O planeta Neutral – Paul Anderson

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De Paul Anderson. Os vigilantes da patrulha perceberam o disparo da garota antes que o Chefe falasse. Ouviram-se os primeiros gritos de alarme. Bourtai fez fogo sobre o grupo. As descargas de raios iônicos explodiram neles e o capitão Sir Dominic Flandry caiu no chão.

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Os vigilantes da patrulha perceberam o disparo da garota antes que o Chefe falas- se. Ouviram-

se os primeiros gritos de alarme. Bourtai fez fogo sobre o grupo. As descargas de raios iônicosexplodiram neles e o capitão Sir Dominic Flandry caiu no chão.

Este foi o início da macabra missão de Flandry em Altai, um dos planetas neutrais existentesentre duas culturas galácticas em guerra. Mas também poderia parecer o fim da aventura, porquepara além de uma possível fuga do planeta, estavam os restos congelados, mortais para o homem,de uma zona ultra-polar

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Título original: Mayday Orbit

© 1959; Poul Anderson

Mayday Orbit, by Poul Anderson

Ace Double F104, 1961

Cover art by Ed Valigursky

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Índice Capitulo ICapítulo IICapítulo IIICapítulo IVCapítulo VCapítulo VICapítulo VIICapítulo VIIICapítulo IXCapítulo XCapítulo XICapítulo XII

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CapituloI

A visã o que oferecia o planeta Altai, visto ao aproximar-se em vo o espacial, a partir daescuridão dos postos de observação da nave cósmica e mesclado com os enxames de estrelas dedistantes constelação, era com certeza de uma imensa beleza.

Uma boa parte de cada hemisfério achava-se coberta pelas calotas polares.

Nelas, as imensas superfícies geladas eram tingidas por uma suave luz rosada procedente dosol daquele sistema planetário, nos espaços cobertos pela neve, enquanto que os gelos eternos dospolos brilhavam com luzes verdes e azuladas. O cinturão tropical de estepes e imensas planíciesera colorido, desde o matiz bronzeado até o ouro pálido, salpicado po r brilhante s lagosprateados. A três raios planetários de distância , brilhava , circundando o planeta, um anel duplode pó meteórico, refletindo sobre o equador sua luz iridescente. Mas além, no espaço exterior, asluas giravam ao redor do planeta, como duas reluzentes moedas de cobre entre as estrelas.

O capitão, Sir Dominic Flandry, agente superior do Corpo de Inteligência Nava l do ImpérioTerrestre, aproximou-se da pont e de comando da nave espacial para contemplar, interessado,aquele extraordinário panorama.

- Agora compreendo a origem do nome deste planeta - murmurou.

Na língua falada pelos colonizadores humanos do planeta, e que ele havia aprendido por umprocesso eletrônico de um comerciante do sistema de Betelgeuse, Altai significava “dourado”.

- Mas Krasna não é um nome apropriado para o sol deste sistema - continuou Sir Dominic. -Não é realmente vermelho para o olho humano, de modo algum. Nem mesmo aproximadamente,como Betelgeuse. Eu diria que está mais para uma cor amarelo-alaranjada.

O rosto azul de Zala t, qu e pilotava aquela nave comercial armada , contorceu-se co m umacareta , que era o equivalente entre os da su a raça a um encolhe r de ombros. Era um tipomoderadamente humanoide, embora de uma altura inferior à metade de um homem. Tipo vigoroso,desprovido de cabelo, estava vestido com uma túnica de cota de malha.

- Creio que você tem razão - respondeu Zalat.

Ele falava o inglê s co m um sotaque terrível, talve z para enfatizar su a independência comopertencente ao sistema da estrela Betelgeuse - organização que servia de transição entre a Terra eMerseia, - o que fazia pensar que não haviam feito nada para contribuir com a corrente principal

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da cultura interestelar.

Flandry gostaria de praticar melho r seu conhecimento do idio ma altaiano, especialmenteporque o reduzido vocabulário inglê s de Zalat aparentava ser tão difícil, apt o somente paraconversas elementares, mas preferiu esquecer isto. Como único passageiro de raça estrangeira,com necessidades vitais especiais, dependia da bo a vontade do capitão daquela nave . E, poroutro lado, desejava ser grato ao povo de Betelgeuse.

Oficialmente, sua missão consistia em restabelecer contato entre Altai e o resto da raça humana.A missã o não era fundamental e, consequentemente, a Terra não o havia provido de uma naveespecial naquela ocasião, deixando-o em liberdade para fazer aquela viagem ao seu livre arbítrio.Assim então, deixou Zalat à vontade.

- Além de tudo - continuou o capitão, - Altai ser colonizada primeiro fazer setecentos anos deTerra no passado, quando começar viagens por espaço. Não descobrir muito. Krasna deve parecerser vermelho e frio, depois de Sol. Agora ter mais presunção astronáutica.

Flandry dirigiu uma olhada ao universo povoado de estrelas, que eram miríades, mais do quepoderia contar, mais do que algué m poderia imaginar. Uma estimativa de quatro milhões,incluindo a vaga esfera de influência do chamado Império Terrestre, não era mais que umainsignificante porção de um braço da espiral daquela Galáxia comum. Mesmo acrescentando osimpérios não humanos, os sistema s soberanos co mo Betelgeuse e os informe s do s poucosexploradore s espaciais qu e se ha- via m distanciado ao máximo desde os antigos tempo s daexploração cósmica, aquela part e do universo conhecido pelo homem era aterradoramentepequena. E por muito que se esforçassem, sempre permaneceria assim.

- Com que frequência você vem aqui? - perguntou Flandry, alterando o denso silêncio dointerior da nave.

- Uma vez cada ano-Terra - respondeu Zalat, com sua semi-língua inglesa - Mas haver outroscomerciantes alé m de mim. Eu faze r comércio de peles, mas Altai també m produ z minerais,gemas, produtos orgânicos e outro s que ter demanda em me u sistema. Assim, haver nave s deBetelgeuse frequente caminho para Ulan Baligh.

- Você vai demorar muito tempo?

- Eu esperar que não. Este ser lugar ruim para gente não humana. Eles haver estabelecido casade recreaçã o para nós, mas - e a face azulada de Zala t mudo u de aspecto - have r muitascomplicações. Última vez esperar um mês inteiro para completar carga . Est a ve z se r pio r comcerteza.

- Ya, ya - pensou Flandry. E acrescentou, em um tom perceptível para Zalat: - Se os metais e asmáquinas que você trouxe para troca comercial têm o valor que você afirma, me surpreende queos altaianos não adquiram naves espaciais para empreender tal comércio por sua conta.

- Eles não ter nenhuma civilizaçã o comercial - responde u Zalat. - Lembre que nósbetelgeusianos vir aqui faze r menos de cem anos. Antes Altai estar isolado. Naves espaciais

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primitivas trazer colonos faze r muito tempo que estar muito usadas. Colo- nos tampouco terinteresse depois por outro s contato s galácticos. Recorda r você qu e planeta ser tão pobre emmetais pesados que construção de naves novas seria muito custoso para eles. Agora pode ser quemuitos jovens de Altai tentar esta empreitada . Mas ultimamente o Kh a Khan have r proibidoqualquer tais projetos para sair do planeta, só fazê-lo para muitos poucos de nós betelgeusianosque ser muito conhecidos, todos de grande confiança e gente representativa do sistema Betelgeuse.Esta proibição é uma razão para insurreições contra ele.

- Entendo - Flandry dirigiu um olhar sombrio aos vastos campos gelados do planeta. - Qualquerum que quiser sair desta bola congelada e não possa , conta com toda minha simpatia, claro. Seeste fosse meu planeta, creio que me dedicaria a procurar um inimigo que quisesse comprá-lo.

“Entretanto estou me dirigindo para lá - refletiu Flandry. - Quanto mais se parte e se esmigalhao Império, com mais frenesi uns poucos de nós os espaciais estamos sempre procurando maiorespaço vital... Caso contrário, a Longa Noit e pode cair sobre o curso sacrossanto das nossaspróprias vidas. E co m respeito a est e particular - sua mente continuou pensando - tenho boasrazões para acreditar que um inimigo está tentando ficar com o planeta”.

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CapítuloII

Originados nas neves polare s do planeta Altai, diversos rio s muit o largos e de poucaprofundidade se estendiam em direçã o su l sobre as estepes. No lugar onde dois dele s seencontram, o Zeya e o Talyma, no lugar denominado Osero Rurik, havia sido fundada a cidade deUlan Baligh pelos primeiros colonizadores. Nunca tinha tido realmente uma grande população; eraentão o único remanescente como assentamento dos habitantes humanos do planeta, que nãoalcançariam os vinte mil residentes. Mas o número de pessoas ao seu redor era muito maior queest a cifra. Havia sido o luga r de encontro dos homens das tribo s que vinham à cidade paracomerciar, para se reunirem ou para realizar ritos religiosos na Torre do Profeta. Tinham cercadoa parte sul da cidade, que lhes servia de acampamento, próximo ao primitivo aeroporto espacial,acendendo suas fogueiras ao longo de vários quilômetros, seguindo a margem do lago.

Quando a nave espacial aterrissou, o capitão Flandry estava mais interessado em alguma coisamenos pitoresca. Havia subornado um engenheiro para permitir-lhe desfrutar de uma maravilhosavist a da torre de controle do aeroporto. Dali ele pôde observar a linha do monotrilh o quecircundava a cidade, e pela qual corriam a enormes velocidades vagões especiais que viajavamcomo projéteis. Observou o movi- mento de transport e de modernos engenhos militares, assimcomo de muitos tanques e outros apetrechos. Via igualmente o aquartelamento e pavilhões do tipomilitar em construção a oeste da cidade, próprios para um exército em armas, e um edifício pertoda praça do mercado centra l com toda s as característica s de uma grande centra l geradora deenergia, apropriada para toda a zona urbana. E tudo aquilo era novo. Nada daquilo havia sidoconstruído em qualquer fábrica controlada pelo Império Terrestre.

“Apesar de tudo, este material pode ter sido fornecido pelos meus pequenos camaradas verdes- murmurou para si mesmo. - Se os merseianos conseguirem uma base aqui na região neutra e nosrodeare m como em Cata Wrayanis... bem, ist o nã o seria decisivo po r si mesmo, embora lhespermitiria estender suas garras um pouco mais. E se eventualmente a mão se estender o suficiente,sem dúvida irão dar início a uma grande guerra.”

Não era a primeira vez que sofria alguma decepção amarga procedente do seu próprio povo,rico demais para gastar fortunas em um ataque aberto, com a desculpa - embora alguns deles aindanegassem - de qu e existia uma ameaça qu e poria em desequilíbrio a gloriosa paz terrestre.“Depois de tudo - pensou sombriamente - era para alegrar-se dessas loucuras em seu próprio lar,já que a Terra estava em franca decadência.

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Mas naquele momento a Terra estava a trezentos anos luz de distância e ele tinha um trabalho afazer.

Po r sua mente passara m rapidamente os diverso s fatos que a Inteligência havia captado naregião de Betelgeuse. Os comerciantes espaciais haviam mencionado curiosas idas e vindas emum lugar chamado Altai. Dispunham de pouca informação específica para lhe fornecerem, pois sóse importava m com aquele luga r quando se relacionava aos seus negócios. A informaçã o foirevelada finalmente, quando os homens da Terra a provocaram com oportunos copos de licor, epassou ao se u corresponde nte local nos arquivo s secretos: onde se achava o planeta,identificando-o finalmente como uma velh a colônia huma na distante dos usuais caminhos doespaço, embora não tão extraviada que não pudesse ser vigiada.

Uma investigação a fundo teria requerido vários meses e algumas centenas de agentes. Naquelatremenda dispersã o do espaço entre tantas estrelas, a Inteligência decidiu enviar apenas umhomem. Na Embaixada Terrestre em Betelgeuse VI , Flandry recebeu um grosso volume sobreAltai, com uma informação sobre seu trabalho e com a ordem de inteirar-se de tudo quanto aliacontecesse . Depois do que, os integrantes da Inteligência, sobrecarregado s de trabalho, odeixaram com sua missão. E voltariam a se lembrar dele quando voltasse a informar sobre a suamissão, ou se tivessem notícias de que teria morrido de alguma forma fora do normal. Ma s senenhuma daquelas coisas acontecesse, Altai poderia permanecer na escuridão por outra década.

“O que seria uma perda de tempo muito longa”, pensou Flandry.

Com ar despreocupado, Flandry voltou para sua cabine na alta torre de controle . Os altaianosnão suspeitariam que ele tinha visto suas nova s instalações militares ou, caso suspeitasse m dealgo, achariam que sua opinião sobre aquele equipamento era que se destinava simplesmente aprevenir qualquer tipo de rebelião local. O Khan de- via ser extremamente descuidado, por nãoesconder tal evidência aos olhos do mundo exterior. Sem dúvida alguma porque não esperava quealgu m investigador terrestre viesse bisbilhotar. Não teria procedido assim, co m certeza , sesuspeitasse que tal investigado r pudesse volta r com tão importantes informações ao ImpérioTerrestre.

Na cabine, Flandry vestiu-se co m seu habitual cuidado. De acordo com as informações quepossuía , as pessoa s de Alta i gostava m de usa r core s chamativas em sua s roupas, de formaostensiva . Escolheu uma camisa resplandecente de co r verde , uma espécie de jaleco bordado,calça s púrpura co m meias-bota s de couro nas quais luzia uma faixa dourada, um cinturãovermelho e uma pequena capa da mesma cor, cobrindo-se com um boné negro que contornavaapertadamente sua cabeça de cabelos castanhos. Flandry era um magnífico tipo de homem: alto emusculoso, denotava uma grande energia em seu rosto harmonioso, agraciado com um nariz reto egrandes olhos cinzas e um pequeno e bem cuidado bigode.

A nave espacial finalmente tocou a terra em uma extremidade do aeroporto. Em frente à queacabava de chegar de viagem, estava estacionada outra nave espacial de Betelgeuse, confirmando

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a informaçã o dada po r Zalat em relação à frequência do comércio interestelar. Não eraprecisamente uma relação acelerada, e sim contínua, talvez uma dúzia de naves estelares em umano-estandar, e que constituía, sem dúvida, uma razão de grande importância econômica local.

Ao deter-se no ponto de desembarque, Flandry sentiu o alívio pela gravidade do planeta, queera somente de três quartos da terrestre, e acomodou-se imediatamente àquelas novas condições.A cidade de Ulan Baligh estava situada a 11 graus de latitude Norte. Com uma inclinação axial derotação parecida com a da Terra e iluminada por uma estrela anã e pálida, e sem oceanos quemodificariam o clima, Altai conhecia estaçõe s quase iguais às do equador. O hemisfério norteacabara de passar pelo equinócio de outono e estavam na proximidade do inverno. Uma correnteconstante de vento procedente do polo, e que Flandry achava fria, açoitava agradavelmente seurosto.

Fez sua aparição pública com a dignidade que havia imaginado, achando-se frente à autoridadeque o recebia.

- Saudações - disse Flandry no idioma altaiano que havia aprendido. - Que a pa z reine emvosso espírito. Esta pessoa se chama Dominic Flandry e representa o Império da Terra.

O altaiano pisco u seus olhos rapidamente ma s se u rost o permanece u impassíve l como umamáscara. Era um tipo com o nariz adunco e uma barba espessa, sua tez clara denotava uma misturacaucasoide em sua origem racial, assim como a linguagem um tanto híbrida que falava . Era deconstituição forte e maciça e tinha uma reduzida estatura. Vestia um gorro de pele, uma jaqueta decouro de complicada manufatura, calças de feltro espesso e botas de uma bonita linha. Levava nacintura uma pistola automática de modelo antigo, à esquerda, e na direita um potente punhal.

- Nós não tínhamos recebido ainda tal classe de visitantes... - respondeu e, após uma pausa econcentrando-se em si mesmo, inclinou-se respeitosamente. - Sejam bem vindos todos aqueleshóspedes que vêm com palavras honestas - acrescentou com um acento ritual. - Est a pesso a sechama Pyotr, da escolta do Kha Khan.

E voltou-se para Zalat.

- Capitão, você e sua tripulaçã o pode m procede r como de costume . Eu o vere i mais tarde,depois das formalidades legais. Primeiramente devo acompanhar um hóspede tão distinto comoeste ao palácio do Kha Khan.

Bateu palmas rapidamente e apareceram dois serventes, semelhantes na vestimenta e aparênciaa ele. Olhavam com atenção para o terrestre, de quem não tiravam o olho de cima. Apesar dosaspecto impassível dos seus rostos, aquilo era sensacional em suas vidas. A bagagem de Flandryfoi carregada em um pequeno veículo elétrico de transporte de desenho antigo.

- Sem dúvida - disse Pyotr Gutchluk - um grande Orluk como você preferiria um varyak a umtulyak.

- Sem dúvida - responde u Flandry, constatando qu e se u idioma altaiano acabara de serenriquecido com estas duas novas palavras.

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Um varyak era uma espécie de motocicle ta local. Era um veículo compact o de duas rodasimpulsionado suavemente por um motor adequado e qu e dispunha de um lugar atrá s para asbagagens, sendo equipado na parte dianteira com uma metralhadora, embora Flandry supusesseque não se tratava de uma arma atual. A condução era feito por meio de uma barra cruzada parase r guiada com os joelhos. Dispunha també m de outros aparelhos, entre eles um rádioemissor/receptor que era controla- do em um painel no para-brisas. Quando o varya k ia muitodepressa ou quando parava, podia-se baixar uma pequena roda auxiliar no lado esquerdo, que lheservia de suporte.

Pyotr ofereceu a Flandry um capacete provido de um forte visor que tirou da bolsa do selim dovaryak. Sentou-se no comando da máquina e saiu disparado a 200 quilômetros por hora . Flandrysentia-se golpeado terrivelmente por um forte vento que, ao bater no para-brisas, golpeava seurosto e quase o fazia cair do veículo. Mas era preciso conservar o prestígio do Império Terrestree, fazendo um tremendo esforço, acomodou-se o melhor que pôde na garupa da máquina, atrás deGutchluk.

Quando irromperam na cidade, já havia adquirido a destreza suficiente e já se permitia voltar-se para olhar em todos os sentidos. Uma vist a interessante de tudo aquilo se oferecia à suacuriosidade. A cidade de Ulan Baligh estendia-se ao longo das terras planas de uma enorme baiasobre o lago. Mais além, as águas tinham uma co r intensamente azulada. Sobre su a cabeçaobservava um céu azul profundo e os anéis do planeta. De cor pálida durante o dia, apareciamcomo um halo gélido entre a luz daquele sol alaranjado.

Gutchluk tomou um caminho elevado, suspenso por enormes pilares em forma de dragões quesustentavam os cabos entre os dentes e qu e parecia se r somente para uso oficial. Ninguémtransitava por ele , salvo alguma patrulha ocasional de varyaks. Abaixo, Flandry podia observaros tetos curvados dos edifícios de tijolo vermelho, sobressaindo das velhas muralhas de pedrastingidas com um matiz avermelhado pelo sol. Todos os edifícios eram de grandes dimensões. Osdo tipo residencial deviam acolher várias famílias e os dedicados ao comércio eram pontilhadospo r pequenas lojas. As ruas eram amplas, limpas e be m conservadas e estava m cheia s de umpúblico nômade e do vento que soprava sem cessar. A maior parte do tráfego se fazia a pé.

Em frente a Flandry apareceu o palácio com suas altas muralhas, podendo-se observar nele osjardins e, no centro, a residência real. Era uma versão em escala gigante da s residência s dacidade, mas ornamentada alegremente e com esplendor. Enormes dragões de madeira formavamgrandes colunas, arrematadas por outros dragões de bronze no teto. Entretanto, tudo era diminuídoe m relação à grande Torre do Profeta, que se alçava majestosa a cerca de um quilômetro dedistância mais além.

Pela s vaga s descrições do s betelgeusianos, Flandry havia deduzido que a maio r part e dosaltaianos professava m uma espécie de religiã o que era co mo uma síntese do budismo e doislamismo, codificada há séculos pelo profeta Subotai. A religiã o contava somente com aquelegrande templo, que era suficiente para todos. Aquela altíssima torre alçava-se orgulhosa no tênuear do planeta, como se quisesse alcançar o céu. Construída basicamente no estilo de um pagode epintada de vermelho, tinha um grande terraço orientado para o Norte. E nela, em um grande

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painel, havia cinzeladas, em uma espécie de alfabe to sino-cirílico, as palavra s do profeta,consideradas sagradas para sempre. Mesmo o próprio Flandry, pouco reverente por costume, nãodeixou de sentir um sentimento de respeito e temor. Uma formidável vontade havia conseguidoerigir aquela colossal edificação em semelhantes terrenos da grande planície.

O caminho elevado começou a desce r gradualmente e o varyak conduzido por Gutchlukdeteve-se finalmente em uma porta de acesso ao palácio. Flandry, cuja estatura era mais alta quequalquer outro tipo local, teve vários inconvenientes ao atravessar a entrada, estando a ponto demachucar-se várias vezes devido à pouca largura do passadiço que percorriam. Em uma curvafinal a passagem era tão estreita para o tamanho de Flandry que ambos estiveram a ponto de cair.Finalmente, foi solta a terceira roda do varyak, que diminuiu de velocidade até parar. Segundosantes, Flandry saltou agilmente do selim do varya k descrevendo um arco no ar e caindorapidamente de pé.

- Pelo Povo de Gelo! - exclamou Gutchluk, com a face suada. - A Terra engendra homenstemerários, pela minha fé!

- Oh não - respondeu Flandry. - Uma pequena demonstração, mas não temerária. Nós sempresabemos como agir.

Mais uma vez agradeceu mentalmente à educação recebida em sua preparação atlética, dentre aqual achava-se a prática do judô . Umas vez abert a s as port a s do palácio, Flandry seguiualtivamente pelo caminho, ante o assustado olhar dos solda- dos do Khan.

Os jardins que ladeavam o acesso que haviam seguido eram plantados por todos os tipo s dearbustos anões, flores anãs, pontes arqueadas e rochas, e por todas as partes havia líquens dasmais variadas espécies. Nenhuma espécie de vegetal que precisasse de muita água e calor poderiaser cultivada em Altai. Flandry podia comprovar isto pela tremenda secura em seu nariz e na suagarganta. O ar era muito seco e frio, produzindo-lhe um constante mal estar. Uma vez dentro dopalácio, sentiu-se muit o melhor ao comprova r que a atmosfera assemelhava-se bastante àterrestre.

Um sujeito de barba branca, vestido com uma roupagem de pele estranha fez-lhe uma profundareverência.

- O próprio Kha Khan lhe oferece suas mais calorosas boas vindas, Orluk Flandry - disse. - Eleo receberá agora.

- Mas os presentes que trago para ele...

- Isto não importa agora, meu senhor.

O camareiro da cort e inclinou-se novamente, voltou-se e adiantou-se mostrando o caminho.Passaram através de diversos altos corredores abobadados com estranhos ornamentos e tapetes.No palácio reinava um silêncio profundo. Os serviçais deslizavam sem o menor ruído, os guardaspermaneciam imóveis em seus postos com seus uniformes arrematados por uma cabeça de dragão,com suas túnicas de couro e suas armas ostensivamente visíveis, enquanto que por todas as partes

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grandes trípode s lançava m fumo de incenso. Aquela grande residência palacia n a pareciatotalmente em estado de alerta.

“Imagino que vim causar transtorno em alguma coisa - pensou Flandry, com sua inata rapidezmental. - Suspeit o que aqui est á sendo tramada alguma conspiração e qu e se encontram tãodistantes da Terra que não a levam em conta. E eis que repentinamente se apresenta um oficialterrestre, depois de quinhentos anos. Qual será a reação dessa gente? Esperemos para ver.”

Ole g Yesukai, Kh a Kha n de todas as tribos, tinha uma estatura maior que a maioria dosaltaianos. Seu rosto alongado, era adornado por uma barba pontiaguda e avermelhada. Grandesanéis de ouro e luxuosas roupas bordadas davam-lhe o porte digno da realeza, mostrando um araltivo e impaciente, produto de um tedioso costume. A mão que Flandry, que estava de joelhos,elevo u para a frente em sinal de respeito, era musculosa e enérgica. A pistola que o régiopersonagem ostentava parecia ter sido usada com bastante frequência.

Aquela câmara de audiência privada estava adornada de vermelho, com ornamento s quepareceram um pouco grotescos a Flandry, mas era dotada de um moderno equipamentomagneto-fônico dos betelgeusianos e além disso, ali perto havia uma mesa na qual se amontoavamos documentos oficiais.

- Sente-se - disse-lhe Khan com um gesto.

O Khan, por sua vez, sentou-se em uma poltrona de pernas curtas e abriu uma caixa de cigarroscinzelada em osso. Um duro sorriso apareceu em seu rosto.

- E agora que já nos livramos da presença dos meus estúpidos cortesões, não precisaremos demuito tempo para tratar do assunto que o trouxe aqui - disse friamente.

Pegou um estranho cigarro avermelhado na caixa.

- Eu lhe ofereceria de muito boa vontade um destes cigarros, mas temo que o deixariam doente.A o longo de tantas gerações alimentando-nos do que é produzido no solo de Altai, nossometabolismo deve ter mudado de alguma forma, sem dúvida alguma.

- Vossa Majestade é muito engraçado - responde u Flandry, enquanto acendia um do s seuspróprio s cigarros, acomodando-se tanto quanto lh e permitia o reto encost o da poltro na queocupava.

Oleg Khan respondeu com o maior descaramento:

- Engraçado! Hum! Escute isto, terrestre. Aos cinquenta anos de idade, meu pai se transformouem um homem fora da lei na tundra. (Referia-se a anos de duração local, um terço maior que os daTerra. Altai se localizava a uma unidade astronômica de distância de Krasna, mas essa estrela erade massa menor que o Sol.) Quanto tinha trint a anos, ocupou est a cidade de Ula n Baligh, com50.000 guerreiros e enviou o velho Tuli Khan para as neves do Ártico. Mas ele nunca gostou de

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viver na cidade. Seus filhos se criaram no ordu, ou seja, nos acampamentos, onde ele semprehavia vivido. Guerreamos contra os Tebtengri, tal como ele conhecia a guerra. Mas não tivemosprofessores para aprender a ler, a escrever, nem a praticar nenhum ciência, Orluk Flandry. Nuncative tempo de aprender graça nenhuma.

O visitante terrestre aguardou passivamente. Isto pareceu desconcertar Oleg, que fumava comfuriosas tragadas. Após alguns segundos, ele inclinou-se para Sir Dominic Flandry e continuou:

- E então, porque o seu Governo se digna em contatar-nos?

- Tenho a impressão, Majestade - responde u Flandry co m voz tranquila, - que os colonosoriginais de Altai vieram para tão longe do Sol para escapar à nossa vigilância e conhecimento.

- Certo, é verdade. Nossos antepassados vieram para cá porque eram fracos, e não por causade sua força. Os planetas em que os homens pudessem controlar tudo eram raros. Distanciando-sedefinitivamente, aqui chegaram umas quantas nave s espaciais carregada s de habitantes da ÁsiaCentral, evitando assim ter que continuar lutando pelo Império Terrestre. Não pensavam, claro,em transformar-se em um rebanho. Tentara m primeiramente explorar a terra , mas isso foiimpossível, pois era muito fria e seca, entre outros inconvenientes. Não era possível tentar erigiruma indústria nem uma sociedade produtora de alimentos sintéticos, não existiam metais pesados,nem combustíveis fósseis, nem produtos fissionáveis. Este é um planeta de baixa densidade, comovocê verá. Pouco a pouco, ao longo de gerações inteiras, com uma vaga tradição que os guiassem,viram-se obrigados a adotar uma vida nômade . Isto era o mais conveniente em Altai e assimfora m crescendo. Claro que as lendas alteraram os fatos. A maior part e da minha gente aindaacredita na Terra como sendo uma espécie de paraíso perdido e que nossos antepassados eramguerreiros fantásticos.

Com olhos turvos, Oleg olhava fixamente para Flandry. Coçou pensativamente a barba.

- Além disso eu tenho lido muito e pensado muito também, para ter uma clara ideia do que seuImpério é realmente e do que pode e do que não pode fazer. Assim então, que objetivo tem emvista esta visita, neste preciso momento?

