dar-ma assim”1709. “Quando penso na pequena duração

de minha vida, absorvida na eternidade anterior e posterior(...)fundido nos espaços

que ignoro e que me ignoram, aterro-me e assombro-me de ver-me aqui e não

alhures, pois não há razão alguma para que esteja aqui e não alhures, agora e não

em outro momento qualquer. Quem me colocou nestas condições?”1710

Mas Pascal não resiste permanecer nesta perplexidade. Por ocasião da morte

de seu pai, ele procura divisar o evento, “não como um efeito do acaso, não como

uma necessidade fatal da natureza, não como um jogo de elementos e de partes que

compõem o homem(pois Deus não abandona seus eleitos aos caprichos nem ao

acaso), mas como uma seqüência indispensável, inevitável, justa, santa, útil ao bem

da Igreja e a exaltação do nome e da grandeza de Deus, ordenada pela sua

Providência, concebida em toda eternidade para ser executada na plenitude de seu

tempo, em tal ano , em tal dia, em tal hora, em tal lugar, de tal maneira; enfim que

tudo que acontece foi todo tempo previsto e pré - ordenado por Deus.”1711 A

investigação exaustiva dos rastros das Profecias do Antigo Testamento na história do

conservaram?(...)Uma reviravolta na imaginação dos que elaboraram a lei vos teria feito pobre e somente as circunstâncias do acaso vos fez nascer com a fantasia de leis favoráveis à vossa condição...” 1705PASCAL,B. Pensées. (Br.291) “«Por que mmargem.»”(Br.293) “«Por que me matais» - Como

e matais?»”(Br.292)“«Ele reside na outra ! Não habitais do outro lado da água?Meu amigo,

se moráresidis d

mundo.” Lembremos que Carlos I foi decapitado em 1649, o rei da Polônia João Casimiro foi destronado em 1656 e Cristina da Suécia abdicou em 1654.

9) “Conhecemo-nos tão pouco que muitos pensam morrer m quando estão próximos da morte, não

estes a formar-se.”

uil. P.275.

sseis deste lado, eu seria um assassino, seria injusto, matar-vos desta maneira; mas, desde que o outro lado, sou um bravo, e isso é justo»”Aprofundaremos oportunamente a postura política

de Pascal que recusa, como Camus, a legitimação do assassinato. É assustadora a lucidez deste fragmento do século XVII, se pensamos em nossa realidade atual na qual as fronteiras entre ricos e pobres tornam ou criminoso, ou louvável o extermínio do outro. 1706PASCAL,B. Pensées. (Br.177-L.62) « (Três hóspedes). Quem tivesse a amizade do rei da Inglaterra, do rei da Polônia e da rainha da Suécia teria julgado que lhe faltaria retiro e asilo neste

1707PASCAL,B. Pensées. (Br.175.L.70quando estão passando bem, e muitos julgam passar besentindo a febre próxima ou o abscesso pr1708 PASCAL,B. Pensées(Br.206-L.201) 1709 PASCAL,B. Pensées(Br.208-L.194) 1710 PASCAL,B. Pensées(Br.205-L.68) 1711 PASCAL,B. Lettres... Ouvres Complètes. Se

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Novo Testamento (“...só posso aprovar àqueles que procuram gemendo”1712) será o

expediente que fundamentará o salto na própria busca de Pascal: “para que não

encarassem como efeito do acaso, era necessário que fosse predito”1713(...) “após as

predições tão admiráveis da ordem do mundo que vejo realizadas, vejo que isto é

divino.”1714

Toda a lucidez da constatação da absurdidade em inúmeras instâncias da existência,

da epistemologia à política, se esboroa no clamor do sentido. Pascal, prefere o

esmorecimento amargo na irracionalidade, o “embrutecimento”(abêtissement) e

“inverte”, afinal, o sinal da revolta. Ele revolta-se, enfim, contra a própria dúvida:

“Conheçai, pois, soberbo, que paradoxo és para vós mesmo. Humilha-vos razão

impotente!Calai-vos natureza imbecil...”1715

Até mesmo esta história aparentemente ocasional, seguramente impostora

sangrenta e injusta, que martiriza e massacra os homens, precisa ser segundo Pascal,

não apenas aceita, mas amada visto que a ordem penal é a “lógica do pior”1716- a

maneira pela qual Deus, sem palavras, se exprime aos homens: “Como é belo ver com

os olhos da fé Dario e Ciro, Alexandre, os romanos, Pompeu e Herodes, todos

agindo, sem o saber, em prol da glória do Evangelho.” 1717. Como comenta

L.Thirouin, “Em face do homem, miserável jogador, tão pouco capaz de assumir o

acaso, quanto dele se livrar, o Deus dos Pensamentos ganha freqüentemente a

imagem simétrica de um mestre do jogo .” 1718 Do ponto de vista da submissão à

ordem penal, até mesmo o elogio de Herodes é louvável. Do sofrimento individual à

diáspora dos judeus, que é um martírio coletivo, tudo se encaixa no jogo de Deus, “a

razão dos efeitos marca a grandeza do homem de ter tirado da concupiscência tão

bela ordem.”1719 “Os verdadeiros cristãos obedecem entretanto às loucuras; não

porque respeitem as loucuras, mas sim a ordem de Deus, a qual, para punição dos

homens, escravizou-os a essas loucuras....”1720 Nos Pensamentos de Pascal, esta

assunção dolorosa e difícil da face terrível da lógica de Deus, encontra-se expressa de

maneira intensa no longo e atípico fragmento Mistério de Jesus, no qual as dúvidas

1712 PASCAL,B. Pensées(Br.421-L.405). 1713 PASCAL,B. Pensées(Br.707-L.385). 1714 PASCAL,B. Pensées(Br.734-L.329).

ection I, Contrarietés/VII.

s.Le modèle du jeu dans la pensée de Pascal.p.199

. Pensées(Br.338-L.14).

1715 PASCAL,B. Pensées. Papiers classés/S1716 ROSSET, C. La logique du pire. Puf, 1995. 1717 PASCAL,B. Pensées(Br.701-L.317). 1718 THIROUIN, L. Le hasard et les règle1719 PASCAL,B. Pensées(Br.403-L.106). 1720 PASCAL,B

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supremas, a inquietude, a melancolia e o abandono, demasiado humanos, estão

projetados e encarnados no esboço pascaliano de um Cristo apreensivo e sorumbático

à espera de seu horror: “Jesus foi abandonado sozinho à cólera de Deus(...)Sofre essa

pena e esse abandono no horror da noite(...)É um suplício de mão não humana, mas

onipotente e é preciso ser onipotente para suportá-lo.”1721

Camus, lucidamente, divisa nesta atitude paradoxal do cristianismo de estilo

pascaliano - desvelo da absurdidade e assunção “embrutecida” à perversidade da

ordem penal - o rastro de um pessimismo contundente que cultiva à indiferença em

relação ao sofrimento da condição humana, barganhando à absurdidade da existência,

não no gozo da ascese, mas no assombro da vertigem partilhada pelo próprio homem-

deus: “a amarga intuição do cristianismo e seu pessimismo legítimo quanto ao

coração humano é que a injustiça generalizada é tão satisfatória para o homem

quanto a injustiça total(...)Só o sofrimento de Deus, e o sofrimento mais desgraçado

pode aliviar a agonia dos homens. Se tudo, sem exceção, do céu à terra, está entregue

à dor, uma estanha felicidade então é possível.”1722Um extrato do Memorial de

Pascal, parcialmente posto em evidência pelo comentário de Camus sobre o

seiscentista, evidencia este desfecho, sem dúvida, trágico do itinerário cristão do

absurdo: “Fogo(...)Deus de Abraão, Deus de Isaac. Deus de Jacó, não dos filósofos e

dos sábios(...) Alegria, alegria, lágrimas de alegria.”1723

Não obstante, não passa despercebido o trecho final deste singelo mas

significativo comentário de Camus sobre Pascal, que tomaremos a liberdade de repetir

ainda uma vez, entremostrando-o de um ponto de vista mais amplo e, agora, melhor

informado: “...é sobretudo o Deus do Antigo Testamento que irá mobilizar a energia

revoltada. Inversamente, é preciso submeter-se ao Deus de Abrãao, de Isaac e de

Jacó, quando completou, como Pascal, a carreira da inteligência revoltada. A alma

que mais duvida aspira ao jansenismo mais exarcerbado .”1724 Ora, nos parece

plausível que Camus, assim como procedeu em seu comentário sobre Dostoievsky em

O Mito de Sísifo, compreenda o legado pascaliano, talvez, como digno da

e revoltada. Segundo o comentário acima, em Pascal, a assunção a um

ambigüidad

1721 PASCAL,B. Pensées(Br.553/791-L.919). 1722 HR, 446. 1723 PASCAL,B. Memorial. Intégrale, 1724 HR, 443.

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Deus inclemente e impiedoso não seria “exigida”, visto a incômoda persistência da

dúvida, depois de completada “a carreira da inteligência revoltada”?1725

Não seria desenxabido pensar, portanto que, para Camus haveria, afinal,

possivelmente, um lado dostoiévskiano em Pascal, na medida em que os objetivos

positivos dos Pensamentos estão, malgrado as intenções primitivas do autor, como

que entremeados de uma dúvida hiperbólica e persistente; «Pascal: “a alma que mais

duvida.”» Haveria nesta sinfonia cristã de Pascal talvez, demasiadas notas que

desafinam: como em Dostoievsky, em Pascal, qualquer coisa escaparia ao sistema

almejado pelo próprio autor. Um resíduo reprimido de revolta, talvez?

De todo modo, após o dilaceramento de Pascal, para Camus, paradoxalmente,

serão os blasfemos que farão reviver o Deus terrível que o cristianismo quis ocultar

interpondo a figura doce do Cristo1726: “Uma de suas profundas audácias foi

justamente a de anexar o próprio Cristo à sua facção, encerrando a sua história no

alto da cruz e no grito amargo que precedeu sua agonia.”1727Mas os “libertinos” que

Camus vagamente identifica com Sade mantém, através de suas imprecações, viva “a

adição do deus terrível”, mantendo, ainda que de maneira pejorativa, o horizonte

metafísico do cristianismo. Enquanto Cristo martirizado continuou de pé,

ambal

a certeza de uma ordem penal, “só o sacrifício de um deus inocente

a

contra

e Dostoievsky e

tr

o

c eante em meio ao desmascaramento de seu “romance enfadonho” o homem

gozou ainda das prerrogativas cósmicas de um deus sofredor – sua degradação era

resgatada n

poderia justificar a longa e universal tortura da inocência.”1728 Submetido à crítica

da razão profana do século XVIII, negado o Cristo, despojadas suas derradeiras

máscaras de divindade, “a dor voltou a ser o quinhão dos homens. Jesus frustrado é

apenas um inocente a mais, que os representantes de Abraão torturaram de maneira

espetacular”(...)Assim se encontrará aplainado o terreno para a grande ofensiv

um céu inimigo.”1729Neste sentido, para Camus, os libertinos, principalmente

na figura de Sade, semeiam o vento que antecipa às tempestades d

Um fragmento obscuro e misterioso dos Pensamentos condiz de algum modo nesta apreciação nos dizendo que, por algum motivo(quem sabe por causa da persistência da angústia), é a própria crença que deve ser “automatizada”: “...somos

1725

autômato tanto quanto espírito(...)O costume torna as nossas provas mais fortes e mais críveis; inclina o autômato, o qual arrasta o espírito sem que este o perceba...” 1726 É pelo rigorismo e pelo desprezo ao poder estabelecido que o jansenismo é perseguido no século

movimento insuportável aos olhos do poder político em virtude de sua indignação ristianismo era duro demais para o espírito da época...

XVII. Era umrigorista. Seu c1727 HR, 445. 1728 HR, 445. 1729 HR, 446.

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Nietzsche: “Dostoievsky, na imaginação, e Nietzsche, de fato, ampliarão

desmesuradamente o campo de atuação do pensamento revoltado e irão pedir uma

prestação de contas ao próprio deus de amor.”1730

icia na

repress

mente ateu. Partindo do princípio que todo

3

m os semelhantes.”1734 O crime humano somente mimetiza a

cruelda

*

Para Camus, Sade é o caso extremo do esquecimento das origens da revolta. É

ele quem conduz à desmesura ao seu limiar; às últimas conseqüências, a lógica

revoltada.

Ele sintetizaria também em sua pessoa, visto que viveu vinte e sete anos na

prisão, a conseqüência lógica do moto-contínuo da violência que se in

ão de Estado, “na medida em que foi tratado de maneira atroz pela sociedade,

reagiu de modo atroz.”1731 Sade exprimiu em imaginação, em sua vida enclausurada,

um elã de liberdade absoluta, inversamente proporcional ao que efetivamente viveu.

Este “sonho” de desmesura, segundo Camus foi profético posto que antecipou

que a vontade de liberdade absoluta se reverte em servidão absoluta.

Para Camus, Sade não é necessaria

autor é eventualmente “todos os seus personagens”, Camus se prende à Justine1732, a

heroína que é fulminada por um raio após o criminoso prometer à Deus conversão

caso ela fosse poupada. Segundo Camus “o crime humano é a resposta ao crime

divino. Há desse modo uma aposta libertina que é a réplica da aposta

pascaliana.”173

Se em Pascal, a contingência radical conduz a uma aposta na incerteza em um

Deus de amor, como podemos acompanhar na leitura do célebre fragmento L.233-

Br.418, e a assunção à Ordem Penal, em Sade, a resposta será uma réplica sangrenta,

à altura do criminoso-Deus. Segundo Camus para Sade é a própria religião que prova

que Deus é um assassino: “Se Deus mata e nega o homem, nada pode proibir que se

neguem e mate

de divina, é escrupulosamente elaborada a sua imagem e semelhança.

Mas esta lógica é dilacerante e é o rigor fulminante dos demonstrativos da

absurdidade que inspira, curiosamente, como em Pascal, a uma revolta de Sade contra

stine, ou, os infortúnios da virtude. ?

1730 HR, 445. 1731 HR, 447. 1732 SADE. Ju1733 HR, 448. 1734 HR, 448.

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si próprio. Se em Pascal, a escolha, no entanto, se resume ao dilaceramento a si, em

Sade, esta revolta se extravasa em todos os sentidos, numa ânsia de mutilação

universal: “uma dupla revolta vai doravante conduzir o raciocínio de Sade: contra a

em A Filosofia

da Alc

esmedida sadiana que almeja uma cidadela ideal onde todos os crimes

são admitidos. É a concepção da liberdade republicana, mas da ótica do prisioneiro

ordem do mundo e contra si mesmo.”1735

Como um deus natural, Sade renegará a moral humana em nome dos instintos

tomados como expressão irretorquível da natureza. A lógica da carnificina de Sade,

segundo Camus, se beneficiará do abundante material ideológico fornecido pelo

materialismo e pelo mecanicismo de sua época: “Sade irá renegar Deus em nome da

natureza.”1736

Abusando dos argumentos materialistas ele dirá que “a natureza tem

necessidade de crime,que é preciso destruir para criar”1737, reivindicando uma

legalidade absoluta da prática criminosa que, segundo ele, está fundamentada na

República mesma pois “ao guilhotinarem Deus no dia 21 de janeiro de 1793, ficaram

para sempre proibidos a condenação do crime e a censura dos instintos

maléficos.”1738

Se a Revolução Francesa institui a revolta transformadora, então, segundo

Sade, ela deveria ir até o fim em suas conseqüências lógicas. Camus menciona o

libelo Franceses mais um esforço para serem republicanos presente

ova como demonstração deste raciocínio implacável de Sade: “Aceitem a

liberdade do crime, que é a única liberdade racional, e entre para sempre na

insurreição, assim como se entra em estado de graça.”1739

Talvez não seja excessivo notar com atenção o comentário de Camus sobre o

rigor da lógica revoltada de Sade, que é sumamente importante em sua perspectiva

peculiar de interpretação histórico-ideológica-filosófica: “A monarquia, ao mesmo

tempo em que se mantinha, também mantinha a idéia de Deus que criava as leis.

Quanto à República, sustenta-se por si só e os costumes devem existir sem

mandamentos.”1740

Para Camus, este pressuposto ideológico, este sofisma, legitima a concepção

da liberdade d

1735 HR, 448. 1736 HR, 448. 1737 HR, 449. 1738 HR, 449. 1739 HR, 449 1740 HR, 450.

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que se exprime em sua integridade; o crime é a expressão mesma de sua concepção de

liberdade: “ela é o crime ou não é mais liberdade.”1741Na recusa deste elo

supostamente necessário entre liberdade e virtude, liberdade e justiça, que se encontra

âmag

entretanto, o aparente paradoxo que dignifica Sade em relação

máximo sua ambientação,

incluin

o o da reflexão sadiana: para Camus, “é neste instante que o seu pensamento é

mais profundo.”1742 Sade antecipa que a lógica da liberdade não é necessariamente a

expressão da justiça. Ela bem pode ser a expressão do mal absoluto.

Camus ressalta,

às atitudes contemporâneas imbuídas da lógica do terror revolucionário. Sade se opõe

absolutamente à pena de morte e a ritualização hipócrita do Estado, “matar um

homem no paroxismo de sua paixão é compreensível. Mandar que outra pessoa o

faça, na calma de uma meditação séria, a pretexto de um dever honroso, é

incompreensível.”1743 Para Sade, quem mata deve fazê-lo conseqüente com a

universalização das máximas do crime que vigoram também para si, o criminoso

também deve estar disposto a morrer. E sobretudo: o crime não pode ser apanágio da

Justiça pois ele é o que é. O Estado, eivado de hipocrisia, ousa punir “quando ele

próprio é criminoso(...)Não se pode escolher o crime para si e o castigo para os

outros.”1744

Estas “heresias” ao catecismo republicano levam Sade de volta à prisão e, à

queima dos 120 dias de Sodoma que ilustrava perigosamente à Revolução, segundo

Camus “a terrível oportunidade de levar adiante a sua lógica revoltada.”1745.

Esta radicalização absoluta da revolta rejeitada pela Revolução está presente

no código ético e na infinita burocracia do deboche1746 libertino da Sociedade dos

Amigos do Crime, que visa potencializar ao máximo a lei do desejo da casta

aristocrática libertina.

Os castelos, as fortalezas, as alcovas, serão clausuras invencíveis onde os

libertinos fugirão do acaso absoluto. Eles controlarão ao

do aí suas vítimas, erigindo o panótipo necessário à potencialização máxima da

dimensão do desejo que é expressão mesmo de sua concepção da natureza e do

universo: “a emancipação do homem se realiza, para Sade, nas fortalezas da

1741 HR, 450. 1742 HR, 450.

E-R. Sade – A felicidade Libertina.

1743 HR, 451. 1744 HR, 451. 1745 HR, 451. 1746 MORAIS,

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libertinagem, onde uma espécie de burocracia do vício regulamente a morte de

homens e mulheres que entraram para todo o sempre no inferno da necessidade.”1747

Esta racionalização do crime invoca a negação absoluta do outro, reduzido em

Sade, a uma “planta mineral”, um mero objeto descartável, expediente que virá a ser,

aliás, recorrente nas diversas formas que assume o totalitarismo contemporâneo de

quem Sade é, segundo Camus, legítimo precursor. A contabilização fria que é

resultado da aplicação rigorosa e eficaz dos preceitos da cidadela libertina é presságio

do que

s pois, segundo Camus, ele persiste, como

vimos,

porâneos, não se materializou senão na obra intelectual e em sua

loucura

eteica de Sade não pode ser de nenhum modo

desmen

clarividência de uma raiva acumulada, as conseqüências extremas de uma lógica

a sociedade do século vinte experimentará em termos de radicalização máxima

dos imperativos da indiferença: “«Massacrados até 1º de março: 10. A partir de

primeiro de março: 20. A serem massacrados: 16.v Total: 46.»Precursor, sem dúvida,

mais ainda modesto, como se vê.”1748 Sade não é apenas o primeiro exegeta dos

sistemas totalitários, mas um verdadeiro “mentor”, visto a importância que confere à

metodologia na arte do crime, ciente do quanto a ordem, a regra e a burocracia, são

fundamentais na concretização eficaz das metas do mal.

Mas este “precursor incompreendido” dos tempos modernos ainda não é tão

calculista como nossos contemporâneo

empenhando a própria vida em seus cálculos perversos: o sadiano mantêm

uma certa busca desenfreada e romântica da ascece através do crime - desconhecida

de nossos contemporâneos - que corresponde a uma fuga desenfreada do desespero,

que, no torvelinho da própria liberdade reduz a si mesmo à servidão e, no limite, ao

auto-aniquilamento. Neste sentido, Camus nos remete, como de hábito, à biografia de

Sade recordando que esta vontade de aniquilação cósmica de Sade, ao contrário da de

nossos contem

do fim da vida: “Prometeu finda em Onã.”1749 Sade, segundo Camus, teria

sido precursor da revolta literária, prelúdio das inúmeras manifestações artísticas da

revolta que se seguirão.

Todavia, a virtude prom

tida, nem tampouco seu caráter perversor ignorado, posto que, primeiramente,

antecipa às catástrofes da razão que serão a tônica do século XX, “seu mérito

incontestável reside no fato de ter ilustrado imediatamente, com a infeliz

1747 HR, 452. 1748 HR, 454. 1749 HR, 457.

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revoltada. Essas conseqüências são a totalidade fechada, o crime universal, a

aristocracia do cinismo e a vontade de apocalipse.”1750 Depois, e não menos

importante, Sade, com o exercício de sua “arte”, persevera no imaginário das épocas

decantando sua cantilena da crueldade.

Esta é a causa, segundo Camus, do “sucesso de Sade” em nosso tempos, “seu

sonho se afina com a sensibilidade contemporânea: a reivindicação da liberdade

total e a desumanização friamente executada pela inteligência. A redução do homem

a objeto de experimento, o regulamento que determina as relações entre a vontade de

poder e o homem objeto, o campo fechado dessa monstruosa experiência são lições

que os teóricos do poder votarão a encontrar quando tiverem que organizar a era dos

escravos.”1751

Camus arremata seu diagnóstico sombrio que se projeta num futuro próximo:

“com ele realmente começa a história e a tragédia contemporâneas.”1752(...)

“conseqüências extremas de uma lógica revoltada, pelo menos quando ela se esquece

de suas verdadeiras origens.”1753

Reaparece o pano de fundo ético no qual se projetam o conjunto das análises

de Camus em O Homem Revoltado, a saber, a contraposição absoluta à desmedida e

ao conteúdo destrutivo das ideologias contemporâneas em seu furor de apocalipse.

Para Camus, sintetizando a materialização mais radical de uma metafísica da revolta,

Sade prenuncia causa e efeito da dessacralização absoluta da vida que desponta no

horizonte secularizado do século XVIII e se acirrará ulteriormente. Recalcando que,

na origem da revolta está a consciência dos li es e a comiseração com a fragilidade

humana, Sade se desvia na negatividade absoluta que será característica do niilismo

do sécu

mit

lo XX: “Com dois séculos de antecipação, mas em escala reduzida, Sade

exaltou as sociedades totalitárias em nome da liberdade frenética que a revolta, na

verdade, não exige.”1754

Mas a história contemporânea, adverte Camus, aprimora à imoralidade de

Sade e a potencializa, na medida em que a legitimação do assassinato - de massa -

torna-se política de Estado. Se o aristocrata, como vimos, era contrário ao assassinato

legal, ele agora reduzido à figura de um técnico do aviltamento, funcionário de um

1750 HR, 456. 1751 HR, 457. 1752 HR, 457. 1753 HR, 456. 1754 HR, 457.

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empreendimento ideológico de extermínio: “O crime, que Sade gostaria que fosse

fruto excepcional e delicioso do vício desenfreado, nada mais é do que o hábito

enfadonho de uma virtude que se tornou policial. São as surpresas da literatura”1755

A revolta metafísica, que se materializa em histórica; a matriz ideológica que

degenera em sangue real e cotidiano. A revolta que se exprime em imaginação mas

que se reverte em crime real. A ironia acima, não configura tão somente um efeito de

estilo, n

e mal nestes poetas; a

cruelda

iilismo.

os remete, a bem da verdade, à pedra de toque da articulação camusiana, ou

seja, até que ponto a atmosfera metafísica, a arte e o pensamento estão implicados no

caldo originário do caos da história do século XX1756.

