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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE DIREITO
MAGNUS HENRY DA SILVA MARQUES
O PODER CONSTITUINTE ACHADO NA RUA: AS IDEOLOGIAS
JURÍDICAS E AS RESPOSTAS AO MOVIMENTO PELA ASSEMBLEIA
CONSTITUINTE EXCLUSIVA PARA A REFORMA POLÍTICA.
Natal
2014
MAGNUS HENRY DA SILVA MARQUES
O PODER CONSTITUINTE ACHADO NA RUA: AS IDEOLOGIAS
JURÍDICAS E AS RESPOSTAS AO MOVIMENTO PELA ASSEMBLEIA
CONSTITUINTE EXCLUSIVA PARA A REFORMA POLÍTICA.
Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Orientador: Me. Juliano Homem de Siqueira
.
Natal
2014
Catalogação da Publicação na Fonte.
UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA
Marques, Magnus Henry da Silva.
O poder constituinte achado na rua: as ideologias jurídicas e as
respostas ao movimento pela assembleia constituinte exclusiva para a
reforma política / Magnus Henry da Silva Marques. - Natal, RN, 2014.
67 f.
Orientador: Prof. Me. Juliano Homem de Siqueira.
Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Curso de
Graduação em Direito.
1. Direito - Monografia. 2. Poder constituinte – Monografia. 3.
Democracia - Monografia. 4. Direito constitucional – Monografia. I.
Siqueira, Juliano Homem de. II. Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. III. Título.
MAGNUS HENRY DA SILVA MARQUES
O PODER CONSTITUINTE ACHADO NA RUA: AS IDEOLOGIAS
JURÍDICAS E AS RESPOSTAS AO MOVIMENTO PELA ASSEMBLEIA
CONSTITUINTE EXCLUSIVA PARA A REFORMA POLÍTICA.
Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito.
Aprovada em 28 de dezembro de 2014.
BANCA EXAMINADORA:
Juliano Homem de Siqueira
Daniel Araújo Valença
Ana Lia Almeida
Tava lá em casa, oiaiá Sem pensar sem maginar Quando ouvi bater na porta Salomão mandou chamar Era hora de lutar Para ajudar a vencer Para ajudar a vencer, oiaiá A batalha liberal Eu que nunca fui de luta Nem pretendia lutar, amigo velho Botei a arma na mão Era tempo de lutar. (Canto de capoeira. Domínio Público). A práxis do poder constituinte foi a porta pela qual a vontade democrática da multidão (multitudo) – e consequentemente a questão social – entrou no sistema político. (Antonio Negri).
Aos movimentos e organizações populares que construíram a belíssima campanha do Plebiscito Popular pela Constituinte Exclusiva e Soberana da Reforma Política. À Consulta Popular. Ao Levante Popular da Juventude. Aos excluídos do sistema que interpelam o centro. Aos meus companheiros e minhas companheiras que dividem comigo o sonho e práxis por um mundo mais justo, no qual o homem e a mulher possam arrebentar as correntes práticas e ideológicas de um sistema desumanizador.
AGRADECIMENTOS
Agradeço muito sinceramente aos companheiros e companheiras da Consulta
Popular que compreenderam a necessidade do afastamento pelo tempo de
produção, e tiveram de contar com apenas meio-militante nas atividades principais
de realização plebiscito, e principalmente por ter me inserido em um processo tão
cheio de mística e tão potencialmente transformador como o da campanha pela
constituinte.
Ao Levante Popular da Juventude e ao Centro acadêmico Amaro Cavalcanti
por terem feito todo o meu período de graduação ter transcendido à mera formação
acadêmica e terem se envolvido com tanto empenho na luta pela reforma política no
país.
Ao antigo Lições de cidadania, hoje Motyrum, por ter me permitido construir
uma concepção de Direito distante do positivismo auto-referente, suficiente na
própria teoria, conhecer verdadeiramente outro mundo que foi a atuação em
comunidade e principalmente por ter convivido com companheiros e companheiras
como Cazuza, Tatinha, Cícero, Hélio, Natália, Lucas, Thiago, Érika, Raquel, Talita,
Ilana, Juliana, Flávia, Lorena, Denis e tantos outros que contribuíram para me forjar
militante.
Aos amigos e parentes Débora, Nathan, Danielle, Priscilla, Pedro,
eLISSângela, Flávia, Cássio, Gustavo, Rachel, Flor, Renata, Lauro, Nátaly, Mara,
Lorena, Denis, Giovana, André, e tantos outros que partilham sonhos e momentos
em todo esse período de formação acadêmica e política. A Pedro mais uma vez por
ter me apresentado às ideias de Enrique Dussel. A Ana Lia e Daniel Valença por
aceitarem o convite de participar da banca examinadora e pelas excelentes
contribuições ao trabalho, a Juliano Siqueira por sua orientação.
A minha mãe, por ter estado presente em toda a minha caminhada até o aqui
sempre com todo carinho.
A minha companheira, Carolina, por ter suportado os incansáveis monólogos
sobre minha monografia, por estar presente em todo o período de produção, nem
que seja jogando 2048, e por ter suportado esse quase enclausuramento que foi o
processo de escrita e de pesquisa. E principalmente por ter sido tão companheira na
dialética da vida a dois, até na produção acadêmica.
MARQUES, Magnus Henry da Silva. O poder constituinte achado na rua: as ideologias jurídicas e as respostas ao movimento pela assembleia constituinte exclusiva para a reforma política. 2014. 67 f. Monografia (Bacharelado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014.
RESUMO
O sistema político brasileiro tem origem no projeto de transição lenta, gradual e
segura da ditadura militar que teve sua maior expressão na opção pelo congresso
constituinte em detrimento de uma assembleia constituinte. Em Junho de 2013
vimos um momento de intensa luta por direitos e que denunciava também a falência
das instituições brasileiras e de seu sistema político. Em resposta às mobilizações
de junho, a presidenta da República propôs cinco pactos com o povo brasileiro,
entre eles a realização de uma reforma política a partir de uma Assembleia
Constituinte que se restringiria a revisar a Constituição no que tange ao sistema
político do país. Ao anunciar essa proposta, imediatamente diversos meios de
comunicações trataram de deslegitima-la, e o Congresso, posteriormente, a
derrubou. No entanto, a tese da constituinte exclusiva foi incorporada por diversos
movimentos sociais que decidiram realizar um plebiscito popular para a proposta da
constituinte ganhar força social. Mas as vozes em discordância da realização da
reforma política por essas vias não vieram apenas dos meios de comunicação, mas
também de uma parcela considerável da ciência jurídica. O presente trabalho tratará
de verificar se a resposta majoritária dada à tese da constituinte parcial é compatível
com a realidade e com a natureza concreta do poder constituinte, de caráter aberto
e voltado para o futuro. Para tanto, se partirá de duas categorias fundamentais para
entender as formulações da ciência: a ideologia e a alienação. Em seguida se tratará
de esmiuçar a relação entre o poder constituinte e o Direito e como um momento
constituinte se torna legítimo.
Palavras-chave: Poder constituinte. Constituinte Parcial. Constitucionalismo latino-
americano. Direito achado na rua. Marxismo e direito. Ideologia.
ABSTRACT
The Brazilian political system has its origin in the slow, gradual and safe transition,
project of the military dictatorship that had its greatest expression in the choice of
constituent congress instead of a constituent assembly. In June of 2013 we saw a
period of intense struggle for rights and also denounced the failure of Brazilian
institutions and its political system. In response to the protests in June, the President
of the Republic proposed five pacts with the Brazilian people, including the
implementation of a policy reform from a Constituent Assembly that would be
restricted to revise the Constitution in relation to the political system. Announcing the
proposal, immediately many communications media tried to delegitimize it, and the
Congress subsequently knocked. However, the thesis of the exclusive constituent
was incorporated by several social movements that decided to hold a popular
referendum to the proposal of the constituent gain social power. But the voices in
disagreement with the holding of these channel for political reform did not come only
from the media, but also a considerable portion of legal science. This paper will try to
verify that the majority answer to the partial constituent thesis is compatible with
reality and with the precise nature of the constituent power of openness and forward-
looking. Therefore, it will leave from two fundamental categories to understand the
formulations of science: ideology and alienation. Then he will try to scrutinize the
relationship between the constituent power and the law and how a constituent
moment becomes legitimated.
Keywords: Constituent Power. Partial Constituent . Latin American constitutionalism.
Law Finded in the street. Marxism and law. Ideology.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10
2 IDEOLOGIA E PODER CONSTITUINTE ....................................................... 16
2.1 A ALIENAÇÃO OU FETICHISMO E A IDEOLOGIA ............................................. 20
2.2 IDEOLOGIA E AS CIÊNCIAS HUMANAS ............................................................ 25
2.3 IDEOLOGIA E DEFORMAÇÃO DO PODER CONSTITUINTE ............................ 28
3 O PODER CONSTITUINTE E SUA FORMULAÇÃO HEGEMÔNICA ........... 34
3.1 AS IDEOLOGIAS JURÍDICAS ............................................................................. 34
3.2 O PODER CONSTITUINTE ATRAVÉS DOS TEMPOS ....................................... 40
3.3 CONSTITUINTE PARCIAL: ENTRE GOLPE E INCONSTITUCIONALIDADE ..... 46
3.3.1. As questões em debate ................................................................................... 49
3.3.2. A legitimidade em discussão ........................................................................... 54
4 CONCLUSÃO ................................................................................................ 58
5 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 63
10
1 INTRODUÇÃO
O novo, hoje, na América Latina poderá nos levar mais longe: a superação também da colonialidade.
(Waldi José Rampinelli).
Há quatro décadas Eduardo Galeano transformava em prosa a denúncia da
exploração de um povo; constituía a identidade de um povo como outro de um
sistema de centro bem definido e sem espaço para outros; deixava exposta, para
que assim começassem a cicatrizar, as veias abertas de um continente que nasceu
para “história mundial” - leia-se europeia - como periferia em que materializavam as
contradições do desenvolvimentismo moderno e que teve que sangrar para que
fosse constituída a modernidade: a América Latina.
Aquela identidade de oprimido culminou em um momento prático de
contestação à forma como se exercia o poder neste continente e a quem tinha o
direito de fazê-lo. Com isto, outra categoria se redefine, se redesenha e se constitui:
a política.
No último período, em que o Brasil enfrentava o enxugamento do público, do
campo político, e a insistente tentativa do projeto neoliberal de transformar a política
em coisa privada, outros países latino-americanos, como a Venezuela, a Bolívia e o
Equador, após derrotar o projeto neoliberal, ensaiaram a democratização um
processo democratizante colocando como centro das discussões nacionais a
questão do poder.
Desde essas mudanças, os países latino-americanos vem se colocando como
sujeitos na história, trilhando seus próprios caminhos, elaborando seu autêntico
discurso filosófico, fazendo partir da periferia do sistema capitalista global, em um
momento prático das transformações ao sul do mundo, narrativas próprias de
organização do poder. Em face desse momento continental de ensaios de
autonomia, também a história constitucional desses países vem sendo remodelada
de acordo com suas realidades concretas e não mais vinculadas aos projetos dos
países do centro do capitalismo global.
No Brasil, as manifestações ocorridas em Junho de 2013 colocaram em
debate a relação entre o povo e as suas instituições. As reivindicações por direito ao
transporte, à saúde, à educação, a políticas públicas bem aplicadas, enfim, à
participação no processo de decisão trouxeram à tona as debilidades de um sistema
11
político forjado em meio a uma ditadura, a um regime autoritário completamente
distante do paradigma de Estado Democrático de Direito.
O que começou contra o aumento de passagem em várias cidades do país se
transformou em luta por diversas outras pautas como saúde pública, educação,
mobilidade urbana em seu sentido mais pleno, e contra o sistema político atual. As
manifestações começaram isoladas em alguns Estados, como no Rio Grande do
Norte, no nordeste brasileiro, até tomar proporções nacionais, em primeiro momento
em solidariedade aos manifestantes que sofreram grande repressão, e em segundo
momento, de forma propositiva com inúmeras pautas.
O uso desmedido da força atraiu a atenção e a simpatia do grande público. Inicia- se, então, a segunda etapa do movimento, com as manifestações de 17, 18, 19 e 20 de junho, quando alcança o auge. Agora outras frações da sociedade entram espontaneamente em cena, multiplicando por mil a potência dos protestos, mas simultaneamente tornando vagas as suas demandas. De milhares, as contas de gente na rua passam a centenas de milhares. Na segunda, 17, quando o mpl chama a quarta jornada, que juntou em São Paulo 75 mil pessoas7, ela é replicada nas maiores capitais do país da maneira espontânea.
1
Algumas pesquisas de opinião foram realizadas por agências nacionais que
no permitem ter um retrato melhor sobre as bandeiras que eram levantadas, nessas
pesquisas realizadas pelo IBOPE com os manifestantes de junho foi apresentado
que 65% dos entrevistados tinham como motivo de protesto o ambiente político de
forma genérica (contra a corrupção, necessidades de mudanças, insatisfação com
governantes em geral, insatisfação com políticos em geral, etc.), 83% não sentia
representado por algum político brasileiro e 89% por nenhum partido político (CNT-
IBOPE INTELIGÊNCIA, 2013).
De alguma forma as manifestações tocavam na necessidade da reforma do
sistema político brasileiro, mesmo que ela não se apresentasse de forma expressa.
Junho de 2013 foi um sintoma pontual de um problema vivido pelo Brasil e por
outros países latino-americanos de descrença generalizada na política, de crise de
representatividade tudo isso causado por um sistema político auto-referente2.
1 SINGER, 2013.
2 As chamadas jornadas de junho, as mobilizações de junho de 2013, ainda tem o seu significado
disputado no seio da sociedade brasileira. Em que pese ter em sua gênese pautas progressistas relacionadas a consolidação de direitos, como transporte, e a insatisfação com o atual sistema político, tivemos, no seu fim, um processo de expulsão das organizações políticas, inclusive de movimentos sociais e o surgimento de pedidos de intervenção militar, mais uma vez em defesa do país contra uma suposta ameaça comunista. Cf. VALENÇA, Daniel Araújo. As jornadas de junho e a
12
Frente a uma crise de um modelo de democracia hegemônico, o da
representatividade, as manifestações populares foram capazes de questionar
principalmente a forma em que se exerce o poder no país. Não a toa uma série de
propostas surgiram do executivo e do legislativo, todas com o objetivo de realizar
uma reforma política, umas com capacidade de promover reformas mais amplas e
estruturais, outras capazes de tocar apenas em questões eleitorais.
Mas de todas as possibilidades levantadas para dar vasão às reivindicações
das manifestações de Junho, a questão da realização de uma Constituinte Exclusiva
foi a que mais movimentou cientistas do direito e doutrinadores para se
manifestarem a respeito do tema.