- Nós permanecemos ausentes por duas razões principais - respondeu Flandry com aprumo. -Em primeiro lugar, não estamo s muit o interessados na conquist a pela conquista em si. E emsegundo, nossos homens de negócios têm evitado completamente todo este setor. Como você podever, isto fica muito longe das estrelas dos nosso s sistema s centrais. Os betelgeusianos, estandopert o da su a base de partida , pode m competir em termo s desiguais. Alé m disso, o risco deencontrar-se com uma armada espacial do s merseianos, nosso s inimigos, é pouco atrativo. Emresumo, não houve ocasião civil nem militar para voltar a Altai. Entretanto, o Imperador não querperder o contato com nenhum membro da família humana. Como portador da sua vontade, tenho oprazer de trazer-lhe pessoalmente suas fraternais saudações. (Isto era subversivo, já que a palavraa empregar teria sido “paternal”, mas Oleg Khan não teria apreciado amavelme nte serpatrocinado). Além de tudo - continuou Flandry, - se Altai deseja reunir-se conosco, para umamútua proteção e para obtenção de outros benefícios, há muitas possibilidades que nós podemosconsiderar e discutir. Unir-se ao Império não significa necessariamente transformar-se em uma

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província do mesmo. Vossa Majestade, se você preferir, poderia considerar-se como um residenteImperial, intercambiando ajuda e todo tipo de informação...

Flandry deixou escapar a proposta com todas suas consequências.

O rei altaiano não respondeu, para surpresa de Flandry, com o tom colérico de um soberano aquem se questiona seu poder real, pelo contrário, e diante da surpresa do terrestre, respondeu.

- Se você se sente preocupado pela s dificuldade s internas do momento, deixe de estar. Onomadismo necessariamente significa tribalismo, o que facilmente conduz ao regime feudal e àguerra. Já lhe contei que me u pai tomou o pode r do clã Nuru Bator. Em troca, existem certosgurkhans que se rebelam contra nós. Qualquer um poderá confirmar-lhe que a aliança denominadaTebtengri Shamanate nos proporcionou muitos distúrbios e preocupações. Mas isto não é nada denovo na história de Altai. Em todo o planeta eu conto com o apoio mais firme que tenha tidonenhum outro Kha Khan desde os tempos do Profeta. Em pouco tempo botarei no bolso cada umdesses rebeldes.

- Com a ajuda de armamento importado? - perguntou Flandry à queima-roupa, elevandoimperceptivelmente as sobrancelhas.

A pergunta era arriscada, mas ele não podia deixa de fazê-la, evitando a todo custo, claro,deixar transparecer a evidência de tudo quanto havia observado. Ante a aparente impassibilidadedo Khan, Flandry acrescentou:

- O Império ficaria encantado em enviar uma missão técnica.

- Não duvido disto - foi a resposta seca de Oleg.

- Posso perguntar, respeitosamente, que planeta fornece a assistência que Vossa Majestade estárecebendo agora?

- Tal pergunta é impertinente, como você pode compreender - respondeu altivamente o Khan. -Não tomo como ofensa , mas declino de respondê-la. Confidencialmente, posso dizer-lhe que osantigos tratados mercantis entre Altai e o povo de Betelgeuse garantiam aos caras azuis desfrutardo monopólio de certos produtos de nossa exportação. Esta outra raça, a única que nos vendearmas, toma como pagamento os mesmos artigos. Não estou violando nenhum compromisso, jáque não me considero ligado aos compromisso s assumido s pela s dinastia de Nuru Bator.Entretanto, claro, seria inoportuno que o pesso a l de Betelgeuse descobrisse os fatos destascircunstâncias.

O momento era o mais propício para a mentira. Tão bom o considerou Flandry que desejou queOleg acreditasse que ele havia caído nela . Assumiu um falso sorriso afetado para dizer ao KhaKhan:

- Compreendo perfeitamente, Majestade. Pode estar certo da discrição terrestre.

- Assim o espero - disse Oleg humoristicamente. - Nosso tradicional castigo para os espiõesimplica em um método que os conserva vivo por vários dias antes de serem executados.

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O golpe de Flandry foi bem calculado, mas não havia encaixado totalmente.

- Posso lembrar a Vossa Majestade, o Grande Khan, com todo o respeito, que no caso em quealguns dos seus sujeitos mal-educados quisessem agir impulsivamente, a Armada Imperial teriaordens de reprimir qualquer ataque sofrido por um terrestre, em qualquer parte do Universo queacontecer.

- Muito certo, meu amigo.

O tom de Oleg era tão sardônico, que manifestava claramente que a famosa lei universa l paraele era letra morta, exceto como uma desculpa ocasional para bombardear qualquer mundo quesaísse da linha e que não estivesse em condições de voltar-se contra o agressor. Entre oscomerciantes, seus próprios agentes, no sistema Betelgeusiano estavam vendendo-lhe armas, e oKh a Khan havia-se transformado em um tipo sem piedade, be m informado sobre a políticagaláctica como qualquer aristocrata terrestre. Ou de Merseia.

A realidade era assustadora . Flandry havia forçado cegamente em busca do seu propósito. Eagora se dava conta, passo a passo, quão perigosa e tremenda era aquela evidência.

- Uma política sadia - continuou Oleg. - Mas falemos com franqueza, Orluk. Se você sofresse,digamos, qualquer dano ocasional em meus domínios e se seus superiores interpretassem mal ascircunstâncias, embora eu acredit e que não o farão, eu me veria forçado a solicitar a ajudaconveniente, que, claro, está sempre disposta.

“Merseia não está longe - pensou Flandry - e a Inteligência sabe que agora ele s dispõem deuma frota cósmica massiva em su a base mais próxima. Se eu quise r recuperar os direitosterrestres novamente, deverei começar a agir assumindo todos os riscos que nunca anteriormentecorri, em uma vida estupidamente desperdiçada.

E acrescentou em voz alta, fanfarronando:

- Betelgeuse tem tratado s com o Império, Majestade . Eles não interviriam em uma disputapuramente humana.

E como estivesse assustado com sua própria ousadia, continuou:

- Mas não haverá, claro, disputa alguma. Certamente ninguém deseja, nem eu vejo o motivo.Nossa conversa tomou uma direçã o pouco agradável e, bah! da s mais desagradáveis. Não háporque falarmos de ofensa alguma... Eu estou interessado em colônias humanas distanciada s doImpério. Um dos funcionários dos arquivo s mencionou se u formoso planeta. E enquanto eu medirigia para cá, foi sugerida a ideia de que eu fosse portador oficial das melhores saudações doImpério.

E assim continuou Flandry, durante um longo tempo. Oleg Yesukai sorria, irônico.

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CapítuloIII

O planeta Altai girava sobre seu eixo em uma rotação diurna de 35 horas. Flandry adaptou suavida ao tempo daquele mundo, como todos seus habitantes, deixando para o final da jornada operíodo de descanso. Empregou a tarde percorrendo Ula n Baligh, fazendo constantes perguntassem importância aos guias, sabendo que tudo isto seria conhecido pelo Khan. Tinha que fazerquatro ou cinco refeições no longo dia do planeta e assim foi convidado a comer nas casas devário s personage ns principais do Clã Yesukai. Tudo aquilo fo i sendo aproveitado para arealizaçã o da sua missão. També m fez uma refeição em uma das alegre s casa s destinadas aosviajantes nômades, reforçando suas opiniões sobre o que acontecia.

No crepúsculo, observou a Torre do Profeta emergindo como uma estátua colossal, iluminada,dirigindo-se para o céu como uma lança sangrenta por cima da cidade e das suas ruas multicores,em direção ao infinit o povoado de estrelas. O muro sagra- do templo aparecia branco, com aEscritura Sagrada esculpida ao longo daquela gigantesca tábu a de dois quilômetros, cheia depreceitos religiosos que conduziam a um caminho austero e amargo pela vida presente.

- Estou vendo - exclamou para si Flandry – Mas não o fazemos.

O chefe dos guias, um guerreiro corpulento, endurecido como couro por décadas de vento e defrio daquele mundo, parecia inquieto.

- Devemos voltar ao palácio, Orluk. O Kha Khan ordenou que fosse feito um banquete em suahomenagem

- Oh, excelente, magnífico! - respondeu Flandry.

E dirigindo para o guia , mostrou imediatamente um interesse exagerado pela Grande Torre doProfeta.

- Um momento. É incrível, este arranha-céu é uma maravilha . Vocês já pensara m que elepoderia ser a maior atração turística da Galáxia?

- Necessitamo s purificar-nos com abluções antes de entrar, Orluk. Um jovem acrescentoubruscamente:

- Em nenhum caso lhe será permitida a entrada. Você não é um iniciado. E não há lugar maissanto entre todas as estrelas do céu.

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- Oh! Bem... nesse caso... Sinto muito e espero não tê-los ofendido. Não se importaria se eupudesse tirar fotografias amanhã?

- Sim - respondeu o jovem. Não há nenhuma le i contra isto, mas não podemo s serresponsabilizado s pelas atitude s dos homens das tribo s que visse m você usa r su a câmera.Ninguém, exceto os Tebtengri, olharia para a Torre se não fosse com a maior reverência em seusolhos e em seu espírito.

- Tebtengri?

- Sim, rebeldes e pagãos, lá longe, no Norte.

O maior dos guias levou a mão aos lábios e à fronte, como em um exorcismo contra as forçasocultas do diabo.

- São gente má, culpadas de todos os males de Trengri Nor e traficantes da Cidade do Gelo.Muito piores, talvez, que os selvagens voiskoye. Para os Tebtengri, o mal substitui a justiça. Nãose deve falar deles senão para exterminá-los. E agora devemos nos apressar, Orluk

- Ah sim, claro.

Flandry saltou para o tulyak que estava ao seu serviço, uma carruagem aberta com motor, comum dragão na parte dianteira.

Enquanto era conduzido ao palácio, fo i avaliando se u conhecimento; co m um resultadodesfavorável para a situação. Algo estava sendo tramado, alguma coisa superior a uma guerracivil. Era evidente que Oleg Khan não tinha a menor intenção de que a Terra tivesse o mínimoconhecimento disto. Um agente da Terra que se metesse no assunto, e que obtivesse o menorconhecimento, teria poucas probabilidades de retornar vivo à sua pátria. Só permitiriam isto a umcompleto idiota. Se Flandry convenceria os altaianos disso, era outro assunto. A coisa não seriafácil, mas não havia outra solução que tentar, às custas do que fosse. Se, arriscando a vida dealgum modo, avisasse a força de choque da Armada do Império Terrestre, Oleg se precipitaria aavisa r seus amigo s que , sem dúvida alguma, não estava m precisamente interessado s em umnegócio particular de venda de armamento, como queriam fazê-lo crer. Altai não tinha produçãosuficiente em todo o planeta para pagar aquele armamento. Se essa gente se adiantasse à ArmadaImperial, para proteger seus investimentos militares, no ato seria provocada uma guerra. E comoera lógico, por sua proximidade eles tinham uma vantagem do tempo ao seu favor, dado o espaçoa percorrer. E a Armada não teria que agradecer-lh e precisamente em tomar parte em umacampanha perdida de antemão.

Um cigarro o ajudou a acalma r su a inquietação e ele lembro u qu e poderia muit o bem termanifestado ao Quartel General, antes de aceitar aquela missão, que estava afetado gravemente dequalquer enfermidade.

No apartamento que lhe haviam reservado no palácio como hóspede distinto, encontrou ao seuserviço um ajudante de câmara especial. Mas o homenzinho estava indeciso quanto à vestimentado homem terrestre e empregou meia hora para escolher uma apresentação adequada. Finalmente

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ele fez sua aparição no grande salão, onde uma guarda de honra o esperava . Foi escoltado parauma imensa câmara especial para festas e banquetes reais e ficou à direita do Khan.

Não havia mesa . Uma centena de pessoas sentava-se co m as pernas cruzadas em ambos oslados de uma grande pedra da largura da câmara real. Como entrada , serviram um caldo, quelembrava vagamente, embora co m sabo r mais picante, uma sopa de cozinha caseira, e que foiservida circularmente. Depois, e sempre a um sinal do Khan, fora m servidos outro s pratosdiferentes com carnes e comidas gordurosas que, embora diferentes dos da Terra, não eram ruins.E constantemente servia m uma espécie de ch á verde co m um cert o conteúdo alcoólico. Umapequena orquestra animava o banquete, composta de estranhos instrumentos de sopro, enquantoque ininterruptamente atuavam grupos de bailarinos, acrobatas e outras atrações diversas. No finaldo banquete entoaram uma velh a música tribal, enquanto um trovador cantava as lendastradicionais. Foram distribuídos presentes do Khan a todos os presentes e o festim terminou. Nãofoi pronunciada uma só palavra que sugerisse qualquer tipo de conversação.

Flandry, ligeiramente embriagado pelo festim, seguiu sua guarda de honra até seus aposentos.Seu ajudante lhe desejou boa noite e correu a cortina de pele s que ser- via m como portas nointerior do palácio.

Um esplêndido globo radiante iluminava o aposento, mas era desativado pela luz que procediado exterior e que penetrava através dos balcões. Flandry dirigiu-se para um dos balcões, abriu-oe olhou para fora, atraído por aquele estranho e fascinante espetáculo.

Aos seus pés jazia a cidade mergulhada nas sombras. Podia apreciar os redondos telhados dasedificações e as ruas tinham um aspecto de um escuro frio. Mai s distante , piscava m as luzesintermitentes dos acampamentos. Ozero Rurik estendia-se até se perde r de vista no horizontedistante, como uma gigantesca folha de ébano polido, alterado somente pelo tremor luminoso dasluas de Altai. À sua esquerda, erguia-se fabulosa a Torre do Profeta, como uma chama perpétuaque parecia ter as constelações celestes como coroa. Os dois satélites, que naquele momentoestavam no plenilúnio, iluminavam o ambiente com sua luz avermelhada , parecendo à primeiravist a um pouco maiore s que a Lu a da distante Terra. A lu z do s satélite s inundava a imensaplanície, e tanto Zeya como Talyma impregnavam a atmosfera com uma estranha fosforescência.Ma s os anéis de Altai dominavam todo o conjunto. Descrevendo um arco no cé u meridional,iluminava m por sua vez o firmamento, como um conjunto de arco-íris. Quase sempre , estrelasfugaze s passava m velozes, traçando jatos de luz viva , consequência do s pequenos meteoritosprocedentes daquela faixa dupla, que irrompiam na atmosfera de Altai.

Flandry teve que suspender sua admiraçã o daquele belo espetáculo, ao sentir a frieza do arnoturno e voltou à temperatura mais amena do seu quarto. Quando fechou o balcão, uma mulherentrou, vindo do dormitório. Ele de certo modo já esperava aquele tipo de hospitalidade. Era umamulh e r alta em comparaçã o com a maioria da s mulhere s altaianas. Uma bela cabeleiranegro-azulada caia-lhe pelos ombros e os belos olhos com brilhos de vitalidade com um leve tomesverdeado, raro no planeta, olhavam-nos se m piscar. Quanto ao resto das suas feições estavavelado por um manto finíssimo, bordado a ouro. Ela avançou até estar be m perto de Flandry eesperou submissa pelo primeiro sinal do oficial terrestre.

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Assim eles permaneceram, observando-se por quase um minuto. O silêncio era tão denso quese poderia perceber o murmúrio do vento lá fora. Os dragões e guerreiro s das tapeçaria s queadornavam o quarto pareciam se mover naquela quietude.

Finalmente, em voz baixa e atropelada, ela perguntou:

- Orluk, você é um espião da Mãe dos Homens?

- Espião? - respondeu Flandry atônito, pensando aterrado em agentes provocadores. - Não, nemespião nem nada que se pareça a semelhante coisa.

Ela pôs uma mã o sobre se u braço. Tinha dedo s frio s que lhe apertava m co m uma forçafrenética. Com a outra mão tirou o véu que a cobria, aparecendo aos olhos de Flandry um belorosto de pele clara e acetinada e com feições delicadas. Uma mulher belíssima. Ela começou afalar em um sussurro tão rápido que Flandry mal podia seguir o curso das suas confidências.

- Quem quer que você seja, tem que me ouvir. Se você é um guerreiro, quando voltar à suapátria conte o que vou lhe dizer, a quem quer que seja. Eu sou Bourtai Ivanskaya, do povo Tumurjiqu e pertencia ao Tebtengri Shamanate. Com certeza você já ouviu falar deles, inimigosirreconciliáveis de Oleg, expulsos para o Norte; mas sempre em guerra com ele. Meu pai era umNoyon, um chefe de divisão, bem conhecido de Juchi Ilyak. Caiu na batalha do Encontro dos Riosno ano passado, onde os Yesukai ocuparam completamente nosso ordu. Fui trazida com vida parao palácio, em parte especialmente como refém. Como se isto pudesse influenciar o meu povo! Eem parte também, como componente do harém de Yesukai. Desde então eu venho ganhando algumaconfiança no palácio. Isto já me serviu muito, já que o harém é um centro permanente de intrigas.Nada fica escondido por muito tempo ali, e é ali que geralmente começa a descoberta dos maioressegredos palacianos.

- Estou entendendo - murmuro u Flandry. - Já conheci outra s cultura s poligâmicas antes. Averdade é que os políticos acostumados a compartilhar sua cama com mulheres estranhas fazemum mal negócio.

Ela olhou para ele intrigada, sem compreender bem, e acrescentou:

- Eu ouvi falar que chegará um comboio terrestre e suponho que será para contra-atacar o queOleg está tramando contra a Mãe dos Homens. É preciso que isto seja conhecido. Eu achei umaforma de ser substituída por outra mulher, não me pergunte como, mas consegui. Durante este anoeu me vali disto para conseguir muitos segredos do harém, por meio dos seus guardiães e de gentede confiança desse monstro Oleg. Eu tenho o direito de fazer isto e não importa o método que euempregue. Nenhum método é desonroso para mim. Oleg Khan é meu inimigo mortal, pois tambémera do meu pai morto. Qualquer meio de vingança contra ele é legítimo. Mas o pior de tudo é quea Santa Terra está em perigo. Escute, homem da Terra...

Flandry aguardou, vigilante e com a tensão contida. Durante aqueles instantes a situação haviatomado um rumo tão fantástico, que o tinha paralisado pelo assombro. Parecia-lhe estar assistindoa um estereorama ruim no qual usavam uma garota no luga r de um tipo desagradável, quegaguejava dramaticamente sua autobiografia como um prólogo de uma revelação improvável.

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Agora ele compreendia repentinamente que aquilo era uma coisa real. Aquele melodrama estavaem marcha e ele devia assumir o papel do herói, deixando de lado a part e cômica, ou estariaperdido.

Flandry ergueu-se em frente a Bourtai, dizendo com pressa mal contida:

- Minha querida jovem senhora, eu não tenho a menor competência para essas questões. Alémdisto, tenho ouvido muitas e mais plausíveis história s de garota s coloniais que espera m voltarlivremente para a Terra . Lá , posso assegurar-lhe, alé m de não ser um luga r bom, muit o pelocontrário, não há lugar para uma jovem das colônias cósmicas se não dispuser de fundos próprios.Não quero ofender o orgulh o local, mas a ideia de que um simple s planeta possa oferecerqualquer ameaça para o Império seria a coisa mais divertida, além de não ter fundamento algum.Eu lhe rogo, me esqueça.

Bourtai deu um passo para trás e jogou para o lado o manto que a cobria. Ela estava usando umvestido translúcido que revelava uma figura de certo modo fora dos cânones do gosto terrestre poruma bela mulher, mas mesmo assim atrativa . Teria desfrutado daquela observaçã o se não fossepelo doloroso aturdimento do rosto da jovem.

- Mas meu senhor Orluk - balbuciou Bourtai. - Eu juro pela nossa Mãe comum!

“Pobre romântica - pensou Flandry, - quem você acha que sou, um deus visitante de Altai? Se étão estúpida, que nunca ouviu falar de microfones secretos no quarto de um hóspede, então OlegKhan não existe. Cale-se ou nos matarão.”

E em voz alta acrescentou, adotando um ar cínico:

- Bem, por Sírio, devo reconhecer que isto é magnífico. Providenciar-me uma bela espiã é umacoisa estupenda. Mas agora deixe de lado a dissimulação, querida. Vamos jogar uma partida depessoas adultas, que tal?

Flandry dirigiu-se para ela, mas Bourtai saltou agilmente desvencilhando-se de Flandry, parandomais distante, onde suplicou com os olhos cheios de lágrimas:

- Não, você está louco, estúpido. Você está cego, tagarela sem cérebro, tem que me escutar!Terá que me escutar, nem que eu tenha que bater com sua cabeça no chão. E diga a eles, diga aeles, quando voltar à Mãe Terra , diga-lhes que enviem um verdadeiro agente secreto e que elecomprove o que está acontecendo.

Flandry acuou-a e segurou-a fortemente pelos pulsos e tentou fazê-la se cala r co m um beijo,mas ela o golpeou duramente no nariz com uma cabeçada . Flandry recuou, aturdido pela dor,enquanto ouvia o desesperado protesto de Bourtai:

- São os merseianos! Sim, esse s sujeitos enorme s de pele verde , sã o monstros, sã o osmerseianos, est o u lh e dizendo. Eles vêm aqu i secretamente, de uma base de aterrisagemescondida. Eu mesma os vi caminhar por estes salões na escuridã o da noite. També m se i poroutras mulheres, a quem algum orkhon bêbado confessou. Eu mesma me arrastei como rato porest e muros e os ouvi pessoalmente. São os chamado s merseianos, o mais terríve l inimigo que

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jamais tiveram sua raça e a minha.

Flandry sentou em um divã, limpando o sangue do bigode.

- Isto não importa por agora - disse em voz baixa. - Como poderemos sair daqui? Quer dizer,antes que os guardiães venham e nos matem.

Bourtai permanece u silenciosa e Flandry noto u que havia se expressada na língua ânglica.Imaginou que não seriam mortos se sua captura se tornasse impossível. Flandry não podia saberse existia m microfones ou lentes escondidas nas paredes e se qualquer informaçã o recolhidapassaria como informação para ser estudada na manhã seguinte.

Levantou-se rapidamente e tomou Bourtai em um simples abraço. Ela reagiu co m umavelocidade felina , lançando lhe um terríve l murro na garganta. Flandry já havia abaixado acabeça, recebendo o impacto no crânio. Com as duas mãos agarrou a borda do véu de Bourtai ecruzou os antebraços na garganta da jovem e, antes que ela pudesse reagir de outro modo, Flandrya tinha presa perto de si. Ela tentou atacá-lo com os dedos nos globos oculares, mas ele voltourapidamente a cabeça , sendo atingido novamente no nariz. Ferido novamente, como depois dobeijo, sentiu uma dor aguda mas não a soltou. Ela começou a respirar ofegante e Flandry deu meiavolta a seu redor e imobilizou-a com uma chave de judô na garganta. Por um instante pareceu queBourtai desmaiava por falta de ar. Flandry aproximou a boca do ouvido da jovem e sussurroubaixinho:

- Cabecinha oca, não chegou a pensar que o Khan suspeita de mim? E que há escutas por todasas partes? Agora nossa única e desesperada chance consiste em sair daqui, de que modo for. Eroubar uma nave dos betelgeusianos com certeza, se pudermos. Primeiro eu devo aparentar que aprendi. Ist o pode afastar as suspeitas e faze r co m que não venham logo para deter-nos.Compreendeu? Quer jogar seu papel na comédia?

Ela se ergueu rígida e Flandry percebe u se u quase imperceptíve l movimento de cabeça. Ocorpo da jovem, apoiado contra o seu, parecia controlar todo s seus nervos e músculos. Nuncahavia visto uma mulher que fosse tão competente em um caso de emergência física. Sem a menordúvida, Bourtai Ivanskaya havia recebido um grande treinamento militar.

Bourtai tinha que precisar dele.

Em voz alta, Flandry começou a fanfarronar:

- Bem, eu toda minha vida eu jamais ouvi nada tão ridículo. Não existem esses tais merseianosnesta vizinhança estelar. Eu examinei tudo meticulosamente antes de chegar a esta conclusão e nãovou acreditar em semelhante armadilha. Que lhe parece? Na verdade você não fez nada mais quese condenar com estas palavras venenosas e acho que o melhor é que seja encerrada , senhora.Vamos, e nada de truques!

Ele a puxou de rastros, do quarto para o corredor, que era sustentado por uma longa série decolunas. Uma das extremidades se abria como uma janela, sob a qual havia mais de vinte metrosde profundidade sobre a fria e escura noit e do exterior. A outra extremidade dava acesso à

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escuridão do exterio r do palácio, iluminada, aquela part e do longo corredor, po r lâmpada s decolunas, de trecho em trecho. Flandry arrastou Bourtai naquela direção, que descia abruptamentepor uma longa escada. Daí a pouco tempo tropeçou com um par de sentinelas estirados em seuspostos de guarda, com seus capacetes, suas jaquetas de couro, suas pistolas e facas no cinto.

Um deles dirigiu-se bruscamente para Flandry:

- Alto! O que vocês estão fazendo?

- É esta garota - respondeu Flandry, tratando depreciativamente aquele fardo vivo.

- Ela começou a me contar todo tipo de estupidez. Quem é o chefe? A insensata pensava que euiria ajudá-la a destronar o Kha Khan. Imagine!

Enquanto isso, a jovem gesticulava, como uma vítima conduzida ao matadouro.

- O que? - respondeu o soldado, aproximando-se deles.

- Os Tebtengri me vingarão - gritou furiosamente Bourtai. - O Povo do Gelo reduzirá estepalácio a cinzas e pisoteará seus ossos sob seus pés, raça de malditos!

Flandry compreende u qu e se aproximava o momento de agir rapidamente , mas os guardascontinuavam olhando atônitos o que estava acontecendo. O mais próximo puxou sua pistola.

- Eu a levarei, Orluk - disse. - Boris, corre e avisa ao comandante.

Quando o guardião se aproximou, Flandry deixou a garota em liberdade. Protegido por umacouraça de aço e de couro rígido no torso, o sentinela era pouco vulnerável.

Flandry lanço u um punho, como um projétil, no nariz do guardiã o que cambaleou como umbêbado, colhido pela surpresa; recuou até a balaustrada e rolou sem vida pela escadaria. O outro,que havia dado meia volta para avisar ao chefe da guarda, voltou-se e já se preparava para sacara pistola, mas Bourtai pôs a perna no caminho e o empurrou e ele caiu no solo como um fardo.Flandry lançou-se contra ele em uma luta mortal e ambos começaram a rolar pelo chão como duasferas prestes a se despedaçarem.

Bourtai havia recolhido o punhal do primeiro sentinela e esperava a primeira oportunidadeentre aquele s dois homens presos em um abraço mortal. Flandry soltou-se po r um instante,deixando seu inimigo a descoberto, e Bourtai prendeu a cabeça do indivíduo pelo queixo e, rápidacomo um raio, apunhalou-o mortalmente.

Flandry se arrumou.

- Pegue suas armas, rápido!

Eles desarmaram rapidamente os dois homens.

- No momento nós conseguimos mais do que eu imaginava. Conhece a saída? Guie-me, vamos.

Bourtai lançou-se escadas abaixo, flutuando após ela o véu finíssimo, bordado de ouro e a capa

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de seda transparente. E Flandry a seguia como um louco, passando por uma luz e outra. Os sapatossoavam sobre o mármore no silêncio noturno. Dando a volta a uma espiral da grande escada.Flandry percebeu a presença de um esquadrão de soldados que subiam rapidamente.

O chefe da patrulha lhe perguntou:

- Está com o prisioneiro em segurança, Orluk?

Não havia dúvida s de que existia um operador humano no sistema secreto deintercomunicações eletrônicas do palácio. Claro, mesmo no caso de que tivesse entregue Bourtai,Flandry não teria podido salvar sua pele . Por mais estúpido que fosse o operador, tinha que terouvido demais. Mas eles não imaginavam seus propósitos atuais.

Os primeiros da patrulha receberam o disparo da jovem antes que seu chefe tivesse voltado afalar. Ouviram-se gritos de dor. Bourtai fez fogo contra o pelotão e ouviu-se o impacto dos raiosiônicos explodindo no alvo. Flandry jogou-se no chão e uma descarga de fogo chiante caiu sobreo lugar que ele ocupara antes. Flandry disparo u por sua vez em um amplo círculo ; ma s com aenergia muito diluída para matar a curta distância, embora tenha alcançado quatro homens com ofogo. Quando produziu-se uma gritaria entre os inimigos, saltou agilmente e lançou-se pela brechaaberta momentaneamente. Dali, em um terraço, uma ampla rampa de mármore brunido descia emespiral até o piso inferior, para o andar térre o do palácio. Flandry lançou-se como um raio,deslizando como em um tobogã. No fundo existia uma espécie de passadiço de curt a distância,onde por umas portas de cristal se tinha acesso aos jardins. Os satélites de Altai e os anéis eramtão brilhantes no céu noturno, que não precisava de luz artificial para ver a meia dúzia de varyaksque se dirigiam em plena marcha para aquela entrada. A guarda existente nos jardins já foraalertada pelo ruí- do da luta.