*

A poesia romântica é seguidora de Sade em sua contestação à perversidade de

Deus, invertendo os códigos morais em sua ânsia de rivalização com o cosmo; “já que

reivindica o que há de bom no homem, é preciso zombar do que é bom e escolher o

mal.”1757 Camus aponta o paradoxo entre a denúncia da perversidade de Deus e o

elogio do mal que encontra-se em poetas como John Milton e William Blake, “o ódio

à morte e à injustiça levará senão ao exercício, pelo menos à apologia do mal.”1758

Para Camus, há uma assunção generalizada da ordem da fatalidade que

promove uma indistinção absoluta dos valores de bem

de, a morte, o sofrimento humano, o crime, são permissíveis, o único culpado

é, no tribunal romântico, Deus. Este é, segundo Camus, o leitmotiv do “satanismo” de

época, “o herói romântico sente-se portanto obrigado a fazer o mal, por nostalgia de

um bem impossível.”1759

Esta nostalgia de bem assassina, que foi, como vimos, tão bem caracterizada

no Calígula, pressagia, a bem da verdade, segundo Camus, o advento das ideologias

crepusculares. No espírito de rivalização com a ordem metafísica que caracteriza o

satanismo romântico, se prenuncia, mesmo que numa dimensão imaginativa, a

autorização da aniquilação total que calcará o n

Na pluma dos românticos, Satã recebe o esboço da jovem e bela rebeldia

insolente injustiçada pela violência de Deus cuja exaltação do instante exige à

rolonga com lamentável evidência no século XXI. 1755 HR, 457. 1756 E que se p1757 HR, 458 1758 HR, 458. 1759 HR, 459.

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desinibição moral absoluta; é o nascimento da figura do dândi que contraporá a

ausência completa de valores, seu “personagem”perverso” - em busca do puro frenesi

- por intermédio de toda ordem de desregramentos e imprecações: “num universo fora

de órbi

l

a um u

he cotidiano.

suas vítimas, em sua

absolvi

ta só existe uma vida – a dos abismos.”1760 Em resposta ao esvaziamento de

conteúdos do mundo, ele se mostra, exibindo sua “atitude” diante da existência, “a

revolta cobre-se de luto e se faz admirar nos palcos.”1761

Esta estetização do abismo elaborada pelos românticos atinge seu auge em

Baudelaire que, segundo Camus, neste ponto, contribui à atitude revoltada por

desvelar que “a atitude”, a encarnação em um “personagem” é uma resposta possíve

niverso sem sentido, como aliás, Camus prenuncia em O Mito de Sísifo,

encarnando as atitudes absurdas nos personagens dos conquistadores, dos

comediantes, dos don juans...“a atitude congrega em uma unidade estética o homem

entregue ao acaso e destruído pela violência divina.”1762 “Ela é um ponto fixo, o

único que se pode contrapor à face pétrea do Deus do ódio.”1763(...)”o dândi cria a

sua própria unidade por meios estéticos.”1764

Forjando sua unidade na própria recusa à submissão, o dândi baudelairiano

procura uma ascese na perplexidade de um abismo desejado, através da permanente

contradição a uma ordem metafísica que abomina, mas que mantêm absolutamente,

com a finalidade de forçosamente unificar, por contraste, a diáspora que encontra e si

e camufla em seu pastic

Porém, para Camus, o “personagem” a quem Baudelaire foi fiel, por sua

indiferença moral, é presságio sinistro da estetização do crime e do endeusamento do

criminoso que o século XX (e XXI) esculpirá na abjeção de

ção irrestrita da crueldade: “Mesmo o conformismo em Baudelaire tem cheiro

de crime. Se escolheu Maistre como mentor intelectual, foi na medida em que este

conservador chega à extremos, centrando sua doutrina na morte e no carrasco.1765

Talvez não seja excessivo notar, ainda que rapidamente, que , enquanto Camus

se atêm ao negativismo niilista e à indiferença ao homem presente no satanismo de

Baudelaire, Sartre em seu Baudelaire prefere criticá-lo pelo viés da impotência de não

1760 HR, 460. 1761 HR, 460. 1762 HR, 461.

ão poderíamos esquecer que o tema do ponto fixo é pascaliano par excellance. 1763 HR, 462. N1764 HR, 463. 1765 HR, 463.

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ter con

olução.

iônico. Sub-determinando a biografia do poeta, o existencialista atribui a

escolha de De Maistre à necessidade de um m contraponto; um contrapeso ao caos

a natureza: “...o horror da vida, o horror da exuberância expontânea da

Maistre,

com seu gosto de obrigações e de categorias artificiais...” 1767

seguido ir além. Dito rapidamente, Sartre critica à “demissão”1766 de

Baudelaire em renegar definitivamente o universo metafísico no qual foi forjado: na

abordagem sartreana, a escolha de Joseph de Maistre como ´mentor´ se dá pela

impotência do poeta em se libertar do horizonte conservador histórico e matafísico

que o define. Baudelaire necessita de alguém que o reponha no universo repressivo

que escolheu para si, escolhendo a manutençao perpétua da condição de rebelde. De

Maistre é mais uma figura do Deus que Baudelare execra e do qual, entretanto, aprova

permancer subalterno.

Nesta mesma época, a crítica de Sartre endereçada a Baudelaire será

direcionada também a Camus: Baudelaire e Camus, segundo o autor das Situações,

permancem no âmbito da revolta sem nunca ousar à rev

O que é extremamente curioso notar é que Sartre, o filósofo da realpolitik, em

seu primeiro exercício de psicanálise existencial, é incapaz de atentar para a dimensão

política da opção de Baudelaire, talvez por ela ser eivada de um conteúdo de algum

modo histr

ero

d

natureza(...)e depois, a adesão ao conservadorismo estreito de Joseph de

Ora, Sartre imiscui de suas análises as repercussões históricas da revolta, seus

desdobramentos morais e políticos, nos termos de Camus, suas consequências lógicas.

Não que Baudelaire tivesse um projeto de poder. Lembremos que participou de uma

manifestação da Comuna de Paris portando uma bandeira com os dizeres «Eu odeio o

meu padrasto»; contudo, na filiação a De Maistre, segundo Camus, o poeta maldito

alardeia e coroa à indiferença ao homem que se respira em toda sua obra de um

magníf

ico conformismo: “«O verdadeiro santo»finge pensar Baudelaire, “é o que

açoita e mata pelo bem do povo.».”1768

Ora, a preocupação de Camus, é que o conformismo do século XX tem uma

dimensão criminosa: “a raça dos verdadeiros santos começa a disseminar-se para

consagrar estas curiosas conclusões da revolta.”1769

-P. Baudelaire, p. 48.

, J-P. Baudelaire, p. 72) 1766 SARTRE, J1767 (SARTRE1768 HR, 463. 1769 HR, 464.

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Mesmo sem almejar uma efetivação história, de indiferença em indiferença,

galga-se no campo poético, mesmo que no âmbito do imaginário, no itinerário da

negação do homem, “a revolta troca pouco a pouco o mundo do parecer pelo do

fazer.”1770

*

“Poète et non hônnète homme.”(PASCAL,B.Pensamentos.Br.30-L.611)

Não obstante ser um autor absolutamente pós-nietzschiano, talvez não seja

totalmente desenxabido avizinhar a interpretação de Baudelaire da leitura de

Lautréamont, visto que ambos, na visão de Camus, encarnam manifestações da

revolta cujas dimensões negativas estão articuladas e destinadas “ao parecer” e

desembocam conjuntamente numa atitude em relação ao homem que pode ser

caracterizada, no limite, como cinismo aristocrático e conformismo.

O centro da interpretação de Camus na leitura de Lautréamont é o

antagonismo entre os Cantos de Maldoror e as Poesias: enquanto o primeiro seria um

sucedâneo das imprecações luciferianas do românticos, “verdadeiras litanias do

mal”1771, “uma evasão fora das fronteiras do ser e um atentado convulsivo às leis da

natureza”1772, rivalizando em propósito destruidor com o Deus de Abraão que

mantém como isca atado ao horizonte da revolta, o segundo é uma apologia ao

homem, despudoradamente cínica, na tentativa desesperada de “acorrentar-se com

grilhões muito mais pesados do que aqueles de que tentou se libertar.”1773 No

Lautréamont de Camus, a vontade de aniquilação que se exerce despudoradamente

nos Ca

ntos é renegada e desmascarada como impostura nas Poesias e deste paradoxo

resulta a irresolução cínica, a banalização galhofeira da tragédia humana que resulta

também numa aniquilação, desta vez moral, sem subterfúgios e sem esperança.

É extremamente interessante notar que não passa despercebida de Camus a

paródia de Pascal elaborada por Lautréamont nas Poesias visto que manifesta uma

leitura da II Poesia de Ducasse. Talvez não seja excessivo notar o trecho original dos

Pensamentos, no qual se entremostra o severo diagnóstico sobre a desordem humana,

seguido da transfiguração surrealista de Lautréamon que, segundo Camus procura se

1770 HR, 464. 1771 HR, 493 1772 HR, 494. 1773 HR, 495.

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acorrentar à qualquer custo, aos grilhões que intimamente rejeita: “Escreverei aqui

meus pensamentos sem ordem, e não, talvez, em uma confusão sem objetivo: é a

verdadeira ordem , que marcará sempre meu objeto pela própria desordem. Honraria

muito a meu tema se o tratasse com ordem, pois quero mostrar que ele é incapaz de

ordem.”1774 “Escreverei meus pensamentos com ordem, por um objetivo sem

confusão. Se forem justos, o primeiro que vier será a conseqüência dos outros. Essa é

a verdadeira ordem. Marca meu objetivo pela desordem caligráfica. Muito

desonraria meu tema, se não o tratasse com ordem. Quero mostrar que ele é capaz

disso.”1775 Lautréamont segue em sua máscara burlesca de positividade: “Não aceito

o mal. 0 homem é perfeito. A alma não cai. O progresso existe. O bem é

natureza não

conta c

irredutível.”1776

Vejamos em seguida que o belo fragmento de Pascal no qual a dignidade do

homem está assinalada pelo reconhecimento de sua fragilidade, digno da honra até

mesmo do revoltado padrão, torna-se, na pena de Lautréamont, um retrato

vanglorioso da condição humana, um convite à desmesura, fundado em falsas

promessas de eternidade. Podemos notar o formidável deslocamento do pessimismo

efetuado pela pirueta surrealista: quem era, sob a égide pascaliana, um frágil caniço,

um mero bambu; pela lente de aumento do surrealista Ducasse, vê-se um eternal

carvalho, imune às agruras demasiado humanas do tempo: “O homem não passa de

uma caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que

o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota d água bastam para

matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre

do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre

ele; o universo desconhece tudo isso.” 1777“O homem é um carvalho. A

om nada mais robusto. Não é preciso que o universo se arme para defendê-lo.

Uma gota d' água não basta para sua preservação. Mesmo que o universo o

defendesse, não ficaria mais desonrado que aquilo que não o preserva. 0 homem sabe

que seu reino não tem morte, que o universo possui um começo. O universo nada

sabe; é, quando muito, um caniço pensante.”1778

1774 PASCAL. B. Pensées. (L.532- Br.373) 1775 LAUTREAMONT. Poesias. p.269. 1776 LAUTREAMONT. Poesias. p.269. 1777 PASCAL. B. Pensées. (L.200- Br.347) 1778 LAUTREAMONT. Poesias. p.270.

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Nada isento de dramaticidade, o texto pascaliano persegue o equilíbrio entre

grandeza e miséria do homem, ressaltando a consciência da fragilidade como

grandeza do homem, retirando, da consciência da própria miséria, o significado da

grandeza humana. Para tanto, não se extrai da atmosfera dos Pensamentos, isto é,

lúcida constatação da finitude. Para extrair-se desta aura pessimista mantendo-se fiel,

tributário e, segundo a ótica de Camus, de algum modo, submisso a ela, Lautréamont

regener

com a

finalidade de silenciar qualquer azo de insubmissão, e que, no limite, se exprime pela

recusa da inteligência e de suas exigências de sentido e de justiça. Em Lautréamont, a

a e cura às chagas do homem pascaliano, transmutando-o num ser tão

indestrutível quanto fantasioso: “A grandeza do homem é grande na medida em que

ele se reconhece miserável. Uma árvore não sabe que é miserável. É pois ser

miserável conhecer-se miserável; mas, é se grande saber que se é miserável.” 1779 "O

homem é tão grande que sua grandeza se mostra, principalmente, em não querer

conhecer-se como miserável. Uma árvore não se conhece como grande. É ser grande

conhecer-se como sendo grande. É ser grande não querer conhecer-se como

miserável. Sua grandeza refuta suas misérias. Grandeza de um rei."1780

Enquanto os fragmentos antropológicos dos Pensamentos descrevem a

experiência intensa da negatividade, salvaguardada pela tênue positividade resignada

da consciência da fragilidade da condição humana, Lautréamont, que segundo Camus,

pretende renegar e desmascarar à própria negatividade, aprisioná-la, acorrentá-la,

reduzí-la ao silêncio, e, finalmente, velá-la ao seu público - retoma os fragmentos de

Pascal palavra por palavra, parodiando-os, invertendo-os, numa refutação cínica da

negatividade que, por seu exagero cômico termina por reavivá-la. A inversão cômica

dos fragmentos de Pascal, para Camus, seria tão somente o alarde cínico de uma

adesão a uma positividade absolutamente falsa, forjada, calcada na negatividade mais

absoluta. Uma refutação fingida e melodramática da própria insubmissão, alicerçado

numa paródia do duro esforço disciplinar da “alma que mais duvida”. Camus

comenta, com Lautréamont, o “emburreçam-se pascaliano, ganha um sentido

literal”1781.

Camus refere-se ao termo “abêtissement” que em Pascal designa uma

propedêutica que induz à crença, uma técnica de “adestração”, de contrição,

1779 PASCAL. B. Pensées. (L.114- Br.397) 1780 LAUTREAMONT. Poesias. p.270. 1781 HR, 495.

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nostalg

Lautréamont nos dá uma

medida

ia das exigências de sentido, a insubmissão desesperada e violenta dos Cantos

de Maldoror, são amordaçadas pelo estrondoso elogio do homem das Poesias de

Ducasse, que, segundo Camus, não passam de bravatas cínicas que fingem um

adestramento da revolta. Com sua hipérbole dos poderes do homem Ducasse, pelo

tom absurdo, encontra-se no mesmo registro do abêtissement pascaliano, mas pelo

viés da ironia: ele se atrela a um Sentido impossível em que simula uma adesão que

detesta. A atualização do fragmento dos Pensamentos por

desta hipérbole que, utilizando um termo do Entretien de Pascal, “gira sobre

si mesma”, retornando à imprecação donde partiu: “Que quimera é, pois,o homem?

Que novidade, que caos, que sujeito de contradições, que prodígio? Juiz de todas as

coisas, imbecil verme da terra, depositário do verdadeiro, cloca de incerteza e de

erro, glória e refugo do universo.” “Se ele se gaba eu o rebaixo. Se ele se rebaixa, eu

o gabo. E o contradigo sempre. Até que ele compreenda. Que é um monstro

incompreensível. 1782“O homem é o vencedor das quimeras, a novidade de amanhã, a

regularidade da qual geme o caos, o sujeito da conciliação. Julga todas as coisas.

Não é imbecil. Não é verme da terra. É o depositário do verdadeiro, acúmulo de

certezas e glória, não o refugo do universo. Se ele se rebaixa, eu o louvo. Se ele se

louva, eu o louvo mais ainda. Eu o concilio e ele acaba por compreender que é a

irmã do anjo.”1783 Lautréamont alardeia: “Não há nada incompreensível.”1784

Para Camus, o procedimento de Lautréamont revela, nas Poesias, uma

“misteriosa vontade de expiação”1785, que se coaduna com um conformismo

deletéri

Lautréamont retira sua apologia da positividade “com cheiro de nostalgia.”1787

Assim como Baudelaire1788se lançava no marasmo e na indiferença, numa

autorização conformista e condizente com a aniquilação que poeticamente postulava,

o. O movimento de Lautréamont não é, neste sentido, original, pois “consiste

em restaurar à razão ao termo da aventura iracional, em reencontrar à ordem à

força da desordem e em acorrentar-se em grilhões muito mais pesados do que

àqueles de que se tentou liberar.”1786 É, portanto, do fundo do lodo e do vício que

Pensées. Papiers Classés/Section I, Contrarietés/ VII e L.130-Br.420. ONT. Poesias. p.272.

rnativa de Lautréamont é um degrau mais dilacerada do que no caso , perfeitamente metódico em sua atitude de dândi. Lautréamont, para Camus, é sem

co. Mas, como o poeta de Fernando Pessoa, ele é “um fingidor que finge a dor que

1782 PASCAL.B. 1783 LAUTREAM1784 LAUTREAMONT. Poesias. p.272. 1785 HR, 495. 1786 HR, 495. 1787 HR, 496. 1788 Para Camus, entretanto, a altede Baudelairedúvida um cíni

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também Lautréamont, trairá a revolta num conformismo cínico e letárgico, extraído

de uma negatividade também absoluta: “O grito da consciência que ele procurava

sufocar no oceano primitivo, confundir com o rros da fera, que, em outro momento,

ele tent

s u

ava distrair na adoração à matemática, ele quer agora sufocar na aplicação

de um triste conformismo.”1789 É neste sentido que Camus compreende Lautréamont

como sinal inexpugnável de seu tempo: “O conformismo é uma das tentações

niilistas da revolta que domina grande parte de nossa história intelectual. Em todo

caso, ele mostra como o revoltado que passa a ação, quando se esquece de suas

origens, é tentado pelo maior dos conformismos. Ele explica portanto o século XX.

Lautréamont, geralmente louvado como o bardo da revolta pura, anuncia, muito pelo

contrário, o gosto pela subserviência intelectual que se dissemina pelo nosso

mundo.”1790

É a lei do “emburreçam-se”, da “banalização” da vida e da “auto-banalização”

que se propaga no imaginário contemporâneo e que, segundo Camus, pretende minar

as resistências daqueles que guardam, malgrado às engrenagens históricas, intactos o

senso do valor humano e a capacidade de se indignar. É este futuro presente que,

segund

lta. Na

avaliaç

o Camus, Lautréamont ajudou a forjar, “...ele está sendo escrito hoje, apesar

de Lautréamont, em milhões de exemplares, por ordem dos gabinetes...” 1791

*

Sade, Baudelaire e Lautréamont encarnam a passagem da revolta metafísica à

histórica, do imaginário à realidade. A escritura libertina se encadeia no dandismo que

por sua vez prefigura o surrealismo: estas manisfestaçãos da revolta constituem de

algum modo, na análise camusiana, um interlúdio entre a dimensão metafísica da

revolta e sua efetivação histórica. Os manifestos libertinos de Sade e a atitude de

Baudelaire, o conformismo deletério de Lautréamont, são, na interpretação de Camus

em O Homem Revoltado, enfim, potências no limiar da efetivação histórica: eles

compõe, malgrado suas intenções profundas, o imaginário deturpado da revo

ão de Camus, o surrealismo, a bem da verdade, encontra-se já na dimensão da

efetivação histórica, visto que muitos dos sucedânios de Rimbaud, deturpando-o,

segundo Camus, buscam efetivar sua aspirações “nostálgicas”de unidade (um dos

deveras sente”. Ele, a bem da verdade, “tenta tornar-se surdo a este apelo ao ser que jaz também no

evolta.”(HR, 496.) fundo de sua r1789 HR, 496. 1790 HR, 496. 1791 HR, 497.

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aspectos originários da revolta), abraçando às esperanças revolucionárias de seu

tempo.

Na opinião de Camus, o surrealismo, sob os auspícios de Rimbaud, irrompe no

horizonte ocidental manifestando, pela primeira vez, um elã de transfiguração

irracionalista, uma “teoria prática da revolta irracional.”1792

Com Rimbaud, o dilaceramento constitutivo torna-se prática poética genial

visto que, segundo Camus, o fato do poeta ter escrito ao mesmo tempo Une saison en

enfer e Ilumminations prova o assentimento descontente ao paradoxo da condição

humana que constitui a atitude de lucidez primordial do revoltado, “trazendo em si

mesmo a iluminação e o inferno, insultando e saldando a beleza, ele faz de uma

contradição irredutível um canto duplo e alternado, ele é o poeta da revolta,e o maior

de todos(...)ele ilustra essa luta entre a vontade de ser e o desejo de aniquilação,

entre o sim e o não, que reencontramos em todos os estágios da revolta.”1793

Camus, entretanto, ressalta que este dilaceramento constitutivo que na poesia

de Rimbaud manifesta “a busca do cume-abismo, familiar aos místicos”1794, a procura

de uma ascese espiritual reveladores de uma profunda “nostalgia de unidade”, é

completamente deturpada em personagens do surrealismo de sua época que se

enfileiram nas trincheiras da revolução histórica: “esses frenéticos queriam «uma

revolução qualquer»”1795, e trocaram a “conquista da unidade da vida”1796 de

Rimbaud, pela “conquista da totalidade do mundo”1797, dos revolucionários: “Pierre

Naville,

pulsões, muitos surrealistas se alinharam aos revolucionários, visto compreender que

o surrealista que então refletia com maior profundidade sobre o problema,

ao procurar o denominador comum à ação revolucionária e à ação surrealista,

situava-o com perspicácia, no pessimismo, quer dizer«o desígnio de acompanhar o

homem em sua derrocada e de nada negligenciar para que essa perdição seja

útil».Essa mescla de agostinismo e maquiavelismo define, na verdade, a revolução do

século XX; não se poderia dar expressão mais audaciosa ao niilismo da época. Os

renegados do surrealismo foram fiéis ao niilismo na maior parte de seu princípios.

De certa forma, queriam morrer.”1798No elã liberticida de disseminar e legitimar às

0. 1792 HR, 497. 1793 HR 497-501794 HR, 506. 1795 HR, 503. 1796 HR, 507. 1797 HR, 507. 1798 HR, 503.

