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COLEÇÃO CAIROSCÓPIO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO REITOR Proj. Dr. Luis Antônio da Gama e Silva EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Comissão E d ito rial PRESIDENTE Proj. Dr. Mário Guimarães Ferri FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LÈTRA8 M E M U R O 3 Proj. Dr. A. Brilo da Cunha Proj. Dr. C. da Silva Lacaz FAC. CE FII.OK., ClfcNC. E LÊTRAS FACULDADE DE MEDICINA Proj. Dr. Miguel Reale faculdade de direito Proj. Dr. Walier Borzani ESCOLA POLITÉCNICA

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COLEÇÃO CAIROSCÓPIO

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOREITOR

Proj. Dr. Luis Antônio da Gama e Silva

EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO C o m i s s ã o E d i t o r i a l

P R E S I D E N T EProj. Dr. Mário Guimarães Ferri

FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LÈTRA8

M E M U R O 3Proj. Dr. A. Brilo da Cunha Proj. Dr. C. da Silva Lacaz

FAC. CE FII.OK., ClfcNC. E LÊTRAS FACULDADE DE MEDICINA

Proj. Dr. Miguel Realef a c u l d a d e d e d ir e it o

Proj. Dr. Walier BorzaniESCOLA POLITÉCNICA

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O S K A R B E C I C E R

O PENSAMENTO M A T E M Á T I C O

Sua grandeza e seus limites

EDITORA IIERDERSÃO PA U LO

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Vorsâo portuguêsa do Prof. TIelmoth At.FRRno Sxmon, do original alemão: Groesse und Qreme der Malhfmatisclten Dcnkweise, von Oskar Bkoker (em. o. Prof. der Philoeophic an der Uniwisit&t Bonn), publicado pola Verlag Karl Albert, Freiburg'Mueneheti 1959.

( c ) Editôra Herder, Sáo Paulo, 1965Imprciuo no* Estados l;nídon do Br&âil P rin ted itt the U nited S taU t oj Braeil

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I N D I C E

Prejácio................................................................................... 7

CAPÍTULO PRIMEIROO P E N S A M E N T O PIT A G Ó R IC O

1. Os matemáticos o filósofos gregos mais antigos.. . . 112. A tese fundamental dos pitagóricos: as coisas sãonúmeros........................................................................ 153. A teoria “pitagóriea" de Platão sôbre a m atéria.. 184. Opiniões de Platão, dos pitagóricos e de Aristóteles

sóbre a natureza dos números................................. 25

CAPÍTULO SEGUNDO C IÊ N C IA DA N A TU REZA EX A TA

1. O papel da astronomia................................................. 282. A experiência “analítica” na Antigüidade e naIdade Moderna........................................................... 313. "Forçar” a natureza?................................................... 364. Naturam renuntiando vincimus.................................... 415. O problema da realidade na física clássica............ 466. A física moderna e o problema da realidade.......... 557. Visão de ooujunto........................................ ................. 75

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CAPÍTULO TERCEIROM A T E M Á T IC A P U R A COM O C IÊ N C IA L IV R E

1. Os inícios da matemática grega. Aparece pela pri­meira vez o problema do Infinito (Zenão de Eléa) 822. A descoberta do irracional........................................... 903. A teoria aristotélica sôbre o infinito......................... 064. A teoria aristotélica da abstração na matemática.A mathesis universalis nos séculos XVII e XVIII. 1005. Evolução em direção da matemática formal............... 108

CAPÍTULO QUARTO0 3 L IM IT E S DO PE N S A M E N T O M A T E M Á T IC O

A) Os limites imanentes da matemática1. Geometria não-euclidiana. Axiomática form al.. . . 1142. Fundamentação crítica da análise............................ 1213. A teoria dos conjuntos de Cant-or e suas antinomias.Provas da nfio-eontradição........................................ 1244. O intuicionismo.............................................................. 1395. Computabilidadc c decisibilidade. O princípio daineompletividade de Goedel...................................... 1436. A prova da incompletividade de Goedel.. . . ............. 1467. O conceito de função calculável e similares.............. 1578. Definiç3o construtiva de números ordinais transfi-nitos............................................................................... 162

B) 0 Problema filosôjic) dos limites do pensamento matemático

1. Opinião de Kant sôbre a essência da m atem ática.. 1692. A matemática e a finitude do homem........................ 1733. Matemática e "História” (ciência hermenêutica doespírito)......................................................................... 1784. Os limites do inteligível. Ser e existência do homem. 186

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P r e f á c i o

S ôbre a grandeza e a miséria do homem es­creveu Blaise Pascal, sôbre o brilho e a miséria das cortesãs escreveu Honoré de Balzac; porque não escrever agora sôbre a grandeza c a miséria da matemática? É verdade que a matemática é um assunto abstrato, ou pelo menos uma forma do espírito objetivo, ou absoluto, e tal forma pode muito bem ser grande, mas não miserável como o homem. Pode-se, talvez, perguntar se a matemá­tica pode crescer ilimitadamente, ou se seus limites não coincidem com os do próprio matemático.

A grandeza das conquistas matemáticas no decurso dos três últimos séculos está hoje em dia claramente delineada diante de nossos olhos. Mas vemos igualmente a ambigüidade de uma tal gran­deza no imenso terror que ela pode espalhar ao seu redor, por mais que dela necessitemos e sem ela não possamos mais viver. Só êste fato já bas­taria para fazer-nos meditar sôbre a grandeza e os limites do pensamento matemático. É preciso indagar como tudo isto pôde acontecer; é por-

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tanto imprescindível lançar um olhar sôbre a his­tória da origem e da evoluçfio da matemática.

A ciência matemática moderna, que levou ao desenvolvimento extremo do domínio das fôrças da natureza no decorrer dos séculos x ix e xx, só existe há trezentos anos; começou no século xvn com Galileu e alcançou seu primeiro clímax com Newton. Mas, a matemática em si é alguns séculos mais antiga. Teve sua origem no Antigo Oriente, Babilônia e Egito, no segundo milênio antes da era cristã. Ciência no sentido europeu ela se tornou sômcnte no início do século vi antes de Cristo, por obra dos gregos, os quais, recebendo a herança babilônico-egipcíaca, profundamente a transformaram, como aliás fizeram em outros ter­renos da cultura (escrita, arte, etc.). Uma outra transformação se verificou no "ocidente” , no século xvn, por obra dos povos germano-romanos, quando se descobriu a álgebra (a “fórmula” , que hoje nos parece tão característica da matemática), a geometria analítica e o cálculo infinitesimal. Ao mesmo tempo, e em conexão com aquelas desco­bertas, surgiu a nova dinâmica de Newton, que se mostrou capaz de explicar pelos mesmos princí­pios os processos (mecânicos) do céu e da terra. A partir dali se verificou um progresso contínuo, tanto no terreno matemático, como no físico (no sentido lato), até a ciência atual.

Se queremos compreender esta, será necessário ocupar-nos mais detalhadamente do esbôço histó­rico, acima apresentado. Não de tôdas as parti­8

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cularidades, nem sequer de todo o seu alcance evolutivo, mas pelo menos dos pontos de intersec- çáo mais importantes desta longa história, isto é, das descobertas mais fundamentais para a ulterior evolução.

Náo queremos, contudo, parar aí; o estado atual da questáo em suas linhas mais caracterís­ticas será igualmente exposto. Pois é precisa­mente neste ponto que o pensamento matemático alcançou sua plena realização c atingiu seus limi­tes, se é que tais limites existem. A questão dos limites se deve examinar, de um lado, a partir da própria matemática e, de outro, como um pro­blema filosófico.

Com isto está esboçada a tarefa que nos impu- semos tratar no presente livro.

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CAPÍTULO PRIM EIRO

O pensamento Pitagórico

1. Os matemáticos e jilósojos gregos mais antigos

De Pitágoras se afirma(l) que foi o primeiro a ensinar a matemática como disciplina livre (paidda). Esta significa para Arist,óteles(2) uma ciência que é estudada por si mesma, e não pela sua utilidade, ou por prazer. Pode-se duvidar da exatidão dêsse informe sôbre Pitágoras. De fato, numa geração antes de Pitágoras, no início do século VI, já sc cultivava a matemática nos círculos dos filósofos da natureza de Mileto (Tales e Anaximandro). É certo que muitos séculos antes já existia na Babilônia não sômente uma matemática, mas tam­bém uma álgebra e até uma geometria, que se originaram nas escolas dos “escribas”, isto é, dos administradores das grandes fortunas estatais e privadas. O mesmo sucedeu 110 Egito, onde, con­tudo, os conhecimentos matemáticos ficaram num estágio mais primitivo. Mas tanto na Babilônia como no Egito a matemática era utilizada para fins práticos, ainda que nas escolas os fins imedia­tamente utilitários nem sempre se verificassem (o

(1) iVocitu <n BudúUm. pá*. 66, 15 (Frioiil.).(2) M et. À 2, 982 b, 23-28.

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que sucedeu também em outros tempos e lugares). Mas a tendência geral era restringir os conheci­mentos matemáticos às construções, à agrimensura, à divisão das heranças e à astronomia. Os gregos, ao contrário, para quem “o homem tende por natureza ao saber”(3) consideravam a matemática como conhecimento puro. Não sabemos se já antes de Pitágoras se tinha uma idéia exata dessa “pu­reza”. Pois o que sabemos dos primeiros matemá­ticos se relaciona com o uso da matemática. Tales teria predito um eclipse do sol, medido a altura das pirâmides do Egito e determinado a distância de um navio no mar por observações feitas de um ponto na terra. Anaximandro fabricou instru­mentos astronômicos para acompanhar o decurso dos dias e das noites em Esparta, construiu um globo celeste (sphaira) e deüneou uma carta ter­restre.

Mas não era tudo. Tales e Anaximandro eram também “filósofos”, isto é, procuravam delinear um sistema ou uma imagem do mundo que nâo mais dependesse das concepções mitológicas tradi­cionais, em que os fenômenos naturais (como os terremotos ou as enchentes do Nilo) fôssem expli­cados sem recorrer a personificações divino-demo- níacas. Em Tales não se consegue ver a relação que existe entre sua filosofia (na qual, como se sabe, fêz da água o elemento original de tudo) e a matemática. Anaximandro, contudo, esboçou a primeira imagem do universo traduzida em nú­meros, o que não deixa de ser algo muito apre­ciável e de enormes conseqüências. Anaximandro é conhecido, sobretudo, pela sua “sentença”, um fragmento transmitido por Simplício que o tirou de Teofrasto; o conteúdo completo não nos

(3) Arist., M et. a 1, 980 a. 21. Vid. igualmente algumas sentenças pré-eocráticas: A nuágoraa A 39, Dcmócrito 118 (Dicls).

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é conhecido, nem seu contexto, e por causa de seu caráter fragmentário é difícil explicá-lo com clareza. Contudo, apesar de sua forma doxográ- fica pode-se reconhecer nesse fragmento as linhas essenciais do sistema cósmico de Anaximandro. (4)

Segundo êste a terra paira no centro do cosmos sob a forma de um “bloco de coluna” (cilindros de pedra cuja superposição formava as colunas dos templos gregos), cuja altura e diâmetro estão na razão de 1:3. A terra está firme porque não há razão pela qual ela cairia para qualquer um dos lados do universo, que é representado como um sistema radial simétrico. Aparece aqui pela primeira vez na história o principio da simetria, de tão grande importância ainda hoje, tanto na matemática como na física teórica; também Platão insistirá mais tarde neste ponto. É possível ver nesta teoria cósmica de Anaximandro também a primeira "teoria da relatividade". Para o pensa­mento simples da experiência diária os conceitos de “em cima” e “em baixo” são absolutos; assim o eram na Antigüidade para Demócrito e Epicuro. Mas para Anaximandro “em baixo” significa a direção da terra, que muda conforme o posto de observação.

Ao redor da terra se estendem grandes círculos ou anéis (kykloi) que se afastam à razão de 9, 18, 27 . . . , isto é, na razâo de 3.3, 2.(3.3), 3.(3.3)... raios terrestres. O círculo interno contém ou as estréias fixas ou os planetas (o que é discutido), o médio contém a lua e o exterior o sol. A parte interna dêsses círculos está cheia de massa ígnea

(4) Vid. » "*ontcnçaM era: Frajtiu. B 1 CDlela). tirado de Simplício in AriHtot. Phy«v piijç. 21, 13. SiSbre o slaUsxna cdwinico: A 11, tirado do Hippolit., Ref. I 6, 3-5; vid. ijpmlrocuto A 18, A 1, A 22.Hftbro * oarta torro#tro: A fl, A 7. Sôbru os luatrumentofi astronômico* em Esparta: A 1 (l) (2). Vide igualraontc W. Krant, Kotmoe, em: Archiv fuer Begriffftgxttchichte II, 1 (Bonn (1955) pág. 12 se.

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que nos fica visível por uma abertura lateral e torna possível a visão das estréias. O cosmos nâo é eterno, mas se originou do “apeiron” (o ilimitado) e depois de um espaço de tempo aparentemente bem determinado voltará ao ilimitado. O conceito do “apeiron” é uma tentativa de representar racio­nalmente o conceito mítico de “chaos”.

Nâo é aqui o lugar de entrar nos pormenores dos problemas propriamente filosóficos, talvez "es­peculativos’', do pensamento de Anaximandro. O que é importante para nós é a grande influência da matemática nessa antiqüíssima imagem do mundo dos gregos. Pode ser que esta nos pareça bem simplória e talvez o número 3, que a deter­mina, tenha fundamentos mitológicos. Em Hesíodo (Teogonia 722 ss.) se fala de um bloco de metal (akmôn) — talvez se trate de um meteoro — que leva nove dias para cair da abóbada celeste e atingir a terra e que levará outros nove dias para chegar até ao Tártaro. (Parece, portanto, que o Tártaro era concebido simètricamente ao céu como o hemisfério voltado para baixo). Tudo isto nâo impede que Anaximandro conceba o princípio fundamental do universo como ordenado numèri- camcntc. Esta opinião, portanto, precede a tese pitagórica, da mesma maneira como o conceito de "ilimitado", que pertence aos conceitos mais fundamentais do pitagorismo. É certo que se trata de pura especulação sem base na ex­periência; mas tal é a característica de todo pensamento incipiente, como podemos observar nas crianças. Só lentamente a imagem do mundo assim formadu se adapta aos dados da experiência.

Deve-se acrescentar ainda que no terreno da astronomia Anaximandro fêz observações exatas; a fabricação dos instrumentos que seguiam exata­

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mente o curso do sol, cm Esparta, supunha a me­dida da altura polar dessa localidade e outras coisas ainda.

2. A tese fundamental dos pitagáricos: as coisas são números

Não 6 fácil datar a filosofia pitagóriea. As ricas fontes posteriores, da época “neopitagórica”, pós-cristã, não s5o dignas de confiança, sendo que os fontes mais antigas (sobretudo Aristóteles) são lacônicas e difíceis de interpretar. É verdade que a datação histórica e outros pormenores não são tão importantes na presente questão sôbre os inícios da matemática grega. Podemos, portanto, considerar a filosofia c a matemática pitagóriea como um todo até a época de Platão; as fontes para estudá-las encontramos, por um lado em Aristóteles e, por outro, na análise crítica dos “Elementos” de Euclides (para a aritmética e a geometria) e nas diferentes fontes doxográficas (para a astronomia e a doutrina da harmonia). Nem se devem esquecer os fragmentos de Filolau conservados oralmente (os quais, com W. Kranz, admito serem genuínos, pelo menos em seu conteúdo) e de Arquita. Preciosos indícios temos igualmente naquilo que nos foi transmitido sôbre Zenão de Eléa. Não é tarefa nossa expor aqui a matemática dos pitagóricos, já que isto foi feito por outrem(5) e por nós em outra

(S) Vid. sobretudo B. L. van d*T W a k r d j c n : Die Harmonielehre der PytlmíOTcwr, em: Herme* 78 (1943), páu. 163-179: Die Arilhinetik der Pythagorper, em M «th. Ann&lcn 120 (1947-1940), pás». 111-153, 676-7(10; Die Astronomie drr PythaEorrer. Verhundl. d. K. Nederland. Aked. v. Wetenach., Aid. Niiturerk. Drrl XX N.» 1 (Amstenl&m 1951). Ilesmmo dtete* diferentes cetudoa cm: Erwachcndo Wia»enacbalt (BaaiUüft e8tutt«art 1957), pí*g. 155-168, 177-21», 247-202.

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ocasião (6). Trata-se agora de expor o sistema filosófico do pitagorismo que constitui o tema central dessa corrente de pensamento.

As notícias que nos fornece Aristóteles, sobre­tudo em sua Metajísica (Livros A, M, N), não nos apresentam, como já dissemos, um quadro unitário c coerente sôbre aquilo que os pitagóricos ensinaram sôbre os números e suas relações com as coisas. Uma vez se diz que os números são as próprias coisas outra vez que estão nas coisas, e uma terceira vez se afirma que as coisas são compostas de números, sem que Aristóteles pareça fazer uma distinção essencial entre essas dife­rentes afirmações.(7) Além disto Aristóteles pro­curou exprimir a doutrina pitagórica por meio das “categorias” , por êle concebidas e dotadas de sentido dentro da lexcologia e sintaxe grega e estreitamente dependentes da crítica que exerceu sôbre os pitagóricos e Platão; esta crítica só podia ser feita de maneira imperfeita. Assim, segundo êle, os pitagóricos teriam concebido os números como a essência substancial (ousia) das coisas, ou ainda como seu princípio (arckê), conceito que em outro lugar é aplicado aos elementos originais dos antigos filósofos naturais da Jônia(8). Num con­texto distinto do anterior o Estagirita explica que os pitagóricos descobriram semelhanças (homoiô-

8ôbre a estreita relação entre múaica e matemfitica na Grécia tra ta J . Lohmin, Muâíké und Logre, em: Wiaa. Zeitccbr. d. Univ. Grciíawald VI; OeBeUschafto - und Spraohwiaa. Rclhe, n.* 1/2, pá*. 31-37 (1956/57); id., Dio griochUche Muuik nla mathemntwiho Forra, em Archivfuer Muaík- wiaaanaeW t XIV, 147-155 (1957); Der U nprung der Muaik, 1b. XVI, 148 u . (1959).(0) Grundlagen der M athem atik in ceaehichtlicher Entwicklung 34 as. Friburgo em Br. — M unique 1954 (abrev. GM).(7) Vid. O. Martin, Klaa*laêh«* Ontologio d«r Zahl, em Kantntudícnl aupl. 70 (Goiânia 1956) $ § 1-3. Principais texto» dc Arlatólelc*: o) O» númoros tAo as coUa«: M ct A 5, 987 b, 28; M 8, 1083b, 17. 5) o* námeroa cwtfto ««a coisaa; Met. M 6, 1G&0 b, 1; PhvB. III, 4. 203 a, 6. c) Aa coiuou eSo compostas de números: M et. A 8, 990 a, 22; M 6, 1080 b, 2-3, 17-19; M 8. 1083 b, 11-18; N 3, 1090 a, 23-32; De coelo III. 1 300 a, 15-17.(8) Número como ouaia: Met- A 5. 987a, 18; A 8, 1017 a» 20; vld.I 2, 1053 b, 11-13 número como arcM À 5» 986 a, 16,

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mala) entre as propriedades dos números e das coisas, sobretudo na estrutura da harmonia mu­sical e na construção dos céus e de seus movi­mentos. Tildo isto é resumido por Aristóteles (sem que se constate um salto no curso de seus pensa­mentos) pelas palavras: “Todo o céu é harmonia e número”(9).

Encontra-se igualmente uma formulação afim, isto é, que as coisas são o que são pela imitação, ou melhor, pela representação (mimêsis) dos nú­meros, e isto é por Aristóteles identificado com a participação (methexis) platônica das coisas nas idéias(lO). Tudo isto se entende em parte quando se tem em mente que Aristóteles tem em mira antes de tudo a filosofia platônica, em que as “idéias" são explicadas como “números". Uma distinção essencial, entre Platão e os pitagóricos, Aristóteles vê no fato que aquêle separa as idéias das coisas, o que êstes não fizeram com os nú- meros(ll).

Ao tentar-se harmonizar estas diferentes afir­mações sôbre a doutrina pitagórica, cai-se em con­tradições e paradoxos. Assim dizemos: se os nú­meros estão nas coisas, ou se as coisas se com­põem de números, então as coisas não são os nú­meros. Parece que esta última fórmula pode ser considerada como um resumo das duas anteriores, mais claras, ja que os diferentes modos de exprimir se encontram próximos uns dos outros na mesma sentença(12). O que se quer dar a entender 6 a imanência dos números nas coisas, quer se os conceba como partes integrantes, quer sòmente os “elementos” (stoicheia) dos números sejam iden-

(0) M et. A S. 985b, 27-986 a, S (vid. 986 a, 21).(10) M et. A 6, 987 b, 11-12.(11) M et. A 8, 987b, 27-28: N . 3. 1090a, 20-25.(12) Por exemplo em M et. M 6. 1083b, 17-19.

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tifieados com as coisas. Êsses “elementos” são: “ limite” (peras) e “ilimitado” (apeiron)(13). Parece que a imanência deve ser representada como a presença nas coisas de determinada estrutura nu­meral, semelhante a uma armadura aritmética, mais ou menos como ainda hoje pomos nos cristais uma “estrutura gradeada” , com o grupo corres­pondente.

3. A teoria “piíagórica” de Platão sôbre a matéria

A novidade que Platão introduziu no problema dos números foi apontar para a diferença que existe entre o “caráter ideai”, inteiramente firme e determinado, dos números e o caráter incons­tante — Platão, seguindo os heraclitenses, diz “fluido” — das coisas sensíveis. Já Filolau se exprimira do maneira semelhante. Estamos hoje em dia bem familiarizados com tal distinção no campo geométrico: sempre distinguimos cuidado­samente entre o mais exato dos desenhos de uma circunferência, onde sempre há inexatidões, e a circunferência “ideal” , entendida pela geometria. Naturalmente, uma tal circunferência ideal, que se pode realizar em quantos exemplares quisermos de figuras geométricas, náo constitui a única idéia possível de circunferência, daquilo que se poderia designar como “circularidade” . Mas com os nú­meros parece que a coisa é diferente: quando temos três homens diante de nós, o número 3 está aí representado de modo perfeito, pois 3 está posto de forma bem determinada entre 2 e 4. Podemos afirmar, então, com absoluta certeza: sâo

(13) M et. A S. 986 », 1-2; vid. Filolau, F n p i . B 2 CDiel»).

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trés homens, c não dois nem quatro. Platão o seus discípulos, contudo, pensavam diferente. Exi­giam que o número da “aritmética filosófica” cons­tasse sò mente de unidades inteiramente iguais(14). Este conceito de arilhmos monadikos ou malhema- tiko8 deve ser rigorosamente distinguido do “nú­mero numerado” das coisas scnsíveis(15). Dêstes dois conceitos se deve distinguir ainda o “número ideal” ou o “número das idéias” (ideôn arithmos) platônico, conceito muito difícil, dc que agora não precisamos nos ocupar.

Os pitagóricos não faziam essa distinção, o que segundo Aristóteles lhes poupava muitas dificul­dades. Não atribuíam valor decisivo à absoluta igualdade das unidades com que enumeravam. Para êles o “um” e os outros números não são atributos de quaisquer coisas concretas numeradas mas entidades independentes (ousiai, “substân­cias”), o que é combatido por Aristóteles pelo seguinte argumento: Mesmo quando se concebe uma melodia como um “número” composto de quartos de tons, a unidade dela não constitui um ser independente, mas um quarto de tom. Assim também em outros casos(16). Conforme Aristó­teles o número adere às coisas, não está nas coisas. Apesar desta formulação diversa, neste ponto o Estagirita se aproxima do conceito pitagórico de número. O que os pitagóricos chamam de “nú-

(14) R«p. V II, 528a; Phileb. 58de.(15) Phya. IV, 11, 219b, 6. Aristóteles ao "ndmero numerado" opunha o "ndmero com que numeramoa". W. 2>. Rot* interpreta êste último como o n^msro m\tem dtico ou monádico. Mas, é tato inteiram ente justi­fica lo? E em to lo o caso necçsslrio ter em vtata a teoria arUtotélica da abâtriçSo matnmlticu [segundo èle a m itnm itica ôó exUt* ex aphoi-O ndmero raonádieo platônico n&o 6 abstrato, maa existente outo- lògicarivntr, é iim i ou*ia no avutMo pttOO* IttO A . IFfdôtfrp,PK to’a Philosophy of Mnthornatias (Stockholm 1955), cap. V (pág. 03 ss.). Infelizmente éste autor nilo tra ta da t**c decisiva do platonlamo posterior, segundo o qual as idéias «Ao números.(16) M et. 1 , 1, 1053 b, 32 — 1054a. 9; vid. N 1. 1067b, 33-1088a, 14

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mero” (arit.hmoe) é evidentemente o “número nu­merado”, isto é, a coisa numerada ou numerável, ou mais exatamente, uma multiplicidade discreta (não contínua), que pode ser designada por um ou mais números, Na realidade tais “números” não deveriam ser expressos por “dois, três, qua­tro . . mas por “duplo, triplo, quádruplo . . Que se recorde a etimologia da palavra “arUhmos”: esta provém de “a r a r i s k o “eu ordeno, ponho em ordem”, e significa em seu sentido original: “ordem, disposição” . Até mesmo em Aristóteles se encontra um eco dêste caráter concreto e estru­tural do conceito primitivo de número, que não pode ser aplicado a qualquer coisa, mas que de­pende de determinados objetos(17). Tal concepção se encontra muito mais acentuada nos pitagóricos, e até mesmo em Platão.

Partindo dêste conceito original e primitivo a tese pitagórica se torna muito mais inteligível. “Número” significa a estrutura das coisas, aritrnè- ticamente descritível, e que constitui sua essência própria mente dita. Contudo, na concepção pita­górica esta “estrutura” não é o arcabouço atri­buído à coisa por outrem, mas uma armação interna à própria coisa, e que de dentro a man­tém unida. Como isto deva ser entendido, mais em particular pode-se ver na doutrina dos elementos contida no diálogo de Platão chamado “Timeu”. Aí Platão fala pela bôea do pitagórico Timeu (quer sc trate de uma pessoa histórica, quer não) mostrando-se de certa forma como pitagórico êle próprio.

Os átomos dos quatro elementos são concebidos como poliedros regulares: o fogo como tetraedro, o ar como octaedro, a água como icosaedro e a

(17) Vid. JT. iW>nní«0íf, Z&lilwort uad Ziffer, 2. ed.. Goettingen, 1958.

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terra como cubo. Os três primeiros corpos, cujas faces são triângulos equiláteros e congruentes, são concebidos como compostos por êstes, constituindo assim corpos elementares tridimensionais a partir dc superfícies de sòmente duas dimensões! Isto, naturalmente, constituía uma pedra de tropêço para Aristóteles que critica violentamente a dou­trina platônica sôbre os elementos em seu livro De coelo (III, 1). Afirma que a matéria real é corpórca e pesada, enquanto que as simples super­fícies como entidades matemáticas, isto 6, abs­tratas, não o são. Mas Aristóteles não compreen­dera a profunda doutrina de Platão. Esta quer explicar a essência mesma da matéria c não o composto material que consta de pequenas partes indivisíveis. Em Platão o conceito de matéria ainda não se solidificou em “matéria prima”, não mais inteligível, como em Aristóteles. Se se qui­sesse traduzir em têrmos modernos o sentido platô­nico de matéria, poder-se-ia hesitar entre conceitos tais como “espaço”, “matéria” e “campo”.

Neste contexto os resultados de um estudo de E. M. Bmin(18) sôbre as mudanças “físicas” e “químicas” dos elementos platônicos são de grande interêsse. Entre outras coisas é necessário que o interior dos poliedros platônicos seja essencialmente vazio, já que a soma das faces fica igual nas trans­formações (como na química de Lavoisicr a soma das massas), mas não a soma dos volumes (em alguns casos o volume se reduz à metade!).

Tôda a teoria, portanto, se baseia exclusiva­mente nas superfícies dos poliedros e 110 fato de os poliedros se comporem de superfícies sendo que os ângulos que as superfícies formam são também de importância quanto à sua grandeza relativa.

(18) La Chimii du Tlw íe, em Revue do Métapliyaique e t de Moral», 56. p i* . 289-282.

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A grossura das superfícies é contudo nula, o que demonstra o caráter puramente matemático dos átomos poliédricos. Esses mesmos poliedros não são materiais, nem no sentido da matéria prima aristotélica e nem no sentido da física clássica moderna, mas constituem de certa forma a matéria já formada dos quatro elementos. O fato de que se insiste precisamente no número das faoes elemen­tares provém de que temos diante de nós um princípio pitagórico de consideração; êste tem sido levado adiante por Platão e pelos matemáticos de sua escola (sobretudo por Teeteto).

Um eminente físico teórico de nossos dias, W. Heisenberg, diz a respeito dos triângulos elemen­tares de Platão: “Os triângulos não são matéria, mas são simples formas matemáticas . . . , e a ques­tão do porquê dessas partículas elementares é reduzida por Platão à matemática. As partículas elementares têm a forma que lhes é atribuída por Platão porque tal é a forma mais bela e mais simples. A última causa dos fenômenos, portanto, não é a matéria, mas a lei matemática, a simetria, a fórmula mat.emática” (19). E Heisenberg explica por esta mesma tendência à simetria sua própria teoria sôbre as partículas elementares hoje conhe­cidas, por mais que no decurso de mais de dois milênios se tenha modificado a posição da física. Com a descoberta, feita por Planck, dos quanta energéticos, de nôvo entrou na ciência natural a idéia platônica “ que na ba.no da estrutura aJômica da matéria está em última análise uma lei mate­mática, uma simetria matemática”(20).

(19) N a conforènci» pronunciada em Berlim & 25-4-10.58: "A diweo- berta de Planclc e u h w i filosòfiefta da doutrina atôm ica", cm: Dia NaturwUnenuchaítcji 1968. fase. 10. pága. 237-234.(20) Podc-M perguntar se os triângulo* elementar™ d« PlatXo sSo triànguloa m utcm íticos exatos, lato é, entidades "uicnía". Tal pergunta4 difícil de re aponde r a partir do texto do "Tim eu” . P or um lado a dou-

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E dc fato, a equação fundamental da física das partículas elementares, proposta por Heisen- berg, se caracteriza pelo fato de utilizar-se de tôda uma série de relações simétricas. Ê verdade que não se trata aí da simetria simbólieo-espacial dos corpos platônicos, que se apóia sôbre o grupo abstrato das operações de reoobrimento que são possíveis sôbre aquêles corpos, pois o tempo desem­penha agora um papel relevante. Entretanto, tam ­bém as leis físicas invariantes para grupos dc trans­formações de vários tipos “são no fundo nada mais que fórmulas matemáticas abstratas que se re­ferem ao espaço e ao tempo”.

Apontamos neste contexto para os estudos de Andreas Speiser sôbre a análise matemática da simetria na ornamentação, na arquitetura e na música(21). Eis o que diz êste notável matemático e filósofo sôbre uma composição musical: “Assim como para a equação algébrica existe uma metafí­sica, o grupo, cujo conhecimento encerra o cerne da equação, assim também para a obra de arte existe uma metafísica, isto é, um conteúdo simé-trina doe elementos está em certa contradiçfco com os outro* temo» mato- máticos do diálogo e com a estru tu ra da “alma do raundo". Esta * um eaqueraa, ou um mod&o i material, e é aua cópia que constitui o cosmos visível com o equador celeste, a eclíptica e o curso doe planetas. A dis- tlnçAo entre alma do mundo e cosmos visível tom a possível explicar as diferença* entre oa movimentos observado® nos corpos celcstes e no es­quema ideal doa meamos. Mas 09 componentes últimos dos "elementos" s&o concebido», de forma mais pitagórica, como verdadeiras partícula* elementares invisíveis do* assim chamados “elementos’' visíveis: Í o e o , ar, água, terra . Pode ser que estilo subtraídos ao ôlHo humano tinicamente em ras&o de sua pequenes, enquanto que ura deus o« poderia ver. Por outro lado é duvidoso se se pode considerar como materiaà* os triângulos elementares incorpôreos; em tèrmos modernos: silo élcs "roaia" ou “ ideais" ? Neste ponto Aristóteles entrou com sua crític* (De eoelo III , 1). É ver­dade que Plat&o fala do “ reino eterno do espaço" (cK6ra: Tira. 52 ab), mas a questSo é se esta propriedade de "eternidade" deve snr entendida como relacionada com a exatidão matemáitca; esta questfio mcrecerla um estudo mais detalhado; fica-se em todo o coso com a impr©«fio qno Platão "pitagorisa" sobretudo em sua doutrina sôbre as partículas elemen­tares.

(21) A. S p tú tr, Theorie der Gruppen von endlicher Ordnung (3. ed. Berlim 1037); Id., Die mathematbche Denkweise (2. ed., Basiléia, 1945)# pág. 34. Vid. H. W*yl, Symmetrie (Dasiléia-ôtuttgart 1055).

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trico, cujo conhecimento tom a possível a composi­ção de muitas belas peças, sendo a descoberta de tal configuração a verdadeira invenção artística. Tarefa da ciência seria então o descobrimento da estrutura total dessas peças com todos os seus nexos m últiplos. . . Pode-se supor que existem composições, como as fugas de Bach, em que cada tom é determinado por nexos próprios, de modo que êste se tom a o único tom possível. Pode ser que a obra de arte se distinga por algumas propriedades mínimas: é a peça mais simples que é possível produzir dentro de um determinado complexo simétrico” .

Voltando a Heisenberg encontramos o seguinte: “ . . . Pela significação básica das propriedades simétricas, qualquer csbôço de teoria sôbre as partículas elementares recebe um caráter todo pe­culiar de unidade. Encontram-se estruturas tão Intimamente ligadas e entrelaçadas entre si que é impossível introduzir qualquer mudança cm qual­quer uma de suas partes sem pôr em perigo todo o conjunto. Lembramos neste contexto os orna­mentos das mesquitas árabes em que não se pode modificar um mínimo detalhe sem estragar todo o conjunto” . . . Esta última sentença contém uma alusão evidente à análise dos ornamentos de Speiser que conta entre os mais ricos e complexos as janelas de algumas mesquitas árabes.

Tôdas essas considerações de Speiser e Heisenberg são no fundo pitagorismo. Pois a idéia básica dos pitagóricos era que a essência das coisas se reduz a “números”, — leis definíveis por meio de números — o que leva à afirmação de que a-s leis que regem as coisas coincidem com a simetria interna ou a “harmonia” das leis que presidem os números. Vemos assim que existe uma ponte que une entre si os pitagóricos e Platão com a pesquisa atual.24

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4. Opiniões de Platão, dos 'pitagóricos e de Aristóteles sôbre os números

Mas não se pode definir Platão simplesmente como pitagórico; sempre foi e permaneceu um filósofo critico. No “Timeu” freqüentemente repete que suas exposições constituem um “mythos” que não deve ser tomado como verdade pròpriamente dita; além disto, falou claramente sôbre o caráter “ideal” da verdadeira astronomia (no livro VII, do “Estado”). As posições e os movimentos obser­váveis dos astros não correspondem ao “verda­deiro” estado de coisas, já que fazem parte do que é “visível” (isto é, essencialmente imperfeito), O céu visível pode ser comparado com um modêlo geométrico no qual os conhecedores da geometria podem reconhecer uma obra de mestre, mas que êles certamente não porão na base de suas pes­quisas sôbre a verdadeira essência do “igual” e do “duplo” .

Êste, para nós tão estranho, paralelo entre um modêlo artificial para o uso do ensino c os fenô­menos observáveis da natureza, é também aceito sem dificuldade por Aristóteles (Met. B 2, 997b 34 até 99Sa 0), ainda que se trate sômente de uma tese a ser considerada (no livro B da Metafísica). Aí se diz que a Astronomia não pode tra tar do grandezas observáveis pelos sentidos, nem sequer do céu que está imediatamente sôbre nós, pois as linhas de que fala o geômetra não são observá­veis, e não se pode dizer que um anel material tangencia uma régua num único ponto (o que já fôra notado por Protátçoras) e os movimentos e as trajetórias espirais dos planetas no céu não são aquêlca que o astrônomo trata.

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Estamos inclinados a rejeitar êsses paralelos se os modelos imaginados pelos homens, para o uso da demonstração, não correspondem a fenômenos objetivos da natureza. Devemos igualmente con­ceder que a concepção platôncia (que tanta influ­ência teve!) nâo favorecia o progresso da ciência exata.

Mas, pode-se ver na opinião de Platão um lado mais positivo quando se a considera como expressão do espirito critico de Platão. Conside­rada dêste ponto de vista ela afirma claramente a pressuposição necessária do conceito de modêlo nas ciências matemáticas. Também nós falamos na física moderna de “modêlo” , empregando a mesma palavra já usada por Platão para os modelos geomé­tricos. O físico moderno, partindo de determinado grupo de fenômenos constrói um “modêlo” , ela­bora-o como que “in abstracto” e procura ver quais traços da realidade observada são nêle refle­tidos, ou, como se dizia antigamente, até que ponto o modêlo 6 “verdadeiro”.

A posição de Aristóteles frente a êsse problema é, do ponto de vista moderno, notável por sua sobriedade. Os objetos matemáticos têm sua ori­gem na “abstração” (aphaireMS). Aristóteles é aliás o primeiro a empregar tal têrmo. 0 matemá­tico considera como separado o que na realidade não é separado, por exemplo, na bola de bronze, simplesmente a forma esférica; na régua sòmente a linha reta, no raio de luz ou de visão só a retili- neidade dêstes. 0 que não fica explicado nesta opinião é que a abstração só não basta para dar origem às imagens geométricas, pois (quase sem­pre) se acrescenta uma certa idealização; uma roda não é exatamente circular, a régua de fato nâo é reta. Aristóteles sabe disto e alude ao mesmo fato. Mas o problema é por êle transferido para26

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o terreno lógico: sòmente para o geòmctra tem importância o fato que uma linha que no- desenho tem um pé de comprimento, na realidade não tem tal extensão; para o matemático isto não constitui êiTo. Também isto concorda em certo sentido com o tão freqüente ponto de vista “convencional” da ciência moderna. Mas é duvidoso que se possa ir tão longe na interpretação dos textos aristotélicos; pois em outras passagens o ponto de vista ontoló- gico é fortemente sublinhado.

Não é aqui o lugar de nos ocuparmos de discus­sões históricas. O que acabamos de dizer só quer fazer ver como já na Antigüidade clássica o pro­blema não era fácil, pois já aí se cruzam motivos que no decorrer dos séculos sempre de nôvo sur­giram. Vê-se que o pensamento pitagórico não é aceito simplesmente, sem contudo deixar de sub­sistir sob diferentes formas e variantes, e que até os nossos dias êle continua valendo como um dos ingredientes mais essenciais do pensamento mate­mático.

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CArÍTULO SEGUNDO

Ciência exata da natureza

1. O papel da astronomiaFreqüentemente se ouve a afirmação que a

ciência exata da natureza é, senão uma conse­qüência, pelo menos uma preparação e até um pressuposto da técnica. Afirma-se(l) que a ciência matemática recente é um produto do capitalismo incipiente; que ela é o produto de uma concepção do mundo segundo a qual o trabalho humano nos ofícios e na produção de bens se tornou o modêlo dos fenômenos naturais e determinou assim nosso conhecimento da natureza; na ciência está sempre presente a vontade de dominar e subjugar a natu­reza. As fórmulas matemáticas da física teórica “dominam” um determinado ciclo de fenômenos, mas sem “entendê-los” , ou querer entendê-los. E quando Nietzsche afirma que em tôda a vontade de conhecer está incluída uma certa crueldade, e quando um neo-romântico moderno se queixa de que a técnica moderna “ rebaixou a grande mãe a es­crava” , estamos na mesma linha de pensamento. O próprio Heidegger fala de um desafio mútuo, de uma “afirmação” recíproca da natureza e do homem, do ser e do homem, nesta nossa era atô-

(1) V;d. M as ScKtUr, "Erkenntniii und A rbeit" n» ob rt: Die Wímhm. (ormea und die GwolUcbaft (U>ip*i« 1926).