Flandry lançou-se para um lado da porta de cristal. A dois metros de altura a porta era ladeadapor janelas arqueadas. Fez um sinal para Bourtai que estava encolhida contra uma delas, fazendoum estribo co m suas mãos. A garota saltou sobre o batente, quebrou o vidro da janela com aempunhadura da pistola e disparou novamente contra a tropa . Flandry refugiou-se atrá s de umacoluna e o resto dos soldados se precipitou pela rampa de mármore em sua perseguição. Flandrydisparou novamente. Naquela posição descoberta, os soldados recuavam, saindo da visão do seuatacante.

Um varyak irrompeu pela port a do passadiço e o soldado que ia a bordo tentou esconder acabeça atrás dos vidros, com os braços. Flandry disparou antes que ele pudesse ficar a coberto. Ovarya k perdeu a direção e se espatifo u contra o umbral, ficando ali virado, atravessado naentrada. O condutor levantou-se cambaleando e tentou disparar no terrestre, mas Bourtai o atingiulá de cima.

Bourtai saltou.

- Eu derrubei mais dois - disse. - Outros dois escaparam e devem está por aí pedindo ajuda.

- Teremos sorte, Bourtai - respondeu energicamente Flandry. - Onde ficam as próximas portas?

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- Devem estar fechadas. Não poderemos atravessá-las sem antes destruir as fechaduras.

- Encontrare i um meio. Pronto. Ajude-me; nós usaremos estes dois varyaks. Pode dirigir ooutro? Siga-me depressa. Utilizaremos o fogo das armas dianteiras e veremos o que acontece.

Flandry precipitou-se sobre as máquina s se m sentir o frio intenso do jardim. Tiro u dasmáquinas os cadáveres dos seus ocupantes, colocou os varyaks em posição de partida e ocupouum deles. Bourtai o seguia no outro a uma curt a distância. Dirigiram-se acelerando para apassage m pelo trilh o de acesso. Até então, o emprego das armas havia resultado na patéticasituação em que se encontravam, mas aquilo tinha um limite . Duas pessoas não podia m fazerfrente a centenas de inimigos por muito tempo. Deviam se apressar para escaparem.

Uma labareda atingiu Flandry. Instantaneamente, ele se encolheu sobre o selim do varyak paraproteger a cabeça. Sentiu-se ferido na perna com uma dor desesperada. Lançou a máquina a umamaior velocidade e deu uma rápida olhada para trás. De ambos os lados da passagem, a duplasobrevivente dos homens da patrulha lançavam-se em sua perseguição.

Adiante apareceu uma pequena ponte muito arqueada. Sua máquina esquivou-se rapidamente eno momento de passar pela corcova da ponte ele abandonou a máquina de um salto, no estilo deum bom judoca, com os músculos relaxados e protegendo o rosto com um braço. Apesar de tudo,levou uma fort e pancada no nariz, já ferido anteriormente . Por um instante fico u cego pelaslágrimas que não pôde controlar, deixando escapar umas quantas maldições que servira m paradesabafar. Ocultou-se rapidamente na escuridão, ao longo da linha dos varyaks.

O varyak ficou tombado de costas quando ele o abandonou. Na confusa luz do ambiente, os doisguardiães passaram a uma grande velocidade , se m suspeitare m da emboscada, e Flandry osabateu, um após o outro, no momento em que cruzaram por ele.

Um ruído e um movimento inusitado se elevava em toda a zona dos jardins e das muralhas dopalácio. As janelas estava m iluminadas e acenderam-se até os olho s do s dragões das altascolunas, que brilhavam sinistramente na noite. Flandry precipitou- se para limpar o caminho dostrês varyaks imóveis, que ocultou perto de uma cerca.

- Traga os restantes! - gritou para Bourtai

A jovem se aproximava, trazendo a reboque outras duas máquinas.

- Vamos logo! Cada um de nós usará um.

Ocultos so b uma roch a saliente, pareciam um par de sombras. A luz das luas de Alta i seespargia pela áre a dos jardin s como uma névo a de luz acobreada. A grande muralha externacortava brutalmente aquele nimbo de luz, que se transformava em uma completa escuridão maisalém.

- Usaremos os varyaks restantes para fazer saltar as portas - disse Flandry. - Pode ser?

- Tem que ser - respondeu Bourtai.

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Com dedos ágeis, a jovem abriu os painéis de controle do s varyaks e tiro u do s mesmosdiversos utensílios e roupas.

- Aqui sempre há roupas guardadas e capacetes de substituição. Quando é preciso conduzir auma longa distância pela planície, sem trocar de roupas, o perigo de morrer por congelamento écerto. Ponhamos o capacete por enquanto. Mais tarde nos vestiremos de forma apropriada.

- Não precisaremos de roupas em caso algum - respondeu Flandry. - Tudo que temos que fazeré chegar ao aeroporto espacial.

- Acha que o aeroporto não estará cheio de gente de Oleg Yesukai? - observou a jovem.

- É mesmo. Por todos os diabos!

Dispusera m rapidamente os quatro varyaks em fila, uma atrá s do outro, lançados a todavelocidade para a porta de entrada do recinto real. Eles ocuparam os seus e seguiram as máquinassem piloto pelo trilho. Três guerreiros desceram correndo através de um caminho, aparecendo,por um momento, iluminados pela luz dos satélites, para desaparecerem novamente na escuridão.Não pareceram se dar conta da presença dos evadidos. As tropas da guarnição real deviam estarem uma formidável confusão, pensou Flandry. Deviam escapar a toda velocidade antes que aquelahisteria passasse e se organizasse uma perseguição sistemática.

As grandes portas de acesso apareceram à sua vista. Estavam protegidas com grossas barras,destacando-se com um branco mortiço, entre a luz difusa da noite . Flandry podia observa r osvaryaks lançando-se como raios contra as portas, com meteoros resplandecentes. As sentinelas doalto da muralha tinham uma excelente pontaria e abriram um fogo rápido contra as máquinas, masnelas não existiam condutores a quem abater.

O primeiro varyak explodiu contra a port a como uma bomba, saltando em pedaços. Flandryacreditou ter ouvido passar perto da sua cabeça pedaços de metal ao vermelho vivo, zumbindocomo projéteis. O segundo varyak produziu outro impacto terrível e as barras cederam um pouco.O terceiro, ao explodir, abriu uma pequena brecha e o quarto as abriu de par em par.

- Agora!

A 200 quilômetros por hora , Bourtai e Flandry escapara m como um raio através da s portasdestroçadas. Aproveitaram os pouco s segundo s de surpresa da guarda, antes que continuassemdisparando. A máquina de Bourtai esteve a ponto de esmagar-se contra os restos do s varyaksamontoados, mas com uma incrível rapidez de reflexo ela se livrou do obstáculo e desapareceupor uma avenida, uma ve z cruzada a grande praça extern a do palácio. Flandry por su a vezlivrou-se milagrosamente de todos aqueles inconvenientes e esteve a ponto de cair fulminado poruma descarga que explodiu a alguns passos adiante do seu varyak. Seguiu na direção de Bourtai atoda máquina.

Dirigiu uma olhada para o Norte, passada a Torre do Profeta, para o aeroporto espacial. Pôdeobserva r sobre ele, nas alturas, uma série de aparelhos que evoluía m como uma enxame devespas. Era inútil toda esperança de acessa r qualquer nave espacial do s betelgeusianos.

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Igualmente impossível, era pensar em localizar Kalak naquelas circunstâncias. Onde ir então, sobaquele céu impiedoso coalhado de estrelas outonais?

Bourtai seguia meio quilômetro à frente de Flandry, a toda velocidade , descendo por uma ruaestreita e iluminada. Deixou-a servir de guia , concentrando-se sombriamente em evitar qualqueracidente. Parecia um farol distante, a que tinha que seguir cegamente, até que se acharam longe dacidade e livres, na imensa planície.

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CapítuloIV

O vento silvava entre o alto capim e o sussurro se estendia como as ondas de um mar através dequilômetros sem conta, como se fosse morrer no fim do mundo. Aquele ma r de capim sem fimmostrava os mais variados matizes. Aqui e ali apareciam, de vez em quando, estranhos arbustoscom seus frutos gelados como espigas vermelhas.

Acima das suas cabeças o céu parecia co m uma fria abóboda, muda e impiedosa. A estrelaKrasn a luzia muit o baixa no Oest e , quase rente ao horizonte, co m su a co r laranj a pálido,semeando a planície de luz avermelhada e sombras fugidias Os anéis do planeta pareciam umaponte gelada para o sul de Altai. Para o Norte, o céu mostrava um tom esverdeado, que Bourtaiconhecia muito bem como o anúncio de próximas tempestades de neve.

Flandry estava agachado no meio de uma moita de capim tão alta quanto ele. Levantou-se porum momento e pôde distinguir uma nave aérea, sem dúvida mandada em sua captura . Deslocava-se pelo ar em suaves espirais e Flandry estava certo de que os técnicos que a dirigiam traçavamcom tal aparelho, e com outros mais, uma sistemática rede por todo o planeta. Lançou mão dosbinóculos do equipamento do varyak e ela lhe apareceu ainda muito distante, apenas como umrelâmpago metálico. Ma s estava convencido de que em su a busca empregariam telescópios,detectore s de metais, amplificadore s de raio s infravermelhos e todo s os meio s conhecido s datecnologia altaiana.

Flandry não tinha muitas ilusões quanto a escapar por muito tempo da perseguição ordenadacontra ele pelo Khan. Dois dias planetários no máximo? Sua memória estava debilitada. Estavasomente possuído de um desejo febril: escapar para o Norte, sempre para o Norte, correndo porjornadas esgotantes, com a pele destroçada pelo vento frio, dormindo somente escassos minutossobre a máquina, alimentando-se enquanto viajavam com a comida do equipamento do varyak eparando o tempo justo para encher suas garrafas de água, que Bourtai sabia encontrar por sinaisinvisíveis para ele. Sentia-se invadido por uma dor atroz, tanto física como moral.

A planície era incrivelmente vasta . Entre as dua s calota s polare s do planeta, a fabulosaplanície cobria quase duas vezes a área da terra firme da Mãe Terra, já que em Altai não existiammares nem oceanos. O capim nem sempre era tão alt o como o daquela vizinhança, mas osuficiente para escondê-lo s da vigilância aére a . Os fugitivos havia m rodado po r caminhospovoado s de diverso s rebanhos de animais, os quais apagavam os traço s deixados à suapassagem. Seguiam sempre a rota traçada por Bourtai, que tinha o instinto seguro do caçador para

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saber como confundir seus perseguidores.

Agora parecia que a caça estava próxima do fim.

Flandry olhou para a jovem. Ela permanecia sentada no chão, com as pernas cruzadas e com arimpassível. Via-se seu tremendo esgotamento nas olheiras que marcavam seus belos olhos. Comas roupas destroçadas, o cabelo preso dentro do capacete, podia ser confundida com um rapaz.Mas o óleo espalhado em seu rosto, para proteger-se contra a dureza do clima, fazia com que seubom aspecto em geral não houvesse sofrido grande alteração.

- Acha que esse indivíduo nos descobriu? - perguntou Flandry.

- Ainda não - respondeu Bourtai. - Ainda estamos no final do alcance dos seus detectores. Nãolh e será fácil localiza r qualquer objeto visíve l so b seu aparelho, do s milhões existentes naplanície.

- Então... passaremos desapercebidos e eles irão embora?

- Temo que não - respondeu Bourtai, perturbada. - As tropas do Khan não são idiotas. Tenhouma ideia sobre o sistema que emprega m em sua s buscas. O pilot o desse aparelho, e seuscamaradas, continuarão traçando círculos até que a noite caia. A rede que estão tecendo até agora,com certeza é para nos pescar nela. Sabem muito bem que se continuarmo s dirigindo durante anoite devemos nos servir dos aquecedores dos nossos varyaks ou morreremos gelados. Mas essesaquecedores são o melhor ponto de referência para seus detectores de raios infravermelhos.

Flandry coçou a barba, desesperado.

- Que acha que devemos fazer?

- Devemo s ficar aqui - respondeu a jovem, sombriamente. - Temo s saco s de dormir noequipamento dos varyaks. São suficientes para ficarmos vivos. A radiação dos nossos corpos nãoé suficiente para nos delatar, a menos que a temperatura baixe muito, e neste caso morreremos defrio.

- A que distância acha que nos encontramos dos nossos amigos?

Bourtai fez um gesto de cansaço e um triste olhar se adivinhava em seus formosos olhos.

- Não posso dizer com segurança. Eles vão se movimentando sob o Khrebet ao longo da faixado Kara Gobi. Nesta época do ano, dirigem normalmente para o Sul e acho que não estaremosmuito longe de algum ordu dos Tebtengri. Mas as distâncias nunca são pequenas na planície.

Após um momento de silêncio, acrescentou:

- O pessoal do Khan conhece, assim como nós, que a energia que move nossos varyaks acha-sequase esgotada. Se sobrevivermos a esta noite, amanhã deveremos andar a pé. Em tal situação,com certeza morreremos por alguma tormenta antes de encontrarmos ajuda.

Flandry deu uma olhada nos veículos, sujos de pó e amassados por aquela terrível viagem. Lhe

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pareceram, entretanto, maravilhosamente construídos e resistentes, fabricado s co m inteligentecuidado e com bons materiais; especialmente surpreendente em uma economia não mercantil. Osaparelhos de rádio poderiam, se m dúvida alguma , chamar a vária s centenas de quilômetro dedistância. Mas ao primeiro sinal, atrairiam sobre eles os vigilantes aéreos, como falcões famintos.

Deitou-se sobre as costas, deixando que seus músculos esgotado s relaxassem. O solo estavagelado. Um momento depois, Bourtai fez o mesmo, aproximando-se de Flandry até juntar seucorpo com um gesto de completa confiança.

- Se não pudermos escapar, bem, tal é o destino marcado na eterna pauta do es- paço-tempo -disse a jovem, mais calma do que ele havia imaginado; - mas se tivermos sorte, qual é seu plano,Orluk?

- Informar a Terra, suponho. Não me pergunte como.

- Seus amigos não virão vingá-lo se você não voltar?

- Não. O Khan só precisa dizer aos betelgeusianos que eu, infelizmente, morri por causa dealgum acidente, de alguma rebelião, ou de qualquer outra causa, e que fui incinerado com todas ashonras. Não lhe será difícil fingir tal evidência. Qualquer cadáve r mutilado serviria para talpropósito, sendo do meu tamanho aproximado . Um huma n o se parece muito com outro,especialmente aos olhos dos não humanos. Os betelgeusianos dariam est a informação à minhaorganização. Claro, algum dos meus colegas suspeitariam de algum jogo sujo, mas eles têm coisasdemais em que se ocuparem e a suspeita não chegaria ao extremo de se disporem a agir. O maisque fariam seria enviarem outro agente como eu em meu lugar. E em semelhantes circunstâncias, oKhan, enquanto esperasse a nova visit a , camuflaria be m sua s instalações militares e nadaaconteceria. Em todo caso, que pode fazer um único homem contra todo um planeta?

- Você já vez bastante.

- Mas eu já lhe disse que peguei Oleg de surpresa.

- Você poderia fazer muito mais - continuou Bourtai, calmamente. - Por exemplo, por que nãopoderia enviar uma cart a secre ta po r meio do s betelgeusianos? Nós, os Tebtengri, podemosconseguir algum contato na cidade de Ula n Baligh qu e se ponha em contato com a aeronaveespacial.

- Creio que isto deve estar muito bem previsto pelo Khan, para assegurar-se de que não exista omenor contato co m pessoas do mundo exterior. Deverá esta r seguro e examina r com todo ocuidado os gêneros que são exportados, antes de abandonarem Altai.

- Escreva uma carta no idioma da Terra. Ninguém conseguirá entender seu conteúdo.

- Com certeza ele conseguiria que a traduzissem.

- Oh, não! - acrescentou Bourtai, com ar animado. - Não existe humano algum em Altai queconheça a língua ânglica, exceto você mesmo. Talvez haja algum betelgeusiano, mas não gente doplaneta. A linguagem de Altai evoluiu muitíssimo depois do último contato da principal corrente

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humana, e depois não existiu razão alguma para que alguém aprendesse a linguagem original daMã e Terra. O próprio Ole g lê somente o altaiano e o principal idioma de Betelgeuse . Eu seiperfeitamente, porque ele mesmo mencionou isto diante de mim uma noite, recentemente.

Bourtai falava do assunto em tom natural. Flandry noto u que naquela cultura não significavadesgraça alguma haver sido uma escrava em um harém.

- Ainda pior - respondeu Flandry. - Os agentes de Oleg não permitiriam circular nenhuma cartaque não pudesse ser traduzida e tampouco acreditariam no betelgeusiano que o fizesse. Não, apartir de agora, e até qu e saiba m que eu morri, não confio em qu e permitam a mínimacomunicação com comerciante espacial algum, nem com nave cósmica alguma.

Bourtai pareceu fraquejar o ânimo e repentinamente rompeu em prantos, desconsolada.

- Mas você não pode ficar sem ajuda! Você é da Mãe Terra! Flandrynão quis desiludi-la.

- Veremos. Por enquanto vamos comer alguma coisa.

- Isto tem um gosto parecido com o alimento terrestre. Tem uma notável semelhança, realmente.

- Mas é que tem origem terrestre, Orluk - comentou Bourtai. - Os primeiros colonos terrestresacharam a planície, virtualmente, como um enorme deserto. Nele crescia m forma s vegetais queeram venenosas para os humanos. Todas as demais formas de vida estavam circunscritas às zonaspróxima s do s polos. Nossos antepassados utilizara m processo s científico s de genética para assementes e animais que trouxeram com eles. Foram criadas formas adaptadas às condições locais,que se expandiram rapidamente. A ecologia terrestre logo se difundiu pelo cinturão dos trópicos.

Flandry comprovou com satisfação que a jovem não era precisamente um membro da uma raçabárbara . Realmente, ali havia uma cultura digna de se r estudada... se sobrevivesse, o que, nomomento era bastante duvidoso.

Krasna era se m dúvida uma velh a estrela, derivada do núcleo galáctico para um braço daespiral da Galáxia. Depois do que, os elementos pesados se formam no interior das estrelas e seespalham através do espaço pela explosã o de “novas” e são acumulados na próxima geraçãoestelar, as estrelas mais velhas carecem, geralmente, de planetas. Krasna devia contar-se entre asmais antiga s que os tinham. Entretanto, a velha estrela e seus planetas era m muito pobres emsubstâncias de meio e alto peso atômico, o que incluía também metais de uso industrial.

Sendo menor que o Sol, Krasna havia envelhecido muito lentamente. Nos primeiros bilhões deanos, aproximadamente, se u calor intern o deve ter proporcionado a Altai uma temperaturasuperficial mais ou menos como a da Terra. A vida protoplasmática havia evoluído na superfíciedos mares. Provavelmente as primitivas formas terrestres haviam surgido assim. A radioatividadeentraria em cena e mais tarde o calo r residual se perdeu no espaço . Finalmente, somente oavermelhado sol fornecia calor e Altai foi esfriando. O processo seria lento, como se para evitarque as formas vivas não se extinguissem, mas se adaptassem às novas condições. Eventualmentese produziu o equilíbrio necessário. Altai permanecia gelado de polo a polo. Um mundo velho,

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tão velho, que uma das suas luas, caindo no limite de Roche, saltou em pedaços e formou os anéisdo planeta. Tão velho, que já havia superado o estado da s reações atômica s do hidrogênio,passando a outro estado de reações nucleares. Então veio uma época de maior atividade . Krasnacresceu em calor e em luminosidade. Nos próximos vários bilhões de anos, continuou crescendoem tais gradientes de temperatura e luminosidade, que ao final de tal período os mares de Altai,liquefeitos mais uma vez, chegariam até a temperatura de ebulição, em razão do caminho seguidopo r Krasn a para se transformar em uma “nova”, permanecendo em um estágio posterior nacondição de uma anã branca, a partir da qual a estrela voltaria pouco a pouco a cair na escuridãoprogressiva que marca o final de uma estrela.

Naquela época era Krasna e Altai. O esfriamento progressivo da estrela mal havia começado.Somente nos trópicos existia uma temperatura suficiente para que os homens - na realidadecrianças de um sistema solar mais brilhante - pudessem viver em duras condições. A maior partedas águas do planeta fluíram para o cinturão equatorial, para cair em forma de neve nos polos,zonas ainda frígidas, abandonando as secas planícies onde umas poucas plantas lutava m po r sereadaptar; para mais tarde serem destruídas pela invasão do capim.

A mente de Flandry, assim divagando, recordou o futuro da Terra para abandonar o curso dosseu s pensamentos, despertando para a realidade. Ao se u redor a brisa gelada o envolviatotalmente. Pôde se da r conta, em um momento, co mo se sentia gelado por aquele terrívelambiente. E a noite ainda não havia chegado!

Voltou a sentar-se, resmungando sua desesperada situação. Bourtai permanecia sentada e calmae ele teve invej a do se u fatalismo. Ma s Flandry não aceitava a ideia de congelar enquantopermanecia encerrado em um saco de dormir, ou pela marcha a pé por centenas de quilômetros, sesobrevivesse às horas da noite através daquela interminável brancura , paralisado pelo frio até amort e po r congelamento. Frio espantoso, qu e ia aumentando, dia a dia , po r causa da estaçãooutonal.

Torturo u sua mente, até que nela tomou corpo uma ideia: o fogo, sim, o fogo. Ali estava asalvação!

Pôs-se de pé e voltou a abaixar-se rapidamente, ao lembrar-se dos seus perseguidores aéreos.Bourtai continuava , co m os olh o s dilatado s pelo assombro, o longo monólogo que haviasustentado em língua ânglica. Quando terminou, ela fez um sinal de reverência religiosa.

- Eu também roguei ao Espírito da Mãe para que Ela nos guie - disse a jovem. Flandrydeu um sorriso estranho.

- Eu não estava precisamente rezando, minha querida. Não, acho que tenho um plano para pôrem prática. É uma ideia doida, mas... Agora escute.

- Não! - exclamo u Bourtai, quando ele termino u de contar. A veemência da exclamaçãosurpreendeu Flandry.

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- Não? mesmo que seja a salvação das nossas vidas?

- E seria? Eu não vejo como.

- Bem, não posso garantir nada, claro. Embora na realidade , sim, posso garantir com tal planotodo um mundo para sobreviver e um par de patins para continuarmos deslizando por ele . Porquese fracassar, não tere i mais projetos para pôr em prática, jamais. Não temos opção, Bourtai.Quando a noite cair, utilizarei meu varyak para tocar fogo em uma área de vários quilômetros. Ocapim está tão seco, que toda a pradaria arderá como uma cest a de vime . Teremo s assim umaenorme fonte de energia para nos cobrir e para a energia dos varyaks.

- Mas você não compreende, Orluk? É precisamente porque o capim arde com tanta facilidadeque um fogo na estepe é a coisa mais temida em Altai. Qualquer trabalho, inclusive qualquer luta,cessa quando se percebe qualquer fogo . Qualquer pessoa é obrigada , por lei, a deixar tudo ecombatê-lo. E você quer provocar um incêndio deliberadamente?

- Sim. E justamente porque notei que esse costume, esta lei, é como você descreveu. Não estávendo? Os perseguidore s do Khan abandonarão toda busca para se dedicarem a apagar oincêndio. Suponho que o método usual será o de bombardear o incêndio do ar co m bomba s deespuma.

Bourtai confirmou com a cabeça.

- Muito bem. Se alguém do seu povo se acha nas proximidades, o que significaria um raio dealguma s centenas de quilômetros, tendo, como devem ter, aparelhos em vo o permanente portemerem um raid do povo do Khan, ao se sentirem obrigado s pela lei comum a contribuir naextinçã o do incêndio, é cert o que enviariam alguns dos tais aparelhos, não é assim? Certo.Quando se aproximarem, romperemos o silêncio de rádio e os chamaremos para que venham nosrecolher. Pensei que dando seu nome eles não teriam dúvida alguma. Acho que eles poderiam nosrecolher e escapar, não está de acordo? Se eles se apressarem. E quando eles aparecerem, nósescapuliremos ao amparo do fogo que usaremo s para nos cobrir. Uma ve z resgatados, nosdistanciaremos para o Norte em segurança temporária, pelo menos. De acordo? Já se i que estaideia depende de diversas circunstâncias favoráveis, mas o êxito não é de todo improvável, não éassim?

- Não, não, porque a Lei de Altai...

- Ao diabo com a lei! Só conseguiremos queimar umas quantas centenas de hectares. No piordos casos, alguns milhares. Em troca do que o planeta Altai tem uma oportunidade de chamar aSanta Mãe Terra para sua liberação.

Como ela ainda estava em dúvida , Flandry lhe sorriu e um rubo r subiu pela s bochechas deBourtai. Seus olhos o olharam, expressando seu recônditos sentimentos.

Flandry tomou as mãos da garota entre as suas.

- Eu nunca desprezei qualquer surpresa agradável que tenha cruzado me u caminho. E quemjamais teria a boa sorte de encontrar-se com Bourtai Ivanskaya?

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- Mas... não, você é um Orluk da Terra, e eu sou somente...

O resto da s suas palavra s morre u sem se r pronunciado, porqu e Flandry a atraiu para si ebeijou-a apaixonadamente.

Momentos depois de ter esquecido tudo, Bourtai murmurava:

- Como você achar melhor, Dominic...

Krasna , que já quase tocava o horizonte , balanço u como uma bola avermelhada e trêmuladurante alguns minutos e desapareceu. A noite caiu rápido, mudando o ambiente com a rapidez deum fogo de artifício. As estrelas brilhavam em toda parte, os anéis expandiam seu frio resplendore o vento estendia sua impiedosas garras pela planície infinita.

Flandry montou em se u varya k. Bourtai havia feit o um longo feixe de palha s retorcidas,convertido em uma tocha ardente qu e pô s na s mãos de Flandry. Est e ligou o motor e pôs amáquina em movimento. Alguns metros mais adiante, inclinou-se e tocou no solo. Uma língua defogo broto u do lugar, elevando-se imediatamente, ajudada pelo constante vendo da planície,Flandry conduzia a máquina em espiral, semeando o terreno co m pontos de fogo. Volto u parabusca r Bourtai, qu e montou a cavalo em su a máquina , silenciosa e entristecida. O fogo sepropagava furiosamente e crescia a uma velocidade fantástica . Uma gigantesca cortina de luz seelevava para o céu, ondulante, explodindo em milhões de chispas de luz como estrelas fugazes. Afumaça cobriu uma enorme área que quase ocultava o céu e os anéis de Altai.

Logo se aproximou a primeira nave aérea.

Momentaneamente, su a forma ovoide se desenhou no ar colorido do gigantesco incêndio.Flandry achou ter chegado o momento de receber uma chuva de disparos, mas o aparelho passouzumbindo, sem reparar no casal. Sem dúvida eles não haviam sido vistos. Não tinham interesseneles... por enquanto.

Bourtai começou a manipular o receptor de rádio e diversa s voze s se cruzavam no mesmocomprimento de onda, fazendo-se audíveis apesar do ruído do incêndio.

- …Alô, Ula n Baligh... Nossa posição é... Unidade s de Jagatai... Atenção, prepara - dos...Atenção... Perigo...

Bourtai continuou sintonizando o receptor. O tempo transcorria lento demais enquanto elasintonizava outro comprimento de onda.

- Alô, Noyon, sim, há um formidável incêndio. Vi um aparelho khanist a sobrevoando... Sim,uma frota inteira deles foi registrada em minha tela de radar. Um esquadrão pequeno demais paradeter o fogo. Eles estão pedindo reforços. Creio que poderão contê-lo...

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A resposta chegou apagada pela distância, mesclada com ruídos de interferência estática; mascheia de orgulho.

- Ninguém poderá dizer qu e os Mangu Turnan nega m su a ajuda contra o inimigo so b meucomando pessoal. Aqui fala Arghun Tiliksky.

- Devo dizer isto, Noyon? Eles talvez poderiam decidir disparar sobre você por violar a Yassa.

- Não o farão. Qualquer habitante de Altai procederia assim - e a voz distante acrescentou: -Além disto, duvido que qualquer oficial de uma ordem no Tebtengri Shamanate deixará de fazê-lo.Espere-nos dentro de meia hora. Desligo.