Em resposta às manifestações, a presidente Dilma Rousseff propôs os 5
pactos à nação3, dentre eles o pacto pela reforma política, quando a mandatária se
comprometeu em articular sua base no congresso para convocar um plebiscito no
qual seria perguntando ao povo se era a favor ou não da realização de uma
Constituinte Exclusiva para a Reforma Política. De todos os pontos do pacto,
nenhum foi tão rechaçado por amplos setores, inclusive da base aliada do governo,
por isso, rapidamente a proposta foi modificada pela Presidente da República4.
Considerando a possibilidade concreta de realizar uma reforma política
ampla, alguns movimentos sociais, partidos políticos, setores da igreja católica e
sindicatos passaram a defender a realização de uma constituinte exclusiva e
lançaram, em novembro de 2013, a campanha do plebiscito popular, uma tática para
atualidade do marxismo. Revista crítica do direito, [s.l.], n. 4, v. 60. Disponível em: <http://www.criticadodireito.com.br/todas-as-edicoes/numero-4---volume-60/daniel>. Acesso em: 16 dez. 2014. 3 Os pactos propostos pela presidente Dilma Rousseff foram amplamente divulgados pela mídia. Cf.
ALCÂNTARA, Diogo; COBUCCI, Luciana. Dilma anuncia 5 pactos e propõe plebiscito da reforma política: presidente pediu discussão sobre propostas envolvendo responsabilidade social, reforma política, saúde, transporte público e educação. Terra, Brasília, 24 jun. 2013. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/dilma-anuncia-5-pactos-e-propoe-plebiscito-da-reforma-politica,c3576d53bbb6f310VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html>. Acesso em: 21 set. 2014.; DILMA propõe 5 pactos; entre eles, plebiscito sobre Constituinte para a reforma política. Brasil de fato, São Paulo, 24 jun. 2013. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/13338>. Acesso em: 21 set. 2014. 4Para entender o processo político que se desenrolou após a proposição dos 5 pactos à nação, no
que tange à reforma política, indicamos as duas reportagens seguintes que trazem relatado o momento do surgimento da proposta e posterior recuo do executivo. Cf, LOCATELLI, Piero. Entenda a reforma política. Carta Capital, [s.l.], 31 out. 2014. .Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/politica/entenda-a-reforma-politica-6840.html>. Acesso em: 16 dez. 2014.; COSTA, Breno; NALON, Tai. Dilma recua de assembleia constituinte para a reforma política após críticas. Folha de São Paulo, São Paulo, 25 jun. 2013. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/06/1300992-dilma-recua-de-assembleia-constituinte-paa-reforma-politica-diz-presidente-da-oab.shtml>. Acesso em: 16 dez. 2014.
13
legitimar o movimento constituinte, que perguntaria à população brasileira se ela
seria ou não a favor da realização da referida constituinte. Esse plebiscito foi
realizado de fato na semana de 1 a 7 de setembro de 2014, contou com a
participação de 7.754.436 (sete milhões, setecentos e cinquenta e quatro mil,
quatrocentos e trinta e seis) pessoas através de urnas espalhadas pelo país e de
votação online, tendo 97,05% dos votantes se manifestado favoravelmente à
realização da Reforma Política através de uma constituinte exclusiva e soberana5.
Apresentada a alternativa, a proposta dos movimentos sociais foi
prontamente rechaçada6 pelos setores da sociedade brasileira que se adequam e se
beneficiam de uma democracia representativa que padece de uma corrupção
sistêmica e subverte os interesses públicos em prioridades particulares. O
argumento fundamental dos opositores diz-se quanto à impossibilidade jurídica da
convocação de um constituinte exclusiva para tratar de um específico tema jurídico.
Segundo tal concepção, o poder constituinte só pode operar para tudo poder
transformar. Além disso, para eles, a constituição não tem inclinação ao suicídio,
dependendo o momento constituinte de uma ebulição social a representar a
derrocada do sistema constitucional vigente, fato que não se identifica.
Toda essa problemática veio à tona ainda quando a realização do plebiscito
oficial era uma proposta do Governo Federal, em resposta às movimentações de
junho de 20137. O intenso debate teórico acerca do tema e as divergências entre
5 O processo de votação foi organizado por diversas instituições, organizações e movimentos sociais
do Brasil, dentre eles o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais sem Terra (MST), o Levante Popular da Juventude, a Consulta Popular, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Via Campesina, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Sindicato dos Servidores Municipais de Natal (SINSENAT), o Partido dos Trabalhadores (PT), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O resultado foi divulgado no dia 24 de setembro de 2014 através de uma coletiva de imprensa. Cf. ALBURQUEQUE, Luiz Felipe. Com cerca de 8 milhões de votos, sociedade pede constituinte do sistema político. Campanha do Plebiscito Constituinte. Disponível em: <http://www.plebiscitoconstituinte.org.br/noticia/com-cerca-de-8-milh%C3%B5es-de-votos-sociedade-pede-constituinte-do-sistema-pol%C3%ADtico>. Acesso em: 27 set. 2014. 6 A proposta não teve consenso também na base do governo, o Vice-presidente, membro do PMDB e
constitucionalista, concedeu entrevistas se posicionando de forma contrária à realização dessa constituinte parcial. Cf. TEMER, Michel. Temer diz que Constituinte específica para reforma política é “inviável”. Agência Brasil, Brasília: 25 jun. 2013. Entrevista concedida a Luana Lourenço. Disponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-06-25/temer-diz-que-constituinte-especifica-para-reforma-politica-e-“inviavel”>. Acesso em: 21 set. 2014. 7 A proposta de realização de uma constituinte parcial para promover uma reforma política no país
vem sendo ventilada por parcela dos setores que compõem o governo desde antes das manifestações de junho de 2013, e vem sendo discutida do Congresso e no Executivo desde 2005. Já nesse período houveram manifestações de constitucionalistas, como Paulo Bonavides, contrárias a sua concretização. Cf. BONAVIDES, Paulo. Para especialista, proposta de revisão constitucional é golpe. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 ago. 2005. Entrevista concedida a Uirá Machado.
14
constitucionalistas consagrados8 trouxeram uma suspeita da pouca capacidade da
doutrina clássica de entender o real. Um dos atuais ministros do STF, Luís Roberto
Barroso, se pronunciou, inclusive, em entrevista9 acerca da impossibilidade teórica
de uma constituinte parcial, limitada a realizar mudanças em um determinado tema,
afirmando ainda que a verdade, os fatos, por vezes derrota a teoria constitucional.
Pergunta-se: que teoria é essa? Por que ela anda atrás dos fatos? E pra que
ela nos serve se não consegue explicar a realidade? De fato, essa “teoria
constitucional” consegue dar respostas aos atuais desafios do Brasil e de seu
continente?
A necessidade de perquirir sobre a formulação teórica do constitucionalismo
brasileiro e sobre a estrutura do ordenamento constitucional brasileiro emerge das
reivindicações do povo em movimento. Especificamente sobre o ordenamento
brasileiro, no que tange às mudanças na constituição, o texto constitucional prevê o
procedimento das emendas constitucionais a partir do poder constituinte derivado, o
que já seria suficiente para promover transformações no sistema político brasileiro,
no entanto, não chega a proibir mudanças a partir de outra assembleia constituinte.
A proposta de convocação de uma assembleia constituinte exclusiva abriu uma
possibilidade de alterar sobremaneira o sistema político do país, e de permitir que a
sociedade brasileira se debruce sobre a temática, porém, é preciso restar claro se o
sistema jurídico vigente, principalmente no que tange a sua teoria, permite
mudanças na Constituição a partir desse procedimento.
O poder constituinte ser colocado no polo do objeto de pesquisa não se
justifica apenas na experiência brasileira. O momento prático de transformação, e de
constituição de sua identidade, em alguns países da América Latina se deu a partir
da realização de assembleias constituintes, como na Bolívia, Venezuela, que
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1508200521.htm>. Acesso em: 21 set. 2014. 8As manifestações contrários à realização por parte da doutrina prosseguiu com a proposta posterior
às manifestações de Junho de 2013, parte dela não considerou impossível a realização de uma constituinte parcial, tecendo argumentos em oposição à materialização dessa proposta analisando a conjuntura política do país, outra, por outro lado, se limitou a taxar a proposta de inconstitucional. .Cf. BERCOVICI, Gilberto et al. Defender assembleia constituinte, hoje, é golpismo e haraquiri institucional. Consultor Jurídico, [s.l], 26 ago. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-
ago-26/defender-assembleia-constituinte-hoje-golpismo-institucional>. Acesso em: 21 set. 2014.; DUARTE, Hugo Garcez. A inconstitucionalidade da reforma parcial da Constituição por constituinte exclusiva. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3772, 29 out. 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/25618>. Acesso em: 19 set. 2014. 9 A entrevista foi concedida ao TV Migalhas, disponível na internet.
Cf. TV MIGALHAS. Entrevista Luís Roberto Barroso (constituinte exclusiva). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ipaYn19QrMw>. Acesso em: 03 set. 2014.
15
acabaram por inaugurar novos paradigmas de Estado, este marcado por um caráter
claramente anti-imperialista, amplo e Democrático, por exemplo.
Refletir sobre o poder constituinte, é, pois, um imperativo do
constitucionalismo latino-americano para que a realidade desse continente seja
compreendida concretamente e a tensão entre democracia e constitucionalismo
possa ser apreendida, e o processo constituinte de um continente em
transformação, refletido.
Fato é que a realização das reestruturações em torno da disposição do poder
político se deu de forma variada nas diferentes latitudes do continente latino-
americano. A luta por tal reforma no Brasil, assim, também adquirirá particularidades
frente aos outros processos constituintes já citados. Mas o processo constituinte na
América Latina consegue ser explicado pela doutrina clássica do Direito
Constitucional? Em especial a mais próxima do Positivismo que ora aloca o poder
constituinte fora da esfera do Direito, ora, ao aceita-lo dentro do Direito, o submete
ao poder constituído?
A ciência do Direito e sua relação com realidade é posta em cheque a cada
movimentação da realidade constitucional isso se deve a existência de uma zona
cinzenta entre o campo do direito constitucional e a política, uma zona sempre difícil
de ser apreendida por parte da ciência do Direito, nascedouro de uma tensão
inegável entre constitucionalismo e democracia.
Pretende-se, portanto, investigar se a natureza do poder constituinte e sua
legitimidade conseguem ser apreendidas pela doutrina constitucionalista clássica,
compreender qual a concepção de direito e de poder constituinte deu base às
principais posições sobre à constituinte parcial. Isso em um contexto de tensão entre
democracia, um processo aberto de constituição da realidade, e constitucionalismo,
este impondo limites à potência constituinte. Para tanto, partiremos do estudo de
duas categorias e sua relação com a formulação sobre o poder constituinte: a
ideologia e a alienação, e do estudo sobre as formulações sobre o poder
constituinte, em seguida far-se-á a análise das posições teóricas acerca da tese da
constituinte parcial.
16
2 IDEOLOGIA E PODER CONSTITUINTE
As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.
(Carlos Drummond de Andrade).
Uma importante categoria para entender as formulações teóricas das ciências
humanas é a ideologia. Mas que ideologia? A ideologia é um dos conceitos
utilizados pelos pesquisadores que tomam diversos sentidos, nem mesmo na
literatura da teoria marxista essa categoria é utilizada de forma uniforme10. No
entanto, o conceito utilizado nesse trabalho será mais bem explicitado antes de
adentrarmos no seu reflexo sobre a categoria do poder constituinte.
A categoria aqui utilizada aparece já em Marx quando ele desenvolve o
materialismo histórico dialético, de forma mais específica na sua demonstração de
que, a filosofia com marcas da ideologia, segundo Marx e Engels (2009, p. 22),
concebeu a ideia anterior ao humano, determinante do ser social. Esse termo é
ainda aprofundado por Marilena Chauí em seu estudo sobre o discurso
competente11.
A ideologia, nessa elaboração, é responsável por uma inversão. O
mecanismo que ela engendra permite que a ideia seja utilizada para, em tese,
explicar o real, mesmo ela partindo do mundo material e não o inverso. Os autores
que utilizam essa categoria costumam encontrar sua origem na divisão do trabalho,
desse modo, ela só é capaz de aparecer quando há a cisão entre a ideia e a práxis,
momento em que aquela pode representar apenas fantasias, pode dizer algo que
não está no real. Isso só é possível com o advento, na história da humanidade, da
divisão entre o trabalho material e intelectual, uma vez que, a partir desse momento,
a produção da ideia e a produção dos meios de reprodução da vida e o consumo
cabem a indivíduos diferentes, momento em que podemos ver nascerem as ciências
puras12. Também com a divisão do trabalho, o homem e a mulher perdem a
10
Em que pese o emprego diferenciado desse termo por diversos autores, conforme Lyra Filho (1995, p. 12), as utilizações distintas não se excluem entre si, apenas são formas de observar o mesmo fenômeno de posições diferentes. Esse termo já representou o estudo da origem e funcionamento das ideias em referências aos signos que a representavam, depois passou a referir as próprias ideias, ao conjunto de ideias de uma pessoa ou grupo, as opiniões organizadas em um padrão. Com esse estudo foi possível verificar que a imagem mental não corresponde à imagem das coisas (LYRA FILHO, 1995, p; 12-13). 11
LYRA FILHO, 1995, p. 13. 12
MARX; ENGELS, 2009, p. 45
17
consciência de que são capazes de determinar a realidade para se enxergarem
apenas como determinados, ao terem já estabelecidas as relações entre eles e a
natureza e deles entre si, as divisões de autoridade e as formas de poder, assim
também se processa o mecanismo da alienação, quando a ação humana se
transforma em um poder estranho ao homem e à mulher e os determinam13, uma
vez que não podem decidir o seu destino.
A ideologia com essas dimensões toma em sociedades históricas um sentido
concreto e se reveste de um caráter instrumental, nas capitalistas, à classe que
domina o poder político e econômico para a proteção das estruturas de uma
sociedade opressora e que traz benefício a uma parcela pequena de sua população.
A sociedade histórica se problematiza, põe em análise constantemente as
suas origens e a de suas instituições e valores, não só é no tempo, mas está
sendo14, assim, homens e mulheres podem cotidianamente problematizar sua
realidade e agir sobre ela no sentido de transformá-la, uma vez que são eles e elas
os sujeitos que constituem a sociedade e que a determinam. Mas essa
compreensão não tem vocação mecânica em que não reconhece o caráter
contraditório da realidade, a ação da sociedade sobre o homem e a mulher,
portanto, também não pode ser negligenciada, na perspectiva do materialismo
histórico dialético o homem e a mulher são ao mesmo tempo condicionados e
determinantes15, e a percepção dessa característica humana demonstra o quão
ineficaz na apreensão teórica da sociedade e de seus institutos é isolá-los da ação
humana.