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tica. Mais tarde voltaremos a esta linha do pensa­mento moderno.

Mas perguntamos: tal concepção, que quase já se tornou lugar-comum, é verdadeira? Parece- nos bastar pronunciar a palavra “astronomia” para refutá-la. Porventura a astronomia nâo é uma ciência exata da natureza? Quando foi ela a pre­paração para qualquer técnica? Com as estréias, até hoje, nâo se pôde fazer experiências; o máximo que se podo fazer é examinar sua irradiação. Fenô­menos celestes podemos sòmente observar, mas não modificar. Galileu pôde fazer rolar suas bolas sôbre um plano inclinado, “com um pêso que êle mesmo escolheu” (como K ant diz tão plàstiea- mente), mas com os astros ninguém pode brincar.

Do ponto de vista histórico a astronomia é muito antiga. Como ciência exata, baseada em métodos matemáticos, existe desde o século vm antes de Cristo, desde os tempos babilônico-assi- ríacos. Desde a metade do século vm existem observações sistemáticas dos eclipses; a mais an­tiga, citada por Cláudio Ptolomeu, teve lugar em 746. O primeiro sistema exato do mundo, baseado em observações, é do grego Eudoxo (teoria das esferas homocêntricas); um outro, talvez também do século rv, é de Herakleides Pontikos(2). O mais tardar no século m são conhecidos epiciclos e excêntricos (Apolônio de Perge). No decurso do período hclenístico, tanto no mundo grego como neo-babilônico, se desenvolveu uma astronomia subtil baseada em observações e cálculos; os documentos dessa época nos foram conservados sobretudo nos escritos de Cláudio Ptolomeu para

(2) Conforme B. L . van d*r Wnerden Já ao acha oxpre*** no "Tim eu" um a teoria do* «piriclos p*ra Mercúrio e Venua (Di« Autronomie der Pytbasoreer, ia Verhandl. d. K . Nederl. Akad. y. Wctcn*ch. Afd. N atutirk.1. R . Deel X X Nr. 1 (Amaterdam, 1951) 8 . 45 ff.).

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a parto grega, e em numerosos textos euneiformes, para a parte neo-babilônica. O que aí encontra­mos é, sem dúvida alguma, ciência exata de alto quilate, baseada no pensamento matemático. O valor desta ciência pode ser demonstrado pelo fato que seu8 métodos e resultados foram aceitos por Copérnico sem restrições. É sòmente a “Astro­nomia nova” de Kepler (1609) que produz uma reviravolta e traz novidades que mais tarde tor­naria possível a mecânica celeste de Newton.

O próprio Kepler ainda adota dois métodos. Suas obras Mysterium cosmographicum e Hamwnice Mundi existem lado a lado com a “Astronomia nova” : de um lado pitagorismo, de outro obser­vação cmpírico-cxata. E digno de nota que a terceira lei de Kepler (de significado secundário 11a Harmonice Mundi) juntamente com a deter­minação feita por Huygens da aceleração centrí­fuga se tornou 0 ponto de partida para a lei de Newton sôbre a gravitação.(3) Huygens de sua parte se utiliza da analogia entre a aceleração centrífuga e a aceleração da queda como a calculara Galileu. Vê-se assim que na teoria newtoniana se ajuntam os pensamentos de Galileu e de Huygens com os de Kepler para a elaboração da teoria da mecânica celeste(4).

(3) Conformo a terceira lei do Kepler os cubos doa grandea eUoa daa trajetórias dos planeta* (aproximadamente os cuboa (r*] doe raios) afio proporcionais aos quadrados dos trmpos das cireunvoluções (T*). Conforme Hiiygnn* a a^elcraçfto centrifuga («) £ diretamente proporcional ao qua­drado da velocidade da circunvoluçl© (c*) « indiretamente proporcional ao raio (r); ora a velocidade citada é igual ao comprimento da circunfe­rência (2pir) dividida pelo tem po da circunvoluç&o f ; ent&o. a acele­ração centrífuga a 6 proporcional a c«/r ou (rtyTtyr ou r{T1 e, en tio . como T* é proporcional a r», conclui-ee que está na proporção r/r* ou l/r*. O ceme da lei da gravitayfio de Newton é. no fundo, igual, no que concerne à cine- mática.(4) Deve-ae aereaeentar ainda que Newton ampliou a teoria de Huygens eatenlen to-a do movimento circular para o movimento elíptico com acele raçio dirigida para um doa focos íromo exigem a primeira e a segunda lei de Kepler) e assim aplicou rigorosamente aa leis kephrianaa e solu­cionou o assim chamado "problema doe dota corpo*"*

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Nesta confluência de duas correntes de pensa­mento, das quais uma trata da mecânica terrestre e a outra das leis dos movimentos dos planetas no céu, se operou algo de nôvo: a assimilação das leis dos movimentos terrestres c celestes; lan­çou-se assim uma ponte por sôbre o abismo exis­tente entre a terra e o céu, cavado pela tradição clássica antico-medieval, em oposição ao atomismo democrítico-epicureu, difamado como suspeito. Em princípio, a mecânica dos corpos sòmente observá­veis e não influenciáveis é a mesma que a dos corpos terrestres que podemos tocar. Também na esfera terrestre existem leis não menos exatas do que no céu. Com isto se inicia a ciência matemá­tica clássica do Ocidente. É verdade que hoje em dia esta unidade das leis naturais para tôdas as esferas foi de algum modo abalada, já que para corpos muito grandes (no caso, as estréias) as leis exatas conservam seu valor, enquanto que para as partículas muito pequenas só existem leis esta­tísticas (teoria dos quanta). Contudo a passagem da física clássica de Newton para a física mo­derna (que se efetivou ai por 1900), não é, apesar de tudo o que se diz cm contrário, um passo maior na direção de um outro modo de pensar do que a descoberta da mecânica celeste no século xvn (elaborada por Newton já em 1666, mas publi­cada sòmente em 16S7).

2. A “experiência analítica” na Antigüidade e na Idade Moderna

A questão por que a Antigüidade não conseguiu produzir uma ciência exata da natureza, no sen­tido próprio desta palavra, não pode ser respon­dida em poucas palavras. Alguma luz, embora

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bastante unilateral, é atirada sôbre a questão quando se compreende que a ciência antiga não conhecia a “experiência analítica”.

Não há dúvida que os gregos eram finos obser­vadores e pensadores penetrantes, mas tinham um pavor instintivo de analisar artificialmente, por manipulações apropriadas, qualquer fenômeno e assim destruí-lo em sua integridade. O que se podia observar diretamente na natureza e aquilo que resultava de atividades práticas pré-científicas na guerra e na paz (técnica manual e técnica guerreira), era considerado como objeto de ciência "livre”. Mas quase ninguém construía aparelhos para fins ünicamente de pesquisa.

Típica, para uma assim chamada “experiência” na antigüidade helênica, é a descrição que Empé- docles (B 100, 8-21) nos oferece de uma criada que brinca com um elevador dc água (klepshydra, literalmente: “ladrão de água”). A clepsidra é um antigo aparelho doméstico (conservam-se alguns exemplares), uma espécie de pipeta que servia para tirar água dos enormes cântaros que não se podiam fàcilmente levantai- ou inclinar. A “experiência” descrita no jôgo da criada serve como modêlo (que na poesia de Empédocles toma a forma de uma parábola homériea) de um processo fisioló­gico. Mas se tra ta da observação de uma inocente brincadeira de criada e não de uma experiência com fins científicos.

Algo semelhante encontramos freqüentemente entre os pré-socráticos. As homoiomerias dc Anaxá- goras, por exemplo, são explicadas pela mistura (manual) de côres (Anaxágoras B 10 [p. I I 37, 7-10], B 21 [p. II 43, 8-12 Diel-Kranz]; sôbre a clepsidra: A 69). Igualmente as experiências acústicas, parcialmente verdadeiras, parcialmente pretensas, dos antigos pitagóricos pertencem a êste

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gênero de experiências, como a de Hipaso (12.13) com discos de diferente grossura e com recipientes mais ou menos cheios de água. Sòmentc em época mais recente se praticam ocasionalmente experi­ências sistemáticas, por exemplo, no terreno da ótica: Cláudio Ptolomeu pesquisa a visâo binocular e a refração da luz. Mas mesmo aí o fenômeno natural nunca é decomposto em seus componentes, como seja, a luz branca através de um prisma em seus componentes coloridos.

Ainda mais importante é o fato que a decom­posição e a composição das fôrças mediante o tão conhecido paralelogramo de fôrças é inteiramente desconhecido na Antigüidade; parece que sômente pelo fim do século xvi foi utilizado por Stevin para explicar o equilíbrio no plano inclinado. Os gregos não foram capazes de calcular êsse equilíbrio (vide uma tentativa falha em Pappus, Coll. math. vm , 8-9); conseguiu-o, é verdade, no início do século xvi um discípulo de Jordanus Nemorarius, mas sômente pela aplicação do princípio dos deslo­camentos virtuais, e não pela decomposição dos componentes. No decurso do século xvn o prin­cípio do paralelogramo é extensamente aplicado aos mais variados problemas e a dinâmica newto- niana seria ininteligível sem êle.

Não entraremos agora nas particularidades his­tóricas ou nos diferentes experimentos e suas expli­cações, mas insistimos no princípio fundamental da análise dos fenômenos naturais e na decompo­sição dêstes cm seus elementos para depois nova­mente reuni-los, geralmente (embora não sempre) pela simples superposição dos componentes. O princípio da análise dos elementos foi formulado por Descartes em suas ‘‘Regulae ad directioncm ingenii” (1G29). Está em estreita relação com a “Mathesis universalis” que se servo da “Álgebra

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speciosa” (cálculo por meio dc letras, descoberta por Viète e melhorada pelo mesmo Descartes) e que pode ser aplicada a tôda espécie dc números e grandezas; está além disto em relação com o ideal cartesiano da matematicização da física, segundo a qual tudo se consegue pela elaboração de axiomas e pelo cálculo algébrico. A matemática de Descartes é assim um modôlo metódico. Na realidade per­tence à essência mesma da matemática ser fácil e até trivial em todos os seus passos, pela conexão gradual de figuras sempre mais complexas e argu­mentos sempre maiB intrincados que são difíceis de seguir e compreender. Contudo seu caráter cientí­fico provém precisamente desta complexidade estru­tural.

Portanto, um traço característico e fundamental da ciência natural exata, a partir do século xvn, é que ela decompõe em seus elementos, muitas vêzes invisíveis, os fenômenos pré-científicos e coti­dianos, para depois novamente reuni-los; por aí se exerce igual mente uma crítica sôbre a observa­ção ingênua dos sentidos. Pense-se, por exemplo, na ingênua concepção de Aristóteles, e de outros, que velocidade e fôrça motora são proporcionais entre si; a doutrina da física clássica moderna, ao contrário, ensina a proporcionalidade da fôrça e da aceleração. O caráter matemático da física moderna repousa precisamente sôbre êssc traço construtivo, próprio da ciência exata moderna.

Da tendência moderna para a análise segue, antes dc mais nada, a construção de aparelhos e seu uso para observações sempre mais exatas. Tal tendência existia na antigüidade sòmente no campo da astronomia (que necessitava de medições exatas de ângulos) e de algum modo no da geodésia (os “Dioplra” de Herãó), Ao contrário, os aparelhos “pneumáticos” de IJeron nada mais são que brin­

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quedos geniais, "coisas admiráveis que se movem por si mesmas” (Aristóteles, Met. A 2, Pág. 983a, 14), que serviam para divertir o público e nâo para pesquisas. O homem antigo encontrava os “ m odelos” dos fenômenos naturais na própria natu­reza ou na ocupação manual e não os empregava para fins científicos (excetuados mais uma vez os modelos astronômicos, as “esferas”).

A construção de aparelhos científicos para uso da pesquisa surge quase repentinamente no século xvii; pense-se no telescópio, no microscópio, no relógio de pêndulo, no vácuo de Torricelli e na bomba de ar com que Otto v. Guericke conseguiu tantos efeitos dinâmicos. Mas experiências exatas, levadas de forma realmente científica, não eram ainda freqüentes; Blaise Pascal constitui uma honrosa exceção.

O esfórço para ser exato pressupõe um grande interesse por constatações numéricas exatas, o que leva a pesquisa numa direção inteiramente nova. Parece-nos hoje evidente que "o livro da natureza está escrito em linguagem matemática” (Galileu). Naquele tempo isto era novidade e con­trário à tradição antico-medieval, excetuada sempre a astronomia; esta, contudo, com rIVcho Brahe muito ganhou em exatidão nas suas observações (de 10 minutos para 1 minuto e até menos!).

Não é por acaso que o mesmo Galileu, para quem a natureza fala a linguagem da matemática, aprova o método risolutivo e compostlivo, da mesma forma como Descartes, Isto significa: a maneira de pensar matemática em certo sentido nada mais é que o método analítico, tanto que o têrmo “Ana- lysis' tem uma justificativa quando aplicado à alta matemática que surgiu no século xvii.

Este fato não é diminuído por êsse outro, que no decurso do século xvm se descobriram processos

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matemáticos que permitem estabelecer leis de ca­ráter integral e aparentemente teleológico, os cha­mados “princípios extremais” (leis integrais). T ra­ta-se do cálculo das variações, concretamente do problema da curva do percurso no menor tempo (“ braquistocrona”, de que se ocuparam Leibniz e Jakob e Johann Bernoulli); do princípio do caminho mais curto para a luz (Fermat) e dos resultados mínimos (Leibniz e Maupertius). Para Leibniz êsses princípios maximais e minimais têm uma significação básica, filosófico-teológica: Deus, que criou o melhor de todos os mundos possíveis, produz o máximo com os menores meios, solve todos os problemas da maneira mais econômica, como Arquiteto perfeito do universo. Mas, mais tarde se descobriu que a todos êsses princípios extremais correspondem sistemas de equações dife­renciais (as assim chamadas “equações de La- grange”) e que não têm caráter integral ou teleoló- gieo. Esses integrais principais extremais geral­mente possuem duas soluções e têm resultados máximos e mínimos e constituem assim as soluções “melhores” c “piores” . Apesar disto é digno de nota, do ponto de vista da história da filosofia, que Leibniz tenha tentado conciliar a tradição filosófico-teológica da Idade-Média com a ciência exata da Idade Moderna.

De tudo isto resulta que a experiência analítica e a análise matemática estão cm íntima relação entre si e expressa-se pelo fato de cm ambas se tra ­duzir a tendência construtiva da ciência moderna.

3. 11 Forçar" a natureza?Talvez seja o processo analítico da ciência mate­

mática recente que inspirou a idéia do “força- mento” (ou violação) da natureza pelo homem36

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por meio do método científico, idéia que é uma conseqüência necessária, senão um pressuposto, da moderna técnica. M. Hcidegger exprimiu elo­qüentemente isto ao afirmar que a natureza e o homem mütuamente se “afirmam” (“Ge-stell”), o que entretanto não é entendido como cegueira ou “hybris” do homem, com suas conseqüências trá­gicas, mas como o “destino do ser” (“Seins-Ge- schick”) do nossa época(5).

O limite onde começa êsse “forçar” da natureza não é fácil de determinar. Heidegger, por exemplo, ainda não considera como forçamento o aproveita­mento da fôrça do vento pelas velas ou pelos moinhos dc vento nem o aproveitamento do solo 11a agricultura tradicional; mas considera força­mento da natureza a máquina a vapor, a eletrici­dade e o adubamento químico, que supõe uma técnica química muito desenvolvida. Mas pode- se perguntar: qual é o princípio da distinção?

No século xvn Luis XIV fêz construir as obras hidráulicas de Marly 110 Sena, as quais por meio de bombas acionadas por rodas hidráulicas eleva­vam a água para as margens do rio a uma altura que lhes permitia alimentar os chafarizes do parque de Versailles. Esta obra tão admirada em seu tempo, extensa e cara, pode ser considerada um forçamento da natureza ? A eficiência desta enorme obra era extraordinàriamente baixa; fizeram-se os cálculos que o produto de tôda essa imensa maqui­naria poderia hoje em dia ser alcançado pelo motor de um carro médio. Pode-se dizer que as má­quinas dc Marly constituíam um forçamento muito débil da natureza, apesar de seu tamanho. Mas

(6) Vid. Àí. Bddfoffffgr, “Vortnegt) und AufHtuttxa'' (Píulliji£en l&M), pág. 118 mb. C'Di« Frage nach der Tbohaik" (19.53). pág. 163 a». ("Dm Diog (1950); "Iden tltâ t und Differeoi” (Píuilimcm 1957), pá*. 25 w.

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qualquer aparellio produzido pela técnica perfeita de nossos dias, como seja um avião a jato, um foguete espacial que coloca um satélite em órbita ao redor da terra, ou uma máquina de calcular eletrônica (da qual algumas pessoas chegam a afirmar que é capaz de pensar por si), tem um efeito bem mais conRpícuo e de fato "força” a natureza. Existem pessoas que julgam que o ta ­lento e o esfôrço que o inventor tem de gastar na construção de um dêsses aparelhos diabólicos exercerá algum dia qualquer ação nefasta sôbre a humanidade! Ainda que se não tenha em vista o uso e o abuso militar dessas descobertas, as reações sociológicas que inevitàvelmcnte suscita a tócnica sempre mais desenvolvida das máquinas são de temer, e sem sombra de dúvida já se fize­ram sentir. Os homens perdem aos poucos a liber­dade que no decurso da história tão denodada- mente conquistaram para serem absorvidos inexora­velmente pelo coletivismo, como uma “engrena­gem” na monstruosa máquina socialista.

Pode-se acrescentar que não havia outra es­colha. O enorme aumento da população na Eu­ropa no decurso do século x ix obrigou a uma evolução técnica em etapas forçadas, o que teria sido evitado apenas se ela se trvesse conformado a descer até o nível de vida das populações asiáticas, realmente insuportável. Mas com Heidegger se pode responder que é precisamente nisto que reside a necessidade inelutável (o “destino do ser”) do homem ocidental.

Quando se pergunta como e porquê se chegou a êsse estado de coisas, será necessário chamar a atenção para o papel desempenhado pelo pensa­mento matemático. É êle que torna possível a pesquisa analítica dos fenômenos naturais, sua decomposição em processos simples e controláveis38

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em mias causas, e assim a construçfio de aparelhos técnicamente mais perfeitos do que era capaz de produzir a cultura antiga que “nascia” da natu­reza. Foi preciso antes de tudo destruir e decompor os conjuntos naturais para conseguir que as fôrças da natureza agissem segundo a vontade do homem.

Em segundo lugar o pensamento matemático não é sòmente analítico, mas também construtivo, e construtivo de forma inteiramente conseqüente. Seu método fundamental, o cálculo, é um processo segundo regras bem determinadas que não per­mitem exceção, um processo de conseqüências inelu­táveis; depois que se escolhem livremente as regras de um cálculo estamos restritos a elas de modo absoluto. “ Na primeira escolha somos livre», na segunda escravos”. Um ta l processo leva sempre mais longe, para novas construções c argumentos.

Em terceiro lugar está ainda a idéia dos extre­mais. Alcançar o máximo com o mínimo dc meios, tal era já para Leibniz a lei da ação não só dos homens, mas também de Deus. Dêste princípio resulta a tendência para um sempre maior aper­feiçoamento dos aparelhos técnicos. Um conhecido provérbio diz: “O ótimo é inimigo do bom”. Uma tal tendência não é tão natural como hoje em dia nos poderia parecer. A Antigüidade, por exemplo, era muito conservadora nas coisas técnicas; e melhoramentos técnicos de grande estilo, como seja no tráfego, tais como a estrada de ferro e o avião consigo trouxeram, dificilmente são encon- tráveis. Na técnica guerreira algumas vêzes apa­reciam novidades, como os elefantes de guerra, mas nunca se chegou a mudanças tão radicais como a descoberta da pólvora no fim da Idade- Média.

A irrupção de tantas novidades no século xv n ê algo de notável. Nâo é preciso peusar no “apri-

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sionamcnto” de grandes fôrças naturais nas má­quinas, que então nem sequer tinham sido cons­truídas com êxito (embora o plano de Hrygcns de uma máquina a pólvora pode ser considerado prcdeccssor dos motores a explosão), mas cm descobertas tão simples como o telescópio c o microscópio. A simples justaposição de lentes, conhecidas há tanto tempo (vidros de aumento já havia na Antigüidade e óculos já sc usavam no século xv), abriu mundos novos, macrocosmos e microcosmos inteiramente desconhecidos até en­tão. (O telescópio foi descoberto por práticos ho­landeses desconhecidos; Galileu imediatamente os usou para fins astronômicos e Kepler formulou a teoria que os rege, ainda que não tivesse desco­berto a lei dos senos, mas sòmente uma aproxi­mação da mesma para o cálculo dos ângulos muito pequenos).

De nôvo perguntamos: O telescópio e o micros­cópio representam um “forçamento” da natureza, enquanto que a lupa e os óculos não o são ainda ? Ou o limite é ultrapassado sòmente pelo telescópio gigante de Monte Palomar, ou talvez já pelo grande instrumento de F. W. Herschel?

Está-se tentado a ver o critério do “forçamento” da natureza no fato de que novos instrumentos abrem um mundo inteiramente nôvo; assim pelo telescópio de Galileu ficaram visíveis as luas de Júpiter, de cuja existência antes ninguém jamais sonhara. Não entraria nesta classe, contudo, o teles­cópio náutico que não trouxe consigo uma revira­volta na navegação marítima; como tal deveria ser considerado o cronômetro náutico que se desen­volveu a partir dos relógios construídos por Huy- gens.

Voltando para o terreno das máquinas, vemos que o uso das primeiras máquinas a vapor para40

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tirar a água das minas da Inglaterra não foi umfato decisivo; elas simplesmente substituíram os homens e os animais em seu trabalho. Mas já as primeiras locomotivas a vapor trouxeram con­sigo uma verdadeira revolução nos transportes e na velocidade das viagens, que só se pode com­parar com a introdução do avião intercontinental de nossos dias. Igualmente a descoberta do navio a vapor possibilitou a renovação de tôda a técnica naval. Estas duas invenções transformaram costu­mes e hábitos milenares que se criam imutáveis.

Nestes exemplos vemos claramente o quo Hei- degger chama de forçamento recíproco (o “afir- mar-sc”) do homem e da natureza. O homem arrancou da natureza mistérios de cuja existência nem se suspeitava e libertou suas fôrças secretas (pensemos na eletricidade e na energia atômica!), as quais por sua vez reagem sôbre o homem, seus hábitos e sua posição na sociedade; e isto de ma­neira irresistível. Não no sentido que a natureza Be vingaria do homem, mas que aqui se nos revela uma influência necessária de uma sôbre o outro.

Não se pode negar que em tudo isto o pensa­mento matemático teve uma participação decisiva.

Sòmente êle torna possível o "forçamento”, e isto de maneira paradoxal, pela renúncia, como agora queremos explicar.

4. “Naturam renuntiando vincimus”Foi Francis Bacon que forjou o aforisma: Na-

tura non nisi parendo vincitur; uma variante en­contramos neste outro princípio: Naturam renun­tiando vincimus: pela renúncia vencemos a natu­reza. Por mais paradoxal que isto pareça, o processo para arrancar à natureza seus mistérios e pôr suas

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fôrça3 a nosso serviço é renunciar ao conheci­mento de sua “essência” . Esta idéia já se encontra em Galileu. Tendo trabalhado a princípio em Pisa como discípulo dos terministas parisienses (esco- lásticos do século xiv, dentre os quais os mais conhecidos sâo Buridano e Oresme), em Pádua (a partir de 1592) se afastou desta tradição medieval, renunciando a investigar as causas do movimento da queda e do tiro, para se limitar inteiramente ao decurso dêsses fenômenos. Embora tal renúncia fôsse em sua mente só provisória, trata-se contudo de um acontecimento de grande significação. Pois êste método paradoxal de penetrar nos segredos da natureza mais e mais porfundamento, renun­ciando a responder às questões que sempre tinham sido propostas (pense-se nas numerosas “causas” de Aristóteles), sempre de nôvo se mostrou fru- tuoso. Uma tal atitude favoreceu o conhecimento teórico e não só a prática. É isto que é notável, mas fàcilmente compreensível se se olhar de mais perto.

Aqui está o ponto em que a maneira especifica­mente matemática de pensar desempenhou seu papel. A “renúncia” tem por conseqüência uma limitação de respostas possíveis sôbre a natureza. Em muitos casos esta limitação, a impossibilidade de dar diversas respostas, se deixa precisar matemà- ticamente. Resulta daí que as possibilidades estru­turais do formular matemàticamente as leis da natureza são igualmente limitadas. A fórmula é sempre determinada c em casos extremos absoluta­mente imutável. Não 6 como se sòmente o pro­cesso, e não a causa, de um fenômeno fôsse repre- sentável pelos meios matemáticos, mas que outros conhecimentos a que se renunciou podem ser conhecidos positivamente por métodos matemá­ticos.42

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Êste fato aparecerá de forma particularmente clara quando se tomam em consideração as dife­rentes “teorias da relatividade” que no decurso da longa história da física viram a luz do mundo. Estas teorias sempre afirmam que certas coisas não podem ser concebidas de maneira “absoluta” c que sôbre elas nada se pode em princípio afirmar de absoluto. Daí se segue que as leis fundamentais da natureza devem ser invariantes relativamente a determinado grupo de transformações. E isto significa que deve haver simetrias correspondentes na estrutura das leis naturais e nas fórmulas mate­máticas que as exprimem. E isto de nôvo nos leva ao ponto de partida de nossas considerações que expuseram a tese básica dos pitagóricos.

Tal modo de pensar já se encontra no exemplo mais antigo que temos de raciocínio matemático, isto ê, na relativizaçâo dos conceitos “em cima” e “em baixo”, de Anaximandro. Como já vimos, segundo êle a terra paira no centro do muudo e “em cima” significa o que se afasta “da terra” e “em baixo”, o que se aproxima da terra em direção radial. Esta afirmação vale ainda hoje e permanece imutável quando se representa a terra como girando em redor de um eixo que passa pelo seu centro.

Esta concepção nos é hoje em dia tão evidente que raras vêzes refletimos no fato que ela não é clara assim. Na Antigüidade pensadores como Demócrito e Epicuro não partilharam desta opinião mas falaram de uma “queda” de átomos no sen­tido absoluto, e durante a Renascença os antípodas pertenciam ao reino da fantasia e eram represen­tados como sêres fantásticos agarrados na beirada do mundo, como cefalópodos e semelhantes.

Anaximandro, portanto, elaborou uma “teoria da relatividade” para os conceitos “em cima —

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em baixo” e lhes deu uma definição invariável relativamente às rotações da terra (onde o centro fica firme). Ao mesmo tempo todo o mundo, consi­derado da terra, recebe uma estrutura radial- 8imétrica.

Outro exemplo temos na relatividade do lugar e do movimento no espaço. Não nos é possível entrar nos pormenores desta questão que já existia na Antigüidade (sobretudo nas teorias do eleata Zenão). Chamamos a atenção sòmente para o assim chamado princípio de relatividade de Galileu (embora nâo fôsse ainda plenamente formulado por Galileu, e mais tarde fôsse usado por Huygens na dedução que daí fêz de suas leis sôbre o choque), a célebre discussão entre Leibniz e Clarke (que defendia a Newton) e as discussões posteriores entre Euler e Kant.

Na polêmica entre Leibniz e Clarke não se tra ta da invariança das leis mecânicas no movi­mento retilíneo uniforme de todo o sistema em consideração, pois sôbre êste ponto todos estavam concordes; mas, entre outras, da questão, que hoje nos parece um pouco grotesca, se Deus poderia ter colocado o mundo real em outro lugar do espaço absoluto c vazio ou se ainda agora pode mudar o lugar do universo. Leibniz declarava a questão tôda como absurda; não tem sentido falar de um lugar absoluto do mundo no espaço vazio. Clarke (e Newton) é de opinião inteiramente contrária.

Constatamos que a posição do Leibniz encerra uma teoria da relatividade do lugar; todos os lugares no espaço vazio eão iguais e impossíveis de distinguir, e portanto as leis da natureza são invariáveis com a mudança de lugar, o qual deve ser entendido não como um movimento concreto no tempo, mas como uma mudança de posição abstratamente concebida.

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Quanto à relatividade do próprio movimento, o problema foi muito discutido cm nossos dias e pode ser suposto como conhecido. As leis mecâ­nicas de Newton são invariáveis no movimento uniforme retilíneo, mas não nas rotações por causa do aparecimento da fôrça centrífuga. Contudo a rotação “absoluta” no espaço vazio não se pode representar concretamont-e. A dificuldade que daí surge já foi discutida 110 século xvxi (por Huygens e Leibniz) 0 depois no século xvm (por Euler e Kant) e no século xtx (por Mach e Andrade) sem que se tenha chegado a uma resposta satisfatória. Einstein em sua “teoria da relatividade geral” no século x x tratou do problema de maneira ra­dical e formulou matemàticamente as leis invari- antes da natureza que lhe dizem respeito. Mas esta teoria tão ampla não está ainda inteiramente esclarecida.

Com isto não chegamos ainda ao fim da evolu­ção. Na física atômica apareceram novos limites 110 conhecimento da natureza, os quais não podem ser interpretados simplesmente pelas teorias da relatividade. As assim chamadas relações de inde- terminaçâo de Heisenberg excluem a possibilidade de determinar ao mesmo tempo e exatamente lugar e velocidade (0 impulso) de uma partícula elemen­tar. A dupla concepção de tal “partícula” como corpúsculo e onda é a conseqüência necessária. Também estas relações de inexatidão impõem às leis fundamentais da natureza limitações que levam a condições de simetria nas equações diferenciais que as exprimem.

Outra coisa ainda se acrescentou nos tempos recentes: referimo-nos à existência de um “com­primento mínimo” (a partir de 10~13 cm), abaixo do qual não mais é possível a medição, de modo quo estruturas de dimensões menores de certa

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forma não podem mais ser consideradas como exis­tentes do ponto de vista físico(6). Esta limitação de conhecimento leva igualmente a uma “relação de simetria” nas derradeiras equações básicas. (Comparar com o que dissemos no cap. primeiro sôbre a “Fórmula do mundo” de Heisenberg-Pauli).

Não é aqui o lugar de apreciar criticamente tôdas essas teorias. O que mais tarde de tôdas elas ainda subsistir como integrado na história da ciência e o que será superado por novas teorias no futuro, não sabemos ainda. Mas queremos apontar aqui para um traço que lhes é comum e que é muito significativo: tôda negação de certo conhecimento traz consigo a conseqüência de impor às leis matemáticas fundamentais da natureza rela­ções de simetria, explicando-as desta forma sempre mais plenamente. Isto significa que a tão freqüen­temente afirmada contingência das leis da natureza cede lugar a uma espécie de necessidade, que se poderia chamar de necessidade pitagórico. O mundo se parece assim, não com uma “flor”, como se diz nos belos versos de Platen sôbre a visão do mundo de Schelling(7), mas com um cristal.

Com isto já tocamos num outro problema, o da realidade.5. O problema da realidade na Jísica clássica

Não nos incumbe entrar aqui nos pormenores do problema da “ realidade” em tôda a sua ampli-

(d) Podcr-so-ia apontar neste contexto para a assim chamada “idade do mundo" (que segundo alguns st*ria d*4 -5 bilhões de anoa, ou do 8 bilWVes segundo outros). Antes dôstç tempo, conforme alguns ífaicoa, nâo *6 nâo havia mundo nem açontopimçntcw, ma» nem aequer tempo; seguindo a Agostinho (que dependia do “T im eu" de Platão) afirmam que o tem po foi criado juntam ente com o mundo.(7) Em um soneto dedicado a &nhclling dia o autor:" IF é iw tw r *er8Ít4*cfc<«íí nur die W eli empjangen,S téh il du 4ie ganx, vrie von dem Bcrgea Spilze;W uê w ir zcrpjlueckt m il un term armen W itu ,Da* i*t a fs Blum c por d ir awJotffanffirí’.

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dão. Não podemos expor em tôda a sua extensão a velha controvérsia entre realismo e idealismo, já que hoje em dia esta questão parece estar de pre­ferência restringida à questão da "existência inde­pendente” de outros homens ("outros eus”). Para nós êste problema é de importância só enquanto tem conseqüências para a ciência da natureza. Não tomaremos, portanto, nosso ponto de partida da problemática “filosófica” , mas daquela que re­sulta de tôda a evolução da física (no sentido mais amplo).

Como vimos, a ciência exata da natureza se originou de diferentes fontes. A astronomia, pri­meira ciência exata, desde o comêço se ocupou de objetos — os astros — que não fazem parte do ambiente imediato do homem, que portanto não possuem um caráter real tão imediato como as coisas com que lidamos todos os dias. Não pode­mos tratá-los como tratam os uma mesa ou uma cadeira, chapéu, manto, arado, barco, espada e escudo. A grandeza e a distância dos corpos ce­lestes só dificilmente pode ser comparada com a grandeza e as medidas de nosso próprio corpo e com as distâncias que nos são familiares.

Em poucas palavras: os objetos que constituem o campo de pesquisa da astronomia (sol, lua, es­tréias) são puros fenômenos e como tais estão ao nosso alcance, mas não podemos vê-los e tocá-los com as mãos. As coisas que nos cercam e com que lidamos todos os dias, que estão ou que podem estar ao alcance de nossas mãos, que estão “pre­sentes”, estão aí como sendo nossas, ou ao menos como atingíveis.

Só muito mais tarde e com muito maiores difi­culdades a ciência exata começou a se ocupar das coisas que nos estão próximas. A Antigüidade clássica conseguiu alguns resultados sòmente no

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terreno da física estática e um pouco no da ótica e acústica (neste sòmente na doutrina sôbre a har­monia musical). A “física” de Aristóteles era pouco inclinada a pesquisas quantitativas exatas; a cate­goria da quantidade aí aparecia ao lado de outras categorias, (como substância, qualidade, relação), ocupando um lugar bem modesto. No mundo que estava abaixo da esfera da lua, as leis da natureza não tinham valor exato e preciso, mas eram tão sòmente regras estatísticas, dificilmente determi- náveis, “assim como as coisas freqüentemente, ou em geral, são” . Sòmente no século xvn com a mecânica de Newton, que tanto vale para os pro­cessos terrestres como para os celestes, a física se tornou uma ciência universal; sòmente então o pensamento matemático perpassa todo o mundo e o faz objeto da pesquisa exata.

Quanto à teoria do conhecimento, na Antigüi­dade nunca se chegou a formular uma teoria idea­lista no sentido moderno da palavra. Nem a explicação dos eleatas nem a de Platão sôbre as coisas sensíveis como sendo meros fenômenos, que nâo existem no sentido próprio, nem o ceticismo dos tempos hclenísticos, podem ser interpretados como sendo idealismo. Descartes foi o primeiro que começou a raciocinar de um ponto de vista subjetivista, com sua célebre meditação sôbre a dúvida metódica; mas acabou por decidir-se pelo realismo. Berkeley é o primeiro idealista genuíno com o seu ‘‘esse est percipi”; sua atitude diante da ciência exata de seu tempo é só parcialmente negativa. Em seu escrito “De motu” êlo critica a doutrina de Newton sôbre o espaço absoluto do ponto de vista empirista e no “The Analyst” critica violentamente o cálculo do fluxo.

Voltemos à ciência exata e perguntemo-nos sôbre o conceito de realidade que está na sua base.48

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Como acabamos dc ver, na Antigüidade jus­tamente os objetos “ terrenos”, tão acessíveis aos homens e de cuja realidade nem a filosofia peri- patética, nem a cstóica ou a epicúrica jamais du­vidaram, estavam subtraídos à pesquisa exata. (Por esta razão algumas opiniões éticas da Anti­güidade não têm importância para a nossa ques­tão). O terreno da astronomia, o único a que se aplicava a ciência matemática exata, é, ao con­trário, problemático quanto à espécie de reali­dade que se lhe deve atribuir. Para Platão e Aristóteles os astros são uma espécie de sêres di­vinos cuja “matória” é distinta da dêste mundo. Havia também outras opiniões como as de Anaxá- goras, Demócrito e Epicuro; mas estas não podiam ser formuladas de maneira satisfatória do ponto de vista da matemática e por isto não constituíam sérias teorias concorrentes(8).

A realidade própria dos astros era, portanto duvidosa. Isto teve como conseqüência que na astronomia antiga e medieval se formaram duas tendências: uma, puramente matemática (melhor: cinemática), que se limitava a analisar os com­plexos movimentos dos planetas no céu, compostos de movimentos circulares uniformes (anàlogamente ao desenvolvimento de uma função em série trigo-

(8) B. L . wan der Warrdtn expG» longamente por que a conccpçllo platónlco-aristotllica. quo em áUitna análise depende doe pitagóricos. á superior do ponto dc vista matemático à concepç&o anaxssórico-democritica (Die Antronomie dtr PyihafforMr, pág. 13*15). Anaxágoras decompóe o movimento anual do sol (e anàlogamente o da lua) numa componente paralela ao equador celeste e numa que 6 paralela ao eixo celeste. Isto ê possível do ponto de vista cinemático, mas aom conseqüências astronô* minas. De fato. ambas as componentes s io explicadas de maneira dife­rente do ponto de vista dinâmico: a primeira pela revolução do éter, a ou tra pela resistência oferecida pelo ar frio do Norte que obriga o sol a "virar-ee” , isto é. voltar para a proximidade do equador. Não wi explica eorao os movimentos das duas componentes se relacionam entre si, isto ê, o fato de o sol depois de um ano voltar, nfto para a mesma órbita, mas também para o mesmo signo do soiíaco. À concep^lo pitagóriea, ao contrário, pelo fato de afirmar que o sol possui movimento próprio na •líp tica de oasto para leste (isto é, contrário ao movimento diário das estréias fixas), explicava ob fenômenos corretamente.

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nométrica(9), sem se importar do mecanismo físico que tornasse possível aqueles movimentos; a outra tendência se orientava mais no sentido físico, e tentava descrever o mecanismo físico e as causas dos processos, descritos pelos matemáticos do ponto de vista puramente cinemático: êstes, portanto, se preocupavam com pesquisas dinâmicas. O pri­meiro método é empregado por Cláudio Ptolomeu no "Almagesto”, o segundo na “Hypothesis pla- netarum” do mesmo autor.

Esta dupla concepção, que tornava fácil falar em “hipóteses” astronômicas no sentido do pri­meiro método, pelo qual se podem calcular tabelas de planetas em cuja verdade não se precisa acre­ditar, teve sua importância ainda durante a Idade Média e mesmo nos séculos xvi e xvn. Assim, por exemplo Osiander, editor póstumo da obra principal de Copérnico “De revolutionibw”, con­cebia o sistema heliocêntrico dêsto como simples hipótese. Tycho Brahe, Keplcr e Galileu, ao con­trário, estabeleceram sistemas que deviam também ter valor físico. No processo de Galileu isto teve sua importância: O Cardeal Belarmino lutou sem resultado por uma interpretação hipotética do sistema(lO). O progresso ulterior das ciências no século xvu mostrou, pelo sistema da mecânica celeste de Newton, que a tendência “hipotética” nâo mais correspondia ao espírito do tempo.