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“para liberar o desejo, era preciso demolir à sociedade.”1799 As conseqüências,

segundo Camus, são desastrosas e constituem traições supremas ao espírito de

revolta. Um movimento que em sua origem cultivava um elã de insubmissão total,

que tinha por princípios, o irracionalismo, “a sabotagem, o humor e o culto do

absurd 1800, acabou por servir à sua antítese, ao racionalismo totalizante, ao

massacre e à indiferença ao homem: “seu movimento decretou o estabelecimento de

uma autoridade implacável e de uma ditadura, o fanatismo político, a recusa da livre

discussão e a necessidade da pena de morte.”1801

neste sentido que Camus compreende que o surrealismo “ilumina a via que

conduz do parecer ao agir”1802. Se por um lado, efetiva o potencial rebelde da

expressão artística, consolidando assim a arte como forma de manifestação possível

na história, lança, por outro lado, visto seu pacto circunstancial com os

empreendimentos revolucionários, preciosas luzes sobre a sinuosidade que cerceia a

efetivação desta nostalgia de unidade presente no elã revoltado. Se o conformismo é

deletério, quando à ação histórica baseia-se na revolta para se conformar com a

escravização do homem ela o é igualmente. Por mais rebelde, quando às custas de

efetivação de seu elã de unidade, o revoltado acrescenta à infelicidade da condição

humana, ele “gira sobre si mesmo” tornando-se um conformista. Ele se resigna e

conforta neste moto contínuo da indiferença na qual a história mimetiza à ordem de

injustiça presente no cosmo.

*

o”

É

1799 HR, 503. 1800 HR, 0. 1801 HR, 503. 1802 HR, 0.

50

49

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11)Da dimensão metafísica à histórica da revolta

Se o dandismo, de quem Lautréamont e os surrealistas serão herdeiros

bastardos1803, se define pela indiferença completa ao homem em privilégio de uma

rivalização direta com Deus, Ivan Karamazov encarnará à conseqüência moral inversa

do confronto com o Criador: “ele tomará o partido dos homens, ressaltando a sua

inocência.”1804Enquanto no dandismo o clima nietzschiano é desmentido pela

manutenção do horizonte metafísico cristão, começa em Dostoiévsky o combate

expresso contra o cristianismo.

be valha lembrar que nos referimos n´O Mito de Sísifo às Quem sa

dificuldades da interpretação de Dostoiévsy, no que se refere à sua identificação com

seus personagens. Segundo Camus, ele mesmo é um escritor dilacerado. Como disse a

1803 “(a revolta) tem os seus dândis e os seus serviçais, mas não reconhece neles os filhos legítimos.”(HR, 497) 1804 HR, 465.

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respeito

aneira, aliás,

inconte

de Sade, de algum modo “um escritor é todos os seus personagens”, mas, no

caso de Doistoiévsky isto se evidencia com um rigor inaudito, o que o habilita aliás,

como vimos, a ser um artista absurdo: malgrado a necessidade de dar um conteúdo

positivo à seu empreendimento literário como entremostriam trechos dos Diários

citados por Camus1805, Dostoiévsky permanece no limiar da revolta, inclusive da

rebelião histórica - visto que conhecemos o comprometimento posterior do escritor

com o primeiro ensaio da Revolução Russa. Lembremos que n´O Mito de Sísifo

Camus cita, por exemplo, a persistência da questão da eternidade em Dostoiévsky,

como a resposta de Aliócha no final dos Irmãos Karamazov exprime: “«- Sim,

ressucitaremos todos, reencontra-nos-emos, todos, e contaremos alegremente uns aos

outros tudo que se passou...”» 1806 Mas, veremos agora, que n O Homem Revoltado,

Camus exprime uma leitura bem menos tencionada à ambigüidade do que a

reivindicada em O Mito de Sísifo. Aqui, Camus exprime de m

stável, que Dostoiévski buscará, em concomitância com seu momento

histórico, outra expressão ao seu elã de eternidade.

Atenhamo-nos, por ora, à Ivan, que, em sua primeira crítica à ordem divina, a

contesta em nome de uma moral da justiça. Para Camus, “ele afirma que a

condenação à morte que paira sobre os homens é injusta. Em seu primeiro

movimento, pelo menos, longe de defender o mal e ele defende à justiça. Portanto, ele

não nega de modo absoluto a existência de Deus. Ele o refuta em nome de um valor

moral”1807. De certo, Camus se refere ao início do diálogo entre Ivan e Aliócha que se

mostra o prenúncio do eixo ético da obra de Dostoiévsky : “Assim, pois, eu aceito

Deus de boa vontade e também Sua sabedoria e Seus desígnios, que nós não

conhecemos absolutamente; creio na ordem, no sentido da vida, creio na harmonia

eterna(...)Não estou no bom caminho?Ora, muito bem: imagina agora que eu me

recuso categoricamente a aceitar o mundo de Deus; sabendo que ele existe, não o

1805 “A fé na imortalidade do ser humano é tão necessária(que sem ela se acaba por matar) porque se trata do estado normal da humanidade. Sendo assim, a imortalidade da alma humana existe se qualquer dúvida.”(MS, 187.) 1806 DOSTOIÉVSKY, F. Os irmãos Karamazov, p.1217.) Citando por Camus n´O Mito. Mas Camus compreende, desde O Mito de Sísifo que Aliócha é, de certo modo, o Cândido de Dostiévsky, “um

stá comprometido com Ivan – e os capítulos s de esforço ininterrupto, enquanto que aquilo

VSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 632.

comentarista aponta com toda a razão: Dostoiévsky epositivos dos Irmãos Karamazov lhe exigiram três meseque ele chamava de «blasfêmias» foram compostas em três semanas em plena exaltação.”(MS, 187) 1807 DOSTOIÉ

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admito entretanto. Compreende pois bem isso: Não é Deus que eu não aceito, mas o

mundo de Deus, o mundo que Êle criou; recuso-me admiti-lo.”1808

uso esta harmonia, recuso-a por amor à humanidade(...)Não me

recuso

luta da

justiça

sofrime

dos ou Ninguém.”1812 Isto porque, em sua exigência de justiça

general

euclidiana, sei apenas que o sofrimento existe, que não existem culpados

Ivan encarna, segundo Camus, a recusa da Salvação. Ele recusa o reino da

graça em nome do desejo de justiça. Se os libertinos e os dândis recusavam ao Deus

maléfico e capricho do Antigo Testamento, em Dostoiévsky é a ordem do Deus de

amor que é integralmente contradita, se ela se revela injusta ao ponto de exigir o

sacrifício de inocentes: “Escuta: se todos devemos sofrer para pagar a harmonia

eterna ao preço de nosso sofrimento, qual a razão do sofrimento das crianças?(...)A

harmonia universal não vale uma única das lágrimas de uma dessas crianças

torturadas, como aquela que batia no peito com as mãozinhas, fechada, na cloaca

imunda pedindo a ajuda de «Nosso Senhor». A harmonia universal não vale essas

lágrimas(...)Rec

à aceitar Deus Alióscha: mas com o maior respeito, lhe devolvo minha

entrada.”1809Comenta Camus “Ivan não diz que não há verdade. Ele diz que, se há

uma verdade, ela só pode ser inaceitável. Por que? Por que é injusta. A

contra a verdade surge aqui pela primeira vez; e não terá mais fim.”1810

Este combate pela justiça reverberará noutra característica sumamente

importante em Dostoiévsky assinalada por Camus, a saber, a dimensão coletiva

configurada e assumida pela primeira vez na revolta, posto que Ivan não barganha o

nto dos outros contra a idéia de uma salvação individual, “ele recusa ser salvo

sozinho”1811.

Com ele se configura uma exigência coletiva e absoluta de salvação e justiça

que caracterizará mais tarde, segundo Camus, a megalomania revolucionária que de

alguma maneira preconiza com a radicalidade da exigência de felicidade de que é

portador, “ou To

izada “ num universo que está baseado em absurdos”, Ivan não possui mais

nenhum referencial de bem e mal - “Ivan se esforçará em fazer o mal a fim de ser

coerente.”1813 “Ora, no meu juízo, segundo minha inteligência lastimável e terrestre,

, que as

VSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 632.

rcialmente por Camus (HR, 466) 1808 DOSTOIÉ1809 DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 643-4. Citado pa1810 HR, 466. 1811 HR, 467. 1812 HR, 467. 1813 HR, 466.

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coisas decorrem direta e simplesmente umas das outras, que tudo passa e se

equilibra.”1814

Diante da indiferença moral trazida por esta perspectiva, o passo seguinte na

tentativa de descer o céu à terra, é bem conhecido: “Tudo é permitido. Com este tudo

é permitido começa realmente a história do niilismo contemporâneo.” 1815

este paradoxo trágico, Ivan enlouquece.

Trata-se da conversão de uma aspiração metafísica instaurada na história

cotidiana, incluíndo aí a lógica da legitimidade do assassinato, “Ivan revolta-se contra

um Deus assassino; mas desde o instante em que racionaliza sua revolta, extrai dela

o assassinato. Se tudo é permitido , ele pode matar o pai ou deixar que o matem.”1816

Permitir o assassinato do pai é a resposta de Ivan para a questão que, segundo

Camus, constituirá o mais profundo progresso aportado por Dostoiévsky ao espírito

da revolta: “pode-se viver mantendo-se permanentemente na revolta?”1817 Ivan

consentirá às consequências lógicas de sua decisão se entranhando no paradoxo que

findará por lhe dilacerar: “Revolta?(...) –Pode-se viver revoltado? Pois assim eu

quero viver.”1818

Não obstante escolha à revolução, à condução da revolta ao seu extremo, as

evidências sensíveis ao coração se interpõem entre Ivan e o imoralismo sem limites.

Seu ímpeto se dissolve em melancolia em confronto direto com o sentimento das

origens de sua revolta, não permitindo assim a fidelidade almejada aos princípios da

lógica revoltada. Ivan que reinvindicava uma réplica diante da injusta condenação à

morte impingida por Deus, que desprezava à pena de morte pelo mimetismo que esta

representava da ordem divina1819, estremece, ele “não pode permitir que se mate o

próximo.”1820 Imerso n

O paradoxo de desfecho d´Os Irmãos Karamazov sintetiza em Ivan o drama da

revolta metafísica em seu ensejo de materialização histórica presente nos

empreendimentos revolucionários do século XX. Não obstante sua origem residir na

compaixão, no elã de justiça, sua consequência imediata é a reiteração da injustiça e

da morte, e, no caso do empreendimentos históricos, da servidão, impelida pela

1814 DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 642.(HR, 467.) 1815 HR, 467. 1816 HR, 468.

F. Os Irmãos Karamazov.p.644. -lhe fraternalmente à cabeça em nome do senhor...”(DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos

1817 HR, 468. 1818 DOSTOIÉVSKY,1819 “...cortamKaramazov.p.638.) 1820 HR, 469.

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vontade de eternidade, como antecipa o poema de Ivan , O Grande Inquisidor: “Sabes

que passarão séculos, e que a humanidade proclamará pela boca dos seus sábios que

não existe crime, portanto, nem pecado, e que há apenas famintos?(...)hão de

implorar:«Dai-nos de comer, porque aqueles que prometeram fogo do Céu não no-lo

deram.»E então completaremos a torre pois quem os alimenta é aquele que há de

acabar, e só nós os alimentaremos dizendo que é em teu nome, e será uma

mentira(...)é mister seguir às indicações do espírito maligno, do terrível espírito da

morte e destruição, aceitando à mentira e à fraude, e conduzir conscientemente os

homens para a morte e o nada, enganando-os durante toda a caminhada para que

não advinhem aonde os levam, e para que aqueles míseros cegos pelo menos se

sintam felizes durante a jornada.”(...)E todos serão felizes, todos os milhões de seres

humanos..”(...) “Um novo edifício se há de erguer no local do teu templo – uma nova

Torre de Babel.” 1821

Neste poema, se entrevê a consequência lógica dos ensejos universalistas de

Ivan, que preconizam, segundo Camus, “com intensidade profética” os dramas de

uma revolta “em marcha rumo à ação”1822: uma apologia da salvação universalista e

totalitária, com um elã de eternidade na qual uma elite se entrona no lugar de Deus

semeando à antiga ilusão de “resgatar” aos milhões de outros homens por intermédio

dos expedientes clássicos - malgrado eles mesmos, em detrimento deles - às custas da

mentira, da fraude, da ilusão, do aviltamento e, é claro, de uma profunda nostalgia da

violência divina. De dentro do projeto da emancipação da humanidade, à uma ordem

de justiça, de dentro de um projeto de usurpação inteiramente moral, ecoam os

conhecidos ditirambos da servidão: “A partir do momento(...)em que o espírito de

revolta, ao aceitar o «tudo é permitido» e o «ou todos ou ninguém», visa refazer a

criação para garantir a realeza e a divindade dos homens, a partir do momento em

que a revolução metafísica se estende do moral ao político, tem início uma nova

empresa, de alcance incalculável, também oriunda , é preciso assinalar, do mesmo

niilismo.”1823

Este deslocamento do horizonte da busca pela eternidade para a história que

Dostoiévsky, “profeta da nova religião”1824, detecta na atmosfera de seu tempo, que

, torna o poema de Ivan um momento central na história da revolta, pois ele vê em si 1821 DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 655-64. 1822 HR, 469. 1823 HR, 469. 1824 HR, 469.

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encarna

carnação contemporânea, a questão da Torre de Babel, que se

constró

este deslize místico comum às experiências revolucionárias. Como o próprio

Dostoievsky assumiria oportunamente “se Aliócha tivesse concluído que não há nem

Deus nem imortalidade da alma ele se teria tornado imediatamente ateu e socialista.

Isso porque o socialismo não é apenas a questão operária, é sobretudo a questão do

ateísmo, de sua en

i sem Deus, não para da terra alcançar os céus e sim pra rebaixar os céus até

a terra.”1825

O século XX, para Camus, será a aurora dos “Grandes Inquisidores”, “dos

que preparam armadilhas para muitos”1826 como dirá Nietzsche em breve, dos que

reavivam, para martírio da história, o delírio “do domínio e da unificação do

mundo.”1827 Em seu ansejo, no limite, metafísico de dominação e unificação

universais, cristianismo e anti-cristianismo se confundem num deslize que possui

como epicentro o desejo de eternidade; nos termos de Ivan, “um novo edifício se há

de erguer no local do teu templo.”1828 Outra passagem do poema O Grande

Inquisidor, enfatiza ainda este presságio sombrio sobre a implicação entre os

imaginários da revolução e da religião: “Como o homem é incapaz de dispensar o

milagre, novos milagres inventará – milagres seus – aceitará a feitiçaria dos

charlatães, por mais revoltado, por mais herético, por mais ateu que seja.”1829

A nova “Torre de Babel” , o “novo ídolo” possui, portanto, os mesmos

ro que forjavam a pouco escadas para o céu, “De Paulo a Stalin, os

papas escolheram César preparam o caminho dos Césares que só escolhem a si

os. A unidade do mundo, que não foi feita com Deus, agora tentará fazer-se

contra

alicerces de bar

mesm

Deus.”1830

Talvez não seja excessivo notar que Camus reafirma, no auge de uma patrulha

ideológica ferrenha nos meio intelectuais, que oferecia pouquíssima margem à crítica

ao socialismo que, não obstante com uma origem diferente, insurgindo-se contra à

Criação por amor ao homem, o socialismo histórico pode bem se converter, afinal, em

sua consequências, num eqüivalente do elogio rasgado do totalitarismo e do mal

presente no sadismo. Se sua apreciação da condição humana finda não apenas por

consentir na legitimação do assassinato - mas em sua exigência - elas só se 1825 HR, 469-70. Que tenhamos em mente Tarrou... 1826 NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. – Do Novo Ídolo, p.65. 1827 HR, 470.

VSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 655-64. VSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 657.

1828 DOSTOIÉ1829 DOSTOIÉ1830 HR, 471.

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diferenciam nos argumentos que legitimam suas imposturas: Elas partilham, “ é

preciso assinalar, do mesmo niilismo.”1831

De nossa parte ajuntemos: não obstante a desrazão que coroa o dilaceramento

de Ivan, com sua participação no ensaio da Revolução Russa, Dostoiévsky, enfim,

exprime a expressão derradeira de sua elã de eternidade: sua exigência se manifesta,

como doravante no conjunto de seus contemporâneos, na ânsia revolucionária.

*

Se o inquérito moral de Deus conduz em Dostoiévsky, primeiramente, à

contestação absoluta da ordem divina por “amor à humanidade” e, depois,

paradoxalmente, ao movimento de negação do homem concreto em virtude do ensejo

de fazer descer o céu à terra, em Max Stirner1832, o movimento de negação da ordem

divina acarreta uma divinização, niilista e imoralista, do individualismo. O âmago da

argumentação de Stirner, segundo Camus, é a recusa do Estado e da Moral, elaborada

a partir da detecção de que, da religião à política, os esforços gregários da história

humana se fundamentarão sempre na mesma impostura, a saber, na idealização do

real: “ “todos esses ídolos nasceram do mesmo mongolismo, a crença nas idéias

Único, isto é deste ser vivo, concreto e idiossincrático1835 que é o oposto das

eternas”1833 Os ritos de purificação das antigas religiões, o exemplo de Jesus, os

valores que fundamentam, pátria família e justiça, visam em conjunto mascarar,

segundo Stirner, o único fundamento concreto do real, isto é, “eu, O Único”: “A fúria

da encarnação sucede à purificação, devastando o mundo cada vez mais, à medida

que o socialismo, herdeiro de Cristo, estende o seu império. A história universal é

uma longa ofensa ao princípio único que eu sou, princípio vivo concreto, que se quis

dobrar ao jugo de abstrações sucessivas – Deus, o Estado, a sociedade, a

humanidade.”1834

Deus é apenas mais uma idéia que dissuade o homem de si mesmo, do

reconhecimento da própria potência. É uma idéia gerada para mascarar a potência do

1831 HR, 469. 1832 STIRNER, M. L´unique et s proprieté(1845). 1833 HR, 472. 1834 HR, 472. 1835 “Os nomes não o nomeiam, ele é O Único.”(HR, 472.)

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abstrações fichtianas, kantianas ou hegelianas do “eu”, desencarnado e, em última

instância, desprezível. Todos os empreendimentos que visam a abominação do

temas políticos dissimulam em sua filantropia suas aspirações

religios

docilizando e

domest

coletivo acabam por dissolver esta singularidade concreta humana em sistemas de

“realização” de ideais: “o mundo cristão trabalha para realizar as Idéias em todas as

circunstâncias da vida individual e em todas as instituições e leis da Igreja e do

Estado(...)o realizador de idéias pouco se interessa com a realidade(...)se(os ateus)

findam a acentuar o Homem ou a Humanidade é novamente a idéia que

eternizam....”1836

Segundo Camus, as Revoluções repugnam particularmente o Único de

Stirner. Estes sis

as centradas no eterno e em sua concomitante moralina. As filosofias atéias

que culminam no culto ao Estado e do Homem abstrato, nada mais são, segundo ele,

do que “insurreições teológicas.” “Nossos ateus, são na verdade gente piedosa”1837,

as ideologias do igualitarismo compactuam com a falcatrua do eterno,

icando seu rebanho cego: “a fraternidade é apenas o modo de ver domingueiro

dos comunistas. Durante a semana os irmãos tornam-se escravos.”1838A escravização

pelos empreendimentos revolucionários é a reposição transfigurada da crueldade da

Ordem divina. O registro idealista destes empreendimentos redundará sempre na

dominação e escravização do “Único”; único ser singular inimigo verdadeiramente do

eterno segundo Stirner.

Para o Único, assim como não existem valores, não existe verdade, visto que

estas construções estão submetidas ao Seu capricho e Império, configurando uns

objetos entre outros, passíveis de apropriação e de transfiguração ao Seu bel prazer:

“Os objetos não são para mim senão materiais que eu elaboro(...)Toda Verdade é em

si mesma um cadáver(...)Só eu posso decidir(...)Verdades acima de mim, verdades às

quais devo me dobrar, não conheço. Não há verdade acima de mim, pois, acima de

Mim, não há nada(...)Eu sou o proprietário de minha potência, e o sou, quando me

sei Único.” 1839

A concepção de liberdade de Stirner, expulsa o divino e todos os seus

sucedâneos morais com objetivo de afirmar radicalmente a potência absoluta do

1836 STIRNER, M. L´unique et s proprieté.p,317-8.

, M. L´unique et s proprieté.pp.310, 319.

1837 HR, 473. 1838 HR, 473. 1839 STIRNER

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Único: “só há o«meu poder(...)o esplêndido egoísmo das estrelas»”1840. Segundo

Camus, com Stirner, “o individualismo chega assim a um apogeu.”1841

O evangelho de Stirner destila a cantilena de um individualismo radical que

define suas ações ao léu, em virtude e prazer da liberdade irrefreável de mestre do

jogo de que desfruta o Único, que arbitrariamente e, “sem preocupação”, estipula às

regras de sua partida. Stirner contrapõe seu jogo aberto e singular de poder às

ideologias que mascaram suas vontades de dominação estipulando crime, castigo e

compre ensa como “horizontes morais” e “Humanos”, falseando seu conteúdo

idiossincrático e arbitrário. Para tanto, Stirner esboça uma concepção de história

radicalmente individualista, em franco contraste às pretensões universalizantes do

materialismo histórico, como podemos constatar numa passagem do capítulo final de

O Único e sua propriedade, sem dúvida, bastante significativa para a constituição da

abordagem camusiana: “Que o indivíduo é, para si mesmo uma história do mundo, e

que o resto da história não é senão sua propriedade, isto ultrapassa à visão Cristã.

Para este último, a história é superior, porque é a história do Cristo ou do

«Homem»; para o egoísta, somente sua história possui um valor, visto que não quer

desenvolver a não ser a ele mesmo, e não ao plano de Deus, aos desígnios da

Providência, à liberdade, etc. Ele não se vê como um instrumento da Idéia ou um

vassalo de Deus, ele não se reconhece em nenhuma vocação, ele não imagina não ter

outra razão de ser senão contribuir ao desenvolvimento da humanidade e não crê

dever portar seu estandarte; ele vive sua vida sem se preocupar se a humanidade

com isso perde ou ganha. – O quê?! Vim eu ao mundo para realizar idéias? Para

trazer com meu civismo minha pedra para a realização da idéia de Estado, ou para,

pelo casamento, dar existência como esposo e pai à idéia de família? Quem enxerga

em mim esta vocação?Eu não vivo segundo uma vocação assim como a flor não

desabrocha nem exala seu perfume por dever.”1842

Camus se atêm às conseqüências lógicas das idéias de Stirner, “O que é bom:

tudo qu

potência do Único, compõe uma visão filosófica que, segundo Camus, despreza

e posso usar, o que é legítimo, àquilo que sou capaz”(...)“Não há mais crimes

nem erros; por conseguinte, não há mais pecadores.”1843 A combinação entre suas

premissas, negação de qualquer ordem divina ou moral, afirmação integral da

1840 HR, 473. 1841 HR, 474. 1842 STIRNER, M. L´unique et s proprieté.p. 319. 1843 HR, 474.

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radicalmente a vida humana. Em Stirner, “ a revolta coincide novamente com o

crime.”1844

Com ele, o “tudo é permitido” de Ivan perde integralmente seus escrúpulos,

tornando-se uma força impiedosa e irracional - uma declaração generalizada de guerra

- afinal, o Único fulgura à medida que devasta e consome, os outros Únicos, e o

próprio mundo(sua propriedade), num mesmo crepúsculo: “Nós te(a nação

alemã)jogaremos ao chão. Logo se seguirão tuas irmãs, as nações; quando todas

tiverem

cipa e prefigura a era dos

crimes de Estado, os crimes de lógica. As justas origens da revolta são aqui traídas e

oduto a ser consumido,

partido no teu rastro, a humanidade será enterrada, e sobre o seu túmulo, Eu,

enfim, meu único senhor, Eu, o seu herdeiro, vou rir.”1845

Com Stirner, a exaltação da liberdade egocêntrica torna-se, afinal, ainda um

movimento de ascese que, não obstante imerso na negatividade mais radical visto que

se estabelece mediante a dominação e o exaurimento de “suas propriedades”, almeja

gozar de um gozo solitário. Para Camus, “assim, sobre os escombros do mundo ,o riso

desolado do indivíduo- rei ilustra a vitória última do espírito de revolta(...)O espírito

de revolta encontra, enfim, uma de suas satisfações mais amargas no caos.”1846.