“Meia hora!”, penso u Flandry, repetindo mentalmente estas palavra s por ce m vezes. Ficaraimpressionado com o intercâmbio entre o rebelde e o piloto khanista. Seu acordo de trégua haviasido breve , formal e frio. Concentrou-se em permanece r pert o do fogo para aproveita r suasradiações infravermelhas, sem estar muito perto de forma a ser visto.

O incêndio crescia com espantosa velocidade. Toda a planície estava iluminada. Pequenosanimais passavam entre as rodas do varyak, gritando enlouquecidos. O primeiro esquadrão paracombater o incêndio, do ar, chegou e sobrevoou a zona sob a fumaça, em uma primeira passada. Otremendo ruído reverberou como um tiro de canhão na cabeça de Flandry. Distanciaram-se dassuas vistas e as bomba s começaram a cair. Onde uma dela s caía , surgia uma fonte de espumaesbranquiçada e o fogo parecia deter-se e desaparecer em um amplo círculo . De uma bombapróxima, caiu sobre Flandry um jorro de espuma pegajosa, obrigando-o a perder alguns minutospara se limpar, as mãos principalmente. Impulsionada por um forte vento, aquela imensa fogueiraígnea parecia imune aos extintores aéreos.

O esquadrã o deixou atrá s de si uma barreira de espuma. O fogo se deteve, crepitou, foienfraquecendo, mas finalmente destruiu a barreira de espuma e terminou ultrapassando oobstáculo. A mão de Bourtai procurou a sua e apertou-a fortemente, enquanto dirigiam através davasta extensão reduzida a cinzas e escórias ardentes.

- Eu não lhe disse? Eu não lhe disse? - repetia a jovem, desolada. Flandry murmurou algo paraconsolá-la.

As cinzas ardentes saltavam, golpeando-lhes os rostos e impedindo-os de respirar. Apareceuoutro esquadrão procedente de outra distante estaçã o de socorro. No momento o fogo pareciacontido para o Sul e o Norte. Mas em direção Leste haviam deixado uma fina linha de espuma. Oprimeiro esquadrão, uma vez descarregadas todas suas bombas, distanciou-se , com certeza paracarregar de novo. Seu zumbido distante mal era audíve l po r cima do estrondo do gigantescoincêndio da estepe.

Bourtai ergueu-se do seu assento e dirigiu o olhar para o céu.

- Ouça!

Passados alguns instantes, Flandry também ouviu o ruído. Era o som de um aparelho a grandevelocidade que se aproximava vindo do Norte e sentiu seu coração bater. A jovem, mais fria que

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ele quando uma ação era iminente, operou o receptor.

- Você conhece essa gente de Mangu Turnan? - foi a tola pergunta de Flandry.

- Sim, um pouco. Su a gente e a minha, como todas as tribos tebtengrianas, costumam seencontrar na feira de Kievska, e às vezes em outras ocasiões.

Do alto falante surgiam ordens concisas.

- Esta é a frequência para chamá-los - comentou Bourtai, atenta.

Flandry teve certeza de ter visto umas formas estranhas passarem rapidamente através do murode chamas a alguns quilômetros mais adiante . Os Tebtengri não pareciam agir com a precauçãodos homens de Oleg, qu e sobrevoavam a grande altura. Aqueles tebtengrianos mergulhavamvalentemente para arrojar suas bomba s de espuma . Levavam a cabo sua operaçã o de socorrodesviando-se desde aquela direção até o horizonte oposto. O plano a ser seguido foi se formandopouco a pouco em seu cérebro, pela s diversa s impressões recolhidas atrav é s da fumaçaenvolvente.

- Eles se dedicam a sufocar na frente Leste, deixando que as unidades do Khan trabalhem nadireção Norte-Sul - disse. - Isto significa que para nos aproximarmos suficientemente para termosa rápida oportunidade de sermos resgatados, teremos que nos aproximar do fogo pela parte Leste,o quanto antes melhor. Não acho que necessitem muito tempo para acabar sua tarefa, com a forçaque dispõem agora.

Um breve sorriso apareceu nos lábios de Bourtai, que lançou sua máquina a toda velocidadenaquela direção. Flandry recebeu o impacto de uma lufada de pó sobre os olhos e o rosto. Reagiurapidamente cuspindo aquela porcaria e tentou seguir Bourta i co m su a varyak. Mas a jovemseguia rápido demais e ele mal podia distingui-la ao longe, onde sua silhueta se destacava contrao brilho do incêndio, como um meteoro radiante. Flandry acelerou sua máquina, que saltava comoum cavalo selvage m sobre todo tipo de obstáculos, e seguiu na direçã o marcada po r Bourtai,através do limite Sul.

Virando novamente para o Norte, eles se reuniram e dirigiram juntos para trocar impressões. Atotalidade daquele forno ardia ao se u redor, nuvens de pó e fumaça se enroscavam, formandofantásticas figura s qu e se elevavam ao céu em redemoinhos empurrado s pelo vento, fagulhasardentes que saltavam do capim que se desfazia em um ruído infernal, línguas de fogo dançandoum ritmo endemoniado, tudo aquilo formava um quadro de pesadelo. A terra, sob a ação do fogo,aparecia esbranquiçada. O bombardeio começou novamente e uma bomba próxima lançou umjorro de espuma, que aparecia pálida em meio às fagulhas ardentes do incêndio.

A roda dianteira do varyak de Flandry bateu em um obstáculo e quase virou, mas ele reagiurapidamente, baixando a terceira roda de emergência. Ligou novamente a máquina e elevou a rodaauxiliar; mas durante aqueles segundos perdidos Bourtai havia se perdido de vista. Seguiu quaseàs cegas. Não teria chegado o momento de Bourtai avisar aos seus amigos? Flandry manipulou oscomandos do painel do varyak, ouvindo uma confusa mescla de ordens e informações.

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- Vamos, garota - gritou. - Não seja tímida. Adiante! Imediatamente a voz de Bourtai surgiu noreceptor.

- Atenção, homens do Mangu Turnan! Atenção! Chamo os homens do Tebtengri em meu auxílio,ya-u-la, rogo aos homens livres que ajudem a um homem livre. Eu, Bourtai, filha do Noyon IvanOgotai, que caiu com os Tumurji no Encontro dos Rios. Ya-u-la!, escapando do cativeiro de UlanBaligh, me dirijo agora ao longo da parte oriental do incêndio da planície. Atrás de mim acha-seum homem que procede da Sagrada Mãe Terra . Eu lhes declaro a verdade: ele é realmente daTerra e é perseguido pelo Khan, como eu o sou, igualmente. Este Orluk ajudou-me a escapar e eleveio livrar Altai. Enviem-nos um aparelho e recolham-nos antes que os homens de Oleg o façam.Manterei um sinal nesta faixa para guiá-los. Ya-u-la! Falou Bourtai Ivanskaya dos Tumurji.

Flandry deu uma olhada sobre o ombro. Se o inimigo havia captado a emissão naquelafrequência empregada pelos Tebtengri, a coisa ia ficar divertida.

Um aparelh o rugiu na zona invisível acima da su a cabeça e Flandry permaneceu atento,escutando, com a antena dirigida para aquela posição. O aparelho picou para baixo até voar quaseao rés do solo e, com uma olhada, Flandry observou o emblema de Oleg no flanco na nave aérea.O aparelho ia na direção de Bourtai.

Flandry acelerou seu varyak ao máximo e seguiu para a zona mais escura. A nave aérea troou,disparando uma chama contra o solo na linha que Bourtai seguia; o piloto khanista a tinha visto. Ajovem tentou lançar-se em um louco sprint co m su a máquina, enquanto a lança incandescentevoltava à caça. Flandry convergiu para ela. Bourtai o viu e tentou fazer-lhe sinais com a mão paraque se afastasse do seu caminho. Flandry lhe fez um sinal rápido:

- Por aqui, siga-me!

Outra nave aérea menor, e com uma estranha insígnia, apareceu em cena e disparou uma linhade fogo que cruzava com a chama disparada pelo aparelho do Khan. No rádio de Flandry surgiuuma voz irritada:

- Lacaio do usurpador! É assim que observas a sagrada trégua?

Ambos cessaram o fogo e os aparelhos giraram um ao redor do outro, como mastins raivosos,prontos para a luta, a poucos metros de altura sobre o terreno.

- Não fiz nada contra ti nem contra os teus - respondeu o piloto khanista. - Eu só me dirijocontra duas pessoas fora da lei. Permanece quieto, ou tu mesmo terás quebrado a paz.

Flandry e Bourtai continuavam rodando velozmente, longe da cena que acabara de se produzir.Sobre eles descia um véu de fumaça que os ocultou de qualquer observação.

- Se essa gente continuar discutindo - gritou Flandry para a jovem, - e enquanto os Tebtengripuderem ouvir nosso sinal...

- Yeaaah! - gritou selvagemente Bourtai, animada pelo espírito guerreiro dos da sua raça.

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Ambo s continuara m pelo caminho sinuoso em que estavam, entre aquele mundo infernal defumaça, fogo e sombras alternadas que os rodeava, e logo ele observou que o varyak de Bourtaise precipitou contra uma nuvem de cinzas ardentes e chocou-se com algum obstáculo imprevisto.A jovem saltou da máquina como um novelo e rolou pelo solo sobre o capim chamuscado

Aquilo que havia detido o veículo, pareceu se lançar contra ela e uma rápida olhada através dafumaça mostrou a Flandry um corpo monstruoso, uma cabeça gigantesca e umas pernas enormes,proporcionais a um tal gigante. Lanço u mã o da sua pistola e aproximo u su a máquina naqueladireção. A figura diabólica que se inclinava para o solo procurava o corpo de Bourtai que jaziasem sentidos. Estaria morta pelo golpe ou inconsciente?

Flandry baixou a terceira roda, parou, saltou do varyak e lançou-se em auxílio da jovem.

Uma mão tão grande quanto sua cabeça arrebatou-lhe a arma da mão.

Flandry tentou defender-se ma s fo i inútil. Sentiu-se colhido brutalmente e inerme como umacriança à frente daquele gigantesco monstro . Rasgando a névo a que os envolvia , mais doismonstros apareceram e, com a facilidade com que se pega um brinquedo infantil, cada um deleslevantou facilmente um varyak, pesando-o enquanto em seus horrível rost o se desenhava umsorriso horrível. Não apareceria ainda outra nave aérea dos tebtengrianos?

Dirigiu um olhar desesperado em todos os sentidos. Sim, pelos céus! Efetivamente, descobriuum aparelho amigo que permanecia suspenso no ar, quieto e vigilante. Com certeza o piloto nãopodia ver bem o que acontecia lá em baixo, através da cortina de fumaça quase constante. Flandryse livro u rapidamente do gigante com uma hábil manobra de judô e lançou-se em direçã o doaparelho dos Tebtengri. Mas, antes de poder percorrer poucos metros, sentiu-se preso pelo peitocomo um boneco e fo i içado para o ombro da monstruosa criatura. Apareceu então um quartoselvagem que recolheu o corpo imóvel de Bourtai com a maior facilidade. Então eles se reuniram,trocaram algumas palavra s ininteligíveis e puseram-se em march a . Os outro s selvagenscarregaram um varyak cada um. Sem dúvida o rádio da máquina de Bourtai devia ter se quebradoe ficado muda, pois trocaram algumas palavras e os piloto dos Tebtengri não os seguiu.

Os gigantes se dirigiram para Nordeste e Flandry pôde observar por uns instantes a nave aéreasobrevoando imóvel a zona em que se achavam e depois elevou-se rapidamente e desapareceu.Un s momentos mais tarde, uma nave khanist a chegou també m sobre eles, mas també m nãopermaneceu lá e se afastou.

A fumaça atrapalhava a visã o de Flandry. Até onde podia ver, observo u que estava m sendoconduzidos através da estepe a plena marcha dos gigantes, a uns dez quilômetros por hora. O fogojá havia ficado para trás, esfumando-se na noite.

Os radiadores de calor dos varyaks ainda funcionavam, emitindo constantes ondas de ar quenteque podia mantê-los com vida. Flandry imaginou se aquilo ainda tinha alguma importância.

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CapítuloV

Em várias ocasiões os selvagens se detiveram para descansar durante a noite. Na primeira veztrataram de manietar os humanos, atando junto seus tornozelos e as mãos nas costas. Deixaram-nosdeitados ao redor dos varyaks, contra o solo gelado. Flandry não teve outra ideia fanática, a nãoser desatar as mãos; mas, apesar do seu treinamento na matéria, foi impossível. As ligaduras eramfortes demais. Tentou ficar meio sentado.

- Bourtai! - chamou pela jovem, com voz baixa. - Pode me ouvir?

- Sim.

Flandry comprovou com imensa alegria que a garota também ficava meio sentada, como ele, eu m pouco visíve l sob a lu z de uma das luas. A estepe aparecia co mo um imenso lago,terrivelmente gelado e tingido de uma leve co r avermelhada , povoado de misteriosa s sombrasempurradas pelo vento.

Bourtai murmurou:

- Dominic... está ferido?

- Mais no meu orgulho... tinha medo de que você tivesse se matado ao saltar da máquina a talvelocidade...

Ela lhe respondeu com bom humor:

- Qualquer garotinho nômade aprende essa arte. Tentaramse aproximar um do outro.

- Quem são esses gargântuas? - perguntou Flandry.

- São voiskoye.

- Isto não me diz grande coisa, minha querida, como você poderá supor.

- São selvagens - continuou Bourtai. - Faz tempo, na primeira época de Altai, quando aindaprevalecia a confusão geral e o caos no planeta, embora as pessoas tivessem achado a forma de irsobrevivendo, um pequeno bando de criminosos se dispersou pela estepe, que naquele tempo seachava povoada. Encontrara m meio s de subsistir durante o tempo da s fazendas agrícolasdispersas e solitária s da planície, roubando inclusive as mulheres. Os altaianos deixaram o

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cultivo da terra e os voiskoye se transformaram em caçadores, forma de vida que ainda continuampraticando. Não sendo em grande número, e sendo a estepe tão grande, os grupos de voiskoye nãotinham problemas entre si. Roubando, ou traficando às vezes, têm sobrevivido e em geral não sedeixa m ve r muito. Eu não podia supo r que existisse um bando nestes arredores. Com certezavieram atraídos pelo fogo da estepe, na esperança de caçar animais que fugiam em disparada emsua direção. E foi assim que nos viram e...

Bourtai parou, emocionada, e deixou cair a cabeça no peito de Flandry com abandono.

Flandry esquece u sua s preocupações e considero u os gigantes. Havia lu z suficiente paraobservá-lo s detidamente. Parecia m mais caucasianos que o resto do s altaianos, provavelmenteporque seus antepassados era m daquela raça colonizadora. Deixavam o cabelo negro em umalonga melena, com uma enorme barba caindo-lhes no peito. Em suas feições ressaltava-se umnariz avultado, uma s sobrancelhas enormes e, em geral, um aspect o quase acromegálico.Chamou-lhe novamente a atençã o que a maio r part e da sua altura incrível - dois metros e umquarto - devia-se ao comprimento das suas pernas. O torso era bem mais rechonchudo. Vestiamtúnica s felpudas e nenhuma coisa mais, exceto colare s de dentes ou de osso s de animais. Seuarmamento consistia em achas de pederneira, bumerangues e facas forjadas, sem dúvida algumacom os pedaços de ferro velho que iam encontrando.

Enquanto recebiam o ar quente dos radiadores dos varyaks, mal se davam conta do terrível friodaquelas horas noturnas na estepe. Flandry se admirou de ainda estarem vivos e sua mente, apesarda terrível dor de cabeça que sofria , começou a divagar, tentando entender a evolução daquelasestranhas criatura s naquele planeta inóspito. Sim... conseguiu imaginar o fluxo ancestra l dasgerações das quais a própria Bourtai descendia... Formas animais gigantes devem ter aparecidonos distantes períodos de tempo passados e se desenvolvido, de acordo com o meio circulante,até invadirem grandes áreas de Altai em forma explosiva . Esse processo pôde afetar o homem.Somente podia supo r uma s pouca s deze na s de caçadore s da estepe conservando seusdescendente s in situ para intensificar as característica s qu e possuíam, mas reproduzindo-serapidamente, por exemplo, a um ritmo de sete gerações po r século, e deixando-os à mercê daseleção natural. Além do reajuste metabólico da dieta alimentícia , da temperatura e dos demaisfatores, logo se obteria um corpo transformado. O tamanho seria vantajoso para conservar o calore para correr agilmente atrá s da presa. Sob tais condições, a natureza não precisaria de maistempo, criando uma nova casta de homens, que é o que o homem necessita para obter uma novaraça de cães.

A pergunta que perturbava a mente de Flandry tinha que ser feita:

- Para que você acha que eles nos querem?

- Pelo metal dos varyaks, claro.

- Isto é somente uma desculpa evasiva, querida. Para que eles “nos” querem? Bourtai serefugiou contra o corpo de Flandry.

- Dizem que eles são canibais.

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- Mas raramente encontrados para estarem certos, não? Bem, ainda não fomos colocados paracozinhar. Brrrr! Eu quase daria boas-vindas a uma formosa caçarola quentinha... Venha, vamosnos esquentar um pouco.

Flandry precisou animá-la para conseguir aproximá-la do outro varyak. Aquela resignaçãopassiva, o qu e constituía outro aspecto de uma cultura estoica, afetava Bourta i diretamente.Conseguiram chegar um pouco mais perto da máquina e começaram a sentir seu calor vivificante.

- Hummm! - murmuro u Flandry. - O rádio dest a máquin a parece ainda estar bom. Tentouencontrar a posição conveniente para poder manipulá-la.

- Se de algum modo eu pudesse avisar aos Mangu Turnan!

Uma mão empurrou-o brutalmente de costas. Uma enorme cara de horrível aspecto grunhiu ládo alto.

- Ei!

- Eu não podia adivinhar que essa gente conhecesse o rádio.

O gigante ficou de cócoras ao lado de Bourtai e Flandry conseguiu arrastar-se para trás atéalcançar o mostrador do rádio, que ligou com um movimento casual.

- Essa gente não entende de máquinas - disse Bourtai. - Ma s sabe m que as máquinas sãoperigosas para eles. As pistolas matam, as naves aéreas voam e os perseguem. Você não terá umachance.

- É, suponho que não - respondeu Flandry, com um suspiro de resignação forçado. Tentou falarcom o selvagem, mas logo se deu conta de que a linguagem voiskoye havia derivado para muitolonge do altaiano. Desesperado e exausto, logo caiu em um pesado sono.

Quando de novo empreenderam a marcha, Flandry convenceu o selvagem, através de sinais,que lhe permitisse ir andando, melhor que em forma de um saco de mercadorias. Aquilo supunhaalgum descanso. Carregou-se com um fardo de comida e água. Jamais tinha empregado em suavida, tão miseravelmente, vinte intermináveis horas.

Chegaram ao acampamento pouco antes do amanhecer. Flandry foi obrigado a sentar-se nochão, onde foi desamarrado, deixando escapar um suspiro de alivio após aquela tortura. Suaspernas ma l podia m sustentá-lo, mas não deixava de observar tudo ao redo r com todo s seussentidos bem despertos.

O capim havia sido arrancado em um grande círculo. Pequenas tendas de pele rodeavam aquelecírculo, onde emergia um totem gravado primitivamente com sinais cabalísticos, com pigmentosde argila. Várias fogueiras ardiam em buracos superficiais e, pendurados em paus, secavam ao ar

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pedaços de carne e de diversas peles. Os utensílios eram de barro comum, para as necessidadesda cozinha, havendo outro s fabricados toscamente em madeira , pederneira e osso. No geral, oacampamento tinha todo o aspecto do paleolítico. Entretanto, pôde observar objetos de metal eroupas dentro de uma daquelas tendas.

Duas mulheres tosca s montava m guarda aos prisioneiros. O rest o da tribo, cerca de umacentena de adultos e trê s vezes este número de criança s quase nuas, se dedicaram a observarestupidamente os varyaks. Ah qu e maravilha! Os quatro caçadore s que havia m chegado comaquele tesouro foram longamente aclamados com o mais selvagem entusiasmo, todos dançaram aoseu redor, gritando e gesticulando, presenteando com colares. No ápice da festa alguém saiu datenda principal e pintou os brutais rostos dos heróis do dia.

Flandry dedicou-se a observá-los detidamente. O médico bruxo, ou qualquer coisa que fosse,tinha o aspecto de ter vivido muito mais que seus companheiros de tribo, a julgar por seu aspectoe suas rugas, já que provavelmente os voiskoyes não passavam dos quarenta anos de vida, pois afome, os acidentes, as doenças e o vento gelado da estepe os aniquilava. Era de tamanho menor emenos forte que a maioria dos voiskoye adultos, embora ultrapassasse a estatura de um homemcomum da Terra . Estava adornado com diversas miçangas, contas de pedras reluzentes, tiras decouro e longas caudas peludas. Mostrava diversas cicatrizes no peito e a mais astuta malícia serefletia em suas feições horríveis. Era óbvio que havia esperado dentro da sua tenda e haviacomeçado a recompensar os heróis por razões ritualísticas e cerimoniais. Dirigiu um olhar astutopara os cativos. Quando finalmente conseguiu afastar as pessoas da contemplação das máquinaspara se prepararem para o banquete, aproximou-se de Flandry com evidente impaciência.

Olhando-o orgulhosamente, disse com um baixo sotaque altaiano:

- Que tipo de Izgnanniki ser tu?

- Que tipo de... que? - responde u Flandry, já um pouco recobrado da s fadigas e voltando àlíngua altaiana. A pobre Bourtai olhava com ar desamparado.

- Tu... dos Izgnanniki. Não ser assim? Pastores, gente de ordu, vocês chamar assim. Nós dizerIzgnanniki. Ela parecer essa gente. Eu nunca ver gente como tu. Como?

- Eu - responde u Flandry, co m um ar aparentemente impressionante, - eu so u da Santa MãeTerra.

O feiticeiro não aparentou aceitar ou desconfiar daquela resposta. Uma máscara impenetrávelparecia estender-se sobre su a s dura s feições. Po r instantes intermináveis o gigante olhoufixamente para Flandry sem pestanejar. Só movia uma de suas mãos ao longo da barba.

Finalmente disse muito devagar:

- Izgnanniki dizer sobre Terra. Dizer que homens vir de estrela com nome de Terra. Sim! Tuparecer atamoi, estrangeiro - e com um dedo apontava as feições do estrangeiro, mostrando oscabelos, os olhos, o nariz e sua pele suave. - Teu nome?

O voiskoye levantou-se sobre seus pés e, com um osso raspado que extraiu de um bolso, tocou

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o peito e apontou para o Sol.

- Tu não fazer zaporo! - gritou furiosamente - Eu matar! Matar agora ! Zaporo para mim! Eusomente. Nyennekh, nyen nekhs shviska upolyansk!

- O que quer dizer isto? - perguntou Bourtai, angustiada.

Flandry sabia que o altaiano, como muitas outras línguas posteriores às viagens espaciais, nãotinha uma palavra para designar o conceito do mágico, ou expressão parecida.

- Esse bruxo acredita - explicou a Bourtai - que certas frases e ritos têm um poder especialpara causar danos ou para obter benefícios. Olhe bem, ele está esperando os hipotéticos efeitosdo que disse, que deve ter soado como uma potente fórmula para ele. Se nos comem, com certezaacreditam que com isto ganham as potências especiais que possamos ter.

Ela pareceu ficar mais contente e alegre.

- Não zaporo - disse Flandry, dirigindo-se ao gigante. - Somente meu nome . Veja, nadaaconteceu. Eu somente lhe disse meu nome.

- Zaporo para mim - respondeu o outro, já um tanto suave. - Eu fazer zaporo, bom para nós, maupara inimigos. Eu chefe de tribo. Tu compreender?

E novamente voltou ao seu anterior aspecto feroz.

- Se tu não fazer grande zaporo, tu não ser da Terra.

Flandry havia-se erguido, quando um pouco antes o voiskoye o fez, sentindo que já havia ganhomuito da força perdida na esgotante viagem até a tribo. Ergueu-se arrogante, aparecendo frente aomédico bruxo da tribo sem grande desvantagem psicológica.

Torceu o bigode com parcimônia.

- Bem, eu nunca lhe disse que não podia, disse somente que não havia feito naquela ocasião.

- Tu se r preso como um animal - gaguejou o voiskoye - Homens de Terra se r presos comoanimal? Não assim.

- Ele s me pegara m de surpresa - disse Flandry. - E, naturalmente, seus caçadores estavamcheios de zaporo dado por você. Nesta ocasião eu não estava cheio de poder, porque havíamosfeito várias coisas de zaporo no lugar de onde viemos.

Flandry havia conseguido, pelo menos por enquanto, uma interessante demora nos secretosdesígnio s do bruxo, a que m de certo modo as palavra s do terrestre havia m impressionado.Desejava a todo custo influenciar na mente selvagem do voiskoye a ideia de que, ao mencionar acondição de homem da Terra, tinha que ser tratado com cuidado.

- Meu nome, Kazar - disse o chefe. - Não verdadeiro nome, nome verdadeiro ser secreto paraque inimigos não fazer zaporo sobre mim. Kazar ser nome usar eu. Nome usar tu, Vlanary, não éassim? Nós falar.

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- E como você sabe o que dizem os Izgnanniki? - sugeriu habilmente Flandry. Kazar franziu ocenho.

- Fazer muitos anos, quando eu jovem, e ser chamado homem. Inverno terrível. Muitos morrerfome. Eu ia co m pai e outros homens caçar animais Izgnanniki. Pastore s ver nós. Dispararescopetas. Muito s voiskoye s mortos. Eu se r capturado. Vive r co m pastores três anos. Elesensinar-me. Chamar-se Jahangir.

- É uma tribo que agora apoia Oleg Yesukai - comentou rapidamente Bourtai. - Ouvi falar dessagente, que se encontram na maior pobreza, o que os fez tornarem-se brutais.

Kazar olhou sombriamente para Bourtai.

- Jahangir golpear mim. Eu matar e escapar minha tribo. Agora eu matar Izgnanniki onde puder.

- Não a esta - respondeu ferozmente Flandry, pondo-se entre ele e a jovem. - Você não estásabendo? Há uma guerra entre os nômades. O povo dela está lutando contra o mesmo povo quecapturaram você.

- Sim, eu conhece r que disparar na estepe, no céu. Eu ver Izgnannik i mortos por Izgnannikiarmas.

- Então nós somos amigos, hein? - aventurou Flandry. Kazar sacudiu a melena como um leão.

- Não, todos Izgnanniki ser inimigos de voiskoyes.

Flandry entendeu que ele sem dúvida tinha razão. Não valendo a pena cativá-los como aliados,aqueles selvagens eram considerados bichos daninhos e eram tratado s como tais pela s facçõesnômades.

- Você conhece o rádio? - perguntou a Kazar - Deixe-me fala r por rádio com o povo destamulher para que venham recolher-nos. Eles ficarão muito agradecidos e lhes trarão uma grandequantidade de metal.

Kazar hesitou por um instante. Até que, decididamente e com um gesto feroz da mão, rechaçou aproposta.

- Não. Izgnanniki ouvir que nós ter vocês aqui e vir. Nós entregar. Eles dar metal? Não assim.Eles disparar!

Bourtai sentiu-se desesperada e ergueu-se repentinamente.

- Que foi que você disse? Está querendo dizer que os Tebtengri romperiam um juramento? Porque, seus piolho de rato, se não sabe o que significa a palavra juramento?

Kazar lançou-se sobre ela, passando por Flandry, e empurrou-a brutalmente no chão. Bourtairolo u como uma bola . Flandry esteve a ponto de tentar estrangular o bruxo, mas rapidamentecompreende u que aquilo não levaria a nada e qu e qualque r resistência era inútil e poucointeligente. Foi em sua ajuda, erguendo-a. A pobre jovem havia batido com a cabeça, que sacudia

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dolorosamente. Em sua têmpora apareceu uma mancha que ia se tornando azulada rapidamente.

- Est á se sentindo bem? - perguntou-lh e Flandry amavelmente, surpreendendo a si mesmo,naquele estado de fúria mal contida em que se achava, o quão ansioso sentia-se pela jovem.

Bourtai sacudiu a cabeça tristemente.

Uma ou duas mulheres selvagens se aproximaram uivando para Bourtai e a rodearam. Kazar asmandou para trás com um imperioso gesto de mão.

- Vocês, esperar ainda - ordenou autoritariamente. O terrestre se levantou orgulhoso.

- Não poderá fazer uso do meu poderio se causar danos à mulher - rugiu. - Compreendeu?