As sociedades propriamente históricas são as que detêm como questões
abertas: a possibilidade de sua extinção, a data de sua origem, de poder se
transformar, e por isso são temporais inclusive para si16. Essas sociedades tem seu
fundamento nela mesma, não mais em elementos externos como mito de origem ou
uma fundamentação metafísica, que em outras sociedades geravam uma
petrificação no tempo.
Essa [mesma] petrificação do tempo é o que a sociedade propriamente histórica não pode conseguir, senão por meio da ideologia. Para essa sociedade sua existência temporal e, portanto, sua emergência como sociedade é percebida como ambígua, mas a ambigüidade não é “defeito”
13
MARX; ENGELS, 2009, p.49 14
CHAUÍ, 2007, p. 27 15
FROMM, 1970, p. 22 16
CHAUÍ, 2007, P.26-27.
18
explicativo e sim constitutiva do ser mesmo do social. Com efeito, a origem é percebida como dependendo da ação própria dos homens enquanto sujeitos sociais e, no entanto, estes percebem, simultaneamente, que sua ação criadora não é pré-social, mas já é algo social.
17
Percebe-se que nas palavras de Chauí a ideologia representa uma negação
da historicidade da sociedade, para assim tornar estável a realidade e estabelecer
as bases para a conservação das coisas tal como estão, e só ela pode fazê-lo, uma
vez que a existência temporal das sociedades não representa um equívoco.
Nesse sentido, o discurso ideológico, a categoria que passará a guia nossa
análise do poder constituinte, sobre a realidade se distancia do mundo material para
manter-se unicamente na dimensão das ideias, por isso ideológica, onde as divisões
próprias de uma sociedade formada por classes não o atinge, e assim pode
pretender-se uniforme e universal, e que aquele que discursa não é imerso no
mundo, mas fala de fora dele. Desse modo, a sociedade se torna homogênea e sem
contradições, nas sociedades históricas, através da ideologia, que nega o diferente,
o outro, e assim a totalidade pode encobri-lo. E para manter a estabilidade de uma
ordem, o discurso ideológico precisa negar a capacidade humana de agir no mundo,
a característica própria das sociedades históricas, na qual o trabalho, em seu
sentido marxiano, é o único elemento capaz de construir a história.
A primeira premissa de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos. O primeiro fato a constatar é, portanto, a organização corpórea (köperliche) desses indivíduos e a relação por isso existente (gegebenes) com o resto da natureza. [...] Toda a historiografia tem de partir dessas bases naturais e da sua modificação ao longo da história pelo homem.
18
Nessa perspectiva, é a capacidade de trabalho que constitui a realidade
humana, e a partir do exercício do trabalho sobre o mundo os agentes se
constituem, desse modo o início da sociedade é o de seus sujeitos, e o trabalho, a
ação humana, é quem permite a sua alocação no real19. Uma concepção
materialista compreende, inclusive, que essa capacidade humana do trabalho é a
característica que o distingue o homem e a mulher dos demais animais, e através da
produção dos meios de subsistência a humanidade define sua realidade material.
17
CHAUÍ, 2007, p. 27 18
MARX; ENGELS, 2009, p. 24, grifo dos autores. 19
CHAUÍ, 2007, p. 28.
19
Podemos distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião – por tudo que quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios de subsistência (Lebensmittel), passo que é requerido pela sua organização corpórea. Ao produzirem os seus meios de subsistência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material.
20
O discurso ideológico, por sua vez, ao concretizar o seu mecanismo de
inversão, tenta neutralizar a capacidade do trabalho de alterar a realidade, não
através de uma ação consciente e maléfica de senhores que pensam táticas de
como manter a realidade tal como está, de ludibriar os sujeitos da história
submetendo-os à inação. Muito pelo contrário, ele é produto de um sistema que
aliena o homem e a mulher, que, construído pela humanidade, a submete, como
será melhor explicitado no tópico mais pertinente.
A ideologia com essas dimensões também trabalha através da separação da
realidade em partes, sem que se faça uma integração dessas parcelas com a
totalidade em que estão inseridas, portanto, alheias uma às outras, nesse diapasão
se mantém distante o trabalho do pensamento, fazendo com que o cenário ideal
para a produção da ideia que não vem da realidade, mas sim de fora dela, fale sobre
a realidade, sobre o social e sobre o político21. Portanto, o discurso ideológico se
anuncia externo e neutro, para “melhor explicar o real”, e assim não se perquirir a
origem daquele que pronuncia o discurso, para que seus interesses de classes, e a
quem é direcionado o discurso, possa ser ofuscado.
O discurso ideológico pretende explicar a realidade, mas apenas até certo
nível, negando o caráter histórico do social e do político, ele apenas tangencia o
real, mantendo-se sempre em uma dimensão própria, do ideal, do abstrato. Por isso
não é realmente eficaz em explicar o mundo, pois não parte de dentro, mas de fora,
e assim se constitui de lacunas, de espaços em branco, de falhas. A ideologia,
destarte, se alimenta da “lógica das lacunas” 22, para cumprir a sua função de não
dizer todo o real e negar as características de uma sociedade histórica,
possibilitando a naturalização de seus vícios, o mascaramento de suas contradições
e a neutralização da ação humana.
As partes vão se distanciando do todo, e o poder político corta sua ligações
com o social a partir desse discurso que tem buracos, e as relações desiguais e
20
MARX; ENGELS, 2009, p. 24, grifo dos autores. 21
CHAUÍ, 2007, p. 30. 22
CHAUÍ, 2007, p 33.
20
encobridoras de alteridade produzidas por um modo de produção que explora os
corpos dos homens e mulheres e que os transformam em mercadoria se definem
como inerentes ao próprio ser social da humanidade, para que se projetem para
dentro dos oprimidos os valores e ideias do opressor, e através da boca daquele fale
o opressor, através dos braços daquele, aja o opressor. Funda-se, assim, o império
das ideias no lugar do império dos homens, a história que se encanta com o
discurso ideológico toma como centro a ideia, o que o homem diz que é, e não o que
o homem realmente é, enfim, como os homens e mulheres são na realidade
material.
Também a formulação do discurso jurídico não está livre de um mecanismo
que toca todas as dimensões da vivência humana em uma sociedade que se coloca
em questão e que encontra em si os seus próprios sentidos por vezes mascarando a
origem material das estruturas de poder. Esse fenômeno de inversão do real
produzido pela ideologia então estudada guarda uma relação com outra categoria, a
alienação, utilizada por autores marxistas na compreensão da realidade, essa que
termina por delinear ainda mais o mecanismo engendrado pela ideologia.
2.1 A ALIENAÇÃO OU FETICHISMO E A IDEOLOGIA
A alienação no sentido marxiano tem origem no conceito hegeliano de
alienação da consciência, uma alienação que independia da história, mas foi ao
superar o idealismo hegeliano, trazendo uma interpretação da alienação do homem
concreto, que Marx desvinculou esse conceito de qualquer referência metafísica23. A
alienação e a ideologia são duas categorias teóricas que, segundo a literatura
marxiana, tem sua origem no mundo material pelo mesmo fato, a divisão entre o
trabalho material e o trabalho intelectual24, momento em que há uma cisão na práxis
humana e a teoria e a prática passam a representar realidades distintas. Desse
modo, em Marx a alienação tem origem econômica, assim como a ideologia, mas é
multidimensionada, ou seja, atinge outras dimensões, outros campos da realidade
humana como a política, a religião, a ciência e a arte 25, essa concepção se repete
23
KONDER, 2009, p. 30 24
KONDER, 2009, p. 65. 25
Lendro Konder traz um brilhante ensaio sobre a alienação e sua manifestação nos diversos campos da realidade humana em livro dedicado ao estudo dessa categoria na literatura marxista e na práxis humana. Cf KONDER, Leandro. Marxismo e alienação. Contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação. São Paulo: Expressão popular, 2009.
21
em Dussel que afirma: “toda alienação política, erótica, pedagógica ou fetichista se
consumará em sua respectiva econômica (3.1.5-4,4.9) na formação social”26, essa
origem é também reforçada em Chauí (1985, p. 55) ao afirmar que “a alienação
religiosa não é a forma fundamental da alienação, mas apenas um efeito de outra
alienação real, que é a alienação do trabalho”.
Os mecanismos da alienação são responsáveis pela desumanização do
homem e da mulher e por sua transformação em coisa, em objeto, mesmo ainda
sendo humano. Esse processo tem origem na atividade dos homens e das mulheres
de produção de seus meios de subsistência. A modernidade acabou com as
referências externas ao próprio humano para fundamentar a história dos homens e
mulheres, bem como os produtos de suas ações, constituindo sociedades
propriamente históricas.
A formulação marxiano a partir do materialismo histórico dialético nos traz
como pressuposto que o homem e a mulher produzem a si próprio a partir do
trabalho, da produção de sua vida material; isso se dá porque a existência de
determinados modos de produção, determinadas configurações de relações, certas
relações de produção, determinadas ideias só podem existir se tiverem como base
alguns elementos materiais forjados pela própria ação humana sobre a natureza e
sobre os próprios homens e as próprias mulheres. Vejamos, não haveria a
formulação do Direito Natural à propriedade se não houvesse a humanidade
superado a propriedade comunal primitiva e estabelecido o atual estatuto de
propriedade, eminentemente privada, ou mesmo não teria sido estabelecida a
divisão entre o trabalho intelectual e o material se não houvesse a produção de
excedentes ao ponto de permitir que alguns se desligassem do processo produtivo27.
É, portanto, no trabalho que encontraremos o mecanismo da alienação e sua
proximidade com o fenômeno da ideologia.
Na acepção marxista, por conseguinte, a alienação é um fenômeno que deve ser entendido a partir da atividade criadora do homem, nas condições em que ela se processa. Deve ser entendido, sobretudo, a partir daquela atividade que distingue o homem de todos os outros animais, isto é, daquela atividade através da qual o homem produz os seus meios de vida e se cria a si mesmo: o trabalho humano.
28
26
DUSSEL, [1980?], p. 59. 27
KONDER, 2009, p. 64. 28
KONDER, 2009. p. 40, grifo do autor.
22
De elemento que humaniza, o trabalho, a partir do mecanismo da alienação,
passa a tornar o homem e a mulher objetos ao passo que é a alienação do trabalho
do trabalhador por se inserir em um mundo voltado à produção de mercadorias, e
promovida a cisão entre o produtor e o produto. Desse modo, em um mundo que
desenvolve o seu devir histórico em volta da produção de mercadorias, os valores e
normas desta passam a serem impostos ao do produtor, e apenas porque, antes
mesmo da realização do trabalho, o produto já pertence a outrem29.
Dussel, ao elaborar uma filosofia da periferia, a filosofia da libertação, e
estudar o processo de colonização na constituição do ego moderno europeu e da
alteridade na América Latina, encontra na alienação outra dimensão, a totalizante, a
que justifica o processo de dominação do povo latino-americano pelos europeus
colonizadores, sem negar a existência de um mecanismo que eleva o objeto de
produção do homem e da mulher a sujeitos e desvaloriza a humanidade a objetos,
sendo esse processo identificado pelo autor em outra categoria, o fetichismo (a
alienação propriamente marxiana).
O outro, que não é diferente (como afirma a totalidade) mas distinto (sempre outro), que tem sua história, sua cultura, sua exterioridade, não foi respeitado; não se lhe permitiu ser outro. Foi incorporado ao estranho, à totalidade alheia. Totalizar a exterioridade, sistematizar a alteridade, negar o outro como outro é a alienação. Alienar é vender alguém ou algo, é fazê-lo passar a outro possuidor ou proprietário. A alienação de um povo ou indivíduo singular é fazer-lhe perder seu ser ao incorporá-lo como momento, aspecto, ou instrumento do ser de outro.
30
A alienação em Dussel ainda transforma os homens e mulheres em objetos,
mas não quaisquer homens e mulheres, mas os outros, os distintos, os que se
encontram exteriores ao sistema totalizante que se pretende eterno e, para
possibilitar sua perpetuação no tempo, pretende incluir, temporalmente e
espacialmente, toda a exterioridade31 possível32 por isso, o outro representa um
perigo ao mesmo, e por isso deve ser colonizado ou, em última instância, eliminado.
29
KONDER, 2009, p. 42. 30
DUSSEL, [1980?], p. 58. 31
Essa categoria presente na formulação de Dussel está intimamente relacionado com a de alteridade. A exterioridade representa o outro que está fora do sistema ontológico do mesmo. Para ele é essa a categoria mais importante de toda a Filosofia da Libertação, uma vez que representa a novidade dos povos latino-americanos, por estar além do horizonte do ser, é a diferença. Cf. DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. Na américa latina. São Paulo: Loyola, [1980?]. p. 45-54 32
DUSSEL, [1980?], p. 55.
23
E mais uma vez, é encontrado no trabalho, no caso traduzido em outra categoria,
poiesis33, a realização concreta da alienação.
A alienação, contudo, decide-se essencialmente na poiesis de uma formação social. A práxis de dominação, como relação homem-homem coloca o outro ao serviço do dominador, mas é no trabalho (poiesis) que tal dominação se realiza realmente. É quando o fruto do trabalho não é recuperado por um povo, pelo trabalhador, pela mulher, pelo filho que seu ser fica alienado.
34
“Chamamos fetichização ao processo pelo qual uma totalidade se absolutiza,
se fecha, se diviniza. A totalidade política se fetichiza quando se adora a si mesma
no império [...]”35, afirma Dussel ao expor sobre o processo de fetichização e ao
adentrar na discussão no discurso sobre o que ele chama de antifetichismo. O
fetiche é aquilo feito pelo homem e pela mulher, mas que provoca neles fascínio,
medo, divino36, enfim, submete os seus próprios criadores tornando-os meros
objetos. A partir desse mecanismo um sistema se totaliza e nega a sua possibilidade
de ser transformado.
Agora passamos a identificar mais uma convergência entre essa categoria
(fetichização em Dussel e Alienação em sentido propriamente marxiano) e a
ideologia, ambas terminam por possibilitar a negação da história, da capacidade
transformadora dos homens e das mulheres a partir do trabalho, pois torna o
sistema absoluto, por transformar a realidade criada pelas relações humanas em
sujeito. A partir da alienação (no sentido marxiano) o mundo se desumaniza por não
ser mais determinado mais pela ação dos homens e das mulheres, em tese, mas
das coisas produzidas por eles, como se o mundo fosse regido por uma lógica
inerente ao produto, relegando à humanidade a mero suporte das relações sociais
das coisas37.