Camus prefigura em pensadores menores como Stirner, à legitimação

progressiva, a popularização, a insensibilização, ou para utilizar uma expressão cara a

Hannah Arendt, a banalização do mal, que se alastra e começa a se configurar como

sendo o horizonte ideológico efetivo desta época, que ante

transformadas em crime pela desmesura. E este coquetel é explosivo. Para Camus,

tamanha é a desesperança, o conatus destrutivo, e tão bem configurada a ideologia da

aniquilação que “...neste extremo, nada mais é possível, a não ser a morte ou a

ressurreição. Stirner e, como ele, todos os revoltados niilistas correm para os confins,

bêbados de destruição.”1847

De nossa parte talvez caiba ajuntar que estabelecendo o Império do Único,

Stirner engendra uma das mais exatas expressões da era do individualismo tal como

ele vigora na atualidade; expressão caricata como só a realidade contemporânea

consegue ser. Estabelecendo a idéia de que a História é um pr

digerido, destruído ou descartado com a finalidade suprema de satisfazer a história

pessoal e fragmentária de cada Único – aglutinando aí seres e coisas na mesma massa

.

1844 HR, 474. 1845 HR, 475. 1846 HR, 475-41847 HR, 475.

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indistinta, descartável pela efetivação da pura dimensão do desejo - Stirner antecipa o

modelo moral do século XXI, a saber, o modelo fundado no íntimo de cada um dos

Únicos, e, como tal, prepotente, efêmero, caprichoso e devorador; em guerra perpétua

e irracional com os outros. Os outros Únicos: “Se baseio minha causa sobre Mim, o

Único, ela repousa em seu criador efêmero e perecível que devora a si mesmo, e

posso dizer: não fundamentei minha causa em nada.”1848

*

Se a argumentação de Stirner é quase caricata, sua atmosfera, e suas

decorrências lógicas não o são. Stirner configura uma expressão a mais do elã furioso

quanto o projeto de Stirner configura uma instauração efetiva do abismo

torna-se pela primeira vez consciente.”1852De maneira enfática Camus

Para Camus, Nietzsche “reconheceu o niilismo e examinou-o como fato

clínico”, diagnosticando em si mesmo e na alma de seu tempo “o desaparecimento da

da absurdidade que Nietzsche, segundo Camus, também diagnostica em seu tempo:

“Negamos Deus negamos a responsabilidade de Deus, somente assim libertaremos o

mundo.”1849Todavia, Camus se esforçará em salvaguardar, ainda que parcialmente, o

projeto filosófico nietzschiano de travessia do niilismo ressaltando sua metodologia

ímpar: “...nada podemos concluir de Nietzsche, a não ser a crueldade rasteira e

medíocre que ele detestava com todas as suas forças, enquanto não se colocar no

primeiro plano de sua obra o clínico em vez do profeta.”1850

En

niilista com todas as conseqüências sanguinárias que dele derivam, em Nietzsche,

tratar-se-á, segundo Camus, de uma utilização metódica da negação com a finalidade

de, por fim, superá-la:“O caráter provisório, metódico, estratégico em suma, de seu

pensamento não pode ser questionado.”1851 Camus decreta: “Com Nietzsche, o

niilismo

adverte sob uma interpretação apressada e injusta que não aprecie o valor de conjunto

da filosofia nietzschiana: “Nietzsche só pensou em função de um apocalipse

vindouro, não para exaltá-lo, pois ele adivinhava a face sórdida e calculista que esse

apocalipse acabaria assumindo, mas para evitá-lo e transformá-lo em

renascimento.”1853

, M. L´unique et s proprieté.p. 319. 1848 STIRNER

1849 HR, 475 1850 HR, 475. 1851 HR 475. 1852 HR, 475. 1853 HR, 475.

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crença na vida.”1854Nietzsche teria encontrado também, morto, Deus, na alma de seu

tempo, encerrada definitivamente esta questão, ele ter-se-ia incumbido de responder à

difícil questão que sucede ao dilema de Ivan Karamazov1855: “Pode-se viver sem

acreditar em nada?”1856 A resposta de Nietzsche configurará uma afirmativa absoluta

a esta questão, mas nos termos de uma concepção cosmológica extremamente

exigente.

Aderindo à concepção pré-socrática de cosmo, Nietzsche considera a realidade

como inocente devir; como a criança heraclitiana, o cosmo evolui por si, sem

finalidade e sem empenho: “A criança é inocência e esquecimento, um recomeço, um

jogo, uma roda que gira por si só, um primeiro movimento, o dom sagrado de dizer

m.”

m nome de nada.”1857

a de niilismo completo e contagioso, que ensinaria e

nária do homem com as pulsões da natureza: “A conduta moral,

si

Este eterno devir que, obviamente, prescinde da idéia de Deus, torna inúteis as

idéias de unidade, finalidade ou valor. Para Nietzsche, segundo Camus, “todo juízo de

valor leva à calúnia da vida. Julga-se apenas aquilo que é, em relação ao que deveria

ser – reino dos céus, idéias eternas ou imperativo moral. Mas o que devia ser não

existe; este mundo não pode ser julgado e

Não se pode avaliar à vida em termos de bem e mal, mau ou bom, verdade ou

mentira pois se o cosmo é inocente, indiferente e multiforme, todas as faces da vida,

das mais belas às mais terríveis lhe pertencem e lhe exprimem. Camus cita duas frases

de Nietzsche em seqüência, que visam demonstrar o revigoramento potencializado do

imperativo de Ivan Karamazov pela concepção nietzschiana de cosmo: “As vantagens

deste tempo: nada é verdadeiro, tudo é permitido.”1858(...) “Problema: por que meios

se obteria uma fórmula rigoros

praticaria com um conhecimento inteiramente científico a morte voluntária?”1859

Dadas as premissas epistemológicas do absurdo, todas as conseqüências podem delas

se efetivar.

Segundo Camus, Nietzsche diagnostica que todo niilismo se fundamenta no

mascaramento da gratuidade fundamental do cosmo e nos subterfúgios morais que

velam a relação origi

1854 HR, 475. 1855 “Revolta?(...) –Pode-se viver revoltado? Pois assim eu quero viver.”DOSTOIÉVSKY, F. Os

azov.p.644. Irmãos Karam1856 HR, 475. 1857 HR, 476. 1858 HR, 476 1859 HR, 477.

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tal como exposta por Sócrates ou tal como recomenda do cristianismo, é em si mesmo

um sinal de decadência.”(...)“A moral visa substituir às paixões por um mundo

harmonioso, totalmente imaginário.”1860

O cristianismo é, sem dúvida, o arqui-rival de Nietzsche, em seu desprezo

pelos valores da terra, do corpo e pela semeadura das esperanças para o além túmulo

lmente o mal

stina à vida humana a um sentido

odas as formas de

que o desviam de sua relação originária com o cosmo. Mas Camus se atêm ao fato

que, embora despreze o cristianismo a partir do instante que Paulo tranformou o

legado de Cristo num empreendimento imperialista, Nietzsche poupa a figura do

Cristo, pois considera que o âmago de seus ensinamentos seria “o consentimento total,

a não resistência ao mal.”1861

Camus reitera esta perspectiva do Cristo paradoxalmente elogiada por este detrator,

par excellance, da religião. Em sua interpretação de Cristo, Nietzsche valoriza sua

aceitação e sua vivência dos aspectos obscuros da existência, traço que se mostrará

fundamental em seu próprio pensamento: “É preciso aceitar o mundo como ele é,

recusar-se a aumentar sua desventura, mas consentir em sofrer pessoa

que ele contém.”1862

Deturpando a doutrina desprovida de ambição do Cristo, Paulo, segundo Nietzsche, a

transforma num mercado onde se barganha o sentido da existência: “A idéia do

julgamento se entranha aos ensinamentos do Cristo, e as noções correlativas de

castigo e de recompensa. A partir desse instante, a natureza torna-se história, e

história significativa: nasce a idéia de totalidade humana.”1863

Este maquinário do cristianismo que de

imaginário e falso que lhe ultrapassa, transmundano, como diria Nietzsche, será

mimetizado por seus substitutos morais após a morte de Deus no espírito de seu

tempo: “ O socialismo nada mais é do que um cristianismo degenerado. Na verdade,

ele mantém essa crença na finalidade histórica, que trai a vida e a

natureza...”1864Assim, Nietzsche se insurge contra o socialismo e “t

humanitarismo” a quem considera, como Stirner, uma simples degradação do

cristianismo, que remodela a dinâmica, crime, castigo e recompensa e acaba por se

1860 HR, 477. 1861 HR, 478. 1862 HR, 478. 1863 HR, 478. 1864 HR, 479

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tornar a própria dinâmica da ilusão na existência humana: é, segundo o Nietzsche re-

apropriado por Camus, o nascimento do “messianismo coletivista.”1865

te

põe

s como, aliás, o próprio cosmo.

presentear os homens com as “novas leis”, que

Apesar deste aspecto não ser muito ressaltado por Camus, a crítica ao

socialismo é, afinal, parte de uma crítica mais ampla da própria concepção de Estado,

e, consequentemente de política, entendida como poder gregário e mentiroso,

destruidor, destinado a preencher o horror vacui cavado pela morte de Deus, como já

tivemos oportunidade de salientar em outra oportunidade, retomando o Zaratustra: “o

Estado mente em todas as línguas do bem e do mal; e, qualquer coisa que diga, men

– e, qualquer coisa que possua, rouba-a.”1866

Todos os valores que descendem deste horizonte de eternidade que com

todo horizonte moral, serão desmantelados “à golpes de martelo”, como bem

sabemos. O socialismo, sim, sem dúvida, mas também o Reich1867, o humanitarismo,

o Estado(em todas as línguas), a família: o próprio indivíduo está fragmentado num

feixe de pulsões e guerras intestina

Mas o que interessa à interpretação de Camus é que Nietzsche diferentemente

de outros niilistas que, como Stirner e Sade, se regozijam nesta experiência negativa,

busca uma superação do horizonte da indiferença: “Stirner ri diante do impasse.

Nietzsche se atira nas paredes.”1868

É neste ponto que o diagnóstico de Nietzsche, passa a operar em direção a um

futuro segundo Camus. Como o clínico, o profeta opera para o futuro, e, doravante,

assim procederá o filósofo, ao

sucederão a destruição das velhas tábuas: “Uma nova altivez ensinou-me o meu eu, e

eu ensino aos homens: não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestes, mas,

sim, trazê-la erguida e livre, uma cabeça terrena, que cria o sentido da terra!”1869

À dureza do sentido da terra é necessária a reformulação do homem, tratar-se-

á de calcar a nova realidade para a efetivação do além-do-homem(übermensch).

“A terra de vossos filhos, devereis amar: seja esse amor a vossa nobreza – a

terra por descobrir em mares distantes!(...)Em vossos filhos devereis compensar o

tes...Ele ri e não se atira às paredes... HE, F. Assim falou zaratustra.p, 49.

1865 HR, 479. 1866 NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra.p, 65. 1867 Como reiterado tantas vezes no Ecce Homo. 1868 Fragmento sobre o Daimon de Sócra1869 NIETZSC

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serdes filhos de vossos pais: o passado inteiro devereis, assim, redimir!Essa nova

tábua eu suspendo sobre vós.”1870

Mas qual seria esta promessa de futuro senão um homem voltado

exclusivamente para o presente? Qual seria a nova tábua de Nietzsche, senão àquela

que ensina a ausência de toda lei moral e a assunção total às pulsões e determinações

do cosmo? “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer

diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em torna a eternidade. Não apenas

suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o

necessário – mas amá-lo...”1871

Para Camus, a boa nova do amor fati, por intermédio da qual Nietzsche

concede uma dimensão ética à epistemologia do cosmo inocente que engendra por si,

mo u

filosófica

cia tem de problemático ou estranho.”1872

crucificado....”1875

co m dançarino, o eterno retorno do devir, é a própria concepção de liberdade do

autor, visto que ela consiste na afirmação irrestrita de todos os aspectos, até mesmo os

mais problemáticos da existência. Este é o sentido da terra que se está gestando. Esta

atitude que Nietzsche apelidará de “fatalismo russo” em sua auto-biografia

Ecce Homo é, para Camus uma “aprovação superior, nascida da superabundância e

da plenitude, é a afirmação sem restrições do próprio erro e do sofrimento, do mal e

do assassinato, de tudo que a existên

A moral de Nietzsche assume, assim, toda gratuidade e irresponsabilidade que

confere ao cosmo, e que desvela como sendo sua efetiva nobreza e divindade. A

existência é um jogo arbitrário sem sentido e sem Criador no qual “o dom sagrado é

dizer sim.” Interessante notar que Camus considere a sentença de Heráclito, como a

resposta nietzschiana para a Aposta de Pascal: “Examinemos, pois, esse ponto, e

digamos: ‘ Deus Existe ou não existe’. Para que lado nos inclinaremos? A razão não

pode determinar: há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância

infinita, joga-se cara ou coroa. Em que apostareis ?”1873 “A criança é inocência e

esquecimento, um recomeço, um jogo, uma roda que gira por si só, um primeiro

movimento, o dom sagrado de dizer sim.”1874 “Fui compreendido? –Dionísio contra o

1870 NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra.p, 210.

HE, F. Ecce Homo. p,51.

, B. Pensées. (L.233-Br.418) “...Que eu não leia Pascal, mas que o ame...”( F. Ecce Homo. p.41.)

1871 NIETZSC1872 HR, 483. 1873 PASCALNIETZSCHE,1874 HR, 483. 1875 HR, 484.

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Mas, para Camus, é justamente esta assunção absoluta ao destino, a que

chama divinização da fatalidade, que trai ao espírito da revolta. Nietzsche ultrapassa a

revolta assumindo à ordem da fatalidade: ordem da indiferença, da crueldade e da

ude da vida, um “consentimento orgulhoso da

alma d

finitude que, aos olhos do revoltado, permanece injustificável e inaceitável.

É neste sentido que Camus divisa que “ a revolta em Nietzsche levou ainda à

exaltação do mal. A diferença é que o mal não é uma vingança. Ele é aceito como um

dos aspectos possíveis do bem.1876”

Talvez não seja excessivo notar que Camus bem compreende o escopo

existencial e apolítico das intenções profundas de Nietzsche. Clínico, Nietzsche

divisava à assunção ao sofrimento, como atitude face à vida; dizer sim à terra e ao

Dionísio é, para o autor, afirmar à plenit

iante do inevitável”1877, recusar à face obscura da existência, seria o

equivalente à “difamação do mundo.”1878 Neste contexto imposto pelo cosmo que vai

além da lógica do sentido, caberia à arte ilustrá-lo e vivenciá-lo. É a um mundo de

artistas a Nietzsche se dirigiria, capazes de reafirmar à existência nos termos da

cosmologia heraclitiana: “escultor, duro martelo, divino espectador, que, no sétimo

dia, contempla sua obra.”1879 “–quem um criador quiser ser no bem e no mal, deverá

ser primeiro um destruidor, e despedaçar valores. Assim o mal maior é o próprio

bem: este porém é o criador.” 1880 Revela Camus, Nietzsche “só exaltou o egoísmo e

a dureza próprios do criador(...)Ele imaginava tiranos artistas.”1881

No entanto, o martelo de Nietzsche, segundo Camus, serviu mesmo assim

para consolidar a rudeza das baionetas e dos canhões que se forjaram em seu tempo,

“a tirania é mais natural do que a arte para os medíocres(...)A vida, da qual falava

com temor e tremor, foi degradada à uma biologia para uso doméstico. Uma raça de

senhores incultos, ainda balbuciando a vontade de poder, encarregou-se, então da

1876 HR, 484. 1877 HR, 484. 1878 NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p.114. 1879 NIETZSCHE, F. Além de Bem e Mal. Fr.225. 1880 “Querem uma fórmula para um destino assim, que se faz homem? – Ela se encontra no meu Zaratustra. «– quem um criador quiser ser no bem e no mal, deverá ser primeiro um destruidor, e despedaçar valores. Assim o mal maior é o próprio bem: este porém é o criador.» Eu sou,no mínimo, o homem mais terrível que já existiu; o que não impede que eu venha a ser o mais benéfico. Eu conheço o prazer de destruir em um grau conforme à minha força de destruir – em ambos aobedeço à minha natureza dionisíaca, que não sabe separar o dizer «Sim» do «fazer Não. Eu sou o primeiro imoralista: e com isso sou o destruidor par excellance.” (NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p.110 – Citando Assim

a, II Da superação) . O Calígula de Camus, como vimos, é a encarnação deste criador-político nietzschiano.

falou Zaratustr1881 HR, 483-4

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deformidade anti-semita, que ele nunca deixou de desprezar1882(...)Em seu nome

colocou-se a coragem contra a inteligência, e essa virtude que foi realmente a dele,

transfo

preende que seja à despeito de Nietzsche - que

ue diagnosticava animar o Reich. De início à cabo, o Ecce Homo constitui

m es

Homo, Nietzsche esboça de si mesmo um perfil psico-

fisiológ

rmou-se em violência cega.”1883

Camus, portanto, embora reconheça o brilhantismo metódico e a lucidez

severa de Nietzsche é implacável no que se trata de associá-lo, sem reservas,

malgrado ele próprio, à vontade de potência e de destruição do nazismo, alinhando-o

à artilharia ideológica do mal absoluto: “...conhecem-se a sua posteridade e o tipo de

política que ia ser autorizado pelo homem que se dizia o último alemão anti-

político.”1884 Notemos que Camus com

seja através, em grande parte, da deturpação de sua filosofia - que se conclua de seu

pensamento austero, que a bem da verdade compõe uma verdadeira sinfonia à vida –

o seu contrário, isto é, uma ode à morte: “Sua solidão profunda do meio-dia e da meia

–noite perdeu-se, entretanto, nas multidões mecanizadas que finalmente se

multiplicaram na Europa.”1885

A bem da verdade, de nossa parte ajuntemos, Nietzsche, principalmente em

sua auto-biografia filosófica, alardeia, aos quatro ventos sua disparidade profunda

com o elã q

u forço hercúleo de desvinculação do gênero alemão. Quem sabe não seja

desnecessário seguir o desenvolvimento desta obra de maturidade de Nietzsche na

tentativa de indagar, em sintonia com a enquete camusiana, sobre a real opinião de

Nietzsche a respeito de seu país natal.

Desde o início do Ecce

ico radicalmente anti-germânico, forjando até mesmo uma falsa ascendência

polonesa: “ já minha ascendência permite-me enxergar além das perspectivas

puramente locais, puramente nacionais (...) Por outro lado, sou talvez mais alemão

do que ainda podem ser os alemães de hoje , meros alemães do Reich - eu , o último

1882 “...Ainda não encontrei um alemão que tivesse afeição pelos judeus; e embora todos os homens cautelosos e políticos rejeitem de modo apolítica não se de origem contra o próprio

bsoluto o autêntido anti-semitismo,mesmo essa cautela e essa gênero de sentimento,mas tão somente contra sua poderosa

imoderação, em especial contra a manifestação disparatada e vergonhosa desse sentimento imoderado(...)«Não deixar entrar novos judeus!Fechar as portas para o Leste»(...)isso é o que ordena

m povo que natureza é ainda fraca(...)Mas os judeus são, sem qualquer dúvida a raça de Bem e

o instinto de umais forte, mais tenaz e mais pura que atualmente vive na Europa...” (NIETZSCHE, F. AlémMal. Fr.251.) “Há uma historiografia alemã- imperial, há, receio, até mesmo uma anti -semita”.(EH, p.103) 1883 HR, 484. 1884 HR, 484. 1885 HR, 485.

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alemão anti - político. E no entanto, meus antepassados eram nobres poloneses; deles

tenho muito instinto de raça no corpo, quem sabe até mesmo ainda o liberum

veto.”1886

Pouco nos importa aqui se o auto - retrato de Nietzsche é fiel 1887; o que

cabe acentuar nesta passagem de “Por que sou tão sábio” é que um dos

pressup

dom “aristotélico” da sociabilidade, contrário ao

espírito

ã - Nietzsche diz servir -se de pessoas como “uma forte

lente d

ostos da singularidade da experiência do filósofo é sua descaracterização

enquanto alemão genuíno, associada a habilidade que a fisiologia lhe propicia para

“transtrocar perspectivas.”1888

Nietzsche marca, deste a primeira menção à própria genealogia, sua

alteridade em relação à Alemanha e estipula seu descomprometimento com qualquer

sentimento cívico. O filósofo descreve-se como um alemão de um tipo extinto, um

alemão malhado, de raça e instinto polonês (de quem herdou também a inclinação

para vetar leis) , de um tipo impróprio para a integração num “rebanho”: alega que

seria ele o último alemão sem o

gregário típico do Reich .

O que se desenha pouco a pouco é o quadro de influências que entremostra o

afastamento de Nietzsche do espírito e metabolismo alemães: a ascendência

polonesa , uma adesão à sensatez do “fatalismo russo” e uma vinculação espontânea

à sabedoria fisiológica dos budistas. Tudo colabora na expressão da singularidade

Nietzsche.

Diferença que na segunda menção direta sobre à Alemanha em Ecce homo,

ganha contornos de contraponto evidente, já que a “cultura alemã” exemplifica um

adversário à altura , uma causa vitoriosa e nefasta, dotada de “maestria de armas”,

escolhida voluntariamente para o jogo da guerra. Outro dado caro acrescentado ao

“protocolo de guerra” nietzschiano revela que atacar pessoas simboliza o ataque a

“causas”: David Strauss e Richard Wagner aparecem associados à crítica à

“cultura” (bildung) alem

e aumento com que se pode tornar visível um estado de miséria geral, porém

dissimulado, pouco palpável”1889 .

1886 NIETZSCHE, F. Ecce Homo. (Ele será até o fim do capítulo legendado como EH).p.26 1887 É talvez digno de nota que Halevy considera esta ascendência aristocrática polonesa de Nietzsche como fantasiosa.(HALEVY, D. Nietzsche) 1888 Tal é o exercício que a oscilação própria da constituição fisiológica de Nietzsche permite “da ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos , e , inversamente, da plenitude e certeza da vida rica

o secreto lavor do instinto de décadence’.(EH, p.24) descer os olhos a1889 EH, p. 32

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Após os primeiros passos da tomada de distância em relação a Alemanha o

capítulo “Por que sou tão sábio” encerra-se com um elogio à solidão, à pureza do ar

livre das alturas , seis mil pés acima de Bayreuth e da multidão. Nietzsche insinua a

inadaptação de sua índole para com o comércio dos homens , relata o perigoso

“nojo” que sente por eles, além de revelar que sua obra filosófica maior, o Zaratustra,

é um ditirambo à solidão. Diz o filósofo citando palavras do Zaratustra , “há uma

vida que gentalha nenhuma bebe conosco(...)esta é a nossa altura e nosso lugar: aqui

habitamos demasiado alto e íngreme para todos os impuros e sua sede ”1890: o que

vemos delinear-se, ou pelo menos, insinuar-se pelo conjunto deste capítulo é uma

filosofia aristocrática, anti - gregária, anti -política, determinada em colocar-se para

além dos interesses coletivos, do Estado ou da pátria; e sobretudo, o empenho do

filósofo em contrariar más interpretações que pudessem colocar seu pensamento à

serviço do ideal Junker.