- Tu ganhar ficando quieto e ela quieta. Nós dar de comer. Ou vocês servir para nós comer. -Acrescentou, com um sorriso sinistro em um gesto horrível que tentava parecer um sorriso.

- Precisamo s dos nosso s saco s de dormir e de uma tenda . Kazarbalançou a cabeça, impaciente.

- A mim não enganar. Sacos dormir bons para meninos somente. Vocês querer escapar; mas nósperseguir logo. Nós bons para perseguir.

- Não tenho a menor dúvida sobre isto - disse Flandry.

O pensamento de ser rastreado e perseguido por aquela matilha de cães raivosos e selvagensdeixava seu cabelo de pé. Sim, estavam realmente encarcerados.

- Então, que fazer vocês para voiskoyes? - perguntou Kazar impaciente.

- Grande Deus, deixa-me pensar, pilantra, tenho a cabeça cheia de serragem - disse Flandry emlíngua ânglica.

Dirigiu um olhar agudo em todas as direções do acampamento tribal. Se pudesse faze r umachamada de rádio, os Mangu Turnan chegariam ali em meia hora , por via aérea. Se pudessechamá-los, enviariam pelo menos um explorador para investigar. E um explorador aéreo com umaarma a bordo teria à sua mercê toda aquela canalha selvagem... Meia hora trágica!

- Eu posso fazer um grande zaporo terrestre para você - disse Flandry teimosamente. - Bomzaporo . Muit a comida, tempo s quentes, muito s garotinhos e cerveja. Ma s preciso de umequipamento terrestre para fazê-lo.

O sorriso de Kaza r mostro u dentes de lobo. Sem dúvida, os voiskoyes evoluía m para umadentadura de canibais.

- Eu conhecer armas que disparar. Também rádio. Tu vir perto tuas ferramentas.

- Eu não quis dizer isso, mas preciso...

- Terás instrumento que precisar - disse o chefe. - Mas somente para coisas eu compreender. Tunada fazer que eu não entender. Tu dizer que precisar e para que. Se eu compreendo, eu dou.

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Flandry olhou-o nos fundos dos olhos. Não era a primeira vez que constatava que a falt a detecnologia de um povo não significava necessariamente estupidez. Kazar tinha colhido, entre osnômades, mais astúcia do que aparentava.

- Estou muito cansado para pensar - protestou Flandry. - Deixe-me dormir um pouquinho.

- Igual menino. Izgnannik i se r vermes - Kaza r ordenou severamente. - Te r comida, depoisdormir. Depois de dormir, dizer que fazer para nós.

O pensamento de transformar-se em um almoço para os selvagens se não fizesse alguma coisaaceitáve l para eles, não lhe assustava no momento. Realmente estava exausto e esgotado aomáximo. Enfiou-se em um saco de dormir, com Bourtai perto dele, em uma tenda que lhe deram ecaiu em um sono profundo. Nenhum dos ruídos exteriores o afetaram, mas seu subconsciente eramuito bem treinado. Quando despertou, horas mais tarde, deu um grito. Bourtai olhou-o com olhosde surpresa e Flandry abraçou-a e beijou-a.

- Criança, creio que tenho uma ideia estupenda!

- E... nos servirá?

- Diabolicamente

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CapítuloVI

Krasn a luzia nas hora s do entardece r como um carvão aceso em um ciclo pálido. Oacampamento estava quase deserto.

Ossos roídos, restos de comida e cinza s brancas esparzida s por todos os lados, falava m dafesta celebrada pelos selvagens, a maior parte dos quais estava dormindo sob suas tendas de pele.Alguns garotinhos e uma s quantas velhas da tribo vagava m recolhendo os restos da comida eentoando cantos primitivos com um murmúrio cansado e monótono. Alguns indivíduos voioskoyestambém estavam acordados, sentados no chão com as pernas cruzadas e dedicando-se a fabricarobjetos de pederneira ou de madeira. Olhava m de vez em quando para Flandry e Bourtai comabsoluta indiferença. A porcentage m de inteligência naquela gente devia se r muit o reduzida,somente Kazar era um tipo especial.

Pela porta aberta da grande tenda do chefe, Flandry observou em seu interior diversos tecidos,objetos de cristal e numeroso s resto s de pilhagem, próprio s de uma civilizaçã o selvagem.Predominava o metal, pedaços de aço e ferro velho colhidos aqui e ali, de armas quebradas ouabandonadas, utensílios, ornamentos e objetos qu e logo seriam trabalhado s pelos artesãosvoiskoyes. Flandry pôde ve r os dois varyaks no alt o do monte. Um deles já estava meiodesmantelado.

O chefe apareceu no umbral e com a cabeça fez um enérgico sinal para que Flandry entrasse emseu recinto. Os homens e os garotinhos haviam sido mandados para fora.

- Tu vir - disse, convidando-o a entrar.

Flandry aceitou. Bourtai acocorou-se na entrada da tenda, sua angustia crescendo por algunsmomentos. O terrestre só tinha uma ideia fixa : fazer o impossíve l para devolver a calma, aliberdade e a vida àquela formosa criatura que havia entrado em sua vida em tão fantásticascircunstâncias. Não é que ele não desejasse continuar vivendo, de certa forma seria igual achar-sesozinho; mas agora conhecia uns sentimentos delicioso s que jamais houvera suspeitado quepudessem existir e teria gostado de ficar junto a Bourtai, de quem estava profundamenteenamorado pela primeira vez em sua frustrante vida.

- Então? - grunhiu Kazar.

Flandry dirigiu-se para um varyak. Com o painel de controle desmontado e com toda s suaspeças deslocadas, pareceu-lhe um enigma desesperador.

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- Não tocar! - gritou Kazar brutalmente, afastando-o da máquina com uma tapa.

- Olhe - respondeu Flandry, tão gravemente quanto lhe foi possível, - se você não quer meuzaporo terrestre , diga . Eu preciso de uns certos aparelhos. Como seus ossos raspados, ou aspinturas da sua tenda, ou as marcas que você faz no peito. Só terá que me confiar alguns dessesfios.

- Primeiro dizer como trabalhar.

- Muito bem - Flandry adotou uma postura hierática e dirigiu os olhos para o céu. - Nós temosmuitas coisas na Terra que são de grande valor para vocês. Por exemplo: vocês devem ter muitadificuldade para encontrar água, não é assim? O que vocês fazem em uma estepe seca como estapara encontrá-la?

- Procurar em buracos. Enviar mulheres com sacos.

- Por que não têm água mais perto do acampamento?

- Animais vir beber. Nós espreitar de perto quando animais buscar água. Melhor nós estarlonge do acampamento, assim enviar homens para caçar e mulheres trazer água.

- Entendi. Mas não seria muito melhor cavar um grande poço, um buraco no terre- no?

Kazar sacudiu a cabeça, impaciente.

- Nós fazer assim alguma vez. Não poder cavar fundo. Não ter ferramentas. Quando achar queágua está perto, nós cavar. Se não estar certos, não cavar.

- Ah! Eu já imaginava. Bem amigos, seu sofrimento terminou. Eu posso construir uma coisa quemostra onde se encontra a água a uma profundidade menor que a altura de dois homens. Águapura, além disso, e não a porcaria que vocês acham por aí.

Algo parecido a entusiasmo assomou no rosto abominável do bruxo.

- Se tu não dizer verdade, tu com certeza morrer - prometeu Kazar. - Como trabalha tu zaporo?Eu tentar zaporo para encontrar água fazer muito tempo. Não conseguir. Tu dizer como.

- Bem - respondeu Flandry, gaguejando. - Eu suspeito que você não conhece a forma correta defazê-lo. Nós, os terrestres, temos como antiquada a varinha do zahori. Temos conhecimento dasleis que governam a mágica. É assim que chamamos na Terra ao zaporo: mágica . Você sabe quehá diferentes coisas mágicas: há para a caça, para a boa sorte, para a saúde, para causar danos aoinimigo, e assim sucessivamente. Mas realmente há somente duas formas, duas classes de magia.Uma, que consiste em um objeto que tocou ou que fez parte de outro objeto. Por exemplo: vocêusa um nome de homem, ou parte do mesmo, para fazer mágica. Ou melhor ainda, algo do seucabelo, suas unhas ou seu sangue...

- Não falar! - exclamou Kazar. - Mulher escutar!

- Não importa. Eu lhe asseguro que a magia da Terra é fort e demais para ser alterada pela

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presença de uma mulher. Na realidade, alguma s da s pessoas mágica s mais importante s sãomulheres. Bem, esta é uma forma de magia a que chamamos na Terra de magia de contato. E aoutra consiste em trabalhar sobre uma coisa, usando a aparência dessa coisa. Por exemplo: vocêajuda seus caçadores a capturar as peças com lanças nas quais pinta, com argila, a image m doanimal que se espera caçar depois. Não é assim? Isto é o que na Terra se chama de magia porsimpatia.

Bastante impressionado, Kazar balançava a cabeça com gestos expressivos.

- Tu conhecer muito zaporo. Eu conhecer muitos caminhos, muitos... como ser palavra? Muitossegredos. Mas eu nunca pensar que zaporo sendo duas classes.

- Você não tem culpa - respondeu Flandry, condescendente. - Você nunca teve uma educaçãocientífica. Muito bem. Como podemos encontrar água? Como não dispomos de parte do manancialde água que procuramos, temos que usar a magia por simpatia. Precisamos fazer um símbolo, umsinal, você compreende? Um símbolo da água e de um homem que a está procurando. O aparelhoque eu preciso construir é o símbolo sobre o qual operamos. Est á claro? É assim comotrabalharemos - Flandry agachou-se e com um dedo traçou diversos desenhos no chão. - Primeiroconstruiremos um desenho do território onde estamos. Faremos isto com fios e com uma placa demetal, formando aproximadamente um quadro. Mas no terreno onde exista águ a próxima àsuperfície tem que ser plantado, para que assim forme o símbolo buscado - e Flandry desenhouuma série de círculo s co m uma flecha atravessando-os. - Est e s sã o matos e raminhos - eassinalando uma indutância variável do rádio do varyak, acrescentou: - Isto servirá para o modeloque vamos construir. Est á vendo como a figura muda dando voltas no mostrador? Usando estemodelo, se a justa a forma do símbolo que representa o mato, até que fique próximo da formaatual de qualquer manancial que exista na área.

- Mas isto pertence a rádio - disse Kazar, com ar de suspeita.

- Sim, já sei. Mas você sabe a forma que tem um rádio. Como pode uma pequena parte do rádioservir para a função completa da mesma? Pode um osso ser igual a todo o animal? Use seu sensocomum.

Flandry desenhou dois pares de linhas paralelas, que se cruzavam em pontos se- parados.

- Estes desenhos representam as águas cobertas pela terra - continuou, - como são vistas pordois olhos. É assim que temos que proceder no modelo que construiremos - e apontou para um parde condensadores variáveis. - Você mesmo pode ver como se ajustam aos perfis locais.

Flandry havia procurado deter-se frequenteme nte em sua explicação, para qu e Kazarcompreendesse tal complicado arrazoado com seu reduzido vocabulário e testar este ou aqueleponto à satisfação do chefe selvagem. E, em uma sinopse final, continuou:

- Entretanto, o que é o terreno sem o sol? O onipotente, o que dá a vida, o Sol. Ah! Sim,devemos incluí-lo em nosso projeto. Você sabe que as baterias do varyak lhe proporcionam seupoder, assim tomemos uma. Ainda não está completamente esgotada. Com a ajuda de uma bobina,produzirá uma fagulha através deste buraco, quando a chave for fechada. A criação da fagulha é

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como a saída do sol, a vida e a esperança renascem então. Assim como o sol faz brotar a água dosolo, nossa máquina procurará a água que existe dentro da terra. E mais uma coisa . Precisamossimbolizar o ato de procurar a água e portanto precisamos da máquina conosco. E faremos correrum fio curto pela terra e outro mais longo olhando para o céu. O longo simboliza o homemvigiando o mundo inteiro e o melhor é levantá-lo no ar por meio de uma pipa . Você não sabe oque é um papagaio ? Bem, dê à sua mulher alguns palitos e um cordã o longo e fino e algunspedaço s dessa roupa e est o u cert o de que ela fabricará para você. No qu e respeita aofuncionamento da máquina, é coisa bem simples. Eu deixare i que a mulher empurre a chave quecontrola a fagulha. Você sabe e vê o que isto significa, claro. Uma mulher que maneja os símbolosdo sol contribui para o conjunto mágico das forças da vida. A mulher tem que controlar a fagulhaprecisamente, já que desejamos obter um bom resultado e a água brotará do terreno como o leitedo peito de uma mãe. Eu mesmo farei a parte mais difícil do trabalho, ajustando as diversas partesda máquina à conformação simbólica que precisamos. Você poderá fazer o papagaio voar. Aocordel do papagaio temos que acrescentar uma lâmina plana, alé m do fio procurador. Faremosuma com aquilo - Flandry indicou um pedaço de chapa metálica do painel quebrado do varyak. -Você, que estará atendo à sua função, golpeará fortemente a chapa, enquanto pensa com toda suaforça no cauda l de água subterrânea que procuramos. Quando a chapa parece r mais rígida, éporque alguma coisa est á pert o de se r descoberta e eu posso ler e saber o local exato domanancial com os meus mostradores.

Depois de muitos circunlóquios, Kazar captou a ideia e conveio que a máquina hidrofólica nãoera um engano e sim uma construção maravilhosa dos sãos princípios do zaporo. E então pareceuestar ansioso para começar imediatamente. Mas não deixou de vigiar nem por um só momento osmovimentos de Flandry e de inspecionar cada obje to que ele necessitava antes de seremmanejados pelo terrestre.

A operação demorou poucas horas para ficar pronta. Quando saíram para o exterior com aquelaconfusão de circuito de rádio, Bourtai murmurou:

- Acha realmente que poderemos conseguir alguma coisa?

- Supõe-se que você conheça qualquer código telegráfico empregado por seu povo - respondeuele baixinho. - Os nômades devem ter algum, a voz de rádio nem sempre é prática.

Ela fez um sinal afirmativo com a cabeça , suspiro u profundamente e pôs o papagaio no ar.Flandry estava admirado de quão graciosa era Bourtai; mas não dispunha de tempo para suaadmiração pessoal pela garota. Tinha que se concentrar em outra coisa , que era pôr em marchaaquele primitivo aparelho telegráfico.

- Fiquem ao meu redor aqui! - disse Flandry, com um gesto, aos gigantes que o rodeavam. Oespetáculo havia atraído a totalidade do acampamento, que cochichavam entre si e olhavam, coma boca abert a de assombro. Nem mesmo o próprio Kaza r podia dominá-los e em um dadomomento Flandry sentiu-se rodeado de barbas enormes por todos os lados.

Bourtai entregou a linha do papagaio para o chefe e sentou-se no chã o para manipular otelégrafo improvisado. Quando a fagulh a começou a salt a r com o batucar originado pelo

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manipulador, pondo brilhos azulados entre as sombra s do entardecer, os voiskoye s pareceramtomados por um terror supersticioso. Kazar traçava sinais protetores no ar.

O manipulador ia marcando suas pancadas, equivalentes a pontos e traços: “Yau.la, homenslivres, ajudem a um homem livre”, com a esperança de que nenhum membro partidário do Khaninterceptasse a mensagem. Tinha que haver algum receptor aberto na escuta, em qualquer ordu,permanentemente. Mas a energia elétrica da bateria era fraca, estava quase esgotada pela longaviagem do varyak. E além do mais havia os ruídos eletrostáticos. Flandry fazia girar o mostradore m círculos, lentamente. Não podia saber as propriedade s eletrônica s qu e possuiria aqueleimprovisado e rústico equipamento neo-hertziano. Tinha que tentar em toda s as combinaçõespossíveis, confiando encontrar a frequência adequada.

Um silêncio absoluto caiu sobre a tribo. Só se ouvia o repicar do manipulador nas mãos deBourtai e o suave estalido da fagulha e, como acompanhamento de fundo, o rumor do ar na estepe.Kazar sustentava a linha do papagaio com uma mão, enquanto que com a outra batia de vez emquando na placa metálica acrescentada. Repentinamente, ele gritou.

- Tulyansk! Mim sentir picada.

- Ah, muito bem! - aprovou Flandry. - Bem, nunca se está seguro na primeira vez. Continuemos.Se os mostradores registrarem o mesmo ponto e se a sensação de picada nos dedo s se repetir,então é porque a máquina está trabalhando.

Flandry esgotava todos os recursos da sua imaginação, prolongando a experiência, na confiançadesesperada de que os sinais emitidos fossem captados e localizados. Se é que eram ouvidos epodiam vir...

Tudo continuou igual por alguns longos minutos. Mas chegou o momento em que Kazar começoua se cansar.

- Muito demorado. Eu sentir o mesmo muitas vezes. Tu decidir onde cavar.

- Muito bem - gritou Flandry. - Creio que já tenho uma leitura. Vou interpretá-la.

E adotando uma cômica aparência histriônica , para impressionar ao máximo o auditórioselvagem, disse em voz alta:

- Adis Abeba, Constantinopla, walla-walla, kalamizo, woomera, saskatún, saskatchewan, topeka!Sigam-me - ordenou, - não, é melhor deixar o papagaio no ar. Bourtai o levará na mão. Vocês,peguem o resto dos aparelhos.

Kazar deu uma ordem e um selvagem entrou em sua tenda e saiu com uma enorme pá de cabolongo e uma ampla colher de aço.

Flandry conduziu-os através da estepe. A maior parte do pessoal da tribo os seguiu, pisando emseus calcanhares. Seu silêncio era mais perigoso que os cochichos anteriores e Flandry podiavirtualmente sentir seus olhares agudos às suas costas. Depressa e fazendo diversas paradas parainspecionar o terreno, levou a tribo por um bom trecho para o Norte.

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Depois de alguns quilômetros, Kazar bufou como um touro:

- Tu dizer zaporoska encontrar água perto. Não bom, sem água longe.

- Não posso encontrá-la onde não está - protestou Flandry co m dignidade. - No futuro vocêpoderá escolher seus acampamentos no lugar onde a máquina indicar. O manancial mais próximoainda está a uma pequena distância.

Mas nenhum deles parecia convencido e após alguns minutos Flandry compreendeu que haviaesgotado todos seus recursos e a escassa paciência dos selvagens. Parou e golpeou o terreno como pé.

- Aqui.

- Aqui? - perguntou Kazar desconfiado, inclinando-se para pegar um pouco de terra entre osdedos e cheirando-a.

- Seco, muito seco. Olhar isto, capim khru crescer na terra mais seca.

- Você nunca tinha pensado em olhar aqui - argumentou o terrestre. - O que demonstra comominha máquina é valiosa.

Kazar olhou-o duramente, endireitou-se e deu uma ordem ao homem da pá. O gigante começoua trabalhar ardorosamente. Um buraco enorme abria-se rapidamente, enquanto que os demaisrodeavam o lugar cavado. Seus corpos descomunais apareciam negros contra o céu amarelado docrepúsculo, apurando o olfato em direção ao buraco. Bourtai mantinha o papagaio no ar, como umestandarte.

Depois de uma considerável espera e um grande esforço por parte do homem da pá, este faloualguma coisa a Kazar e o chefe disse com um gesto sombrio:

- Terreno muito duro. Não sinal de água.

- Ainda não chegou à devida profundidade - disse Flandry. - Eu disse a você que podia estar àaltura de quatro homens, lembra? Da altura de homens voiskoyes, naturalmente.

- Tu dizer dois - corrigiu Kazar. O chefe estava crispado, lançando chispa s pelos olhoscavernosos e com as tremendas sobrancelhas eriçadas. - Eu achar que tu não dizer verdade.

- Bem, existe a possibilidade de que algum mago rival tenha contaminado a máquina com umfeitiço passageiro - e Flandry procurou demorar alguns minutos em explicar o sentido da s suaspalavras. - Precisarei fazer uma nova invocação mágica para expulsá-lo, se for este o caso.

- Nós não encontrar água logo, tu morrer - concluiu Kazar, sem rodeios. Flandrylançou um olhar desesperado para o céu.

Seu gesto piedoso viu-se recompensado com a aparição de uma fagulha brilhante na parte nortedo céu. Um brilho metálico aumentava de tamanho ao longe. “Oh, Senhor - pensou - permita-osver o papagaio e que compreendam”.

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Daí a pouco s instantes, dominando o próprio ruído do grupo, a nave aérea achava-sesobrevoando acima eles. Fo i quando um volskoye gritou selvagemente e avanço u para ele.Atacados de um louco terror, o grupo de selvagens se dispersou à toda velocidade, como umadebandada furiosa de fera s pela estepe . Bourtai soltou o papagaio, começou a saltar co m umaalegria louca, tirou a jaqueta e começou a agitá-la no ar.

Kazar atirou no chão o circuito transmissor, esmagando-o, e lançou-se contra Flandry rugindo.

- Tu mentir!

O selvagem tentou agarrar Flandry co m uma de su a s manoplas, ma s este agachou-serapidamente, evitando-a. O gigante tentou voltar-se para atacar novamente, mas falhou. Bourtaicontinuava brandindo freneticamente sua jaqueta no ar. Kazar, com um salto, lançou-se contra ela,prendendo-a firmemente. A pobre garota se retorceu entre as garras do bárbaro e tentou cegá-locom os dedos. Kazar sacudiu-a brutalmente, deixando-a sem sentidos e levantou-a com uma mão,tentando colocar a outra em seu pescoço para estrangulá-la.

Flandry recolheu a pá do buraco onde jazia abandonada e correu para o voiskoye Deu-lhe umgolpe com toda força em pleno ventre e Kazar soltou um urro de dor, soltando Bourtai. O danosofrido o fez vacilar por um momento, mas se refez mais rapidamente do que o terrestre poderiaimaginar. Lançou um terríve l murro na ferra- menta, cuja lâmina saltou voando pelo ar a váriosmetros de distância.

Flandry começou a se esquivar das arremetidas do selvagem, circulando ao redor de Bourtai,para evitar que ele voltasse a atacá-la. A jovem jazia sentada no solo, semiconsciente. No mesmoinstante ouviu-se um terrível impacto. Ouviu desabar perto dos seus pés aquele enorme selvagemque o perseguia para matar. Voltou-se e contemplou atônito a colossal figura de Kazar desfeitahorrivelmente no chão. Uma terríve l queimadura havia-lh e fendido o corpo do ombro até acintura . Enquanto isto, a nave aérea os sobrevoava a pouco s metro s de altura . Um nômadeassomava a uma das portas do aparelho, brandindo nas mãos um fuzil de raios iônicos.

- Acertei? - gritou.

Flandry inclinou-se sobre Kazar.

- Sim - respondeu. - Est á morto. Pobre bastardo, eu não podia imaginar qu e isto acabasseassim.

- Foi você que lançou o chamado de socorro? - perguntou o nômade.

- Sim - respondeu Flandry, ajudando Bourtai a se levantar. - Aqui estamos. Mas, quem é você?

- Pertenço ao Mangu Tunam Aproximem-se . Vou aterrissar e recolhê-los. É melhor que nosapressemos, pois este território est á cheio de ordus do Khan. E se eles nos pegarem... - e onômade fez um gesto bem expressivo, passando o dedo ao redor da garganta, enquanto emitia coma garganta um chiado que por si só expressava um fato bem concreto.

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CapítuloVII

Arghun Tiliksky avançou a cabeça para os presentes. Um raio de so l que penetrava por umapequena janela da kibitka iluminou plenamente suas feições contra a penumbra da sala. Os outroshomens, sentados no chão com as pernas cruzadas, parecia m simplesmente servir-lhe de fundo,como uma decoração.

- Sua façanha foi coisa do diabo - declarou. - Nada pode justificar ter tocado fogo na estepe.Nada de bom resultará disto.

Flandry estudou-o profundamente. Esse Noyon dos Mangu Turnan era muito jovem, mesmo paraaqueles tempos em que os Tebtengri alcançavam uma idade avançada. E além disto, sem dúvida,era um guerreiro galante e arrojado como qualquer um podia testemunhar, sobretudo na noite doincêndio da planície. Mas, sob certos aspectos, era o equivalente local de um puritano.

- O incêndio não causou nenhum grande dano, não é verdade? - perguntou o terrestre , commoderação na voz.

- E o motivo justificou o ato - afirmou energicamente Toghrul Vavilov, Gur-Khan da tribo.Acariciou a barba e trocou um olhar inteligente com Flandry. - Eu só lamento termos demoradoem resgatá-los de imediato.

Um dos chefes visitantes exclamou:

- Seu Noyon se aproxima da blasfêmia, Toghrul. Sir Dominic é da Terra! Se um senhor da MãeTerra deseja provocar um incêndio por uma ou outra razão, quem pode negá-lo?

Flandry sentiu-se orgulhoso até o rubor, mas permaneceu impassível e digno.

- Não pôde ser de outro modo - disse. - Não tinha outro plano melhor.

- E assim o Conselho foi convocado - acrescentou Toghrul Vavilov, pomposo e redundante. -Os chefes de todas as tribos aliadas da nossa devem ouvir o que este distinto hóspede tem pararelatar-nos.

- Mas... o fogo! - insistiu Arghun.

Todos os olhares dirigiram-se então para um ancião que estava sentado sob a janela da kibitka.O corpo frágil e enxuto de Juchi Ilyak estava literalmente forrado de peles. O Grande Shamanacariciou por uns instantes sua barba branca e, com um olhar penetrante, dirigiu-se aos presentes:

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- Não é esta a ocasião para disputar se os direitos de um homem da Santa Terra excederam aYassa , da qual vive Altai. A questão é mais esta: como deveremo s proceder para julgar taisargucias legais em uma próxima ocasião? Que novo direito fixaremos para sobreviver no futuro.

Arghun sacudiu sua cabeleira negro avermelhada.

- O pai de Oleg - disse - e a totalidade da dinastia de Nur Bator, antes dele, tentou conquistar oTebtengri. Mas ainda continuamos dominando as terras do Norte. E não acho que isto vá mudar dodia para a noite.

- Oh! Mas isto pode acontecer sim - respondeu Flandry, suavemente. - A menos que se façaalguma coisa, pode acontecer sim.

Lançou mão de um dos cigarros que lhe restavam e adiantou-se para que a luz iluminasse suasfeições. Seus grandes olhos cinzas e o longo e afilado nariz eram algo po r demais exótico noplaneta e causavam uma certa impressão.

- Deixem-me resumir a situação tal como a entendo - continuou Flandry. - Ao longo de toda suahistória, os altaianos têm usado o poder da química e têm armazenado a energia solar. Os únicosgeradores nucleares que existem estão localizados em Ulan Baligh. As guerras internas que Altaisofre u confinaram també m as armas de energia elétrica e química à sua mínima expressão. Aeconomia do planeta não poderá sustentar uma guerra atômica, ainda no caso em que os feudos eas disputas fronteiriças que começaram tais distúrbios valessem a pena tal destruição. Até aqui,vocês os Tebtengri sempre foram suficientemente fortes, militarmente, para conservar e manter asterras do Norte. Mesmo que o resto do planeta se aliasse contra vocês, não seria m capaze s deconseguir força bastante para arrojá-los desta zona de pastos sub-árticos, estou certo?

Todos concordaram com Flandry, com diversos gestos. Flandry continuou:

- Mas tal situação agora foi alterada. Oleg Khan está conseguindo ajuda do exterior. Vi commeus próprios olhos muitas de suas novas armas. Aparelhos potentes e modernos qu e podemalcançar vocês aqui mesmo, ou que podem subir mais além da atmosfera para cair como um raioem qualquer parte; carros de combate cujas couraças não podem ser perfuradas por seus melhoresexplosivo s químicos; projéteis que pode m devastar uma área tão vast a que nenhuma forma dedispersão poderia salvá-los. No momento, a ajuda conseguida de equipamentos modernos de taiscaracterísticas não é muito grande. Mas chegará muito mais dentro dos próximos meses. QuantoOleg tiver o suficiente para esmagá-los, ele o fará. E o que é pior, no meu ponto de vista, é que eleterá aliados que não são humanos.

O conselho estremeceu, impressionado. Somente Juchi, o Grande Shaman, permaneceu calmo,observando Flandry com olhar impassível. Um cachimbo de barro entre suas mãos enviava umfumo acre para o teto.

- Nós também temos amigo s que não são humanos - disse serenamente. - Quem são essascriaturas que Oleg invocou?

