O plágio na era digital Revista Veja

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~-----~---~-------- Educação C\t\ ROBERTA DE ABREU LIMA , o PLAGIO. NA ERA DIGITAL Com o acesso fácil à informação na rede, a reprodução . de conteúdo disseminou-se na academia - e pode ser um obstáculo ao avanço do conhecimento P or quase duas décadas, o dou- tor em bioquímica Andreimar Soares, 45 anos, percorreu tra- jetória típica dos bem-sucedi- dos no universo acadêmico. Publicou 115 artigos científicos, foi laureado com prêmios, recebeu bolsas de estu- dos, orientou e avaliou dezenas de es- tudantes de mestrado e doutorado de todo ó país-,Também catedrático da Universidade de São Paulo (USP), na semana passada ele viu sua reputação desmoronar quando veio à luz a infor- 100 I 2 DE MARÇO, 2011 I veja

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Educação

C\t\

ROBERTA DE ABREU LIMA

,o PLAGIO. NAERA DIGITALCom o acesso fácil à informação na rede, a reprodução .de conteúdo disseminou-se na academia - e pode serum obstáculo ao avanço do conhecimento

Por quase duas décadas, o dou-tor em bioquímica AndreimarSoares, 45 anos, percorreu tra-jetória típica dos bem-sucedi-

dos no universo acadêmico. Publicou115 artigos científicos, foi laureadocom prêmios, recebeu bolsas de estu-dos, orientou e avaliou dezenas de es-tudantes de mestrado e doutorado detodo ó país-,Também catedrático daUniversidade de São Paulo (USP), nasemana passada ele viu sua reputaçãodesmoronar quando veio à luz a infor-

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MATHEUS URENHAlA ClDADE

mação de que um de seus trabalhos,publicado três anos atrás na prestigia-da revista Biochemical Pharmacology,trazia imagens e gráficos copiados deoutra obra científica. A própria ex-rei-tora da instituição, Suely Vilela, teveparticipação na pesquisa, mas apenasnum trecho que, concluiu-se, não erafruto de usurpação de ideias alheias. Ocaso, objeto de uma investigação dacomissão de ética da USP havia umano, não só manchou para sempre umcurrículo até então irretocãvel comocustou ao acadêmico o emprego nauniversidade. Diz o reitor João Grandi-no Rodas, de quem veio a palavra fi-nal: "Que o castigo tenha um efeitopedagógico para os demais, espantan-do a praga do plágio".

Não se trata de um problema cir-cunscrito à academia, mas que estádisseminado por todas as áreas da pro-

dução intelectual, desde a Antiguida-de. À luz da legislação, 'plagiar signifi-ca usurpar ideias alheias sem lhes daro devido crédito, um ato passível depunição. Mesmo que o conceito sejacristalino, existem nuances na concep-ção de plágio, que variam segundo aárea para a qual se olhe, e ainda certasubjetividade na sua interpretação,Nas artes plásticas, por exemplo-se oselementos da obra original são a es-sência da suposta cópia, considera-seplágio. Esse não é o caso de inspira-ções co"moa que teve o pintor PabloPicasso (1881-1973) ao pôr-se diantedo célebre quadro Déjeuner surL'Herbe, do impressionista ÉdouardManet (1832-1883). Nas reinterpreta-ções do espanhol (foram ao todo 200esboços com a cena do piquenique),veem-se claramente seus traços carac-terísticos. É isso que confere à obra

FLAGRADO NA CÓPIA O doutor embioquímica Andreimar Soares perdeu o

emprego na USP: punição exemplar

forte conteúdo autoral e faz dela algooriginal.

Na academia, o plágio vem sendoobjeto de discussão desde o séculoxvrn, quando surgiu na Inglaterra apioneira lei de propriedade intelectual.Ao proteger a autoria das ideias, elaproporcionava retomo financeiro, e porvezes renome, a seus criadores. Fo-mentou-se assim a produção de conhe-cimento, garantindo-se que cada obrafuncionasse como uma etapa numa ca-deia de inovação bem maior. O concei-to básico persiste até hoje. Todos oscasos de plágio em universidades afron-tam a lei de direitos autorais - e cons-tituem, não há dúvida, um ataque a umpilar sobre o qual se ancoram a inventí-

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dade e o avanço do conhecimento.Conclui o jurista Eduardo GhiaroniSenna, especializado no assunto: "Oplágio é um desestímulo ao mérito eum entrave ao progresso intelectual".

Embora cause espanto devido àscredenciais dos envolvidos, a históriaprotagonizada pelo professor da USP émais comum no Brasil do que se podesupor - e sua incidência só aumenta.A razão diz respeito às mudanças re-centes na própria forma de conceber edivulgar o conhecimento, revoluciona-da pela internet da década de 90 paracá. "O acesso fácil a todo tipo de infor-mação no computador, inclusive àquelade alto nível acadêmico, tomou a re-produção de conteúdo uma operaçãotão tentadora quanto trivial", resume oprofessor de metodologia científicaMarcelo Krokoscz, hoje debruçado so-bre o tema. O caso da USP é emblemá-tico do fenômeno: a fraude materiali-zou-se justamente porque as imagenssurrupiadas, captadas por um micros-

cópío, circulavam livremente na rede,com qualidade suficiente para propor-cionar uma boa cópia.