Seguindo a trajetória de distanciamento em relação à terra natal, podemos

notar no capítulo “Por que sou tão inteligente” a disparidade do plano de interesses

de Nietzsche em relação aos interesses típicos da Alemanha idealista. Na máscara

que Nietzsche modela para si mesmo , a grandeza de seu gênio está associada com

sua trajetória de libertação em relação ao idealismo alemão1891, a começar pelo

doaban no de seus pseudo - problemas religiosos e políticos, e uma nova orientação

de prioridades tais como o zelo com a alimentação, o clima e a qualidade de vida,

“questão a qual depende mais a ‘salvação da humanidade’ do que qualquer

curiosidade de teólogos”1892. Da ética abstrata de seus contemporâneos alemães,

passamos, em Nietzsche a uma dietética: expressão de uma ética da vida. É

fundamental, neste ponto, frisarmos que seu desvencilhamento do atraso idealista

alemão foi, segundo o Ecce Homo, condição da explosão de seu gênio. Ele próprio,

segundo o Ecce Homo, havia sofrido com a ignorância em matéria de fisiologia de

que fôra acometido até a maturidade devido “ à perfeita nulidade de nossa cultura

alemã”1893 : o filósofo relata - “ de fato até minha maturidade sempre comi mal”.

Enquanto vivia entre alemães segundo o Ecce Homo, o próprio Nietzsche “era de um

ue até agora tomou-se atamente é preciso começar a reaprender.”(EH,p.50)

1890 EH, p.34 1891 Vemos o “filósofo - legislador” gerindo - enquanto médico - adequadamente sua fisiologia. Lembremos essa passagem: “essas pequenas coisas - alimentação , lugar, clima, distração, toda a casuística do egoísmo - são inconcebivelmente mais importantes do que tudo o qcomo importante. Nisto ex1892 EH,p.35 1893 EH.p.36

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atraso que beirava à santidade”. Nietzsche começa então a se distinguir dos seus

neste ponto: sua inteligência se exprime espontaneamente, de começo, através de sua

indisposição natural contra os pressupostos fisiológicos do idealismo. Podemos

observar neste capítulo de Ecce Homo, assim, três níveis de crítica à cultura alemã:

alimentação , clima e distração. Três aspectos ao mesmo tempo, influenciadores e

influenciados( à maneira de um círculo - vicioso)pela ótica distorcida do idealismo.

Primeiramente o filósofo critica a alimentação alemã, pois a digestão é

componente nobre na constituição das disposições do homem, com parcela

importante de influência em seu conatus. A cozinha de Leipzig, por exemplo,

segundo o Ecce Homo, que teve o desprazer de conhecer quando estudava

Schopenhauer, quase lhe haveria feito “renegar à vida”. A inter-relação entre

fisiologia e moral é um dos preceitos vitais fundamentais da nova sabedoria

nietzschiana: “como você deve alimentar-se para alcançar seu máximo de força, de

virtù no estilo da renascença, de virtude livre de moralina?”1894 Segundo Nietzsche,

a cozinha alemã em geral é responsável pela indigestão própria do espírito alemão

“que de nada dá conta” : “a sopa antes da refeição, as carnes demasiado cozidas, as

verduras gordurosas; a degeneração dos doces em peso para papel”1895 e os maus

hábitos da mesa causam as “entranhas enturvadas” típica dos alemães. É o

desencargo para com o corpo dos alemães, o verdadeiro pecado contra o espírito,

origem de seus ‘pés pesados’ e da ‘má consciência’. Diz Nietzsche no final desta

seção, “todos os preconceitos vêm das vísceras”1896.

A inadequação entre Nietzsche e a Alemanha provém também de outra

fonte segundo o Ecce Homo: de pressupostos ligados ao lugar e ao clima. A

influên

de vida na Alemanha ( alimentação , clima) e a fisiologia de Nietzsche: “a ignorância

cia climática sobre o metabolismo afasta Nietzsche mais uma vez de sua pátria,

que considera um lugar impróprio ao cultivo do gênio: “o gênio é condicionado pelo

ar seco, pelo céu puro”, e “o clima alemão em si já é suficiente para desencorajar

vísceras fortes, de disposição heróica inclusive.”1897 Entre os lugares de clima seco,

apto para o desenvolvimento do gênio - Paris, Florença, Jerusalém e Atenas -

nenhum em território alemão. A infância do filósofo descrita como “isenta de

lembranças felizes” foi envenenada pela total ausência de afinidade entre às condições

1894 EH,p.36. 1895 EH.p.38. 1896 EH.p.38. 1897 EH.p.39.

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in physiologicis - o maldito idealismo - é a verdadeira fatalidade em minha vida, o

estúpido e supérfluo nela, algo de que nada de bom resultou, para o qual não há

compensação ou contrapartida.”1898 Vai se revelando em Ecce Homo que o combate

ao idealismo desprezador do corpo é indissociável da contraposição a tudo o que é

tipicamente alemão: trata-se de eleger a Alemanha, síntese dos prejuízos da tradição e

o grande adversário do “sentido da terra” nietzschiano, ao mesmo tempo em que se

entremostra a experiência pessoal abismal do filósofo com sua terra natal, permeada

de presságios sinistros.

Aliada à fisiologia, a escolha da distração compõe o conjunto de receitas

eleitas pela filosofia de Nietzsche para a sabedoria da vida. Neste campo, a

singularidade da experiência do filósofo, o conduz também ao afastamento das

fronteiras de seu torrão natal: entre os livros escolhidos como refúgio, “que provaram

ser feit

os para mim”1899, afinados, portanto, com as pequenas orelhas de Nietzsche,

não constam livros alemães; “É a um número na verdade pequeno de velhos franceses

que sempre retorno: creio apenas na cultura francesa e vejo como um mal-entendido

tudo o mais que se denomina “cultura” na Europa, para não falar da cultura

alemã...”1900 Segundo o Ecce Homo, mesmo os alemães refinados com que seria

possível alguma comunicação – visto que para Nietzsche a comunicação pressupõe

uma sintonia e uma partilha - “em especial frau Cosima Wagner” - “eram de

procedência francesa” 1901. Se alguma cultura está mais bem afinada com o ouvido

nietzschiano, na qual o filósofo encontra ecos para sua vivência e alguma

comunicação é possível , essa cultura é a francesa , já que “onde reina a Alemanha

corrompe a cultura”1902.

Para Nietzsche enquanto os franceses são “os psicólogos ao mesmo tempo

mais inquiridores e mais delicados”1903, “os alemães são incapazes de qualquer idéia

de grandeza”1904: na imagem que constrói de si em Ecce homo , o filósofo delineia

nitidamente uma franco filia contraposta à uma estrondosa germano fobia.

1898 EH.p.19.

H.p.19.

aul e Loti, Gyp, Meilhac, Anatole France, Jules Lamaître, Guy de Moupassant, Stendhal.

1899 E1900 1901 EH, p.41. 1902 Nietzsche cita nomes (todos franceses) dignos de sua admiração: Molière, Corneille e Racine; PBourget, Pierr1903 EH,p.41. 1904 EH, p.42.

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Nas seções 5, 6 e 7 do Ecce Homo dedicadas à música (parte portanto

majoritária no âmbito das distrações), nos deparamos com uma estratégia que permite

outro afastamento da “cultura alemã”, conservando, entretanto, o amor pela arte dela

proveniente: Nietzsche julga compreender Wagner além dos “wagnerianos” (a

despeito também do que Wagner entendeu e fez de si próprio e de sua arte) e ama sua

música , malgrado sua política. Vale ressaltar que a crítica à Wagner tem por alvo a

“cultura” alemã, e que o olhar do genealogista busca os traços estrangeiros do criador

de Parsifal para explicar a razão de sua intensa afinidade artística com ele: “jamais

admitirei que um alemão possa chegar a saber o que é música. Os chamados músicos

alemães, os maiores à frente, são estrangeiros, eslavos, croatas , italianos,

holandeses - ou judeus”1905. O amor que Nietzsche devotara a Wagner provinha

justamente de seu caráter estrangeiro que propiciava fuga de seu exílio cultural nato ;

“ Sendo meus instintos mais profundos , alheio a tudo que seja alemão, de tal modo

que a simples proximidade de um alemão retarda-me a digestão, o primeiro contato

com Wagner foi também o primeiro instante da minha vida em que respirei(...) Quem

quer se livrar de uma pressão intolerável necessita de haxixe. Pois bem, eu

necessitava de Wagner”.1906 Na apreciação do genealogista, a única pátria que tem

ouvidos finos para a música de Wagner é a França ; o parentesco mais próximo de

sua música - o romantismo francês da última fase, Delacroix e Berlioz; o primeiro

adepto inteligente de Wagner: Charles Baudelaire. Presenciamos portanto o esforço

em cindir a música de Wagner do ressentimento alemão , não obstante seja a figura

de Wagner tornada uma ocasião para o ataque contra o Reich .

Encontramos pistas mais precisas que evidenciam a ligação entre a questão

alemã e a fachada do nome Wagner,no capítulo do Ecce Homo, “O caso Wagner - um

problema para músicos”; “Quem duvidaria verdadeiramente que eu , como velho

artilheiro que sou, tenha condições de apontar contra Wagner minha artilharia

pesada ?(...)um ataque a essa nação alemã cada vez mais indolente e pobre em

instintos, cada vez mais respeitável, que com invejável apetite prossegue se

alimentando de opostos e engole tanto ‘a fé’ como a cientificidade, tanto o ‘amor

cristão’, como o anti-semitismo, tanto a vontade de poder (de ‘Reich’) como o

évangile des humbles(...)Essa neutralidade, esse desinteresse estomacal! Esse sentido

45. 1905 EH,p.46. Entretanto Bach e Hendel são elogiados : “são alemães de um tipo extinto”. 1906 EH, pp.44,

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de justiça de paladar alemão, que a tudo dá direitos iguais - que tudo acha

saboroso.”1907

Em “O caso Wagner” Nietzsche expõe a transfiguração da música de mestres

como Wagner e Heirinch Schultz operada pela pequenina política alemã: música

dionisía

ria

agigant

ca tornada sacra e gregária pelo mau gosto alemão. A discussão sobre a

música, transforma-se num ataque aos ouvintes doentios que produzia à bildung

alemã; torna-se evidente, com a leitura atenta deste capítulo do Ecce Homo, que a

análise que propõe uma associação de Nietzsche à vontade de Reich - no que vi

ar-se e concretizar-se nos ideais arianos e militaristas de Hitler - é , afinal

distorcida, elaborada a partir de orelhas imensas.1908 O que Nietzsche ouvia em

Wagner, era algo diferente, não tinha nada haver com o Wagner vestido de Hussardo

escutado pelo rebanho do Reich: “o que nunca perdoei à Wagner ? O haver

condescendido com os alemães - o haver-se tornado um alemão do Reich. Onde reina

a Alemanha corrompe a cultura.”1909 O que o filósofo ouvia era algo diverso : era a

música

mesquinha, idealista e gregária que a Europa encontrava em seu próprio fundo.

dionisíaca que Nietzsche escutava, traduzida e transfigurada pelo seu próprio

escutar . Por outro lado, o que os alemães do Reich ouviam da música de Wagner é

apenas o que poderiam ouvir: ecos transfigurados de sua experiência doentia, de sua

decadência fisiológica, da má consciência idealista: “Wagner, Bayreuth, toda a

pequenina miséria alemã é uma nuvem onde uma infinita imagem do futuro se reflete.

”1910

É o mal entendido , a falência comunicativa do conteúdo íntimo da “arte

dionisíaca” que leva à apropriação do nome de Wagner pelo Reich: “a nevroise

nationale da qual adoece a Europa, essa perpetuação da pequenina política: eles

levaram da Europa seu sentido, sua razão - levaram-na a um beco sem saída.”1911

E ressaltemos: Nietzsche prevê para si, a mesma sina de seu contraditor - “e

tão certamente como Wagner é um mero mal entendido entre os alemães, também

eu o sou e eu o serei”1912. De fato, os alemães não experimentavam na música de

Wagner e nos discursos de Nietzsche “a grande arte dionisíaca libertadora ” que

clamava ser escutada. O que foi compreendido não foi senão a reverberação

1907 EH, PP.102/103.

atêm, entretanto, que são de fato, os asnos que apoderarem deste maquinário...

5.

1908 Camus, se1909EH, p. 44. 1910EH, P.65. 1911EH. p.101912EH, P.30.

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A fatalidade do silêncio, da incomunicabilidade e da má interpretação em

relação aos seus contemporâneos é a preocupação norteadora do Ecce Homo; do

prólogo: “ - Ouçam-me ! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo não me confundam !”1913 -

até à questão final - “Fui compreendido ?Dionísio contra o crucificado.”1914 Em

todo a obra encontramos reflexos do abismo que separa a palavra e o sentido, o dito

e o ouvido.

Em “Por que escrevo livros tão bons” o tema do pathos da distância ganha

contornos definitivos. Nietzsche se descreve como um homem além de sua época,

sem mãos ou ouvidos para as suas verdades. A ausência de vivências comuns entre

Nietzsc

ídos, do que aquilo que já se sabe. Não se

tem ouv

próprio Nietzsche,

é para

he e a Alemanha, que vimos, pouco a pouco, desenhar-se neste atalho pelo

Ecce Homo(diferenças de paladar, a inadaptação fisiológica inter-relacionada com

todo o caráter doentio da formação idealista alemã) - exprime, em linguagem

“fisiológica” nietzschiana, o fosso que opõe definitivamente os dois destinos: se no

âmago do processo de comunicação está a capacidade de partilhar experiências, não

pode haver diálogo entre Nietzsche e a Alemanha: “em última instância , ninguém

pode escutar mais das coisas, livros inclu

ido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência. ”1915

Os alemães espelham-se no Nietzsche de minúsculas orelhas e vêem a

imagem do asno. No esboço do perfil do leitor ideal no Ecce Homo, se revela, afinal,

o segredo do abismo, da mis-en-abîme elaborada por Nietzsche nesta obra magnífica:

o perfil do leitor ideal - “ monstro de coração e curiosidade”1916 - é , a bem da

verdade, auto-retrato, no limite, não possui reflexo em seu tempo. Este livro é para

todos, mas, visto que é inaudível, salvo aos ouvidos minúsculos do

ninguém.

Desprende-se da estratégia configurada no Ecce Homo, que a leitura alemã

de sua obra, idealista e nacionalista é uma decorrência (fisio)lógica da própria

impossibilidade de comunicar que se estabelece entre seres tão distintos. Os

backgrounds psicofisiológicos do filósofo e de sua terra natal constituem um fosso

intransponível. É o caráter extemporâneo de Nietzsche que se mostra em toda sua

, p.54. usco formar a imagem de um leitor perfeito, resulta sempre em um monstro de coração

, e também em algo doce, astuto, cauteloso, um aventureiro e descobridor nato”.(EH,

1913EH, 17. 1914EH.117. 1915 EH1916 “Quando be curiosidadep.56)

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intensidade ; “que hoje não me ouçam, que hoje nada saibam de mim, não é não só

compreensível, parece-me até justo”.1917

Tendo em vista a concepção de comunicação nietzschiana não é surpreendente

que a leitura feita pelo Nationalzeitung - um jornal prussiano típico - considere a

Além de Bem e Mal “um signo dos tempos, como a verdadeira e correta filosofia

junker ...”1918 ; e que a palavra “super-homem” seja entendida na Alemanha pelo

avesso, designando algum monstro, meio santo, meio gênio. É uma condição para a

compreensão da obra de Nietzsche, segundo o Ecce Homo, não partilhar nada com

Aleman

sofo os concedeu “ em Paris mesmo estão

assomb

para poucos, como vimos, no limite, para ninguém.

ha: “é absolutamente imprescindível não ser alemão”.1919

Segundo o Ecce Homo, é o caráter estrangeiro de sua obra que a faz,

consecutivamente, ser, ainda que parcial e nebulosamente, entendida no exterior: Em

lugares, segundo seus próprios termos, mais irmãos que a Alemanha - Viena , São

Petersburgo, Estocolmo, Copenhague , Paris , Nova York - “em toda parte sou

descoberto: não o sou na terra chata da Europa(Flachland), a Terra dos

Alemães(Deutschland)”1920. É das interpretações francesas que Nietzsche guarda

melhor expectativa(e colhe já elogios). Pois os franceses, por afinidade, estão mais

aptos à captar o presente íntimo que o filó

rados com ‘toutes mes audaces et finesses’(...)receio que se encontre em mim

uma pitada de sal que nunca se torna insípido - ‘alemão’ - o esprit”.”1921

Esse jogo de espelhamento entre escritor e leitor, imprescindível para o

sucesso da débil experiência da comunicação, exprime que a filosofia de Nietzsche é

de um aristocratismo radical; é

Filosofia destinada apenas aos companheiros de viagem, almas irmãs

dispostas a seguir juntas por afinidade gratuita, pelo puro elã; amantes da altura e do

clima das montanhas - da solidão, ou da solidão à dois: um pensamento fundado no

ideal da criação artística, como bem detecta Camus, destinado às alturas, nada

disposto aos interesses do vale - da terra chata(Flashland). Trata-se do contraponto

exato do gregarismo e do nivelamento operado pela política junker. Lembrando ainda

uma vez as palavras do Zaratustra, que consideramos a opinião final de Nietzsche à

1917 EH, p.52 1918 EH, p.54 1919 EH, p.55 1920 EH, p.54 1921 EH, p.55

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respeito de todas as “figuras” da política, “em todas as línguas”: “chama-se Estado o

mais frio de todos os monstros frios”1922.

Deste modo, talvez não seja excessivo sublinhar este aspecto da interpretação

de Camus do “caso Nietzsche”: uma historiografia filosófica cuidadosa jamais poderia

admitir o esfacelamento que a interpretação germanófila empreendeu da obra de

Nietzsche. A bem da verdade, segundo Camus, “jamais conseguiremos reparar a

injustiça que lhe foi feita.”1923

Todo este percurso, pelas entranhas da negação, até a afirmação irrestrita da

vida, e, com ela, de seu aspecto mais cruel, medonho e terrível...Esta lógica que se

coaduna, em suas conseqüências, paradoxalmente, aos interesses daqueles que se mais

despreza...A afirmação da sacralidade da vida que se efetiva em legitimação da

destruição e da aniquilação pela estupidez do pensamento de rebanho da política. Não

poderia se divisar na loucura de Nietzsche uma resposta dionisíaca para este paradoxo

insuper

os é que a história é implacável, e os Estados, monstros com

Hitler e ao Mito do século XX , de Rosenberg, no monumento

orster Nietzsche, irmã do filósofo, proferia estas

sombriamente o papel trágico que desempenharia, à sua revelia, na história a seguir:

ável que seguramente anteciparia em sua própria filosofia? Como Ivan,

Nietzsche teria sucumbido ao caráter paradoxal que assumiriam seus pensamentos em

contato com a história? Por amor aos homens consentir que se mate. Por amor à vida

consentir aceitar à aniquilação da vida?

O que sabem

orelhas imensas, ““Trinta e três anos após a sua morte foi considerado por seu

próprio país um professor de mentira e de violência, tornando detestáveis as noções e

virtudes que seu sacrifício tornara admiráveis.”1924

Em 1935, ao concordar que o Zaratustra fosse depositado, justaposto ao livro

Mein Kempf de

Tannenberg, erguido em homenagem à vitória alemã sobre a Rússia durante a

Primeira Guerra mundial, Elisabeth F

palavras significativas: “ Estou certa de que ‘Fritz’ ficaria encantado em ver Hitler

assumir com uma coragem incomparável a plena e total responsabilidade de seu

povo”1925.

Neste contexto, a obsessão de Nietzsche em se desvincular da Alemanha

desprende, a bem da verdade, uma aguda percepção de seu tempo e prenuncia

HE, F. Assim falou Zaratustra.p.65.

H.F., Nietzsche et sa soeur Elizabeth. Paris. Mercure de France, 1978. (p.316).

1922 NIETZSC1923 HR, 485. 1924 HR, 485. 1925 PETERS,

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“também no meu caso os alemães a tudo recorrerão para fazer um imenso destino

parir um rato.”1926

u pour au

contre

o lhe conferida pela história do século XX: “O próprio

movime

possa ser utilizado no sentido do assassinato

definiti

rânea à Nietzsche: “Sim. A partir do momento em que se

neglige

Camus, de sua parte, observemos com cuidado, reitera sem reservas, pois, a

existência de um abismo profundo, inexpugnável, entre o pensamento profundo de

Nietzsche e o Reich: “Reconheçamos em primeiro lugar que será sempre impossível

confundir Nietzsche com Rosemberg. Devemos ser advogados de defesa de

Nietzsche.”1927

Porém, Nietzsche não está à salvo no renversement continuel d

de Camus.

Advertimos que a reabilitação de Nietzsche seria, da parte de Camus, parcial.

Camus questiona em O Homem Revoltado qual aspecto da filosofia de Nietzsche

endossaria a interpretaçã

nto que culminou com Nietzsche, e que o sustenta, tem as suas leis e a sua

lógica, que talvez expliquem a sangrenta desfiguração que se infringiu à sua filosofia.

Não haverá nada em sua obra que

vo?”1928

Camus dá um passo adiante na profanação deste filósofo, que, na atualidade

do terceiro milênio, foi tornado sacro, malgrado as advertências de Zaratustra.1929 Ele

é sacrílego ao ponto de se perguntar se, de fato, Nietzsche não teria, de fato, sido útil à

consciência bem cultivada dos carrascos nazistas: “Os matadores, desde que

renegassem o espírito em favor da letra, e até mesmo aquilo que na letra continua

sendo espírito, não poderiam encontrar seus pretextos em Nietzsche?”1930

A resposta de Camus, fissura de antemão o caráter marmóreo no qual se

forjará a veneração contempo

ncia o aspecto metódico do pensamento nietzschiano, a sua lógica revoltada

não conhece limites.”1931

venerais; mas e se um dia vossa veneração desmoronar?Guardai-vos de que não vos estátua.” (EH, 20)

5-6

1926 EH, 105. 1927 HR, 485. 1928 HR, 485. 1929 “Vós me esmague uma 1930 HR, p.481931 HR, 486.

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Como procedeu no conjunto de suas interpretações, Camus irá deduzir as

“conseqüências lógicas” das premissas do pensamento de Nietzsche: “Tudo aceitar

pressupõe aceitar o assassinato.”1932

Ora, segundo Camus, definitivamente atualizando o renversement continuel

du pou

os escravo diz sim à tudo, ele aceita a existência do senhor

e do se

o se mantêm no patamar de Nietzsche. O

revolta

se dilacera, como diz Camus, “se joga contra às paredes”: empenhando sua

vida co

r au contre pascaliano, há duas maneiras de encarar à premissa nietzschiana de

aceitação integral da existência, a doutrina do amor fati, cuja melhor definição,

continua a constar no Ecce Homo: “Minha fórmula para a grandeza do homem é

amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a

eternidade. Não apenas suportar o necessário...mas amá-lo...”1933O primeiro ponto

de vista possível da aceitação plena da existência de Nietzsche, para Camus, se dá

pela ótica do escravo: “Se

u próprio sofrimento.”1934

Deste ponto de vista, o pensamento de Nietzsche seria, à luz da revolta, no

mínimo, conformista. O revoltado mantém, ao contrário de Nietzsche, sua indignação

face à injustiça cósmica. O revoltado nã

do poderia até mesmo assumir, devidamente suprimido o imbróglio metafísico

do Eterno Retorno, a esta concepção do vir-a-ser inocente e engajado em sua

permanente re-criação que é o cosmo heraclitiano de Nietzsche. Mas o revoltado

pretende manter sua altivez diante desta desrazão que não implica unicamente no

assentimento de nossa condição pessoal.