(9) Havia ainda oa método» ' ‘lineares" dos babilônios ((empo helenls* tico), empregados ifualm snte por aatrckiomos gregos, como se pode ver no ‘'Aaaphorikos" de HipaUdea e no "Tetrablblo*" do PtoJomcu. Êsioa s io nemalhantea ao» noasoâ métodos de desenvolvimento em séries do potências,

(10) Vld. a rxpo*içllo de E. J . Dijk$terhuii no livro “ Díe Meckanl- eierunfc doa Weltbildes” (Berlim-Goottingen-Heidelberg 195fl), págs. 69-77 (Antigüidade), 23Ss., 239-243 {Idade Média). 304 ss. (Renascença), 320 es. (Copémiao), 334 as. (Tycho), 337 ss. (Kepler, sobretudo págs. 343-349), 424-429 (Galileu). Vld. igualmente O. jY#w6«u*r, The Kxact Sciences in Antiquity (Providence, [Rhodo IsJand] *1957), págs. 204-206.

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Trata-se, portanto, da realidade física dos corpos celestes e de seus movimentos. A separação funda­mental entre o mundo terrestre e o mundo celeste está definitivamente superada; a mesma matéria constitui as estréias e a nossa terra, as mesmas leis mecânicas valem para todos os corpos. Mas surge uma nova dificuldade que diz respeito à natureza das fôrças que movem os planetas em suas órbitas e fazem cair os corpos pesados na terra. Trata-se da fôrça centrífuga e da gravitaçáo (resp. a gravidade terrestre). A fôrça centrífuga é uma fôrça aparente que resulta da inércia da matéria, como explicou Huygens. A gravitaçáo, contudo, é uma fôrça distante que opera instantâ- ncamente, e como tal é explicada por Newton em seus “Princípios”. Sua natureza permaneceu enig­mática e ninguém dentre os contemporâneos de Newton (como Huygens e Lcibniz) e nem sequer o próprio Newton se contentavam com a concepção da gravitação como fôrça distante, apesar da utili­dade que do ponto de vasta matemático daí pro­vinha, como brilhantemente o demonstrara Newton. Huygens em todo o caso foi o único que estabeleceu uma teoria quantitativamente determinada de ação de contato da gravidade, pelo menos da gravidade terrestre, teoria geiúal que já como a teoria dos turbilhões de Descartes (que entretanto não fora elaborada a ponto de poder ser traduzida em têr- mos de matemática) reduzia a gravitação à fôrça centrífuga de uma matéria muito subtil que gira em redor da terra (e dos outros astros respectiva­mente).

Não podemos agora entrar em pormenores; o importante é que vejamos o motivo que domina esta teoria da ação de contacto, como também a teoria de Huygens sôbre a luz (a luz é um movi­mento ondulatório longitudinal, o que torna com­

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preensível a dispersão das fontes luminosas): todos ê6ses fenômenos são reduzidos à pressão e ao cho­que de corpos que se tocam. (Huygens, mesmo depois da tentativa fracassada do Descartes, conse­guira deduzir as leis oertas do choque, do “principio de relatividade de Galileu”(ll) . Pressão e choque eram conceitos familiares a todos e pareciam não necessitar de ulterior explicação. Parecia que de fenômenos até então inexplicáveis se poderia fa­bricar modelos mecânicos nos quais não haveria nada mais de misterioso.

Esta teoria da ação de contacto fôra elaborada com o auxílio de diferentes corpúsculos c surgiu então a questão sôbre a espécie dc realidade dessas partículas e com isto da própria matéria. Chegou- se, assim, a começar por Galileu e Descartes e pela ressurreição das idéias dos antigos atomistas, à distinção de duas espécies de qualidades, chama­das mais tarde por Locke de “primárias” e “secun­dárias” . Número, extensão (grandeza), forma e movimento são qualidades primárias, enquanto que côr, som, cheiro e gôsto são secundárias. Deter- mináveis (mensuráveis) com exatidão são sòmente as primárias que representam também aquilo que pròpriamente é objetivo nas coisas materiais. As qualidades secundárias, ao contrário, são uma es­pécie de engano dos sentidos, sujeitas às proprie­dades de nossos órgãos sensitivos e, portanto, sim­plesmente subjetivas. Partindo desta distinção a extremada tendência mecanicista do século xvn, representada sobretudo por Descartes e o “carte- siano” Huygens, recebeu uma espécie de funda­mento filosófico. Esta física totalmente mecânica se contentava com as qualidades primárias e igno-

(11) Vid. DijktUrhuU, loc. cit. pág. 401 a. (teoria de Descartei sôbre o turbilhfto doa planetas), 514-518 ^Teoria de Huygeos sôbre a lu i e a gravidade), 416-420 (Leia do choque de Huygens).

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rava todoe os oonceitos de outra origem. Ignorou portanto, também, o conceito de fôrça como sendo primário e fundamental; era concebido como depen­dente das sensações subjetivas do esfôrço mus­cular, a partir de onde era formado. Natural­mente também os princípios “metafísicos” básicos de Aristóteles, potência e ato, bem como as quali- tates occuliae dos escolásticos eram desprezados.

Por mais que Newton tentasse libertar-se da tradição medieval não o conseguiu inteiramente, como é fácil demonstrar por uma crítica dos funda­mentos de sua mecânica do ponto de vista mo- demo.(12) Julgava insatisfatórias as teorias meca- nicistas extremistas de seu tempo, como a de Huygens, pois trabalhavam com corpúsculos desco­bertos "ad hoc” e não observados, e apelavam para teorias complexas para "explicar” os fenô­menos, teorias que só serviam ao fim intentado. No “Scholium generale” acrescentado aos “Prin­cipia” estabeleceu a célebre sentença” : “Hypo- theses non jingo”, aludindo ãs hipóteses forjadas pelo espírito cartesiano. Já no início de seus “Prin­cipia” (livro I, definição 8) afirmara considerar as forças aceleradoras da gravitação como "fôrças não no sentido físico, mas matemático” ; não quer explicar “o modo c a maneira de sua ação, nem sua causa física” . Bastava-lhe poder deduzir de suas leis universais do movimento e da lei da gravi­dade os movimentos observados dos planetas e das marés.

Apesar disto Newton não elaborou um conceito “nominalista” de fôrça; nem dejiniu a fôrça como produto de massa e aceleração. Chegou até a chamar do "absurdo” a admissão de uma

(13) Vid. DijktlerKuit, loc. cit. pdga. 619-533.

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fôrça de atração física que age à distância(13), concedendo que nâo podia dar uma explicação da gravitação. Para êle aa fôrças distantes são reali­dades físicas que por enquanto nfio se podem ex­plicar, mas que produzem movimentos reais de impulso.

Ora, o desenvolvimento ulterior tão intenso da física nos séculos xv n i e x ix tomou seu ponto de partida desta base, conceitualmente tão pouco clara. As “qualidades primárias” de número, extensão, forma, movimento (que sòmente torna­vam possível uma descrição cinemática da natu­reza) foram completadas pela nova qualidade da inércia e foram acrescentadas como princípios expli­cativos ulteriores algumas fôrças que agiam à dis­tância mas que dependiam do um lugar. Sôbre esta base foi possível desenvolver durante os séculos xv in e x ix as teorias do potencial, do turbilhão, etc. (Lagrange, Laplace, Poisson) e a elaborar não só a mecânica celeste mas também a teoria das fôrças de atração elétricas e magné­ticas (Coulomb, Green, Gauss e outros).

Mais tarde foi necessário abandonar na eletro- dinâmica a teoria das fôrças centrais à distância e fazer depender a fôrça existente entre duas cargas elétricas, em movimento não só de sua distância mas também de sua velocidade e aceleração (Leis de Weber). T5 verdade que o conceito de fôrça à distância ainda se conservou, mas foi necessário aceitar a limitação da velocidade de dispersão da ação dinâmica. Isto obrigou finalmente a uma modificação radical: volta à teoria do efeito próxi­mo no campo elétrico (Faraday, Maxwell). Com isto se originou um nôvo desenvolvimento muito

(13) Num» curta a Hichnrd Bontley (L. T . Mora, Iaiae Newtoo. A Biogruphy. Now York-London 1934), pág. 379); DtjktUrhui*, l.c. p . 505.

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importante na física teórica e prática que também colocou, novamente, o problema da realidade. Chegamos assim aos umbrais da física moderna no sentido próprio do têrmo.

6. A física moderna e o problema da realidade

Costuma-se datar do ano de 1900 o nascimento da física moderna, quando M. Planck propôs a teoria dos quanta c quando um pouco mais tarde (1905) A. Einstein formulou a teoria da relativi­dade restrita; passo decisivo para nova orientação é considerado o aparecimento de concepções para­doxais e contrárias às idéias costumeiras sôbre a realidade física. Muito conhecida neste sentido é a relatividade da simultaneidade na teoria da rela­tividade restrita (1905) e o dualismo de onda e corpúsculo na teoria dos quanta (1927). A cons­ciência pré-científica parece contraditório o fato que dois acontecimentos distantes devam ser consi­derados como simultâneos de um posto de observa­ção, e nâo-simultâneos de outro posto. Parece igualmente uma contradição a afirmação que uma “partícula elementar” , conforme o processo com que a observamos, ora deva ser concebida como onda, ora como corpúsculo.

Esta evolução da física no século xx já foi preparada bem antes nos pontos essenciais. Vimos como o simples sistema de Newton sôbre as fôrças centrais, que só dependem do lugar, teve que ser abandonado na eletrodinâmica e reduzido a uma teoria de ação de contacto. Isto constituía aparen­temente uma volta à opinião pré-newtoniana, “car- tesiana” , do século xvir (Huygens). Mas as apa­rências enganam. A nova época da açfto de con­

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tacto — começando pela eletrodinâmica — não significa uma volta a concepções anteriores, mas algo de inteiramente nôvo.

Quando J . Cl. Maxwell empreendeu a análise matemática da teoria das linhas de fôrça de Faraday (a partir de 1855), empregou em uma de suas expo­sições decisivas de 1862(14), na qual estabeleceu a assim chamada “corrente de deslocamento” , um modêlo mecânico para demonstrar suas equações mais importantes c no qual aparecia o estado de tensão do campo elétrico. Êsse modêlo tinha uma função heurística, mas não podia ser considerado como probativo e o próprio Maxwell mais tarde o abandonou (em seu manual completo do 1873). Ora, sucedeu o seguinte: Maxwell chegou a formu­lar um sistema de equações de campo altamente simétricas (o que sucedeu sobretudo depois que Hertz o completou em 1890), o qual, embora não fôsse interpretado mecânicamente(15), por si mesmo e por causa de seu caráter harmônico e quase estético, tinha uma patente evidência interna. Tais são as célebres equações das quais Hertz disse que eram mais inteligentes que os homens que as descobriram.

O grande significado da aceitação das equações de Maxwell está em que a mecânica clássica perdeu seu caráter de baso única da física c que a eletro­dinâmica foi estabelecida independentemente sôbre as bases daquelas equações. A evolução ulterior (que não podemos descrever pormenorizadamente) chegou ao ponto de deduzir a mecânica da teoria

(14) Philoa. Mhpmíti (4) 23 (1862) pí*. 12. Vid. M. v. Lane, G eechicht* d e r P byw k, CBonn 1947) r á f - 63-64.(15) E sib ldo que doa equações de Maxwell se eejjue a cxiat^ncia da« onda» olétrluaa; também aa ondas luminosa* polem ser assim compre­endidas. À inaufhtdncia dos oonoepçõea inocanfstii'*a já se manifestara anteriorm ente no terreno da ótica. Lm 1817 Th. Younfc com o auxilio de lu i polarizada reconhecera a transvcrsalidnde das osidan himinonaa, enquanto que aa ondas luminosas de líuygeaa eram longitudinais. Êase fato era Inexplicável mecanlsticamente. pois ondas transversais elásticas só podem aparecer em corpos sólidos.

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da relatividade restrita da eletrodinâmica, pelo fato de que a velocidade da luz, uma grandeza dedu­zida da eletrodinâmica, foi estabelecida como velo­cidade limite de todos os movimentos. Isto tem conseqüências muito importantes no terreno da cinemática pura: a regra clássica e quase evidente da adição e subtração das velocidades de mesma direção já não valia, embora isto só se fizesse notar em velocidades muito altas, comparáveis à da luz.

Enquanto a mecânica galileico-newtoniana con­tinha um princípio de relatividade segundo o qual as transformações que deixam invariáveis as leis mecânicas (traaslações uniformes) não modificavam as acelerações, mas sim as velocidades, c onde o tempo não era igualmente transformado, a teoria da relatividade restrita tem como postulado funda­mental a constância da velocidade da luz (e não só a aceleração). Isto tem como conseqüência a trans­formação simultânea da coordenada do tempo, isto é, a relatividade da simultaneidade do posto do observador (tratando-se de dois pontos que se movem em direções opostas), bem como a redução das dimensões do espaço na direção do movimento e o alongamento do tempo para corpos que se movem na direção do observador.

A transformação de que se fala nesta teoria, a assim chamada “transformação de Lorentz”, é do ponto de vista matemático de grande simplici­dade e simetria: no fundo nada mais é que a rota­ção do sistema das coordenadas quádruplas da "união quadridimensional de espaço e tempo" (Minkowski, 1908). Neste processo a coordenada “tempo” deve ser acrescentada imaginàriamente, ou então é necessário, se se quer ficar dentro da realidade, recorrer a uma transformação afim, análoga à rotação, só que em lugar da esfera inva-

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riante entra um hiperbolóide de duas folhas(16). Nesta "métrica indefinida” ou "geometria pseudo- euclidiana” aparece o papel especial do tempo ao lado das dimensões do espaço, que nfio podem ser identificados inteiramente. Dc fato, nada de semelhante ao duplo aspecto de passado e futuro encontramos nas extensões espaciais.

Não se deve deixar de apontar para o fato que o esquema relativístico das relações entre espaço e tempo — onde desaparece a simultaneidade que se estende através de todo o espaço, i. é. a onipre­sença fenomenal do espaço (que aparece como omnipraesentia phacnomenon) para ser substituída pelos campos separados do passado passivo e do futuro ativo (na representação de Minkowski dois cones que só se tocam em seus vértices, que repre­sentam o presente) — corresponde melhor ao fenô­meno concreto da vida real do que a concepção newtoniana clássica de espaço-tempo. O "passado passivo’' abrange todos os acontecimentos que agem sôbre mim e dos quais posso receber alguma coisa, enquanto que o “futuro ativo” contém os fatos sôbre que posso influir ainda, ou mais tarde. Os primeiros correspondem, portanto, ao “mundo da observação” (Merkwelt), o segundo ao “mundo da ação” (Wxrkwelt) de um ente vivo, na teoria do ambiente de von Uexkuell; de fato, o processo de um estímulo nos nervos sensoriais e de um impulso nos nervos motores se verifica com uma velocidade determinada e não muito grande. O mesmo aparece mais claramente ainda na situação em que se achava um general antigo quando as notícias de e para o front levavam muito tempo. A admissão de uma onipresença instantânea vale

(16) l&itas expresafea bo limitam a dane dimensões espadais e ao tempo. Quando entra a terceira dimensSo espacial, cia» devem ser esten­didas anàlogamcnto a uma variedade quadrklimenslonal.

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para um observador, mas não para um homem ativo.

Esta concepção de Minkowski, que pretende substituir o tempo e o espaço por uma “união” quadridimensional de ambos, leva a um nôvo pro­blema a respeito da realidade. Surge a questão do que é real no mundo físico: a união quadri­dimensional de espaço-tempo, ou suas “projeções” espaciais tridimensionais, isto é, sua divisão em “aspectos” espacio-temporais, dos quais a cada instante aparece um só dêles, enquanto nós “vive­mos” arrastando-nos ao longo de nossa “estrada da vida”(17). Em outras palavras: A “união” (ou o “mundo”) de Minkowski nada mais 6 que um artifício; um modo elegante de exprimir por meio da teoria da relatividade fatos reais? Ou esconde-se atrás dela algo de mais profundo, como seja a substância mesma de todo acontecimento? Os vectores quádruplos e sêxtuplos do “mundo” quadridimensional representam a descrição ade­quada do fato físico? Representam êles a reali­dade invariável, assim como um corpo real tridi­mensional em suas perspectivas bidimensionais (“sombras” , como diz Husserl) constitui aquilo que 6 real e se mantém na “corrente dos fenômenos” ? E finalmente: esta nova física relativista fala em favor de uma teoria do conhecimento realista ou idealista ?

Não cremos que a teoria da relatividade res­trita nos obrigue a aderir a uma concepção gnoseo- lógica determinada. Pode ser compreendida tanto idealística (no sentido neo-kantiano de E. Cas-

(17) É preciso notar que o “fluxu* temporia” n to en tra na imagem quadridimenâãanal do mundo eapaço-tempo do Minkowski, spesar do lugar que o tempo ocupa como coordonada imaginária. Mesmo uma geometria quadridimensional com unia métrica indefinida n&o 6 capaz do incluir o fenômeno fundamental do “agora" c do “ nflo mais'*.

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sirer(l8), como reallsticamente. Pode-se dizer que no processo do conhecimento que se verifica du­rante o “fieri” de uma teoria física são formados pelo intelecto os objetos quadridimensionais; mas pode-se também dizer que sempre existiram inde­pendentes do saber humano, embora nunca se tenha conseguido compreendé-los no passado. O que é decisivo e absolutamente não depende de qualquer posição gnoseológica é a parte matemá­tica na teoria física, isto 6, a exigência de invaria- bilidade, que é o que há de mais importante em cada teoria, numa palavra a simetria demonstrada pelas fórmulas matemáticas empregadas.

O velho princípio da relatividade de Galileu aparece como um caso-limite, um caso “especiali­zado” ou “degenerado” (como dizem os matemá­ticos) que entra em questão quando a velocidade de transmissão dos sinais mais rápidos se torna infinita. Portanto, a velha teoria se torna mais compreensível através da nova. Também aí aparece o papel dominante da matemática.

Quanto à teoria da relatividade geral, não nos é possível entrar nos pormenores dos problemas que ela envolve (como a questão da estrutura especial da medida e da volta aparente ao “movi­mento natural” dos corpos celestes e dos corpos que caem livremente, no sentido aristotélico). Queremos contudo notar que precisamente nesta teoria, em que a invariabilidade das .leis da natu­reza desempenha um papel muito importante para um muito grande grupo de transformações (tôdas as transformações continuas), o elemento matemático tem absoluta predominância. Isto aparece muito claramente da exposição autobiográfica que o

(18) Vid. Jf. Cawi*6T, Zur Eituteiiucheii ReUÜvit&cUtheorie. Erkonnt- niitheoretbabc Itotrachtungon (Berlim 1921).

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próprio Einstein fêz sôbre a origem do sua teoria(19). Einstein, para poder abranger igualmente a gravi- tação dentro da nova imagem da natureza ofere­cida pela teoria da relatividade restrita, 80 viu forçado a elaborar uma teoria da ação de contacto, isto é, uma teoria do campo da gravitação. Se uma teoria não só devia abranger o campo vazio mas também as massas gravitacionais (que deviam aparecer como as singularidades do campo), então as equações diferenciais do campo não mais podiam ser lineares. Ora, para descobrir na imensa massa das equações possíveis as que eram certas, era necessário aplicar um princípio de seleção muito severo. Tal princípio foi encontrado na exigência de invariança para (Mas as transformações con­tínuas; ora, temos aí um grupo que é muito mais amplo que o grupo das transformações de Lorenz que estava na base da teoria da relatividade res­trita.

Queremos lembrar mais um ponto da teoria da relatividade geral, que foi muitas vêzes discutido em amplos círculos; trata-se da aplicação da geome­tria não-euclidiana (de Riemann) à física para descrever a estrutura real do espaço físico real. Os matemáticos sabiam desde Gauss, Bolyai, Lobatchevski e Riemann que do ponto de vista puramente matemático é possível imaginar muitas formas de espaço, das quais a forma antiga e tradicional, a euclidiana, é sòmente uma das possi­bilidades. J á em 1854 Riemann afirmara que uma estrutura espacial de métrica contínua devia ser procurada em “fôrças que sôbre êle agem e in­fluem”. Segundo H. Poincaré a geometria de um espaço iísico é optativa até um certo grau,

(19) No Urro: "Alb»rt Einstein: Philo«opb#r-8olen»l*t", e<l. por P. A . Scküpp (New York 1919), pág. 62 * .

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mas a escolha deve ser feita por motivos racionais, dentre os quais a simplicidade e a conservação das simetrias que aparecem nos fenômenos físicos, são os mais importantes. Assim, não é arbitrário mas racional conceber os raios luminosos e as trajetórias da inércia como aa linhas mais curtas (geodéticas), isto é, como “as trajetórias mais retas”. Isto levou Einstein em sua teoria da rela­tividade geral a conceber o campo das fôrças iner- ciais e gravitacionais como "campo métrico” , pela consideração da igualdade entre massa inerte o pesada; e êste "campo métrico” determina a geometria do espaço, respectivamente da varie­dade quadridimensional espaço-tempo. Daí resulta que o espaço é "curvo”, usando de uma expressão não muito exata, tirada da analogia com uma superfície curva.

Do ponto de vista matemático puro não há nisto a mínima dificuldade; pois a maneira de exprimir, um pouco paradoxal, pode ser compre­endida como meramente simbólica c daí se passa a calcular algébrica e anallticamente naquela varie­dade quadridimensional. Mas concebida como reali­dade física, aquela teoria nos obriga a abandonar concepções tradicionais e aparentemente evidentes a priori. Ê certo que é possível oferecer algumas analogias com os espaços não-euclidianos, como as que se verificam sôbre superfícies curvas (p. ex. sôbre a curvatura da terra), mas tais analogias não nos levam a compreender realmente um espaço tridimensional não-euclidiano, como é, por ex., o globo terrestre. Pode-se descrever os fenômenos (como já Helmholtz o demonstrou), tais como êles se apresentariam òticamente num espaço "curvo” (segundo Helmholtz se assimilariam ao "mundo” que se imagina contemplar refletido “dentro” de uma bola de metal), mas tais fenômenos seriam62

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considerados como distorções do espaço "normal” e se estaria tentado a explicá-los não geométrica mas fisicamente. De fato, existe uma norma para nossa concepção do espaço, por mais incômoda que tal afirmação possa parecer aos físicos e filósofos empiristas. Mas por outro lado, a norma eucli­diana de nosso espaço intuitivo não nos obriga a afirmar que o espaço físico é igualmente eucli­diano. Pois o espaço intuitivo pode ser explicado como espaço tangencial do espaço físico "curvo”, cujo ponto de contacto talvez coincida com o posto ocupado pelo ohservador(20). Assim o homem simples de antigamente julgava a terra curva como sendo uma superfície plana.

O fundamento da norma espacial euclidiana parece ser a seguinte: em nossa observação con­creta do espaço, estamos (qualquer observador) no centro do espaço cujo sistema natural de coorde­nadas não é o conhecido sistema cartcsiano de três eixos perpendiculares e as coordenadas x, y, z (três segmentos), mas um sistema de coordenadas polares em cujo ponto-origem estamos nós. Temos assim as coordenadas r, phi, theta; onde r designa o raio, a distância de um ponto à origem, enquanto que phi e theta representam os ângulos de uma direção zero-convencional com um eixo e com a direção da origem ao ponto visado.

Isto quer dizer que não temos três coordenadas do mesmo gênero (x, y, z), (todos segmentos mas dois gêneros de coordenadas das quais a primeira (r) designa um segmento que dá a profundidade espacial (i. é, a distância), enquanto que as outras duas, os ângulos phi e theta, são coordenadas de

(20) O ô*paco portanto aparece como uma hiperauperflcie, ou mais exatamente: o "m undo" quadridimenaional se torna uma hipersuperfloi* quadridimensional. que ae pode repreaentar como contida dentro de um etpaço euclidiano de diroensfto «uperior.

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direção. Ora, do ponto de vista do observador, êsses dois gêneros de coordenadas podem variar independentemente um dos outros, pois do ponto do vista fenomenológieo êles são qualitativamente distintos, como altura de tom e intensidade. Daí se origina uma "independência da direção quanto ao lugar” (como se exprime Riemann) e tal é a característica do espaço euclidiano(2 1 ).

Existe também um argumento de ordem total­mente diversa em favor do espaço euclidiano que vem já de F. A. Taurinus (1825)(22). Recordemo-lo aqui, já que é de natureza claramente filosófica. Taurinus parte da tese kantiana que o espaço ó uma simples forma dc percepção a priori, "a sim­ples forma dos sentidos externos”. Observa então que em razão dessa aprioridade a forma não pode ter uma constante empírica determinada. Ora, sòmenle o espaço euclidiano (entre tôdas as formas de espaço que poderiam concorrer com êle) está totalmente livre de tais constantes quo não podem ser matemàticamente determinadas a priori, isto é, que poderiam ser deduzidas da observação empí­rica. (À medida de sua curvatura ó zero em qual­quer ponto). Também nas formas espaciais mais próximas da euclidiana, as que afirmam uma me­dida constante de curvatura, esta medida de curva­tura (o "raio espacial” recíproco) não está deter­minada a priori, mas deve ser deduzida do mundo real por meio de observações ou a partir de hipó­teses físicas; muitos físicos admitem hoje em dia um raio espacial de três bilhões de anos-luz (23).

(21) U m a explícaçSo m a is d e ta lh ad a pode «cr e n co n trad a em O. B tc k tr , B ü ítraece i j r pluum om enolocúchen B egn ien d u n g d er G eom etrie u n d ih rerp h y sík a lU ch en A n w en du n gen .em : J a h ib u c h fu c r Philoaophic und phaênotnenologi»ciw Forachung (ed . p or E . H usaerl), VI (1923), p í * . 38fi m ; B ttk e r , D íe apriorische S tr u k tu r de« A ruch& nungiraum o», w n : Philoso- phiaolw r A nzciger, IV (1930) p ág s . 129-182.

(22) V id . G M , p i e . 183 Bs.(28) V id . F . »«n W tiu a e c k tr , D ie G ow bich t» dor N a tu r (G o e ttiaeen ,

(1954). p á g . 130.

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O argumento de Taurinus, na forma que lhe deu, só é aceitável para os seguidores da concepção kantiana de espaço. Mus 6 possível generalizá-lo e dizer: se o espaço é totalmente “indiferente" a seu conteüdo, sendo uma simples forma (quer se a entenda no sentido do idealismo transcen­dental, quer não), não pode existir uma constante espacial empírica. Novamente podemos ver que do ponto de vista da matemática e da ciência exala da natureza não se pode decidir sôbre a verdade do idealismo ou do realismo.

Estamos portanto diante da escolha: admitire­mos um espaço real não-euclidiano ou um campo métrico universal, isto é, de uma realidade física na qual as medidas estão tão distorcidas, em que as linhas mais curtas estão tão curvas, que suas relações de medida correspondem a uma geometria não-euclidiana ? Tal campo métrico poderia ser imaginado como contido num espaço euclidiano comum. Como ilustração pense-se na “métrica” que resulta quando se dá a distância entre dois pontos A e B numa região montanhosa não por uma linha aérea, mas pelo tempo que se necessita em terra para chegar de A a B. A “geometria” que resultaria de tais “medidas” seria tudo, menos euclidiana. Talvez se dirá que isto não é culpa do espaço, mas da matéria distribuída pelo espaço, isto é, das montanhas e vales, das estradas de ferro e dos caminhos, etc.

Enquanto neste exemplo é fácil a distinção entre espaço vazio e conteúdo material do espaço, a questão fica aparentemente insolúvel quando aplicada ao espaço universal; ou então se lhe dará uma solução arbitrária. Conceder-se-á ao espaço o caráter absoluto que lhe deu Newton, e ainda assim defender sua realidade? Ou então se verá, nêle nada mais que uma espécie de ordem simul-

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t.ánea(24) c se o terá simplesmente por “phaeno- mcnon bene fundatum ”, como Leibnitz ? Ou uma simples forma de percepção a priori, como Kant ? Ou se retom ará a Aristóteles se e atribuirá aT> espaço “determinada fôrça” (dynaviis) que faz cair os corpos pesados?

Tôdas essas questões não se podem responder clara e insofismàvelmente do ponto de vista da física matemática. Pode-se explicar a teoria da relatividade geral partindo de concepções filosó­ficas totalmente diferentes. Decisiva e funda­mental, mais uma vez, é a possibilidade da preci- sação matemática, e nada mais. Pode-se afirmar neste sentido que certamente devemos contar com uma geometria não-euclidiana, mas não incondi­cionalmente com um espaço não-euclidiano.

E aqui aparece que a descontinuidade decisiva na história da física (nâo tanto da astronomia) se encontra entre a física antigo-medieval, especial­mente aristotélica, e a ciência matemática do século xvii, e não entre a física “clássica” do século x ix e a física “moderna” do século xx. De fato, por maior que seja a diferença entre a física clássica e moderna, ambas se empenham por penetrar nos mistérios da natureza por meios mate­máticos e renunciam aos conhecimentos qualita­tivos e metafísicos, que tendem a alcançar a “essên­cia” da natureza.

Êste quadro não se modifica essencialmente se ainda lançarmos um olhar sôbre a teoria dos quanta e sôbre os problemas que suscita no campo filosófico. Nesta questão não podemos entrar em porm norog, ainda monos quando tratamos da teoria da relatividade geral de Einstein.

(24) Eeta form ularão deveria hoje scr modificada em rmfto <U rrla- tiviü&df* d& simult&neid&de.

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O ponto decisivo ê o dualismo corpúsculo-onda e a questão do influxo do “observador” sôbre os processos físicos “reais” e “objetivos”. É sabido que o lugar c o impulso de uma partícula não podem ser simultâneamnete, isto é, pela mesma experiência, medidos com exatidão. Quando se consegue medir exatamente uma das duas gran­dezas “complementares” (lugar e impulso, tempo e energia), a outra desaparece; no caso extremo da máxima exatidão na medição da primeira gran­deza, a segunda não pode ser absolutamente me­dida. Tal é o conteúdo essencial das “relações de indeterminação” de Heisenberg.

Niels Bohr elaborou em 1927, depois dc longas discussões, o conceito fundamental de complemen­taridade, que há pouco empregamos. Introduziu duas concepções inteiramente distintas para os processos quânticos, que são complementares no sentido que só podem existir lado a lado sem contradição quando seu alcance é limitado de tal modo que nunca são utilizadas ao mesmo tempo. Segundo a experiência, a “partícula elementar” se mostra ora como corpúsculo, ora como onda.

W. Heisenberg(25) encara a questão de outro lado, o que é de particular importância para o nosso problema sôbre o papel da matemática. Parte da hipótese que só se verificam em a natu­reza, ou só podem ser processados experimental­mente, processos que se deixam representar como veetores (ou mistura de vectores) no espaço de Hilbert de muitas dimensões, numèricamente infi­nitas. Modêlo para Heisenberg era a teoria da relatividade restrita, que igualmente representa a realidade física por vectores em meio ao “mundo” quadridimensional. Mas um vector num espaço

(25) Vid. TF. ffíijííiiíTtf, Die Eulwicklung der Dcutun* der Quan- t*umeciianik, Pbyaikaliaoha BlaeUer, 12 (1956), fanc. 7, pág. 2B2 .

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de Hilbert de dimensão infinita (ou na matriz hermitiana correspondente) não é intuitivo; não o é tampouco a equivalente representação por uma onda no espaço de configuração segundo Schroe- dinger; pois o espaço-configuração tem 3n dimen­sões para n partículas. Trata-se do uma simples analogia para uma onda intuitivamente tridimen­sional. A tentativa de uma interpretação intuitiva leva-nos novamente às duas imagens complemcn- tares (corpúsculo e onda) de Bohr.

Em meio a tôdas essas complexas tentativas de solução pergunta-se: o que dizer sôbre a realidade física dos processos quânticos? N. Bohr fala de "impossibilidade de uma distinção exata entre o comportamento de objetos atômicos e a influência sôbro êles exercida pelos instrumentos medidores, que servem para determinar as condições em que os fenômenos se manifestam”(26).

C. F. von Weizsaecker formulou o seguinte princípio :(27) “Nem om pensamento se pode reali­zar a distinção total entre sujeito observador e objeto observado.” Êste fato 6 por êle ulterior- mente interpretado no sentido que tanto o ato físico da influência, exercida pelos aparelhos de observação (os quais em razão da natureza quân- tica da energia não podem ser reduzidos à von­tade), como o ato intelectual da leitura do aparelho medidor constituem a “observação” uo sentido quântico-meeânico; a “unidade de ação” de ambos é o essencial. E chega a acrescentar: . . . “obser­vação é uma influência física recíproca que 6 ao mesmo tempo um ato de consciência. A compre­ensão disto só será possível depois de se renunciar

(26) Vid. JV\ Bokr, Di»cus*ion with lCinatcin on Epísteinolotical Problema ia Atomio Phy&ics, em: A. Einstoin: Philonopher-Scipntist, ed, Schilpp (New York 1949) pág. 210.(27) C. F. ir. Wri**6acker, Phyxik der Gcjeeaw&it (Goettingen 1958)» P&JC* 84 ».

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de certo modo à distinção cartemaria entre res extensa e res cogitam".

Êstes pensamentos de von Weizsaecker são expressos no espírito de uma certa teoria do conhe­c i m e n to idealista. Pois, pelo menos parece que, em razão da “unidade de ação” da influência exer­cida pelo aparelho (pela comunicação de energia por meio do aparelho, como seja pela iluminação) e do ato de conhecimento que é a leitura do instru­mento, a simples percepção cognoscitiva tem influ­ência no estado do objeto. Disto entretanto se pode duvidar. Considere-se o seguinte: a “obser­vação” com os modernos instrumentos de medida (por ex., o contador dc Geiger, ou uma ehapa foto­gráfica), geralmente sc processa de maneira que o instrumento registra a presença de um eléctron mesmo que não esteja presente um observador entendido. Sòmente mais tarde, o que pode suce­der depois de semanas ou meses, a indicação auto­mática do aparelho será lida no indicador ou na chapa. Sòmente então se verifica o ato espiritual do conhecimento, separado temporalmentc da influ­ência física exercida pelo aparelho sôbre o objeto, o qual, enquanto funciona automàticamcnte, é êle também um objeto, e não “sujeito” de qualquer espécie. Como então se pode falar de “unidade de ação” entre a parte física do processo mensura- tivo e o ato perfeito de conhecimento? É certo que existe uma unidade sensível entre os dois fatos separados pelo tempo, entre a influência física e o ato de percepção. Talvez von Weizsaecker quis dizer isto mesmo com o têrmo “unidade de ação” ; mas sua maneira de exprimir não é muito clara.

W. Heisenberg, de seu ludo, sc exprime de modo algo diferente em resposta a uma observação do

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cientista soviético A. Alexandrov(28). liste afir­mara que por “resultado da medição” na teoria quântica se devia entender sòmente o efeito obje­tivo da influência recíproca entre cléctron e objeto (o instrumento de medição); não se deve men­cionar o observador. Uma grandeza física qual­quer é um fenômeno de caráter cbjetivo e não o resultado de uma observação subjetiva. Heisen- berg respondeu(29): se o aparelho medidor e seu sistema de observação devem ser considerados total­mente separados do resto do mundo, seria impossível chegar a determinado resultado nas mediçíies, como seja a impressão de uma chapa fotográfica até certo grau de intensidade. E se alguém disser que “na realidade” a chapa ficaria de qualquer modo com aquela impressão, então êle não aplica a mecânica quântica ao sistema “eléctron-chapa” . O caráter “factual” de um processo da realidade na vida “factual” não está, sem mais, contido nas fórmulas matemáticas da teoria dos quanta. Esta entra em questão sòmente quando intervém um obser­vador.

Ora, segundo Heisenberg, pela intervenção de um observador não se introduz qualquer traço subjetivistico na descrição da natureza, o que não deixa de ser muito importante do ponto de vista “filosófico”. Segundo êle, o observador tem sim­plesmente a função de registrar fatos que se veri­ficaram no tempo e no espaço, pouco importando que o “observador” seja um aparelho que fun­ciona automàticamente ou um ser vivo (de modo especial um homem que entende do assunto). O que entretanto é absolutamente necessário é a

(28) Vid, A. Alexandrov, Dokl. Ak&d. Nauk 84, N.* 2 (1952). O cientista soviético rejeita conforme a doutrina do material istno dialético to>Jo pensamento ideatlatico na interpretaçlo da Teoria doa Quanta, ao pasdo que aceita a íuterpivtavSo do físico de Copenhague.(29) PhyaàkaJ B litte r 12 (1Ô5Ó), faac. 7, pág. 298 f.

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passagem do possível ao “factual” dentro do pro- nesso atual do registro. Êste último ponto de Heisenberg se relaciona — o que êlc mesmo nota __ com a seguinte consideração dc von Weizsae­cker: sòmente fatos futuros são ainda possíveis, os passados são simples fatos. Não tem sentido perguntar sôbre a probabilidade (isto é, sôbre a possibilidade quantitativamente determinável) de sua realização, pois já são reais. O que de fato já aconteceu não pode ser objeto dc indagação quanto à possibilidade ou probabilidade de sua rea­lização.(30) Assim um fato histórico, como a do registro de um eléctron pelo contador dc Geiger, não entra numa teoria como a mecânica quântica que se ocupa de possibilidades (probabilidades).

Êste modo de ver não só é importante para a mecânica quântica (onde, por ex., êle entra na assim chamada “redução dos feixes de ondas”), mas também para a termodinâmica estatística clássica (quando, por ex., se quer compreender os processos macroscópicos numa massa de gás se­gundo a teoria cinética dos gases de Boltzmann- Gibbs, como uma perpétua passagem de macro- estados menos prováveis para mais prováveis). Quando se tem diante de si um estado muito improvável segundo as regras do cálculo das proba­bilidades, nâo só o estado imediatamente subse­quente deve ser encarado como o mais provável, mas também o imediatamente antecedente. Mas isto contradiz aos fatos, já que na realidade a

(30) Physik der Gegeonwart, p4g. 41; Vid. Ge*chichte der Nafcur, páe. 143.Apont&mo? ainda para a* notáveis afirmnçõoK de Charles Sanders Peirce (Oxford 1957 — pá*B. 112-116 - Time and Modality). O peiwnroento maia notável de Peirce é que a realidade do futuro em contruate com a do pnv- iictttn o do pusn&do nfio é individualizada de nenhum* forma. Um con­junto de elementos poauívetã ou futurou nfio mo&tra a identidade individual de seus elementos. Ipualmente acontece, como 6 sabido, com aa partSculoa elementares na Kstattatica de Boee-Einstoin, em contraste com a estatística clássica de Boltimann.

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probabilidade dos macro-estados já realizados au­menta sempre mais conforme o segundo princípio da termodinâmica (aproximação assintótica da “morte do calor”). Portanto a conclusão para a probabilidade do que passou não é legítima. Êste fato ê contornado por von Weizsaecker, que afirma que não tem sentido perguntar pela possibilidade, ou probabilidade, de um fato passado, que já se tornou histórico.

Qualquer sistema quântico separado do mundo exterior só tem um caráter potencial, não “factual” ; por isto, segundo N. Bohr, êle não pode ser des­crito por conceitos da física clássica. O estado rcpre- tado por um vector de Hilbert (não por uma com­binação estatística de vectores), aplicado a um sistema fechado, é segundo Heisenberg “objetivo” , mas não "real”, pois nêle não se pode verificar um fato històricamente constatável em nosso mundo macroscópico (tais como a revelação de uma chapa fotográfica, a indicação de um instru­mento, e semelhantes aparelhos de que nossas salas de física estão cheias). Portanto a concepção clássica de “objetivo-real” deve ser abandonada.

A caracterização do sistema atômico por um vector de Hilbert é complementar às descrições por meio do conceitos clássicos, da mesma forma que na termodinâmica estatística o miero-estado da massa gasosa é complementar à tempera­tura.

Aqui a temperatura 6 o conceito clássico; ela pode ser diretamente lida num instrumento macros­cópico, o termômetro, pelo “observador”. Pode igualmente ser registrada por um autômato sem que esteja presente um observador humano. A temperatura portanto é “real”, mas não é “obje­tiva” . Portanto, devemos admitir como “objeti-72

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vãmente presente” sòmente o micro-estado não observável do gás.

