o Percurso de Tomé, Chamado «Gémeo»

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    O PERCURSO DE TOMÉ, CHAMADO «GÉMEO»1. Em 30 de abril do ano 2000, o Papa São João Paulo II consagrou o Domingo II daPáscoa como «Domingo da Divina Misericórdia». Compreende-se que, nesse mesmodia, tenha canonizado a religiosa e mística polaca Santa Faustina Kowalska (1905-1938), primeira canonização do novo milénio, que, nos seu Diário, registava o pedidoque lhe fazia Jesus de a Igreja vir a instituir solenemente o primeiro Domingo depois daPáscoa (como então se dizia) como Festa da Divina Misericórdia.

    2. Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo II daPáscoa (João 20,19-31), Os discípulos estão num lugar, com as portas fechadas, pormedo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nadanem ninguém pode reter, vem e fica no MEIO deles, o lugar da Presidência, e saúda-os:«A paz convosco!». Mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitadocom o Crucificado, e agrafa-os à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken : perf.

    de apostéllô ), também Eu vos mando ir ( pémpô )». O envio d’Ele está no tempo perfeito(é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presenteda nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem elae sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Eleestá connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito que os discípulos ficaramcheios de alegria ao verem (idóntes : part. aor2 de horáô ) com um olhar histórico (tempoaoristo) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo (cf. João 20,8), também eles veem comum olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles éo sopro criador (emphysáô ), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. Estesopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma belaponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (napah TM /emphysáô LXX) criador de

    Deus no rosto do homem.3. A identidade do Senhor Ressuscitado está para além do rosto. Por isso, vê-lo nãoimplica necessariamente reconhecê-lo, como sucede em não poucas páginas dosEvangelhos. A identidade do Ressuscitado não é do domínio da fotografia. Vem dedentro. Reside na sua vida a nós dada por amor até ao fim, aponta para a Cruz. Por isso,Jesus mostra as mãos e o lado, sinais abertos para entrar no sacrário da sua intimidade,dádiva infinita que rebenta as paredes dos nossos olhos embotados e do nosso coraçãoempedernido. Entenda-se também que a missão que nos é confiada é mostrar Jesus. Estábom de ver que não basta exibir as capas do catecismo que mostram um Jesus de olhosazuis e cabelo louro encaracolado. Só o podemos mostrar com a nossa vida delerecebida, e igualmente dada e comprometida.

    4. O narrador informa-nos logo a seguir que, afinal, Tomé (Toma’ ), chamado Gémeo( Dídymos ), não estava com eles quando veio Jesus. Dídymos é, na verdade, a traduçãoliteral, em grego, do aramaicoToma’ [= «Gémeo»]. Mas os outros diziam-lherepetidamente (élegon : imperf. de légô ), imperfeito de duração, com a mesmalinguagem da Madalena, mas no plural: «Vimos (heôrákamen : perf. de horáô ) oSenhor!» (João 20,25). Portanto, também eles são testemunhas, pois viram e continuama ver o Senhor, de acordo com o tempo perfeito do verbo grego. Mas Tomé quer tudocontrolado e verificado, ponto por ponto, e refere: «Se eu não vir (ídô : conj. aor2 dehoráô ) com umolhar histórico (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e nãometer o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, nãoacreditarei» (João 20,25).

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    5. Novo desarme: oito dias depois, estavam outra vez os discípulos com as portasfechadas (mas o medo já não é mencionado), e Toméestava com eles . Veio Jesus, ficouno MEIO, saudou-os com a paz, e dirigiu-se logo a Tomé desta maneira: «Traz o teudedo aqui e vê (íde : imper. aor2 de horáô ) com um olhar histórico (tempo aoristo) asminhas mãos, e traz a tua mão e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente!»