De alguma maneira Nietzsche, com sua loucura, responde aos paradoxos que

implicavam à aceitação integral da existência com a dignidade do revoltado: como

Ivan, ele

mo evidência da rudeza de seu pensamento, ele cumpre o protocolo da revolta,

que é o salto na ascese pelo mergulho, mais ou menos amargo, no fundo dos

paradoxos. À luz deste patamar, a revolta poderia até mesmo honrá-lo: consumiu-se

nos abismos que flertou.

No entanto, de uma luz superior, o revoltado compreende que a filosofia de

Nietzsche não escapa a seu crivo pois a assunção plena da existência não se resume

num consentimento pessoal ao sofrimento ou à própria condição, ele é um

procedimento de generalização absoluta.

1932 HR, 486. 1933 EH, 51. 1934 HR, 486.

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Assim, Nietzsche trai ainda mais profundamente à revolta quando entrevista

sua postura de afirmação plena da existência, à luz do patamar dos Senhores do poder:

e o e“S scravo diz sim à tudo, ele aceita a existência do senhor e do seu próprio

sofrimento(...)Se o Senhor diz sim a tudo, ele consente na escravidão e no

sofrimento dos outros; eis o tirano e a glorificação do assassinato.”1935

É sobretudo pelo que consente que se faça aos outros que o pensamento

nietzschiano é um dos traidores mais exemplares do elã revoltado legítimo segundo

Camus.

O cristão pensa que o sentido da vida é transcendente e que é preciso renegar o

iso ter um pensamento oculto e julgar tudo por

ele.”193

até aqui é o pensamento das origens da

revolta

mundo e assumir Deus para compreender ainda que interrogativamente o sentido de

sua escravidão ao sofrimento; O nietzschiano desmente o cristão sabendo que o

sentido da vida está na superficialidade da vida ela mesma e que seu verdadeiro

segredo está na aceitação do sofrimento que é amor ao destino; O revoltado aceita

que o sentido da vida está na paixão humana de viver, mas contradiz o nietzschiano,

sabe que é indigno louvar ao cosmo que lhe esmaga, principalmente se ele não

esmaga somente a si mas arrasta consigo aos outros que, como ele, são apaixonados

pela vida. “Assim vão as opiniões sucedendo do pró ao contra segundo à luz que se

tem têm.”1936

Como diria Pascal, “é prec7 “Razão dos efeitos” do raciocínio de Camus, o pensamento oculto que

governa todas as análises empreendidas

, o pensamento dos limites, a saber, a consciência aguda e vigilante da

fragilidade da condição humana e o sentimento de injustiça diante deste cosmo (que

se manisfesta também na história) que oprime e dilacera a si e aos outros. Inclusive ao

próprio Nietzsche.

A passagem contínua do pró ao contra1938 de Camus destrói a suposta

imparcialidade do artista e criador Nietzsche, que malgrado seu amor teórico pela

1935 HR, 486. 1936 PASCAL, B. Pensées. (L.70.-Br.337) “Gradação. O povo honra as pessoas de grande nascimento. Os semi-hábeis as desprezam, dizendo que o nascimento não é uma vantagem da pessoa, mas do acaso(...)Os devotos que tem mais zelo que ciência os desprezam(...)Mas os cristãos perfeitos as honram por outra luz superior. Assim vão se sucedendo as opiniões do pró ao contra, segundo a luz que se tem...” 1937 PASCAL, B. Pensées.(Br.336) “Razão dos efeitos: é preciso ter um pensamento oculto e julgar tudo por ele, falando entretanto como o povo. 1938 PASCAL, B. Pensées.(Br.336) “- Razão dos efeitos – Passagem contínua do pró ao contra.

dedica às coisas que não são essenciais. E todas estas Mostramos que o homem é vão pela estima que

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vida, pretendia, enfim, se imiscuir da história na qual a vida está inexoravelmente

imersa. Talvez pudéssemos imaginar que, para a razão revoltada, o próprio Nietzsche,

mestre da suspeita, detectasse em si esta indiferença assombrosa: “O nojo do homem é

o meu perigo...”1939Não seria um paradoxo dilacerante afirmar absolutamente todas as

instâncias, até mesmo as mais problemáticas da existência, exceto àquela, a mais

problemática de todas, na qual a vida está implicada carnalmente, visceralmente:

como ignorar esta manifestação do cosmo que é a história, que lhe esmaga? E se não é

o caso de negá-la, como afirmá-la?

Quem sabe empreendendo uma viagem sem volta à Turim, onde o clima é

mais favorável e onde se respira melhor...

Aceitar indiscriminadamente à infâmia da história, refletidamente, equivale a

compactuar com seus crimes.

rtir do instante em

Parodiando Pascal, poderíamos dizer que o “revoltado perfeito” de Camus não

deserta de seu engajamento contra a miséria humana, seja ela oriunda da contingência,

ou das determinações avassaladoras da história. Não existe, nem fuga, nem ascese

solitária em seu horizonte povoado de outros seres. Nem nos tambores de Dionísio. O

solilóquio é criminoso da ótica da revolta.

Nietzsche seria, portanto, para Camus, um desertor da revolta e um traidor do

homem. Ele, como o Cristo, consentiu que o assassinassem: “A pa

que era dado o assentimento à totalidade da experiência humana, podiam surgir

outros que, longe de resistirem, se fortaleceriam na mentira e no assassinato. A

responsabilidade de Nietzsche está no fato de ter legitimado, por motivos superiores

de método, mesmo que por um instante, no meio do pensamento, esse direito à

desonra...”1940

Camus poderia ter se mantido nesta lúcida contestação do filósofo alemão,

bastante elucidativa da dimensão ética da indiferença à história e ao sofrimento do

homem ordinário alardeada pelo aristocrático Nietzsche, mas ele progride elevando

ainda mais o patamar de sua crítica: “Mas a sua responsabilidade involuntária vai

opiniões dão destruídas. Mostramos em seguida que todas essas opiniões são muito sadias e que, destarte, sendo todas as vaidades muito bem fundadas o povo não é tão vão como se diz. E, assim, destruímos a opnião que destruía a do povo.Mas é preciso destruir agora esta última proposição, e

ontinua sendo verdadeiro que o povo é vão, embora suas opiniões sejam sadias, porque rdade delas onde esta verdade existe e por que, ponto onde não existe, as suas opiniões ito falsas e muito malsãs.”

HE, F. Ecce Homo. (EH), p.114.

mostrar que cnão sente a vesão sempre mu1939 NIETZSC1940 HR, 487.

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ainda mais longe. Nietzsche é efetivamente o que ele reconhecia ser: a consciência

mais aguda do niilismo. O passo que ele faz o espírito de revolta dar consiste em

fazê-lo saltar da negação do ideal à secularização do ideal.”1941

Para Camus, Nietzsche vai além do mero conformismo, pois ele instiga à

agédi

m sua

tr a contemporânea na medida em que, decretada a irracionalidade do mundo,

“Nietzsche reivindicaria o rumo do futuro humano.”1942 Camus cita um fragmento,

como de hábito, sem referência, que, possivelmente, constava na compilação de textos

de Nietzsche realizada por Elizabeth Forster Nietzsche, conhecida como Vontade de

Potência: “«A tarefa de governar a Terra vai derrotar-nos.» E ainda «Aproxima-se o

tempo em que será necessário lutar pelo domínio da terra, e essa luta será travada

em nome dos princípios filosóficos».”1943 Camus decreta: “Ele enunciava o século

XX”1944

Interessante notar que podemos afirmar certamente1945 que Camus conhecia

passagens como a do prólogo do Ecce Homo na qual Nietzsche afirma sua aversão à

ser considerado um profeta: “Vós me venerais; mas e se um dia vossa veneração

desmoronar? Guardai-vos de que não vos esmague uma estátua.”1946

Camus, afinal, reafirma sua postura diante da sentença acima. Para Camus,

Nietzsche sabe exatamente o quilate do presente de destruição que concebe e semeia

e época. Embora possamos interpretá-la como uma expressa precaução de

Nietzsche, uma recusa prévia de compactuar com seus “descendentes” e de ser o

mestre de quem quer que seja, para Camus, as inúmeras frases como esta

disseminadas por sua obra, atestam somente que o mais fino e exímio dos psicólogos

de sua época – Nietzsche - premedita absolutamente sua intenções: “Ele anunciava o

século XX. Mas, se anunciava, é que estava alertado para a lógica interior do

niilismo e sabia que uma das conseqüências era o império.”1947 Da nossa parte

ajuntemos: e o desmoronamento. A apreciação de Nietzsche elaborada por Camus é

extremamente severa: “Por isso mesmo ele preparava esse império(...)É preciso dizer

sim ao devir(...)é preciso procurar a liberdade; é preciso dizer sim à história. O

rt Camus 9. p, 95

1941 HR, 487. 1942 HR, 487.1943 HR, 487. 1944 HR, 487. 1945 ARNOLD, A-J. Camus lecteur de Nietzsche.Albe1946 EH, 20. 1947 HR, 487.

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nietzschianismo, teoria da vontade de poder individual, estava condenado a

inscrever-se numa vontade de poder total. Ele nada era sem o império do mundo.”1948

Ironicamente, os humanitaristas e igualitaristas, a quem Nietzsche desprezava,

se beneficiaram de sua pedagogia, e, segundo Camus, partiram da mesma constatação

da morte de Deus para concluir em máximas imperialistas idênticas. É o advento do

super-homem que, afinal, se prepararia, semeando esperanças calcinantes: “Mesmo no

que existe de melhor, há algum motivo de repugnância; e o que existe de melhor

ainda é algo que deve ser superado.”1949 “A terra de vossos filhos, devereis amar:

seja esse amor a vossa nobreza – a terra por descobrir em mares distantes!(...)Em

vossos filhos devereis compensar o serdes filhos de vossos pais: o passado inteiro

devereis, assim, redimir!Essa nova tábua eu suspendo sobre vós.”1950

Desta perspectiva, Camus alia Nietzsche e Marx: segundo ele, ambos

lém-do-homem, para além de bem e mal: “...pois cristianismo é

o não havia na terra: com um arco assim tão teso, pode-se agora mirar

substituem, “o além, pelo mais tarde”1951, posto que em Nietzsche, as exigências

trazidas pela assunção do cosmo como ele é, demandam a labuta de outra tarefa, ainda

mais árdua e ingrata que a precedente, que de algum modo sucede ao “arco teso do

cristianismo” que feneceu. O próprio Nietzsche admite nas “premissas” de Além de

Bem e Mal, a utilidade desta tensão de espírito herdada do cristianismo para a

projeção do a

platonismo para o povo – produziu na Europa uma magnífica tensão do espírito,

como até entã

nos alvos mais distantes.”1952 Para Camus, este movimento da filosofia nietzschiana

“culmina no cesarismo biológico ou históriconão retrocede , ”1953. “O não absoluto

vara Stirner a divinizar simultaneamente o crime e o assassinato e o próprio

omem ao mesmo tempo”1954, em Nietzsche, “ o sim absoluto acaba universalizando

assassinato e o próprio homem ao mesmo tempo.”1955

A idealização da vida o do homem seriam, enfim, outras dimensões da traição

de Nietzsche às origens da revolta, movimento que, segundo Camus, é,

le

h

o

indiscutivelmente, criminoso: “A filosofia seculariza o ideal. Mas chegam os tiranos e

1948 HR, 487. 1949 NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra.p. 211. 1950 NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra.p, 210. 1951 HR, 488. 1952 NIETZSCHE, F. Além de Bem e Mal. p,8. 1953 HR, 489. 1954 HR, 489. 1955 HR, 489

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logo secularizam as filosofias que lhes dão esse direito(...)A esse respeito, o nacional-

cialismo é apenas um herdeiro provisório, a decorrência irada e espetacular do

niilismo

12)Rev

so

.”1956

A inculpação à filosofia é grave. Logo, outros acrescerão à regra, e é preciso

escolher1957.

*

olta e Niilismo: a recusa das origens

Camus nos brinda com um apanhado extremamente valioso, uma bússola em

eio a

ont.

m o mar de autores no qual beira naufragar seus leitores, que pode ser

considerado uma espécie síntese do percurso empreendido em O Homem Revoltado

até o momento: “Se a revolta metafísica recusa o sim, limitando-se a negar tudo que

existe, ela se destina a parecer.”1958 Como nas apreciações operadas por Camus de

Epicuro e Lucrécio1959, de Sade, de Baudelaire e de Lautréam

“Se cai na adoração do que existe, renunciando a contestar uma parte da

realidade, obriga-se mais cedo ou mais tarde a agir”1960. Stirner e Nietzsche, em suas

afirmações irrestritas do Único e do übermensch corresponderiam a estes perfis.

1956 HR, 488. 1957 Talvez não seja excessivo relembrar um trecho dos Cadernos já mencionado no capítulo sobre Calígula que sintetiza a crítica camusiana de Nietzsche: “...A ocasião força a escolha. Foi assim que pareceu necessário a Nietzsche atacar com argumentos de força Sócrates e o cristianismo. Mas é

trário que é necessário que nós defendamos hoje Sócrates, ou ao menos o que ele assim ao conrepresenta, visto que a época ameaça de o substituir por valores que são a negação de toda a cultura e que Nietzsche arriscaria obter aqui uma vitória a qual ele não desejaria.”(CAMUS, A. Carnets 1935-1948. Carnets IV. Février 1943.OC.p.984) 1958 HR, 490. 1959 Somente a leitura camusiana permitiria enquadrar Epicuro e Lucrécio, neste perfil: tratar-se-ia neste caso mais especificamente, da negação da morte, correspondente à negação da condição humana, que

us, ao “parecer”. Na leitura de Camus, a epistemologia do cosmo e o desprezo são os argumentos que forjam este “parecer” de positividade. Em sua interpretação de

crécio, Camus privilegia, recordemos, a extrema melancolia presente nesta denegação da

destina-se, segundo Campara a morte Epicuro e Lumorte. 1960 HR, 490.

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“Entre um e outro, Ivan Karamazov representa, o laissez-faire, mas num

sentido doloroso.”1961 Rimbaud e os seus “entre estes dois extremos (...)os

surrealistas iluminam para nós o caminho que vai do parecer ao agir...”1962

O sentido que une estas almas rebeldes neste percurso idiossincrático imposto

por Camus, é seu denominador comum, a revolta como ponte de partida: “Todos,

erguidos contra a condição humana e seu criador, afirmaram a solidão da criatura e

o nada de qualquer moral(...)sob diferentes disfarces, o mesmo rosto devastado, o do

protesto humano.”1963

Neste instante, é extremamente importante ater-se a cada palavra de Camus

visto que desvela aqui toda a peculiaridade de sua hermenêutica do real: para Camus

estes itinerários às profundezas da negação, exprimem, a bem da verdade uma

profunda nostalgia de absoluto contradita: “é o apelo dilacerado à regra, à ordem e à

moral que ressoa nesse universo demente.”1964

Camus, passo a passo, desvela o que podemos considerar seu “pensamento

oculto”1965 isto é, o prisma a que submete todas as suas interpretações, invertendo

assim às exigências filológicas ditadas pelas escolas de filosofia, que preferem

restituir o senso interno dos autores; Camus examina seus “personagens”, malgrado

eles, por intermédio de um horizonte pré-determinado: os submete ao crivo das

origens que concebe para a revolta: “Suas conclusões só foram nefastas ou

liberticidas a partir do momento que rejeitaram o fardo da revolta, em que fugiram

um estudo praticamente clínico de casos relacionados à desmesura e à

traição

da tensão que ela pressupõe, escolhendo o conforto da tirania ou a servidão.”1966

Camus sobrevoa as dimensões material e intelectual da história, para horror

dos materialistas dialéticos de plantão, tecendo seu bordado que as alinhava, no qual a

história intelectual é a linha e a história material o tecido, ambos se fundindo numa

imagem que bem conhecemos: dantesca. Neste emaranhado, Sade e Nietzsche são

personagens do mesmo vulto que o tenaz Ivan Karamazov. Estes personagens se

sucedem n

das origens da revolta: “A insurreição humana, em suas formas elevadas e

trágicas, não é nem pode ser senão um longo protesto contra a morte, uma acusação

o ter um pensamento oculto e julgar tudo por ele, falando, entretanto, como o AL, B . Pensées.L. –Br. )

1961 HR, 490. 1962 HR,490. 1963 HR 508. 1964 HR, 508. 1965 “É precisPovo.”(PASC1966 HR, 508.

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veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.”1967 A linguagem

de Camus é indício desta abordagem clínica da filosofia e da história das idéias: “Em

todos os casos que encontramos, o protesto dirige-se sempre a tudo aquilo, que na

criação, é dissonância, opacidade..”1968

Para Camus, a origem de todas estas expressões da revolta está uma exegese,

ainda que por contraste, à vida, “Sade, e os românticos, Karamazov ou Nietzsche só

entraram no mundo da morte porque quiseram à verdadeira vida”1969, eles se

dilaceram e consigo à justa revolta, quando seu protesto original contra “a pena de

morte g

te da própria finitude que

testo contra o

al”197

com a

Sísifo reiterado no prólogo de O Homem Revoltado: trata-se da exigência de “um

princípio de explicação”, clamor de uma impossível transparência que o revoltado

eneralizada” vai além, negando às origens da revolta que está ancorada, afinal,

no amor do homem, na consciência vigilante e inconformada contra sua condição de

finitude.

A origem esquecida por estes revoltados, segundo Camus, é o clamor de “uma

interminável exigência de unidade”1970, que o cosmo contradiz na opacidade

indiferente que o caracteriza: “A recusa da morte, o desejo de duração e de

transparência são as molas de todas essas loucuras, sublimes ou pueris.”1971

Camus delineia ainda melhor, para sorte de seus leitores, sua concepção das

origens da revolta - a qual nenhum dos personagens citados até agora conseguiu

permanecer até o fim fiel. Não é apenas a melancolia dian

mobiliza o revoltado “perfeito”, “porque muitos desses rebeldes pagaram o preço

necessário para ficar à altura de suas exigências”, mas um “pro

m 2.

Notemos o empreendimento de dignificação da condição humana presente na

obstinação do puro revoltado, “lutar contra a morte equivale a reivindicar um sentido

para a vida.”1973

Esta comiseração insubmissa com a condição humana faz par

“exigência de unidade” presente na pura revolta. Camus, é importante sublinhar,

unifica os elãs de justiça e de clareza, nos reposicionando no horizonte de O Mito de

1967 HR, 508. 1968 HR, 508. 1969 HR,508. 1970 HR,509. 1971 HR,509. 1972 HR 509. 1973 HR,509.

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lança contra sua própria condição: “Revoltante em si não é o sofrimento da criança,

mas o fato de que esse sofrimento não seja justificado”1974

Para Camus, afinal, a revolta implica uma busca do Sentido da existência:

“Sem sabê-lo, ele está em busca de uma moral ou de um sagrado.”1975

Camus, em 1951, se atreve a dizer acerca dos insurretos que, segundo ele, por

se esquecerem disso, “convulsionam”1976 à história: “A revolta é uma ascese, embora

cega.”1977E ainda, abusando de seu estilo aforístico, e para desespero da

intelectualidade revolucionária parisiense bem acomodada e esperançosa nos tépidos

cafés do Quartier latin: “Trata-se de um movimento religioso desiludido.”1978

A desconfiança de Camus a respeito da busca de efetivação revolucionária da

violência incongruente da revolta

a mata(...)Toda vez que ela aceita cegamente àquilo que existe,

revolta se alastra ainda mais, destilando o fel de uma profunda suspeita sob as

supostas “conquistas” recentes das revoluções: “Não é a revolta em si mesma que é

nobre, mas o que ela exige(...) o que ela obtém é ignóbil.”1979

Camus convida, a bem da verdade, à re-educação do olhar à respeito da

revolta. Trata-se de suplantar esta absolvição geral aos meios revolucionários

conferida pela intelectualidade que legitima a

centrada numa esperança de finalidade histórica a quem convém tudo sacrificar.

Segundo Camus, é preciso reavaliar a revolta do ponto de vista de suas origens e não

do ponto de vista de sua eficácia transformadora, é necessário saber qualificar se suas

conseqüências são coerentes: “É preciso saber reconhecer o que ela obtém de

ignóbil.”1980

Neste sentido o “moralismo” de Camus, um tanto extravagante em seu

formato, se revela demasiadamente lúcido e consciencioso em seu apelo à preservação

do homem: “Toda vez que ela (a revolta) deifica a recusa total daquilo que existe, o

não absoluto, el

criando o sim absoluto, ela mata(...)em ambos os casos ela desemboca no assassinato

e perde o direito de ser chamado de revolta.”1981

1974 HR, 509. 1975 HR, 509. 1976 HR, 511. 1977 HR, 509. 1978 HR, 509. 1979 HR, 509. 1980 HR, 509. 1981 HR,509.

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Quando se exprime, não somente na indiferença em relação à vida, mas na

exigência e na legitimação do assassinato, re-alimentando à engrenagem mortal contra

a qual se rebelou, esquecendo-se de suas origens, a revolta se desqualifica, ela chama-

se niilismo. É seu desejo frustrado de universalização da justiça que paradoxalmente

a encaminha em direção à aniquilação, “consumidos pelo o desejo de verdadeira vida,

frustrados por isso, preferem a injustiça generalizada à justiça mutilada.”1982 É uma

“intemperança de absoluto” que, segundo Camus, afinal, se manifesta nas convulsões

históricas permeadas de desejo de aniquilação características dos empreendimentos

revolucionários.

dade. Nesta ambientação secular o

“Matar Deus e erigir uma Igreja é o

O diagnóstico moralista de Camus é peremptório e sem véus nestas páginas

fundamentais de O Homem Revoltado no qual o “tecido” que provê a tragédia

contemporânea é manifesto: “Não são a revolta e a nobreza que iluminam atualmente

o mundo, mas sim o niilismo.”1983

Serão às conseqüências históricas desta revolta que se esqueceu das origens

que O Homem Revoltado procurará seguir nos rastros que sedimentam às revoluções,

embebidas no caldo originário e explosivo da revolta metafísica: a saber;

aposentadoria compulsória de Deus; inocência reiterada; permissão irrestrita ao crime;

elã de desmedida; furor frustrado de uni

revolucionário encarna o esforço de “construir o único reino que se opõe ao reino da

graça, que é o da justiça, para reunir enfim a comunidade humana sob os escombros

da comunidade divina”(...)“Dessa forma, o século XIX, que é o da revolta desemboca

no século XX da justiça e da moral.” 1984

Mas a resposta imperialista revolucionária aos anseios da revolta é incoerente,

segundo Camus, visto que transplanta as aspirações metafísicas de unidade,

transparência e eternidade para os projetos concretos1985, trocando à aspiração pelo

além pelas determinações para mais tarde:

movimento contraditório da revolta.”1986 A revolta ao radicalizar e universalizar seus

ideais em termos de ideal histórico, barganhando o sacrifício do presente por uma

rendição generalizada postulada num horizonte futuro, transforma-se no seu reverso,

1982 HR, 509. 1983 HR, 510. 1984 HR, 510. 1985 HR, 510. 1986 HR, 510.

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“a liberdade absoluta torna-se, afinal, uma prisão de deveres absolutos, uma ascese

coletiva, uma história a ser terminada.”1987

Doravante, O Homem Revoltado perseguirá este fenômeno de secularização da

escatologia cristã, que retoma, pelos prismas de uma razão e de uma revolta

distorcidas, às idéias messiânicas de sacrifício, martírio, redenção e advento,

instâncias às quais a revolta originalmente se contrapunha. Camus irá perscrutar as

encarnações justiceiras da revolta nos movimentos revolucionários belicosos e

liberticidas que, sinal dos tempos, não se contentam mais em operar num plano

metafísico: “Precisamos abordar agora esse esforço convulsivo no sentido do

ítulo O

aticamente seu esforço

agicamente inacabado de evolução às origens – além de outros muitos textos

políticos e filosóficos importantes do autor, como o pouco conhecido A Defesa do

Homem Revoltado. Seria importante tamb m realizar uma análise detida da questão

argelina segundo Camus, o que nos levaria numa viagem pelo tempo, da infância ao

fim prematuro do autor num acidente de automóvel.