A ideologia tem profunda e inevitável ligação com o processo de alienação
(no sentido empegado por Marx e no de Dussel), com o de fetichização, aquela é
uma “forma de pensamento estruturalmente comprometida com a alienação”38, uma
vez que permite a petrificação da sociedade histórica no tempo e em certa medida
33
Em Dussel essa categoria se trata da relação homem-natureza. Cf. DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. Na américa latina. São Paulo: Loyola, [1980?]. p. 133-146. 34
DUSSEL, [1980?], p. 59, grifo do autor. 35
DUSSEL, [1980?], p. 102. 36
DUSSEL, [1980?], p. 103. 37
CHAUÍ, 1985, p. 58. 38
KONDER, 2009, p. 71.
24
retira a capacidade transformadora da ação humana, fazendo a realidade aparecer
como a materialização de um relação hierárquica de ideias.
[...] a ideologia faz com que as idéias (as representações sobre o homem, a nação, o saber o poder, o progresso, etc.) expliquem as relações sociais e políticas, tornando impossível perceber que tais idéias só são explicáveis pela própria forma da sociedade e da política. Na ideologia, o modo imediato do aparecer (o fenômeno) social é considerado o próprio ser (a realidade social).
39
Com a ideologia, as ideias, produtos das ações dos homens e mulheres,
passam a regular, a submeter a prática humana40, representando, em último
momento do mecanismo da ideologia, um corpus para orientar a ação humana. A
sociedade histórica precisa explicar como o poder político que surge do social se
destaca dele, dar resposta à relação de reciprocidade entre o fundante e o fundado,
assim, o primeiro momento do discurso ideológico se constitui na elaboração de um
discurso que partindo do social e do político se transforma em um discurso
impessoal sobre a sociedade e sobre a política41, o passo seguinte é o de fazer
coincidir suas representações com aquilo que é na realidade social.
A ideologia nega a sua origem social ao pretender-se neutra, em Dussel ela
aparece como “[...] um conjunto de expressões semióticas que encobrem a
dominação; quando são metódicas justificam-na mais completamente. A função
ideológica, em sua essência, é a relação do sinal ou significante como justificação
de tal práxis dominativa”42, em verdade ela encobre processos de dominação por
vezes identificando uma prática opressora na própria natureza das coisas. Seu
mecanismo primeiro é o da inversão do real, através da qual o pensamento aparece
como fundamento do real, e não o inverso, o que foi contraposto pela teoria marxista
e marxiana.
A partir da convicção de que o ser condiciona o pensar, Marx e Engels aferiram a extraordinária importância da maneira de ser condicionada pelo tipo partícula de inserção do indivíduo dentro da estrutura social que é a sua pertinência a uma determinada classe social
43.
39
CHAUÍ, 2007, p. 30, grifo da autora. 40
Leandro Konder em seu estudo sobre o conceito marxista de alienação não deixa de sublinhar a importância da ideologia para o desenvolvimento humano, principalmente o seu papel de rompimento para com uma representação mítica da realidade. Cf. KONDER, Leandro. Marxismo e alienação. Contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação. São Paulo: Expressão popular, 2009. 41
CHAUÍ, 2007, p. 30. 42
DUSSEL, [1980?], p. 171. 43
KONDER, 2009, p. 51.
25
Em verdade as condições materiais determinam a vida do homem e da
mulher, inclusive as suas representações do real, mas o caráter imediato da
experiência humana reafirma o processo ideológico que finda por negar essa
característica do real, mesmo não sendo o discurso ideológico capaz de fato, de
explicar a realidade. Esse caráter imediato da experiência dificulta a apreensão do
real em sua concretude, o processo concreto, material, que engendra a sociedade e
a política.
A realidade para o discurso ideológico é a materialização de princípios e
ideias, a partir dessa concepção, basta mudar a forma de pensar para a realidade se
ver transformada, isso quando se abre um pouco à historicidade do fenômeno real,
ou mesmo não admite transformações pela ação humana, fortalecendo a alienação.
A ideologia neutraliza a capacidade modificadora do trabalho humano, a
potencialidade constituinte da história, e principalmente nega a capacidade de
criação, o inédito. Ao deixar o fazer história às formulações teóricas, a ideologia
reforça a alienação humana.
Muito longe de ser capaz de erguer uma espécie de barreira a ideologia, a
ciência é o principal depositário dessa categoria, como veremos a seguir, ao passo
que se legitima na sociedade após o avento da modernidade como legítima,
responsável por dizer a realidade das coisas, de extrair das coisas a lógica que
normatiza o mundo.
2.2 IDEOLOGIA E AS CIÊNCIAS HUMANAS
No seu projeto de fazer suas representações coincidir com a realidade, o
discurso ideológico elabora um conceito de racionalidade que está presente na
realidade, bastando apenas defini-la através do mecanismo do pensar. A partir
desse mecanismo, o papel do pensamento é o de captar a racionalidade presente
nas coisas e decifrar as representações e as normas que são todo o real44, assim
ele pode produzir um véu que recobre as diferenças entre aquilo que está na
realidade e o que os homens e mulheres pensam.
A realidade passa a ser dotada de uma transparência e racionalidade a tal
ponto que basta o procedimento científico, que possibilitariam a adequação da
44
CHAUÍ, 2007.
26
representação e o dado45, adequado para descobrir todo o real permitido apenas
com a dominação por completo, todo o objeto, e sua determinação por completo
faticamente aceitável apenas com a eliminação de todas as determinações
contraditórias que possibilitariam a mobilidade do objeto, a sua realização na
história46.
Essa crença de que basta um método adequado para subsumir toda realidade
ao pensamento desemboca em um formalismo que se sustenta por uma imagem de
objetividade que garante ao discurso científico a sua apartação ao mundo,
aproximando-se cada vez mais da ideologia. A partir dessa crença na objetividade,
na transparência do real, a ciência se faz depositário privilegiado da ideologia47 e por
trás de todo esse mecanismo está um conceito de racionalidade que não permite
contradições, afirmando a não-história. Portanto, para essa objetividade e para esse
discurso científico, o mundo só é racional por não possibilitar contradições, essa
concepção ganha espaço no constitucionalismo hegemônico e nas formulações
teóricas acerca do poder constituinte, como veremos mais a frente.
No entanto, negar as contradições do real é imobilizá-lo, é retirar da história
seu movimento, de fato é negar a história. Ocorre que essa concepção de
objetividade que se enamora com o mecanismo de inversão e cristalização realizada
pela ideologia para justificar a mobilidade fática do seu objeto de estudo, que se
manifesta com o correr da história, afirma que o objeto inteiramente dominado pelo
pensamento apenas demonstrou propriedade latentes já apreendidas pelo intelecto48
quando encontra a inevitável transformação no tempo. O mundo dos homens e das
mulheres, portanto, é para esse cientifismo, presente na concepção positivista, o
mundo das coisas, das leis inerentes à essência da coisa o que representa a
reafirmação do fetichismo, de Dussel, e alienação, em seu sentido marxista.
Nas ciências humanas, que guardam firme relação com as lutas travadas e
com a história humana, a ideologia encontra um terreno fértil e prioritário. A história
da ciência, de fato, é um capítulo da ciência humana e tem uma autonomia
meramente relativa de toda a atividade humana.
45
CHAUÍ, 2007, p. 42 46
CHAUÍ, 2007, p. 45. 47
CHAUÍ, 2007, p. 43. 48
CHAUÍ, 2007.
27
O cientista que não consegue articular realmente o exercício de sua ciência com os condicionamentos efetivos e dialéticos da política, descobrir sua autonomia relativa, e que não sabe ouvir claramente as interpelações que o povo oprimido lança contra o sistema, é um cientificista.
49
Para superar o discurso ideológico (e compreender o real em sua verdadeira
mobilidade), nas ciências humanas, é preciso ter como perspectiva de que elas
possuem um objeto de estudo peculiar, o próprio homem e a própria mulher, o
objeto e o sujeito dessas ciências são coincidentes, o observador se dedica ao
estudo de um objeto que não está fora da realidade humana, mas dentro desta que
ele também integra50. Esse objeto peculiar é dotado de uma característica que lhe é
própria: a liberdade e o exercício do trabalho (em sentido já explicitado mais acima).
O homem e a mulher, portanto, antes de serem mero fato a ser estudado, são ação
exatamente pelo fato deles produzirem a sua história e suas relações a partir da
produção do meio de subsistência, não são nunca meros objetos, são também
sujeitos dessas ciências.
Ademais as relações travadas entre os homens e mulheres entre si e entre
todo o social nunca são anteriores a eles, ou exteriores ou mesmo simples
complementos, são condições insuperáveis para a existência dos indivíduos, por
isso integram a sua essência51. Dussel propõe a passagem metódica entre as
ciências fáticas e as humanas para poder que estas possam de fato compreender o
seu objeto que é também seu sujeito.
A passagem metódica entre as ciências fáticas e as do homem (e não somente as sociais) realizou-se através do momento analético que permite integrar à análise a variável sui generis da exterioridade ou liberdade em seu sentido metafísico e tal como descrevemos até aqui. A liberdade do outro não é uma variável a mais; é uma variável de diferente substantividade, estatuto, significado. Além disso, a partir da exterioridade surgiu todo o âmbito prático (político, erótico, pedagógico, fetichista) e o poiético (tecnológico, estético, desenhante), o mundo histórico natural. Desta maneira, o mero fato natural tem agora como contrapartida o fato cultural, histórico. Estes fatos, os que dependem não da mera natureza humana (o dado em sua mera substantividade vegetativa anima pré-cultural, que por outra parte é uma mera abstração porque tudo no homem é cultural e histórico) mas de uma história cultural, são objeto de ciência em cujo método se devem introduzir momentos essências de distinção. Não são ciências fático-naturais, mas fático-humanas.
52
49
DUSSEL, [1980?], p. 172. 50
KONDER, 2009, p. 110. 51
KONDER, 2009, p. 113. 52
DUSSEL, [1980?], p. 169-170.
28
O ponto de partida das ciências humanas é um fato ambíguo, homens e
mulheres que produzem sua história e que fazem uso de sua liberdade, e para poder
de fato compreender o real em sua dinamicidade precisam tomar os indivíduos como
seres ativos e em constante processo de transformação (a partir de suas próprias
ações) e compreender esses indivíduos no contexto onde eles tem existência real,
concreta, a partir de suas relações. Nesse modelo de análise, segundo Dussel:
[...]deve-se introduzir o momento dialético (5.2), para saber situar cada fato em seu contexto ou totalidade condicionante, e no momento analítico (5.3), para poder saber detectar as interpelações disfuncionais que o oprimido lança continuamente a partir da exterioridade do sistema constituído.
53
A ciência jurídica, portanto, uma ciência humana, também tem por objeto esse
fato ambíguo que é objeto e é sujeito da própria ciência, capaz de pôr o objeto em
movimento. Apenas um método que reconheça a capacidade modificadora e
modificável do objeto da ciência humana no processo histórico é capaz de se
debruçar sobre a realidade compreendendo toda a totalidade na qual está inserida,
dessa forma, a teoria não anda atrás da verdade, mas lado a lado porque o
movimento é intrínseco ao objeto de estudo.
2.3 IDEOLOGIA E DEFORMAÇÃO DO PODER CONSTITUINTE
O percurso realizado nas páginas anteriores sobre as categorias de ideologia,
alienação e fetichização se justifica na elaboração de uma ferramenta para analisar
as formulações clássicas sobre o poder constituinte.
A resposta teórica que foi elaborada pelos principais cientistas do direito do
país sobre a realização de uma constituinte exclusiva, e, principalmente, assumindo
um compromisso com a realidade material, elaborar formulações teóricas sobre um
fato: a movimentação popular em torno da pauta da constituinte. Em verdade as
categorias até então destrinchadas e articuladas servirão como um suporte, um
pressuposto para as avaliações das páginas seguintes.
Nosso primeiro desafio é o de encontrar o locus do poder constituinte, se
pertence ao direito ou se pertence apenas aos fatos. Dentro desse questionamento
necessariamente enfrentaremos a incansável discussão sobre a relação entre dois
campos, a política e o Direito. Tendo sempre o cuidado de não tolher do objeto seu
53
DUSSEL, [1980?], p. 170.
29
caráter móvel, seu movimento interno. Para tanto é preciso reconhecer as
contradições que o fazem histórico.
O direito, na contemporaneidade, tem diversas funções, a mais ressaltada
delas e a reconhecida de forma unânime é a de normatização de uma ordem. No
entanto, frente a uma sociedade que questiona sua origem e se vê frente a um
poder político com origem no social e, ao mesmo tempo, destacado dele, o direito
ganha outra função. Tendo que encontrar em si própria sua origem, essa sociedade
forja o discurso do direito como responsável por explicar a origem desse poder
político e, ao mesmo tempo, criado por ele54. Com essa afirmação temos o caráter
ambíguo da relação entre esses dois campos, o direito e a política, e podemos
concluir que não há anterioridade entre nenhum deles.
Mas essa explicação do poder político pelo Direito não nasceu com as
primeiras comunidades humanas, na verdade ela tem uma origem recente na linha
do tempo da humanidade, mais precisamente nas revoluções burguesas dos
séculos XVIII e XIX e com o projeto da racionalização das relações sociais. Esses
movimentos tiveram o intuito de forjar uma nova sociedade em que os valores e
interesses da burguesia fossem hegemônicos e tidos como universais, por isso, teve
de substituir uma visão “mágica do mundo”, essa responsável por encontrar a
justificativa da realidade, inclusive do poder, em valores e entidades metafísicos, por
uma concepção racional, e para explicar o social e o poder restou a “visão jurídica”
do mundo55. Esse processo de criação dessa nova visão de mundo se concretizou
no projeto iluminista de redução do pluralismo e com a utopia totalizante que previa
a possibilidade de forjar uma ordem jurídica que normatizasse todas as situações
sociais, tudo isso a partir da lei56.
Terminada a sua revolução, a classe dirigente do processo tratou de
estabilizar o poder criado; para tanto, passou a formular um direito cindido da
realidade e com fonte unicamente na racionalidade das coisas para afastá-lo da
instabilidade e das contradições inerentes ao social. Desse modo, se levou a
questão da gênese do poder a um terreno supostamente neutro (o Estado),
54
CHAUÍ, 2007, p. 28 55
ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 18 56
COSTA, 2013.
30
considerando-o fruto da racionalidade humana, e capaz de defender os interesses
“universais”57.
A ciência do Direito, tal como todas as produções humanas (teóricas e
práticas), tem origem em aspectos da atividade material do homem e da mulher, e
não pode se esquivar de ser produzido pelo social, pelos fatos, pela política
enquanto relação de alteridade entre homens e mulheres. No entanto, o discurso
ideológico da burguesia na proteção de sua visão jurídica de mundo repercutiu tão
fortemente nas formulações teóricas positivistas e mais legalistas que reverberam
ainda hoje na produção jurídica contemporânea.