É algo que se alastra desde a gra-duação até o panteão dos cientistas demais alta estirpe. Uma tendência para aqual uma pesquisa recente, de abran-gêncía nacional, deu os primeiros nú-meros. Sob o comando do especialistaPedro Luengo, foram ouvidos 585 pro-fessores universitários. Indagados so-bre se já haviam flagrado casos de có-pia de conteúdo feita por alunos, 82%deram resposta afirmativa. Um númeroespantoso, ate porque está subestima-do. Parte do plágio, afinal, passa incó-lume aos olhos mais desatentos. A si-tuação no Brasil ecoa, em graus bas-tante semelhantes, o que ocorre no ce-nário internacional. Um dos maioreslevantamentos já feitos acerca do tema,conduzido pela instituição especializa-da The Center for Academic Integrity(que reúne centenas de universidadesamericanas), trouxe à tona o ponto de

NA CAÇA AOS PLAGIADORESO professor Roberto Ottoni, da FGV: uma

das instituições a adotar software anticâpia

vista dos alunos. É estarrecedor. Quase80% dos entrevistados admitem já tercopiado obras alheias pelo menos umavez na vida, sem se preocupar em citara fonte.

O combate à prática, que já começaa tomar corpo em universidades estran-geiras, é ainda incipiente no Brasil. Al-gumas das melhores instituições de en-sino superior do mundo, como as ingle-sas Oxford e Cambridge e o americanoInstituto de Tecnologia de Massachu-setts (MlT), deram a partida na caça aosplagiadores com uma iniciativa simples,mas decisiva: elas definem, com regrasclaras e amplamente difundidas entrealunos e professores, o conceito de có-pia e' suas punições. Não raro, até exi-gem dos estudantes que assinem umtermo em que eles se comprometem anão incorrer no erro. Citações de textos

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"PAGUEI PELA MONOGRAFIA"

Educa ão

e ideias de outrem, só com odevido crédito. Essas institui-ções também já usam softwa-res feitos para atestar a origi-nalidade dos trabalhos, vascu-lhando.a rede em busca deeventuais cópias - sistemarecém-implantado no Brasilpela Fundação Getulio Vargas(FGV) e pela UniversidadeAnhembi Morumbi. ·"Comba-ter o plágio é trabalho que exi-ge disciplina e persistência",afirma o diretor do programade ética em pesquisa da Uni-versidade de Michigan, Ni-cholas Steneck.

Todas as iniciativas serãoinócuas se não se atentar paraum fator pouco comentado, porém deter-minante para que o plágio se dissemine- o despreparo dos professores para asnovas demandas do mundo digital. Ex-plica o especialista Ryon Braga: "Oacesso universal à informação exige ou-tro tipo de professor, capaz de formulardesafios intelectuais mais elaborados,que impossibilitem a cópia literal". Omomento deve ser encarado como umachance de deixar a zona da mediocridadeonde a cópia prolifera. Em casos extre-mos, pasmem-se, alunos chegam até apagar por trabalhos e teses acadêmicas jáprontas, modalidade de plágio que cres-ce no Brasil junto com a própria inépciado ensino - e é também impulsionadapela internet (veja o quadro abaixo). En-quanto os educadores fracassarem na ta-refa de transformar a rede numa ferra-menta em prol do aprendizado, será im-possível eliminar definitivamente atranscrição cega e acrítica de textos quetanto assola as salas de aula. _

Sem tempo para escrever a monografiade conclusão do curso de direito nas Fa-culdades Metropolitanas Unidas (FMU),em São Paulo, a hoje advogada C.R. deci-diu pagar pelo trabalho pronto. Como ha-via ali trechos inteiros plagiados da inter-net, acabou f1agrada pela professora e re-petiu o ano. "Foi um vexame. Todo mundoficou sabendo", ela conta. Casos comoesse insuflam um mercado que vem cres-

.J .PLÁGIO OU INSPIRAÇÃO? A célebre tela de Manet (no alto) foi reinterpretadapor Picasso (acima): o traço marcante do espanhol confere a originalidade

cendo e se profissionalizando com a pre-sença da rede. Antes caseiro e às escon-didas, o negócio de venda de trabalhosacadêmicos (desde aqueles para a gra-duação até teses de doutorado) hoje sepropaga por dezenas de sites, em geralsem obstáculos jurídicos. Por falta de de-núncias, os casos raramente chegam aostribunais. São oferecidas comodidadesinacreditáveis em se tratando de uma ati-

vidade ilícita, como pagamento com .cartão de crédito e até boleto bancário, .além de atendimento por e-mail ou te-lefone. O preço dos trabalhos, muitosproduzidos por professores universitá-rios, gira em torno de 600 reais. As em-presas que prestam esse serviço tentamconferir uma fachada de legitimidadeao comércio ilegal praticado por elasanunciando algo como "fundamentaçãoteórica" para os estudantes. Um malque cabe às universidades tentar coibir.

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