- Merseianos - responde u Flandry. - São uma gente de outra raça imperial, de um mundo

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distante; e os humanos também estão no caminho da s sua s fabulosa s ambições de domínio.Durante algum tempo temos coexistindo, com uma paz nominal, pelo menos; mas atualmente elesestão assassinando, cometendo todo tipo de brutalidade, subvertendo tudo. Tentam achar um pontofraco para su a conquista . Decidira m que Alta i seria uma base extremamente útil para seusdesígnios. Uma invasão abert a seria custosa, especialmente se a Terra tivesse notícia s de umaoperação tão massiva e se provavelmente interferisse . Mas há uma sutil aproximação, da qualAltai deseja a todo custo que a Terra não tenha a menor informação. Os merseianos abastecerãoOleg com ajuda suficiente para que possa conquistar o planeta em sua totalidade . Em troca, umavez isto conseguido, deixarão seus técnicos tranquilos. Os altaianos se verão obrigados a servircomo escravos e a morrer arrebentado s pelo trabalh o forçado para construir suas fortalezasmilitares. Todo est e mundo se converterá em uma gigantesca rede de instalações militares, eentão, somente então, os merseianos virão, porque então já será tarde demais para a Terra.

- O próprio Oleg conhece todos esses planos? - perguntou Toghrul, com ar preocupado.

Flandry encolheu os ombros.

- Não de todo, suponho. Oleg Yesukai confia que vai realizar um bom negócio. Como outrostiranos marionetes, uma manhã ele despertará e verá que as rédeas que ele maneja já o terãoamordaçado também. Eu já vi isto acontecer outras vezes em muitos outros lugares.

Toghrul retorceu nervosamente os dedos.

- Acredito em você - disse. - Nós temos indícios, temos ouvido rumores, conseguido retalhosde informações procedentes de viajantes e espiões. O que você nos disse agora vem a acrescentare esclarecer um pouco este quebra-cabeças secreto. Mas, o que podemos fazer? Podemos avisaros terrestres?

- Sim, sim, chamar os terrestres, avisar à Mãe dos Homens! - gritou em coro o Conselho.

Flandry sentiu como a paixão surgia naqueles guerreiros veteranos que tinha ao seu redor. Sabiatambé m que os Tebtengri menosprezavam a religiã o de Subotai o Profeta, uma da s principaisrazões pela qual as tribo s do Sul lhes eram hostis. Est e povo havia formado a su a própriareligião, que era uma espécie de panteísmo humanístico. Flandry não quis explicar-lhes o que aTerra era a tal respeito naquela ocasião. Mais valia que acreditassem que todos os terrestres eramheróis ou santos, com sua ideia retrospectiva e idealizada da Santa Mãe Terra. E desde então nãose atreveu a falar-lhe s do s se us imperadore s imbecis e megalômanos, de aristocra tas semescrúpulos, das cidades desleais, de tanta gente servil e desonesta e dos vícios tradicionais doImpério. Era infinitamente melhor que aquele s bravo s guerreiro s conservasse m se u santo amorpela Mãe dos Homens.

- A Terra está mais distante daqui que de Merseia - explicou Flandry. - Mesmo a nossa basemais próxima está mais distante que a sua mais próxima. Não creio que haja muitos merseianosem Altai nest e momento, ma s co m certeza Ole g dispõ e de uma rápida nave espacial parainformá-los se alguma coisa correr mal. Suponhamos que pudéssemos informar tais fatos à Terra eOle g soubesse dist o . Qu e imagina m você s que ele faria ? Todo s sabemos. Oleg enviaria

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imediatamente um aviso à base mais próxima dos merseianos. Eu se i que há uma grande forçamilitar estacionada ali permanentemente e duvido muito que os merseianos abandonem tolamentese us investimento s realizados em Altai. Para começar, despacharia m rapidamente sua frotainterplanetária para Altai, varreriam os território s do s Tebtengri co m bombas nucleares e osexterminariam para sempre. E quando outra frota terrestre pudesse chegar a Altai, os merseianosjá seriam os senhores absolutos do planeta. A mais dura tarefa em uma guerra espacial é desalojaruma frente inimiga bem entrincheirada em um planeta e sob as presentes circunstâncias logísticas,ist o pode se r impossível. Ma s mesmo qu e pudessem vir rapidamente, alterando o horário deoperaçõe s do s merseianos, e os terrestres atacasse m com terríveis bombas nucleares, Altai setransformaria em um deserto radioativo, como consequência fatal de semelhante processo.

Reinava um silêncio absoluto no Conselho. Os componentes da reunião achavam-seprofundamente afetados e olhavam para Flandry com o horror que ele já havia visto antes e que secomunicava por si mesmo.

Flandry continuou, imperturbável.

- Assim pois, no momento o único objetivo racional para nós é enviar uma mensagem secreta.Se Oleg e os merseianos não suspeitarem que a Terra conhece seus projetos, não se apressarão.Em lugar de Merseia, deve ser a Terra que chegue aqui repentinamente, fortemente armada, ocupeUlan Baligh e estabeleça posições subterrâneas e pontos de defesa orbitais ao redor do planeta.Sob tais condições, Merseia não pensará em lutar, em absoluto. Descartaria logo Altai e seuspropósitos. Eu conheço sua estratégia básica o bastante para predize r que isto acontecerá comabsoluta certeza. E, como vocês compreenderão, não voltarão a encontrar condições de fazer deAltai uma base ofensiva contra a Terra, nem a Mãe Terra a usará tampouco como base de agressãocontra eles.

Arghun levantou-se. Entusiasmado e radiando, gritou:

- Então a terra nos possuirá ! Voltaremos novamente à grande família humana! Enquanto osTebtengri exteriorizavam sua satisfação por tal esperança, Flandry fumava outro cigarro, pensativo.“Depois de tudo - pensou - um estado provincial não teria porque altera r demais as vida s dosaltaianos. Haveria uma base militar, um Governador Imperial, uma paz forçada entre as tribos ealguns impostos razoáveis. E eles poderiam viver melhor. Ter prosélitos em outro sentido não erade grande valia para o Império Terrestre.”

Juchi, o Grande Shaman, falou em tom repousado e penetrante:

- Guardaremos silêncio. Precisaremos sopesar o que devemos fazer.

Flandry aguardou uns momentos, até que depois de um prolongado silêncio pôde continuar oexame da situação.

- Esta é a grande questão: Vocês têm mais alguma coisa para me perguntar? - inquiriu.

- Que tal os betelgeusianos? - perguntou Toghrul sombriamente.

- Duvido que possamos conseguir enviar nossa mensagem com sua mediação - respondeu um

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do s gurkhans. Se eu fosse Oleg o Maldito, poria uma guarda ao redo r de cada indivíduobetelgeusianos, assim como em cada nave espacia l dessa gente, até que o artigo qu e saia doplaneta, cada pele , cada perigo, desaparecesse . Inspecionaria cada objeto; enfim, cada um dosartigos que são exportados, antes de serem carregados.

- Não há porque temer isto - continuou Flandry. - Estou certo de que os merseianos não desejamacometer por si mesmos uma tarefa tão incerta, que seria a ocupação imediata de Altai; a menosque estejam certos de que a Terra tem conhecimento dos seus projetos. Eles têm muitos assuntospara resolver em outros lugares do seu Império.

- Além disso - destacou Juchi, - Oleg tem orgulho. Não cometerá a idiotice de cair no ridículoperante seus amos, pedindo socorro urgente simplesmente porque um fugitivo se extraviou noKhrebet.

- De qualquer modo - interveio Toghrul - ele sabe quão impossível é para o Orluk Flandrydeslizar uma informação para o exterior. Aquelas tribos que não pertencem ao nosso Shamanatepodem estar contra Oleg, mas detestam muito mais a nós que traficamo s com os Habitantes doGelo e desprezamos seu estúpido Profeta. Não conseguiremos ajuda alguma de algum meridional.Mas, mesmo supondo que algum conseguisse passar nossa mensagem em uma pele, ou deslizandouma missiva escrita em um fardo, ou micro-escrito em uma gema, e conseguisse burlar osinspetores de Oleg, a carga com a mensagem bem poderia ficar esperando meses inteiros em umarmazém qualquer dos betelgeusianos, antes que casualmente reparassem nele.

- Não dispomos de muitos meses antes que Oleg arrase este país e os merseianos cheguem -concluiu Flandry, sombriamente.

Esperou ainda um pouco mais, observando as mais diversas opiniões dos chefes do Tebtengri,todos eles planejando projetos impraticáveis.

Levantou-se cansado.

- Preciso de um pouco de ar fresco e de uma chance para pensar em algo interessante - disse.

Juchi movimentou gravemente a cabeça. Arghun também se levantou.

- Eu também vou.

- Se é que o terrestre deseja tua companhia - disse Toghrul - podes mostrar-lhe nosso ordu, jáque ele saiu diretamente do leito para esta conferência.

- Obrigado - respondeu Flandry, com ar ausente.

Foi para o exterior descendo uma pequena escada. A kibitka onde haviam estado reunidos eraum enorme vagão rodante. O espaço era distribuído austeramente, como um quartel. No teto, comono s demais veículo s grandes e pequenos, havia uns coletore s de energia sola r instalados,dirigidos permanentemente para Krasna. Com grandes acumuladores assim carregados, dispunhamda reserva de força elétrica necessária para sua vida nômade. Tais fatos davam àquele povoerrante o aspecto de uma imensa manada de tartarugas espalhadas pelas colinas.

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O Khrebet não tinha uma grande extensão. Era formado po r uma série de ladeira s cheia s demoitas espinhosas cinza-esverdeado e de capins secos, que ascendiam para o Norte, onde ficavamsepultados em alguma parte mais além daquele horizonte, sob a capa glacial dos gelos eternos.Um vento gelado silvava quase que constantemente na direção Sul, fazendo Flandry tremer de frioapesar da sua pesada roupa de boas peles que lhe haviam feito sob medida. O céu estava muitopálido naquele dia, quase branco. Os anéis do planeta apareciam muito baixos e se desvaneciampara o Sul, onde as colinas iam morrer na estepe.

Até onde Flandry podia alcançar com a vista, os escutas do Mangu Turnan montava m guardapermanente, serviço atribuído a garotos jovens montados em varyaks. Não havia gado maior. Osgrandes mamíferos da Terra não podia m se r facilmente levados a outro s planetas; os roedoreseram mais resistentes e adaptáveis. Os primeiros colonizadores levaram coelhos, que cruzaram emutaram com o emprego dos usuais métodos da genética da época.

Aquele antepassado distante dificilmente seria reconhecido naquela enorme best a quase dotamanho de uma vaca . Pareciam mais gigantescos coelhos das Índias de cor castanha. Por outrolado, Flandry também pôde observar grandes manadas de avestruzes transformadas.

Arghun apontou com um gesto de orgulho:

- Eis aqui a kibitka com as escolas e a biblioteca do ordu - disse. - Esses garotinhos sentadosno chão perto dela estão aprendendo o alfabeto.

Aquilo nã o surpreende u Flandry, pois já imaginava que todos aquele s qu e conduziam osveículo s mecanizados não podia m ser analfabetos, nem os piloto s qu e dirigiam os aparelhosvoadores antigrav (baseados na antigravidade) e qu e patrulhava m constantemente sobre suascabeças. O nomadismo era perfeitame nte compatível co m uma educação adiantada. Commicroimpressões, podiam levar milhares de volumes ao longo das suas viagens.

Arghun apontou para os grandes vagões com rodas, muitas vezes organizados em trens, e quelhes servia m de arsenais, clínicas, armazéns de maquinaria e pequenas fábricas têxteis e decerâmica. As família s pobres não tinham kibitka; acolhiam-se nos yurts, tenda s de um grossofeltro em forma de cúpula, montadas sobre plataformas motorizadas. Mas ninguém parecia doenteou faminto. Não era uma nação empobrecida que arrastava suas ruínas em uma caravana rodante esim uma forma necessária de viver adaptada ao meio. E todos os componentes da grande tribo,fêmeas ou varões, constituíam, cada um deles, uma unidade militar, civil e econômica; e para istoeram devidamente treinados. Todo mundo tinha que trabalhar e combater. Embora existisse umtipo desigual de riqueza, ninguém ia sem o necessário.

- De onde vem o metal que vocês usam? - perguntou Flandry.

- Os terrenos de pastoreio de cada tribo incluem também algumas minas - respondeu Arghun. -Em nosso ciclo anual com os rebanhos, empregamos nelas algum tempo, cavando e fundindo osminerais. Em muitos lugare s do circuito nós coletamo s grã o semi-selvage m semeado no anoanterior. Também extraímos petróleo de poços, o qual tratamos e refinamos em fábricas robôs. Oque nós não produzimos, trocamos ou adquirimo s de outro s que as têm. A principa l razão do

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Tebtengri ter sobrevivido tanto tempo, a despeito da oposição que vem sofrendo, é que entre suasvárias tribo s conta com todos os recurso s naturais em suas terra s circumpolares. De fato, noKhrebet está uma das poucas jazidas realmente ricas de minério de ferro de todo Altai.

- Parece uma vida virtuosa a que vocês levam - sugeriu Flandry.

O leve humor da sua observação não escapou a Arghun, que se apressou a responder.

- Oh, também temos nossas diversões, Orluk. Festas, esportes, partidas diversas, as artes e aGrande Feira de Kivka, onde as tribos se reúnem e... - Arghun se deteve subitamente.

Bourtai se aproximava passeando e Flandry parece u sentir o isolamento da jovem. Naquelacultura, a mulheres não eram muito inferiores aos homens. Bourtai podia ir aonde quisesse, sendoalé m disso considerada como uma heroína por haver trazido o terrestre até eles. Ma s se u clãhavia sido exterminado e ainda não lhe tinham designado trabalho algum para fazer.

Bourtai viu os dois homens e correu ao seu encontro.

- O que foi decidido? - perguntou ansiosamente.

- Nada ainda - Flandry tomou as mãos dela entre as suas. Agora estava calmo e apreciou agrande beleza de Bourtai e sorriu com aberta simpatia. - Há muitos anos eu tenho vagado pelomundo, esperando encontrar o que você representa para mim. Agora que achei, minhas esperançasforam bem recompensadas.

Uma forte emoçã o refletiu-se nas bela s feições de Bourtai. Ela , que não era loqua z pornatureza, baixou o olhar e murmurou:

- Não sei o que dizer...

- Não precisa dizer nada. Somente ser como é.

- Eu não sou ninguém. A filha de um homem morto, meu dote perdido há muito tempo e você éum Orluk da Mãe Terra... Não está certo, não é justo!

- Acha que ele se importa com seu dote? - interveio Arghun. E sua voz denotava um violentoesforço.

- Vocês dois estiveram conversando? - inquiriu Flandry.

- Sim. Estivemos conversando por um bom tempo esta manhã - respondeu Arghun com rigidez.

Arghun procurou esconder seu gesto de dignidade atrá s de uma máscara impassível. Flandryolhou-o longamente e encolheu os ombros.

- Vamos, será melhor que voltemos ao Kurultai.

Flandry nã o soltou a jovem, pelo contrário, pô s se u braço sob o de Bourtai. Ela andavasilenciosamente e Flandry notou que a garota tremia ligeiramente por baixo das roupas. O ventosibilante revolvia sua cabeleira negra.

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Quando chegaram perto da kibitka do Conselho, as portas se abriram e apareceu Juchi Ilyak, empé, imóvel e majestoso

- Orluk - disse ele a Flandry, - talvez exista uma bo a solução para todos nós. Pelo menosbuscaremos outro sábio conselho. Você se atreveria a vir comigo ao Povo do Gelo?

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CapítuloVIII

Trengri Nor, o Espírit o do Lago, situava-se muito longe no Norte. Quando Flandry e Juchidesceram do seu aparelho ainda era dia, embora os anéis do planeta estivessem visíveis dali.Durante a noite, segundo disse o Shaman, se notaria m como um fraco brilho, visíve l sobre ohorizonte meridional. Krasna aparecia como o vestígio de uma brasa avermelhada e os camposnevados apareciam tingidos de vermelho. À medida que o sol se ocultava nas sombras, um véupúrpura deslizava de um temporal a outro.

Flandry jamais havia visto semelhante quietude, nem mesmo no espaço, nos voos siderais, emque sempre se nota pelo menos o leve zumbido da maquinaria que serve como referência parasaber se está vivo. Ali o ar parecia gelar até os sons. As lufadas de vento procedentes do polosopravam suavemente, arrastando com elas finíssimo s cristais de gelo qu e brilhavam edeslizavam sobre os banco s de neve, tão suavemente que não se podia ouvi-lo . Forrado até oexagero com boas peles e com o rosto coberto de uma capa de gordura para proteger-se daquelafria atmosfera, sentia que sua própria respiração gelava no rosto. Pareceu-lhe que, estranhamente,podia cheirar o lago, mas não estava certo. Não podia da r muito crédito a quaisquer do s seussentidos terrestres neste terrível lugar invernal.

Com um inesperado vozeirão, que soou como um disparo, disse:

- Eles sabem que estamos aqui?

- Oh, sim, claro. Eles conhecem nossa rota e logo se reunirão conosco – respondeu Juchi.

O Grande Shaman olhou para o Norte, para as ruínas que se achavam em pé nas margens dolago. A neve escondia um pouco os enormes muros de mármore, branco sobre branco, onde a luzcrepuscular parecia sangrar através das colunatas destroça- das. O hálito do Shaman começava acongelar na barba.

- Suponho que reconhecerão os sinais do nosso aparelho - disse Flandry. - Porque, o queaconteceria se o Khan enviasse um aparelho disfarçado?

- Isto já aconteceu algumas vezes no tempo do pai de Oleg. Seus aparelhos foram detidos muitoantes de chegarem até aqui, no Sul, por algum meio desconhecido. Os Habitantes do Gelo estãosempre alertas.

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Juchi levantou os braços e começou a fazer estranhos barulhos, com a cabeça lançada para tráse com os olhos fechados, enquanto uma misteriosa litania brotava dos seus lábios como um suavecanto.

Flandry não tinha a menor ideia se o ancião invocava algum ritual supersticioso, se praticavaalguma cortesia ritual ou se fazia sinais para as pessoas da geleira. Havia visto muitas coisasraras em sua vida. Esperou, enquanto abarcava com o olhar aquele fantástico panorama.

Mais além das neves, para o Oeste, ao longo da ribeira do lago crescia um bosque. Um bosquede árvores brancas e débeis, com uma intricada ramagem de singular disposição geométrica, quebrilhava co m luminoso s lampejos, co m o se fossem joias. Suas tênues folhas vibravamcontinuamente, dando a sensação de que toda a floresta fosse de cristal. Flandry nunca havia vistouma paisage m da natureza em tamanha quietude. A neve entre aquele s fulgurantes troncos eraatapetada de plantas cinzentas e achaparradas. As rocha s que ali apareciam estavam quasesumidas sob tal vegetação de líquens. Se o lugar não fosse tão frio, aquilo teria sugerido uma ricavegetação tropical. O lago se perdia de vista, com sua cor azul pálido, entre os bancos de neve.Conforme a tarde se adiantava sobre as águas, a neblina que flutuava sobre o lago se tornavaesbranquiçada.

Juchi havia-lhe explicado a base químico-física da vida pola r de Altai. Originalmenteprotoplasmáticas e terrestroides, as formas originais viram-se obrigadas a se adaptarem, emidade s pretéritas, à temperatura progressivamente decrescente. Havia m feit o ist o mediante asintetização do metanol. Uma mistura de partes iguais de água e metanol permanecia fluida abaixodo s quarent a graus negativos. Quando finalme nte se gelou, a células não explodira m sedesintegrado em formas de cristais de gelo, e sim, simples e gradualmente , mudara m para umaforma lodosa , mas fluida. A vegetação e os animais mais primitivo s permaneceram vivosfuncionalmente, até cerca de -70º c, sob essa temperatura ficaram em forma de vida latente, semmorrer. Os animais superiores, sendo homotérmicos, não suspendera m sua animação até que oambiente alcançou os 100 graus abaixo de zero.

Os lagos polares e os rios se carregaram igualmente de álcool, por acumulação, procedentes deresíduos orgânico s morto s da s espécies aquáticas. Dest a forma , permaneciam fluidos até osmeados do inverno. O principa l problema da vida na s regiões glaciais era achar minerais. Asbactéria s fora m proporcionando-os. Ali onde as rochas apareciam, os animais viajariam atécarcomê-las e absorve r part e da su a constituiçã o mineral e, ao voltarem aos seus bosques emorrer, iriam se formando os átomos pesados. Mas no geral, a ecologia de Altai havia se formadosem eles. Nenhum animal nativo, por exemplo, tinha ossos, tendo em seu lugar uma estruturaesquelética de cartilagens e quitina, muito diferentes, claro, dos animais da Terra.

O relat o de Juchi teria sido plausível e interessante em uma confortável kibitka , commicro-textos à mão para consultar detalhes quantitativos; mas ali, sob aquelas neves de um milhãode anos, observando o cair da noit e como uma sombra entre as árvore s de cristal, entre asciclópicas ruínas e ouvindo o canto misterioso do Grande Shaman sob um vasto céu, descobriuque as explicações científicas eram somente fracas tentativas de se aproximar da verdade.

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Uma das luas do planeta surgiu no espaço e Flandry viu algo flutuar e se deslocar ao amparo dasua luz acobreada. Os objetos, uma imensa aglomeração de esferas brancas, atingindo diâmetrosdesde uns poucos centímetros até o tamanho de uma enorme nave aérea, se aproximavam deles.Uns grandes tentáculos se projetavam por baixo daqueles globos flutuantes.

Juchi interrompeu sua litania.

- Ah! São as aeromedusas. Os Habitantes do Gelo não estão muito longe.

- O que? - perguntou Flandry admirado.

O frio se fazia cada vez mais intenso, até morder-lhes as carnes através do couro e das grossaspeles.

- É o nome que lhes damos - acrescentou o Shaman. - Parecem organismos primitivos, masatualmente estão bem evoluídos, co m órgãos do s sentidos e co m cérebro. Elas eletrolisam ohidrogênio a partir da água para se inflarem e sua propulsão aérea é através do ar, que forçampara trás. Alimentam-se de numerosas caças menores que vão se chocar contra seus tentáculos,insensivelmente. O Povo Gelado as domesticou.

O Shaman também começou a sentir calafrios.

- Nós os humanos - continuou Juchi - não temos ideia , realmente, se os Habitante s do Gelodegeneraram ou não. Me atrevo a dize r que a inteligência apareceu em Altai, principalmente,como resposta à piora das condições do planeta, ou seja, ao esquentamento de Krasna no últimomilhão de anos, depois da biosfera haver se adaptado às baixas temperaturas. Superficialmenteapareceria uma nova civilização qu e depois entrou em colapso. A escasse z de metais e oencolhimento das calotas polares pode ter sido a causa. E, não obstante, não é o que afirmam ospróprios habitantes. Eles não demonstram sentir a perda de um glorioso passado. Até onde possoimaginar, creio que eles abandonaram deliberadamente sua civilização material antiga, depois deterem achado métodos melhores.

Dois seres se aproximavam pelo bosque.

À primeira vist a pareciam anões forrado s de pele s brancas. Quando estava m mais perto,podiam-se observar outro s detalhe s da su a rechonchuda constituição. Tinham pé s longos emembranosos, co mo para se adaptarem elasticamente à superfície nevoenta, co mo pequenosesquis. Nas mãos tinham três dedos opositores a um dedo polegar, inserido na metade da munheca.As orelhas pareciam penachos circulares forrados de plumas. Tinham olhos muito negros; e umafeição simiesca, de triste olhar, emergia sob uma peluda cabeleira. Não pareciam respirar comoo s seres humanos, já qu e se us corpos achavam-se a uma temperatura inferior a zero graucentígrado . Um dele s levava em uma mão uma lâmpada de pedra da qual saía uma chama deálcool e na outra um bastão branco, complexamente cinzelado. De uma forma indefinível, asmedusas aéreas pareciam ser guiadas por tão estranho instrumento.

Acercaram-se, fizeram alto e esperaram. Nada se movia, exceto o ve nto que agitavasuavemente suas peles e a chama da lâmpada. Juchi também permaneceu imóvel e Flandry tratou

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de seguir a conduta do Shaman, embora seus dentes se chocassem pelo frio agudo do ambiente.Havia visto muitas forma s de vida em outro s mundos, mas tudo aquilo era de uma estranhezaquase irreal.

O so l se escondeu. Com um ar tão tênue e se m poeira, não houve crepúsculo. A noit e caiusubitamente e as estrelas brilhavam distantes no espaço naquela repentina escuridão. A borda dosanéis de Alta i pintava um arco remoto no horizonte distante. A lua esparziu um esplendoracobreado sobre a neve , povoando o bosqu e co m sombra s fantásticas. Um meteoro cruzoufugazmente o céu em um relâmpago silencioso. Juchi pareceu tomar o fenômeno como um sinal ecomeçou a falar. Su a vo z parecia gelada co mo se ele estivesse congelado, e não pareciaabsolutamente qu e sua s palavras tivessem a menor entonação humana . Flandry começou aentender o que era o Shaman e porque ele presidia todas as tribos aliadas das terras do Norte.Poucos homens, com certeza, teriam tido a inteligência necessária para dominar a linguagem dosHabitantes do Gelo, e fazer tratos com eles. Uma grande parte da força do Tebtengri residia emsuas relações com esses seres. O metal era trocado por petróleo, objetos curiosos e substânciasplástica s procedentes do Trengri Nor e sustentava m mutuamente a defesa contra as incursõesaéreas do Kha Khan.

Um habitante replicou e Juchi voltou-se para Flandry, para ir traduzindo a conversa.

- Eu contei a eles quem você é e de onde vem, Orluk. Não estão surpresos com isto. Antes defalar-lhes do seu requerimento, eles já pareciam conhecer o assunto. Não sei exatamente a palavraapropriada , mas é algo que tem a ver com as comunicações à distância, e me disse que sabementrar em contato com a Terra , se m importar a distância, alguma coisa assim como se fosseatravés dos sonhos.

Flandry ficou atônito. Realmente, isto poderia ser assim. Quanto tempo fazia que os homens seachavam envolvidos em sua mente por algo mais rápido que a luz em seu interior? Um punhado deséculos. E que era aquilo comparado com o Universo? Acreditou sentir, subitamente, não somenteem seu cérebro, como em todo seu ser, como aquele planeta era antigo.

- Telepatia? - aventuro u Flandry - Nunca ouvi fala r de uma experiência telepática com tãotremendo alcance.

- Não. Não é isto o que os Habitantes do Gelo querem dizer. Se fosse assim, saberiam tudo oque concerne à situação dos merseianos e nos teria m avisado. Seu conceito é algo que eu nãoconsigo entender completamente - e Juchi acrescentou, com muito cuidado: - De fato, me deram aentender que qualquer poder que eles possuem é inútil para nossos propósitos.

Flandry suspirou profundamente.

- Eu devia saber. Uma mensagem telepática para a Armada Imperial teria sido simples demais.Não há oportunidades para heroísmos fáceis.

- Os Habitantes dizem - prosseguiu Juchi - que ele s se libertaram há muito tempo dessespesados edifícios e máquinas que os humanos ainda usam. Ficara m assim livre s para meditar,seguindo o pensamento puro, para uma meta desconhecida, muito mais distante do que podemos

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imaginar. Mas, consequentemente, perdera m muito s podere s materiais. Pode m faze r frente aqualquer agressão de Ulan Baligh, mas estão desarmados contra as nave s do espaço exterior econtra as armas atômicas dos merseianos.

Meio oculto pela luz acobreada da lua, um aborígene falou. E Juchi traduziu ao mesmo tempo.

- Dizem que não sentem temor pela morte. Se Merseia os exterminasse, eles o aceitariam comcalma. Todas as coisas têm um fim, contudo nada se acaba realmente. Entretanto, prefeririam queseus descendentes, as feras e as plantas dos bosques gelados, ainda pudessem viver uns quantosmilhões de anos mais, para poderem se aproximar da Verdade. Eles, como nós os Tebtengri, nãose importam em serem clientes do Império Terrestre. Para eles, qualquer estado político carece designificado. Nunca tivera m nada em comum com os homens para se perturbare m por qualquerGovernado r Imperial. Sabe m que a Terra não quererá causar-lhes danos gratuita- mente e queMerseia o faria, no caso de qu e se j a provocada est a guerra de frotas espaciais qu e vocêdescreveu. Portanto, a Cidade do Gelo está disposta a nos ajudar com os meios que disponham.Mas no momento não conhecem solução alguma.

- Estas duas pessoas falam em nome de toda sua raça?

- E dos bosques e das águas - respondeu Juchi com a maior solenidade.

Flandry imaginou toda uma biosfera constituída por um só e grande organismo.