Essa relação entre os fatos e o direito se apresenta recorrentemente nas
formulações teóricas daqueles que percebem que não tem como se conceber uma
ciência do direito pura, que não reconheça as contradições inerentes do social, sob
pena de não explicar de fato a realidade. Essa dicotomia entre a realidade fática e o
plano do direito foi enfrentada por Giorgio Agamben ao se dedicar ao estudo do
fenômeno do Estado de exceção no Estado Moderno, e suas conclusões em muito
nos acrescentará para descobrir o locus do poder constituinte.
O Estado de Exceção58 para Agamben é uma prática essencial do Estado
Moderno responsável por períodos de suspensão do Direito a partir de uma
necessidade do Estado, ele transforma em legal aquilo que não pode ter forma
legal59. A resposta a esse fenômeno por parte dos ordenamentos europeus foram
ora legislar sobre o Estado de Exceção ora sequer mencioná-lo, mas é fato, que
independentemente da estratégia escolhida, esse fenômeno foi utilizado e trouxe ao
Direito consequências60. Agamben ainda realiza uma analogia entre o Estado de
Exceção e o Direito de Resistência, deixando claro que a inserção do Direito de
57 A teoria marxista do Estado, desenvolvida de forma sistemática em Lenin, mas também
encontrada em autores como Engels, Marilena Chauí e o próprio Marx, em crítica da filosofia do direito de Hegel, compreende a categoria do Estado como uma organização de uma classe pela qual ela concretiza o seu intento de tornar os seus próprios interesses de classe como universais através
de um procedimento ideológico que passa a fetichizar a estrutura estatal. Cf. CHAUÍ, Marilena.
Crítica e ideologia. In: CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: O discurso competente e outras falas. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2007.; MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.; LÊNIN, Vladimir Ilitch. O estado e a revolução. São Paulo: Hucitec, 1987. 58
O Estado de Exceção estudado por Agamben se refere a um prática recorrente dos Estados Modernos qual seja a de suspensão do direito ou em seu esvaziamento, na exclusão de alguns direitos individuais, e na concessão de plenos poderes a um dos poderes, isso tudo sob a justificativa de realizar o próprio Direito, de proteger determinada ordem. 59
AGAMBEN, 2004, p. 12. 60
Por exemploe a França e a Itália, que, mesmo não existindo a previsão do Estado de Exceção, no pós primeira guerra se utilizou maciçamente da legislação por decreto e do etát de siege.
31
Resistência no texto constitucional, como realizado na Itália, termina por normatizar
a própria escolha política dos cidadãos61. O autor prossegue em sua analogia:
Os argumentos são, aqui, exatamente simétricos aos que opõem os defensores da legalização do estado de exceção no texto constitucional ou numa lei específica aos juristas que consideram sua regulamentação normativa totalmente inoportuna. Em todo caso, é certo que, se a resistência se tornasse um direito ou terminantemente um dever (cujo não cumprimento pudesse ser punido), não só a constituição acabaria por se colocar como um valor absolutamente intangível e totalizante, mas também as escolhas políticas dos cidadãos acabariam sendo juridicamente normalizadas. De fato, tanto no direito de resistência quanto no estado de exceção, o que realmente está em jogo é o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica. Aqui se opõem duas teses: a que afirma que o direito deve coincidir com a norma e aquela que, ao contrário, defende que o âmbito do direito excede a norma. Mas, em última análise, as duas posições são solidárias no excluir a existência de uma esfera da ação humana que escape totalmente ao direito.
62
Mas é com a inserção teoria da necessidade, uma teoria que permite que o
caso particular ignore a exigência legal, que os modernos conseguem, e com
formulação do Estado de necessidade como fundamento último e fonte da lei,
estabelecer o estado de exceção, ao lado da revolução e da instauração de fato de
um ordenamento constitucional, enquanto “’uma medida ilegal’, mas perfeitamente
‘jurídico constitucional’, que se concretiza na criação de novas normas”63 sem
necessariamente inseri-lo textualmente em seu ordenamento.
Após toda a trajetória sobre o Estado de exceção, o autor conclui, a partir das
formulações de Benjamin, que existe uma zona de anomia em que o Estado de
Exceção se encontra, e, na verdade, a “foça da lei”, categoria utilizada por Schmitt
que permitiu a descoberta da contradição e da sua realização, é, de fato, um
elemento fictício que tenta inserir a sua própria ausência dentro de si64. A teoria
Benjaminiana se contrapõe à tentativa Schmittiana de capturar essa zona de anomia
para dentro do Direito, ao passo que utiliza a categoria da violência pura, pura não
em um sentido substancial, mas relacional com o direito. Para Benjamin, “o caráter
próprio dessa violência é que ela não põe nem conserva o direito, mas o depõe [...] e
inaugura, assim, uma nova época histórica”65. Benjamin trata de demonstrar que a
61
AGAMBEN, 2004. 62
AGAMBEN, 2004, p. 24, grifo nosso. 63
AGAMBEN, 2004, p. 44. 64
AGAMBEN, 2004. 65
AGAMBEN, 2004, p. 85.
32
categoria força da lei é uma ficção jurídica que tenta tomar como Direito a sua
própria suspensão, no lugar dessa categoria “[...] aparecem agora guerra civil e
violência revolucionária, isto em uma ação humana que renunciou a qualquer
relação com o direito”66.
Por razões que devemos tentar esclarecer, essa luta pela anomia parece ser, para a política ocidental, tão decisiva quanto aquela giagantomachia peri tes ousias, aquela outra luta de gigantes acerca do ser, que define a metafísica ocidental. Ao ser puro, à pura existência enquanto aposta metafísica última, responde aqui a violência pura como objeto político extremo, como “coisa” da política; à estratégia onto-teo-lógica, destinada a capturar o ser puro nas malhas do logos, responde a estratégia da exceção, que deve assegurar a relação entre violência anômica e direito.
67
Agamben, na sua análise sobre o estado de exceção, tenta demonstrar que
há um espaço vazio de ação humana (em relação ao direito), e que o sistema
jurídico ocidental se apresenta como uma estrutura dupla: uma que contém o
elemento normativo e jurídico, que ele denomina de potestas, e outra que é
constituída de elementos anômicos e metajurídicos, que ele passa a chamar de
auctoritas. Mas essas duas estruturas não são isoladas entre si, guardam uma
relação dialética em que a primeira só pode ser aplicado a partir do elemento
anômico, e a segunda só se afirma na relação de validação ou suspensão da
potestas68. A demonstração dessa zona, segundo Agamben (2004, p.133), restitui a
autonomia da política.
Mostrar o direito em sua não relação com a vida e a vida em sua não relação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que, há algum tempo, reivindicava para si o nome “política”. A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito, concebendo-se a si mesma, no melhor dos casos, como poder constituinte (isto é, violência que põe o direito), quando não se reduz simplesmente a poder negociar com o direito.
Essa zona anômica nos permite sair da dicotomia entre positivistas e
jusnaturalistas na disputa sobre a topografia do poder constituinte. É inegável a
analogia que pode ser realizada entre o Estado de Exceção e o Poder Constituinte,
ambas são categorias que se manifestam no mundo fático, independentemente de
previsão normativa para tanto, e guardam uma relação peculiar com o Direito ora
fundando uma ordem jurídica, ora conservando-a. A conclusão do autor sobre a
topografia do Estado de Exceção, portanto, em muito se aplica ao Poder Constituinte
66
AGAMBEN, 2004, p. 92. 67
AGAMBEN, 2004, p. 92-93, grifos do autor. 68
AGAMBEN, 2004, p. 130.
33
pela natureza dessa categoria enquanto princípio aberto à possibilidade histórica,
que só ganha significado na concretude do processo histórico, em uma dimensão
que não está colonizada pelo Direito (enquanto norma), mas mantém sim contato
com esse campo.
Parte da ciência jurídica trata de domar o poder constituinte submetendo a
sua manifestação a determinados procedimentos, já outra parcela identifica o poder
constituinte a um direito natural à resistência, alocando-o em uma dimensão diversa
das relações materiais e não sendo capaz de responder como se justifica nos fatos a
sua manifestação. Essas concepções estão presentes, de forma variada, nas
formulações acerca da constituinte parcial, como será demonstrado ao seu tempo.
A partir de então temos localizado o poder constituinte na política, na zona
anômica, em um campo de ação humana externa à norma. Esse poder só faz parte
do Direito quando este é enxergado de forma dialética e são superadas as
ideologias que reduzem o fenômeno jurídico e o poder constituinte à norma,
alocando-os em uma dimensão externa à realidade material. Essas concepções não
conseguem explicar o caráter móvel do direito e do pode constituinte, nem mesmo
as possibilidades abertas da história, é preciso, pois, elaborar o discurso crítico que
permita superar o discurso ideológico fazendo esse se movimentar a partir de suas
contradições e seu choque com a realidade reconhecendo o movimento da história e
das categorias que nos permitem compreendê-la.
34
3 O PODER CONSTITUINTE E SUA FORMULAÇÃO HEGEMÔNICA
Para que se revele o rosto histórico biográfico na justiça, é necessário mobilizar as instituições, as funções, a totalidade sistematizada. Permitir que apareça o rosto interpelante exige desapropriar o possuidor do sistema, a fim de que o homem definido como parte se revele.
(Enrique Dussel).
3.1 AS IDEOLOGIAS JURÍDICAS
As ideologias, conforme visto até aqui, são capazes de realizar uma inversão
da realidade através da qual o fundante aparece como fundado e vice-versa, a
aparência é tomada como o ser, e o particular como totalidade. Essa categoria está
presente em todas as manifestações humanas, na religião, na política, na história e
na ciência. A ciência do Direito, portanto, não está isento dessas distorções e se
apresenta, primeiramente, na definição de seu objeto e, por reflexo, nas categorias
que o compõem.
Desse modo, a categoria central desse trabalho, o poder constituinte, sofre
variações de percepções a partir do que se compreendo como objeto da ciência
jurídica. Temos que o direito possui duas notáveis correntes que terminam por se
caracterizar como abordagens ideológicas, quais sejam o jusnaturalismo, que
identifica o direito na ordem justa, e o direito positivo, que reduz o Direito à Lei. Essa
última abordagem é a hegemônica na ciência jurídica, tanto que, o senso-comum
entre cientistas e não cientistas tende a remeter, ao ouvir o vocábulo “direito”, à Lei,
é esse mesmo senso-comum que induz ao cientista do direito quando provocado
sobre qualquer temática jurídica a responder da sua adequação ou não a
determinado ordenamento, essa traduzida na dicotomia ilegal-legal, constitucional-
inconstitucional.
Desse modo vimos uma redução do Direito à Lei, como se essa fosse sua
única forma de manifestação, a partir dessa redução se exclui do âmbito do Direito
as contradições que dão movimento ao processo histórico, tornando aquilo que
emana no Estado o “imaculado jurídico”69, enquanto aquilo que não se refere ao
Estado, pouco importa ao Direito. A partir dessa premissa ”o Direito resulta
69
LYRA FILHO, 1995.
35
aprisionado em um conjunto de normas estatais, isto é, de padrões de conduta
impostas pelo Estado, com a ameaça da sanção organizada”70, com o fenômeno
jurídico amordaçado à vontade do Estado se nega as remodelações institucionais
até o limite de sua resistência para que, quando o momento mutante é insuperável,
possa ser regulada a amplitude das transformações. As dimensões do poder
constituinte que emerge dessa abordagem do Direito, portanto, já nasce limitado à
própria ordem dada, ao poder já constituído, restando àquele apenas se adequar a
determinado procedimento ou limites já estabelecidos pela ordem constituída.
Lyra Filho identifica o positivismo como um modelo que não é capaz de
explicar a manifestação do fenômeno jurídico na realidade principalmente por
representar uma “redução do Direito à ordem estabelecida”71, por isso, ele é capaz
apenas de captar o Direito quando já traduzido em norma e não consegue explicar o
movimento de transformação inerente ao objeto de estudo, tendo que recorrer as
elementos extra-jurídicos para se fundamentar e reconhecer as mudanças
inevitáveis, por vezes transferindo à análise para uma sede extra-material.
As correntes do positivismo, por mais diversas que sejam suas formulações,
encontram um mesmo ponto de partida, a lei e o Estado, sendo esse último o
legítimo produtor de normas:
[...] o positivismo, que diviniza a “lei e a ordem” como se ali estivesse o Direito inteiro, há de oferecer um qualquer fundamento jurídico para tal ordem, tal Estado produtor de leis, tal privilégio e exclusividade de produzir leis, que seria do Estado. E Radbruch, o grande iurisfilósofo alemão, com certeira malícia nos mostra que o positivismo, neste empenho, “pressupõe um preceito jurídico de direito natural, na base de todas as suas construções”, isto é, um preceito jurídico anterior e superior ao direito positivo. O que se pretende afirmar assim é que, ou o positivismo se descobre como não-jurídico, fazendo derivar o Direito do simples fato de dominação, ou para tentar a legitimação da ordem e do poder que nela se entroniza, recorre a um princípio que não é o direito positivo (esse direito já feito e imposto, em substância, pelo Estado, pois a função daquele princípio é precisamente dar fundamento jurídico ao direito positivo).
72
Com essa divinização do poder constituído, da ordem dada, qualquer
tentativa de modifica-la que não seja dentro da própria ordem é ilegítima, inaceitável,
se realiza, por fim, o fetichismo completo do poder, que se presume legítimo pelo
70
LYRA FILHO, 1995, p. 9. 71
LYRA FILHO, 1995, p. 29. 72
LYRA FILHO, 1995, p. 36-37, grifo do autor.
36
simples fato de estar em exercício e por ter origem em um procedimento por ele
mesmo estabelecido, fundando um círculo de legalidade73.
O Direito Natural (jusnaturalismo) por sua vez insere em seu objeto de estudo
do fenômeno jurídico a questão da justiça da ordem estabelecida; dessa forma ele
trata de elaborar argumentos que validam ou explicam a invalidade das normas da
ordem74 em relação aos valores de justiça que as fundam. Em suma esse modelo
trata de afirmar que o Direito tem origem na própria natureza das coisas ou por sua
origem divina, jusnaturalismo teológico, ou em decorrência da racionalidade do
objeto estudado, jusnaturalismo antropológico. Aquele primeiro tem feições
ideológicas latentes principalmente por sua capacidade de divinizar a ordem, de
torna-la imodificável pela vontade de um ser metafísico, teve expressão
notadamente na Idade Média e representou, em última medida, “uma cobertura
ideológica para o modo de produção”75.