O conhecimento do que é “factual”, isto é, do macroscópico, é, por conseguinte, sempre um conhe­cimento imperfeito tanto na mecânica quântica como termodinâmica.

Vemos que. à luz da “interpretação de Kope- nhagen”, da teoria dos quanta, a oposição t radi­cional entre “realismo” c “idealismo” não pode mais ser empregada e as teorias tradicionais do conhecimento fracassam.

As objeções que foram levantadas contra a interpretação aqui dada da teoria dos quanta podem ser assim resumidas(31): Quase tôdas as críticas contra a “interpretação dc Kopenhagcn” tem por objeto antes de tudo o fato que sòmente uma parte do dualismo “onda e corpúsculo” é considerada como real; em geral os corpúsculos. Em segundo lugar fala-se de “parâmetros ocultos” que não conhecemos, mas que, apesar disto, deter­minariam na “realidade transcendente” o curso de cada partícula (com mais exatidão que uma pre- dição estatística). A objeção de Heisenberg — que para nós é muito digna de nota — contra tôdas as explicações que entram em concorrência com a de Kopenhagen é que nelas se destrói a simetria da linguagem da teoria dos quanta, aque­la entre a coordenada local e a coordenada de impulso p; |\Kq) |2 é ainda efetivamente a quan- tidude de variação na coordenada local, mas lifr(p)|2 não é mais a do espaço-impulso. Portanto, também aqui o pensamento “pitagórico” é decisivo.

Os adversários temem que o conceito funda­mental da “realidade objetivo-real” fique perdido

(31) TF. U tiuK txrt, Physlkal. B laette r 12 (1936) íam . 7, púg. 264 sa.

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cidos experimentalmente. A isto acresce a feliz circunstância nos movimentos dos planetas de o nosso sistema solar ter sòmente um corpo ccntral. Se o sol fôsse uma estréia dupla, as circunstâncias seriam bem diferentes c muito mais complexas. Na realidade as trajetórias dos planetas e das luas (também da nossa lua terrestre) são quase círculos e pertencem assim aos fenômenos que são fàcilmente calculáveis; ao mesmo tempo, cm razão da perspectiva distorcida oferecida da terra e por causa de leves anomalias que provêm das traje­tórias, levemente elípticas e excêntricas, punham-se alguns problemas nada triviais(34) que desde tem­pos imemoriais suscitaram a curiosidade dos homens que observavam o céu.

Tudo isto favoreceu o aparecimento precoce da ciência dos fenômenos celestes e teve como resul­tado a opinião, nunca sèriamente contestada na Antigüidade e na Idade Média, de que as leis exatas da natureza valiam sòmente para os fenô­menos celestes e não para os terrestres. Isto, por sua vez, teve por conseqüência uma certa aversão contra uma concepção quantitativa dos fenômenos terrestres, tão característica para a consideração aristotélico-escolástica da natureza, mesmo quando apregoava métodos empíricos (como por ex. Alberto Magno). Tal maneira de considerar a natureza só foi rompido (apesar de algumas tentativas dos terministas de Paris no século xiv) no tempo do barroco incipiente, por Galileu, Kepler, Descartes, Pascal, Huygens, Newton, só para nomear os mais importantes. Que “o livro do universo está escrito em linguagem matemática” (Galilcu(35), eis o ponto decisivo. O mesmo pensamento c espresso de forma

(34) Vid. O Xtuçtbautr. Tlio ECxact Stiteoce-j» in Antiquity (Provi- drmpc, Rhode Iil&utl, 21937), f>ág. 152 8.(35) Oalilti, II dtggU tore, Edis, N at. VI, 232.

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mais clara por outras palavras ousadas de Galileu, tais como a que afirma que o conhecimento mate­mático se distingue exiermve, em amplidão, do conhecimento de Deus, mas que intensive, qualita­tivamente, lhe é igual(36). Leibniz e Newton não estão tão longe desta mesma idéia. Para Leibniz as “mônadas”, sob cujo conceito caem tanto Deus como o homem e tôdas as criaturas, só se distin­guem gradualmente, segundo a clareza e evidência com que “ representam” o universo. Foi Kant, com sua religiosidade profunda haurida no pietismo, que mostrou de nôvo a intransponível limitação do homem e sua finitude.

Durante o desenvolvimento ulterior da ciência exata foi ridicularizada a atitude científica dos séculos xvxi e xvm , que fazia de Deus um “enge­nheiro em repouso” , o qual criou o mundo num longínquo passado, entregando-o depois a si mesmo. Conforme uma anedota conhecida, Laplaee, o célebre astrônomo e matemático, teria respondido a Napoleão, quando êste lhe perguntou pelo lugar ocupado por Deus em seu sistema cosmogônico: “Sire, je n'avais pas besoin de cette hypothèse-lá”.

Em todos êsses vaivéns e peripécias das opiniões científico-filosóficas o papel predominante da mate­mática permanece imutável. Não se descobrem nem sequer indícios da vontade dc voltar à con­templação qualitativo-metafísica pré-galileica, em­pregada pela escolástica. É verdade que o roman­tismo alemão, e na filosofia o idealismo alemão, nada tem de matemático; é de estranhar, por ex., o pouco conhecimento matemático do tão erudito Hegel, o qual mostrou a penetrante fôrça dc seu gênio especulativo em tantos terrenos do conhe­cimento humano, sendo, no entanto, fácil de notar

(3d> Diálogo I, ed ii. Nnt. V III, 128 ».

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para a física. Mas tal temor é injustificado. Os processos que se verificam no tempo e no espaço de nosso ambiente diário são própria mente o real e dêles é feita a realidade de nossa vida concreta. “Quando se tenta, diz Heisenberg(32), penetrar nos pormenores dos processos atômicos que se ocultam atrás desta realidade, os contornos do mundo “objetivo-real” se dissolvem, não nas névoas de uma nova imagem obscura da realidade mas na clareza diáfana de uma matemática, que conecta o possível, e não o “factual”, por meio de suas leis”.

Êste pensamento se relaciona com a observa­ção feita por Heisenberg a respeito da teoria pita- gorizante de Platão no “Timeu” sôbre os quatro elementos, de que falamos no primeiro capítulo. J á Platão dissolve em princípio a matéria em formas matemáticas (embora nêle a probabili­dade não desempenhe papel algum). Os elementos platônicos são (conforme a terminologia acima em­pregada) “objetivos” mas não “reais” , isto é, não perceptíveis pelos sentidos. É verdade que Platão atribui o ser pròpriamente dito à matemática invi­sível de suas partículas elementares, em oposição à nossa identificação “existencialista” entre “reali­dade” e “factualidade” (que era por êle despre­zada). Contudo tanto Platão como os “kopenha- genses” têm em comum o fato de recusarem aplicar as qualidades essenciais (“primárias”) dos corpos macroscópicos “reais” às partes elementares da matéria, como o fizeram Anaxágoras e Demóerito e como o fizeram os materialistas de todos os tempos até hoje(33).

(32) lo t. e i t p lig . 304 .(33) Neste sentido também a« objeçft«a dc AriMótcUi* contra 00 tri" ânfuloô elementares de PlutSo (cf. Dc Coclo III, 1) sfto "materialistas'1’O ‘‘reaLlimo crítico" de hoje procura sar menoe primitivo, embora 11S0

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7. Visão de conjuntoJá é tempo de resumir e completar as observa­

ções acumuladas nos capítulos anteriores. Partindo da tese, hoje tão espalhada, de que a técnica é o objetivo e ao mesmo tempo o motivo secreto da ciência exata da natureza, refutamos, ou pelo menos limitamos, esta afirmação apontando para a ciência exata mais antiga, a astronomia, a qual, só pelo fato de subsistir através dos séculos, refuta a tese do primado da técnica. Mostramos que sòmente o século XVII com a introdução do método matemático exato na investigação do "mundo de­baixo da lua” trouxe o devotamento à técnica, sendo testemunha disto as descobertas precursoras do telescópio e microscópio, do relógio de pêndulo e da bomba de ar, embora a máquina a vapor, como primeira fonte técnica de energia em grande quantidade (mais do que os tradicionais moinhos de água e de vento), pertença aos fins do século xviit.

O ponto decisivo é constituído pela experiência analítica, desconhecida da Antigüidade e da Idade Média. Sòmente ela permitiu desvendar as com­plexas causas que agem em a natureza e estabelecer leis naturais exatas e a partir delas dominar as fôrças da natureza.

O fato de a astronomia se ter adiantado tanto às outras ciências exalas da natureza se deve ao fato que no movimento das enormes massas extra­terrestres, observáveis regularmente a ôlho nu, num universo pràtieamente vazio, já existiam "casos puros” que não precisavam ser restabele-

escape à tcndftncia dc in troduiir novas concepçfies da realidade, pouco claras. Vid. W . fíueckel, Quaotenphyaik und krítidcher Re&li&mus, em: Philosophi* naturaüi*. V (1958), fafcc. 1, pôg». 3-54.

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as parcas anotações matemáticas que se encon­tram em sua “Ciência da lógica”(37). Schelling não 6 diferente(38). Esta incapacidade dos român­ticos — exceção talvez feita de Novalis — para compreender o papel da matemática teve como conseqüência, na Alemanha, a separação completa e funesta entre ciências exatas e “ciências do espí­rito”, de modo que aquelas se desenvolveram inteiramente alheias às segundas, assim que é difícil descobrir qualquer influxo da filosofia clás­sica nas mesmas.(39). Êste é certamente um dos motivos mais importantes da orientação empirista tomada pela epistemologia científica do fim do século x ix (Mach); tal é também a causa da interpretação “fisiológica” de Kant dada por Helmholtz. Em tôdas essas teorias a matemática sempre era deixada de lado.

O mesmo se dá 110 século xx. Nossas apre­ciações críticas do conceito de realidade nas ciên­cias exatas mostraram êste fato muito claramente, como as relações existentes entre a experiência analítica e a “análise” matemática” . As novas teorias da física “moderna” , do século xx (teoria da relatividade e teoria dos quanta) não foram capazes de solucionar a velha polêmica entre idea­lismo crítico e realismo crítico, que novamente surgira, com tôda a violência, no século xix. Os “modelos” da física clássica (não sòmente a con­cepção “mecanicista” no sentido de Descartes e Huygens, que há muito já se tornara obsoleta)

(37) Alguma-» vè&es se tem a impree&fto que UtQtI hauriu »u » eonlke- clmentoâ matemático» do pequeno escrito polêmico de Bcrktiey “The Analyat", escrito contra Newtou.

(38) Lembramoe aqui igualmente a falsa interpretação que Qotlht dA de .VetWon na “ doutrina daa côres"; esta di»torsSo provam §r>m dúvida da averaSo às cxperiAnaias analíticas na investitaçfto da naturosa.

(39) B. Riemann foi influenciado at4 certo grau pelo "realista” Her- bart, mas ta l influência nflo foi longe.

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apareceram como concepções ingênuas. Por pouco que seja aquilo que positivamente podemos afir­mar sôbre a "essência” da natureza, temos sufi­cientes conhecimentos negativos da mesma para podermos dizer que é impossível representar a natureza por modelos construídos mecânicamente. O conceito de modêlo conserva, contudo, ainda hoje um valor “ relativo” . A física teórica de hoje constrói (in abstracto) tôda espécie de modelos, ma.« sabe muito bem que êstes só podem repre­sentar alguns traços da realidade observada c que são aproximações mais ou menos grosseiras de uma realidade infinitamente complexa e que seu valor é limitado. Descobriu-se ainda que muitas vêzes é simplesmente impossível propor modelos intuitivos válidos. Assim, por ex., nem a estru­tura não-euclidiana da variedade espaço-tempo da teoria da relatividade geral, nem o espaço de Ililbert na teoria dos quanta pode ser represen­tado por um modêlo; êste último apenas por dois modelos que se excluem mútuamente (onda e corpúsculo).

O que em meio a tudo isto permanece imutável é o aspecto matemático, com suas estruturas muitas vêzes abstratas, mas sempre “simétricas” ; nêle, parece que se traduz a essência mesma do cosmo. O mundo como um cristal, eis a visão hodierna do universo.

Pode-se perguntar se, frente a tal concepção “pitagóriea” do mundo, ainda se pode falar de uma violação, de um “forçamento da natureza pela ciência moderna (restringindo-nos ao reino da teoria, da consideração abstrata da natureza). Explicamos acima que o progresso matemático das ciências naturais só foi possível pelo princípio da renúncia: “mturam renunliando v i n c i m u (oumelhor talvez “cognoscimus”). Tal renúncia difl-

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cilmente se coaduna com a atitude de forçar.Significa antes um recuo. Recuo para onde ? Para o mundo da matemática, à qual pela sua própria natureza pertence o possível. De fato, como já Leibnitz vira, o domínio da matemática são os “mundos possíveis”. É hoje em dia quase impos­sível voltar a uma interpretação antropomórfica da natureza no sentido do Romantismo (embora se veja indícios cá e lá). Isto seria poesia e não ciência.

Parece que o avanço das ciências exatas com o auxílio da matemática não conhece limites e a conhecida palavra de Kant parece se verificar: “Em qualquer doutrina especial da natureza só pode haver tanta ciência verdadeira, quanta mate­mática nela se encontra ” .(40)

Não obstante, o emprêgo da matemática nas ciências naturais tem seus limites, mas êstes se encontram dentro da mesma matemática. Num capítulo posterior trataremos desta questão en­quanto relacionada com a matemática. Quanto à sua utilização na física e na astronomia, já no tempo de Newton se descobriu que a matemática encontra certas limitações cm solucionar proble­mas que lhe são propostos. Assim 6e verificou que o “problema dos dois corpos” na teoria da gravitação de Newton, isto ê, o problema keple- riano do movimento de um planeta em redor do Sol, podia ser solucionado com os métodos mate­máticos de então, mas não o “problema dos três corpos” , isto é, o movimento simultâneo do Sol, Júpiter e Terra sob o influxo da gravitação, abs­traindo de certos casos especiais. (Pouco antes de 1900 H. Poincarc demonstrou que uma solução fechada do problema dos três corpos é absoluta-

<40) Metaphyslache Anfnngngrucmlc <lcr N*turwiaacn»ch&ft, ' :orrode

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mente impossível, sendo possível sòmente uma solução aproximativa pelo desenvolvimento em séries, o que já se fizera há muito). Aqui portanto, pela primeira vez, fracassou a nova matemática do século xv n e desde então tanto a matemática clássica como a moderna fracassaram diante de problemas propostos pela física teórica. Pode-se dizer que sòmente por exceção é possível dar solu­ção cabal, do ponto de vista matemático, a um problema complicado da física; em geral 6 preciso contentar-se com aproximações e procurar con­tornar as dificuldades o melhor que se pode.

O que acabamos de dizer provém das limita­ções intrínsecas da própria matemática; mas exis­tem também limites exteriores. Tais limites estão contidos não tanto na estrutura da matemática, mas na do objeto a que é aplicada. Até agora só se falou da natureza inanimada, nunca dos sêres vivos. A vida existo numa escala ínfima, comparada à imensidão do universo; a vida está para o universo como um milionésimo de cm para 100 m. Até que ponto a matemática esteja em condições de decifrar os fenômenos ditos “vitais” , não podemos agora expor. Não estamos em con­dições de decidir sôbre a verdade ou não da tese dos platônicos pitagorizantes do século iv a. Cr.: “ A Psyche (a “alma” , no sentido de: princípio de vida) é um número que sc move a si mesma”.

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A matemática pura como ciência livre

CAPÍTULO TERCEIRO

1. Os inícios da matemática gregaA tradição segundo a qual Pitágoras fêz da

matemática uma ciência livre” (paideia) é funda­mentalmente correta, embora náo no sentido li­teral. Os gregos antigos fizeram da matemática uma ciência pròpriamente dita, independente, e suficiente a si mesma. Embora a moderna pes­quisa anglo-americana sôbre os fundamentos da matemática freqüentemente ainda — em razão de sua dependência da tradição cmpirista inglêsa, a começar de David Hume — se volte contra tudo o que é apriorístico e defenda pontos dc vasta “nominalistas” , concorda contudo com seus adver­sários platonizantes na afirmação que a matemá­tica não depende da experiência. O argumento decisivo é a existência do problema do infinito que não tem, nem pode ter, qualquer apoio na realidade da experiência, mas nem por isto deixa de ser posto necessàriamente pela matemática.

Do ponto de vista histórico é digno de nota o fato que sòmente a matemática grega começa a fazer uso do conceito de infinito, enquanto que tôda a matemática anterior dos babilônios e egíp­cios nada conhece dêste problema. Êste ponto

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por si só basta para distinguir nitidamente a ciência grega dc tôda a ciência que a precedeu. As outras duas conquistas dos gregos, o conceito de ângulo e a teoria das proporções(l), não têm o mesmo significado, embora ambas sejam impor­tantíssimas e a proporção possua um significado fundamental, como ainda explicaremos.

Isto significa que a elevação da matemática a “ciência livro” não sòmente é uma ilustração filo­sófica da mesma a partir de fora, mas está em íntima relação com uma transformação intrínseca do conceito de matemática. Em que consiste essa transformação ? Freqüentes vêzes e com razão se aponta para o fato que sòmente a matemática grega demonstrou suas proposições. Mas rara­mente se pergunta pela razão dêste fato. Os babi­lônios (os egípcios neste ponto estão atrás) possuí­ram uma álgebra bem desenvolvida e uma geometria que satisfazia muito bem tudo o que dela se exigia, como chegaram êles a essas doutrinas fundamen­tais da matemática sem demonstrações? A “álge­bra” pré-helênica é sobretudo cálculo; a forma literária dos “exercícios escolares” dos babilônios é quase idêntica aos manuais de hoje; são simples coleções de exercícios. Pode-se até afirmar, sem recorrer a hipótese atrevidas, que uma corrente tradicional ininterrupta corre das coleções de exer­cícios escolares dos babilônios e egípcios (talvez já sumérios ?), através da Antiguidade clássica, do Lslamismo e da Idade-Média bizantina e ocidental até a “ Idade Moderna” para os livros escolares de nossos dias, embora seja muitas vêzes difícil encontrar todos os elos desta corrente de tradi-

(1) A m atem ática pré-heléntea conli-eoc sòm ente o conceito de incli­nação (ou doclividade) a qi»e corresponde a cot&ngcnte do &ngulo de incll* n*Ç&0 (em «glpoio */<, sumérteo ta-fftil, acádico ui.-wiiu). A m atem ática babiiõnica tin h a o eoncoito d« rclaçüo ou doa quocientcB (bandu), m as nâo o d« um a igualdade entro raaOca (proporç&o).

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ção. Nessa literatura extensíssima nunca sc de­monstra qualquer coisa, no máximo “a prova 6 o exemplo” . O conceito de infinito aí não apa­rece, ou então sòmente sob uma forma velada, mas nunca se torna um problema.

Quando se recorre à matemática indica e extre- mo-oriental, enquanto livres da influência grega, constata-se o mesmo fato: ausência total de demons­tração e falta do conceito dc infinito, mesmo sob a forma de indução completa (conclusão de n para n + 1 ).Nesta questão é de grande interêsse seguir os caminhos pelos quais o conceito de infinito foi introduzido na ciência matemática dos gregos pri­mitivos. Parece que o infinito primeiramente surgiu sob a forma de processos convergentes ilimitados. O primeiro testemunho literário disto temos em Zenão de Eléa, discípulo de Parmênides. Zenão não é matemático, mas é evidente que parte de fatos e considerações matemáticas que lhe foram propostos por outros, talvez pelos pitagóricos.

O mais simples de seus argumentos é a assim chamada “dieotomia” (2): um segmento AR é dividido pela metade em C e a parte direita Cfí é novamente dividida em C', C’ B em C” e assim por diante ilimitadamente.|______________ |____ I I I Ia c • c* c- a

Portanto: AC + CC' + C'C" + . . . in infinitum *= AB. Isto significa, quando AB »■ 1 :

Neste exemplo se pode ver o “milagre" paradoxal das séries infinitas convergentes.(2) 7,en*o, F ra sm B I e A 25-20 (P ie tí) ; seta* duns ú ltim a» p&n&gen**&<> Wílatoe aôbre oa doi* argumentos: “dieotomia" e “Aquilee”, aprvae»* mi íoh ron tra a realidade do movimento.

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Por um lado a sério y + y -f y + • • • cresce ilimiUi-i,lamente por partes que sempre sâo menores nue a imediata­mente anterior (trata-se sempre da metaae do anterior,como p. ex., y é a metade de mas é ao mesmo tempoalgo dc finito com relação ao primeiro membro da série,(3) y •distância esta que é fàcilmente calculável (p. ex., -5- é a

1quarta parte de y .Mas, por outro lado, a série não cresce até ao injinUo, pois a sua soma eempre permanece menor que 1 , por mais que s« a continue. De fato, todo membro seguinte <la série pro­vém da divisío da diferença entre 1 e a soma de segmentos

anteriores já formada. (Assim p. ex., y + T + T " T e a diferença para 1 é j , e a metade desta é -yg ■ Êste é o nôvo membro que se acrescenta. A distância entre a soma agora formada e 1 é agora •

Êstes dois aspectos (“por um lado" e “por outro”) «levem aparecer paradoxais ao pensamento ingênuo, embora nâo exista uma contradição pròpriamente dita ou lógica. De fato, é fácil compreender que alguma coisa pode continuar a crescer continua­mente sem contudo ultrapassar todos os limites. Basta que o crescimento diminua conveniente­mente de ritmo com o correr do tempo. Mesmo a diminuição do crescimento até uma quantidade ínfima não impede um real crescimento, como se pode ver nas assim chamadas “séries harmôni­cas”^ ) . Mas, para o pensamento ingênuo da Anti-

fS) Sâbrw fete ponto Zonã» chama a ntençfto expressamente no Fragm. H 1.<4) rode-«e penaar que o fundamento daa "aéries convergente*" w eituo no ilimitado riecr&cimo doe membro»*, que, afinal, toniam-üe menores que <»»da participaçfto dada. Mas, ê o contrário que w demonatra r*1a* aasiüi ehauiadaâ "séri» harmônica*": divetrgènci» da « "&éric harmônica’'

2 3 4 5 6 7 8 ***

> TC<ano ae vé, a divergência da “série harmônica” cresce até o infinito.

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güidade, considerações quantitativas tão subtis não contavam; insiste-se no conceito puramente quan­titativo segundo o qual quando alguma coisa sempre aumenta, acabará por ultrapassar todos cs limites. A possibilidade contrária, demons­trada pela dicotomia num exemplo concreto apa­rece então como paradoxo.

Zcnão assim procedia: O aumento da série con­tinua ilimitadamente mas nunca chega ao fim, por mais tempo que aumente. Assim o corredor que parte de A para chegar a B não chegará ao têrmo, pois deve percorrer um depois do outro os segmentes AC, CC’, C’C” . . . até o infinito, sendo necessário para cada segmento um tempo finito a fim de ser percorrido.

Não tencionames discutir ou “resolver” os para­doxos de Zenão, des quais Bertrand Russel uma vez disse que eram "immensely subtle and pro- found” , pois tal coisa não conseguiram todos aquêles que desde Aristóteles o tentaram. O que queremos é apontar que já a primeira experiência do infinito na matemática e na filosofia levou a paradoxos. Hegel chamou Zenão de primeiro dialético na his­tória da filesofia, e como tal sempre foi tido. Do ponto de vista histórico talvez fôsse melhor, ou pelo menos mais correto, considerá-lo como “filó­sofo na époea trágica dos gregos” , e compará-lo com os três grandes trágicos do século V e com Píndaro, em vez de chamá-lo um “especulativo”, no sentido da dialética hegeliana. Mas tal desig­nação exprime algo de fundamental: caracteriza a oposição ao pensamento simples c retilíneo. De fato Zenão supera o ponto de vista ingênuo na consideração da série convergente infinita

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não se contentando em constatá-la; neste sentido 6 êle um “dialético”.O que há de especial neste ponto de vista “dialé­tico” aparecerá mais claramente quando se o con­trasta com as considerações matemáticas ingênuas e retilíneas, como podem ser encontradas em fontes antigo-orientais e gregas.

Nesta questão são significativas algumas tenta­tivas de demonstração por decomposição do assim chamado “teorema pitagórico” , que já foi utili­zado pelos matemáticos babilônicos no início do segundo milênio antes de Cristo.

Não se tra ta aqui de datar estas demonstrações, as quais literàriamente só ascendem até a idade- média oriental (a figura (b) está descrita no calen­dário pré-cristâo de Chou-pei Suan-king; o caso especial (a) se encontra no “ Menon” de Platão(5)).O importante é o princípio donde se parte, e aí se pode ver o caráter finito de todos êstes argu­mentos. São empregadas algumas superfícies par­ciais consideradas como um todo. Nas duas fi­guras (a) e (b) trata-se dc triângulos retângulos (que aparecem barrados).

De modo semelhante se comportam as figuras que se encontram era Euclides (Elementos II, 4-6)

(5) A conhecida cena entre 86cTates e o escravo d* Menon repre­senta nra corto sentido «ma aula elementar de ma<«nví<toü. Trata-se de um tema que já no tempo de Pl&t-io pertencia ao en&ino elementar.

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que tratam da solução de equações quadráticas em forma geomét,rica(6).

Tanto a “dicotomia” como os argumentos afins se distinguem de tôdas as considerações finitas pelo fato de apresentarem processos ilimitados, a decomposição de um segmento finito em partes cujo número cresce ilimitadamente. Mas não é coisa intuitiva que “cm” um segmento finito “se encontrem” partes em número ilimitado. É ver­dade que as partes singulares que surgem 110 de­curso do processo ilimitado da dicotomia podem ser atingidas e representadas por uma figura, mas nunca o processo todo. A infinitude do processo ê claramente apontada por Zenão que diz: “ É a mesma coisa dizê-lo uma vez e sempre de nôvo” .

A mesma coisa pode ser ilustrada por outros exemplos, dentre os quais aduzimos aqui um que é especialmente fácil e muito antigo. Trata-se da demonstração de que as diferenças dos números quadrados, que se seguem, são números ímpares:

1 4 9 16 25 3 6 ...3 6 7 9 11 ...

Isto se demonstra pela formação de figuras por meio de pedrinhas (psêphoi ou pessoi):

O O O O O OOOO • • • • OOOO • • • o • • • «O0 0 • # o • • • 0 • • • • o• »o • *o • • • o • • • • o

Temos aqui uma seqüência de figuras finitas, mas a seqüência 6 infinita. A passagem de uma figura para a outra se processa da mesma forma, isto é,

(6) Vid. UM, píg». 11-15; O. Bccktr, Das Deokender Antike (Goettineen 1957), p4s*. 60-64.

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c o l o c a n d o as novas pcdrinhas na margem da figura p r e c e d e n t e . Nisto consiste a prova, pois as pe- drinhas marginais (brancas em nossas figuras) au­m e n t a m de dois em cada figura.

Os matemáticos gregos primitivos deviam estar conscientes da infinidade de tal processo. Entre os babilônios parece que tal não era o caso. Isto transparece da maneira como na matemática babi- lônica e indica primitiva (dependente daquela) se determinam as_ raízes quadradas por aproximações. Uma raiz Vai (especialmente V 2 = v'i. 2) pode ser calculada aproximadamente, tomando entre a e b as médias aritméticas e harmônicas m e h, depois entre m e h novamente ambas as médias m’ e h’, entre estas de nôvo as médias m" e h”, e assim por diante, sem fim. A raiz que se procura calcular aproximadamente está entre m e h, m ’ e h \ tn” e h”, sendo que a diferença entre as duas médias se torna sempre menor e conseqüentemente a aproximação maior.(7)

Ora nas fontes pré-helênicas que conhecemos não há indícios de que aqui se verifica um pro­cesso basicamente ilimitado. Só se dão trôs passos, até m" e h”. Aí se pára. Parece que se devia saber que era possível dar mais passos segundo o mesmo esquema, mas é muito duvidoso que se estivesse consciente da infinitude de todo o pro­cesso, isto é, da possibilidade de continuar até o infinito.

Como quer que seja, os gregos conheciam muito bem o problema do infinito e sua significação funda­mental para a matemática e para a filosofia. A profundidade do entendimento filosófico que tinham da questão se pode verificar, antes de tudo, da discussão que lhe dedica Aristóteles (Física III,

(7) Vid. O. Btck*r, Da» watUem&tische Denlien der Antike, p íg . 64 98. OM p íg . 7.

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4-8), (8). Êste tratado vale até hoje como clássico nesta magna questão. Mais tarde voltaremos a êle e a tôda a questão em geral.

2. A descoberta do irracionalAntes de nos ocuparmos das análises aristoté-

licas, é necessário lauçar alguns olhares à desco­berta tão fundamental que os gregos fizeram do irracional, descoberta esta que é muito notável e cheia de graves conseqüências. Talvez possa ela ser datada da metade ou da primeira parte do século Yr; há alguns historiadores da matemática que querem recuá-la até o ano 400. Parece-nos que sem razão. De fato, no diálogo platônico “ Thceteto”, dedicado à memória dêste matemá­tico da escola de Platão, falecido muito cedo, sâo atribuídas a Teodoro de Cirene as demonstrações da irracionalidade das raízes quadradas do 3, 5, 7, . . . 17. Como com razão notou K. von Fritz, não se pode admitir que nesta passagem se negue a Theeteto unia descoberta matemática que lhe pertenceria. Portanto é necessário recuar até Teo­doro de Cirene, cuja atividade deve ser datada de 430. Ora, êste nos apresenta já tôda uma série de demonstrações de irracionalidade, e portanto não está no início da descoberta de processos nâo- racionais, que devem ser bem anteriores.

Discute-se sôbre qual seja o exemplo concreto em que pela primeira vez sc notou a incomensura- bilidade recíproca entre duas grandezas geométri­cas, ou de outra espécie, e como ela tenha sido demonstrada. Enquanto que antigamente se admi­tia como certo que fôra, antes de tudo, a incomensu-

(8) V id . G M 65 m . (u m * coioc&o de tan to * ari«tot<licoe).

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rab ilidade do lado e da diagonal de um quadrado, isto é, a irracionalidade de V1T, K. von Fritz de­fendeu a opinião que, em primeiro lugar, fôra notada u incomensurabilidade da diagonal do pentágono regular, e isto pelo pitagórico Hippasos, ou pelo m enos no seu tempo; a esta opinião se filia G. Ju n g e (9).Em favor da tese mais antiga está a ausência de VT na série das raízes estudadas por Teodoro; pode-se admitir que êste caso especial já fôra no­tado há muito tempo. Pode-se também afirmar que o problema 110 caso de VT não só se punha 11a geometria, mas também 11a harmonia, isto é, na questão se as oitavas podiam ser divididas em dois intervalos iguais determináveis por processos racionais. Mas por outro lado a relação entre lado de pentágono e diagonal é a base da “divisão continua, da assim mais tarde chamada “secção áurea” . Êste processo tem a peculiaridade que da medição das partes respectivas, na “diminuição recíproca” (an/anatVeata)(10) resulta a seqüência numeral mais simples, isto é, 1 , 1 , 1 , . . . .

Quanto A maneira como em geometria se podem fajser as demonstrações desta incomensurabilidade, considere-se o que se segue:1 . No caso do pentágono regular resulta do traçado das diagonal» o pentagrama que no seu interior contém outro pentágono com um pentagrama, de modo que a figura 6(9) K. Von Frilt, The Discovery oí Incuminensnjrabüity by Hlpp«mim of MetApontura. «m: Annat* of M ath rm ati« , 48 (1945), pá**- 242-264; <?. Jung, Yon Hippasos bis Phílolaoa, em: Classica c t Mrdutpvutm, Revue Damoiao de Philologie e dU tatoire, voL X IX , faae. 1-2 (1933), pág. 41-72. Jung ae refero a (?. J . Allnwn, Hlatory of Grcck Oeometry from Tluiles to Euclid (Dublin 1879) o qual teria afirmado como primeiro a priori­dade do pentagrama,(10) Nnste processo de comparação entre dois segmentos a e b ae constata, «m prirn jiro lugar, quantas vAxr.s o segmento menor b eatà con­tido no maior o, isto ê, quanta» v£«?s §e pode diminuir d de n. Em geralun> CJL Que* d» & tantas vôaes quanto possível, produz umn3vo resto d. K»te é tirado do e, tan tas vêses quanto possível etc. O pro- oetuo condu* a uma rasSo racional a;& se tem fim, no qual não há nenhum POdto; so razfio irracional, o preoesso nunca cc*sa.

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A B

sem fim em seu interior. Pode-se medir um lado do pentá­gono, seja DE, pela. diagonal AC simtoricamente oposta; neste caso o quadrilátero ED' CD 6 um paraleiogramo e portanto CD' = DE. Portanto o lado DE ou CD' está contido uma vez na diagonal CA, ficando o resto A D'. Quando se mede A D' em AE' (que é igual ao lado DE da mesma forma) está aí contida uma vez deixando o resto F.'D’. Ora E’D' è o lado do pentágono interno A'R'C'D'E' e a diagonal dêste C'A' ê. igual a D'A (pois AD'A'C' é um paraleiogramo. Depois a mesma relação se repete e o processo da “dimi- tiuiçâo reciproca" continua sem fim. fiste interessante resul­tado devia chamar a atenção dos geômetras gregos primi­tivos.2 . No caso do quadrado a prova da ineomensurabilidade de lado e diagonal pode ser feita dc diferentes maneiras.

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R e p r o d u z im o s uma consideração de E. M. Bruins porque está estreitamente ligada à idéia da dicotomia. Também e l a 'se upóia na acepção da divisão ilimitada de um segmento. Olhemos a figura de um triângulo retângulo iaósceles, me­tade de um quadrado. Um cateto (lado de quadrado) deve ser medido pela hipotenusa (diagonal). Admitida uma me­dida comum que serve como unidade, o cateto terá a uni­dades, a hipotenusa c unidades. Já que e2 = 2a3 então cs,portanto também c, 6 um número par. A altura A - ~ «vai ao ponto médio da hipotenusa que a divide em dois seg­mentos elementares. Ora, se se repete o traçado da perpen­dicular na maneira indicada pela figura chega-se divisãopelo meio do segmento 1 ; na vez seguinte Se chega a-i- c , depois a e e assim por diante sem fim. Masjá que o segmento total c não pode ser dividido ilimitada­mente, sem que se chegue ou a um ndmero ímpar ou ao número 1, o ponto da divisão geométrica pelo meio não pode afinal cair no ponto central entre dois segmentos elemen­tares, o que é absurdo, ( l t)

Dc tais considerações proveio a oposição entre niimero (arithmos) e extensão contínua (megethos). Esta pode ser dividida pelo meio até o infinito (dicotomia), mas não aquêle. A divisibilidade infi­nita é relacionada com a existência de processos irracionais em escritores que vão desde o helenismo até o comentário de Proclo a Euclides.

Do ponto de vista lógico a situação é a seguinte: se existe sòmente uma divisibilidade finita das grandezas (extensões no espaço e no tempo), então não existe incomensurabilidade; de fato, neste

(11) A prova da irracionalidade de V 2 pode ser dada de forma Puramente aritmética, as*im: pode-ee adm itir que por um a contínua divís&o Por 2 a relaç&o a: b chegou a um estado em que o* dois número* a e n io »*o mais pares (divisíveis por dois). Se a íôr p a r e b ímpar, entfto a* também é divisível por 4. Por oonseguinte a equaç&o a* * 2 fc» Pode ser dividida de ambos os lados por 2, recebendo & esquerda um nú­mero par, mas à direita o númRro impar ò5, o «u« é iinpo&lvel. Mas, se a* ímpar, cntâo a equoç&o a* = 2 6a f também impossível, pois a* é ímpar e 2 b» par. Esta prova dix respoito aos mai* tàmples e antigos estudo* d« pare» e impam. NHo pertence à teoria grral do* números, nem parti- cularmente ao teorem a da unidade da decompoeiçfto de um número em seus fatores primos.

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caso existe uma medida mínima para tudo. Ao contrário, a admissão da divisibilidade ilimitada não basta para afirmar a existência de relações irracionais; a divisibilidade ilimitada torna possível o irracional, mas não se trata de uma conseqüência necessária. São necessárias demonstrações de casos singulares que provem a existência de segmentos incomensurávcis por métodos geométricos ou de outra espécie (p. ex., pela teoria da música). Êste ponto parece não ter sido sempre claramente reco­nhecido pelos autores gregos.

A idéia de que por meio de uma divisão conti­nuada se torna impossível a medição de qualquer extensão (Euclides, Elem. X, 1 ; vid. Aristóteles, Física III, 0, pág. 206 b, 17-20), desempenha um importante papel no “processo de exaustão” de Eudoxo, apresentado no livro X II dos Elementos de Euclidcs, primeiramente no caso do círculo, em X II, 2. A exaustão (dapanan = gastar, esgotar) já é empregada por Antífono, o sofista (Fragm B 13) e por Anaxágoras (A 38, vid. B 3). Pela inscrição de polígonos regulares de número crescente de lados, cujos lados, portanto, sempre se tornam menores e sempre mais se aproximam da periferia, seria possível “esgotar” a circunferência. Mais tarde Bryson tentou aproximar-se dêsse esgota­mento, tanto de dentro como de fora. Na base dessa tentativa estava um princípio de continuidade, de que fala Platão (Parmênides 161 d): “Aquilo a que se pode aplicar medidas grandes e pequenas (relativas), tem uma medida exata, que está entre ambas” . Ora, todos os perímetros de polígonos inscritos são menores que o comprimento da circun­ferência e todos os dos circunscritos são maiores. “ Em relação àquilo para o que existem medidas maiores e menores, existe também a medida exata. Ora, existem polígonos maiores e menores do que

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T

a circunferência; portanto, existe também um polígono igual à circunferência” (Proclo). Com êste polígono “igual” sc deve identificar a própria peri­feria.A validade dêsse principio platônico fôra restrin­gida já na Antigüidade a sistemas de grandezas homogêneas, os quais eram caracterizados pela vali- dude do “axioma de Arquimedes” (conhecido já por Eudoxo; vid. Euclides, Elem. V, def. 4). A Antigüidade conhecia igualmente sistemas não ar- quimedianos, isto é, aquêles que são compostos de ângulos retos e de linhas mistas (ângulos contin­g en tes)^ ).O ponto de vista moderno na doutrina sôbre os fundamentos da análise superior é o seguinte: do axioma de Arquimedes segue-se o assim cha­mado “princípio da inclusão”, (e reciprocamente) segundo o qual um ponto determinado (um número real determinado) pode estar incluído numa linha reta entre dois pontos racionais (dois números racionais), os quais podem ser obtidos pela divisão de um segmento em duas partes iguais; Mas, o in­verso não é tão claro, isto é, que um intervalo que diminui o mais possível não determina “por si só” w?n único ponto que esteja dentro dos intervalos todos de separação; a existência do mesmo deve ser postulada. Êsse postulado é expresso pelo assim chamado “axioma de Cantor”(13).

Parece que os gregos em geral não aceitavam tal axioma; postulados eram por êles feitos sòmente se havia argumentos geométricos que os exigiam, ou ao menos os tornavam plausíveis. Assim, por exemplo, a existência do círculo dentro de polígonos

(12) Maiã s&bre ôste ansunto vid. <sm GM, págs. 43-55.(13) Vid. GM. pág. 245 tu. («obre G. Cantor). pág. 254 s. (sôbre P. Du Bois-Reycuond). — Dentro o* manuais modernos lembramos: O. H aup te G. j4wm«inn, Differentinl — und Integnilrcchnung, I; Einfu<*brung iü die reell© Analyaia (Berlim 1948), pága. 10-12.