Será este objetivo de um trabalho posterior, aonde poderemos também,

finalmente, analisar em detalhe as cartas de ruptura entre Sartre e Camus e o

intertexto polêmico de suas obras de maturidade, que, afinal, continuam a dialogar

não obstante um silêncio formal tenha sido instaurado entre os dois filósofos.

Agora, nos contentaremos, tão som nte, à título de conclusão, em resumir o

itinerário que traçamos do pensamento de Camus e conceder uma visão geral dos

objetivos gerais de nosso trabalho, centrado, a bem da verdade, na re-constituição de

uma linhagem filosófica capaz de fornecer um paradigma alternativo para a

racionalidade e para a ação no terceiro milênio.

império do mundo e da regra universal.”1988

Seria necessário acompanhar, no detalhe, o desfecho deste itinerário.

A bem da verdade, antecipamos, na medida da responsabilidade de uma

análise ainda não satisfatória, as conclusões de O Homem Revoltado no cap

pensamento dos limites: uma arte de viver para um tempo de catástrofe.

Entretanto, infelizmente, conhecemos nossos limites. Precisaremos de um

trabalho aparte na tentativa de compreender o conjunto da obra de maturidade de

Camus que engloba, além da parte final de O Homem Revoltado, Os Justos, A Queda,

o inacabado O Primeiro Homem –que encarna dram

tr

é

e

1987 HR, 510-1. 1988 HR, 511.

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471

***

Conclusão

Pascal e Camus: pensar os limites

A origem do mal, o sentido da dor e do sofrimento, a significação da morte e a

conduta humana diante da negatividade representada pela história - são alguns dos

as com

ade das intenções

ralista é uma característica

também partilhada entre eles, retidão que implica, no limite, a recusa da história tendo

vista a exigência do compromisso de que são portadores.

tem uns entre Pascal e Camus.

Também é comum a iniciativa de romper com os limites do sistema, procurar

na metáfora e na imagem a captura dos dramas concretos da existência, a manutenção

do liame semi-lúcido semi-obscuro no desvelo da complexid

humanas. Ambos exigem também uma ampliação dos limites éticos e expressivos da

filosofia.

Um rigorismo que poderíamos chamar de mo

em

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desvendadas

a figuração da terra como “pequeno

calabouço” 1990

condiç mentos

do conhecim

- contemplativo.

Como compreender que a assunção a uma metafísica da condição humana

exija um severo enfrentamento do presente como nas posturas de Pascal e Camus?

Embora distanciados três séculos no tempo e de seus horizontes metafísicos

radicalmente distintos – é, afinal possível estabelecer um diálogo entre estes dois

autores que guardam vizinhanças ou, no mínimo, questionamentos filosóficos em

comum.

Encontramos em Pascal uma descrição da condição humana matizada pela

experiência negativa da divindade: em todas as esferas da antropologia são

- por detrás do estabelecimento do costume, e da imaginação - a

contingência e o vazio, vestígios do apartamento radical de Deus.

As imagens do exílio estão por toda parte: seja n1989 em relação ao infinito, seja na metáfora da “ilha desconhecida” que

simboliza a arbitrariedade que o autor atribui à política.

Na obra de Pascal se exprime um desconforto com a situação humana diante

da natureza e diante dos outros homens que podemos caracterizar de pessimista.

Leitor crítico de Montaigne, Pascal integra à metafísica cristã “do abandono” da

ão humana os questionamentos radicais do ceticismo acerca dos funda

ento e da política. O resultado do encontro destas duas vertentes da

“suspeita” em relação ao homem é a crítica lato sensu da legitimidade da ordem

estabelecida.

Esta recusa da legitimação do saber e, sobretudo, do poder, foi pouquíssimo

compreendida pela historiografia filosófica.

Alguns foram conduzidos à qualificar a postura de Pascal como contemplativa

dado seu contundente pessimismo em relação à possibilidade da construção de um

poder político legítimo e de uma sociedade justa.

O vetor desta acusação é conhecido: do iluminismo aos pensadores

contemporâneos, a corrente principal da filosofia – seguindo as solicitações e

esperanças de seu tempo - divisam a história como único meio de relação entre o

homem e o cosmo. Por ser crítico em relação à história, descrente das instituições

políticas, o pensamento de Pascal seria, necessariamente, apático 1989 (L.199-Br.72) As citações dos Pensées de Pascal terão este formato entre parêntesis e serão identificados pelas numerações definidas pelas edições Lafuma e Brunschvicg com tradução sempre

s Discours sur la condition des grands in Pascal Œuvres Complètes in Seuil, que possível de Sérgio Milliet. 1990 PASCAL, TroiIntégrale.pp.366-8.

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Entretanto, a melancolia é também uma expressão político-filosófica.

ua obra. As

Novas experiências sobre o vazio e as correspondências com Nöel podem ser

conside

tal e completo sobre a natureza - fundado em

alicerc

droit de vous-même et par votre

nature,

ção do humano a sua dimensão histórica, o

pensam

questão central reside na lógica absurda: à lucidez desencantada da

descob

realização humana –

elebrar as “núpcias” do homem

com o

Se remontarmos a sucessão de combates impingidos por Pascal, da demolição

dos alicerces do saber à crítica aos fundamentos do poder estabelecido, nos caberia

notar uma dimensão engajada inalienável em muitas das ramificações de s

rados combates pelo estabelecimento de uma física rigorosa em contraponto

ao projeto moderno de controle to

es ontológicos e metafísicos para o conhecimento. Aliás, como não

compreender as Provinciais, escritos clandestinamente por um certo Louis de

Montalte, como um engajamento subversivo contra a ordem estabelecida? E os três

Discursos sobre a Condição dos Grandes no qual Pascal revela o acaso enquanto

fundamento da política ? “Vous n’y avez aucun

non plus que lui : et non seulement vous ne vous trouvez fils d’un duc, mais

vous ne trouvez au monde, que par une infinité de hasards. »1991

Assim, como compreender o engajamento metafísico de Pascal?

Não obstante contrapor-se a redu

ento de Pascal se reflete, afinal, criticamente na história como podemos

divisar pelas polêmicas que trava e pelo vigor crítico de seus escritos.

*

Em Camus podemos divisar outro eixo de crítica ao reducionismo do humano

a sua exclusiva dimensão histórica.

Na passagem da questão individual, do suicídio, (O Mito de Sísifo) ao

questionamento coletivo do assassinato político e do terror revolucionário, (O Homem

Revoltado), a

erta do absurdo, o filósofo responderá com a vida; à materialização do mal na

história, responderá negando-se a matar.

Encontraremos as raízes da recusa de submeter-se ao terror exigido pela razão,

no descontentamento com a história, que remonta a uma apreciação da natureza que

vê no elo profundo entre o homem e mundo, uma esperança de

experiência radicalmente não-histórica.

Em Camus o re-encontro com a natureza – c

mundo - seria mais valioso que as sangrentas epopéias civilizatórias da política.

1991 PASCAL, B. Trois Discours sur la condition des grands. p.366.

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De ma

smo histórico e de seu niilismo político uma

postura

rico existe um compromisso inalienável de

Camus

a fragilidade humana conduz em Camus a um severo

afronta

ssim, acreditamos que a investigação desses dois pensadores “descontentes”

com a h

fico de ambos desvela uma herança profunda.

essivos revela também uma opção filosófica profunda: trata-

se da r

neira aparentemente paradoxal, a rejeição da redução do humano à sua

dimensão histórica, entretanto, não conduziria, como se poderia supor, à alienação e

ao descomprometimento com o presente: o editor do jornal clandestino Combat faz,

ao contrário, de sua crítica ao reducioni

de indiscutível inconformismo em relação aos desdobramentos da história da

civilização.

Para além do engajamento histó

para com aquilo que o homem é para além da história: um ser vivo.

Uma metafísica d

mento do presente: nenhuma legitimidade, nenhuma concessão pode ser feita

ao sacrifício dos homens concretos e singulares.

A

istória, seja convergente em muitos aspectos.

Além dos parentescos temáticos destes dois pensadores da condição humana, o

estilo filosó

Se a “desordem”1992 em Pascal pode ser considerada um método de

abordagem da inconstância, da contingência e da carência humana, em Camus, a

explosão dos estilos expr

ecusa agressiva e obstinada do sistema”1993.

O fragmentário, o metafórico, o descontínuo, em suma, o estilo expressivo em

ambos os pensadores remetem ao estabelecimento de uma filosofia crítica na qual

convergem literatura, moral e filosofia.

Em Pascal o mosaico dos Pensées potencializa ao infinito o caráter

interrogante da filosofia.

As múltiplas faces expressivas de Camus – ensaios, peças, romances, artigos –

colaboram na difícil expressão da complexidade dos impasses e paradoxos que

admite.

Em ambos os autores, afinal, a mise-en scène e a reflexão são dois

movimentos indissociáveis que se encontram no fundamento mesmo da elaboração

filosófica.

1992 (L.532-Br.373) 1993 CAMUS, A . Carnets II. Paris, Gallimard, 1964, p.337.

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A questão do engajamento “metafísico” é outro aspecto a ser explorado

conjuntamente. Nos dois autores uma certa compreensão da condição humana alicerça

os combates cotidianos.

Avaliar as posturas de Pascal e Camus diante das solicitações de seus tempos

des de compreensão de que se fazem vítimas as

io “da coerência” e do

debate

s pólos do absurdo! Na verdade, estes temas

não são muito novos, e Camus não nos apresenta como tal. Foram enumerados,

desde o rta e contemplativa

nos permite refinar a compreensão mútua dos autores: a compreensão do

compromisso para Pascal permite notar que a postura anti-histórica se reflete

criticamente na história e em Camus que o engajamento humanista pressupõe um

afastamento e uma crítica tanto ao conceito totalizante de história quanto ao conceito

reducionista de Homem.

Estudar os autores conjuntamente permite, afinal, o desenvolvimento de um

processo de elucidação mútua, pois, de algum modo, na raiz do caráter demasiado

obscuro, e mesmo da incompreensibilidade muitas vezes atribuídas a estes dois

pensadores, está a dificuldade, que de fato se apresenta, em conciliar a exigência de

lucidez de suas obras – e até mesmo seu caráter combativo - com o abandono,

solicitado por elas, do horizonte da história como único plano da existência.

Assim, não é à toa que Camus, assim como Pascal, entenda-se exilado,

estrangeiro: enquanto Pascal recusa-se a endeusar a razão e a estabelecer alguma

espécie de “geometria moral” ou “moral provisória”, indo de encontro às expectativas

do racionalismo do século XVII, Camus, por sua vez, renega, em meio às expectativas

reformistas dos movimentos revolucionários do século XX, o sistematismo político e

a ação histórica como únicos veículos da realização humana.

Exemplar das dificulda

“condutas interrogativas” de Pascal e Camus – taxadas de incongruentes (o que

serviria de álibi para o decreto de suas expulsões do domín

filosófico) é o comentário de Sartre sobre as origens do pensamento de seu

amigo pied noir: “A morte, o pluralismo irredutível da verdade e dos seres, a

ininteligibilidade do real, o acaso, eis o

século XVII, por uma espécie de razão seca, cu , que é

tipicamente francesa: constituíram lugares-comuns no pessimismo clássico. Não é

Pascal que insiste na <<infelicidade natural da nossa condição débil e mortal e tão

miserável que nada nos pode consolar quando pensamos nela de perto>>? Não é ele

que põe a razão no seu lugar? E não aprovaria sem reserva essa frase de

Camus:<<O mundo não é (inteiramente)racional nem tão irracional>>? Não nos

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demons

ito de Sísifo, pelo assunto dos seus ensaios, Camus coloca-se na

zsche...”1994

denúncia das inoperâncias da razão para Pascal não possuiria um

O compromisso com a vida singular diante da fragilidade e contingência

human

s desdobramentos do mundo

.

T

tra que o <<costume>> e a <<diversão>> ocultam ao homem <<o seu

nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua impotência, o seu vazio>>?Pelo

estilo gelado do M

grande tradição desses moralistas franceses a que Andler chama com razão os

precursores de Niet

Pascal e Camus são alvos habituais, não apenas da parte de Sartre, das

acusações de apatia, conformismo, “paradoxo” e incoerência.

Contudo a

significado, talvez, análogo ao declínio das esperanças em relação ao idealismo

político totalitário presente em Camus?

A recusa da redução do homem a sua exclusiva dimensão histórica?

A recusa da legitimação da injustiça estabelecida?

as sobrepondo o engajamento com um sistema político particular?

Estas não configurariam, genuinamente, posturas filosóficas - e do mais alto

interesse e coerência se apreciamos os mais recente

contemporâneo?

Pascal e Camus, seriam, assim, do nosso ponto de vista, filósofos ainda

incompreendidos

alvez por que tenham sido porta-vozes de desconcertantes desilusões: Eles

ousaram pensar os limites dos empreendimentos humanos em épocas caracterizadas

pela desmedida.

Dar voz a estes pensadores da desilusão seria, afinal, uma odisséia filosófica

relevante:principalmente se guardamos no horizonte a esperança de poder contribuir

para uma reflexão minimamente conexa com a realidade humana do terceiro milênio,

encarando, de frente, os impasses e as frustrações da racionalidade e da ação política.

*

Procuraremos nos centrar, em ambos os autores, na questão da recusa da

legitimação da ordem política procurando em seguida mencionar o inconformismo

com a redução do humano a sua dimensão histórica.

1994SARTRE, J-P. Situações.I (Trad. Rui Gonçalves)Publicações Europa-América.pp.88,89.

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Vejamos, primeiramente, o desvelo da força como tirana do mundo e o

desmascaramento da presunção de prioridade dos poderosos no governo dos homens

em Pascal.

Estes dois temas – realmente caros aos nossos tempos bushianos -

convergem para o solapamento dos alicerces profundos da ordem política. Nos Três

Discursos Sobre a Condição dos Grandes e também nos Pensamentos podemos, sem

dificuldade, detectar estes dois vetores críticos inflamados pelo combustível da ironia.

No primeiro o acaso é desvelado fundador da ordem social. Os Três

Discursos constituem uma palestra educativa conferida em Port-Royal para o jovem

Duque de Luynes; contam a fábula de um homem ordinário que é empossado como

Rei numa ilha desconhecida: “Tanto quanto ele, em sua pretensa realeza, não tendes

direito algum por vós próprio ou por vosso nascimento: e foi uma infinidade de

acasos que não só vos fez um filho de um duque, como até mesmo vir a este mundo.

Vosso

de suas origens, mas o solo mesmo do estabelecimento

político é posto sob suspeita. As leis, alicerces do Estado - são consideradas

ue puderam ter boas razões, mas que

nenhuma guarda qualquer direito natural que teríeis sobre tais coisas (...) Assim todo

o título pelos quais vós possuís vossos bens, não é um rótulo da natureza, mas de um

estabelecimento humano.”1996

ndes desmontam os alicerces

ua vez – é a tensão das verdades contrárias

svelada através das inúmeras situações, dos croquis

nascimento dependeu de um casamento, ou mais, de todos os casamentos

daqueles de quem descendeis. E de que eles dependeram? De uma visita feita

ocasionalmente, de um discurso vão, de mil acontecimentos imprevistos. Possuímos,

dizeis, as riquezas legadas por nossos antepassados; não foi, todavia, por mil acasos

que vossos ancestrais as conseguiram e as conservaram?”1995

Não são apenas as figuras nobres que pessoalmente são descritas sem o

“verniz da divindade”, sem prerrogativas naturais ou sobrenaturais, banalizadas pelas

circunstâncias fortuitas

puramente contingentes e atribuídas ao capricho e a imaginação dos homens:

“Imaginais também que seja por alguma lei natural que tais bens reverteram dos

antepassados para vosso usufruto? Isto não é verdadeiro. Esta ordem não é fundada

senão sobre a vontade dos legisladores q

Se os Três Discursos sobre a condição dos Gra

do direito natural, nos Pensamentos - por s

da organização política que é de 1995 PASCAL, B. Trois Discours sur la condition des grands.p.366 1996 idem,366.

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da vida

ivas singulares, sempre em conflito e disputa perpétuas, num movimento

incessa

um homem vestido de brocado e acompanhado de sete

ou oito

pública, que desmascaram o convencionalismo, a arbitrariedade e, no limite, a

profunda absurdidade da ordem estabelecida: o advogado bem pago1997, o juiz

assediado pelas moscas1998, o amigo dos reis1999, a caça ao javali2000, as túnicas dos

juízes pedantes2001, a moda2002 e a maquiagem2003, são fragmentos da microfisica do

poder no século XVII.

Nestes croquis da vida em sociedade o jogo do poder é exposto numa radical

multipolaridade, levando em contas seus diversos protagonistas em suas respectivas

perspect

nte, em torvelinho, característico do elã do desejo que segundo Pascal é o

impulso fundamental da condição humana.

Interessante notar que nestas situações/reflexões políticas2004, a ótica e as

opiniões do povo são também postas em evidencia, revelando ao leitor a perspectiva

que lhe é menos conhecida, ou seja, a do homem simples tiranizado pelas injustiças

cotidianas: (L.94-Br.313) “Opiniões saudáveis do povo. O pior dos males são as

guerras civis. Elas são certas se se quer compensar o mérito.”(L.89-Br.315)“Essa é

boa: não querem que eu honre

lacaios! Como! Se eu o não saudasse mandava bater-me. Esse hábito é uma

força.”

Em cada fragmento de reflexão político-antropológica é explorado a

arbitrariedade e a injustiça do poder, e desmascarado o aparato meramente cênico que

recobre a ditadura da força: (L.95-Br.316) “Ser elegante não é muito vão: pois é

mostrar que um grande número de pessoas trabalhas para si: é mostrar, pelos

cabelos, que se têm um criado grave, um perfumista(..)Ora não é simples aparato,

nem simples arnês, ter vários braços. Quanto mais braços se tem, mais forte se é. Ser

elegante é mostrar a própria força.”(L.61-Br.309) “Justiça. Assim como a moda faz a

graça, faz também a justiça.”

A atmosfera que circunda os fragmentos políticos é a de denúncia da injustiça

insuportável de que a Justiça dos homens é a portadora presunçosa.

1997 (L. Papiers classés/Section I, Vanité/II), Br.82) 1998 (L.41999 (L.6

2002 (L.61-Br.309) 2003 (L.95-Br.316)

8-Br.366) 7-Br.177)

2000 (L. Papiers classés/Section I, Divertissement VII), Br.139) 2001 (L. Papiers classés/Section I, Vanité/II), Br.82)

2004 Estas duas expressões - a misè-en-scéne e a reflexão - são indissociáveis em Pascal e Camus.

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Para deter o espírito de seriedade e o manto de virtude que mascara o discurso

dos donos do poder, Pascal apela à ironia como último recurso da reserva de

consciência na iniciativa de assolar aos pretensos fundamentos racionais da

arbitrar

o teve seu lugar entre as ações virtuosas. Pode haver algo mais

engraç ra do

outro l

? Eu

não es

o seu resíduo verdadeiro, isto é, o

caráter

guido.

a força é contradita, porque sempre existem pessoas más. A

força s

todos os seus

perfis - q

justa.

iedade das leis: (L.60-Br.294)”O furto, o incesto, o assassínio de crianças e

dos pais, tud

ado do que o fato de um homem ter o direito de me matar porque mo

ado da água e porque o seu príncipe tem alguma desavença com o meu,

embora eu não tenha nenhuma desavença com ele próprio?(...)Divertida justiça essa

que um rio limita.”(L.51-Br.293) “Por que me matais com vantagens para vós

tou armado –O quê, não estais do outro lado da água?Meu amigo, se

estivésseis do lado de cá, eu seria um assassino, e seria injusto matar-vos assim. Mas

, visto que estais do outro lado, sou um bravo e isto é justo.“

Enquanto as leis guardam em si algo de ridiculamente abominável - pelo

diagnóstico de Pascal, também as iniciativas gregárias da ordenação política são

destinadas a ocultarem com um conveniente cinism

irretorquível da força.

(L.103-Br.298)“+Justiça, força.

É justo que o que é justo seja seguido; é necessário que o que é o mais forte

seja se

A justiça sem a força é impotente; a força sem a justificação é tirânica.

A justiça sem

em a justiça é acusada. É preciso, pois, colocar juntas a justiça e a força, e,

para isso,fazer com aquilo que é justo seja forte ou que o que é forte seja justo.”

Se, na primeira metade do fragmento podemos notar uma análise em separado

das noções – justiça e força - e vislumbrar uma possibilidade de conciliação entre as

duas magnitudes, a leitura da conclusão do fragmento nos desvela que não há

reconciliação possível entre ambas. A justiça é uma nomenclatura vazia desprovida de

significado efetivo. É o poder do constrangimento físico – a força em

ue se oculta sob o véus da lei e da ordem.

(L.103-Br.298) “(...)A justiça está sujeita à discussão. A força é bem

reconhecível e sem discussão. Assim, não se pôde dar força à justiça, porque a força

contradisse a justiça e disse que ela era injusta, e disse que era ela,a força, que era

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E assim não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o

é forte fosse justo.”

P

- determinações:(L.89-Br.315) “Esse hábito é uma

força(...)

sol. Eis o começo e a imagem da usurpação de toda a terra.”

agredir e subverter os Estados consiste

em aba

a presente no conjunto dos textos que herdamos de

Pascal.

ara Pascal, oculto sob a carapaça cênica dos juízes do mundo, encontra-se

apenas o poder tirânico da força2005, que não apenas governa o mundo em seus

aspectos materiais, mas também inscreve nos hábitos e nas mentalidades dos povos

seus cabrestos e suas sub

não acontece o mesmo com um cavalo arriado frente ao outro?” (L.64-

Br.295) “Meu, teu. Este cachorro é meu, dizem estas pobres crianças. Este é o meu

lugar ao

Finalmente, a ordem estabelecida carece de legitimidade profunda para

Pascal: alicerçado no acaso e na brutalidade, automatizado pelo hábito e sedimentado

pela imaginação, o poder político é não somente infame, ele é ilegítimo, visto que é

usurpado do povo: “Vós sois propriamente um rei de concupiscência. Vosso reino é

pouco extenso; mas nisso vós sois iguais aos maiores reis do mundo; eles são como

vós, reis de concupiscência.” 2006

O procedimento crítico de Pascal certamente inspirará posteriormente a

genealogia da moral de Nietzsche, “a arte de

lar os costumes estabelecidos, sondando-os até em sua fonte, para apontar a

sua carência de justiça.”2007

Existe afinal uma recusa radical de compactuar com o poder e uma profunda

indignação com a ordem polític

Outra característica fundamental é a lucidez modesta do pensamento político

de Pascal. A política não pode resgatar o homem de sua condição histórico-metafísica

miserável, mas necessita imperativamente limitar a loucura dos poderosos: (Br.331-

L.533) “Só imaginamos Platão e Aristóteles com grandes túnicas de pedantes(…)Se

escreveram sobre política, foi para por em ordem um hospício; e, se fizeram menção

de falar dela como de uma grande coisa, é que sabiam que os loucos a quem falavam

julgavam ser reis e imperadores; entravam nos seus princípios para moderar a

loucura deles ao menor dos males possível.”