O jusnaturalismo, em momentos de crise da ordem, pode representar o
sustentáculo de um movimento de contestação, como ocorreu no período das
revoluções burguesas. Esse período revolucionário forjou outro Direito Natural, esse
baseado nos princípios extraídos da racionalidade humana76, de acordo com o
projeto iluminista. A partir dele se afirmou o Direito à Resistência, principal
sustentáculo do poder constituinte moderno.
Esse jusnaturalismo de base antropológica possibilitou que uma classe em
ascensão, a burguesia, defendesse os seus interesses como universais, de fato
serviu como fundamento da mobilidade de uma dada ordem, mas tendo em seu
pressuposto princípios imóveis encontrados na natureza das coisas. Roberto Lyra
Filho (1995, p. 42) sobre esses dinamismos que o Direito Natural traz à ciência
jurídica escreveu:
[...] o direito natural não é tanto imobilista (apesar de suas pretensões a critério eterno e fixo de avaliação jurídica) como bastante manhoso: ele sempre deixa lugar para as “concretizações”, em que os preceitos atribuídos à natureza, a Deus ou ao próprio esforço racional, tendem a conciliar o padrão absoluto e as leis vigentes. Todavia, o mero dualismo (oposição de direito natural e direito positivo) tem uma certa dinâmica, que ao menos conserva a ideia potencial duma confrontação. É por isso, aliás, que nas horas de intoleráveis tensões- em que o poder instituído vai aumentando a
73
LYRA FILHO, 1995. 74
LYRA FILHO, 1995. 75
LYRA FILHO, 1995, p. 41. 76
LYRA FILHO, 1995.
37
intensidade da prepotência e sua autoridade desgastada vai também fazendo aumentar a intensidade da contestação- costuma reaparecer, com especial atrativo, o velho direito natural [...].
Em que pese tal potência transformadora, a base dessa concepção jurídica é
uma abstração de ideias imortais, seu caráter ideológico é inegável uma vez que
toma a realidade do fenômeno jurídico como definida pelas ideias da natureza da
coisa, possíveis de serem apreendidas pela inteligência humana. Além disso, em
que pese representar uma representação que supera a lei, essas ideias imortais que
fundamentam o direito natural quando descem das abstrações para se concretizar
na realidade fática, tendem a ser confundidas com Direito Positivo77. Ademais, essa
ideologia jurídica não trata de explicitar qual a origem desses critérios de
legitimação, desse conjunto de princípios, nem muito menos como se dá a sua
movimentação78, ela é, portanto, pela sua própria natureza ideológica, incapaz de
realizar uma ligação entre o Direito e o processo histórico concreto.
Essas posições acerca do Direito necessariamente trazem formas distintas de
se portar frente ao poder constituinte, essa categoria necessariamente ligada à
transformação, à mudança. O positivismo, em regra, trata de submeter o poder
constituinte ao poder constituído, sendo esse último uma espécie de mediador para
a manifestação das mudanças, o jusnaturalismo, por sua vez, aloca essa potência
para longe da materialidade, explica sua manifestação não pela movimentação dos
sujeitos no processo histórico, mas em face de princípios abstratos.
De forma breve, a ciência jurídica entende que o poder constituinte é a fonte
das normas constitucionais, é aquela potência que inaugura um ordenamento
jurídico. Não há dúvidas do caráter absoluto dessa categoria, é um poder que
necessariamente inovador, apontado para o futuro, jamais para o passado, portanto,
o constitucionalismo, a ciência jurídica trata de estabelecer limites a esse poder,
domá-lo. As duas abordagens ora apresentadas reitera a afirmação de Negri sobre a
abordagem teórica do poder constituinte de que “a ciência jurídica nunca se
exercitou tanto naquele jogo de afirmar e negar, de tomar algo como absoluto e
depois estabelecer-lhe limites – que é tão próprio do seu trabalho lógico – como o
fez a propósito do poder constituinte”79.
77
LYRA FILHO, 1995, p. 43. 78
NEGRI, 2002, p. 9.
79 NEGRI, 2002, p. 9.
38
Em primeiro momento a ciência jurídica realiza uma limitação na
temporalidade do poder constituinte, estabelecendo-o como extraordinário80,
submetendo-o a uma rotina administrativa a um procedimento de convocação,
reduzindo-o a um momento revelado pelo Direito, por procedimentos já
estabelecidos na ordem constituída. Em um segundo momento, impõe-se também
cercas espaciais ao poder constituinte interiorizando-o no poder constituído,
devendo ele se manifestar apenas na revisão do texto constitucional (poder
constituinte derivado), no controle de constitucionalidade e na interpretação81. A
redução do caráter ilimitado desse poder é ainda realizada pela sua submissão às
regras do sufrágio, pela sua absorção pela representatividade, a partir da cisão entre
o poder constituinte originário e o assemblear, uma vez que a legitimidade desse
poder resta condicionado ao respeito às normas de representação82.
A ciência jurídica, sem fugir das ideologias já apresentadas, trata de encerrar
o poder constituinte em um mecanismo jurídico e controlar o fato constituinte,
segundo Antonio Negri (2002) a partir de três perspectivas:
Três são então as soluções propostas: para uns, o poder constituinte é transcendente face ao sistema do poder constituído – sua dinâmica é imposta ao sistema a partir do exterior; para um outro grupo de juristas, o poder constituinte é, ao contrário, imanente, sua presença é íntima , sua ação é aquela de um fundamento; um terceiro grupo de juristas, por fim, não considera o poder constituinte como fonte transcendente ou imanente, mas como fonte integrada, coextensiva e sincrônica do sistema constitucional positivo.
83
Para os transcendentes, o poder constituinte precede ao ordenamento
constitucional, estando ele na dimensão do ser, dos fatos, e o constituído na
dimensão do dever-ser84, com isso esse poder deixa de ser princípio de movimento
do direito uma vez que o poder constituinte, ao passo que funda uma ordem
constituída, rompe com seu nexo de causalidade, não promovendo nela mais
qualquer alteração que não seja através da própria ordem.
Já a partir da perspectiva da imanência, o poder constituído é concebido
dentro do ordenamento, não negando o seu papel de motor do sistema, no entanto,
é realizado uma série de operações de abstração transcendental ou de
81
NEGRI, 2002, p. 10. 82
NEGRI, 2002, p. 11. 83
NEGRI, 2002, p. 12. 84
NEGRI, 2002, p. 12.
39
concentração temporal85. A terceira abordagem, por sua vez, a do poder constituinte
integrado, constitutivo ao direito constituído é sustentado pelas grandes escolas
institucionalistas, e a partir dele o poder constituinte se encontra em uma base social
pré-constituída – a Constituição material86. Pode ser verificado que esse último
entendimento contém uma ideia de movimento, mas a potência constituinte dessa
base material é capaz apenas de ser absolvida pela normatividade – nesse caso,
pelo ordenamento constitucional – jamais alterar a própria base material. A relação
entre a ordem constituída e a ordem constituinte é mecânica em uma imagem que
parece a transmissão de movimento entre roldanas.
Essa classificação realizada por Negri das leituras da ciência jurídica acerca
do poder constituinte em nada diverge das duas principais ideologias jurídicas e são,
em si, leituras ideológicas desse fenômeno, ou seja, realizam uma inversão da
realidade ao passo que domam a potência transformadora desse poder. Vejamos: a
perspectiva da transcendência é resultado direto do positivismo, uma vez que aloca
esse poder, necessariamente fruto das contradições do social, a uma dimensão
distinta do direito, que tem seu nexo rompido com esta imediatamente com a forja do
ordenamento.
A perspectiva da imanência, por sua vez, pode decorrer da ideologia quando
realiza uma operação de abstração transcendental – flertando com as posições do
jusnaturalismo – como a realizada pelas formulações de John Rawls87 as quais
alocam o poder constituinte “no interior de um uma seqüência em que tal princípio [o
constituinte] é posto num segundo estágio, após um primeiro estágio no qual se
realiza um acordo contratual sobre os princípios de justiça”88 e que, por fim, realizam
uma absorção do poder constituinte pelo constituído. Por sua vez, os que concebem
o poder constituinte integrado, em que pese sua autêntica preocupação com as
relações materiais que sustentam a estrutura da ordem constitucional, ao passo que
transformam sim a base da constituição a um movimento incessante, mas reduzido a
acordos institucionais, formulam a ideia de uma normatividade intrínseca a qualquer
formação social, por isso seu flerte com o positivismo fica evidente.
O poder constituinte, ao contrário, tem intrínseca relação com a democracia,
pois foi ele que trouxe à política a vontade popular, a vontade, seguindo a tradição
85
NEGRI, 2002, p. 15. 86
NEGRI, 2002, p. 18. 87
NEGRI, 2002, p. 14 88
NEGRI, 2002, p. 14-15.
40
Negriniana, da multidão89. É, pois, um princípio aberto, uma potência voltada ao
futuro, ao trabalho vivo que não tem como ser domada nos fatos, mas não está
isento das tentativas ideológicas de fazê-lo.
Para perceber essa característica do poder constituinte e a tentativa
incansável da ciência jurídica de domá-lo é imprescindível que passemos a explicitar
a sua manifestação no processo histórico seja em solo europeu, onde tivemos as
primeiras formulações acerca do tema e que foi utilizado como instrumento de
libertação, seja em solo latino-americano e principalmente na experiência
constitucional brasileira com a constituinte de 86/87.
3.2 O PODER CONSTITUINTE ATRAVÉS DOS TEMPOS
O poder constituinte ao longo do processo histórico vê sua potência alargada
e contraída por formulações que seguem os sabores da movimentação da história,
cada vez que a humanidade enfrenta conjunturas mutantes, a potência constituinte é
levada ao máximo de abertura pela ciência que o interpreta interpelada pelas
movimentações dos sujeitos que realizam o processo histórico. Passado esse
momento, a ciência jurídica trata de domá-lo, terminando o processo de mudança.
Essa constatação de que o poder constituinte é expandido e posteriormente é
realizada a limitação dessa expansão por categorias como soberania e sistema
representativo90, foi realizada por Antonio Negri no seu estudo acerca desse poder ,
chegando a concluir que ele consegue “romper a categoria do moderno”91.
Esse diagnóstico realizado por Negri é realizado a partir da análise de alguns
acontecimentos históricos em solo europeu e americano, mas sempre como polo
central o continente europeu até por estar ele comprometido com a explicação de
sua realidade continental, que passaremos a abordar. Na constituição da
modernidade, quando a visão mágica do mundo começa a ser substituída pela
racionalidade, o princípio constituinte enfrenta o seu primeiro grande alargamento a
89
A multidão, em Negri, aparece como um conjunto de singularidade, essa categoria está sempre em movimento por ser produtiva. Em que pese partir do conceito de classe, Negri opõe essa categoria, uma multiplicidade que age, ao de classe trabalhadora por entender que essa última é um conceito limitado. Multidão, para o autor, é o conceito de uma potência. Essa formulação nos ajuda a entender o caráter aberto do poder constituinte mas é incapaz de nos dar respostas quanto à questão da legitimidade por não desenvolver a questão da luta de classes. Cf. NEGRI, Antonio. Para uma definição ontológica de multidão. Lugar Comum - Estudos de Mídia, Cultura e Democracia. nº 19-20, jan./jun. de 2004. Disponível em: <http://uninomade.net/wp-content/files_mf/113103120455output19-20.pdf>. Acesso em: 03 de maio de 2014. 90
QUINTAR, 1998. 91
QUINTAR, 1998, p.142
41
partir da teoria maquiavélica, a questão da mutação, mutatio¸ passa a ser central
uma vez que o autor vivencia um momento de transformação da realidade.
Maquiavel em sua obra, segundo Negri, enquanto elabora seus estudos sobre a
relação entre mutação e poder, entre potência e poder, entre potência e mutação,
ele delineia também o poder constituinte92.
A operação teórica fundamental de Maquiavel consiste em fazer da mutação uma estrutura global que é atravessada enquanto globalidade, pela ação humana. Porém esta ação é ela mesma estrutural, estende-se pela globalidade do horizonte histórico, aferra e domina as variações do tempo, dando-lhe sentido e significado.
93
Maquiavel trata de esclarecer o papel da ação humana no tempo e, com isso,
a constituição de uma realidade nova a partir da ação, e, utilizando as categorias da
virtù e fortuna, trata de realizar a oposição entre o produto e a produção, a força
constituída e a força constituinte94.
Que a formidável potência constitutiva, capaz de sobredeterminar o tempo e de produzir realidade ontológica nova, encontra sempre, de um modo ou de outro, um obstáculo, Quem cria o obstáculo, não se sabe, Maquiavel não enfrenta tal problema – basta-lhe haver mostrado a formidável radicalidade do poder que investe sobre o mundo e o reconstrói, como se viesse do nada.
95
O autor identifica a existência de uma crise na formulação desse poder de
caráter absoluto e na sua relação com o constituído, uma vez que “cada realização
[do poder ou da potência constituinte] se opõe a este caráter absoluto e quer negá-
lo. Se o absoluto desborda ou se desloca, sempre encontra diante de si a rigidez do
constituído”96. Já na teoria maquiavélica a questão da contradição enquanto motor
da potência constituinte é aflorada na categoria da “desunião universal”97.
Seguindo o processo de expansão e compressão do poder constituinte, Negri
encontra, no curto período de constituição da República na Inglaterra, na obra de
James Harrington o poder constituinte como contrapoder capaz de entrar em choque
e romper as determinações tradicionais98. O autor chega a essa conclusão ao se
92
QUINTAR, 1998. 93
NEGRI, 2002, p. 62. 94
NEGRI, 2002. 95
NEGRI, 2002, p. 80. 96
NEGRI, 2002, p. 92. 97
NEGRI, 2002. 98
NEGRI, 2002.
42
aprofundar sobre a lei agrária proposta pela teoria harringtoniana, para ele “a lei
agrária de Harrington “é uma verdadeira lei constitucional, que não apenas reproduz
a base material da liberdade, mas reproduz de forma expansiva e participativa”99.
Por fim, Negri enxerga que Harrington contribui para esclarecer que o princípio
constituinte nasce dos grandes confrontos entre classes, “buscando a máxima
expressão da vitù”100.
O projeto harringtoniano foi derrotado em solo britânico, mas Negri identifica
que em terreno americano, com a constituição dos Estados Unidos, o poder
constituinte encontra espaço novo que pode ser todo delimitado pela política, nesse
terreno, em que o poder constituinte pode exercer toda a sua expansividade, a
liberdade é a fronteira do horizonte.
Se o homo politicus da Revolução [americana] insere o social no político, como espaço aberto e liberdade de fronteira, o homo politicus da Constituição está submetido a uma máquina institucional que estabelece limites precisos para a liberdade.