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inscritos e circunscritos, ou a existência do ura segmento de parábola na conhecida quadratura arquimediana da parábola. Figuras geométricas determinadas tais como a circunferência e a pará­bola existem para os matemáticos gregos evidente­mente em razão dc sua forma e conteúdo próprios, fato que impressionava os gregos muito mais do que a nós (como impressionava também a um homem como Kepler). Hoje em dia definimos as figuras geométricas, compostas de linhas curvas, como limites de uma seqüência ilimitada de figuras retilíneas (poligonais) que nos aparecem como fi­guras elementares (em geral poligonais). Assim a circunferência é definida como limite de uma seqüência ilimitada de polígonos nela inscritos. Mas é duvidoso se uma explicação hoje tão comum seja, em última análise, inteiramente satisfatória A crítica neo-intuicionista exercida sôbre a crítica clássica mais uma vez suscitou estas e outras ques­tões da “existência matemática” ; sôbre isto ainda falaremos.

3. A teoria aristotélica sôbre o infinitoParece-nos necessário dizer agora algo sôbre as

pesquisas feitas por Aristóteles a respeito do infi­nito e do contínuo, investigações ãs quais mais vêzes já nos referimos; pois, essas explicações continuam exercendo uma influência notável até mesmo nos hodiernos problemas dos fundamentos da matemática.

Sem entrar em muitos pormenores pode-se notar, antes de tudo, que Aristóteles vê o ilimi­tado (apeiron) como um “ente em potência (possi­bilidade)”, (dynamei on), ou, segundo seu comen­tador Simplício, como algo que “ tem seu ser no96

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devir”. A potencialidade do infinito, portanto, não é ccmo a de um cbjeto (como seja, do bronze de uma estátua ainda não moldada), a qual desa­parece com o devir atual, mas “como a do dia ou dos jogos olímpicos” , que sempre se renova, (parece que neste exemplo se entende tanto o decurso do dia e do jêgo como tombem a perpétua repetição dos dias e das olimpíadas no decorrer do tempo, medido por elas; segundo Aristóteles, o tempo é “o que é numerado no movimento”).

O infinito aparece tanto no acréscimo como na decomposição, ou o que é o mesmo, na diminuição. O esquema que está na base é a dicotomia já a nós conhecida da qual surge a série geométrica4 - + 4 + -£■...; mas êste esquema pode ser gene-* 4 oralizado de modo que em vez da relação numérica 1 :1 , que apareço na divisão pelo meio, apareça uma outra relação, como seja 2:1 ou 3:2, etc. Tal é o caso no paradoxo zenoniano de Aquiles e da tarta- ruga(14).

Neste último exemplo 0 processo era o seguinte: a parte restante de cada divisão é acrescentada à soma parcial anterior. No mesmo ritmo que se processava a divisão cra feita a adição, só que, inversamente, enquanto que o resto fica sempre menor, a soma sempre cresce.

Conquanto não exista infinito atual por aerée- cimo, isto é, o infinito em grandeza, pois segundo Aristóteles o mundo é limitado pela abóbada celeste (a esfera das estréias fixas), existe em certo sen­tido o infinito por divisão, isto é, o infinito em pequenez. Pois é possível, p. ex., dividir um seg­mento por uma dicotomia continuada e sem fim;

(14) Pa«a«ein* priacipaia: Fiucft I I I , 6, pág. 206», 13 m . fvid. a tra^ iluç lo cm G M , pág, 65 a*.).

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neste caso, contudo, o segmento parece existir desde o princípio como um todo. Segundo Aristó­teles, o segmento não consta de pontos ou de outras quaisquer partes indivisíveis (átomos lineares), pois os pontos dentro de um segmento só aparecem pela divisão, o que quer dizer que antes da divisão só estavam presentes potencialmente, e só por meio dela recebem atualidade. Ora, isto se podo gene­ralizar — embora o próprio Aristóteles não toque neste ponto — e dizer que não só pontos que provêm da divisão de um segmento em partes iguais, e que podemos chamar de “pontos racio­nais” , mas também “pontos irracionais” — origi­nários de qualquer construção geométrica bem definida — estão incluídos neste raciocínio. Quan­do, p. ex., se coloca sôbre a diagonal de um qua­drado um seu lado, surge um ponto e dois seg­mentos parciais que não têm razão racional entre si. É verdade que Aristóteles não toma em consi­deração o irracional. Só ocasionalmente êle se refere à incomensurabilidade de lado e diagonal de um quadrado, que pode ser demonstrada aritmè- ticamente. Sòmente no escrito atribuído a Teo- frasto “De lineis insecabilibus”, incluída no Corpus Aristotelicum é lembrada a existência do irra­cional como argumento contra os átomos lineares (pág. 969b, 33 - 970a, 4; vid. 96Sb, 5-21 c 909b, 6- 12).

J3 muito importante ter em mente esta concepção de Aristóteles para compreender sua teoria sôbre a “ continuidade” : o segmento não se compõe de pontos, mas um número sem fim de pontos estão “nêle” em potência, no sentido que êles podem ser atualizados por divisão ou por outras operações matemáticas construtivas(15).

(15) A concepçflo ariatot^lira s&bre a exiatAncla potencial doe ponto* num «egmento, entendida estritamente, tom a iropoMlvel o axioma da

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Éra oposição estrita a esta concepção está a concepção da análise “clássica”, tal como hoje em dia ela costuma ser apresentada nos manuais. Esta se baseia na “ teoria dos conjuntos” de Cíeorg Cantor, para quem o segmento é um conjunto infinito atual de pontos, na qual, portanto, desde o início se encontra um infinito atual de pontos, os quais são oferecidos à observação quando se aplica a divisão ou outra construção qualquer. A moderna investigação dos fundamentos da matemá­tica, contudo, levada pela crítica “intuicionista” e outras considerações, volta em pontos importantes à concepção dc Aristóteles.

Embora os modernos autores críticos (com P. Lorenzen) recuem diante de uma reforma radical da análise e se esforcem por conservar a continui­dade da tradição tanto quanto possível, delineia- se já a possibilidade de uma concepção radical­mente “neo-aristotélica” do contínuo.

Por fim queremos chamar a atenção para o fato que a concepção de Aristóteles sôbre o infinito, como algo dc potencial, desempenha um papel essencial na doutrina das antinomias de Kant e, sobretudo, que cia está na base da “solução” das duas primeiras antinomias cosmológicas, chamadas “matemáticas” (que tratam da extensão finita ou infinita do mundo no tempo e no espaço e da finita ou infinita divisibilidade de tempo c es- paço.(ie)

de C antor *5bro * integridade n» matemática grega. o n io e claro como éste fato possa concordar com n admissão do princípio na cooumíidada etn variedades “ homogêneos",a . (!6)J Í!? \Kritik <,or r*inoíl Vernunít, 2 ed., pá*. 545 aa. (Tranazen- dentalc Dialektik, Antinomia der Vernunít. 9. Afoohnitt I e II).

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4. *4 teoria arislotélica da abstraçãoComo já notamos acima, Aristóteles, ao con­

trário de Platão, que atribuía aos objetos matemá­ticos existência real, intermediária entre idéias e coisas sensíveis, caracterizou os objetos matemá­ticos como “abstrações”. Êste têrmo provém da expressão por êle mesmo cunhada, “aphairesis" (subtração), do qual o latim “abslractio” é a tra­dução literal. Assim na filosofia alemã do século xvm se fala de “têrmos subtraídos” (“abgezogene Bcgriffen”).

O têrmo “abstração” é de duplo sentido. Ora significa o abandono de alguns aspectos, ou pro­priedades, de uma coisa, de modo que só sobram aquêlcs para os quais se volta a atenção. É neste sentido que se deve entender, sobretudo, a “aphoi- re&i8" aristotélica. Outras vêzes o conceito de abstração significa a elevação a conceitos univer­sais, chamados por Aristóteles “ ta koina” (o que é comum), com o que se entende sobretudo uma espécie universal de matemática universal.

Não inteiramente claro está em Aristóteles um segundo momento, a idealização, que ocupa um lugar tão preponderante em Platão, ao falar da matemática. Aristóteles sabe muito bem que a régua não toca a circunferência material num só ponto(17), como deveria ser conforme o puro con­ceito de tangente, mas êste fato não é importante para êle e só é notado de passagem. Aquilo que Aristóteles sistemáticamcnte acentua é o momento da separação de coisas (chorismos) por meio do pensamento que em si são inseparáveis. Diz: “Assim as coisas matemáticas que não estão sepa-

(17) Mo». B 2, pAg. flsa», 2 ».

m

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radas, pensamo-las separadamente quando as temosna mente” ( l8).

Com isto o matemático está em oposição tanto ao “físico” (isto é, ao filósofo da natureza), como ao “primeiro filósofo” (o metafísico), dos quais cada um tem diante de ei algo de concreto: um, o mundo sensível das coisas mutáveis, o outro, as essências imutáveis, eternas; êstes dois terrenos contêm entidades (“substâncias” , “ousiai”), que subsistem por si. Mas a matemática recebe seu ser da atividade espiritual abstraente do matemá­tico: esta teoria é por Aristóteles freqüentemente defendida por numerosos argumentos(19). Temos aqui um primeiro indício do “nominalismo” pos­terior, embora o nominalismo do fim da idade média tenha aiiula outros traços. E, coisa notável num pensador antigo, temos aí igualmente um elemento “subjetivista”. Os objetos matemáticos aparecem como coisas do pensamento, pois só estão separados em pensamento, enquanto que em si mesmas são inseparáveis.

Pode-se dizer que esta concepção “nominalista” é até hoje a concepção mais espalhada sôbre a essência da matemática, não só entre a maioria dos cientistas, mas também entre muitos matemá­ticos, sobretudo no mundo anglo-americano. Assim Bertrand Russel não tardou em largar sua primi­tiva posição, platonizante, em favor de um ponto de vista mais empirista, embora mesmo mais tarde não negue todo o “a priori”. Os argumentos empre­gados são de caráter empirista, provenientes da tradição inglêsa, sobretudo da teoria do conheci­mento de D. Hume. Até certo ponto esta ten­dência empirista é compensada por uma lógica

(IS) De anima III , 7, pág. 431 b, ifl 8.(19) Vid. tu dai an paaaagcuá atinentoa em G U . págs. 118-121.

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formalística, principalmente desde que a lógica matemática (a assim chamada “logística”) começou a ganhar terreno até mesmo dentro da própria matemática.

Isto nos leva ao segundo sentido acima especi­ficado de “abstração”, segundo o qual “abstrato” significa a elevação a uma maior universalidade. Não se entende com isto a generalização, a subida a gêneros mais altos e de maior universalidade, mas a formalização, que ultrapassa tôdas as notas materiais e seus gêneros mais elevados, isto é, os “ transcende”. “Nem o uno nem o ser (como tal) é um gênero” diz Aristóteles(20). Estes se referem “anàlogamente” a diferentes coisas. Esta volta para o formal não só é uma tendência filosófica, mas também matemática. Dois são os exemplos básicos em que os autores antigos costumam de­monstrar a “ciência matemática universal” . Em primeira linha, por alguns princípios fundamentais sôbre o igual e o desigual, como por exemplo, “igual deduzido de igual dá igual”, e semelhan- tes(21). Segundo, pela teoria geral das proporções, tal como foi fundada por Eudoxo e como está apresentada no quinto livro dos “Elementos” de Euclides. Êstes dois grupos de princípios têm função importante na matemática antiga. De parti­cular importância são as operações com as propor­ções; as diferentes transformações que sofrem se tornam o veículo do progresso do pensamento matemático, logo que na matemática geometrizada grega “ clássica” se abstrai da figura concreta c se tiram d«'la conclusões independentes.

(20) M et. B 3, 998b, 22. — Vid. H 6. pág. 1045b, 2-7.(21) Trata-se das asatm ck&modaa “ feotnrf «mNoiííii" de Euclide.s. Eata expreaaSio 6 cm geral traduxtda por Mopmife8 universais", ou “con­cepções comuna'1, sera que ac ospecifique ac ae tra ta de repreaontaçà™ dc objetoa univeraaia ou de opinifos universalmente espalhadas entre o« homens, de id&as eoaiuns; tal voz so trate de ambos.

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Aristóteles refletiu sôbre o que há de “univer­sal” nesta matemática. Nota que a permutabili- dade doB meios de uma proporção era demonstrada anteriormente em separado para números, seg­mentos, corpos e tcmpos(22). Mas agora (tiata-se evidentemente da teoria das proporções de Eudoxo) a demonstração é dada universalmente; pois a relação não vale para os corpos ou para os seg­mentos “como tais” , mas para aquilo que “se concebe como existindo em todos”(23). Numa outra passagem diz: o matemático contemplaaquilo que existe por abstração(24), em que êle vê coisas diferentes (pontos, linhas, superfícies, corpos) do ponto de vista do quantitativo e do contínuo(25), e nada mais. De modo semelhante o “filósofo primeiro” contempla tôdas as coisas do ponto de vista do ser (como tal). Vê-se que a essência (“substancialidade”) dos objetos metafísicos não é atribuída aos objetos matemáticos; mas apesar desta diferença, e em razão do caráter formal comum que possuem, há uma afinidade entro a matemática universal e a ontologia universal, o que mais tarde contribuiu para o aparecimento da idéia de uma “Mathesis universalis” .

Nfio é aqui o lugar de entrar nos pormenores da evolução dêstes pcnsamentos(26). Só queremos lembrar que os neoplatónicos (sendo o exemplo típico Proclo em seu comentário a Euclides(27)

(22) Anal. Priora I. 6, p&g». 74a. 17-25.(23) A oxprrisá&o *'oo todo" (haíÂoiou) n lo indica aqui a generali- aaçío (subida a um gênero superior). rnaa a total formailaaçflo.(24) M ot. K 3. pá li». 1061 a. 28-bB.<25) "kata to poson fca» ía *unecKc$" — Com " poton" talvo* se on* tenda o nâraoro dUcroto om opo&iç&o à grandeza contínua, embora esta terminologia, freqü&ntomonle usada (p. exM pelos neopiUgôricos), n lo é pròpriamente aristotélica.(28) M ais ext^naarannte em O. Becker, MathematUche Existent (Halle a. 8., 1027), pág. 254 a*, (para a Antigüidade). pág. 264 ss. (para oa tempo* modernos).(27) Sôbre o ponto ds vista neoplatAnico. vid. OM pág. 121 aa.

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sublinharam êste caráter nâo concreto da matemá­tica universal e a declararam a forma mais elevada e mais espiritual da ciência.

Nos tempos modernos aparece desde o fim do século xvi com Viète, e mais tarde com Descartes, uma nova forma de matemática, livre da figura geométrica e da limitação a números particulares. Viète introduz, depois de muitas tentativas ante­riores abortadas, o cálculo literal, sua “ Álgebra speciosa”, a qual recebe cm Descartes um total significado simbólico, sob uma forma pouco diversa da que está em uso até hoje. Os símbolos alfabé­ticos na Álgebra “speciosa” têm uma significação geral, podendo designar números, segmentos, super­fícies, corpos, tempos, pesos, etc. Todos conhece­mos hoje em dia as “fórmulas” tão características da matemática.

Descartes desde o início compreendeu seu em- prêgo universal, com tôda a clareza, o que está expresso em seu conceito de “Mathesis universalis” . Sua grande descoberta positiva em matemática foi a geometria analítica, a primeira aplicação da Mathesis universalis a um determinado setor, e com grandes resultados. Na física, Descartes foi menos feliz, apesar de sua fecundidade em descobrir “hipóteses”. O único resultado duradouro foi a lei da refração da luz. Huygens e Newton abriram neste campo caminhos muito mais decisivos; mas ainda não se serviam totalmente dos novos métodos analíticos, trabalhando ainda com meios geomé­tricos; sobretudo Huygens, que até lançava mão dos métodos “gráficos” da Idade Média tardia; de modo semelhante procedia Newton, pelo menos ainda em sua obra capital ‘ Principia” .

Sòmente com Leibniz se chega a um triunfo completo e sem restrições da Mathesis universalis. Enquanto Descartes sempre permanecia ainda um

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gcômetra (embora “gcômetra analítico”), Leibniz é o aritmético, ou o algarítmico universal, se assim é possível se exprimir. Recorde-sc a seguinte expressão: “Nada existe que nâo esteja sujeitoao número. O número é, portanto, uma espécie de forma metafísica fundamental e a aritmética uma espécie de estática do universo, na qual se revelam as fôrças das coisas” .(28) Do ponto de vista matemático, é característico nêle o fato que sua concepção do cálculo infinitesimal (descoberto em 1673, oito anos depois que Newton descobriu, em 1665, o cálculo das fluxões, mas independente dêle) é superior ao cálculo newtoniano do ponto de vista formal, (i. é, no modo de operar), e por isto é empregado até hoje. Seus símbolos,.as “dife­renciais” (dx, dy, dt, etc.), são ainda algo ingênuos, e o são para facilitar o entendimento, som que, no entanto, devam ser tomados muito a sério, como êle mesmo não as tomou(29). Além disto Leibniz descobriu os determinantes, o que pode ser consi­derado como primeiro passo para a teoria dos in variantes.

De particular significação é a descoberta que fêzdo conceito de função (o têrmo “função” vem dêle) e o importante conceito (também filosófico) de aplicação, por êle chamado dc “ representa­ção” (o que significa tanto apresentação como representação). Pode-se até dizer que todos os fios do grandioso sistema filosófico de Leibniz convergem neste conceito. Assim, as nômadas são “espelhos” do universo. E Leibniz explica a rela­ção entre o perfeito e claro mundo das idéias de Deus e o limitado e obscuro mundo dos pensa-

<28) Liibnit. P hllM opW he Sohriften, («d. G«rh»rd). VII, 184.(29) Penae-ar» no conceito de quociente diferencial, dy/dx, que eutft om analogia formai cora um quociente real, sem ser no entanto um verda­deiro quociente,

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mentos do homem, por uma comparação matemá­tica: assim como a hipérbole que sc estende até o infinito pode ser representada por uma projeção de um centro apropriado (geomètricamente deter­minado pela esfera), numa elipse, isto é, sôbre uma curva finita, do mesmo modo sc pode representar o infinito mundo das idéias de Deus como que projetado sôbre o mundo finito das concepções do homem. E na comparação do espelho, Leibniz tem em mente um espelho curvo que diminui e distorce o original à maneira dos espelhos convexos: da mesma forma as mônadas humanas refletem o grande mundo de Deus. Uma terceira comparação, muito significativa, é a representação de uma forma corporal original, por sua perspectiva superficial que pode ser encarada de diferentes lados e dis­tâncias, como o aspecto de uma cidade de dife­rentes pontos de observação. Assim cada mônada individual representa um outro aspecto do universo.

Nestes exemplos, que fàcilmente poderiam ser multiplicados c cxplorados(30), vê-se até que ponto em Leibniz filosofia e matemática estão entrela­çadas. Infelizmente não podemos aqui entrar em maiores detalhes, Mas não podemos omitir uma referência a uma descoberta, rica de conseqüências para os tempos posteriores: trata-se da descoberta matemático-filosófica do cálculo lógico.

Leibniz elabora um "calculus logicus”, cha­mado também de “calculus ratiocinator” ou "uni- versalis”, o qual, através da substituição de rela­ções abstratas e muito complexas por símbolos concretos (“caracteres”), é de grande importância tanto para a demonstração como também para a invenção. Êste processo deve tornar possível a exclusão de erros na solução final e a decidir ràpi-

(30) Vid. D. Uahnkt, Leibuíínnfl Synthese voa Universalmaihrmatlk und ladividaalmetaphyíik (HalUs a. S., 1925).

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dameate e sem discussão todos os pontos duvi­dosos. já que nêle o pensamento 6 transformado en i algarismo dc cálculo que pode scr posto ã prova; deve igualmente funcionar como “fio de Ariadne" que leva a novas descobertas. Leibniz neste ponto podia apelar para os sucessos de seu cálculo diferencial e integral, tão exato do ponto de vista aritmético, e para sua simbólica, tão útil e sugestivo. Pensava em formas exemplares para sistemas dedutivos que pudessem ser aplicados a quaisquer objetos.

A idéia leibniziana de uma Mathesis universalis superava de muito a concepção afim de Descartes. Enquanto o filósofo francês pensava numa ciência universal das quantidades, Leibniz alargou êste pensamento para aplicá-lo a uma ciência universa- líssima dc tôdas as ordens, e estendeu-o às relações qualitativas, incluída a teoria combinatória uni­versal, por êle mesmo descoberta. A nova matemá­tica deveria ter um caráter estritamente dedutivo e ser expressa por sinais precisos, os “característica universalia” . Originar-se-ia assim uma “Álgebra universalis”, com as duas secções capitais da “logís­tica” e da “característica combinatória”, isto é, uma matemática simbólica da quantidade e da qualidade.

De todos êases amplos esboços e planos pouca coisa foi elaborada em particular. Entre êsses esboços inacabados está, além de uma “Analysis situs” (não bem aquilo que hoje em dia assim designamos, mas um projeto de cálculo dos vec­tores), uma formalização matemática da lógica.

Quando se olham de um ponto de vista crítico as notas de Leibniz, que ainda se conservam(31),

(31) Apontamos Aqui para o artigo He S . Rer.hfr. Leibniz'* Inter- pfletation of hla logical Calculi, em: Journal of Symbol» Logic, 10 (1954). págs. 1-13.

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transparece que êle, antes de tudo, elaborou dife­rentes espécies de cálculos conceituais, tanto no sentido intensivo (cálculo das propriedades ou dos predicados), como em sentido extensivo (cálculo de classes e dos conjuntos). A aplicação desse cálculo à lógica da expressão, por êle não omitida, é interpretada de diferentes modos pelos moder­nos: por K. Duerr como cálculo clássico de expres­sões de duplo valor, por N, Reseher como “Calculus of striet implication” no sentido dc C. T. Lewis, isto é, como cálculo modal(32). 13 especialmente digno de nota que em 1690 Lebniz tenha elaborado uma apresentação de certo modo abstrato-formal de seu cálculo, como doutrina do continente c do conteúdo (“de continente et contento). Com isto êle nos ofereceu de certo modo uma teoria do reticulado abstrato booleano, uns 150 anos antes de G. Boole. É admirável que tenha sido capaz de atingir um grau tão alto de abstração.

Com as descobertas de Leibniz, foi aberto o caminho para o amplíssimo desenvolvimento da matemática nos séculos seguintes.

5. Evolução em direção à matemática jormal

Ê impossível descrever aqui o extenso cresci­mento das numerosas disciplinas matemáticas, que sempre mais se ramificaram, no decorrer dos séculos XVIII, x ix e xx , pois tôdas as exposições históricas não ultrapassam o ano 1800(33). Era poucas pala­vras, eis o que temos a dizer:

(32) K . Ducrr, Neue Bcleuchtuiu: cinsr thacme von Leibnú: Gruudle- dea Loiikkalkuel». cm: Lcibniz«rchiv II {Darixuitadt 1930); \ . Retchtr, lo í. ei*.(*3) A l interessante» "P relad as rôbrc » lúalúria d» matemátic» no tóculo XIX" ÍBerlln 1926,27), de F. Kl/irs, sflo um* primeira tentativa,

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No século xvm surge, não só o sistema do cálculo diferencial e integral, mas também o cálculo das variações c o início da teoria das equações diferenciais gerais e parciais, ao lado dos proble­mas dos valores de contorno, dos respectivos pro­blemas. Também a geometria diferencial faz consi­deráveis progressos.

No século x ix todos êsses ramos da matemática são levados adiante e sistematizados. Como nova, aparece a teoria das funções complexas ao lado da teoria das funções elípticas e outras funções superiores. Surge a geometria projetiva e, mais tnrdc, se seguem outras múltiplas formas de geome­tria que vão muito além da geometria “eucli­diana” clássica (de nosso espaço intuitivo), e final­mente se transformam nas teorias das invariautes ilativas aos múltiplos grupos de transformação em variedades pluridimensionais. Sobretudo se desen­volve a teoria dos grupos, como uma disciplina abstrata em diferentes campos (como, por um lado, a teoria das equações algébricas e por outro a das equações diferenciais e, por outro ainda, como já ficou dito, a geometria, e mais tarde a física teórica). A teoria dos números recebe novras bases e é muito amplificada, sobretudo pela introdução dos núme­ros complexos. A teoria da possibilidade de solu­ção das equações algébricas por meio de radicais, do início do século xix, se desenvolve, na segunda metade dfete século e no século xx, numa álgebra abstrata que contém em si a álgebra clássica como um <aso particular.

Do ponto de vista filosófico é de particular interêsse a Teoria dos conjuntos de G. Cantor, autor que ousou abandonar a tese aristotélica clás-«ubjotiya em muitos ponto», em outro» escrit* de m»iwit« autobiográfica. Unm vi&So bastante breve 6 ofcfeoida por J . E . tiojmnnn em ffccker- IIoJmannt Ccticbicbtç der M atbeiuatlk (Bonn 1951), pá«. 237 sà.).

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si ca sôbre a natureza potencial do infinito, reco­nhecido até entfto por todos os matemáticos, com poucas exceções (como B. Bolzano); Cantor criou a teoria dos conjuntos atualmente infinita que hoje em dia é reconhecida como base de muitos setores da matemática.

Dentre as doutrinas abstratas deve-se citar, final­mente, a teoria dos reticulados surgida no século xx, teoria que está em estreita relação com a estrutura formal da lógica matemática, na qual os assim chamados reticulados distributivos desempenham um grande papel.

Ainda que desenvolvêssemos longamente as rá­pidas alusões que acabamos de fazer sôbre as dife­rentes disciplinas matemáticas, pecaríamos grave­mente por omissão se deixássemos de considerar um traço decisivo da matemática dos séculos x ix e xx, isto é, o surgir e o amplo desenvolvimento da investigação dos fundamentos da matemática. Trata-se de um fato inteiramente nôvo nas ciências matemáticas, o qual, ainda que tivesse tido alguns precursores na matemática antiga, só pôde surgir novamente nesse tempo.

Muito conhecida é uma afirmação de um mate­mático do século xviu: “Allcz avant et la foi vous viendral” . Corajosa e despreocupadamente os ma­temáticos continuavam no caminho da elaboração de teorias analíticas, operando com figuras que se estendiam até ao infinito, assim como com corres­pondentes formas finitas estendidas até o infinito (séries infinitas com soma finita). Mas, levados pelo seu “ tato matemático”, deixavam de fundamentar os métodos de que se utilizavam. Um tal procedi­mento acrítico, e até imprudente, levou a contra­dições insolúveis, como em certas séries infinitas.110

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Tomemos um exemplo conhecido: Qual é a soma da série infinita:

l - 1 + l - l + l - l + . . . f

Por um lado temos:(1 - 1 ) + (1 - 1) + (1 - 1) . . . - 0 + 0 + 0 + . . . - 0

Por outro lado temos:1 - ( 1 - 1) - ( 1 - 1) - ( 1 - 1) - . . . - 1 - 0 - 0 - 0 - . . . - 1

Vê-Se por aí que por processos só aparentemente legítimos (por simples mudança da ordem dos parênteses) se chega a resultados diferentes e contra­ditórios.

Tais fatos levaram, na passagem do século xvm ao século xix, a uma atitude crítica que procurava pôr ante os olhos os limites das conclusões matemá­ticas; trata-se de uma revolução no verdadeiro sentido da palavra, que, não por acaso, é paralela ao desaparecimento do dogmatismo racionalista dos sucessores de Leibniz e ao surgir da crítica da razão por Kant.

Temos aí os germes da pesquisa dos fundamentos da matemática, que se inicia já no século xvm , no campo geométrico com as pesquisas de Saccheri e Lambert sôbre o axioma das paralelas, e no campo analítico com o “cálculo da derivação” de Lagrangc, o qual quer fundamentar o cálculo dife­rencial sem recorrer às diferenciais “infinitamente pequenas” . Desenvolvc-se no decurso dos séculos x ix e xx até chegar a formar uma extensa disci­plina que abrange diversos estágios de questões, que algumas vêzes tomam diferentes aspectos.

Surge assim um problema inteiramente nôvo em nossa exposição, isto é, o problema dos limites

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do pensamento matemático, um problema que tem ao mesmo tempo diversas dimensões matemáticas e filosóficas. No capítulo seguinte dedicaremos a êle nossa atenção.

*

Lancemos um olhar retrospectivo sôbre o pre­sente capítulo.

Os gregos, talvez os primitivos pitagóricos, fize­ram da matemática uma "ciência livre", que existe por si mesma, ccmo um homem livre, e não como o escravo. Do ponto do vista da estrutura, a matemática grega se distingue da matemática pré-helênica pela tomada de consciência do pro­blema do infinito. A matemática prc-helênica ope­rava com comparações, divisões e deslocamentos de um número finito (muito pequeno), de super­fícies limitadas, de formas elementares fàcilmente compreensíveis, geralmente com retângulos e tri­ângulos retângulos (ocasionalmente apareciam tam­bém polígonos regulares). Também a álgebra babi- lõnica, especialmente a solução de equações quadrá- ticas, pode ser interpretada geomètricamente, como o mostra o II livro dos “Elementos” de Euclides, que é, talvez, a parte mais antiga de todo o livro. A matemática grega, ao contrário, descobre o pro­cesso infinito, primeiramente, talvez, na “dico- tom ia”, como o demonstram os fragmentos que sc conservam do clcata Zenão. Segue depois a segunda grande descoberta, a do irracional, desco­berta que distingue a matemática grega de tôdas as que dela provieram e de tôdas as matemáticas nâo-gregas.

Aristóteles é o teórico do infinito no campo filosófico; para êle a essência do infinito está num processo que se pode levar adiante sem fim, que tem o seu ser únicamente sob a forma de possibili­

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dade, secundum potentiam”. O fundamento da realidade da matemática em geral, o Estagirita o vê, em oposição a Platão, na abstração. Isto quer dizer que as figuras matemáticas são por êle conce­bidas não como entes subsistentes em si mesmos (“substâncias”), mas que têm sua razão de ser na “ablação” ("aphaire&is"), isto é, no fato de serem tiradas das condições concretas de objetos físicos; numa palavra, são entes dc razão, produtos do espírito humano (talvez também do divino). Em conexão com essa teoria, Aristóteles concebe a essên­cia dos objetos matemáticos “universais” (como seja, as proporções, no sentido da teoria de Eudoxo) como um grau superior de abstração, de caráter não generalizador, mas formalizador.

Nestas teorias, e em algumas outras considera­ções do fim da Idade Antiga, toma pé, no século xvil, a nova matemática do Ocidente, a qual, pela sua idéia da Mathesis universalis, e apoiada no cálculo literal de Viète, na geometria analítica dc Descartes, e, finalmente, nas avançadas pesquisas de Leibniz sôbre o cálculo universal, se desenvolveu no decorrer dos três séculos seguintes em uma ciêDcia amplamente ramificada de características sempre mais formais.

Só que êste insopitável impulso para frente, como o mostra particularmente a análise do século xv m , leva a posições irracionais c a contradições sempre maiores. Surge então uma atitude crítica e auto-limitativa, da qual, como resultado positivo, se desenvolve a investigação dos fundamentos da matemática.

Chegamos assim, como já ficou notado no fim dêste capítulo, a um problema inteiramente nôvo, o problema dos limites do pensamento matemático; a êsse problema dedicaremos o último capítulo da presente exposição.

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CAPÍTULO QUARTO

Os limites do pensamento matemático

A complexa questão dos limites do pensamento matemático pode ser dividida em duas partes.

Dc um lado está a questão dos limites que surgem dentro da própria dedução matemática. Êste aspecto da questão está cm conexão com a investigação dos fundamentos da matemática, a qual é a expressão da auto-consciência e da auto­crítica do próprio pensamento matemático, mas que é “imanente” , isto é, permanece dentro da maneira matemática dc pensar; esta parte é levada a têrmo por meios da própria matemática (secção A).

Por outro lado, temos a questão filosófica dos limites do modo matemático de pensar em geral. Êste problema só pode ser abordado por métodos filosóficos, isto é, com princípios que investigara os próprios princípios da matemática; sua solução, portanto, não se encontra dentro da matemática, por mais que se extenda seu campo (secção B).A) OS LIMITES IMANENTES DA MATEMÁTICA

1. Geometria, não-euclidianaA questão dos limites imanentes da matemática,

embora seja um aspecto do problema todo concer­nente aos limites do pensamento matemático, con-

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fcém era si muitas facêtas. Por isto será melhor considerá-los à luz da evolução histórica da inves­tigação dos fundamentos matemáticos nos séculos x ix c xx. Por esta razão a exposição que se segue terá em suas grandes linhas um caráter histórico, procurando seguir o curso daqueles estudos. Os dois grandes campos em que se move a investigação dos fundamentos, de um lado a geometria, de outro a aritmética e a análise, deverão ser tratados de forma separada.Antes de tudo lancemos um olhar sôbre a inves­tigação dos fundamentos da geometria. Esta se inicia nos tempos modernos — alguns precursores mais antigos não podem aqui ser tratados — no século xvm com os estudos de G. Saccheri (1733) e J . H. Lambcrt (1760) sôbre o axioma das para­lelas (5.° postulado de Euelides), segundo o qual duas retas convergentes se cortarão quando são ilimitadamente prolongadas. Êste axioma já na Antigüidade era considerado menos evidente que os outros, pois podia-se apontar o fato que a hipér- bole converge para suas assíntotas, mas nunca se cortam. Por isto procurava-se demonstrar êste postulado duvidoso por diferentes argumentos. Mas isto nunca foi conseguido, nem pelos antigos, nem pela Idade Média árabe ou ocidental, nem ainda nos tempos posteriores, apesar de tôdas as tenta­tivas, algumas vêzes muito argutas. Até mesmo a nova matemática do século xvn fracassou neste ponto, não obstante todos os seus progressos. O máximo que se conseguiu foi substituir o quinto postulado por um equivalente de maior plausibi- lidade, como o postulado da existência de figuras semelhantes não congruentes (J. Wallis, 1663).

No século xvm ocorreu a Saccheri a idéia dc considerar ao lado da “hipótese” da existência de retângulos, isto é, de figuras com quatro ângulos

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retos (equivalente ao 5.° postulado), duas outras hipóteses que supõem a existência de quadriláteros de dois ângulos retos e dois ângulos obtusos iguais, ou dois ângulos agudos iguais.

Idéias semelhantes foram mais tarde propostas por Lambert. Descobriu-se então que as geome­trias que correspondiam a essas três hipóteses (a hipótese euclidiana e as duas hipóteses “não-eucli- dianas” , como foram chamadas no século xix), podiam ser desenvolvidas e levadas adiante sem levar a contradições. Contudo o próprio Saccheri e Lambert pensavam poder reduíir “ad absurdum” as duas geometrias não-euclidianas, mas a crítica posterior rejeitou suas demonstrações. Parece que Lambert viu mais longe: mostrou que devia existir uma medida de comprimento absoluta nas duas geometrias não-euclidianas (assim como na geome­tria de Euclides existe uma medida angular abso­luta, o ângulo reto), o que era paradoxal mas não contraditório. Apontou para a geometria sôbre uma esfera e para a que resultaria sôbre uma esfera com um raio imaginário(l), o que represen­tava em certo sentido uma realização das duas geometrias não-euclidianas em duas dimensões. A elas corresponderia os sistemas da trigonometria esférica e de uma trigonometria “hiperbólica”, sendo que a primeira se baseia nas conhecidas funções circulares (seno, etc.) e a outra nas funções hiperbólicas correspondentes.

No decurso do século x ix Gauss, Bolyai c Lobat- schewski desenvolveram a geometria hiperbólica não-euclidiana, e Riemann mais tarde levou adiante a geometria elíptica e outras ainda, mais gerais.

(1) E. Beltrami mostrou em 1868 cm seu “S&gjòo di interpreta«oae delia geometria noneuclidea” que * geometria hiperbólica pode ser rc&li- aada numa Buperfície em forma de sela, a anvim chamada “pseudo-eifera” (p. ex., daa superfícies formada* pela rotaç&o da trairia).

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F Klein demonstrou a ausência de contradição nessas geometrias, projetando-as sôbre algumas fi­guras da geometria projetiva, e sistematizou tôda 8 sua problemática no campo abstrato da teoriados grupos(2 ).Perguntamos agora: Pode-se constatar no de­curso dessa evolução algum limite da matemática ? Através dela não foram elaboradas no terreno da geometria algumas disciplinas inteiramente novas, que são tão matemáticas como a velha geometria euclidiana? Será que, por tôda essa evolução e pela transformação da geometria em teoria abstrata dos invariantes nas variedades pluridimensionais, não se criou um nôvo degrau na ciência matemática, mais abstrato e de características mais formais? Tudo isto não parece indicar limitação.

15 preciso que o concedamos. Do ponto de vista imanente da matemática não se reconhece aqui nenhum limite. Mas parece que a matemática pura por si só não é capaz de determinar com exatidão a natureza do espaço, isto é, do espaço em que vivemos, ou também daquele espaço que está nas bases da física e da astronomia(3). As condiçOes aqui são semelhantes às da física teórica: a renúncia a um conhecimento em certo sentido evidente traz consigo abundantes frutos para a ciência como um todo.

Do ponto de vista da lógica matemática veri­ficou-se, na realidade, uma mudança radical na estrutura da geometria, e de forma análoga na estrutura das outras disciplinas matemáticas; isto se poderá ver de forma mais clara na mudança sofrida pelo conceito de axiomática.

(2) Vid. tad* a evolução em GM , páei. IR8-213.(3) Que ae recorde o conhecido dito de G au n (cart* * Beseel de 9-4-1830): "Dovemo* humildemente conceder que, »e o número í produto ■“ JPP*? <*° no*w eapírito, o oupaço for* de nosso espírito deve te r um* realidade * que nllo se pode atribuir a priori aa leis que o refiem".

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Na Antigüidade os axiomas e os postulados(náo distinguimos aqui os dois têrmos que designam os princípios básicos) eram princípios universais, claros, que podiam ser aceitos por todos como verdadeiros. (Uma dúvida se elevava sòmente contra o quinto postulado de Euclides, como já vimos). Na matemática crítica do século x ix os axiomas se transformam em hipóteses, isto é, opiniões livres que se podem admitir, ou não. Bertrand Russel diz uma vez jocosamente que a matemática trata de coisas das quais ela não sabe o que são, e consta de princípios dos quais não sc sabe se são verdadeiros ou falsos. Exemplo disto temos no início da conhecida obra de David Hilbert sôbre os fundamentos da geometria (1899): “Temos em nossa mente três diferentes sistemas de coisas. As coisas do primeiro sistema chamamos de pon­tos . . . , as coisas do segundo sistema chamamos de retas . . . , as coisas do terceiro sistema chama­mos de planos . . . Represcntamo-nos os pontos, as retas e os planos com determinadas relações recíprocas e designamos essas relações por palavras como 'entre', ‘paralelo’, ‘congruente’, ‘contínuo’; a descrição exata o completa para os fins matemáticos se obtém pelos axiomas da geometria”. Com estas palavras não ficamos sabendo nem o que sejam as "coisas” das três categorias (“sistemas”), nem quais sejam “determinadas relações” sôbre as quais em seguida se fazem algumas afirmações que não são demonstradas, de modo que não sabemos se são verdadeiras ou não.

Por aí se vê que enquanto na axiomática “sim­ples”, contida nos “Elementos” de Euclides, o sentido dos conceitos utilizados e da verdade dos princípios fundamentais (axiomas) é certo pela evi­dência dos mesmos, no século x ix se abandona inteiramente êsse tipo de teoria axiomática con-

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ereta. Elaboram-se teorias puramente dedutivas nas quais os conceitos indefinidos nâo mais exigem uma interpretação determinada: pode-se até admi­tir que designam coisas inteiramente arbitrárias e até mesmo que não significara absolutamente nada. Os “teoremas” daí deduzidos possuem o mesmo caráter arbitrário e deixa-se aberta a questão da interpretação que podem sofrer. Trata-se, por­tanto, de algo inteiramente formal-abstrato, e não mais de um sistema concreto e constatável(4).