- Se você diz assim, aceito sua palavra. Mas se realmente não podem nos ajudar... Juchi deixouescapar um suspiro de homem velho, como o vento sobre as acres águas do lago.

- Eu esperava que pudessem fazê-lo. E agora, você tem algum novo plano para nós?

Flandry ficou calado por uns momentos, sentindo as terríveis pontada s do frio penetrante nocorpo e finalmente disse:

- Se as únicas nave s espaciais de Altai se encontram em Ula n Baligh, evidentemente nósdevemos penetrar na cidade de algum modo e enviar nossa mensagem. Esse povo tem algum meiode contato secreto com os betelgeusianos?

Juchi traduziu a pergunta.

- Não - traduziu em seguida. – Não, estando os comerciantes betelgeusianos estritamentevigiados. Seu senso especial de premonição os adverte que isto é assim.

O portador da lâmpada se adiantou, de forma que a chama azulada iluminou se u semblante.Poderia ler, como humano, qualquer emoção refletida naqueles olhos? Então falo u em suamisteriosa linguagem. Juchi escutou.

- Poderiam nos levar à cidade se m sermos detectados em uma noit e muito fria - traduziunovamente o Shaman. - As medusas podem nos levar pelo ar. Uma medusa é fria demais para serdetectada por algum aparelho de raios infravermelhos. Um homem sozinho entre seus tentáculosseria pequeno demais para ser detectado por qualquer instrumento na terra.

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O Shaman fez uma pausa.

- Mas de que nos serviria? Se queremos ser introduzidos em Ulan Baligh, isto pode ser feitosimplesmente a pé, pelas ruas, convenientemente disfarçados. E uma nave aérea seria detida emqualquer ponto do tráfego fora da cidade e inspecionada.

Flandry elevou os olhos para o cé u refulgente de estrelas, com a luz da lua batendo-lhe emcheio nos olhos. Tinha todos seus nervos tensos. Quando finalmente falou, o fez lentamente, comose fizesse uma recapitulação.

- Você se lembra, Juchi, quando falamos sobre a possibilidade de falar por rádio com qualquernave dos betelgeusianos, quando esta se achasse ainda dentro da atmosfera? Você me disse que osTebtengri não dispunham de equipamento suficiente, com a potência necessária para transmitir tãodistante. E de qualquer modo os khanistas poderiam nos ouvir. Tampouco poderíamos transmitircom uma força fraca, pois não alcançaríamos a nave espacial, que escaparia do nosso alcance emcoisa de segundos, embora nossa transmissão pudesse localizá-la.

- Sim, eu me lembro.

- Bem, suponhamos uma nave espacial qu e seja amiga e qu e se aproxime do planeta sematerrissar. Poderiam os Habitantes do Gelo se comunicar com ela?

Juchi perguntou e depois respondeu:

- Não. Eles não têm equipamentos de rádio em lugar algum. Mesmo no caso que tivessem, suatransmissão seria detectada como a nossa. O risco parece grande, Orluk. Nenhum aparelho podepassa r sem o conhecimento do Khan, porque há satélit e s detectores em órbit a . Mesmo atransmissão a partir de um aparelho sofre uma certa dispersão ao se chocar com o solo. O riscodos khanistas receberem nossa transmissão parece excessivo.

- Sim, acho que sim.

O olhar de Flandry continuou buscando em direção ao céu até encontrar a estrela

Betelgeuse, como uma tocha entre as constelações.

- Poderíamos saber se tal nave espacial estivesse nas proximidade s do planeta? - perguntouFlandry.

Juchi conferenciou por um momento com os Habitantes da Cidade do Gelo.

- Sim - disse. - Poderíamo s se r avisado s sobre tal presença. Nossos amigo s sugere m quepoderíamos colocar homens, transportado s por medusas, que sobrevoasse m Ula n Baligh a umagrande altura sem serem notados. Esses passageiros iriam providos de receptores de rádio, quepoderiam interceptar a conversa entre a nave e o controle do aeroporto espacial. Isto serviria?

Flandry fez um gesto de satisfação.

- Sim, pode ser útil - então pôs-se a rir alegremente.

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Talvez semelhante som jamais tivesse sido ouvido antes em toda Trengri Nor. Os Habitantes doGelo recuaram temerosos, como pequenos animais assustados. Juch i continuou impassível nassombras. Somente Flandry, com a cabeça levantada para o resplendor acobreado da lua ria comoum garotinho.

- Pelos céus! - gritou - Vamos tentar!

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CapítuloIX

Uma terrível tempestade de outono se abateu, vinda do polo, lançando continuas cortinas deneve em sua passagem através de toda da estepe e alcançando Ulan Baligh perto da meia-noite.Em coisa de minutos, os tetos vermelhos da cidade se perderam de vista.

Próximo a uma janela iluminada, um homem observava a avalanche branca da neve rugindo deuma zona escura a outra. Mas, distanciando-se uns quantos metros, empurrando um monte de nevej á formado à altura dos joelhos, voltou a sumir na escuridão. Ficou como um cego, batido pelatormenta e envolto por seu imponente ruído.

Flandry havia descido da alta atmosfera. Aquele frio havia lh e penetrado de tal forma quepensou não voltar mais a sentir o calor em sua vida. Apesar do seu equipamento de oxigênio, seuspulmõe s parecia m gelados. Viu a tormenta de cima como um borrão negro mosqueado . Osprimeiros floco s gelado s sobre Ozero Rurik foram arrastados até o limit e setentrional. Ostentáculos da medusa o sustentavam como em uma rede, viajando como sob um balão gigantescoque desce u do céu até o oest e da cidade. Após ele vinham outra s medusas, uma frota inteiradaqueles balões vivos, que se retorciam ao longo das correntes de ar para evitar a detecção doradar. Adiante dele havia outra levando um habitante do gelo na rede do s seus tentáculos eembrulhado em um grande bloco de gelo para suportar aquela tormenta tropical. Uma vez rodeadopela neve , Flandry pôde notar quanto se havia esquentado o ambiente, em comparaçã o com astemperaturas anteriores. Descendo pouco a pouco, a iluminação avermelhada da Torre do Profetaapareceu à vista, aumentando sua coloração à medida que se aproximava.

Flandry procurou tateando pelo longo tentáculo injetor da medusa e colocou-o no ombro comouma enorme mangueira de jardim. A radiante luz da Torre ma l lh e permitia ver alguma coisaatravés dos flocos de neve. Outra medusa se aproximo u levando um enorme tanque de pintura.Flandry conseguiu que encontrassem o orifício, onde introduziu rapidamente o tentáculo injetor.

- E agora, inteligência ártica, entenda o que preciso de ti! Vamos, me ajude!

O vento respondeu-lhe com um rugido. Profunda e amplamente, ouviu o so m de uma bombaaspirante-propelente: a respiração da medusa . Flutuando a uma altura conveniente, dirigiu suanave viva para a grande muralha de mármore onde estava esculpida a estátua da Sagrada Escriturado profeta Subotai. Uma letra, grande como uma casa, e negra sobre o fundo branco do mármore,apareceu-lhe subitamente. Ali estava seu objetivo. Apontou com o tentáculo e lançou um potentejato de pintura. O primeiro jato verde desviou-se, arrastado pelo vento. Corrigiu a pontaria e viu

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finalmente a pintura estampada na colossa l muralh a marmórea. A pintura parecia permanecerlíquida, mesmo àquela temperatura , mas não importava: era espessa o suficiente e estaria secaantes da manhã seguinte. O primeiro tanque foi totalmente usado. Flandry lanço u mã o de outro,transportado por outra medusa , desta vez da cor azul. Todos os Tebtengri haviam trabalhado nafabricação daquela tintura , que reunia os matize s do arco-íris. Flandry espero u que tivesse osuficiente. Havia bastante. Esteve a ponto de cair esgotado pelo frio e pela fadiga, antes determinar o trabalho. Ainda assim, quando o enorme letreiro estava acabado, não pôde resistir àtentação de acrescentar-lhe um sinal de exclamação.

- Vamos! - ordenou por sinais ao habitante do gelo. Este compreendeu o aviso e pôs novamenteem marcha a frota de balões vivos. Logo as medusas saltaram para a nuvens em voo de retorno.

Flandry noto u, com uma rápida olhada, uma nave aére a militar. Havia se destacado deesquadrão que patrulhava por cima do aeroporto espacial da cidade, ou talvez o piloto estivessefora de serviço. Ma s quando as medusas sobrevoaram a tormenta, entrando na zona iluminadapela lua e pelos anéis do planeta, o aparelho virou rapidamente para elas. As armas de bordocomeçaram a disparar, metralhando os componentes da frota. Flandry instintivamente lançou mãoda sua inútil pistola, mas seus dedos estavam tão entumecidos como a madeira e não pôde fechara mão.

Todas as medusas, exceto a sua e a do habitante, lançaram-se em um redemoinho contra oaparelho, rodeando-o e atacando-o, esmagando seus tentáculo s como enormes ventosas naestrutura metálica. O aparelho estava quase encerrado por aquele enxame de medusas. Umacrepitaçã o de descargas elétrica s surgia por toda s as partes, como fogo s de artifício. Aquelascriaturas estavam criando uma terrível potência, suficiente para desintegrar o hidrogênio a partirda água em sua s moléculas. Quando aquela s descargas elétrica s queimaram a couraça doaparelho, abrindo-lhe terríveis buracos, esparzindo a glassita, fundindo-lhe os circuit o s decontrole, a nave aérea afundou como uma massa de ferro velho inerte. As medusas se separaram,enquanto que o aparelho explodia contra o solo. Flandry deixou escapar um suspiro de alívio edeixou seu animal conduzi-lo para o Norte.

A cidade fervia como uma onda de pressão. Havia escaramuça s por toda s as partes eespecialmente na ru a dos Armeiros. E o sangue havia corrido na neve recé m caída na noiteanterior. Homens armado s patrulhavam ao redor do palácio e no aeroporto espacial. Dosacampamentos da margem do lago chegavam os sons de uma música militar exaltando os ânimos.Pelotões de jovens guerreiros conduziam seus varyaks, em pé de guerra.

Oleg Khan olhou da janela da sua janela, na sala da torre principal do palácio.

- Faremo s isto be m feito! - mastigo u co m raiva. - Oh sim, me u povo ! Terá s uma satisfaçãoadequada.

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Voltando-se para o betelgeusiano, que acabara de ser trazido à sua presença , cravou os olhosem seu rosto azul:

- Você viu?

- Sim, Majestade - o idioma altaiano de Zalat, normalmente fluido, embora com um ligeiroacento estrangeiro, brotou duro e entrecortado dos seus lábios. Havia passado um mal momento.Somente a intervenção das tropas reais havia salvo sua nave espacial de se r destruída por ummilhar de fanáticos ensandecidos.

- Eu lhe juro que nada temos a vem com... nós somos inocentes...

- Sem dúvida, claro! - respondeu Oleg, dando uma tapa no ar com profunda irritação. - Eu nãosou um desse ignorantes pastores ruminantes lá de fora . Todos os betelgeusianos têm estado sobrigoroso controle há muito tempo.

- Eu sei, Majestade - balbuciou Zalat. - Mas eu ainda não estou seguro das suas razões paraisto.

- Eu tinha lhe avisado. Você sabe que o visitante da Terra foi morto pelos agentes do Tebtengrino mesmo dia que chegou em Altai. Acontece que, como eu vinha suspeitando há muito tempo, astribos do Norte se tornaram xenófobas quanto ao aspecto religioso. Dado que sem dúvida eles têmagentes operando na cidade, tentariam assassinar também os betelgeusianos. Portanto, o melhorserá que você permaneça cuidadosamente custodiado e não tenha contato com ninguém, excetocom pessoas leais e da máxima confiança, até que a situação esteja sob controle total.

Mais calmo po r suas própria s palavras, Ole g sentou-se, acariciou a barba e observo u Zalatcom olhar astuto.

- Lamento que você tenha estado tão perto de ser linchado est a manhã - disse suavemente. -Como vocês pertencem a outro mundo e como os símbolos escritos na Torre do Profeta não estãono alfabeto altaiano, o populacho chegou à conclusão de que a escrita seria alguma palavra sujaem seu idioma. Eu, claro, tenho outra ideia . Do estudo dos restos do aparelho abatido na noitepassada , meus técnicos deduziram que o ultraje é obra do povo endiabrado do ártico e, sem amenor dúvida, em acordo com os Tebtengri. Uma façanha tão vil não teria preocupado essastribos, já que não são seguidores do Profeta. Mas o que me confunde é, e admito com franquezaembora confidencialmente, po r que? É uma trabalho muito atrevido... somente para fazer umaestúpida brincadeira conosco?

Voltou-se para a janela. Daquele ângulo a Torre parecia normal. Tinha que olhar do Norte paraver o que haviam feito: a grande muralha de mármore branco estava desfigurada por uma pinturaem mais de um quilômetro. E dali a fantástica profanação era visível de todo o imenso horizonte.

O Kha Khan fechou um punho em um gesto de raiva selvagem.

- Será feita uma bo a reparação - disse. - Ist o fará co m que as tribos ortodoxa s me sigam eestejam dispostas a tudo, como não o fariam por nenhum outro motivo. Quando as crianças dosrebelde s fore m queimadas viva s diante do s seus olhos, os Tebtengri se darã o conta do que

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fizeram.

Zalat hesitou:

- Vossa Majestade..

- Sim?

- Aqueles símbolos... na Torre... são letras do alfabeto da Terra.

- Como?

- Eu conheço regularmente a língua ânglica . Muitos betelgeusianos também a conhecem. Mascomo puderam esses Tebtengri tê-la aprendido?

Oleg, que conhecia a respost a para aquele mistério, interrompe u Zalat e avanço u sobre ele,pegando-o pela túnica e agitando-se nervoso.

- Que quer dizer? - gritou furioso.

- Isto é o estranho, Majestade - murmuro u Zalat novamente - Não parece significa r coisaalguma. A palavra não faz sentido.

- Bem, que palavra é? E como está escrita? Fale, antes que eu lhe arranque os dentes!

- MAYDAY - gaguejou Zalat - Precisamente isto, Mayday, Vossa Majestade

Oleg o soltou e por uns momentos permaneceu em silêncio. Finalmente o Khan disse:

- É uma frase sem sentido ou uma palavra atual da Terra?

- Bom... suponho que poderia ser uma palavra. Não creio conhecer intimamente cada frase oumudanças da língua ânglica, nem suas expressões técnicas. Enfim, tudo que me ocorre é que May éo nome de um mês no calendário da Terra e Day significa “período diurno”. - E Zalat ficoupensativo, com seus olhos amarelados fixos em algum ponto indeterminado, tentando encontraruma explicação lógica. - Talvez, May Day signifique o primeiro dia de maio.

Oleg balançou a cabeça pausadamente.

- Isto soa razoável. O calendário altaiano, que é uma cópia modificada do da Terra, tem umnome simila r para um mês qu e corresponde localmente ao início da época da primavera.Mayday... Poderia significar o nosso Dia do Festival da Primavera?

Levantou-se novamente e de novo olhou pela janela através da cidade.

- Ainda falta muito tempo até maio - disse. Se isto é um incitamento para alguma coisa que têmplanejado, nós destruiremos os Tebtengri est e invern o mesmo. E no Dia do Festiva l daPrimavera... - limpou a garganta e continuou: - neste dia então haverá outros projetos em marcha.

- Como poderia ser um incitamento, Majestade? - agrego u Zalat, confuso. - Quem em UlanBaligh poderia lê-lo e entendê-lo?

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- Isto é certo. Eu só posso conjecturar que é um ato de desafio ou de superstição, esperando quenossa sorte mude para pior - o Khan voltou-se para Zalat - Você partirá logo, certo?

- Sim, Majestade, tão logo seus inspetores tenham acabado de examinar meu carregamento.

- Você levará uma mensagem - ordenou secamente o Khan. - Nenhum outro comerciante voltaráaqui dentro de um ano. Com certeza teremos bastantes distúrbios reprimindo os Tebtengri e seusaliados aborígenes. E alé m disso, não haverá razão para qu e os comerciantes nos visitem. Apróxima guerra interromperá as caravanas. E mais tarde, quando as coisas se arranjarem... talvez.

Particularmente, Oleg duvidava que o comércio fosse retomado no futuro. No verã o osengenheiros merseianos estariam em Altai e os trabalhos da Base Naval começariam. Altai estariafirmemente inserida no Império Merseiano. E ele, Oleg Yesukai, como Vice-rei, não teria tempopara comerciar. Em lugar disto, estaria conduzindo seus guerreiros para as batalhas nas estrelas,mais gloriosas e cheias de vantagens do que teria podido sonhar algum antigo herói.

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CapítuloX

O inverno logo chegou às terras do Norte. A neve caía e permanecia indefinidamente sobre asestepes, sob um céu azul de aço. O Mangu Turnan se dispunha a empreender seu ciclo migratório.Vagões, rebanhos e pessoas, era m como uma procissão empoeirada espalhada através daquelaimensidão. De tanto em tanto uma fogueira enviava uma fita de fumo vertical naquela atmosfera dequietude . Krasna aparecia pendurada no baixo cé u do Sudoest e , como um círculo de ouroavermelhado.

Três pessoas afastaram-se do ordu principal. Estavam equipadas com esquis e rifles sobre suasjaquetas, levando outro equipamento diferente em uma pequena unidade antigrav. Afastaram-sevelozmente para algum lugar da estepe enevoada.

Arghun Tiliksky disse com uma dura entonação na voz.

- Eu pude notar, Orluk Flandry, que você e Juchi Ilyak guardam o maior segredo sobre suaescapada da Torre de Ulan Baligh há cinco semanas atrás. Como ninguém sabe, ninguém poderárevelar; ist o se você fo r capturado. E, contudo, você parece estar muit o contente sobre suasconsequências. Você não ouviu o que contam nossos espiões e exploradores: Grandes grupos deguerreiros enfurecido s do Ole g Khan juraram exterminar-nos no próximo degelo. Nunca umexército tão decidido e poderoso se concentrou contra nós. Portanto, toda a aliança do Tebtengrinão pode se estender ao redo r do círculo ártico, como sempre o fez até agora , porque agoraprecisa estar reunida. E não há bastante forragem sob a neve para tantos rebanhos em uma área tãoreduzida. Eu lhe digo que o Kha Khan não precisará nos atacar. Só tem que esperar. Na primaveraa fome haverá feito metade desse trabalho por ele.

- Deixemos que o Khan planeje à vontade - respondeu Flandry cautelosamente. - Será menostrabalhoso que lutar, não é verdade?

Arghun voltou seu rosto juvenil, irritado, para Flandry. O Noyon continuou em tom pungente:

- Eu não compartilho o medo comum dos assuntos da Terra. Você é tão humano quanto eu, masneste mundo você não está bem treinado e aqui você é mais falível. Aviso-lhe abertamente de que,a menos que aqui e agora não possa me dar uma bo a razã o para agir de forma diferente, eurequererei o Kurultai. E ali argumentarei com toda minha força para que cessemos imediatamenteesta espera e ataquemos Ulan Baligh agora, quando estamos com a barriga cheia.

Bourtai gritou:

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- Não! Isso não! Seria procurar a ruína. Os khanistas nos superam em número; há três ou quatrodeles para cada um de nós. Eu também vi alguns dos seus novos equipamentos merseianos. Se nósinvadirmos o Sul, seria como reses invadindo um curral de um matadouro.

- Assim pelo menos acabaríamos logo com isto - Arghun olhou fixamente para

Flandry. - E então?

O terrestre conteve um gesto de impaciência. Já esperava esta reação de Arghun.

Nas semanas passadas Bourtai e Arghun sempre permaneciam juntos um do outro.

O Noyon já vinha dedicando-lhe palavras ásperas há algum tempo. Pôde comprovar que aqueleconvit e para caça r sataru - avestruze s fugida s do s rebanhos e que havia m voltado ao estadoselvagem - ocultava algu m propósito. Pelo menos Argh u n se comportava decentemente,avisando-lhe.

- Se você não acredita em mim - disse, - embora todo o cosmos saiba que lutei e derramei meusangue e rasguei minhas crenças por sua causa, não poderia pelo menos acreditar em Juchi Ilyak?Ele lhe assegurará que nosso êxito depende de aguentar, esperar e evitar a batalha por tanto tempoquanto seja possível.

- Juchi está velho - grunhiu Arghun - Sua mente está ficando fraca. Yahh! Ali!

Desviou-se de uma vez para um ponto da planície. O antigrav se deteve na metade da altura e ameio caminho de um declive . As ideia s política s desaparecera m de Arghun. Com um dedo,apontou para um ponto na neve com a veemente impaciência de um cão de caça.

- Pegadas! - gritou. - Agora iremos a pé e nos aproximaremos devagar. As aves sairão correndose ouvirem o motor do antigrav. Siga direto para o alto da colina. Bourtai e eu as cercaremos pelaesquerda e pela direita.

Os altaianos desapareceram esquiando rapidamente , separando-se de Flandry antes que estecompreendesse de todo o que acontecia. Olhando para baixo, viu grandes pegadas impressas naneve; era um casa l de sataru . Flandry seguiu-as. Como diabo s poderia seguir tais pegadas?Tombando através da neve, resvalou e caiu de bruços e soltou uma série de palavrões em dezoitoidiomas diferentes.

- E eles acham isto divertido? - levantou-se. - Com todos os diabos! Como eu estaria bemagora , sentado na Casa do Everest, em frente a uma garrafa de champanhe, contando históriassobre minhas façanhas... Mas não. Façamos a experiência, já que estou aqui - lentamente alcançouo topo da colina, onde se agachou e esquadrinhou através de umas moitas. Não viu ave alguma deduas patas. Somente uma escarpa escorregadia até a planície, na parte posterior. Ergueu-se, e poru m momento viu a uma curt a distância o sangue e os membro s destroçado s de um sataru. Erepentinamente se viu atacado por estranhas feras.

Aquelas feras pareciam brotar das moitas e do s montes de neve , como se a terra nevada asesculpisse. Eram terríveis animais brancos, de forma esquiva , grandes como cães policiais, que

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se lançaram contra ele. Flandry viu de relance os longos focinhos, os vivos e ferozes olhos negrosolhando-o com ódio, os brancos lombos e seus rabos peludos. Levou rapidamente o rifle ao rostoe disparou. A bala destripou o primeiro anima l mais próximo, qu e rolou a meio caminho dasubida da colina. Flandry quase não se deu conta, pois outra besta já estava sobre ele . Atirou eatingiu o alvo. Saltaram pedaços de ossos e carne e um dos seus companheiro s se deteve paracomer aqueles restos espalhados; mas o pelotão continuou na carga. Flandry fez pontaria sobre umterceiro. Um corpo pesado apoiou-se por trás dele, fazendo-o cair de bruços. Fortes mandíbulasatacavam o couro da sua jaqueta. Fez um esforço sobre-humano e rolou na neve , mas o fuzilescapou de suas mãos. Uma daquelas fera s subiu em cima dele , pondo-lhe sobre o peito umaspatas em forma de mãos humanas. Sacou rapidamente o punhal que levava no cinto no momentoem que mais outro animal estava sobre ele. Sentiu-se mordido por dentes como formões, mas emum rápido movimento conseguiu apunhalar um dos animais no focinho. Est e solto u um terrívelurro e escapou, mas outro dois atacavam em seu lugar.

Alguém gritou, mas o grito foi apagado pelo ruído da luta. Flandry cravou novamente o punhalnas costela s de outro animal; mas foi um golpe tão profundo qu e quando est e animal saltou,arrastou com ele a arma, deixando-o indefeso. O resto da manada se agrupou ao seu redor e eleteve, em um último esforço desesperado, que lutar a chutes, a murros, com os cotovelos e comtodo se u corpo envolto em uma nuve m de neve . Um anima l de u um salto e caiu sobre seudiafragma e ele sentiu que o ar escapava dos seus pulmões Cobriu o rosto com os braços em umaúltima defesa quando uma daquelas feras atirou-se em sua garganta.

Arghun chegou brandindo uma reluzente lâmina de aço na mão. O altaiano atingiu a fera nopescoço e, com um esperto movimento, destripou a fera com uma terrível faca, atirando-a para umlado. Vários do grupo deixara m Flandry e se lançara m para devorar o corpo do recé m caído.Arghun deu um terrível pontapé em outro animal, por trá s da orelha e ele que caiu fulminado,girando como um tronco. Entretanto outro saltou sobre as costas de Arghun, mas ele de u meiavolt a rápido como um raio, deu-lh e uma chave de judô com o braço esquerdo no pescoço,deixando-lhe a barriga a descoberto, enquanto que com a mão direita acertou-lhe uma tremendafacada que quase o abriu de cima a baixo.

- Levante, Orluk! - ajudou o terrestre a se levantar e a manada começou novamente a rodeá-los.

Mas então Bourtai, que chegara, começou a disparar. Atirava como uma metralhadora, à direitae à esquerda. A maio r part e da s fera s lançou um agudo uivo. A est e sinal, os demaissobreviventes do ataque voltaram as costas e se perderam de vista em coisa de segundos.

Arghun se deteve por um momento, respirando fatigado. Bourtai correu para Flandry.

- Está ferido? - perguntou-lhe solicitamente.

- Não muito - olhou para Noyon e disse: - Obrigado.

- Você é nosso hóspede - grunhiu Arghun, e depois de um momento, acrescentou:

- Essas bestas estão ficando cada vez mais selvagens. Nunca teria esperado um ataque tão pertodo ordu. Teremos que tomar medidas contra eles, se sobrevivermos a este inverno.

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- O que são elas? - perguntou Flandry, já mais calmo.

- Gurchaku. Estendem-se pelo Khrebet e pelas estepes do Norte. Comem tudo, embora prefirama carne . Matam principalmente pequenos animais silvestres, embora às vezes ataquem nossorebanhos e mais de uma criatura pereceu entre suas mandíbulas. No tempo do meu avô eles nãoeram tão fortes nem tão ferozes.

Flandry sugeriu:

- São ratos.

- Eu conheço o que são os ratos - disse Bourtai, - mas os gurchaku...

- São um novo gênero de ratos. Algo similar tem ocorrido em outros planetas colonizados. -Flandry tentou encontrar ansiosamente um cigarro em seus bolsos e Bourtai pediu para quecontinuasse sua explicação. - Ah sim! Alguns ratos, escondidos nas naves espaciais dos nossosantepassados conseguiram escapar para o campo ou para as cidades, como fazem na Terra . Emmeios tão diferentes, foram imitando e assim se transformaram, como fizeram aqui os voiskoyes;mas muito mais rapidamente, devido às suas gerações de curto período. Sim, uma tarefa que temque empreender qualquer comissionado da Terra em Altai será a de exterminar todos os gurchaku.Uma lástima, de certo modo, pois parece uma espécie com interessantes possibilidades.

Dirigiu um olhar melancólico para Bourtai.

- Além de tudo, se em um planeta limítrofe do Império existem garota s formosas, a tradiçãoexige que, como contraste, também haja monstros.

Bourtai ficou vermelha como uma papoula.

Voltaram para o ordu em silêncio. Flandry procurou curar-se das feridas, lavar-se e trocar deroupas no yurt que lhe tinham designado. Depois deitou em sua cama e ficou olhando fixamente parao teto. Refletiu com amargura sobre as românticas e heroicas aventuras que havia ouvido sobre aAlta Fronteira, em geral, e as arrojada s façanhas do Corpo de Inteligência, em particular. Eramassim na prática? Uns ratos, às vezes repulsivos com homens ou ratos gigantes que o atacavam paramatar, rígidas roupas de couro, os pés intumescidos, as mordidas constantes de um frio espantoso,uma comida absurda, viajar em veículos estrambóticos, o temperamento, a castidade prolongada, olevantar-se cedo, suportar os intermináveis discursos dos velhos das tribos, sem um bom livro paraapreciar ou algo divertido que pudesse gostar... Bocejou, revolveu-se em sua cama e tentou dormir.Antes de cair no sono, procurou esquecer tudo aquilo e quase desejou que a atrevida opiniã o deArghun fosse posta em prática. Qualquer coisa que rompesse aquela melancolia insuportável!

Alguém chamou à porta e ele levantou-se rapidamente e se vestiu.

- Entre - disse - uma precaução de muitos anos o fez pegar a pistola.

Quando a porta se abriu, observou que aquele curto dia de inverno chegava ao seu fim. Umafaixa avermelhada brilhava fracamente no distante horizonte de Altai. A lâmpada que brilhava noteto iluminou a figura de Bourtai. A jovem entrou, fechou a porta e permaneceu silenciosa.

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- Ah!... Olá!... - saudou-a Flandry, pausadamente. - O que a traz aqui?