101
Ao passo que encontrou esse terreno para sua expansão, o poder constituinte
foi retraído ao ser absorvido pela máquina constitucional102. Ao final da revolução
americana temos um homo politicus mediado pela constituição, e o poder
constituinte limitado a elaborar forma de representação, divisão de poderes e
engrenagens constitucionais103. A absorção desse poder pela constituição de que
trata Negri se refere exatamente essa passagem de um poder absoluto, que
constitui o real e a existência humana, para um poder que forma um governo de uma
sociedade política. Por fim, não só o poder constituinte é absorvido pela constituição
como também seu sujeito, e a capacidade do homo politicus de forjar a realidade é
dizimada por aquele constitucionalismo nascente.
Nesse momento o poder constituinte começa a ser mediado por conceitos
como soberania e representatividade, e a ciência jurídica passa a regulá-lo, mesmo,
por vezes, negando estudá-lo. Começa-se também a aparecer os indícios de uma
crise insuperável entre constitucionalismo, de forma simplista, tido como governo
limitado, e democracia, essa última ligada necessariamente a uma potência
99
QUINTAR, 1998, p. 137. 100
NEGRI, 2002, p. 173. 101
NEGRI, 2002, p. 231 102
NEGRI, 2002, p. 234. 103
NEGRI, 2002, p.237.
43
constituinte aberta, voltada para o futuro. Mas é definitivamente no processo
revolucionário francês que encontramos o mais flagrante processo de expansão e
retração desse poder e as bases para a formação da doutrina contemporânea
acerca do poder constituinte.
A ciência jurídica contemporânea, na caracterização dessa categoria que é o
poder constituinte, tem como base a teoria forjada em meio ao processo
revolucionário francês pelo Abade Sieyès em seu manifesto pelo fim dos privilégios
do primeiro e segundo estado. “Teoria de cunho claramente iluminista, afirma a
possibilidade de se criar uma ordem jurídico-política ex novo, rompendo totalmente
com o passado, inaugurando o futuro pelo próprio ato presente da ruptura
política”104.
Para Negri, a Revolução francesa forja o poder das massas, reitera a multidão
enquanto sujeito do poder constituinte, ao passo em que promove a expansão
temporal da potência constituinte ao criar outro tempo, um espaço social
atravessado pela potência de constituir uma nova realidade social.
O conceito de poder constituinte desenvolveu-se no espaço: como contrapoder, na teoria harringtoniana e na prática dos revolucionários ingleses; como fronteira de liberdade no novo mundo americano. Na Revolução Francesa, ele reconquista o terreno da temporalidade, já reconstruído como espaço público e, portanto, como território temporal para as massas. O poder constituinte expande o caráter absoluto do seu princípio desenvolvendo-se temporalmente, exprimindo uma potência que se desenvolve na temporalidade.
105
A partir da crítica do trabalho a revolução francesa forja uma nova sociedade
que promove uma emancipação política de uma parcela da sociedade. A questão do
trabalho é central no manifesto de Sieyès, um revolucionário francês, uma vez que
ele trata de exigir que a esfera política passasse a estar de acordo com a economia,
que aqueles que de fato produzissem (a nação) tomassem as decisões sobre a
coisa pública106. Para o abade, portanto, o poder constituinte encontra seu sujeito na
nação. A categoria nação nos escritos do revolucionário francês tem natureza
econômica, assim como para Adam Smith, representando apenas aqueles
104
COSTA, 2006, p. 32. 105
NEGRI, 2002, p. 279. 106
SIEYÈS, 2009.
44
“contribuem com o progresso econômico, produzindo bens e valores para o
mercado”107.
Sieyès elabora a sua teoria acerca do poder constituinte em um manifesto
pela superação de um modelo político que deixava o poder nas mãos de classes
privilegiadas que nada produziam, por tanto, “o papel da nação é redigir uma
constituição para manter a possibilidade de evolução do sistema político em
conformidade com interesses econômicos”108. Por isso o abade trata de enunciar
que apenas a nação tem o direito de produzir a constituição109, para ele, a vontade
desse sujeito coletivo é a fonte de toda a legalidade, “só precisa de sua realidade
para ser sempre legal”110, a possibilidade de ela mudar a constituição é inalienável e
incapaz de ser suprimida, Sieyès encontra o limite desse poder da nação promover
mudança na constituição social e jurídica apenas do Direito Natural111.
A noção de poder constituinte ganha sua expansão plena. No entanto, ao
passo em que tem seu sujeito na nação, ele encontra, paradoxalmente, seu limite na
impossibilidade de constituir o econômico, seu papel é apenas adequar o campo
político à realidade da produção, para o abade “o espaço político é a organização de
um espaço social, ou seja, de uma temporalidade determinada e de um modo de
produção específico”112.
Na ideia da nação enquanto titular do poder constituinte, repousa ainda uma
concepção de unidade, a massa, a multidão, é reduzida a uma ideia abstrata de
unidade em torno da categoria da nação, bloco homogêneo que mascara toda a
disputa por construção de hegemonia no processo histórico113. Negri identifica ainda,
no processo de término da revolução, a submissão do poder constituinte ao
107
BERCOVICI, 2013, p. 317. 108
BERCOVICI, 2013, p. 317. 109
SIEYÈS, 2009. 110
SIEYÈS, 2009, p.56. 111
SIEYÈS, 2009. 112
NEGRI, 2002, p. 316. 113
A noção de construção de hegemonia permite que tenhamos claro o caráter conflitivo do processo histórico. A hegemonia em certa medida guarda intrínseca relação com a noção do consenso, da legitimidade de determinada estrutura de poder ou de um movimento constestador, a capacidade de construção de hegemonia é medido pela possibilidade de um movimento conseguir agregar em torno de si a maior quantidade de setores da sociedade, essa hegemonia é conquistado tanto pela ordem constituída, enquanto ela se fundamenta no “consenso”, e na exterioridade que a interpela. Cf. DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
45
constituído114, para ele isso se reflete na mudança de teor das declarações de
direitos forjadas ao longo do processo revolucionário115.
Negri diagnostica que a fundação do constitucionalismo moderno está na
tentativa de fechar o princípio constituinte, reduzi-lo para apagar todos os vestígios
da expansão temporal produzida pela Revolução Francesa116. Por isso as
formulações dessa ciência constitucionalista tratam de mediar o poder constituinte
pelo constituído, tolher sua potencialidade de mudança. Para tanto, o
constitucionalismo submete a política à constituição, tornando aquela zona anômica
já encontrada por Agamben, normatizada.
É mediante a Constituição que a política, ao se deixar regular pelo direito, pode receber a legitimidade que o direito é capaz de lhe fornecer, e que, por outro lado, as normas gerais e abstratas do direito moderno podem ganhar a densificação social que somente o aparato político da organização estatal pode lhe emprestar.
117
Os mecanismos da ideologia começam o seu trabalho, portanto, já na
formulação do poder constituinte para a ciência jurídica, realizando sua inversão que
lhe é própria. Ao passo em que o constitucionalismo domina o caráter aberto do
poder constituinte, a política é submetida à constituição, é retirada a dinamicidade da
sociedade que está sendo no tempo histórico, e, principalmente, faz do fundante o
fundado. A ciência jurídica ao tratar de um poder constituinte como categoria sem
vinculação com o processo histórico pode elaborar teorias que não conseguem
explicar ou compreender os fatos, como será mais bem demonstrado no tópico
pertinente. O trabalho morto, da ordem estabelecida, do sistema consolidado, se
sobressai ao trabalho vivo do poder constituinte voltado ao futuro, necessariamente
114
NEGRI, 2002. 115
As três declarações de direitos, a de 1789, a de 1793 e a de 1795, guardam entre si semelhanças formais uma vez que tratam de estabelecer regras anteriores que formam a vida social, com fortes sabores jusnaturalistas. A primeira declaração tem como tema central a igualdade enquanto tema concreto operacionado no espaço social, o poder constituinte se define como potência social se forjar a igualdade. A segunda declaração trata de limitar a potência constituinte a determinado estatuto de propriedade, mas ao mesmo tempo enxergamos um alargamento intenso da potência constituinte ao passo que tem-se positivado o direito à resistência às opressões dos governos, e, principalmente, o direito do povo de rever a qualquer tempo a sua constituição. A última, por sua vez, traz uma verdadeira inversão na qual o poder constituinte é substituído pelo discurso sobre os deveres dos cidadãos e faz parecer que a ordem política só advém da obediência das massas às regras, à ordem. É fato que todo esse processo de mudança no teor das declarações de direitos é reflexo da intensa disputa política que se travou em meio ao processo revolucionário francês entre classes com interesses divergentes. Cf. MARX, Karl. As lutas de classes na França de 1848 a 1850. In: MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008. v. 2 116
NEGRI, 2002, p. 302. 117
COSTA, 2006, p. 33
46
inovador. Essa inversão só pode ser realizada teoricamente em que pese ter
consequências práticas.
Por esses motivos elencados ao longo desse capítulo, a teoria constitucional,
quando envolta por todo o mecanismo da ideologia, tem dificuldades em
compreender o movimento pela constituinte exclusiva e soberana por uma reforma
política, uma constituinte parcial, porque ela nada deve aos fatos, não se destina a
compreender a totalidade da realidade social. Por isso, é imprescindível que
passemos a análise específica das respostas dadas pela teoria constitucional a esse
fenômeno da constituinte parcial para que possamos verificar se, de fato, se trata de
uma manifestação ideológica e, sendo positiva a resposta, qual a inversão realizada
que produz a referida formulação teórica.
3.3 CONSTITUINTE PARCIAL: ENTRE GOLPE E INCONSTITUCIONALIDADE
A ciência jurídica clássica tem dificuldades óbvias em adequar a sua teoria a
realidade fática, tal foto ocorre por uma visão nada dialética das principais correntes
teóricas, as ideologias jurídicas já referidas, o que produz um Direito que inadmite
categorias como poder popular ou mesmo um poder constituinte de caráter aberto
como o caracterizado por Negri. Essa postura da ciência jurídica permite que a
verdade, os fatos, andem na frente do Direito por reduzir a sua apreensão acerca
mobilidade da realidade social.
A doutrina jurídica tradicional entende que o povo e o poder constituinte não têm lugar no direito público, por não serem “categorias jurídicas”. O que se esquece com esta visão é o simples fato de que as questões constitucionais essenciais são políticas. Tentar separar o conceito de constituição do conceito de poder constituinte significa excluir a origem popular da validade da constituição e esta validade é uma questão política, não exclusivamente jurídica.
118
O Direito e o poder constituinte, para serem de fato compreendidos em sua
materialidade, precisam ser reconhecidos no processo histórico, nas ruas, e não nos
manuais. A partir dessa premissa, Lyra Filho propôs um modelo de estudo do
fenômeno jurídico utilizando a dialética social do Direito, para que a dialética
pudesse dirimir a falsa antítese entre ordem positivada e o conteúdo de justiça,
realizada pelas ideologias jurídicas; para que nos fosse colocado a disposição um
118
BERCOVICI, 2013, p. 205
47
critério concreto para estabelecer as medidas de justiça; e, principalmente, que as
transformações ocorridas em meio à realidade social não fossem contrapostas à
ordem positivada, para tanto, a teoria Lyriana toma como objeto a práxis jurídica,
advinda do social, do processo histórico119.
Tal concepção de direito levaria, ao se confrontar com as ideologias jurídicas
do positivismo e do jusnaturalismo, a nos apresentar uma possibilidade de
reconhecer o caráter aberto do poder constituinte aos estabelecer como síntese
jurídica não a norma, não a ideia, mas toda a realidade social, a totalidade do
processo dialético que envolve a geopolítica internacional, a infra-estrutura e toda a
super-estrutura e ”seus critérios [da síntese jurídica], porém, não são cristalizações
ideológicas de qualquer ‘essência’ metafísica, mas o vetor histórico-social, resultante
do estado do processo”120. Com esse modelo, toda a dinamicidade e a mobilidade
do direito e da sociedade são reconhecidos uma vez que “a síntese não está por
cima ou por baixo, num esquema prévio ou posterior, mas dentro do processo, aqui
e agora”121. Apenas essa abordagem pode permitir que seja respeitada a realidade
enquanto totalidade, como compreendido por Negri, por Marx, Chauí, Lyra Filho e
Enrique Dussel.
A relação prático-política, irmão-irmão, dá-se sempre dentro de uma totalidade estruturada institucionalmente como uma formação social histórica, e também, por último, sob o poder de um Estado [...]. Desde um Aristóteles, Agostinho, Vico, Hegel, Marx ou um Parsons, Weber, Lévi Strauss, todos coincidem em que a realidade política se dá como uma totalidade funcional. Se é uma totalidade (2.2) tem um fundamento ou projeto, o ser (2.2.5), em dialético desdobramento (2.2.8) geopolítico ou utópico temporal (para o futuro).
122
A dialética social do Direito reconhece todas as contradições do fenômeno
jurídico e da realidade social que ele integra, dá um passo, portanto, à superação
das formulações das ideologias jurídicas. Assim, as contradições de classes, a crise
entre poder constituinte e poder constituído, democracia e constitucionalismo, passa
a integrar a própria ciência jurídica, assim, a síntese jurídica passa a ser o vetor
histórico-social que resulta do processo histórico e indica a direção da
119
LYRA FILHO, 1995. 120
LYRA FILHO, 1995, p. 78 121
LYRA FILHO, 1995, p. 78 122
DUSSEL, [1980?], p. 74.
48
humanidade123, e o poder constituinte a ser “aquele que, através da cooperação,
libera o trabalho social vivo de toda a dominação, é a constituição dessa
liberação”124.
A ciência jurídica que não parte desses pressupostos vivencia em todo
momento de grande mutação uma tensão que chega quase a negar toda a base
teórica em que se sustenta uma vez que ela não pode impor freios definitivos à
realidade, o momento mutante, portanto, realiza as transformações na realidade
social e jurídica mesmo ao arrepio da teoria jurídica. Não por menos vemos, de
forma cíclica, o Direito Constitucional enfrentar discussões infindáveis acerca da
possibilidade da convocação de uma assembleia constituinte, no período que a
precede, com argumentos também cíclicos que orbitam sempre a ordem constituída
que mascaram a relação concreta que produz aquele momento constituinte e o
legitima, ao passo que não enfrentam a tensão entre Direito e Política, dão um
passo atrás quanto aos fatos.
As argumentações contrárias à realização da constituinte parcial não são, em
suma, novidades no cenário político e jurídico do país, além daquelas que tratam de
afirmar a impossibilidade de se elaborar limites ao poder constituinte originário, se
referindo à especificidade dessa proposta frente experiência do constitucionalismo
nacional.
Já quando se debatia a convocação da constituinte de 1986/1987125, os
argumentos acerca da desnecessidade de uma assembleia constituinte já eram
levantados e se materializaram na dicotomia entre a reforma constitucional através
de um congresso constituinte e a substituição da constituição mediante
assembleia126. As teses de 86/87 também perpassaram pela impossibilidade de se
convocar uma assembleia por ato do poder legislativo ou executivo e pela
argumentação de que uma assembleia só se justifica em um momento de ruptura,
tudo isso para advogar pela não realização de uma assembleia constituinte127.