Não obstante, nesses tipes de sistemas formal- dedutivos (algumas vêzes se os chama “sistemas hipotético-dedutivos”) o sentido dos conceitos ló­gicos e das relações, que se empregam na dedução, é considerado como claro e evidente c as re­gras lógicas empregadas na elaboração dos teore­mas são supostas como válidas e evidentes. Nisto temos ainda um resto da “ingenuidade” antiga. Pode ser que se chegue a empregar um nôvo tipo de sistema “puramente formal”, no qual também a dedução das propcsiçõf s nâo mais se faz por regras lógicas evidentes mas inteiramente arbi­trárias, as quais contudo são expostas explicita­mente e conseqüentemente seguidas. E nesta exi­gência de “conseqüência no processo” temos ainda um elemento “lógico” de que não se pode absoluta­mente prescindir e que não pode ser largado arbi- tràriamcnte.

Chega-se assim ao conceito de cálculo totalmente arbitrário, que queremos ilustrar por um exemplo tirado de P. Lorenzen(5).

O cálculo de Lorenzen se ocupa de “figuras” sem significação, que podem ser compostas de fi-

(4) Vid» / / . D. Curry e R. Feira. Combinafcory Logic. I (Am&terdâra 1Ô58), pág. 12». —* Oa "objetos" de um &i*tcma tfto eTtremadamente formal n&o silo absolutamente especificados, isto é, afio perteneem à deter* minada categoria lógica” (pá*. 257 ■•).(6) P. Lenn&n, For inalo Logik (Berlin 1958), pág. 58.

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guras elementares em número indefinido, os “áto­mos” ; êstes são colocados lado a lado numa linha. Temos assim:

1. Os átomos • e O (pode-se empregar tam ­bém pedras brancas e pretas de damas)

2. a única figura fundamental • (K 1)3. as duas regras fundamentais:

x -» *o (K 2)* “*•*• (K 3)

Aqui x é uma variável para as figuras compostas de átomos. A seta entre as figuras x e y (x —* y) significa: “ Quando existe a figura x, pode-se cons­truir a figura y" (isto é, escrevê-la ou formá-la com pedras). A figura fundamental • (K 1 ) existe desde o princípio.

Apresentamos um exemplo para ilustrar uma “dedução” nesse cálculo (não se tra ta mais de uma rfc-dução lógica, mas de uma pro-dução de figuras segundo as regras):

(1) • Kl(2) •O K2 ;: (1)(3) •OO K2 : (2)(4) • •OO • K3 : (3)(5) • •OO •o K2 :: (4)

K2: (1) significa: a regra K2 é empregada em (1).A figura • • O O 90 pode portanto ser deduzida

pelo cálculo.As regras do cálculo são arbitrárias, as figuras

dos átomos e suas justaposições nada significam. Pode-se considerar tudo como um jôgo, como seja o xadrez. A cada aplicação da regra corresponde

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um movimento no jôgo e a3 próprias regras nada mais são que as do xadrez. (O cálculo mais se parece à solução de um problema cnxadrlstico que ao jôgo de dois adversários).

Mais uma anotação para terminar. Também no progresso geral da matemática pura vemos que o desenvolvimento da formalização coincide com um abandono do “absoluto” . A significação “absoluta” dns conceitos fundamentais e o valor “absoluto” dos aciomas c teoremas são largados. Tudo é “rela­tivo” com referência às “convenções” pelas quais são determinadas as hipóteses livremente postas e que estão no comêço de tôdas as teorias dedutivas.

Se nisto se quiser ver um “sacrifício”, que deve sor feito em favor do progresso na formalização e na abstração, isto não propõe à matemática limites imanentes como tais. Muito ao contrário: parece que, pela formalização e “relativização” sem­pre maior, mais e mais se manifesta o verdadeiro caráter do pensamento matemático.

2. Fundamentação crítica da análiseFiéis ao nosso intento de seguir em suas largas

linhas a história da evolução da matemática, vol- tamo-nos agora para a análise superior. É aí que, ao que parece, primeiro se manifestou aquêlc movi­mento de auto-limitação, que não encontramos no campo da geometria. A aritmética ficou preser­vada longo tempo dêsses problemas. A introdução dos números imaginários, o que foi feito por Gauss nos inícios do século xix, não levou a dificuldades sérias. Sòmente nos tempos mais recentes os es­tudos de Th. Skolem e K. Goedel produziram resultados surpreendentes e paradoxais na aritmé­tica. Sôbre isto voltaremos mais tarde.

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No fim do capitulo terceiro vimos que as opera­ções imprudentes por meio de séries infinitas podem levar a contradições. A investigação de tais casos levou ao estudo das bases da convergência e diver­gência dos processos infinitos (isto é, de seqüências, séries, produtos infinitos). Relacionavam-se com isto os esforços por fundamentar firmemente tôda a análise superior, sobretudo o cálculo diferencial e integral. Isto foi feito de maneira excelente por A. Cauchy. Fundamental foi sob êste respeito a intro­dução, por êle feita, do conceito de limite, aquilo que êle chamou de princípio dc convergência, sua definição da continuidade de uma função, etc.

A quintessência dessa posição crítica na análise superior foi o princípio geral dc que se devia descon­fiar dos processos intelectuais puramente formais, provenientes de algarismos analíticos iniciais, e que se devia levar até ao fim a investigação da conver­gência do processo empregado, sobretudo deter­minar os limites no terreno das variáveis indepen­dentes, onde quer que se verificasse uma conver­gência. Pois, pela extrapolação do domínio da con­vergência, as operações formais com processos infi­nitos perdem o sentido.

Por algum tempo parecia que bastava esta exi­gência de severidade na análise; mas no decorrer da evolução apareceram dificuldades, suscitadas, entre outras coisas, pela ampliação do conceito de função para funções descontínuas reais, as quais surpreendentemente se comportavam de forma intei­ramente diferentes que as funções algébricas, há muito conhecidas e que as funções transcendentes mais conhecidas, bastante semelhantes àquelas(6).

Por fim os matemáticos se viram forçados a estudar mais detidamente a estrutura das variáveis

(6) O nuo foi mcponto por H. H&mkel em uma brilhante eupcaiçlo histórica. Vid. GM, págs. 218-224.

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independentes e de seu campo de variação. Isto levou por um lado à teoria dos números reais (racionais e irracionais) e por outro lado à teoria dos conjuntos dos pontos. Dc fato, as posições singulares de algumas funções descontínuas formam conjuntos de pontos especiais da reta numérica, isto é, conjuntos de números reais, cuja estrutura devia ser investigada.

Tôdas essas pesquisas, que foram levadas a efeito por K. T. Weierstrass, G. Cantor, R. De- dekind e outros, iniciam um segundo período na investigação dos fundamentos da matemática, que nasceu com a exigência da cautela. Não é aquio lugar de expor pormenorizadamente êsses estu- dos(7). Mas é preciso sublinhar um ponto que é importante e até decisivo: a impossibilidade de evitar o emprêgo de conjuntos infinitos atuais de pontos, ou seja, de números.

Já na definição dos números irracionais, con­forme Dedckind, por meio dos assim chamados “cortes” , isto é, determinadas divisões dos pontos da reta numérica em classes, aparecia a totalidade dos números reais num determinado segmento da reta numérica ou também em tôda a reta. J á na fundamentação “clássica” da análise freqüente­mente se empregam as propriedades dos conjuntos infinitos atuais. Queremos apontar aqui para o fato fundamental de que cada um dos conjuntos limi­tados de números reais possui uma restrição supe­rior exata. Na teoria das séries desenvolvidas em funções trigonométricas (as assim chamadas séries de Fourier), igualmente aparecem conjuntos infini­tos atuais de pontos, a que já nos referimos. Temos aí um dos pontos de partida para a teoria posterior de Cantor sôbre os conjuntos.

(7) lb . píga. 224-521.

123

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Portanto, enquanto pelo método dos limitee de Cauchy, pela sua ulterior elaboração e pela maior fundamentação da análise na teoria exata dos nú­meros irracionais, no decurso da segunda metade do século xrx, foram vencidas as dificuldades ine­rentes ao “conceito de grandezas infinitamente pe­quenas” , começou a tomar a dianteira a teoria dos conjuntos infinitos atuais, enquanto se pro­curava fundamentar a análise. Pelo fato de no tratam ento do infinito não se virem limites reais ao pensamento matemático, surgiram agora novos e dificílimos problemas. É verdade que a teoria dos conjuntos de Cantor foi elaborada até se tornar um grandioso edifício do pensamento, chegando por fim a paradoxos peculiares que até hoje não foram satisfatoriamente resolvidos. Teremos aí uma “situação-limite” no pensamento matemá­tico ?

3. A teoria dos conjuntos de CantorA teoria de Cantor sôbre os conjuntos rompeu

de maneira extraordinàriamcnte atrevida com tôda a tradição filosófica e matemática no modo dc tra tar o conceito de infinito. Abandona a tese aristotélica, aceita até então, sôbre o ser me­ramente potencial do infinito. Foi-lhe possível tal coisa porque refutou o axioma fundamental formulado por Euclidcs: “O todo é maior que sua parte” , como sendo válido para conjuntos infinitos atuais. De fato, quando se concebe o conjunto de todos os números pares como con­junto infinito atual bem como o conjunto de todos os números inteiros, então, por um lado, o primeiro conjunto é pròpriamente parte do segundo, e, por124

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outro lado, ambos podem ser relacionados biunlvo- camente, da seguinte forma:

1 2 3 4 5 6 7 8 ....................... »2 4 6 8 10 12 14 16 ....................... 2n

É fácil compreender que dois conjuntos que podem ser relacionados biunlvocamente entre si possuem a mesma grandeza, ou como diz Cantor, a mesma “potência” . (Na realidade êste critério vale para os conjuntos finitos). Portanto, a parte própria tem aqui a mesma grandeza, isto é, po­tência, que o todo.

O exemplo da correspondência entre o conjunto dos números pares, ou quadrados, e o conjunto total dos números inteiros era conhecido já desde a Antigüidade, e tanto Galileu como Leibniz apon­taram para o fato(8). Nova era sòmente a inter­pretação dada por Cantor. Enquanto Galileu o Leibniz opinavam que a necessidade de negar o princípio de que o todo era maior que a parte demonstrava a impossibilidade de o infinito ser concebido como atual, Cantor partia precisamente dêste ponto para estabelecer sua teoria. Todos os conjuntos que podiam ser postos em correspon­dência biunlvoca com os números inteiros foram por êle chamados de numeráveis”, e demonstrou que não só o conjunto dos números racionais mas também o dos números algébricos é numerável, mas náo o conjunto de todos os números reais (racionais e irracionais).

Eis brevemente sua demonstração:1. Existe sòmente um conjunto finito de núme­

ros racionais, isto é, frações a/b, dos quais a soma(8) J á aa Antigüidade o nooplutôoico Proclo so ocupou deeta quottSo num outro exemplo, geométrico (vid. Proolus in Euclidem. pág. 156, 1-2.*d. Friedleln; em alftmfto em: OM, pág. 273). Procurnor de O. Cantor é B. Búlimno eom m ui “ Paradoxien deu Unendüchen" (Praga 1S51); Vid. OM pág.. 274-277.

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de numerador e denominador a + 6 é igual a um número determinado n. Contem-se agora, suces­sivamente, as frações para as quais a soma é 1 , depois as frações cuja soma é 2 , depois as cuja soma é 3, etc. Em cada um dêsses grupos a se­qüência da colocação é livre; pode-se ordená-las, p. ex., segundo a grandeza das frações. Desta forma tôdas as frações estão numa seqüência bem deter­minada e de cada uma se pode dar o número in­teiro correspondente.

2. Nos números algébricos Cantor parte da defi­nição dos mesmos como soluções de equações algé­bricas, mais ou menos na forma:ao + <*i x*_1 + <ij xn~2 a*_i x ■+■ aa = 0

Aqui seja ao ^ 0 e todos os «i números racionais inteiros. Agora Cantor forma a “altura” do poli- nôrnio que representa o lado esquerdo da equação, isto é a soma:h = n + | ao I + I oi I + |a* 1 + |«s|-.. + |a»-i| + |oJSòmente um número finito de polinômios possui uma altura determinada e cada polinômio tem sòmente um número finito dc posições zero, por­tanto soluções da equação respectiva. Escrevam-se agora os números algébricos resultantes das altu­ras 1, 2, 3 . . . um atrás do outro, como acima, as frações; obtemos assim o conjunto de todos os números algébricos.

De forma semelhante podem ser contados outros números, que podem ser caracterizados como somas de determinadas séries infinitas, soluções de deter­minados cálculos diferenciais, o outros ainda como Borel indica.(9)

(S) S^bre o» dois arsumontoa de Cautor, dados em 1874. vid. G M , pág. 278 » . Sôbre as idéflM rle Bortl vid. E. Borcl, I.eçons aur la tMorio de la croi»»*nce (Paria 1910), rap . V. pág. 118 *». Vid. tam bím O. Becktr, M athcmatiscbe ExUteni (Hulle a. 8-, 1927), pág. 161.

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3. Ao contrário, o assim chamado "continuo” , igto é, o conjunto de todos os números reais de um segmento unitário nâo é mais numerável. Por­tanto, nem tôdas as quantidades infinitas são da mesma potência. Isto foi por Cantor demonstrado pelo seu célebre “processo da diagonal” , do qual daremos um breve esboço, já que se tra ta de um modo de argumentar muito importante que pode ser aplicado a outros problemas.

O argumento cantoriano é indireto e de certo modo dialético. Procede da seguinte forma:

Suponha-se que tôdas as frações decimais infi­nitas (ou se se preferir, tôdas as frações duais) entre 0 c 1 estejam numa seqüência numerável na ordem escrita. Frações decimais exatas podem ser redu­zidas a não-exatas, reduzindo o último número de uma unidade e acrescentando-lhe noves, por ex.,0,49999 . . . em vez de 0,5.

A seqüência dc tôdas as frações decimais entre 0 e I é representado pelo seguinte esquema:

0, ai i0i2íii3 . . .0, asidüzaxg . . .0, ds1032338 . . .

(Portanto os a(k são cifras: 0 , 1 , 2 , . . . 9.)Forme-se agora a “diagonal” dêste esquema:

an a22 «33 . . . , e substitua-se cada cifra quo nela aparece por uma cifra distinta dela bn 622 633 . . . Portanto, òu ^ au , 622 <*22, 6 3 3 ^ 033 . . . Nes­te caso a fração decimal 0,6 116 22633 é diferente de qualquer uma das frações decimaiR do esquema superior; pois diferencia-se pela sua primeira cifra (depois da vírgula) da primeira, pela segunda cifra da segunda, pela terceira cifra da terceira fração

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decimal superior. Com isto está demonstrado que na enumeração dada nfio estão contidas tôdas as frações decimais, isto é, todos os números reais, do segmento unitário.

Êste notável argumento é, como já dissemos, indireto e “dialético” ; apesar das aparências em contrário não se trato dc demonstração “constru­tiva”. Não se pode estobelccer “efetivamente” sob a forma de frações decimais um conjunto nume­rável de números reais por meio do processo da diagonal de Cantor. É fácil ordenar a fração deci­mal obtida pelo processo (0 , bn 622 633 . . .) na se­qüência superior das frações, colocando-o, p. ex., na frente da seqüência. Mesmo quando se repete 0 processo indefinidamente não se conseguiria che­gar ao fim, pois sempre de nôvo se pode ordenar as novas frações dentro da seqüência de números reais já colocados. Todo o argumento é de ordem meramente negativa c contém algo de paradoxal em si, embora não se encontre aí contradição.

Portanto, segundo Cantor, 0 processo da diago­nal mostra que existe um conjunto maior (mais exatamente: um conjunto de maior potência) do que 0 conjunto dos números naturais, isto é, o conjunto dos números reais (0 assim chamado "contínuo”), que pode ser concebido como o con­junto dos conjuntos parciais do conjunto dos nú­meros naturais(lO).

Por uma consideração análoga se pode mostrar que a potência do conjunto dc tôdas as funções reais (descontínuas e contínuas), até mesmo da­quelas que só têm 0 intervalo unitário como campo

(10) Pole-9» escrever to jos o* n(imeros reais como frações duais (base 2) que sòmente contíra njc cifras 0 e l . e tira r do conjunto de todos nâmsros inteiro» aa posiefos numéricas que contêm a cifra 1; p. sx.. pela fração d uai 0 ,10 101 0 ... se tira o conjunto dos números impares 11, 8, 6 ...).128

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do argumento maior que o conjunto do contínuo(ll). Pense-se nas funções J(x) em correspondência biuní- voca com os números reais; a função correspon­dente ao número especial z seja Forme-seagora a “função diagonal” j,(z) c além disto uma função diversa para todos os argumentos g(z); por exemplo seja g(z) = ],{z) + 1. Esta função g{z) é diferente de tôdas as funções acima aduzidas e correspondentes aos números reais: Portanto é impossível correspondência biunívoca entre as fun­ções J(x) e os números reais z.

0 mesmo processo pode ser, além disto, utilizado para demonstrar que a potência do conjunto de tôdas as funções de funções é maior que a de tôdas as funções reais. J á que aqui se adotam as funções reais como argumentos, pode-sc também adotar como argumentos as funções de funções para fun­ções, que são por assim dizer de terceira ordem (“funções de funções de funções”) e, por meio da “consideração diagonal” semelhante, subir a um conjunto de potência ainda maior. Êste processo pode ser levado ilimitadamente para frente; chega- se a uma seqüência ilimitada de conjuntos dc po­tência sempre mais alta. Portanto não existe um conjunto de potência máxima. Isto, contudo, leva a um paradoxo; de fato, o conjunto de todos os conjuntos, ou o conjunto de tôdas as coisas (imagi­náveis) deveria possuir a maior potência de todos, pelo fato de conter tudo. Entretanto o conjunto das funções formadas sôbre êle, ou (o que dá no mesmo) o conjunto dc seus conjuntos parciais, é de potência ainda maior, conforme as considera­ções acima expostas.

Temos aí o notável fenômeno que a natureza potencial do infinito, que parecia estar inteira-

(11) Ê ste con jun to * ao mesmo tem po o conjunto do todo» oa con- jun toa do* uúmcron reftia.

129

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mente superada na teoria dos conjuntos de Cantor,novamente se verifica em plano superior. A se­qüência infinita de conjuntos com potências sem­pre crescentes é ela também potencialmente infi­nita como um todo, embora todos os seus membros singularmente tomados sejam conjuntos infinitos atuais. No fundo não é ela de estrutura diferente da seqüência dos números naturais pré-cantorianos.

O mesmo fato se pode constatar nos conjuntos bem ordenados (isto é, dos conjuntos linearmente ordenados, cujas partes sempre possuem um pri- meio elemento) e em seus tipos de ordenação, os assim chamados “números ordinais transfinitos” . Também aqui o conceito de números ordinais máxi­mos, ou melhor, o conceito dos números ordinais transfinitos últimos, leva a uma contradição, à assim chamada “antinomia dc Burali-Forti” ; pois se TF fôsse o último número ordinal, poder-se-ia formar W + 1 , isto é, um número ordinal que se seguiria a W.

Para evitar êsses paradoxos é preciso restringir- se à consideração de conjuntos que estão num con­junto determinado (mentalmente), que ó tomado como “conjunto fundamental” . È portanto neces­sário supor uma limitação na “grandeza” dos con­juntos tratados (“limitation of size” segundo B. Russell).

Mesmo que seja possível evitar por tais medi­das os paradoxos imediatos, não se tem contudo nenhuma garantia que não haja outros paradoxos ainda desconhecidos e que até agora não nos chama­ram a atenção. Temos, portanto, aí, um problema muito sério: a demonstração da ausência de con­tradição na teoria dos conjuntos e na matemática em geral, eventualmente depois de serem introdu­zida,? modificações apropriadas nas teorias tradicio­nais e “ clássicas”.130

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Êste problema é tanto mais premente que a teoria dos conjuntos, ao tentar fundamentar-se, le­vou igualmente a paradoxos lógicos. Não há dúvida que, cm seus princípios fundamentais, ela é uma disciplina muito próxima da lógica. Conjunto e propriedade dos elementos são idéias evidente­mente afins. De fato não é possível descrever um conjunto infinito pela descrição dos elementos singu­lares que o compõem; isto é possível só em conjuntos finitos. Portanto, é preciso caracterizar um con­junto infinito por uma propriedade, um conceito, uma lei que abranja todos os seus elementos. Neste caso o conjunto deve ser definido como a totali­dade de tôdas as coisas às quais convém a proprie­dade referida, ou como o conteúdo daquele con­ceito hipotético.

É significativo que essa definição tão simples e aparentemente tão clara e até evidente leve a uma antinomia, isto é, à antinomia da propriedade de tôdas as propriedades que não podem ser expressas por si mesmas, ou — falando do ponto de vista da extensão — à antinomia do conjunto de todos os conjuntos que não estão contidos como elemen­tos; trata-sc da célebre antinomia russelliana, que foi assim formulada:

“Seja w a classe das classes que não são ele­mentos de si mesmas. Qualquer que seja a classe x, temos: ’x é um w’ é equivalente a esta: ‘x não é x \ Além disto, se se dá ao £ o valor de w, então ‘w é w’ eqüivale a ‘w não é

É de notar que os conjuntos que não se con­têm a si mesmos como elemento são os con­juntos normais.(12 ) O conjunto dos números natu­rais não é um número, qualquer conjunto de pontos não é um ponto, etc. Mas existem também certos

(12) Por exemplo o conjunto <ía« comaa verdefi nfio l niua coisa verde. Há entretanto oxccçfio: o conjunto de todo« on conjuntos é um conjunto.

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conjuntos que parecem comportar-se de outra for­ma. O conjunto de todos os objetos nãu-verdes não é um objeto verde, isto é, um objeto não-verde. E o conjunto de todos os conjuntos parece ser êle mesmo um conjunto. Contudo o conjunto para­doxal de Russel, w, 6 justamente o conjunto de todos os conjuntos normais, e parece, portanto, um conceito inteiramente justificado. Contudo, preci­samente com êle se chega a um paradoxo quando se pergunta se êle é normal ou não. De fato, se ê um conjunto normal, é elemento de si mesmo, portanto anormal; se é anormal, não é elemento de si mesmo, portanto, normal.

Da mesma forma se podem designar como nor­mais as propriedades que não se referem a si mes­mas, dc modo que “normal” significa mais ou menos o mesmo que “relativo a outro”. Pergunta-se então se a propriedade “normal”, ou “relativo a outro”, é por sua vez normal (isto é, relativa a outro), e obtem-se a mesma contradição.

Pode-se constatar que antinomias dêsse tipo não provêm da imperfeição da linguagem. Por esta razão são chamadas antinomias “lógicas” (algumas vêzes “sintáticas”), em oposição às assim chamadas antinomias “semânticas” (em que entram con­ceitos lingüísticos tais como significação, designa­ção, ou conceitos como verdade, valor, demonstra- bilidade, etc.). Essas antinomias podem por conse­guinte ser apresentadas sem mais uma linguagem lógica formalizada. A importância fundamental disto queremos brevemente expor agora.

Na base está a consideração do assim chamado “princípio de compreensão”, que assim pode ser expresso em sinais:(13)

(1) (Ez) (x) ( x t t - H (*))(13) ExpücaçSo doa símbolos: (E*.): “ Há um *” ; (at) "p a ta todo x'*; xix: * ‘ x 6 ura elemento <lo conjunto *” ; H(x): "* «atUía* à condiç&o I I ” *

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■“Existe um z de modo que para todos os x vale: x pertence exatamente ao conjunto z, quando sa­tisfaz a condiçfio H ”.Quando se coloca em vez da condição H(x) o seguinte x * x , isto é, 4,x não pertence a si mesmo” , chega-se a uma contradição.Neste caso temas:

(2) {Ez) (x) (x t z * x «x)Já que (x) significa o valor universal “para todo o x ”, pode-se substituir o x por 2 e sc obtém a contradição:(14)

(3) z e z «■ z t zPara eliminar esta contradição foram feitas duas

propostas(lõ):1) Pode-se modificar o princípio da compreen­

são, e isto de diversas maneiras.a) Consegue-se isto por certos acréscimos à condição //(ar) que lhe são copulados por “e” (et). Assim W. V. Quine (seguindo uma idéia de J . v. Neumann) faz 0 acréscimo:

(Eu) (x « u)

Isto significa que se exige a existência de um conjunto ao qual pertence x como elemento. Em vez da formula (3) temos então

(3’) z t z = (Eu) (x tu ) et z t z

(14) Vid. Tf. Ilfrmêã e N. ScÀols, M athematbohe Logik, ©m: Eoxyklopaodie der mathem*tÍ9chon WUatnrutch&flen (Neue Auftagc) vol. I. parte 1, fiuw. 1, parte 1 (Leipzig 1952, N.° 12.3 (p. G9).(16) Vld. Hcrmse-SehoU, loc. cit., n.« 12.4 (pág. 60 s.).

133

,

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Segue-se daí que (Eu) (x tu ) é falso(16), isto é, não existe a quantidade u, à qual pertence x; x é incapaz de ser um elemento de uma quanti­dade; por isto nfio tem sentido perguntar se êle pertence a si mesmo como elemento, ou não.

ò) Com E. Zermelo se pode substituir H(x) por uma série de princípios singulares que formam os conjuntos, os quais são selecionados de modo que não mais podem aparecer contradições do tipo até agora considerado, e que contudo são suficientes para com êles elaborar a teoria “clássica” sôbre os conjuntos. Zermelo opera com conjuntos não arbitràriamente grandes como sendo “coleções” de quaisquer coisas, mas a única operação que, apli­cada a um conjunto determinado, pode aumentá-lo grandemente: é a formação do assim chamado“conjunto de potência”, isto é, o conjunto das partes; mas também ela não leva a conjuntos univereaia(17).

2) O segundo método para afastar as antinomias é excluir completamnte expressões tais como “x tx " e “x e x ”. Quine procede de modo a exigir índices de conjuntos, dc modo que se atribua aos indiví­duos, às classes de indivíduos, às classes de classes de indivíduos, etc., um índex que é aumentado de 1 em 1 . Admitem-se expressões tais como xty sòmente quando o índex de y é mais alto por uma

(16) Uma equivalência da forma p a (7 e t p) «6 tf válida quando ambos 09 lados s4U> verJadeiros ou falsos. Aqui 6 impossível quo ambos sejam verdadeiros; jm>ís se p é verdadeiro, p 6 falso e portanto também ê falsa a conjunç&o à direita. Mas se p é falso, p ê verdadeiro; ora, para que o lado direito também seja falso, e assim tôda a equivalência sn torne verdadeira, é preciso que o segundo membro da conjunçAo q neja faUo. Isto quer dizer: p e a sSo ambos falsos.

(17) Vld. E . Zermrlo, Ueber Grenxxahlen und Mengenbeieiche, em: Fundam enta M athcmaticac XVI (1930), págs. 2ÍM7.

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unidade do que x. Desta forma as antinomias desaparecem, tanto quanto diz respeito às antino­mias lógicas hoje conhecidas.

Oque significam essas considerações para nós quee stamos ocupados com a questão dos limites do esnsamento matemático?

É pcm dúvida surpreendente, senão assustador, que seja possível enredar-se cm contradições desta espécie, por uma argumentação levada a efeito sem falhas. Quem lê as desesperadoras palavras de G. Freges no final de sua importante obra "Leis fundamentais da aritmética”, onde pela primeira vez torna público o paradoxo russelliano (1902) — B. Russcl lhe comunicara por carta a questão — ainda hoje pode sentir o abalo provocado por esta descoberta de uma “singularidade não imaginada nas funções lógicas” . O historiador lembrar-se-á da descoberta das razões irracionais, em figuras geométricas bem conhecidas, pelos pitagóricos do século V antes de Cristo, a qual desencadeou uma "crise básica” semelhante.

Nem os antigos, nem os modernos matemáticos e filósofos recuaram diante dessa crítica situação. Na Antigüidade surgiu, como já mencionamos, a teoria das razões incomensuráveis por obra dc Eudoxo e Teeteto, e em nosso tempo foi criada a investigação exata dos fundamentos da matemá­tica, para, por meio dela, demonstrar a ausência de contradição de uma grande parte da matemá­tica tradicional. Com isto o pensamento matemá­tico entrou êle mesmo numa crise insuperável, ou conseguiu sair dela? Talvez se exagere quando se fala de uma “crise”, mas não se tomou visível uma espécie de “limite” ?

É inegável que com a teoria dos conjuntos não se deve operar tão “simplesmente” como até agora sc fêz. Não se pode formar conjuntos arbitrària-

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mente grandes, tais como os que “ tudo abrangem” ; é preciso precaver-se contra conceitos reflexivos, chamados “impredicativos”. Russel estabeleceu seu célebre “princípio do círculo vicioso” : O que involve todos os membros dc uma totalidade não pode ser membro dessa totalidade. Mas, esta limitação da formação do conjunto (do ponto de vista lógico: da formação dos conceitos) inclui uma limitação do próprio pensamento matemático ? A auto-correção do pensamento não pertence ao pró­prio pensamento ? Não se trata aqui de um refina­mento do pensamento lógico-matemático produ­zido pela reflexão, c de maneira alguma de um fracasso ?

É verdade que o pensamento é levado pelas antinomias lógico-matemáticas à auto-reflexão e ao auto-exame, mas isto não constitui um mo­mento estranho ou hostil ao pensamento, pois per­tence ã sua própria natureza, desde o início. De um ponto de vista universal e filosófico, não se pode falar aqui de uma catástrofe, de uma ruína do pensamento. Mas a questão surge: Pelos meios com que se procurou obviar o aparecimento de antinomias foi afastado qualquer perigo de anti­nomias ? Não seria possível — como já aponta­mos — que um dia fôssem descobertas antinomias das quais não temos ainda a menor idéia, contra as quais o princípio do círculo vicioso nada adian­taria? Mais ainda: a aplicação estrita e conse­qüente dês te princípio não prejudicará o alcance dos argumentos matemáticos ? Não foram as cou- clusões, “proibidas” agora, passos importantes, até mesmo imprescindíveis, para a construção do gigan­tesco edifício da moderna matemática ?

Essas perguntas “técnicas” se mostraram muito mais importantes que as considerações “filosófico- universais” . Nos últimos decênios se lutou valen­

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temente para dar-lhes uma resposta satisfatória. Representativo sobretudo neste campo foi David Hilbcrt. Conseguiu demonstrar a ausência de con­tradição na aritmética elementar (cálculo por meio de números), na geometria elementar c na assim chamada “aritmética recursiva” de Th. Skolem(lS). G. Gentzen mostrou amplamente a não-contradição da teoria dos números(19) e P. Lorenzen a da análise, numa forma que pouco se afasta da “clás- sica”(20).

Não é aqui o lugar para entrarmos nos porme­nores dos métodos dessas provas de ausência de contradição. Só queremos dizer que para êsse fim Hilbert descobriu a assim chamada consideração “metamatemática” . Quando se formaliza total­mente um argumento matemático, e mais ainda tôda uma teoria matemática, por meio do cálculo lógico, e se o representa inteiro numa forma pura­mente simbólica, sem emprêgo de palavras, na se­qüência dos símbolos e na maneira de passar de uma série de sinais que traduzem expressões mate­máticas para outras (tal como o exige a marcha da teoria), se obtém uma estrutura e um processo que por sua vez pode ser investigado matemàtica- mente. Esta investigação é por Hilbcrt chamada “metamatemática” . Nessa maneira de considerar se abstrai inteiramente do fato do que os símbolos têm uma “significação” ; são concebidos simples­mente como “figuras” vazias de sentido, tal como

(18) Uma AproMTttftçllo completa vide em D. Hilberl-P. Brrnay* Grundlagen der M athem atik, 1 (Berlim 1634); I I (Berlim 1939).

(19) "Dic Widcrapruchífrclheit der reineo Zahleotheorie", em: M athc- matioche Aimalr.n, 112 (1936), páfcn. 493-505.(20) "Die Widerspruch&íreiheit der klassinchcn Analyais", em; M athe- maii«che Zoitscbrift 54 (1951), pág. 1 8?. Vd. também "Kooôtruktive Begrucndung der M athem atik” , ib. 53 (1950), pdg. 162 fes. Uma expo- eLi;âó m.aitmida de tôda a matemática e que foi demonstrada como ratando livr» do contradições no Uvro: Einfuehrung ín die operativo Logik o M atbe- m atik (Berlim-Gocttingcn-Hcidclberg 1955)»

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são utilizadas num cálculT “ jocoso" (semelhante ao de von Lorenzen, dc que já falamos, e sôbre o qual ainda voltaremos) ou no xadrez. A idéia fundamental da demonstração da ausência de contradição consiste em que a própria idéia de contradição é representada simbòlicamente, seja pela equação absurda “ 1 = 2 ”, e mostra que esta figura absurda, constante das três figuras elemen­tares (“átomos”) 1 , = , 2 , não pode ser construída no cálculo, isto é, no jôgo das figuras, segundo as regras do cálculo.

Pense-se que também no xadrez há certas joga­das finais nas quais não é possível o xeque-mate, isto é, em que é impossível construir uma posição de xeque-mate quando, por exemplo, no fim do jôgo se enfrentam sòmente os dois reis que sobra­ram.

Uma ilustração muito simples de todo o pro­cesso nos é oferecida pelo cálculo de Lorenzen, acima citado. Nesse cálculo inteiramente “jocoso”, sem qualquer outra “significação”, havia sòmente dois átomos ( • e O) e uma única figura funda­mental ( • ) e as duas regras básicas:

x —>xo e x -> • x •Agora, é fácil imaginar que uma figura neste

cálculo é exatamente deduzi vel (construível), quando o número dos átomos negros é ímpar e se encontram átomos brancos sòmente à direita do átomo negro central. Tôdas as figuras que não satisfazem essas duas exigências não podem ser construídas, so­bretudo a figura • O • , pois ela contém um número par dc átomos pretos. Se portanto o cálculo pudesse ser interpretado de forma que a figura • O • simbolizasse a idéia de contradição, (como “ 1 = 2 ”), não se poderia construir no cálculo138

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uma contradição, e estaria demonstrada a ausência de contradição nêle(2 1 ).

É-nos impossível apresentar aqui um argumento completo sôbre a ausência de contradição; bastem êsses indícios.

Até o ponto a que atingem essas demonstrações, as partes da matemática que caem sob êles apare­cem como absolutamente livres de contradição e certíssimos. Infelizmente, a esperança de Hilbert dc poder, por tais métodos finitos metamatcmáticos, demonstrar a total ausência de contradição na matemática se revelaram como enganadores. Sur­giram novas dificuldades fundamentais, não já no cálculo elementar, na teoria recursiva dos númeroso e na geometria elementar, mas na teoria geral dos números e principalmente na análise e na teoria dos conjuntos; são dificuldades de caráter inteira­mente nôvo.

Se êste não fôsse o caso, e se os métodos metama­temáticos finitos fôssem suficientemente amplos, não mais se poderia falar de limites do pensamento matemático, colocados pelas antinomias da lógica e da teoria dos conjuntos. Mas a situação não é tão simples assim, como veremos a seguir.

4. O intuicionismoA seqüência lógica de nossa exposição exigiria

que agora expuséssemos as novas dificuldades que se levantaram contra a universalização dos primi­tivos argumentos de Hilbert, para demonstrar a

(21) Vid. L o r tn zrn , Formale Logik, p i* . 95) — Sâbre a p r im e ira ten tativ a de Hilbert par» estabelecer a prova de aunfncia dc contradição (em wu estudo "Sdbre o* fundamento» da lógica e da m atem ática’', no congrrrao de matemAtica de Heldelbcrg em 19Ó4) vid. GM , piig». 360-370; al«m mato OM p Ar*. 370-383. Sôbre Gontern: GM 387-392; sabre Lo- TOUíem GM 393*401.

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ausência de contradições na matemática. Mas adiantamo-nos assim ao desenvolvimento histó­rico; no primeiro decênio do século xx entra em jôgo uma nova teoria, que até agora não expuse­mos, o assim chamado “intuicionismo, ou, mais exatamente, o “neo-intuicionismo” dc L. E. J. Brouwer (desde 1907)(22), do qual sc originou um nôvo ataque contra a matemática tradicional, que durante o século x ix parecia ter sido inteiramente fundamentada; foi para obviar êsses novos ataques que Hilbert desenvolveu amplamente sua teoria.

O ponto de partida fundamental de Brouwer é a dúvida sôbre o princípio lógico da exclusão do terceiro, enquanto se refere a conjuntos infi­nitos. Quando sabemos de um conjunto M que nem todos os seus elementos possuem uma deter­minada propriedade A, concluímos cm geral que pelo menos existe um elemento dc M que não possui a propriedade A. Se o conjunto M é finito, embora talvez bem grande, a verdade dessa con­clusão não pode ser posta em dúvida; mas é muito diferente, na opinião dc Brouwers quando o con­junto M contém elementos em número ilimitado, p. ex., quando se tra ta do conjunto dos números paras acima de 2 (4, 6 , 8 . . . ) .

Tomamos êsse conjunto como exemplo e esco­lhemos como propriedade A o fato que, aparente­mente, cada número par acima de 2 pode ser repre­sentado como soma de dois diferentes números primos (algumas vêzes até de diversos modos).

Isto de fato se verifica nos primeiros números pares:4 = 1 + 3 , 6= 1 + 5, 8 - 3 + 5 , 1 0 = 3 + 7 , 12 = 5+ 7,

14 = 3 + 11 . . .(22) Sôbre o intulcioniamo vid. a* fontes em GM pág«. 327-351 (L.

Kroneder — J?. Borel — L . E . J . Brouwer — A . Kcimogoroff — H .

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0 matemático Christian Goldbach (1690-1764) opinava que esta propriedade A valia para todo número par, mas nem êle, nem qualquer outro foi capaz (até agora) de provar ou refutar esta afir­mação. (Por meras experiências não se chega a prová-lo, pois a seqüência dos números pares é ilimitada). Segundo o princípio lógico mencionado “Tertium non datur” , poder-se-ia propor o se­guinte dilema disjuntivo: "Ou todos os números pares acima de 2 podem ser representados como soma de dois números primos diferentes, ou há pelo menos uma exceção a esta regra”.

Brouwcr nega o valor da conclusão, pois não é possível percorrer todos os elementos da quanti­dade (4, 6, 8, . . . ) a fim de encontrar o elemento que faz exceção, nem sc conhece construção alguma que permita determinar uma exceção; portanto estas duas expressões: “Nem todos os elementos de M têm a propriedade A " e “existe pelo menos um elemento que não tem a propriedade^”, não são equivalentes.

Partindo dêsse pensamento fundamental, Brou- wer c sua escola elaboraram uma ampla reestru­turação da matemática, em que se renuncia ao “tertium non datur” e tôdas as demonstrações são levadas a efeito dc modo construtivo. (A partir de 1944 G. F. C. Griss começou a estabelecer um sistema matemático que dispensa totalmente a nega­ção; mas ainda aqui nem tôdas as dificuldades fo­ram vencidas). A matemática “ intuicionista” é muito mais complicada que a tradicional. Embora partes importantes da antiga matemática pudessem ser “ salvas”, incluindo necessariamente aquilo que era imprescindível para a física teórica, houve con­tudo perdas dolorosas, e as demonstrações se tornam muito mais difíceis; igualmente muitos conceitos tradicionais, tais como convergência e divergência

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nas séries infinitas, etc., devem ser divididos em diversos sub-conceitos, e assim por diante.

Não podemos agora expor essas coisas pormeno­rizadam ente^).

Mais uma vez perguntamos: Encontramos neste ponto um limite essencial do pensamento matemá­tico que nâo pode ser superado ? A velha matemá­tica “clássica” perde qualquer significação pelo fato de não poder ser totalmente fundamentada dc forma intuicionista ?

Hilbert com suas teorias metamatemáticas se opôs à “ tentativa de golpe” (como dizia) e afir­mava com veemência, apoiado em suas teorias, que com o “tertium non datur” se podia operar sem contradição, mesmo em conjuntos infinitos, e com isto estava demonstrada cientificamente a matemática clássica (isto é, demonstrada que está livre de contradição).