    (João 20,27). Aí está Tomé adivinhado, desvendado e desarmado. Também ele podia terpensado: «E como é que ele sabia que eu queria fazer aquilo?». Tomé cai aqui,adivinhado e antecipado, precedido por Aquele que nos precede sempre. Não quer tirarmais provas. Diz de imediato: «Meu Senhor e meu Deus!» (João 20,28), uma das maisbelas profissões de fé de toda a Escritura. E Jesus diz para ele: «Porque me viste econtinuas a ver (heôrakás me ), tempo perfeito dehoráô , acreditaste e continuas aacreditar ( pepísteukas ), tempo perfeito de pisteúô ; felizes (makárioi ) os que, não tendovisto (idóntes : part. aor2 de horáô ) com um olhar histórico (tempo aoristo), acreditaram( pisteúsantes : part. aor. de pisteúô )!» (João 20,29), tempo aoristo. Esta felicitação é paranós.

    6. Notável o percurso dos Discípulos. Fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficarno MEIO deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram omedo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e adizê-lo repetidamente. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamadoGémeo:não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queriaprovas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, precedendo-o e presidindo-o, entregou-secompletamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu eteu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nósnão estamos com acomunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremosprovas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemosestar com acomunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé noRessuscitado que nos preside (no MEIO) e nos precede sempre. Como Tomé, chamadoGémeo.

    7 A lição do Livro dos Actos dos Apóstolos (4,32-35, mas ver também 2,42-47 e 5,12-16) deste Domingo II da Páscoa é outra vez soberba. Trata-se de uma visita guiada aoCenáculo, a primeira Catedral da Igreja nascente, mas com ramificações em todas ascasas, em todos os corações, bem assente em quatro colunas: o ensino dos Apóstolos(1), a comunhão fraterna (2), a fracção do pão (3) e a oração (4). Com a boca cheia delouvor, os olhos de graça, as mãos de paz e de pão, as entranhas de misericórdia, acomunidade bela crescia, crescia, crescia. Não admira. Era tão jovem, leve e bela, que

    as pessoas lutavam por entrar nela!8. E o Autor do Livro do Apocalipse desenha também diante de nós, na lição de hoje(Apocalipse 1,9-19), a figura sublime do Filho do Homem, O que Vive (ho zôn )(Apocalipse 1,18), porque venceu a morte para sempre, e nos protege sempre, pondosobre nós a sua mão direita (Apocalipse 1,17). Excelente visualização da DivinaMisericórdia, milagre aos nossos olhos, amor e bondade sem medida com que o bomDeus enche os nossos dias, as nossas mãos, o nosso coração, as nossas entranhas, osnossos passos. É assim que, como refere São Máximo Confessor (580-662), «a Páscoagera a fé e a fé gera o amor». E A misericórdia é a chama divina com que devemosacender e purificar o nosso coração.

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    9. Cantemos, por isso, o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno HallelPascal» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel,nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a suadistribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa («Esteé o dia que o Senhor fez,/ nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24), e eleva ao Deus

    sempre fiel uma grande Acção de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizadoem favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a melodia que nos habita é opróprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soaassim em hebraico:‘azzî w e zimrat YAH . Além do nosso Salmo, a expressão densa eimpressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. Orefrão que vamos cantar aparece a abrir e a fechar este grande Salmo, e constitui comoque o envelope onde guardamos a bela melodia que cantamos. Soa assim: «Louvai oSenhor porque Ele é bom,/ porque para sempre é o seu amor!» (vv. 1 e 29).

    Senhor Jesus,

    Há tanta gente que Te procura à pressa e Te quer ver.

    Mas quando dizem que Te querem ver,

    Não é para Te conhecer.

    É o teu rosto, a cor dos teus olhos e cabelos,

    A tez da tua pele, a tua forma de vestir que os atrai e contagia.

    Querem ver-te como se fosse numa fotografia.

    Mas Tu, Senhor Jesus Ressuscitado,

    Quando Te dás a conhecer a nós,

    Não mostras o rosto,

    Uma fotografia,

    O cartão de cidadão.

    Se fosse assim,

    Mal seria que os teus amigos Te não reconhecessem.

    E o facto é que,

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    Quando surges no meio deles,

    Não Te reconhecem.

    E em vez do rosto,

    São, afinal, as mãos e o lado que apresentas.

    Entenda-se: é a tua maneira de viver que nos queres fazer ver.

    Na verdade, a tua identidade é dar a vida,

    É dar a mão e o coração.

    É essa a tua lição, a tua paixão, a tua ressurreição.

    Senhor, dá-nos sempre desse pão!

    António Couto