2005 (L.59-Br.296)”Quando a questão é julgar se se deve fazer guerra e matar tantos espanhóis à morte, um só homem é juiz disso, e além do mais interessado...” 2006 PASCAL, B. Trois Discours sur la condition des Grands.p.368. 2007 (L.60-Br.294)

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A política se limita a moderar um hospício, uma mera gestão de abismos

recrudescentes. Limitar os danos da loucura do exercício do poder é seu único

objetivo possível: modérer leur folie au moins mal qu’ils se peut (moderar sua loucura

ao menor dos males possível).

E para Pascal “o pior dos males” é o sacrifício inútil de vidas, neste lado ou no

outro lado do rio. No “asfalto” ou na “favela”. É a morte a suprema calamidade – o

afrontamento entre irmãos - e o embate inútil entre forças desproporcionais; enfim, o

desperdício da vida singular:(L94-Br.313) “Opiniões sadias do povo- O maior dos

males são as guerras civis. O mal que se há de temer de um tolo, que sucede por

direito de nascimento, não é tão grande nem tão certo.” Visto que o interesse

suprem

azão não pode fazer melhor, pois a guerra civil é o maior dos males.”

ão desencantada da condição

humana de Pascal conduz ao limiar o dilema do sentido da existência: para o homem

o desta política desencantada é apenas preservar vidas concretas, podemos

compreender porque a discussão acerca do regime político mais virtuoso está distante

das reflexões políticas: “(L.977-Br320)2008(...)É o filho do mais velho do rei. Isso é

claro, a r

Que a moda e a elegância tomem o lugar da força! Elas são protocolos

valiosos no intuito de conter o desperdício de vidas singulares.

Todo o mecanismo sofisticado de “legitimação” pela “imaginação” supre esta

carência absoluta de sentido que nos faria dilacerar a nós mesmos se revelada a

absurdidade fundamental que nivela a condição humana: “não é preciso que ele(o

povo) sinta a verdade da usurpação.”2009 A imaginação é um dos mecanismos que

visa a preservação da vida humana que permanece, mesmo no ambiente desencantado

do pessimismo político de Pascal, o valor norteador fundamental2010.

Contudo é preciso notar que a acuidade da descriç

2008 “As coisas mais desarrazoadas do mundo tornam-se as mais razoáveis por causa do desregramento dos homens. Que há de mais de menos razoável do que escolher para governar um Estado o primeiro filho de uma rainha? Não se escolhe, para governar um barco, aquele, entre os viajantes, quem é de casa melhor(meilleur maison): seria uma lei ridícula e injusta.. Mas, por que são e serão sempre escolhidos assim, ela se torna razoável e justa; pois quem se escolherá?O mais virtuoso e o mais hábil?Eis-nos embaraçados: cada um pretende ser o mais virtuoso e o mais hábil. Liguemos, pois, essa qualidade a algo incontestavel. É o filho...”(L.977-Br320) Lembremos que a revolta moraliste se exprime nesta mordacidade e ironia lúcidas: a ironia é a expressão da reserva de consciência – expressão da liberdade pascaliana em relação às engrenagens de seu tempo. 2009 (L.60-Br.294) 2010 Considero os mecanismos de reconhecimento do outro parte deste esforço de “preservação” da vida. Assim, todos os fragmentos relacionados ao olhar, e também os fragmentos relacionados ao renversement continuel du por au contre, estão, a meu ver, envolvidos na elaboração de um método de reconhecimento do outro em sua singularidade perspectiva. É o próprio conceio de verdade que é implodido pelo esforço pascaliano de pensar a política como o embate, não somente entre óticas contrárias, mas entre verdades contrárias.

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pascali

bsoluto, que poderíamos chamar de metafísico,

com o

da razão: (L.458-Br.588)

“Contrariedades. Sabedoria infinita e loucura da religião.” A grandeza humana está,

seguram e, n recon ecime to dos limite

ano a absurdidade histórica é o trampolim para o salto na esperança, como diria

Camus.

Em Pascal, delineia-se uma recusa de reduzir o homem a sua exclusiva

dimensão histórica. O engajamento a

cristianismo é, sobretudo, uma atitude que pretende ir além do absurdo da

história. (L.159-Br.204)”Se se deve dar oito dias de vida, deve-se dar cem anos.” Este

engajamento pretende ir além, até mesmo, dos limites

ent o h n s do homem, na ciência de suas misérias,

mas também no reconhecimento de que o homem está além dos percalços históricos

na elev

tafísico de Pascal possui

um rig

às

escolhas da modernidade. Não somente às ideologias cabe uma re-avaliação completa

do significado da existência humana, é a própria razão que encontra em Hiroshima um

ação inexplicável de sua vocação para o infinito.

Compreendamos, entretanto, que o engajamento me

or e uma retidão que exige severos enfrentamentos históricos: a genealogia da

impostura, da usurpação e do vazio fundamental na origem ordem política e legal é

uma das facetas deste engajamento.

Este engajamento pascaliano, de certo, é metafísico: mas é também, como

pudemos notar, filosófico, político-moral e literário2011, compreendendo também um

paradigma alternativo para a racionalidade científica.2012

*

“O século XVII foi o século das matemáticas, o XVIII, dos físicos, o século

XIX, da biologia. Nosso século XX é o século do medo.”2013

Diante do espetáculo sanguinário elaborado pelas ideologias e pelas técnicas,

Camus exprime em 1946 um pessimismo tão amplo quanto possível em relação

novo paradigma: “seus últimos progressos teóricos conduziram-na a negar-se a si

2011 Como evidencia a dinâmica dos fragmentos que vimos acima trata-se de um estilo filosófico de

es científicas e filosóficas recomendamos a sofia Política: Acaso e

pensamento de Pascal. Está no prelo pela Humanitas outra publicação de mais fôlego A scal.

contraponto à filosofia de sistema. (L.532-Br.373)“Escreverei meus pensamentos sem ordem, não talvez em uma confusão sem objetivo: esta é a verdadeira ordem, que marcará sempre meu fim pela própria desordem.” 2012 Sobre a incorporação da indeterminação nas reflexõleitura de outro artigo de minha autoria publicado nos Cadernos de Ética e Filoo jogo no dimensão ética da incerteza: ciência e poder em Pa2013CAMUS, A. Le siècle de la peur. Combat in Camus à Combat, p.609.

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própria

ncia: “sufocamos entre pessoas que

crêem

rozmente

por Ca

dos lim

s que Camus descobre a exigência desta

« natur

naturez

as do

progre

visto que seus aperfeiçoamentos práticos ameaçam a terra inteira de

destruição.”2014

“Presunção, regressão do progresso.”2015 Citando Heráclito Camus alude a

este retorno paradoxal à ordem natural incitado pelo desenvolvimento das técnicas.

Como o Rei Midas, o século XX materializou os impulsos mais velados e obscuros da

civilização técnica na medida em que encarnou a vontade de aniquilação total do

outro, e persiste definhando na própria prepotê

ter absolutamente razão, seja em suas máquinas, seja em suas idéias.”2016

A presunção do saber, arqui-rival de Pascal, é também combatida fe

mus. A presunção da verdade é a origem do crime de estado - crime de lógica -

que endossa e legaliza o extermínio do outro em nome de uma razão abstrata, “que se

reconheça o direito deste ou daquele afirmar sua verdade, mas que se recusem de

impô-la pelo assassinato, seja individual, seja coletivo.”2017 Uma dupla recusa é

erigida por Camus como imperativo moral: “um mundo onde o assassinato é legítimo

e onde a vida humana é considerada fútil.”2018

Contra a desmedida das técnicas e das ideologias Camus contrapõe uma ética

ites, fundada no reconhecimento do valor da vida humana concreta.

É da experiência das revoltas histórica

eza humana comum” cujo princípio e « primeiro valor » é o limite constitutivo

da condição humana: “Se o limite desvelado pela revolta transfigura tudo, se todo

pensamento, toda ação que ultrapassa um certo ponto nega a si própria, há, então,

uma medida de todas as coisas e do homem(...)Ao mesmo tempo em que sugere uma

a comum dos homens, a revolta revela a medida e o limite que são o princípio

desta natureza.”2019

Camus se insurge contra esta destruição cotidiana do homem atual legitimada

por um futuro pré-calculado pelas filosofias.

O valor supremo que contradiz a lógica da destruição das filosofi

sso é o valor da vida humana singular ela mesma – (em sua fragilidade

at in Camus à Combat, p.611.

P. 697.

2014 Idem. 2015 CAMUS, A. L´Éxil d´Helène In Essais. p.854. 2016 CAMUS, A. Le siècle de la peur. Comb2017 Idem.p.612. 2018 Idem.p.612. 2019 CAMUS, A. L´Homme Révolté. In Essais.

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primordial) a que Camus chama “natureza humana.” A vida presente e concreta é o

valor fundamental que orienta o pensamento da revolta: “pensamento dos limites”2020.

Será o respeito a esta “natureza humana” “limitada” que nada mais é do que o

respeito pelo que há de singular e vivo no homem, o supremo valor moral que deve

nortear

omem

Revolta

ensão quixotesca do combate político: “ela deve reparar na

criação

intrínseco -

caminh

e legitimar a vontade de transformação histórica. No respeito à “natureza

humana” isto é, à contingência humana, reside a “transcendentalidade horizontal”2021

da moral de Camus. Ela se prende aquilo que o homem é para além da história.

A justiça e a política devem se pautar pelo pensamento dos limites - isto é,

pela consideração da relatividade, contingência e fragilidade radicais de cada homem

concreto - se pretende permanecer fiel a sua luta, antes de tudo cósmica, contra a

injustiça: “o homem não é inteiramente culpado, ele não começou a história; nem

completamente inocente visto que a continua(...)a revolta nos encaminha numa

culpabilidade calculada.2022

A moral de contornos exclusivamente humanos, sem o recurso ao sagrado e

crítica em relação ao formalismo transcendental2023 que Camus proporá em O H

do orienta a uma ação histórica consciente de que a transformação ela mesma

tem seu limite - ela não pode eliminar completamente a injustiça da condição humana.

O combate do homem revoltado é mais oblíquo do que o de revolucionário pois

compreende esta dim

tudo o que pode ser...”2024 estando, não obstante, consciente de que a Justiça

nunca será estabelecida de maneira definitiva: o absurdo será sempre o verniz da

realidade. O revoltado não partilha o salto na esperança, no advento da sociedade

perfeita do futuro, na qual o revolucionário estará finalmente cristalizado: “ademais,

as crianças morrerão sempre injustamente, mesmo na sociedade perfeita.”2025

A conduta interrogante de Camus - política do inacabamento

a, pois, em direção a uma justificação ética da política e da justiça pois "a

2020 CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.697.

ranscendência que poderíamos chamar horizontal em

riticado por Camus possui duas roupagens: o sacrifício do ude ou de Verdade. E o extermínio do homem

edade futura. Em Camus o fundamento moral é a natureza

2021 “Trata-se, a bem da verdade, de uma toposição a transcendência vertical que é a de Deus ou das essências platônicas.”CAMUS, A. Remarques sur la Révolte. In Essais. p, 1683. 2022 CAMUS, A. L´Homme Révolté. p. 700. 2023 O fundamento transcendental da moral chomem concreto pelo conceito abstrato e absoluto de virtpresente em virtude do nascimento da socihumana, isto é a vida humana contingente. 2024 CAMUS, A. CAMUS, A. L´Homme Révolté, p.706. 2025 CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.706.

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reivindicação de justiça leva à injustiça senão está fundamentada numa justificação

ética da justiça.”2026

“Ela é “uma moral dos limites.”2027 nos termos de Marcel Mélançon: ela

pretende limitar, do interior da revolta, os meios da luta contra a injustiça: “A análise

da rev te para a

revolta

os, de outro, a redução do humano a

umano ao seu horizonte histórico?

nto de vista da

filosofi

mostra

uma v

o. Não há sentido em lutar por um

homem

não um vazio

no qua

olta conduziu-me unicamente a descobrir a afirmação de um limi

ela mesma, e, no interior do movimento de rebelião, uma passagem para além

da qual a revolta nega-se a si mesma. Esta análise(…) conclui que a revolta, longe de

ser uma negação sem limites, se define pela afirmação deste limite.”2028

No processo gradual de desumanização do homem imposto pela modernidade,

de um lado, está a desmedida que precipita o ca

sua dimensão produtiva e transformadora: “Colocando à história no trono de Deus,

caminhamos para teocracia. Não há mais consciência senão nas ruas, eis o decreto.

Deliberadamente, o mundo foi amputado do que faz sua permanência: a natureza, o

mar, a colina, a meditação das tardes...”2029

Como restringir a dimensão do h

A significação da vida para Camus só poderia ser restituída num plano

cósmico mais abrangente no qual a grandeza humana pode ser redescoberta. Neste

sentido a natureza em Camus desempenha papel fundamental e do po

a atual, a senda preparada por ele se mostra um verdadeiro horizonte possível

para o pensamento preocupado com seu tempo.

Em Camus, a vontade de preservação do homem estende-se à natureza: a

sutileza maior deste elã de salvaguarda da singularidade humana é que ele se

erdadeira ecologia humana visto que o cenário da vida revela-se tão

preponderante quanto à vida humana nele inscrit

privado de seus entardeceres.

É preciso compreender, afinal, o quanto de inconformismo e de radical

humanismo poder-se-ia divisar neste enlace homem/natureza, compreendidos como

um binômio, muitas vezes presente na atmosfera das obras de Camus.

Enquanto a natureza pura, por ex., para Sartre, não significa se

l se projetam às significações humanas e, principalmente, os conflitos

2026 CAMUS, A. L´Homme Révolté. p. 614. 2027 MELANÇON, M. Albert Camus – analyse de sa pensée. p.148. 2028 CAMUS, A. L Défense de l´Homme Révolté. p, 1709. 2029 CAMUS, A., L’Exil d’Helène in l’Été. Essais. p. 854.

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humanos, para Camus, a natureza é a imagem primitiva do cosmo e da terra – último

elo do homem com sua grandeza e com aquilo que ele é para além da história.

A natureza é o oráculo dos limites do homem: espelho no qual se reflete a

finitud

anto da terra.”2030 Neste

mesmo sentido poderíamos notar nestes “banhos de mar” e nestes “entardeceres” um

plano de “realização

dão uma dimensão da

e e a fragilidade de sua condição cósmica.

O grande desafio e valor da expressão artística para Camus seria estabelecer

este re-encontro com uma presença original no mundo, “o c

existencial” “tácito”, no limite do incognoscível, completamente

estranho ao universo materialista e histórico das filosofias dogmáticas.

O afastamento, a meditação dos entardeceres, o silêncio e os mergulhos no

mar dos personagens de Camus, seriam indicativos deste nível pré-linguístico de

relacionamento com o mundo: a verdadeira pretensão filosófica neste nível consistiria

em livrar-se do universo da conceitualização e celebrar as “núpcias” do homem com o

mundo...o que resta da grandeza humana.

Nesta celebração da vida - sublime na consciência de sua fragilidade -

encontramos o senso mais profundo da dignidade e da grandeza do homem segundo

Camus, para além das misérias da história, ou apesar delas.

As referências naturais da obra de Camus

interdependência do binômio homem-natureza: o mar, o céu aberto, o sol escaldante,

o deserto. O sol desmancha as ilusões, a excessiva claridade retira todo o véu

civilizatório reduzindo ao nada todas as pretensões de controle do homem sobre a

realidade. O assassinato cometido por Meursault em O Estrangeiro é exemplar da

extrema complexidade deste entrecruzamento entre o homem e seu décor: a linha que

interliga o homem ao seu ambiente, ao seu meio, é tênue, e um mero reflexo pode

deslindar. Para Camus, a natureza arbitra.

A aceitação deste arbítrio, vivido como assunção da contingência, entretanto,

nem sempre é símbolo de compreensão. Os devaneios de Meursault e sua vivência do

absurdo na prisão não guardam a pretensão heurística do encontro do absurdo de

Roquentin de A Náusea, expresso enquanto descoberta.

Aquém da compreensão, a expressão da vivência dos limites climáticos - a

extrema luz e o extremo calor – exprimem na obra de Camus que a situação limite em

2030 CAMUS, A. Noces à Tipasa in Noces… Œuvres Complètes, p.110.

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que vive o homem, enfim, não se deve unicamente às limitações impostas pelos

outros homens, mas estaria enraizada numa condição de insignificância, fragilidade e

contingência que é, sobretudo, cósmica. Uma tal abordagem metafísica da natureza e

da hist

não,

estaríamos obrigados a escolher, e “condenados a ser livres”, o romance de Camus

dem

er o enfrentamento cotidiano, representado pelos

voluntários de A peste senão como um engajamento fundamentado na metafísica da

frag

do das vítimas, de todo modo, para limitar os danos.”2031

Em

ca de Sísifo2032. Este difícil acordo entre a revolta contra a

finitud

ória seria impensável, por exemplo, para Sartre, para quem a única relação do

homem com a natureza se dá através dos impedimentos que ela suscita e do trabalho,

sendo a ordem natural um mero cenário dos combates cotidianos.

Neste sentido a novela O muro(1939) e o romance A peste(1947),

caminhariam em direções diametralmente opostas: enquanto a novela sartreana

enfatizaria, numa radical inversão da tragédia grega, que a liberdade seria o

verdadeiro motor escondido detrás da “fatalidade”, e, que quer queiramos quer

arcaria em oposição o insignificante potencial humano frente ao caráter

demolidor das determinações da terra. O calor, a doença, a morte, toda a magnitude

brutal das forças naturais – seriam, para Camus, instâncias para além do domínio de

ação meramente humano.

Mas como compreend

ilidade da natureza humana? Descrente, cercado de inutilidade, mas ainda sim, um

compromisso com a solidariedade e com o imperativo da vida? “aprendi a modéstia.

Digo somente que existem sobre esta terra flagelos(fléaux) e vítimas e que é

necessário, tanto quanto possível, recusar de compactuar com o flagelo(...) Por isto

decidi me colocar do la

meio à miséria de A peste nos encontramos seguramente no mesmo registro

do reencontro do sentido – o sentido da incompreensibilidade da condição humana –

que nutre a felicidade trági

e e a assunção à vida tal como ela se apresenta significa a circunscrição da ação

humana dentro dos limites impostos pela sua condição, ou seja, em combate perpétuo

contra a própria precariedade.

*

2031 CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II, p. 210. 2032 “Este universo sem dono adiante não lhe parece nem estéril, nem fútil. Cada um dos grãos desta pedra, cada fragmento mineral desta montanha repleta de noite, formam por si sós um mundo. A luta para chegar aos cumes basta para preencher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo

.) feliz.”(CAMUS, Le Mythe de Sisyphe p.304

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Fi s,

pela no

es e o acaso como

fundamentos da política.

Cam s prolonga a crítica antropocêntrica em contraponto às filosofias da

história imb a

pudesse fu

e do risco. Aquele não pode tudo saber, não pode tudo matar.” 2033

Em

cia calculada, a conduta interrogativa comum aos dois

autores, exi

ia de pensar os

limites con

a ausência de

humanidad

nalmente, pela lucidez de suas análises, pela amplitude de suas preocupaçõe

breza de seus questionamentos, Pascal e Camus se elevam ao que há de mais

digno no pensamento filosófico pois mergulham nos embates cotidianos da condição

humana contra a injustiça, a fugacidade e a morte - tomando o raro partido da

indignação filosófica.

Pascal detecta o germe da periculosidade do projeto moderno de controle total

do homem e da natureza desmascarando também as paixõ

u

uídas de verdades absolutas e fins futuros pré-determinados: “Se a revolt

ndar uma filosofia ....seria uma filosofia dos limites, da ignorância

calculada

ambos a amplitude crítica exige uma expressão filosófica de vanguarda.

De certo que a ignorân

ge um distanciamento do universo da filosofia, principalmente do domínio

da filosofia dogmática, de cátedra. Mas a amplitude crítica das investigações de

Pascal e de Camus desmente suas respectivas despretensões: “Zombar da filosofia é,

em verdade, filosofar.2034 Em Camus, assim como em Pascal, a exigênc

duz além dos simples limites da filosofia de sistema.

*****

Nós, Brasileiros, temos muito a aprender com o pensamento dos limites.

Nós, que naufragamos em beleza e em paixão, exilamos, há muito, a idéia

de limite.

A bem da vardade, a desmedida sempre foi nossa proporção: os cofres dos

conquistadores bem o sabem.

No Brasil de hoje, a desmedida do delito não é proporcional senão a

desmedida do crime de Estado em sua ação cotidiana contra os criminosos. A

ausência de piedade do deliqüente ordinário não é proporcional senão

e da máquina do poder, muito mais dantesca que kafkiana.

2033 CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.693. 2034 PASCAL, B. Pensées (L. 513 –Br.4.)

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Assim, a crueldade da injustiça dos meios que o Estado dispõe para freiar

o avanço da criminalidade - a crueldade do sistema carcerário - acabam por endossar e

nutrir o leitmotiv da desmedida da violência, que estabelece entre nós um retorno à

ordem natural que é uma espiral da indiferença absolutamente abominável : « Você

não reparou que nossa sociedade está organizada por este gênero de liquidação ?

Você o

leto imaculado? » 2035

As lembranças que Camus guardou do Brasil, em sua passagem em julho

de 1949, não foram muito favoráveis. Em s descrições feitas em seu Journal

de uma aura de inquietude…

De todo modo, seu presságio sinistro é uma analogia conveniente à

voracidade em vigor na atual sociedade brasileira.

Hoje, somente o aprofundamento do pensamento dos limites

uviu falar, naturalmente, destes minúsculos peixes brasileiros que atacam aos

milhares o nadador imprudente, limpando-o, em alguns instantes, com pequenas

mordidas rápidas, deixando só um esque

sombria

voyage, destila-se uma náusea persistente,

- ou seja, a

conscientização de nossa inscrição coletiva na existência, da fragilidade comum da

condição humana, pode nos salvar da engrenagem da morte acionada pelas injustiças

sociais. Este raciocínio solar de Camus é válido para o homem e para a natureza que

estão, neste momento atual, entre nós, eclipsados pela noite da indiferença.

É neste sentido que a concepção rigorista da responsabilidade do intelectual de

Ca us mostra sua lucidez, vigor e nobreza: é preciso estar ciente de que “cada

palavra engaja”2036e que nada é inútil.

*****

m

2035 CAMUS, A. La chute.Thêátre, Récits, Nouvelles. p. 1479. 2036 CAMUS, A. Combat Clandestin, nº 58, juillet 1944. Cahier Albert Camus 8, p.136.

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