O pensamento fundamental do método empre­gado por Hilbert é que, em vez da afirmação exis- têncial “existe um elemento de Aí que não tem a propriedade A ”, se devia exprimir ünicamente a irrefutabilidade da afirmação: “ É irrefutável que existe um elemento de M . . . ” Esta afirmação de irrefutabilidade pode ser identificada com a expres­são universal: “Nem todos os elementos de M têm a propriedade A ". (Nossa exposição é simpli­ficada; o argumento é muito mais complexo na realidade)(24).

Desta forma se consegue elaborar um cálculo “fictício” livre de contradição, que corresponde

(23) Vld. A Hnytinç, IntuitionLam. An Introduetion (Amjiterdam 19&6), onde podo encontrar ampla literatura. O próprio Ileyting ela­borou um cálculo lógico intuicionista, ma* que nJlo desempenha o papel fundamental na matemática intuicionista, como na teoria da demons­tração do Hilbert.(24) Vid. p. «xemplo, a exposição de L w n u n , Formale Logik, pág.

100. 110 88.142

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inteiramente ao cálculo clássico. Não se pode, portanto, afirmar que a crítica intuicionista exerceu um efeito destrutivo na lógica clássica.

Mas é preciso ter em mente que há uma dis­tinção entre lógica “efectiva” e “fictícia" e que não se pode atribuir a mesma significasão “real” aos resultados da segunda como aos da primeira.

Atente-se, entretanto, ao seguinte fato, apon­tado já por Hilbert:

Quando por um cálculo, demonstradamente livre de contradições, embora fictício, se conseguiu um resultado numérico determinado (p. ex., numa teo­ria da física, ou da astronomia), êste resultado tem valor “ real” . Não lhe pode ser oposto um resul­tado numericamente diferente referente ao mesmo problema, sem que surja uma contradição no siste­ma, e tal coisa está desde o início excluída por demonstrações anteriores. Assim, conforme Hilbert, uma consideração matemática “fictícia” pode ser empregada na física teórica e nas outras ciências matemáticas, pràticamente com os mesmos resul­tados de uma consideração efetiva, contanto que esteja provada a ausência dc contradição.

Como resultado dessas considerações, pode-se afirmar que a idéia intuicionista não tem como conseqüência uma limitação, mas antes um refina­mento do pensamento matemático.

5. Computcibilidade e decisibilidadeDepois dêsse “interlúdio” (não sc trata pròpria-

mente de um interlúdio, mas do processo real seguido pela pesquisa dos fundamentos da matemá­tica), chegamos à dificuldade que pode ser consi­derada a mais séria que o pensamento matemático encontrou no decorrer de sua longa história.

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Esta dificuldade diz respeito precisamente ao método axiomático, que segundo Hilbert é essencial à matemática e cujo desenvolvimento milenar a partir de Euclides já delineamos. Trata-se do uma idéia que começa com o célebre estudo dc K. Goedel “Sôbre princípios formalmente indecisíveis dos ‘Principia M athematica’ e sistemas afins"(25). O autor mostra aí que no sistema lógico-matemático de Russel e Whitehead, apresentado nos “Prin­cipia M athematica”(26), e em todos os sistemas afins capazes de se exprimirem dc maneira satisfa­tória para fundamentar pelo menos a aritmética do ponto de vista lógico, há princípios não decisí- veis que não obstante são “verdadeiros’'.

Isto significa que o sistema clássico dos “Prin­cipia M athematica'' é incompleto. Além disto constatamos que não se trata de um caso fortuito do sistema de Russel-Whitehead, que poderia ser corrigido, mas que cada sistema dêste tipo “clás­sico” é necessàriamente incompleto. Mas há algo mais importante ainda e que é da maior significação para a teoria da demonstração: aos princípios indecisíveis nos sistemas clássicos, isto é, as pro­posições que não foram demonstradas, nem refu­tadas, pertence a própria afirmação de que o sistema é livre de contradições. Portanto, a ausência de contradição num tal sistema não pode ser demons­trada pelos meios lógicos oferecidos pelo próprio sistema.

Com isto Goedel descobrira a razão mais pro­funda por que os esforços de Hilbert, em demonstrar como livre de contradição a teoria completa dos números, não tiveram êxito. A razão se encontrava

(25) MonuUhefte ínor M athem ntik und Fbysik 38 (1031), p ica 175-198.(26) A . .V. W kiuhtad >• B. R uitrl, Principio M nthemmicu (Cerobride© 810-13*. 1925-27»).

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no princípio fundamental de Hilbert que consistia em elaborar suo “M etamatemática” de forma finita, no sentido elementar da palavra. Admitia sòmente considerações metamatemáticas comprovadamcnte finitas e permitia sòmente o uso da tradicional indução completa, tal como se procede na aritmé­tica elementar. Sòmente quando Gentzen (1936) ultrapassou êsses limites e utilizou uma forma de indução, resp. “recursão”, que utilizava a se­qüência dos números ordinais transfinitos de Cantor (a segunda classe de números) até o assim chamado “primeiro número epsilon”, se conseguiu a demons­tração da ausência de contradição da teoria dos números inteiros puros.

Com o método de Gentzen, por êle introduzido com tanta prudência e provado tão fartamente, foi superado o quadro estritamente finito no sen­tido do princípio fundamental primitivo dc Hilbert. Foi superado igualmente o quadro lógico dos “Prin­cipia Mathematica". Pois, embora Russel e Whi- tehead não se importassem com as máximas estri­tamente finitas de Hilbert e nem sequer com as exigências intuicionistas menos estritas, a estru­tura de sua “ teoria dos tipos”, que levara a evitar as antinomias da lógica da teoria dos conjuntos, não deixava de ser finita. Dc fato, o número dos graus lógicos sobrepostos (“tipos" e “ordens”) sem­pre permanece finito nessa teoria, embora não se lhes assinale um limite firme. J á em 1931 Goedel apontara para o fato que êle poderia demonstrar os princípios “verdadeiros” que dentro dos “Prin­cipia M athematica” eram ditos indecisos, se se apelasse para um número transfinito dc graus ló­gicos. Mas não levou então adiante êsse pensa­mento.

Com isto ficou evidenciada a grande significação do trabalho de Goedel. Tentaremos agora expor

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a marcha de seu pensamento sem recorrer a todos os detalhes técnicos por êle empregados.

(5. .4 prova da incompletividade de GoedelPara introduzir o leitor na marcha do pensa­

mento de Goedel começaremos pela antinomia de Richard(27). Trata-se de uma antinomia “semân­tica”. Essas antinomias são de tipo diverso dos paradoxos de Russel, pois se referem a conceitos, de seu ponto de vista da lingüística (gramática, significação, sintaxe, etc.) e da teoria do conheci­mento (verdade, demonstrobilidade, etc.).

A antinomia de Richard(28) pode ser assim resu­mida:

Tomemos as definições das propriedades dos números naturais, expressas em determinada língua, por exemplo na língua alemã, e por alguns sinais matemáticos. Pode-se ordenar essas definições (que evidentemente só podem ser formuladas em con­juntos enumeráveis) numa seqüência, empregando para isto primeiramente as letras que designam a definição, e mantendo em seguida para cada letra a seqüência lexicográfica. Temos então a seguinte seqüência:(1) W h W2, W3 . . . WH(TF designa as propriedades dos números inteiros)

(27) Seguiram aqui em grandr parte a aprp8entaçfto de A,Seatence* unrlecidablò »n formtüiiod Aritbinotíe. An Expoeition of the Theoriesof K u rt Goedel (Anwterdiun 1952), IntroducÜou páfia. 1-13. Outr* exposição de todo o problema 6 oferecida por Lorenzen, Form ale Logik, pá*à. 9Õ-G9, 121-130.

(28) J . H ickard. Le# prlnclpea dea matliématiquee c le probiêtue dea ciw m blcj, cm; Rcvue générale dc» wicncca purea e t appliquóea, 14 (1905) pág. 541 es.

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Pode-se agora perguntar se um número deter­minado n tem a propriedade W Se tal fôr o caso, exprimiremos êste fato pela sentença: "W Jyi) é verdadeiro” ; se não fôr o caso diremos: “W Jin) é falso", ou: “non-TF,(n) é verdadeiro”.

Consideremos agora o segundo caso, supondo que p “ ». Isto quer dizer que consideramos o caso em que non-FT»(n) é verdadeiro. Neste caso diremos “n 6 richardiano”. Esta propriedade de ser “richardiano” é, evidentemente, uma proprie­dade numeral, isto é, uma propriedade expressa ou definida por uma palavra da língua alemã e alguns sinais matemáticos. Portanto, no catálogo acima apresentado das propriedades dos números (a lista dos TF), aquela propriedade “richardiana” deveria aparecer e ocupar um lugar bem definido. Seja q a sua letra naquela lista. Então temos:(2 ) i r / n ) aequivalet non-ir,(«)

Coloquemos agora nessa equivalência: n = q, oque nos é permitido, pois n 6 um número inteira­mente arbitrário, e chegamos a uma contradição:(3) W,{q) aequivalet non-TF/ç)o que é uma evidente contradição.

A solução desta antinomia se consegue pela clara distinção entre linguagem primitiva (lingua­gem de objeto) e meta-linguagem, isto é, a linguagem pela qual nos expressamos a respeito da linguagem primitiva. (A ‘'linguagem de objeto” é o objeto dessa meta-linguagem). Como exemplo temos o seguinte: numa gramática latina o latim é objeto para o estudante alemão, enquanto que o alemão é a meta-linguagem, pcis naquele livro se fala sôbre o latim em língua alemã.

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Apliquemos esta distinção à nossa antinomia e veremos que a propriedade “richardiana” não per­tence à linguagem primitiva, mas à meta-linguagem; ela designa uma propriedade “gramatical” da ex­pressão W „ relacionada com n, isto é, o fato que na expressão W o Index p é distinto da variável n. Temos aí evidentemente uma expressão meta-lin- güística. Portanto, o predicado “richardiano” não pertence à série dos W, isto é, a propriedades numerais designadas por esta letra, e assim não pode ser identificado com W t. Descobriu-se assim a falha na conclusão da marcha do pensamento de Richard.

Goedel se utilizou do pensamento de Richard não para chegar a um nôvo paradoxo, mas para, por meio de uma modificação e uma precisação do argumento, chegar a algo de nôvo, isto é, a demons­trar princípios formalmente indecisos nos “ Principia M athematica”.

A exposição acima feita da antinomia de Richard foi apresentada 11a língua corrente e imprecisa, e pareceu que a antinomia era sòmente aparente, proveniente do emprêgo promíscuo da linguagem primitiva e da meta-linguagem. Pela tentativa de reconstruir a marcha do pensamento numa lin­guagem precisa c formalizada, pode se evitar a chegar a conclusões enganadoras e falsas.

Imaginemos agora um sistema formal (S ), e por meio dêle consideremos as propriedades dos nú­meros naturais, isto é, elaboremos em S formas de expressões (“propositional functions” ou “ ma- triccs”) com uma única variável, cujos valôres são números naturais. Mais uma vez as apresentamos numa seqüência:(4) Wi, W», Ws . . . Wn143

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Estamos agora diante da tarefa de exprimir, com exatidão, a afirmação que n 6 “ richardiano”, isto é:(5) “n não tem a propriedade expressa por TF»” .

Como antes, podemos exprimir a afirmação por“ TF„(n) não é verdadeiro” , ou por “non-TF„(n) é verdadeiro” . Mas o conceito “verdadeiro” oferece grande dificuldades não só na filosofia “geral”, mas também na lógica matemática, sobretudo quando se tenta precisá-lo, como mostrou A. Tarski.

Para nosso objetivo, contudo, podemos substi­tuir o conceito "verdadeiro” pelo conceito muito mais fácil de precisar, que é “demonstrável”. E êste o caminho que Goedel seguiu.

Para nós êste conceito significa "formalmente demonstrável no sistema formalizado S ”: vemos então que nesse sentido são “demonstráveis” justa­mente os axiomas e os teoremas de S. Poder-se-ia pensar que no conceito de demonstrabilidade está contido o difícil conceito de capacidade ou possi­bilidade. Mas não. Uma propriedade é demons­trável quando existe uma corrente (algumas vêzes ramificada) de afirmações dedutivas ligadas entre si, que começa com axiomas do sistema S e acaba com a propriedade “demonstrada”. Portanto, para a definição de “ demonstrável” é necessário, além dc um conceito preciso de dedução em S — o qual evidentemente está dado num sistema forma­lizado como é S — o quantificador existencial “ há (pelo menos) um . . . bem conhecido da lógica matemática (no cálculo dos predicados de primeiro grau).

Estamos agora em condições de precisar a sen­tença (5) como se segue:(6) ‘ A afirmação TF„(n) não é demonstrável em S".

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Até aqui tudo bem. Agora, para seguir adiante na marcha do pensamento da antinomia de Richard, precisamos identificar a propriedade descrita em (6) por n com uma propriedade Wrt. Aqui deparamos com uma nova dificuldade c, parece, decisiva.

Estamos agora no mesmo ponto em que a con­clusão errada do paradoxo de Richard foi “desmas­carada” pela clara distinção entre linguagem primi­tiva c meta-linguagem. De fato na formulação (6) aparecem os têrmos “afirmação” (sentencc) e “de- monstrável”. Ora esses são evidentemente expres­sões “gramaticais” que pertencem à “sintaxe” daquelas línguas em que está formulado ir„(n), isto é, à sintaxe da língua do sistema formalizado S. Portanto não pertencem à linguagem “primitiva” do sistema S mas à meta-linguagem, na qual se fala sôbre êste sistema S (sua sintaxe e portanto sua gramática).

Considerando êste fato, parece à primeira vista excluído que a propriedade do número n expresso em (6) pessa ser identificada, nem sequer do ponto de vista da extensão, com um Hrt , ccmo exigiria a marcha do pensamento do argumento de Richard que estamos seguindo. Esta identificação era preci­samente onde o argumento de Richard levava a uma conclusão errada. Como podemos chegar a uma conclusão correta e evitar a contradição ?

Coedel conseguiu realizar esta proeza pelo se­guinte p&sso genial, a que se deu o nome de “aritme- tização da metamatemática”. Parte de que, consi­derada exteriormente, uma fórmula lógico-matemá- tica é uma seqüência finita de sinais para cons­tantes, variáveis e números lógicos, e que ura argumento matemático total (uma demonstração ou tóda uma teoria) ó uma seqüência finita de seqüências finitas de sinais. Goedel numerou todos os sinais (o que se pode fazer de diferentes maneiras),

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e conseguiu assim uma correspondência biunfvoca entre expressões lógico-matemáticas e seqüências finitas. E já que é possível ordenar de diferentes modos seqüências finitas de números e fazer corres­ponder biunlvocamente a outras, argumentos intei­ros podem ser substituídos por números.

Um método muito simples e muito elegante da “aritmetização” (distinta da apresentada primiti­vamente por Goedel) nos é oferecido por W. V. Quinc(29). Segundo êle o cálculo lógico-aritmético, suficiente para uma teoria de números puros, pode ser realizado pelos seguintes sinais:

Sinais lógicos: ~ (nâo), & (e), ( ) (parênteses);Sinais aritméticos: = (igual a), + (mais), . (vê­

zes), x (variável), ' (sucessivo de . . . ) ;(x) . . . significa: “ para todos os x . . .” ;x, x', x", x '" . . . designam variáveis em número

indefinido;(')> (")> ('") • • ■ s&o sinais para os números 1 , 2, 3, . . .Os outros conceitos lógicos geralmente empre­

gados podem, como se sabe, ser reduzidos fàcil- mente aos acima mencionados, por intermédio de uma definição(30).

São portanto precisos sòmente nove sinais, e êstes podem ser numerados pelas nove cifras do sistema numeral decimal:

~ & ( ) = + . x ' 1 2 3 4 5 6 7 8 9

(29) W. V. Quine, M ethode of Logic (New York 1950), p íg . 215 ».(30) Deíine-w assim "p m | ( o u também) q" por meio de ~ í~ p & ~ q). "p implicat q" por meio de ~ (p A —■ q). "p o*jui- »on( q" por m«io d« (p impl. q) A (q impl. p). (Ex) P (*) C eiiâte um * oom a propriedade P") por ~ (x) ~ P (x).

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Por conseguinte é fácil “cifrar” qualquer ex­pressão escrita por sinais originais: por exemplo, a fórmula expressa pela sentença “para todo x, x é igual a x ”, torna-se então:

(ar) (x = x), o que é cifrado: 38438584

Tôda uma série de expressões pode ser cifrada por um único número, ordenando as cifras de cada expressão pela interposição de 0. Êste processo pode também ser repetido quando se quiser cifrar diversos grupos de expressões por meio de um s<5 número; neste caso se interpõem 00, e assim por diante(31).

Sôbre a base dessa cifração, ou aritmetização, a cada classe (ou a cada relação de expressões) corresponde biunlvoeamente uma classe (ou rela­ção de números), que em muitos casos pode ser definida simplesmente do ponto de vista aritmé­tico, e pode assim ser expressa no sistema S.

De fato, Goedel conseguiu exprimir por meio de conceitos aritméticos conceitos meta-linguísticos tais como “expressão”, “demonstrável” , e outras. Com isto se consegue formulações meta-linguístieas como (g), com expressões tiradas da teoria dos nú­meros que se adapta ao sistema S. Temos assim expressões meta-linguísticas substituídas por ex­pressões primitivo-linguístieas, ou, pelo menos, a cada sentença meta-linguística temos um corres­pondente aritmético, sendo que êste último é uma imagem fiel do primeiro.

Nosso pensamento pode agora ser levado adiante:31) O método de Quine na forma descrita está ligado a um número máximo 9. Ma» é pwelvol emprogar também um outro sistema de nú- meroe, como o xistema JMxaceâinisil doa babilunioe que tem 59 cifras. Ma» <S poealvel também clwgar a bons reãultado* com um sistema dual, isto 6 com &â duaa cifras 0 o 1. Vid. Lorenun Formate Logik, pág. 97 s.

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Seja ‘I’ (n, p) o número goedeliano da expressão WJp) e T a classe dos números goedelianos dos teoremas do sistema S. A caracterização da pro- priedade(6), isto é, o análogo da propriedade “richar- diana”, pode agora ser formulada da seguinte ma­neira: “$ (n , n) não é um elemento da classe T ”, em sinais conhecidos:(7) (», n) non t T

Já que <f> (n, n) é um número e T uma classe de números, trata-se de uma expressão aritmética em S. Existe portanto uma expressão TFt em S que caracteriza a propriedade (7).

Introduzamos finalmente a letra q em W t; re­sulta então o análogo da antinomia richardiana que produziu a expressão “crítica” H%(<?)- Qual é agora o sentido propriamente “intuitivo” da ex­pressão? Afirma que q possui a propriedade ex­pressa por W q. Ora, W t é uma expressão formali­zada para (6) e portanto significa:(8) $(<1, q) non t Tpor causa da equivalência de (c) e (7):(9) TFf(v) é indemonstrável.Descobrimos assim o sentido intuitivo de IF /ç): esta expressão significa que ela é indemonstrável.

Isto está em vidente analogia com a pnradoxia do “mentiroso” (pscvdomenos) dos antigos. Esta sentença paradoxal em sua forma refinada, já antiga, consta da única palavra grega “pseudomui” “digo (agora) coisa falsa”, (freqüentemente tradu­zida não muito exatamente, por “eu minto”), é uma sentença que afirma a falsidade propriamente dita. Portanto, sc é verdadeira é falsa, e vice- versa. A diferença com a sentença de Goedel é

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que nesta, em lugar do conceito vago de verdade, está o conceito mais estrito e preciso de indemons- trabilidade. Trata-se de fato da demonstrabilidade pelos meios lógicos de S. O conceito “verdadeiro” nâo pode ser fàcilmente definido com precisão. Sucede assim que Goedel pode dizer que a expres­são TF,(ç) é indemonstrável e, apesar disto — num sentido exterior ao sistema S — “verdadeiro”, porque não é demonstrável no sistema S.

Resta agora mostrar que TF/g) fica indecisívcl no sistema S. De fato, se esta sentença fôsse demonstrável, estaria certa; isto é, não seria de­monstrável (pois afirma sua própria indemonstra- bilidade). Se sua negação, isto é, non-IF„(ç), fôsse demonstrável, esta negação também estaria certa, o que quer dizer que a sentença seria refutável e, portanto, não seria certa. Mas já que por si mesma exprime sua indemonstrabilidade, esta não seria certa; seria portanto demonstrável e, com isso, não-refutável.

A marcha dêste pensamento evoca fortemente O “mentiroso”, mas não leva a uma contradição. E absurdo que uma sentença nem seja verdadeira nem falsa, mas não é absurdo que uma sentença não seja demonstrável, nem refutável — trata-se de uma sentença indecisível dentro do sistema S.

Esquematizamos muito a argumentação de Goe­del, sem expô-la em tôdas as suas minúcias, o que nos levaria muito longe. O mais importante é apreciar agora uma conseqüência das considera­ções de Goedel, e que é muito importante para a estrutura lógica de todo o método axiomático. Segue-se do argumento dc Goedel que a ausência de contradição no sistema formalizado 5 não pode

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ser demonstrada por meio dos métodos lógicos que lhe são próprios, mas que, também não pode, a mesma, scr refutada, ficando tudo indecisível(32).

Na demonstração da indecisibilidade de Wt{q) no sistema S supõe-se a ausência de contradição no próprio sistema. Portanto o resultado de Goedel pode assim ser formulado:(G) “Se S é livre de contradição, então TF/ç) é

indeeisívcl em S ”.Agora, a afirmação de que S é livre de contra­

dição pode ser formulada em S. Designamos isto por WF. Por outro lado a afirmação “W t(q) é indemonstrável em S ” pode ser formulada, pois ela nada mais é que a expressão W /q). A demons­tração de Goedel pode ser reproduzida em S e obtém-se a fórmula demonstrável em S:

WF implicat W,(q)((?') é a réplica formalizada de (G). Suposto

agora que em S se possa demonstrar que S é livre de contradição, WF deve ser demonstrável em S; resulta então da implicação ((?') segundo o modus ponens que W /q) é “verdadeiro” , e de fato TF,(ç) está demonstrado pela consideração acima. Ora, isto contradiz o principal resultado de Goedel que IF /í) é indemonstrável. Portanto, a admissão que existe uma demonstração para a ausência de con­tradição em S, fornecida pelo próprio sistema 5, leva a uma contradição, e, portanto, é falsa.

Êste resultado paradoxal, embora corretamente deduzido e não contraditório (não “antinômico”), parecia abalar a teoria da demonstraçáo de Hilbert

(32) Vid. a «xpoMçSo de IF. Stefpm uU er, Da* W&hrheitsproblem und die Iden der 8em an tik (Viena 1957) pá«. 208 a.

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»

(pelo menos em sua forma original) e, além disso, a validade de todo o método axiomático. Acres­ceram ainda outros resultados dc outros estudiosos, p. ex., o de Th. Skolem, o qual mostrou que nenhum sistema aritmético de axiomas é “categó­rico” , o que quer dizer que, ao lado dos números naturais, existem ainda outros objetos matemáticos, satisfazendo o sistema.

Contudo, pesquisas ulteriores de A. Tarski e Huo Wang deixam aparecer êsses resultados numa luz mais favorável. Tarski opôs à proposição nega­tiva de Goedel a positiva(33).: Quando num siste­ma 8 se constrói uma afirmação P, indecisível neste sistema, então na metateoria de S se pode decidir, pressupondo o conceito de ‘afirmação ver­dadeira’, se a proposição P é verdadeira ou não; portanto na metateoria de *S é possível encontrar uma decisão.

Além disto Ilao Wang desenvolveu um sistema lógico-matemático muito amp]o(34), que apre­senta a união de uma série infinita de sistemas sempre mais ricos. Para o sistema com o índex a (transfinito) sc pode conseguir (pelo emprêgo do conceito de verdade) uma demonstração de au­sência de contradição com o sistema de índex « -f 2. As proposições apontadas por Goedel como indemonstráveis, no primeiro sistema, tornam-se demonstráveis no segundo. Wang consegue as­sim, em seu sistema total, suprimir proposições indecisíveis e superar dêste modo aincompletividade de Goedel. (Suposto que a teoria apenas esbo­çada de Wang se mostre como viável).

O resultado das exposições anteriores, por conse­guinte, é que também a dificuldade, aparentemente

(S3) Vid. âfefftn&ittfrr, loc. cit.* páfc. 2,“v3 aa.(31) II ao Wang, The Formalisàtioci nf M&itirm&tic*. em: Jou rna l of Syrabolic Logic 19 (1954), págs. 241-266.

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mais séria, encontrada pelo pensamento matemá­tico, não o levou a uma “situação-limite” propria­mente dita. Muito ao contrário, a renúncia a ce rta s formas de argumentação ingênuas levou não a uma abdicação, mas a um refinamento e aprofun­damento. Talvez se possa dizer que aqui aparece certo traço “dialético" no pensamento matemático, embora se trate de outra espécie de dialética, da de Hegel; justamente a conhecida tese de Hegel sôbre a “falsa infinidade” da matemática e a mortal “demora” de sua mareha uniforme, é refu­tada pela nova “dialética” própria do pensamento matemático.

Êsse traço dialético aparece já no século v antes de Cristo com a matemática dos pitagóricos. Já nos referimos a isto. Quando se deu a primeira demonstração de impossibilidade na história da matemática (a demonstração da incomcnsurabi- lidadc de lado e diagonal do quadrado ou do pentágono regular) verificou-se um acontecimento espiritual de enorme significação. A insolubilidade de um problema, fundada sôbre um conhecimento proveniente de uma demonstração exata, não levou à abdicação mas à aquisição de ductibilidade e fôrça de penetração. Também hoje se verifica a mesma coisa.

7. O conceito de junção calculávelProcurando divisar os limites imanentes do

pensamento matemático, até agora nada de deci­sivo pudemos encontrar. O que se apresentava como “situação-limite” o foi únicamente na apa­rência, e a renúncia inevitável à solução de deter­minados problemas não significa uma abdicação, mas um refinamento e aprofundamento, a serviço

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de lima auto-consciência amadurecida para a crí­tica, e que venceu sua ingenuidade.

Contudo, existe um ponto nào devidamente esclarecido que está em relação com o problema da indecisibilidade e do construtivismo “intui­cionista”, e que parece indicar algo como uma fronteira imanente do pensamento matemático. Trata-se da crítica do conceito de numerável e a precisação do conceito de calculabilidade e con­ceitos afins.

Quanto ao primeiro conceito, as primeiras dúvi­das sôbre a numerabilidade (absoluta) de certos conjuntos, p. ex., do contínuo, ascendem até um estudo de L. Loewenstein em 1915, a que se acres­centa uma investigação de Th. Skolem, alguns anos mais tarde(35). O resultado foi o assim cha­mado "teorema de Loewenstein-Skolem” , que afir­ma que a expressão do cálculo de um predicado de primeiro grau, quando possível, pode ser conse­guida já no terreno numerável dos indivíduos (“numerável” é tomado aí no sentido da teoria clássica de Cantor sôbre o conjuntos). Ora, a teoria clássica dos conjuntos pode ser axiomatizada por meio do cálculo do predicado de primeiro grau. Portanto o teorema de Loewenstein-Skolem afirma que a teoria dos conjuntos, se é que ela tem qualquer modêlo, êste é um modêlo nume­rável. Isto nada mais significa que não existe um numerável absoluto.

É certo que o teorema de Loewenstein-Skolem não possui uma prova construtiva(36). Não se

(35) L- ísocwfínstf.iii, U eb er M oeglichkeiten im R ela tív k a lk u e l, em : M etbem iuiacho A nnalen 76; Th, Slcolw, LogUch-konjbin&toriítthe U n te r- «nchungen u s b e r die E rfuellb& rkeit o der B ew eiabarkeit ©to., om : V id. B krífte i A dak . Oslo M a t .- n a t . K l. 1Ü20, n.° 4.

(36) V id . Hermés-Sckfih, loo. c lt., n .° 3, 7, 1-2 (pág*. 23-24) * D. Hilbert t IF. Acktrmann, G nindxuegie d e r theorotiechen I.o*ik (Berlim - aoá llin g é n -H v h lc lb e rg 1SM9) § 10 (sob retudo püg. 82 se.).

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pode utilizá-lo para estabelecer “efetivamente” um modêlo numerável para a teoria dos conjuntos. (Pois nem sequer está demonstrada a absoluta ausência de contradição na teoria clássica dos con­juntos). Poder-se-ia talvez pensar que o processo diagonal de Cantor, por nós exposto acima, e com o qual se demonstrou a não numerabilidade do contínuo, esteja em contradição com o teorema de L.-Sk. Mas já naquela ocasião apontamos parao fato que êste, k primeira vista, não é construtivo c portanto não pode servir para estabelecer, por cx., um conjunto infinito de frações decimais, com a potência do contínuo acima do numerável. Por­tanto, o processo de Cantor não fornece nenhuma refutação direta do teorema de L.-Sk.

O dilema fica resolvido quando se o olha de mais perto, isto é, quando o conceito de numera­bilidade é relativizado. “Numerável” significa: possibilidade de uma representação biunívoca no conjunto dos números naturais. Portanto, é pos­sível que conjuntos que não são numeráveis, por uma certa aplicação, tornam-se numeráveis quando se usam outras aplicações. Temos aí mais um caso de relativização de um conceito anteriormente empregado com certa ingenuidade.

Embora o teorema de L.-Sk., compreendido corretamente, não leve a um paradoxo ou a uma antinomia, chama contudo a atenção para um limite que parece opor-se à formação de conceitos matemáticos, pelo menos quando êstes pretendem satisfazer a exigência da máxima precisão. Parece seguir-se que, por razões lógicas, não se pode ultra­passar o numerável. O soberbo edifício da teoria dos conjuntos de Cantor, com suas considerações que penetram longe no campo do “acima” do nume­rável (onde se trataria de conjuntos infinitos atuais), aparece como uma fantasmagoria, como uma Fata

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Morgana que se dissipa, quando se chega mais perto.

Em todo o caso chegamos aqui a uma auto-1 imitação «Io pensamento matemático; neste ponto queremos precisar mais amplamente os conceitos pelos quais se exprime esta auto-limitação. Trata- se de um grupo de conceitos estreitamente relacio­nados entre si: calculabilidade, numerabilidade, ilcci- sibüidade, constructibilidade(37). Para o nosso pro­pósito a definição dêsses conceitos é muito impor­tante, enquanto que não o é tanto o seu emprêgo para demonstração de indecisibilidade, c seme­lhantes, cuja consideração nos levaria para longe de nosso tema. Só queremos notar que o método dessas demonstrações é, no fundo, a prova de Goedel de que falamos na secção anterior, isto é, por um lado o ziguezague das antinomias à maneira do “mentiroso”, e por outro a idéia fundamental do processo diagonal de Cantor.

No que toca àqueles conceitos “críticos” em si, sua raiz histórica está em certos cálculos, os quais — em contraste com os processos de aproximação que nunca param, como a conhecida aproximação de V 2 — levam ao resultado por meio de um número finito de passos. Exemplo clássico é o assim chamado “processo do divisor de Euelides” (Elem. vn, 1.2), para encontrar o máximo divisor comum de dois números inteiros: êste processo pára, depois de certo número de passos, no di­visor procurado, ou em 1 , caso os dois números dados sejam relativamente primos. O processo con-

(37) Vid. uma exposição completa e resumida em Hermet-St-hole, loc. rit., n.° 9 (pág*. -HH52) e sôbre problema* especiais d* deciaio no cálculo dos predicado* e de identidade, n.® 10-11 pica. 52 *57); ai também poderá encontrar ampla literatura.

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eiste no cálculo efetivo do número procurado e decide, ao mesmo tempo, se os números apresen­tados são relativamente primos, ou não.Problema semelhante se apresenta quando so tra ta de decidir se uma equação diofântica (que deve ser resolvida em números inteiros) é solúvel ou não. Formulada universalmente, a tarefa é a seguinte: deve-se decidir se uma afirmação apre­sentada pertence a determinada classe de afirma­ções, ou não; ainda mais universalmente: esta figura (série finita de sinais) pertence a uma classe de figuras, ou não?

Um conjunto M é “numerável” quando existe um processo que possibilita contar efetivamente os elementos dc M , um depois do outro. M chama- sc “decisível” quando existe um processo que possi­bilita decidir sc um elemento qualquer pertence u M. Existem conjuntos não numeráveis, bem como conjuntos numeráveis, mas não existem con­juntos indecisíveis.

Temos assim as seguintes equivalências básicas:1. “M é decisível” = “M e seus conjuntos comple-

mentares são numeráveis” = “j u é calculável” (/k (i) -• 0 ou resp. = 1 , segundo x e M, ou não);

2. "&f é numerável” =■ "M ê o campo de valôres de unm função calculável” .Para uma definição exata de função calculável,

foram utilizadas as seguintes designações, que só podemos enumerar (38). Fala-se de uma “fun­ção (em geral) recursiva” (Skolem, e outros), de uma função “ regularmente calculável” (P. Ber- nays), de uma função “ lambda-definível” (A. Church), dc “numerabilidade” (E. L. Post), de

(38) VkL pnrn m&Íor«a «*sclarreinirnto«» Herme*-$chols, pága. 48-61.

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uma função calculável por meio de uma máquina (A. M. Turing e Post).

A última designação é a mais clara. Com ela se entende que o cálculo da função pode ser en­tregue a uma máquina inteiramente automática, cuja estrutura foi exatamente descrita por Turing e Post. (Pense-se numa das modernas calculadoras eletrônicas!)

A característica comum de tôdas essas defini­ções é o modo gradual e unívoco de proceder, razão pela qual é também possível obter um resultado pelo trabalho automático de uma máquina ou pelo processo de decisão. A questão assim posta é “efeti­vamente” solucionada; a realização é um trabalho puramente mecânico, para o qual não se requer “espírito” (39).

8. Dejinição construtiva dos números ordinais transjinitos

Em seu tratado “ Fundamentos de uma Teoria Geral da Variedade”(40) — primeira exposição am­pla da teoria dos conjuntos — G. Cantor explica no § 1 1 como se pode estabelecer a seqüência dos números ordinais transfinitos, a partir de dois princípios. Estes são:

(30) Note-«td que a decúúbilidade dc um cálculo 6 equivalente à nume- rabilidade do *uas figuras dedutivo is c nfio-dçdutfveiü. Pode-so im aginar « m a m áquina que “enum era" (i. é., imprime om ordem) num a t ira de papel tddojj^ aa figura» dedutiveis o num a o u tra os figuras nlo-dcdutiveis. Ambas as tira s de papel teriam um dispositivo de seleefio que faria parar a m áquina quando aparecesse um a figura sôbre cuja dedutibilidade se deveria decidir. Se a m áquina pá ra o a figura aparece na prim eira tira . e la é dedutível; se aparece n a segunda, nSo 6 dedutivel. Vid. Lorenzen, pág. WJ.

Um ta l procoaso nfio 6, infelizm ente, praticável, pois a dem ora a té que a m áquina paro não tom lim ites.(40) M attiematUcho AnnaJ en 21 (1883), pág. 057; O M pá p t . 299-302.

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1 . A cada número já formado se acrescenta uma unidade (o primeiro número ordinal é 1 ).

2. Para uma sucessão determinada de números definidos, dos quais não existe maior, cria-se um número que é representado, isto é, defi­nido, como limite daqueles números e como próximo número maior que todos êles.

O primeiro princípio é trivial; é o meio de pro­duzir os números positivos inteiros finitos. O exemplo mais simples para 0 segundo princípio é a formação do menor dos números ordinais trans- finitos “omega” (w), que segue como o número ordinal maior mais próximo para todos os números finitos:

1 2 3 4 5 .........................-►«Em conseqüência resulta, pelo emprêgo indefini­damente repetido do primeiro princípio e logo cm seguida do segundo:

ww + 1 « -|- 2 co + 3 .......... —»« + w = « .2Cantor então, pela utilização das conhecidas

operações dc multiplicação e potenciação, forma os seguintes números (omitindo muitos números inter­mediários):

w.2 <i>.3 u .4 .......... —>w.w = w2« 2 w3 w4 .......... —+ w”

(t)Cô ci)0) <M> O)u u U u

w u « .......... —* w = epsilon — «163

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Aqui, no "primeiro número epsilon”, cessa a designação por meio do “omega” sòzinho, e é pre­ciso introduzir um nôvo símbolo básico “epsilon”(í). Ao mesmo tempo constata-se o interessante fenô­meno de que a seqüência dos símbolos, por assim dizer, se alcança a si mesma; temos então:

Diz-se que epsilon é um “número crítico”. Na tentativa de levar sempre mais longe a designação dos números transfinitos, sempre de nôvo se encon­tram tais números críticos, o que sempre de nôvo obriga a modificar a maneira de designar (introdu­ção de novos símbolos, etc.). Não é possível in­cluir os transfinitos da segunda classe num prin­cípio único.

Mas Cantor não parou nos números de sua segunda classe. Aplicou seu segundo princípio à seqüência de todos os transfinitos da segunda classe (seqüência que não era claramente definida), isto é, (a todos os números ordinais de potência numerável infinita), e “criou” o primeiro número ordinal “su- per-numerável, o número inicial da terceira classe, “omega maiúsculo” íi ou «i. E corajosamente intro­duziu o processo dêsse princípio em classes nume­rais sempre mais altas.

Já anteriormente, e nos quadros da teoria clás­sica sôbre os conjuntos, foram empregadas “ cons-

]

= to

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truçfles” em que se fazia uso dos dois princípios(41), como no exemplo seguinte, em que muitos matemá­ticos viram uma reconstituiçflo "construtiva’' dc um conjunto com potência bem crdcnada, acima da do numerável do tipo ordinal da terceira classe de números. O processo provém de G. H. Hardy; apresentamo-lo numa forma simplificada elaborada por F. Hausdorf(42).

Trata-se de uma seqüência bem ordenada do seqüências comuns de números inteiros(43). O princípio permite a elevação de cada número de uma seqüência dada por 1 . O segundo princípio, aplicado a uma seqüência de seqüências de núme­ros, produz a passagem à seqüência diagonal. Tôda a construção se inicia com uma série de 1 .

1 1 1 1 1 ..........2 2 2 2 2 ..........3 3333

(0 1234 ..........w-f- 1 2345 ..........w+ 2 345G ..........w-f-w 1357 ..........

(41) Tam bém em tem pos recento* *c em pregaram ta is método*. Vid. E . Z crnu lo , («renzxthlon u n i M ongenberninhe, em: F undam enta M athc- m atioae XVI (1934)» P&gs. 29-47. D . H ilbcrt, Ü ebcr da* Unendliche. em: M athíiinatiíche Ànnalen 93 (1926), págs. 161-190; K . Goedel. Bevrei* der Vertraogliohkeit de r nllgemeinen Cantorechen K ontinuum averm utung mit den ZormelcMchen Axiomen der Mengenleh.ro, em: l*roc. N a t. Aead. of Beience» in USA 25 (1939). pág». 220-224 e Aon. of M ath., S tud . n.*> 3 (Pnncoton 1940).

(42) O. H. Hardy, Quart. Jour. of Mmb 35 í 1903), pág. 87: P . Hau»dorJ. Loipaisar Berichte. matb.-plty*. Klam* 59 (1907) pág. 217.(43) Podo-ee fa*«r corresponder biuulvocamente a uma tal seqüênciade nümorog aa fra^õea <\*criçu* na ba«e 2. entro 0 o 1, isto é, a aeqüôncift 1 à 5 . . . cornjapoudo à fraçío dual 0, .) 101110111110...