- Venho ver se você está bem - E o olhar de Bourtai fugiu do de Flandry.

- Oh... Sim... bem... Sim, claro - respondeu Flandry atentamente. - Você é muito amável. Querdizer... bem, posso fazer-lhe uma taça de chá?

- Está certo de que as mordidas que levou não são perigosas? Pôs algum antisséptico?

- Sim, claro. Conheço algumas coisas para cuidar de mim mesmo - automaticamente, Flandryacrescentou com um sorriso: - Teria desejado não sabê-las nesta ocasião. Com uma enfermeira tãoencantadora...

Novamente notou um forte rubor nas bochechas de Bourtai. Subitamente compreendeu que tinhaque ter comprovado antes se os altaianos eram pessoas com um senso diferente de pudor e detimidez, em comparação com os terrestres.

- Sente-se - convidou Flandry.

Bourtai sentou no chão e Flandry aproximou-se e deslizou um braço ao redor dos ombros dagarota. Ela não evitou. Resvalou outra mão até tê-la presa pela cintura . Ela apoio u sua cabeçacontra o peito de Flandry.

- Ach a que viveremo s para vermos outra primavera? - perguntou em tom tranquilo edesprovido de qualquer temor, como se estivesse fazendo a pergunta mais natural do mundo.

- Eu tenho a primavera, precisamente comigo - respondeu Flandry, roçando-lhe os cabelos comos lábios.

- Ninguém fala assim no ordu - murmurou Bourtai. - Ambos estamos radicalmente separadospor nossa própria raça . Você pela distância e eu pela morte. Não fiquemos abandonados esolitários por mais tempo.

Flandry fez um esforço para advertir-lhe claramente:

- Eu voltare i para a Terra na primeira ocasiã o que conseguir e não recomendaria que vocêseguisse o mesmo caminho.

- Eu sei - murmurou Bourtai. - Mas enquanto isso...

Sua boca encontrou a de Bourtai, mas uma batida na port a interrompe u subitamente a cenaamorosa.

- Vá embora! - gritaram ao mesmo tempo. Olharam-se ao mesmo tempo nos olhos, surpresos, eromperam em uma gargalhada.

- Meu senhor! - gritou uma voz de homem no exterior. - O Gurkhan Toghrul me enviou. Foramdetectadas mensagens de uma nave da Mãe Terra!

Flandry chocou-se co m Bourtai em su a pressa em sair. Mas enquanto corria pensou com

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frustração que tinham lançado mal olhado em sua missão desde o princípio.

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CapítuloXI

Invisível nas alturas, entre as tênues corrente s de ar acima de Ula n Baligh , um guerreiropermanecia sentado entre os pacientes tentáculos de uma aeromedusa . Respirava oxigênio de umequipamento especial e não tirava os dedos de um receptor de rádio. Não obstante achar-se tãobem protegido, não seria substituído até quatro horas depois. Com certeza os altaianos eram aúnica casta de homens capazes de suportar semelhante serviço. Aquela sua escuta foi premiada.Os auriculares chiaram com uma vo z fraca e distorcida em um idioma jamais ouvido antes. Aresposta chegou, procedente do aeroporto. O locutor de cima deixou outra pessoa em seu lugar edirigiu-se para o chefe em um altaiano defeituoso, sem dúvida apreendido com os betelgeusianos.O escuta tebtengriano não se atreveu a tentar comunicação alguma de su a parte. Se fossedetectada, e aquilo seria o mais provável, tal chamada poderia atrair um projétil nuclear de UlanBaligh. Seu equipamento radioelétrico registrou e retransmitiu o que havia ouvido. A muitosquilômetro s mais além, outra medusa flutuante, portadora de outro equipamento, passou amensagem à seguinte. A longa cadeia terminava no ordu do Mangu Turnan. Se po r qualqueracidente os khanistas detectassem a retransmissão, não teria m motivo s para alarme, já qu e asondas radioelétricas têm sempre derivações e surgem rebotes na ionosfera.

Através dos seus binóculos, o vigilante do Tebtengri viu descer a nave espacial da Mãe Terra.À luz suave da lua, comprovou sua enorme rapide z de manobra e sentiu um súbito temor. Nãoobstante - pensou - era somente uma nave visitante. Oleg o Maldito teria camuflado ou disfarçadosuas modernas instalações há semanas. Seriam recebidos hipocritamente com todas as honras, osagasalhariam e os fariam ver o que quisessem e ouviriam o que tinha de ser ouvido. E voltariam àbase de partida para informar que nada que valesse a pena lamentar acontecia em Altai.

O explorador suspirou, bateu suas mãos enluvadas uma contra a outra e desejou que o substitutochegasse o mais breve possível.

Enquanto isso, perto da calota polar, Dominic Flandry voltava-se para o Toghrul, deixando delado um equipamento de rádio.

- Já está ai - disse. - É a HMS Calisto, que aterrissou em Ula n Baligh. Manteremos nossosmonitores de rádio, mas não espero que captem outra coisa até o momento em que a nave espacialsaia novamente, sem dúvida.

- Quando isto acontecerá? - perguntou o Gurkhan.

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- Dentro de três ou quatro dias, acho - respondeu Flandry. - Temos que nos apressar. Temos queavisar todos os ordus esta noite mesmo! Ao amanhecer, desejo que todo s se movam através daestepe, segundo o projeto que Juchi e eu traçamos para todos vocês.

Toghrul assentiu com um movimento de cabeça e Arghun Tiliksky, que também estava nakibitka, perguntou:

- Que significa isto? Por que não fui avisado e informado convenientemente?

- Você não precisa saber antes do momento oportuno - respondeu Flandry energicamente. - Osguerreiros tebtengrianos precisam estar alertas para entrarem em ação, com um pré-aviso de cincominutos, sob qualquer condição que lhes seja ordenada. Assim o sugeriu você mesmo em um brevediscurso na semana passada. Muito bem, Noyon. Mobilize-os!

- Para onde? Por que?

- Você mandará a divisão de varyaks do Mangu Turnan - ordenou Toghrul. - Leve-os para o Sula té 500 quilômetro s de distância e ali aguarde orde ns pelo rádio. As forças tribais ficarãoestacionadas em outra parte. Os yurts e as kibitkas, menos móveis, ocuparão posições próximasmais tarde. As mulheres e as crianças podem conduzi-los.

- E os rebanhos também - lembro u Flandry. - Não esqueça que os rebanhos em massa dosTebtengri podem cobrir completamente uma grande zona.

Arghun deu uma olhada para a formação desenhada em uma folha de papel que a aliança haviaadotado.

- Mas isto é uma loucura - comentou atônito. - Se Ole g soube r que vamos nos espalhar emsemelhante debandada pela metade do mapa de uma forma tão ridícula , poderia atacar-nosfacilmente em cunha por...

- Oleg não saberá - interrompeu Flandry. - E se ele vir, não poderá saber porque o fazemos, istoé o que conta. E agora, ao trabalho!

Durante um instante os olhos de Arghun cruzaram desafiadores com os de Flandry. O Noyonde u meia volta, bateu no músculo co m as luvas e saiu rapidamente . Pouco s momentos depoisouvia-se o estrondo do s varyaks em marcha para se u destino e o som da s trompa s guerreirasdando ordens precisas para a formação.

Quando o ruído se desvaneceu, Toghrul coçou a barba, pensativo

- Bem - disse ele a Flandry. - E agora que estamos completamente sós, você não pode pelomenos me dizer como a nave espacial da Terra veio até aqui?

- Claro. Sem dúvida ela veio pra investigar no local a informação sobre minha suposta morte, ade um cidadão da Mãe Terra em Altai. Assim procederá o capitão frente a Oleg, estou certo. Osterrestre s farã o pesquisa s durante alguns dias e deixarão Oleg. Depois do que ele s voltarãotranquilamente para sua base.

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Toghrul olhou para Flandry, voltou-se para o mapa e de repente se pôs a rir como um búfalo.Por um momento, o Gurkhan do Mangu.

Turnan e o Agente do Corpo da Inteligência Naval Terrestre apertaram as mãos e dançaram aoredor da kibitka, cantando como dois loucos.

Flandry partiu logo. Não havia muito tempo para dormir ou descansar nos próximos dias. Etampouco dormiria aquela noite. Dirigiu-se de mal humor para seu próprio yurt. Tudo estava emsilêncio. Abriu a porta e viu uma nota que aparecia sobre a cama:

“Meu amado, os sinais de alarme soaram. Tu já sabes que Toghrul me deu armas e um varyak.Me u pai me ensinou a conduzir e a disparar como um homem. Convém assim que o últimomembro do Clã Tumurji parta para a luta com os demais guerreiros.”

Flandry ficou olhando para aquelas letras durante um momento e finalmente se meteu na camasem se despir.

Quando despertou na manhã seguinte, se u veículo se achava em marcha. Um garoto haviaassumido o volante. Assomou a cabeça para comprovar que a totalidade do acampamento rodavaatravés da estepe.

Toghrul havia partido para tomar uma vista aérea do deslocamento. Havia saudado Flandry comum gesto sisudo.

- Amanhã alcançaremos nossa posição designada - havia dito.

Tinha também de atender e dirigir as incontáveis emergências que surgiam em um grupo móveltão grande, em semelhante manobra Flandry ficou completamente isolado.

Até aquele momento, procurou não oferecer aos nômades sua ajuda inexperiente. Empregou odia chamando a atenção dos superiores que tinha designado. A emigração continuava por aquelainterminável rota obscura. Na manhã seguinte, impôs-se a tarefa de trabalhar na neve e acertar esituar o acampamento. Flandry se sentiu capaz, pelo menos, de manejar uma pá , mas não foipreciso.

A o meio-dia o ordu estava arranjado, não de forma a ocupar uma zo na compacta, quenormalmente teria oferecido um máximo de segurança, e sim enfileirado em enorme s linhasondulantes com quilômetros de extensão, fato que a cada instante provocava as reclamações daspesso a s das tribos e mesmo alguma tentativa de motim. Toghrul suprimiu os protesto s comindiscutível autoridade e voltava de vez em quando à sua kibitka para dar ordens pelo rádio. Doisdias de insuportável tédio se passaram antes dele reunir-se com Flandry.

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E então as coisas aconteceram rapidamente.

- A nave espacial está indo embora - disse o Gurkhan. - Acabamos de detectar o sinal normalde aviso na área do aeroporto espacial de Ulan Baligh. Teremos tempo para levar a cabo todas asmanobras planejadas antes do cair da noite?

- Isto não importa no momento - assegurou-lhe Flandry. - Nosso objetivo principal já está emandamento. O comandante da Calist o poderá nos localiza r do espaço, se os observadoresaguçare m sua vigilância , coisa que não duvido que terã o que faze r sobre um planeta suspeitocomo este que estão deixando agora. Quando notarem algo, diminuirão a velocidade. Se a naveflutuar em órbita com as telas de radiação ao máximo e os geradores reduzidos ao mínimo, duvidoque em Ulan Baligh se deem conta de que eles ainda estarão ao redor do planeta.

Flandry dirigiu um olhar ansioso para o mapa na sua mesa. As diversas unidades dos Tebtengrihaviam confirmado suas posições. Os ordus estavam dispostos em uma grossa linha Leste-Oestede 500 quilômetros de comprimento através da branca estepe hibernal. As divisões dos varyaks,mais móveis, estavam espalhadas em grupos, formando linhas, cujos finais se encontravam emformas retas ou curvas com os começos das outras e que às vezes se reuniam, tanto no Norte comomuito mais longe, no Sul. Flandry alisou o bigode e esperou.

“Nave espacial pronta para decolar! Atenção! Preparados! Adiante, nave Calisto!” Conforme avoz retransmitida surgia fracamente no receptor, Flandry pegou um lápis e desenhou outra figurasobre o mapa.

- Esta é a próxima formação - disse. - Pode começar imediatamente. A nave verá a presenteformação dentro de cinco minutos.

Toghrul dirigiu-se ao microfone e ordenou:

- Divisões de varyaks do s clã s Mulik , Fyodor, Kubilai, Tuli, atenção! Dirijam-se para 100quilômetros a Oeste da vossa atual formação e detenham-se ali! Begultai, Bag- darin, Chagutan,Kassar, para o Leste 100 quilômetros! Gleb, Tenmujin...!

Flandry girava o lápis entre os dedos. Quando as informações chegassem, apó s uma horainterminável, marcaria a posição correspondente no lugar onde houvessem se detido todas e cadauma das unidades em movimento. A totalidade do projeto começou a se mostra r pateticamentetosco e imperfeito.

- Estive pensando... - disse Toghrul, após um prolongado silêncio.

- Mal costume - respondeu Flandry. - Difícil de suprimir. Tente tomar banhos frios e longospasseios.

- Que acontecerá se Oleg se der conta de tudo isto?

- Com toda certeza saberá que está acontecendo alguma coisa estranha. Seus exploradoresrecolhem pedaços das nossas mensagens. Mas somente pequenos detalhes dessas transmissões de

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curto alcance . De cert a forma , dependemo s de que a atmosfera que nos cobre não permita aoinimigo ter uma boa visão geral do que estamos fazendo. Tudo o que Oleg saberá é que estamosnos movimentando em grande escala. Se eu fosse ele, acharia que os Tebtengri estão praticandosuas formações à espera do dia do ataque.

- O qual não estará muito distante - disse Toghrul, batendo na mesa com a mão. Flandrydesenhou uma figura no papel.

- Esta será a terceira formação. Creio que poderemos consegui-lo antes do crepúsculo. Durantea noite nos dedicaremos a criar a quarta e a começar a quinta no amanhecer seguinte.

- Espero que acabemos tudo em dois dias.

- Não se preocupe com isto. Antes que a escassez possa piorar, seu povo estará a salvo com oImpério Terrestre , que enviará tudo que necessitarem; ou acabará morto, o que ainda é o maiseconômico.

A noite que se seguiu transcorreu lenta e interminável. Flandry mal conseguiu dormir por algunsmomentos. Deu muito pouca atenção ao nascer do sol, pois havia coisa s demais para se fazer.Algum tempo depois, um guerreiro apresentou-se a ele.

- Venho da parte do Juchi o Shaman - informou, com rígida saudação militar. - Os exploradoresdo ar, que estão na escuta na área de Ozero Rurik, informam que as tropas do Khan estão sendomassivamente formadas e que tais colunas se dirigem para o Norte.

Toghrul deu um tremendo murro na mesa.

- Será que vão invadir-nos agora?

- Essa grande movimentação não chegará aqui em uma semana, pelo menos - disse Flandry,embora um frio desagradável lhe invadisse o estômago. - Ou mais tarde, se os acossarmos do ar.

- Uma semana... E quando poderemo s recebe r ajuda da Terra? - perguntou ansiosamenteToghrul.

- Pelo menos em três ou quatro semanas, no mínimo. O Calisto tem qu e voltar à base deCatwrayannis, onde o comandante terá que reunir uma frota de ataque potente para voltar a Altai.Digamos quatro semanas, mais ou menos. Poderemos lutar em forma de ação retardatária por tantotempo, sem sofrer demasiadas perdas?

- Teremos que fazê-lo. Não nos resta outra solução.

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CapítuloXII

O capitão Flandry descansava com o rifle no ombro. Até onde suas geladas bochechas podiamsentir, a culatra era suave ao toque e não muito fria. Mas as parte s metálicas estavam tãoterrivelmente frias, que teria perdido a pele dos dedos se as tocasse se não estivesse pesadamenteenluvado.

Era difícil calcular as distâncias naquela meia luz avermelhada através das névoas coloridasque o envolviam. Era difícil també m calcula r as trajetória s do s projéteis, dado a diferença degravidade e da atmosfera do planeta. Não estando o inimigo ainda bastante perto, decidiu esperare preparou o rifle.

Acocorado junto a ele e a sota-vento do banco de neve, o habitante do gelo que o acompanhavalevantou para o céu seus olhos impenetráveis.

- Eu ir agora? - perguntou com sua estranha voz.

Seu altaiano era pior que o de Flandry; o próprio Juchi havia se surpreendido ao saber quealgum membro do Povo Gelado conhecia a língua humana altaiana.

- Não, eu lhe dire i logo em seguida - respondeu-lhe Flandry - o próprio sotaque do terrestreparecia gelado, ao brota r do s seus lábios. - Você tem qu e cruzar uma centena de metros emterreno aberto para alcançar aquelas árvores. Você seria visto pelo inimigo e eles o matariam nomeio do caminho. Vejamos uma forma de distraí-los primeiro.

Esquadrinhou aquele lúgubre panorama. Krasna quase desaparecia naquelas terras polares noinverno, mas naquele momento ainda não estava muito baixo no horizonte. Um fraco brilho no Sulproporcionava bastante claridade para ver a curt a s distâncias. O pelotão atacante já haviachegado tão perto que Flandry pôde distingui-los individualmente, como manchas borradas contrao grande lago. Pôde constatar també m que usavam uma espécie de varya k especial, levandotambém reboques e anti-gravs para deslizarem na gelada superfície. Havia sido uma má sorte aque tiveram, ele e sua patrulha, ao tropeçar com o inimigo. O Tebtengri havia se retirado pouco apouco para a zona polar e, eventualmente, nas profundeza s da s Terras Geladas. Vivia m comopobres animais encurralados e mortos de frio, enquanto seus rebanhos vagavam pela estepe com amínima vigilância . Entretanto, os habitantes e os Tebtengri estavam em constantes escaramuças,evitando uma batalha aberta a todo custo, e lutando uma guerra de guerrilhas para ir detendo e

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atrasando o avanço das forças de Oleg Khan. Esconder-se , disparar, correr, ocultar-se , procurarcada um seu pobre alimento, tirar um cochilo em um saco de peles e voltar a disparar e furtar ocorpo ao inimigo.

Enquanto isto, o resto da patrulha de Flandry jazia morta no Trengri Nor. Ele havia conseguidoescapar mas não tinha ido longe. Com aquele único companheiro, terminou sendo alcançado porseus perseguidores que podiam se mover com mais rapidez em suas máquinas do que eles a pé.

Calculou o melhor que pôde a distância, até que teve o inimigo na mira do rifle. Fez um rápidosinal para o habitante, que saiu correndo, e então disparou. O guerreiro do Sul dobrou-se sobreseu assento no varyak, colocou as mãos no ventre e caiu no chão. Apesar da escassa luz, notava-secomo a neve se tingia de vermelho. Através do vento gelado ouviu os companheiro s do caídogritarem e se espalharem em uma ampla frente para atacar. Flandry apontou e disparou novamente,mas desta vez o tiro falhou. E para que o habitante do gelo passasse despercebido precisava demais alguns segundos para poder alcançar as árvores de cristal às suas costas.

Flandry coloco u se u rifle no disparador automático e de um salt o lançou-se para trás,abandonando a crista do banco de neve em que se achava, afastando-se dali. Ao mergulhar pelaladeira de neve , sentiu mais que ouviu a tormenta de fogo que caiu, dirigida para o local queacabara de abandonar. Uma enxurrada de potentes projéteis bombardearam o local, silvando eexplodindo acima da sua cabeça, achando-se ele, em seguida, envolto em uma acre atmosfera defumaça das explosões. Com certeza aquele condenado habitante já havia chegado ao seu destino.Naquele inferno de estalidos de fumaça e neve, lembrou do que o homenzinho havia prometido. Iaenviar uma mensagem através das raízes das árvores. Ridículo!

Mas, subitamente e através dos estampidos, Flandry acreditou ter ouvido o primeiro ruído porcima e à frente, nos ares, como um zumbido que ele já conhecia. Levantou os olhos a tempo de vero ataque das medusas.

Lançaram-se lá de cima, centenas e centenas, com seus tentáculos expelindo faíscas elétricas.Algumas foram alcançada s pelo s projéteis das armas pesada s do pessoal do Sul, ardendo emchamas de hidrogênio e atingindo o inimigo enquanto morriam. Outras, prendia m os guerreiroskhanistas, arrancando-os de suas montarias e elevando-os pelos ares, para então mergulhá-los naságuas mortais do Trengri Nor a maior parte dos atacados, quando o inimigo já batia em retiradacom terríveis perdas.

Quando ergueu-se daí a poucos instantes a retirada já era uma derrota colossal.

- Santos Céus! - murmurou com temor. - E agora, que farei para encontrar esse endiabrado?

O habitante do gelo já estava voltando do bosque de cristal, impassível, pequenino, forradocom peles, com seu andar de boneco de borracha. Com um gesto, como sempre impassível, disseem sua típica timidez:

- Não haver bastantes medusas para faze r ist o muitas vezes. Seus amigos vêm. Nós esperaraqui.

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- Como? Ah, sim! Se você se refere a uma patrulh a de resgate, sim, suponho que algumaunidade próxima tenha ouvido o combate e virá em nosso socorro.

Flandry começou a bater os pés fortemente contra o chão para ativar um pouco a circulação dosseus membros, que estavam rígidos pelo frio.

- Foi um bom ataque - disse Flandry, olhando para aquele monte de armas, veículos e homensdestroçados. - Creio que vingamos bem nossa patrulha.

- Homens mortos ser igual de um lado como do outro na luta - censurou o habitante do gelo.

Flandry balançou a cabeça tristemente.

- É isso mesmo. Nem me lembre.

E no mesmo momento ouviu o ruído característico do s motore s do s reboque s do s seuscamaradas. A patrulha de esquis que se aproximava era maior do que podia imaginar. ReconheceuArghun e Bourtai à frente da formação. Chegaram até ele surpresos, já que fazia tempo que não osvia e somente tinha tido a oportunidade de dizer-lhes adeus desde qu e começou a campanha.Estavam ocupados demais. Eram os ossos do ofício da guerra. Se deixasse de lado a disciplina, otrabalho constante, a falta de conforto, o sono escasso, a alimentação abominável, a escassez detudo que era agradável, a monotonia, o sofrimento, o combate e o constante perigo de morte, aguerra era sem dúvida uma instituição estupenda.

Flandry apressou-se em recebê-los com o melhor semblante possível de um homem que ficousem cigarros há muito tempo.

- Ei! Vocês perderam a apresentação há um momento atrás.

- Dominic! - e Bourtai lhe tomou as mãos. - Podia ter morrido! - disse, quase soluçando.

- Azare s profissionais, Bourtai - responde u Flandry. - Suponho qu e você vem a mando dadivisão Norte, não é assim, Arghun?

- Já não há mais guerra! - respondeu Noyon com um grito de alegria. - Vou agora mesmo com amissão de reunir todos nossos combatentes.

- O que disse?

- Mas... você não sabe? - os olhos francos de Arghun se dilataram de surpresa. Por um instantepermaneceu cravado na neve , mas, co m um cordial impulso, abraço u Flandry e bateu em suascostas.

- Os terrestres chegaram! - gritou.

- O que? - Flandry não conseguia sair do se u estupor. E ainda esperava a resposta , semimaginá-la.

- Foi ontem - o Noyon se apressou a explicar o ocorrido. - Suponho que seus receptore s derádio não lh e s avisara m do acontecimento. A lu t a cesso u completamente e, talve z por

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interferências atmosféricas nesta zona, vocês estavam privados de tal notícia. Ou seus inimigoseram uns fanáticos até a morte. Ainda há alguns a quem temos que dar caça. Mas isto não oferecedificuldade agora.

Arghun procurou se tranquilizar e continuou com mais calma:

- Uma grande força Imperial de ataque apareceu no espaço e pediu que as tropas de Yesukai serendessem, por terem clientes merseianos. O comandante de Ula n Ba- ligh rendeu-se se m luta.Que podia fazer contra semelhante força? Oleg Khan voou para o fronte e tentou reagrupar suasforças. Você tinha que ter escutado o éter, como estava animado na noit e passada ! At é quealgumas naves espaciais da Terra chegaram e lançaram uma bomba enorme no terreno do quartelgeneral. Aquilo foi o fim de tudo. Os homens das tribos khanistas se dispersaram à toda pressa,procurando seus lugares de origem, em uma louca debandada. Juchi, o Shaman, foi entrevistadopelo almirante terrestre em Ula n Baligh e lhe de u instruções do que há de dispor no futuro etambém que venha lhe buscar e levá-lo consigo.

Flandry fechou os olhos e balançou sobre os pés como se fosse desmaiar. Bourtai o tomou nosbraços.

- O que está acontecendo, Dominic? - perguntou angustiada, quase chorando.

- Conhaque... - disse Flandry em um sussurro, - tabaco... chá indiano... uma boa maionese comvinho Riesling ao lado... ar condicionado... - sacudiu-se. - Desculpe , minha mente estavadivagando.

Flandry mal pôde perceber o ligeiro tremor nos lábios de Bourtai, mas Arghun viu bem, lançouum olhar desafiador ao terrestre e pegou a mão da jovem com firmeza. Ela se aferrou a ele. -Como minha menina, disse a ambos.

Desta vez Flandry compreendeu bem e com voz emocionada, olhando-os fixamente, disse-lhes:

- Que Deus os abençoe, meus filhos.

- O que? - disse Arghun, meio irritado e meio aturdido.

- Quando você tiver a minha idade e estiver tão batido pela s desventura s da vida como euestou, chegará à conclusão de que ninguém morre por ter o coraçã o destroçado... De fato, esteórgã o se cura co m uma desagradáve l rapidez. Se você quise r botar o nome de Dominic noprimeiro menin o que tiverem, serei muit o feliz enviando-lhes uma colherzin h a de prata,convenientemente gravada.

- Mas... - gaguejou Bourtai, - mas... - Ela se refez e apertou com mais força a mão de Arghun.

O rosto do Noyon enrubesceu. Procurou deixar aquilo de lado e, de uma forma impessoal etentando aparentar um ar mais natural, dirigiu-se novamente para Flandry, co m irreprimívelcuriosidade.

- E agora? Poderá explicar seu comportamento, homem da Terra?

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- Hum! - respondeu Flandry. - Sim, claro. Já estava na hora.

Flandry começou a caminhar, com o casal ao seu lado, ao longo das margens do Espírit o doLago, de águas azuis, sob um dossel de folhas geladas. O entardecer avermelhado encaminhava-separa a noite. Flandry falou com um alegre tom na voz:

- Nosso problema era poder enviar uma mensagem secreta para a Terra. O mais secretamenteque pudesse, naturalmente, para que ninguém, absolutamente ninguém pudesse reconhecê-la. Porexemplo, MAYDAY pintado na Torre do Profeta. Aquilo parecia uma loucura, um estúpidoagravo impulsionado pelo despeito; mas toda a cidade pôde vê-lo. E todo mundo falou do assunto.E como se falou! Embora nenhum betelgeusiano se encontrasse em Ulan Baligh naquele momento,aquilo constituía algo sensacional como notícia, e ninguém teria sido capaz de guardar o segredo.E os betelgeusianos, ao voltarem para sua pátria, levaram a informação com eles; e com isso osterrestre s conectado s com a Embaixada tinham qu e sabê-lo imediatamente. E os terrestrescompreenderiam sim! Para que você saiba, MAYDAY é um pedido de socorro, um código muitoantigo entre nós. Significa simplesmente: AJUDEM-ME.

- Oh! Sim... - Arghun bateu no músculo e sua franca gargalhada ressoou ao longe.

- Sim, agora compreendo tudo. Obrigado, amigo, po r est a fantástica brincadeira que podereicontar aos meus netos.

- É clássico - acrescentou Flandry. - Meu Corpo de Inteligência estava obrigado a enviar umanave espacial para investigar. Sabendo pouco ou quase nada do assunto, seus homenspermaneceram em alerta constante. Em vista da mensagem da Torre do Profeta, a história de Olegsobre minha morte acidental tinha qu e ser, se m dúvida , descartado. Imagin o meus camaradasmantendo a boca fechada e deixando-se enganar pelo Khan. O problema era então: comoinformá-los sobre a situação real sem que Oleg soubesse que eles já estavam informados? Agoravocê já pode imaginar como fiz tudo. Manobrando com o Tebtengri Shamanate sobre as planíciesda estepe , formando letras do alfabeto terrestre , grandes os bastante para serem vistas de umanave espacial a grande altura. As demais palavras da mensagem podiam ser um pouco menores, jáque o pessoal do Calisto podia fazer uso dos telescópios enquanto houvesse o menor sinal. Entãoescrevi uma nota muito breve, mas suficiente, através de toda a estepe condenada.

Flandry encheu seus pulmões daquele ar tênue. Apesar de toda s suas fadigas, o maravilhososentimento de estar vivo encheu todo seu ser. Fez um gesto e finalmente concluiu:

- Eu me atrevo a dizer que aqueles letras foram as maiores que jamais haviam sido escritas.Tão grandes, que para lê-las era preciso sair do planeta!

* * *