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à primeira vista parece que êste processo seria capaz de nos levar para além da segunda classe numeral, e que assim poderia ser efetivamente cons­truído um conjunto de seqüências de números com potência acima do numerável. Mas, olhando de mais perto, vê-se que nâo é assim. Para levar o processo concretamente a têrmo, é preciso poder construir os números ordinais transfinitos escritos à esquerda e “numeráveis”, para assim determinar a seqüência de seqüências, sendo que para isto o segundo princípio, a formação diagonal, sempre deveria ser empregado. Surge assim o nôvo pro­blema da determinação construtiva e da designação dos transfinitos da segunda classe.

A. Church e S. C. Kleene descreveram melhor esta nova tarefa(44). Êstes autores puseram os seguintes princípios:

1. Qualquer número ordinal é caracterizado por um único símbolo (O primeiro número or­dinal é 1 ).

2. Para dois números ordinais (caracterizados por símbolos distintos) se pode decidir por um processo recursivo da teoria dos números, qual é o maior e qual o menor.

3. Para cada numeral distinto de 1 pode-se estabelecer se tem um predecessor imediato ou não. No primeiro caso êste pode ser indi­cado. No segundo caso pode-se indicar, por intermédio de uma recursáo numeral-teórica, uma seqüência definida de números ordinais, cujo limite ó o numeral dado.

(44) A . Church. The C onstruotive Second Num ber Clae», #m: BuU. Amer. M ath. 3oc. 44 (1938); 3- C. Kltme, On Notation for Ordinal Num­ber*, em: Journ. oí Symb. Loilio 3 (193S).

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4 . Para cada número ordinal se pode mostrar de forma construtiva que a indução transfi- nita vale até aí.

Dessas condições vemos imediatamente que Church e Kleene se apoiam no conceito preciso de construção que descrevemos.

Uma aplicação dêsse ponto de vista para uma elaboração construtiva de uma secção considerável da segunda classe numeral, simbolizada por um segmento, foi feita por W. Ackermann(45); mas não podemos entrar em pormenores a respeito.

Entretanto, para finalizar, precisamos ainda dizer qual é a importância para a matemática e para a investigação dos fundamentos da mesma, de tôdas essas construções de ntímeros transfinitos. Deve-se dizer que elas são aplicadas para uma caracterização mais exata do grau de complicação de conceitos lógico-matemáticos (e de deduções inteiras). Servem para fins metamatemáticos, sobre­tudo para certas formas de demonstrações de au­sência de contradição. Dêste modo Gentzen conse­guiu, pela primeira vez, demonstrar a ausência de contradição da teoria dos números puros comple­tos; chegou a esta conclusão principalmente porque a cálculos expressos em fórmulas logísticas êle apli­cou um processo de redução, cuja finitude pôde demonstrar. Para chegar a esta decisiva demons­tração de finitude, a cada dedução numérica êle atribuiu um número ordinal e cuidou que, em cada passo da redução, êste número ficasse menor.

(45) W . Acktrmann, K onx truk tirc r Aufbau oúwjii Abftchnilts der Kwrniton Cantorschon ZiManklajum, om: M athematisetiQ Z eitschrift 5. (1051), p£g*. 40&-413. Digna de no ta ê tam bém a te n ta t i r a an terio r de O. Vebten, Continuou» Increasin* Functioná oí Fin ito and T ransíin ite Ordinal*, em: T rans. Amor. Matb- Soc. 9 (1908) págs. 280-292, em bora n.fco tenha a mesma exatldfto que o» modernos conceitos de coastruç&o

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Ora, já que pode acontecer que uma dedução seja muito mais complicada que outras em número infinito, necessita-se de números ordinais transfi­nitos, e a concepção indutiva de sua totalidade só é possível pela indução transfinital.

Gentzen(46) precisava portanto de transfinitos construtíveis, sendo que os ordinais da segunda classe de números até 0 “primeiro número epsilon” de Cantor eram suficientes para seu argumento. Para demonstrações de ausência de contradição na análise ou da teoria dos conjuntos, são necessários maiores setores da segunda classe de números, os quais são fornecidos em forma construtível pelas investigações de Ackermann.

Chegamos assim ao fim desta seeção. Na limi­tação necessária, ou pelo menos hoje aparecendo oomo necessária(47), do conceito de construtibili- dade matemática do que é numerável — e até mesmo efetivamente numerável — deve-se ver sem dúvida um limite para a formação dos con­ceitos matemáticos. Mas trata-se de um limite que o pensamento matemático impôs a si mesmo. Não é que o pensamento toque numa fronteira que lhe é imposta do exterior, diante da qual ele deveria ceder necessàriamente, mas é o próprio pensamento que põe êste limite.

Com isto terminou nosso estudo sôbre os limites imanentes da formação dos conceitos da matemá­tica, estudo que levamos a efeito por meios intra- matemáticos. Resta-nos ainda, na última parte de nosso livro, tra tar da questão JiloxóJica dos limites do pensamento matemático.

(46) Vid. QM , r i z s . 3S7-3D2.(47) N âo me parece t&o oerto, como «tu geral se supâe, que êate limito aâú poúaa do fu tu ro «cr maia um a vos ultrapassado.

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fí) O PROBLEMA FILOSÓFICO DOS LIM ITES DO PENSAMENTO MATEMÁTICO

1. Kant sôbre a natureza da matemáticaA questão dos limites do pensamento matemá­

tico não existia na Antigüidade, embora a oposição Platão-Aristóteles no modo de conceber a matemá­tica (a que diversas vôzes já nos referimos) tenha permanecido fundamental até os nossos dias. De fato, aquilo que hoje se costuma chamar de “pla- tonismo” (melhor: “realismo platônico”) e “nomi­nalismo” (melhor: “conceptualismo”) tem suasraízes naquela antiga controvérsia. Em todo o caso, na concepção aristotélica sôbre a origem das figuras matemáticas por meio da “abstração” (aphairesis), pode-se ver um primeiro ponto de partida do problema dos limites da matemática. Pois, segundo Aristóteles, ela é criada pelo homem e nâo é de origem divina (metafísica), como para Platão. A teoria da abstração vê a matemática nos corpos físicos sòmente quando também êstes são idealizados e quando se considera aquilo que as figuras matemáticas têm de “universal” , como sejam, as proporções. Nesta concepção aristotélica é inegável o elemento “subjetivo”, por mais es­tranho que isto seja no mundo antigo. Para o ser da matemática, já aqui o homem é essencial(48).

O problema dos limites do pensamento matemá­tico só é posto explicitamente na filosofia recente. É verdade que ao tempo do racionalismo propria­mente dito — que não sem razão foi chamado de tempo da Mathesis universalis — não se pensou

O mesmo vorifica em algum as observação* n a diacusaio adbra o infinito (Fíaica IU . 4-8).

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ainda em traçar limites ao domínio da matemática, que surgira com nova vitalidade. Nem Descartes, nem Leibniz conhece fronteiras para a Mathesis por êles chamada conscientemente de “universalis” . Para Leibniz o número é uma forma metafísica fundamental que entra na estrutura mesma do universo. Com isto êle faz valer o papel funda­mental da aritmética, a qual — de modo bem diverso que em Descartes — ocupa uma posição de primazia; trata-se, pròpriamente falando, da matemática formal-abstrata, a qual toma a dian­teira sôbre a geometria clássica.

Com K ant se verifica então um notável recuo, no contexto geral de uma atitude crítica em todo o campo da filosofia. A questão dos limites do conhecimento humano lança sua sombra sôbre tôda a crítica da razão (teorctica). Em meio a esta revisão geral de tôda a filosofia aparece igualmente uma outra concepção do matemática. Enquanto para Leibniz o homem, como qualquer mônada, é um cspêlho criador do universo, e portanto como imagem de Deus participa de certo modo da fôrça criadora de Deus, Kant distingue claramente entro o intellectus archetypus e iníuitus originarius divino de um lado, e, do outro, o intelleclus ectypus e iníuitus derivativus do homem. Segundo êle a capacidade cognoscitiva do homem tem duas raízes distintas e separadas: a percepção sensitiva e o intelecto, os quais talvez nasçam de uma raiz comum, a nós desconhecida. Pelo conhecimento sensitivo — que é meramente receptivo —■ são-nos oferecidos os objetos, e pelo intelecto, dotado de espontanei­dade, êles são pensados, mas sempre em depen­dência da percepção; pois conceitos sem percepção são vazios, e percepções sem conceitos são cegas.

Portanto, também o conhecimento matemático depende das percepções e não pode ser puramente170

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intelectual. Mas êle não se apóia em observações empíricas, relacionando-se às formas puras da sensi­bilidade — tempo e espaço — em seus dois princi­pais ramos, geometria e aritmética, (das quais a álgebra e a análise derivam como ciências). Impor­tante sobretudo é a fundamentação da aritmética sôbre a percepção, ou melhor, sôbre o esquema da série temporal.

Aos matemáticos pré-intuicionistas esta doutrina de Kant. devia aparecer incompreensível e pouco digna de nota; mas desde que o intuicionismo de Brouwer e a teoria recursiva dos números de Skolem, bem como teorias afins, começaram a aparecer, a situação se transformou. Também Hilbert cm suas considerações metamatemáticas depende de Kant.

Em princípio, contudo, a teoria de Kant sôbre a matemática significa um limite. O tempo é, como vimos, a forma do sentido interno, isto é, de uma capacidade cognoscitiva essencialmente hu­mana, que não é de qualquer ser racional. Sôbre a natureza do conhecimento de outros sêres racio­nais nada sabemos. Nosso conhecimento teórico se limita ao mundo dos fenômenos, enquanto que o conhecimento das coisas, como são em si mesmas, nos é inacessível. Segue-se, portanto, que tam­bém a matemática mais abstrata depende da capa­cidade específica do homem, sobretudo da forma pura de percepção, “ tempo”. Também esta se refere ünicamente ao mundo como êste nos aparece, e não ao mundo como êle é em si para o olhar dc Deus. Aqui, portanto, estamos diante dc um limite absoluto do conhecimento humano, se seguir­mos a Kant (no período crítico de sua filosofia).

Mas como se manifesta concretamente êsse limite? A resposta não é a mesma quando se trata do matemática pura e quando se trata da

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física teórica. No segundo caso, como vimos, entra a geometria. Neste ponto Kant, na “ Crítica da razão pura” (1781), admite o valor do espaço euclidiano para qualquer teoria física; embora êle mesmo não discutisse a geometria nâo-euclidiana, F. A. Taurinus, mais tarde (1825), fundou sua defesa do valor da geometria euclidiana para o espaço universal, sôbre a tese kantiana do espaço como forma do sentido exterior. Contudo o próprio Kant, em seu escrito “ De mundi sensibilis atque intelligibilis forma ac prineipiis” , que apareceu antes (1770) dc sua dissertação sôbre a crítica da razão, escrevera as notáveis palavras: “Legea sen- 8ualilatÍ8 erunt leges naturae quatmus in sensus cadere potest” (§ 15 E). Nesta passagem, por­tanto, se limita o valor das leis da percepção sen­sível (i. é, da geometria eucliadina) à natureza enquanto cai sob os sentidos. Isto deixa entrever a possibilidade (da qual Kant dificilmente podia estar consciente) de que a natureza obedeça a outras leis estruturais, enquanto não cai sob os sentidos. Quando portanto, na física moderna, na teoria da relatividade geral e na teoria dos quanta, se admitem estruturas espaço-temporais e leis cine- máticas diferentes das da física clássica, isto pro­vém do fato que aqui se trata das dimensões extra- ordinàriamente grandes do espaço astronômico ou das medidas exlraordinàriamente pequenas dos átomos c partículas elementares, que excedem tudo quanto o homem pode encontrar em sua vida diária. Essas grandezas, extremamente gran­des, ou extremamente pequenas, não caem sob os sentidos. Portanto podem muito bem ser conci­liadas com a percepção fundamental de Kant, entendida algo livremente(49).

(lôj EjcpcMtç&o m úa parmoaoriznilA cm meu artigo Itie ftpri !VÍ»clia Struktur das AnaohauungsriuEnca", em; 1‘iúloa. Anjeiger IV (1930) i>Ag». 128-162.

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Mas não é êste o nó do problema, que se en­contra no campo da matemática pura, formal- abstrata, para além da geometria, na aritmética, na análise, na teoria dos conjuntos. Precisamos portanto perguntar: Até que ponto a moderna matemática formalizada é atingida ou limitada pelos limites apontados por Kant, quando os admi­timos como certos? Ê ela limitada dc alguma forma ?

Brouwer uma vez se exprimiu no sentido da “neutralidade” da matemática; segundo êle a mate­mática se baseia em operações que são indepen­dentes tanto da linguagem como dos “objetos” a que se referem. Isto significa que é indiferente se êstes objetos são coisas em si ou fenômenos, se são verdadeiros objetos, ou simples atos.

O kan+iano de severa observância negará em todo o caso que o número possa ser aplicado a coisas em si. Já Schopenhauer explicou a dife­rença entre singular e plural, quando aplicados à “coisa” ou às “coisas em si” : absolutamente não têm sentido. Ao matemático formalístico isto não atinge, pois só lhe interessam suas operações.

Dêste modo o pensamento de Kant acaba no vazio e a matemática parece desvencilhar-se do ataque crítico do filósofo.

2. Matemática e Jinitude do homemMas, na teoria filosófica de Kant se encontra

um pensamento mais profundo ainda: o da fini- tude do homem. É verdade que também outros filósofos modernos anteriores a Kant, como Des­cartes e Leibniz, não negaram êsse traço funda­mental da natureza humana. Em Descartes êsse pensamento desempenha um papel na demons­

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tração de Deus, na terceira Meditação de 1641, e Leibniz distingue a Monas Monadum divina das outras mônadas, que refletem o universo só imper­feitamente. Mas com êle a lei da continuidade, que estatui uma série idealmente ininterrupta de mônadas a partir das mais inferiores até a suprema, conserva todo o valor. Foi sòmente Kant que mostrou com tôda a agudeza e conseqüência a finitude do homem.

Já falamos dos dois ramos do conhecimento humano: a sensitividade receptiva e o intelecto espontâneo. É nessa receptividade da percepção sensitiva que Kant vê antes de tudo a finitudo do homem; êste é incapaz de criar coisas. Tam­bém nosso intelecto não é “intuitivo”, como o de Deus, mas deve aderir ao que lhe é oferecido pelos sentidos, pois conceitos sem percepção são vazios. Dos conceitos puros nascem sòmente juízos “analí­ticos” , que simplesmente explicam e esclarecem aquilo que já se tinha obscuramente. Nossa ciência é alargada pelos juízos “sintéticos”, os quais ou são sòmente empíricos, ou — como os da matemá­tica — se apóiam sôbre a intuição pura, sob suas duas formas a priori: tempo e espaço.

O que significa isto para a questão da finitude da natureza humana? Mas antes de qualquer outra coisa: o que significa isto para a matemática, criada pelo espírito do homem?

A matemática na realidade é uma ciência hu­mana — o que se esquece freqüentemente — em nada diferente das outras ciências. E isto é a miúde esquecido porque ela não depende de obser­vações empíricas, e aparentemente provém da fôrça criadora do espírito humano. Assim, para Gauss, o número era “simples produto de nosso espírito” ,174

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e Dedekind explicava os mímeros como “criações livres de nosso espírito”,(50)

Mas isto, s e g u n d o Kant, é um engano. O numero depende do tempo, como forma de percepção a priori, que 6 uma capacidade puramente receptiva e não espontâneamente criadora.

Hoje em dia, à luz da “analítica existencial” de Heidcgger, precisamos ir mais longe. O tempo não só é a forma do sentido interior, mas a estru­tura fundamental da existência humana. Como homens somos essencialmente temporais e nossa própria existência pode ser caracterizada como temporalidade. O tempo não ó uma simples forma que nos cerca, mas penetra no mais profundo de nosso ser e essência.

Isto também sc manifesta na matemática, em­bora freqüentemente seja ignorado êste fato. Não no sentido que o pensamento matemático seja limitado ou tolhido pela temporalidade e pela limi­tação humana daí decorrente; muito ao contrário: êle se torna possível sòmente por meio dela. Pode­mos e devemos numerar e calcular unicamente porque somos sêres temporais e finitos. Um ser eterno e infinito não numera. Não precisa numerar, nem pode numerar. A ação de contar e calcular não teria sentido para tal ser (51).

Da Antigüidade (da escola de Platão c trans­mitida por Plutarco, Quaest. conv. v iu , 2) tomos a sentença: Deus sempre faz geometria. O grande' teórico dos números, Gauss, deu uma variante à

(50) Sôbre Gaus*. vid. QM. pá*. 179: eôbro Dedektnd, GM, pág. 233. 244 ícarta a / / . Wtber de 24-1- 18S3: oes ntimeroe sko "algo de nôvo que o espirito cria. Somo-» de raça divina e sem dúvida possuímos fôrça criadora. nSo *í> «ra coisxs materiais (estradas férresa, telégrafos), mas sobretudo em coüim espirituais’'.(51) Deus devo ser representado, pelo menos quando se quer ser conseqüente, nSo como contando e numerando — ainda que Leibnis tenha aiirmaao; "D um Dou* c a lc u la i .* , , fit mundus” .

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frase e disse que Deus sempre faz aritmética. Mas a verdade, é que só o homem pode ser aritmético e geômctra. De fato, o ser divino está acima do tempo e contempla o que sucede no tempo de modo extenso c imperfeito, de um só golpe, como já Plotino explicou profundamente.(52) A infnUibilis vi&io Dei não se desenrola numa seqüência poten­cialmente infinita, como nosso pensamento mate­mático, pois desde o início ela está no fim. Por aí se pode ver igualmente como a concepção poten­cial do infinito, desde Aristóteles, se refere ao ho­mem, assim como a teoria da abstração do esta- girita nos coloca num contexto antropológico. Não se pode negar que o constructivismo rccursivo da matemática de nossos dias está na mesma linha.

Chegamos, portanto, ao seguinte resultado: sem­pre que a matemática, saindo de questões mais simples, tem diante de si o problema capital do domínio do infinito, ela por natureza e por essência fica totalmente entregue à finitude do homem. Pois sòmente para um ser finito tem razão o pensar num domínio do infinito.

Algo ainda resta por dizer: E. Husserl, em sua obra de juventude “Filosofia da Aritmética”(53), afirma o seguinte à página 247: “É impensável a idéia de que qualquer alargamento de nossa capa­cidade cognoscitiva tornaria esta capaz de repre­sentar realmente, ou mesmo de esgotar sensitiva­mente, tais conjuntos (infinitos). Neste ponto até mesmo a nossa fôrça de idealização encontra um limite". De fato, até mesmo uma capacidade cognoscitiva idealizada, possuída por algum “de- mon” como “conceito limite da teoria do conheci-

(52) Ennead. III , 7, "Sôbre eternidade e tem po".(53) "Philoaophie der A rithm etik” , ffnlle ». S. 1801. Vld. ainda

págs. 211-216, 218, 240 as, 244-250.

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mcnto"(54) não estaria em condições de decidir, por exemplo, se todos os números pares podem ser representados como a soma de dois números primos diversos (como pensava Goldbach), ou se existem exceções a esta regra. Mesmo um matemá­tico que vivesse indefinidamente não poderia de­cidir tais problemas não resolvidos da teoria dos números, percorrendo sucessivamente “tôda” a série dos números; nunca chegaria ao fim. Mais uma vez aparece o caráter “antropológico” e “temporal” do conceito aristotélico do infinito potencial.

Além disto, o matemático humano se distingue dos matemáticos “demoníacos” em outro ponto. Existem, por exemplo, muitos problemas na física que “em si” poderiam ser resolvidos se fôsse possí­vel executar a imensa soma de trabalho que requer o cálculo dos meamos. Até mesmo na matemática pura êste aspecto desempenha seu papel(55). As modernas máquinas calculadoras podem ajudar em algumas situações; mas sempre permanece o fato básico dc que a capacidade humana é, no terreno matemático, não só finita, mas também “pequena” , isto é, está contida dentro de determinados limites. Também êste ponto desempenha um papel na técnica do pensamento matemático: os métodos de solução devem ser escolhidos de tal maneira que o trabalho de calcular fique dentro dos “pe­quenos” limites humanos.

Como resultado dc nossas considerações pode­mos dizer em resumo: A finitude do homem está estreitamente ligada à estrutura da matemática. Ela é a condição da possibilidade de tôda matemá-

(54) Km muitao de suas meditações Husscrl conc«be a Deus como “conccito-limite da teoria do conhecimento". Mas iato nAo corresponde ao pecuamanto que de Deus tem a metafísica reccntc, que está na baee de nossas reflexõea.(55) Vid. fíübeet* Axiocnatbahea Deaken, em: M ath. AnnaJ. 78, e Btcktr, Matematisclie ExUtem. pág. 332.

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tica. Isto significa que a matemática não é, menos fundamentalmente que as outras ciências, uma coisa do homem e sòmente do homem (se ahstraímos dos hipotéticos habitantes, semelhantes ao homem, dos outros astros). Nem Deus nem os animais podem fazer matemática; isto é uma possibilidade do ser intermediário, o homem.

3. Matemática e “história”Depois dc tudo o que dissemos, parece não haver

limites para o pensamento matemático. Tôdas as nossas tentativas, em descobrir êsses limites, fra­cassaram. Entretanto ninguém concordaria se afir­mássemos sèriamente que o pensamento matemá­tico é universal. Antes de tudo se dirá que, ao procurarmos determinar os limites, deixamos passar aquilo onde é mais evidente a presença dêssee limites, isto 6, tóda a outra metade do Globus iutcllectualis, a das ciências morais. Af o pensa­mento matemático nada tem a fazer (se abstraímos de casos especiais, como a estatística da linguagem, pesquisas para comunicações, etc.). Neste ponto se vai algumas vêzes bem longe. Heidegger uma vez disse enfàticamentc: A matemática não é mais exata “ (strenger”), mas mais estreita (“enger”) que a história e a filosofia. Atrás desta frase irôriica se oculta uma afirmação muito séria. O que se pode alcançar por meios matemáticos é de certa maneira relegado à margem do cognoscível e redu­zido a uma “estreita” faixa. O conhecimento cen­tral e essencial, “que importa” ao homem, não é matemático. O modo matemático de encarar a realidade só alcança o “sentido relativo” de um fenômeno, pouco se importando de seu conteúdo e negligenciando o “sentido real” das coisas, tanto178

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quanto possível. O fato de não o conseguir inteira­mente, provém, como já vimos, da relação entro operação matemática e finitude do homem. A retirada para o “sentido relativo”, a “neutrali­dade’' da matemática, é responsável pelo empo­brecimento da vida do cultor da matemática, que se torna estranho à existência real e concreta.

Em termos mais tradicionais isto significa: a matemática, como tal, é incapaz dc “compreender” as coisas; talvez nem as possa “explicar”, mas tão sòmente “dominar” . A oposição entre compreender e explicar foi sublinhada sobretudo por Max Weber e Karl Jaspers, e por êles utilizada como base metó­dica (influenciados, por um lado, pela distinção entre “ciência nomotética da natureza” e “ciência ideográfica do espírito” , proveniente de Wilhelm Windelband, e do outro lado pela concepção dilthey- ana de psicologia compreensiva e divisiva),

Não é aqui o lugar de entrar nos pormenores do amplo problema da compreensão nas ciências do espírito (problema hoje em dia estudado de maneira peculiar por E. Rothacker e sua escola). Só queremos dizer que nelas se tra ta da investi­gação da relação existente entre motivação e “ação” . Ora, motivações são participações internas, estudo dos modos de agir dos homens, de que tratam os historiadores. Isto aparece de maneira clara e inequívoca na análise dos motivos de um esta­dista ou de um general, feita na exposição histó­rica de um importante acontecimento político ou militar. Até mesmo a estética de um determinado estilo, ou sua realização em determinada obra, põe o historiador ante a tarefa de compreender seus motivos. 0 mesmo sucede com o problema da relação entre vida e poesia.

Uma coisa, porém, aparece bem clara, depois de apresentados êsses poucos exemplos: a análise

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matemática, p. ex., de um processo de locomoção (a análise do Galileu do movimento de um tiro, a análise de Newton sôbre o movimento dos pla­netas), é algo bem diferente.

É verdade que em ambos os casos se trata de uma “análise”, de uma decomposição nos elementos constitutivos. O general ou o estadista, do pri­meiro exemplo, foi certamente m ondo por motivos mui diversos e entrelaçados, sendo tarefa do histo­riador apreciar as diferentes influências que exer­ceram nas ações. O mesmo se dá com as fôrças da mecânica dc Galileu ou de Newton, onde se determinam os componentes de aceleração do mo­vimento por meio do sentido e da fôrça, as quais se compõem segundo as leis da adição do vector.

Mas aqui também se manifesta a grande dife­rença. Fôrça (módulo) e sentido de um vector podem ser exatamente determinados num sistema de relações c medidas, sendo que também a lei da composição é fàcilmente determinável e mane- jável. A dificuldade do problema está únicamente na decomposição lógica da causa total do processo em componentes que são conhecidos por meio dc processos elementares.

Isto é simples de demonstrar no exemplo da análise de Galileu do movimento de um tiro. O movimento de um objeto atirado é explicado por Galileu como composto do movimento de inércia, que se processa de forma retilínea e uniforme, (e cuja velocidade é determinada quanto à direção e efeito pelo impulso inicial recebido pelo objeto), e do movimento para baixo, uniformemente acele­rado pela gravidade. Já que a primeira compo­nente aumenta linearmente com o tempo, enquanto que a segunda cresce como quadrado, o movimento composto tem como trajetória uma parábola.ISO

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No caso da análise das motivações feita pelo historiador não temos processos elementares tão determinados, nem regras de composição tão esque- máticas. O historiador haure os conhecimentos dos motivos elementares e da cooperação entre êles, de sua experiência vital, que também a nós é conhecida em seu tipo geral. Esta experiência abrange não só a experiência pessoal, que depende de tantas casualidadcs, mas também aquela que está contida no depósito “objetivo-espirituaP’ dc um grande número de homens atuais e passados, na poesia, no direito, na religião, etc. Pensamos saber como homens (de nossa espécie) se compor­tam em certas situações típicas, e êste “saber” não é tirado de um sistema de axiomas, que adimi- timos porque nos parecem “evidentes”, ou porque são admitidos como “convenções arbitrárias; mas trata-se de um saber intuitivo daquilo que nos parece cognoscível de nós mesmos. E preciso lem­brar-se aqui de que o historiador é um “ conhecedor do espírito” , mas que o poeta épico o precede, como primeiro a narrar e a interpretar o destino humano. Homero precedeu a Heródoto.

Estas rápidas considerações, que só tocam a superfície dos problemas, querem esclarecer um único ponto. As análises feitas do ponto de vista das ciências morais são, do ponto de vista do matemá­tico, totalmente “inexatas” e entregues aparente­mente à intuição “evidente” , mais ou menos arbi­trária, muitas vêzes sentimental, do investigador. Contudo ela possui um caráter claro e compreen­sivo em seus elementos e na composição dos mes­mos. A análise matemática é exata na combina­ção dos dados elementares, suas operações são claramente prescritas e as leis que a regem são “demonstráveis”. Mas, pergunta-se, demonstrá- veis como ?

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Para demonstrar 6 preciso pre&supor alguma coisa. Mas como garantir essas pressuposições? devem também elas ser demonstradas como “ver­dadeiras"? Na geometria antiga, de Euclides, os axiomas e os postulados eram admitidos como evi­dentes e a evidência do sistema geométrico era construída sôbre a evidência de seus fundamentos. Vimos acima que no decurso da evolução histó­rica se perdeu êsse “estado de inocência” . Os axiomas básicos da geometria e da mecânica já não são evidentes para nós(56), talvez nem sequer “inteligíveis” .

Para a mecânica isto é fácil de demonstrar. Por exemplo, que as fôrças mecânicas sejam pro­porcionais à aceleração (não à velocidade) e que, por conseguinte, um movimento retilíneo uniforme deve ser considerado como não tendo fôrça, isto nos parece hoje em dia bastante evidente. Mas a his­tória da mecânica ensina o contrário. Aristóteles e tôda a Antiguidade era de opinião que a fôrça era proporcional à velocidade, como parece demons­tra r a crua experiência de cada dia (quanto mais se corre mais fôrça se precisa fazer). Levou quase 2.000 anos para que a opinião antiga fôsse substi­tuída pelas leis da mecânica, hoje chamada de “clássica”(57). Não se pode portanto falar de evi­dência das leis fundamentais da mecânica.

Isto vale já para a mecânica clássica. E vale muito mais para os fenômenos naturais mais afas-

(5G) Na minha opini&o ê ura problema muito sério, embora igno­rado pela maioria dou estudioao», como de deve explicar a evidência apa­rente da geometria euclidiana, no espaço natural experimental. Vtd. sobre ftsan assunto meu tratado “ Beitraosn zur phenumenolojóaehcr Bejcruemlung der Gcomntrie und ibrer ph.ysbaliscbrn A n^endung” , e.: Juhrburh fuer Philosopbto und phenomenotoun»nlwí Forsnhung (<jd. po® E . Husaprl), VI (1923?, pág. 385 a*. sobretudo 477-497, o "Dio ftpriorwche S truk tu r des An**.lmuungjirttumcs''t em Philoeiophischer Anzeigcr, IV (1930), págs. 129-162.(57) Sôbre as controvérsias que levaram a essa mudança, vid. as magistrais exposições de E. J . DijkUtrhui*, em: "Die Meehanisicmnc des Weltbildes” (Berlim-Goettingen Ileidelberg 1958).

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tados da experiência de cada dia. Mesmo as expres­sões usadas na mecânica, como "fôrça”, “inércia”, “resistência” , “impulso” , “pressão” , e outras, mos­tram que não se pode evitar fàcilmcnte as repre­sentações antropomórficas.

Na eletrodinâmica, ao contrário, as coisas são bem diferentes. As equações de Maxwell, que dominam tôda a estática e dinâmica elétricas (pré- cletrônicas), não mais são compreensíveis pelo espí­rito simples, como o é até certo ponto a lei da inércia. A razão da admissão de tais “ leis” está na sua utilidade, isto é, no fato que delas se pode deduzir tôda a gama dos fenômenos elétricos (pelo menos até onde atinge a teoria da continuidade); além disto em sua “beleza” e simetria, que aparecem sobretudo depois que foram completadas por Hertz.

Por êsses exemplos se pode entender o que signi­fica “compreender”, “explicar” e “dominar” . Da compreensão já falamos. Mas o que quer dizer “explicar” ? Até que ponto se “explica” o movi­mento do tiro, quando se o representa como com­posto de um movimento de inércia retilíneo e uniforme, e de um movimento dc queda unifor­memente acelerado ? Por meio dessa análise aquêle movimento é reduzido a algo já conhecido e já “explicado” . A redução se processa de forma “exata” , dc maneira evidente e clara. Aqui tudo se torna “claro” e tudo é “esclarecido” . Mas o que dizer do que é conhecido elementarmente, em nosso caso do movimento da inércia e da queda? Êsses movimentos elementares são “fàcilmente com­preensíveis” no sentido em que fàcilmente se pode representá-los e reduzi-los a uma fórmula simples. Mas por si mesmos não são compreensíveis no sen­tido próprio do têrmo. Nem possuem êles uma necessidade intrínseca, pois pode-se imaginar outras

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formas elementares de movimento, como prova a história da mecânica.

Aqui portanto está o limite do conhecimento “explicativo” . Não dá aquela “evidência”, aquela compreensão por experiência vivida que em alguns casos é possível no terreno das ciências do espirito. A natureza nos aparece sempre como algo estranho. Com isto obtivemos o conhecimento de algo essen­cial. .

M»s nâo há dúvida que o conhecimento expli­cativo da mecânica nos torna a “estranha” natu­reza algo familiar. Tantas vêzes vimos cair corpos que já não temos senso para a maravilha dêsse fato. O movimento de queda é-nos um processo “natural” e “evidente”, embora uma tal evidência paradoxalmente nem sempre signifique compre­ensão.

Partindo daf podemos entender a diferença entre “explicação” e “domínio” . As equações de Maxwell não reduzem os fenômenos elétricos a fenômenos elementares “evidentes”. No campo da eletrici­dade não há fenômenos experimentais diários, em­bora incompreendidos; tudo é nôvo aqui e desco­nhecido, e foi preciso investigá-lo sistemàticamente por tentativas elementares, mas nada triviais. Que sc rccordem as experiências de Faraday. Neste campo trata-se de dominar os fatos constatados experimentalmente por meio de regras, leis, fórmu­las, e não mais de “explicá-los". Êste nôvo modo de encarar sc manifesta em nossos dias de forma extrema na teoria dos quanta, onde qualquer passo nôvo leva a fatos surpreendentes, inexplicáveis (e a fortiori, incompreensíveis), e que só foi possível dominar pela formação de conceitos novos e aparen­temente paradoxais: que se pense no “dualismo” de corpúsculo de onda.184

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Topamos aqui com uma natureza ainda mais estranha que acima. A estranheza parece crescer quanto mais nos afastamos dos padrões de gran­deza costumeiros na vida diária. Mas justamente aqui a matemática vem em nosso auxílio sob sua forma formal-abstrata onde não mais é necessária a percepção. Para a teoria dos quanta, a teoria do “espaço” infinito-dimensional de Hilbert traz cla­reza, assim como para a teoria da relatividade foi de importância decisiva a “unidade tempo-espaço” quadridimensional de Minkowski.

Portanto, também aqui o pensamento matemá­tico não fracassa; muito ao contrário, precisa­mente aqui constitui êle o único método utilizável. Naturalmente não pode êle “compreender” no sentido do historiador que interpreta, ou do filólogo. Nem pode sempre “explicar” , no sentido de re­dução ao que é evidente. Aqui se encontra, se assim se quiser, um limite inerente à sua própria natureza. Mas consegue dominar, por meio de fórmulas, de simetrias, todo um setor dos fenômenos. E neste ponto, que lhe é próprio, o pensamento matemático não encontra limites.

Voltamos portanto ao pensamento pitagórico” , com que iniciamos o presente livro. Se a natureza nos é “estranha” exceto no domínio do humano, ou pelo menos no orgânico, mesmo aí ela alcança nosso “sentido dc beleza” pela sua estrutura crista­lina, que se exprime por meio de “simetrias” e nos revela algo de sua beleza inteligível (to noêton kallos) como dizia Plotino.

Isto leva a um problema mais profundo a que dedicaremos algumas linhas finais.

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4. Os limites do inteligívelPerguntando-nos sôbre os limites do pensamento

matemático* topamos com a questão um tanto antitética da incompreensibilidade da natureza; esta nada mais é que o problema dos limites da compreensão histórica. Pelo menos a natureza anorgánica se revela como ininterpretável, portanto como “não-histórica”. Pois tudo o que é histórico é por essência capaz e necessário de explicação. Nossa questão portanto se modificou, sem que nisso influíssemos: da crítica do pensamento mate­mático chegamos à crítica do pensamento herme- nêutico-histórico. Que o método histórico e herme­nêutico fracassem, eis o que é “estranho” . E fra­cassa lá onde se encontra o que é especificamente natural. E precisamente onde fracassa o processo explicativo “hermenêutico” , o pensamento matemá­tico entra na liça. Portanto, pensamento matemá­tico e hermenêutico estão em estreita relação de complementaridade. Quando se compreende isto pode-se também ver que é injusto tanto censurar 110 pensamento matemático a limitação, como obje­tar ao método histórico-hermenêutico a incapaci­dade de atingir a natureza.

O objeto do pensamento matemático é diverso do do método histórico. Cada qual tem seu lado luminoso e suas obscuridades. 0 que é claro em a natureza só podemos compreender pela matemá­tica; quem a quiser “compreender” hermenêutica- mente, só verá o lado inacessível c obscuro da mesma.

Por conseguinte, os limites do pensamento mate­mático não se encontram na linha de seu processo natural, mas sòmente lá onde, desviando-se de seu caminho, é aplicado a coisas para as quais não1S6

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foi feito. Embate-se então contra a fronteira que nfto é a sua. Ê uma fronteira que, por assim dizer, corre paralela a seu caminho, para impedí-lo de sc desviar de sua verdadeira direção, o que não o impede de continuar em seu progresso linear.

Esta barreira, ou limite, portanto, limita não tanto o pensamento matemático, como a compre­ensão histórica, por mais paradoxal que isto possa parecer. O fato que o pensamento matemático pode atingir coisas e setores, que não são mais “compreensíveis”, mostra que há coisas sôbre as quais a sabedoria acadêmica do hermeneuta não poderia nem sequer sonhar. Portanto, o que é limitado é, pròpriamente, a pretensão universal do "espírito” histórico-hermenêutico de tudo querer compreender. Dêstc ponto de vista a afirmação acima citada de Hcidegger sôbre a “estreiteza” da matemática cm comparação com a história recebc uma nova luz. Já não é a matemática, mas a história que nos aparece agora como "estreita”, isto é, limitada em sua meta possível e em sua pretensão universal.

Os campos da matemática e da história se limi­tam mútuamente; neste ponto se pode ver a justi­ficativa simétrica de ambas. Mas por outro lado há uma grande diferença entre ambas. O pensa­mento matemático desde o início não tem a pre­tensão de ser universal (nem sequer a "Mathesis universalis” do século xvii tinha essa intenção). Por conseguinte, êle não fica atrás de sua intenção fundamental. O pensamento histórico-hermenêu­tico, ao contrário, tem a pretensão de tudo com­preender e por conseguinte fracassa tôdas as vêzes que encontra a natureza.

Falando mais precisamente: a natureza só ê constatada pelo olhar cheio de admiração e sem compreensão; não pode ser experimentada (històri-

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camente), nem apropriada para o uso na vida. Mas ela é “interpretável” em certo sentido, isto é, pode ser representada como figura simétrica, nâo como uma figura observável pelos sentidos, mas como forma do pensamento (noêton eidox), cujo fundamento é a matemática.

Representar a natureza como “flor” à maneira de Schelling (segundo os versos de Platens) é o êrro romântico de uma poesia, que nâo deixa dc ser arrebatadora. A natureza deve ser represen­tada como um cristal inteligível, e isto é feito pelos melhores cientistas de nossos dias; talvez seja êste o caminho da verdade — um caminho em que brilha a luz da matemática.

Um último pensamento ainda. O homem não é sòmente um ser histórico, “existencial”. Não é sòmente “espírito” , mas também “natureza”. É verdade que isto nunca foi totalmente esquecido, mas em geral o que é natural no homem é identifi­cado com o que é animal e instintivo, isto é, com a camada inferior, que sòmente é elevada por obra do espírito, o qual ünicamente é capaz de viver a história, isto é, seu “destino”, e de compreendê-lo. Esta, entretanto, não é a verdade total. O esquema das camadas, por mais esclarecedor que seja, não basta para abranger tôda a realidade.

Não é possível nem conveniente entrar agora na exposição de todos os problemas suscitados. Uma coisa entretanto podemos dizer: o fato de existir o pensamento matemático não se coaduna com uma concepção do homem em camadas. De fato, o pensamento matemático reúne a mais alta racio­nalidade com uma falta total de consciência histó­rica. Portanto, não foi pelas fôrças que o fizeram elevar-se a ser “existencial”, consciente de história, que o homem faz matemática, mas pela sua depen­dência para-existencial, e indestrutível, da natu­188

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reza; daí lhe provêm as fôrças de decifrar a natu­reza lá onde ela é incompreensível, e precisamente aí. e isto através do pensamento matemático, que faz brilhar a luz “cristalina'’ que lhe é própria.

Dêste modo o equilíbrio entre história e matemá­tica nos permite lançar um olhar profundo para a duplicidade fundamental do homem: seu “existir” (“Dasein”) e seu “ser” (Dawesen”)(58).

Acompanhar de perto êste assunto ultrapassa os objetivos desta dissertação.

(58) Vid. m&u artigo: “P&raoxiatea*. Menflchliches Davein undD atomb” , em: Bl&eUcr fuer douUche PhiloaopUe X V II (1943), pAg*. 62*05.

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