O poder constituinte sempre está em movimento a partir da interpelação do
outro que crava sua libertação na realidade social, mas quando se realiza em um
momento constituinte de uma ordem jurídica revela a tensão entre a política e o
123
LYRA FILHO, 1995. 124
NEGRI, 2002, p. 372. 125
Moacir Pereira traz um ensaio sobre o processo de legitimação da constituinte e a disputa que estava em jogo. Cf. PEREIRA, Moacir. O poder da constituinte. Florianópolis: Lunardelli, 1986. 126
FAORO, 1985. 127
FAORO, 1985.
49
Direito, essa sempre negada pelas ideologias jurídicas, conforme diagnosticado por
Thomas Pereira (2014) “é nessa tensão, que não deixa de ser a tensão entre Direito
e Política, que o Direito Constitucional vive. É apenas em meio a essa constante
tensão que ele pode verdadeiramente viver e se fazer relevante”. Esse fato se revela
nas principais leituras acerca da constituinte parcial que, em sua maioria, se
originam da inversão realizada pelas ideologias jurídicas, e sua natureza ideológica
passará a ser desnudada a seguir.
3.3.1. As questões em debate
A primeira questão que nos é levantada é sobre a constitucionalidade da
convocação da constituinte, essa questão envolve três elementos: I) o procedimento
de criação de uma nova constituição deve ser regulada pela atual constituição?; II) a
convocação pode ser feita pelo executivo ou legislativo?; III) em que momento se
legitima a convocação de uma constituinte?
A questão da constitucionalidade é inclusive tomada pela ciência jurídica
como a principal das questões que precisam ser respondidas sobre a Constituinte
Parcial do Sistema Político. Essa fixação pelo enquadramento nas categorias da
constitucionalidade e da inconstitucionalidade nos dá indícios de uma tentativa de
enquadrar toda a realidade em normas, uma visão claramente formalista com
vocação positivista. O Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal pátrio
Carlos Ayres Brito (2013 apud OLIVEIRA, 2013) resumiu a tese ao declarar que “O
Congresso não tem poderes constitucionais para convocar uma assembleia
constituinte porque nenhuma Constituição tem vocação suicida”, e continua
destacando o que parece o óbvio “qualquer um que convoque a Constituinte vai
fazer à margem da Constituição”. A dicotomia em questão reitera a preocupação
central da ciência jurídica em ponderar a adequação ou não de determinado fato a
ordem dada. A tese é repetida em texto elaborado pela consultoria do Senado
Federal.
Sem dúvida que uma das questões discutidas quando se trata do tema da constituinte exclusiva sobre a reforma política diz respeito à sua própria constitucionalidade perante a Constituição de 5 de outubro de 1988. E quanto a essa questão vital, conforme entendemos e consignamos abaixo, a Lei Maior do País não acolhe a possibilidade de realização de uma constituinte exclusiva para revê-la.
128
128
TRINDADE, 2010, p. 7.
50
O caráter ideológico dessa tese, no sentido já abordado acima, é o mais fácil
de ser demonstrado. A convocação de uma assembleia constituinte em regra não é
regulada por um texto constitucional pelos motivos bem expressos pelo Ministro
aposentado do STF acima referido, “nenhuma constituição tem vocação suicida”129.
O constitucionalismo contemporâneo costuma realizar a diferenciação entre o
poder constituinte originário e o poder constituinte reformador ou derivado. Esse
último é regulado pela própria constituição e permite alterações pequenas no texto
constitucional a partir de procedimento estabelecido pela própria Constituição,
devendo ele respeitar as cláusulas pétreas, o núcleo fundamental da Carta
Magna130. O originário, por sua vez, segundo a teoria constitucionalista clássica, é
aquele poder que produz um ordenamento jurídico totalmente novo, funda uma nova
ordem constitucional131. A assembleia constituinte parcial é evidentemente a
manifestação do poder constituinte originário que, conforme será discutido em
momento pertinente, encontra seu sujeito no povo.
Uma assembleia constituinte não é regulada pelo texto constitucional que ele
depõe e, evidentemente, tentar submetê-la a procedimentos dispostos na
Constituição é querer mediar o poder constituinte pelo já constituído. O poder
constituinte é inovação, como demonstrado por Negri, é trabalho vivo em
contraposição ao trabalho morto do sistema. Por isso, uma Assembleia Constituinte
Parcial ou não se torna possível não pela adoção de certos procedimentos que
asseguram sua constitucionalidade, a questão que deve ser posta é tão somente
quanto à sua legitimidade, essa última categoria é perquirida não no âmbito do
ordenamento positivado, mas da totalidade da realidade social, daquela zona
anômica caracterizada por Agamben, na política. O mecanismo ideológico ora
analisado é evidente ao passo que trata de trazer o fundante como fundado, que
trata de condicionar o exercício do poder constituinte aos procedimentos
estabelecidos no texto constitucional.
A questão seguinte se refere à atecnia da convocação pelo executivo ou
legislativo que é ventilada ainda pela fala do ex-ministro quando afirma que não é
competência dos poderes constituídos, no caso, do Congresso, a convocação de
129
BRITO, 2013 apud OLIVEIRA, 2013. 130
ALVES, 2003. 131
ALVES, 2003.
51
uma assembleia constituinte. Porém, em princípio, vemos que tal assertiva encontra
origem no debate já acima dirimido e por isso possui o mesmo núcleo justificador.
Ademais, essa questão não encontra fundamento na história constitucional
brasileira, vejamos: a Constituinte de 86/87 foi convocada por ato do legislativo com
a edição da Emenda Constitucional nº 01/1985 que atribuiu ao Congresso eleito
poderes constituintes, além, evidentemente, de termos a tradição de convocação de
constituintes a partir de ato do poder executivo132, mesmo sem previsão no texto
constitucional para tanto.
A convocação de uma assembleia constituinte e a manifestação do momento
constituinte não se realizam seguindo a divisão de poderes estabelecida no texto
constitucional tal fato reforça a tese de que o fenômeno jurídico e, em especial, o
poder constituinte tem natureza mais complexa do que a ciência jurídica tradicional
tenta fazer crer.
Quanto ao momento de realização de uma assembleia constituinte, sem
sombra de dúvidas esse é o debate de mais difícil de ser travado, pois não há
respostas a serem dadas por manuais, compêndios, teses ou dissertações jurídicas,
mas sim nas ruas, na realidade fática com todas as suas movimentações e
contradições. No que tange especificamente à convocação de uma Assembleia
Constituinte parcial, José Afonso da Silva (2010 apud TRINDADE, 2010, p. 12)
afirmou o seguinte “sem uma ruptura da ordenação constitucional existente, não há
o pressuposto essencial para a convocação de Constituinte alguma, exclusiva ou
não”. Raymundo Faoro, enquanto se opunha ao formato de Congresso Constituinte
põe à prova essa tese em face da nossa história constitucional.
A tese de que a constituinte só é possível sobre a ruína do poder esmalta-se com os precedentes brasileiros, invocados contra a cronologia. O simplismo recita esta lição: a constituinte dissolvida em 1823 decorreu da Independência, a de 1891 da República, a de 1934 da revolução de 30 e a de 1946 da queda do Estado Novo. A constituinte dissolvida em 1823 foi convocada em 3 de junho de 1822, portanto antes da Independência, exatamente para organizar o berço que esta deveria nascer. Quem conhece alguma coisa da história contemporânea sabe que a constituinte convocada em 14 de maio de 1932 se deu, embora reconhecida pelo governo provisório, contra o grupo que controlava o poder, graças às pressões de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Foi uma vitória das correntes estaduais, modificadas mas não destruídas, contra o tenentismo, A constituinte eleita em 2 de dezembro de 1945 foi convocada por Getúlio Vargas em 28 de fevereiro do mesmo ano, ainda vigente o Estado Novo, em ato que foi considerado constituinte pelo Tribunal Superior Eleitoral (lei
132
PEREIRA, 1986, p. 56.
52
constitucional nº 13, de 12 de novembro de 1945), com poderes depois reconhecidos como ilimitados, mas inerentes ao próprio ato inicial (lei constitucional nº 15, de 26 de novembro de 1945). Das quatro constituintes de nossa história, três desmentem a tese da preexistência de ruptura formal do poder e consagram o princípio da precariedade diante da legitimidade.
133
Mesmo a Constituição Federal de 88 não foi fruto de um momento de ruptura
vejamos: Moacir Pereira ao escrever sobre a conjuntura política da época afirma que
“a constituinte será, também, o vestibular da Democracia, colocando os eleitores
brasileiros diante da principal prova política deste século: a de viabilizar a transição
lenta gradual e segura de um regime ditatorial para um regime democrático”134,
prossegue reconhecendo a tradição jurídica de ligar o poder constituinte a
momentos de rupturas “[...] o processo constituinte tradicional está umbilicalmente
vinculado à ruptura jurídico-política: pela independência, pela revolução ou pelo
golpe de Estado”135, e, por fim, conclui sobre o momento político da época
“inexistindo no Brasil a ocorrência de um desses três fatores essenciais[...]”136.
Afinal, no que de fato se constitui um momento de ruptura? Quem o define?
Em quais momentos o poder constituinte seguiu esse mandamento? E, afinal, de
onde se extrai esse mandamento segundo o qual o poder constituinte só se justifica
em momento de ruptura e de grave crise institucional?
A tese do momento constitucional apenas em rupturas é uma tentativa de
enquadrar o poder constituinte em fórmulas já predefinidas de manifestação. Faoro
por sua vez encontra na categoria da legitimidade a questão chave para definir o
tempo de manifestação do momento constituinte. O autor afirma “é a legitimidade
em decomposição, agravada pela ineficiência, que desperta o poder constituinte de
um povo”137, ele chega a essa conclusão ao perquirir sobre a forma de exercício do
poder em uma democracia encontrando uma relação entre poder, autoridade
legitimidade e legalidade. Para ele a autoridade, que existe porque é aceita,
encontra sua fonte na legitimidade que não é esgotada nos comandos impessoais
da legalidade, mas atinge sua plenitude na participação popular, vem de baixo na
produção de valores que orientam o exercício do poder138.
133
FAORO, 1985, p. 90-91, grifo do autor. 134
PEREIRA, 1986, p. 28. 135
PEREIRA, 1986, p. 28. 136
PEREIRA, 1986, p. 28. 137
FAORO, 1985, p.55. 138
FAORO, 1985.
53
Outra questão fundamental sobre a constituinte parcial é o da sua limitação.
Afirma-se que todo poder constituinte originário é ilimitado e não pode ser restrito a
determinado tema139. Essa tese tem fundamento em uma concepção de Direito que
cria realidade, e, sendo o poder constituinte instaurador de um novo ordenamento,
ele é portanto, autônomo, o que justifica, inclusive, a implantação de regimes
autoritários.
[...] só é possível elaborar uma constituição rompendo definitivamente com o regime e a constituição anteriores a partir deles próprios. Ademais, para que seja possível o surgimento de uma nova constituição, é necessário que todos os elementos que a compõem estejam já na sociedade, caso contrário essa nova constituição não existiria. Há na prática social cotidiana um fundo de silêncio compartilhado que possibilita a comunicação voltada ao direito nos novos termos. A tese do poder constituinte ilimitado, autônomo e incondicionado, ainda muito presente nos manuais de direito constitucional brasileiros, reproduz a idéia de que o poder constituinte tudo pode em razão de “dar início a uma nova ordem”. E essa visão, compartilhada na teoria e na prática constitucional brasileira por muitos juristas, termina por possibilitar uma associação entre autoritarismo e poder constituinte, que chega a explicar e justificar o golpe de Estado de 1964 e a produção constitucional sob a ditadura.
140
É fato que o poder constituinte não encontra limites no ordenamento positivo,
mas negar que a realidade material lhe impõe barreiras é cair em um idealismo
extremo de que o direito tudo pode. É evidente que o movimento constituinte que
forja o momento constituinte e toda a realidade social que o envolve determina até
onde pode ir a mudança promovida por esse poder, pois sua manifestação é
concreta. Se o fenômeno jurídico, como afirma a teoria lyriana141, é a síntese de todo
o processo global realizado na história que envolve infra estrutura internacional,
infra-estrutura nacional, formas de controle global e atividades anômicas, entre
outros elementos, é essa síntese que funciona como vetor da história que
estabelece os limites do poder constituinte.
A utilização da tese de que o pode constituinte originário é sempre ilimitado
representa uma tentativa de que a realidade se adeque às abstrações teóricas142, e
139
Essa, sem dúvidas, é a questão mais controversa sobre o tema, sendo ela o principal alvo dos juristas que se manifestaram sobre o tema. 140
COSTA, 2006, p. 38-39. 141
LYRA FILHO, 1995. 142 É claramente perceptível esse posicionamento teórico de tentar fazer a realidade se adequar às
formulações na entrevista concedida pelo atual ministro do STF Luís Roberto Barroso ao TV Migalhas já mencionado na introdução do presente trabalho. Cf. TV MIGALHAS. Entrevista Luís Roberto Barroso (constituinte exclusiva). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ipaYn19QrMw>. Acesso em: 03 set. 2014.
54
não o contrário. Ademais, utilizando um princípio hermenêutico corriqueiro na prática
jurídica a maiori, ad minus, ou seja, quem pode o mais pode o menos, se o povo,
titular do poder constituinte, pode manifestar esse poder de forma ilimitada,
evidentemente que o pode fazê-lo se limitando a determinado tema. Esse
mecanismo é claramente marcado pela inversão da ideologia uma vez que produz a
teoria completamente desligada da práxis jurídica143. Todas essas questões alocam
a discussão envolta de um fetiche pela ordem constituída, pois permitem apenas as
transformações reguladas, deslocando o poder constituinte daquela zona anômica a
qual se referiu Agamben.
3.3.2. A legitimidade em discussão
Desse modo, como podemos dar a resposta sobre a legitimidade de uma
assembleia constituinte? Evidentemente que uma visão dialética deverá encontrar
no processo histórico a resposta dessa questão, na síntese global do processo de
constituição da realidade.
A partir da política a vida em comunidade para garantir a reprodução da vida,
Dussel, ao realizar ser diagnóstico sobre o sistema político na América Latina,
encontra na potentia o principal sustentáculo do poder e indica que “o sujeito coletivo
primeiro e último do poder, e por isso soberano e com autoridade própria ou
fundamental, é sempre a comunidade política, o povo”144. Mas sua formulação não
nega a necessidade das instituições, uma vez que a comunidade tem apenas
potência de poder político, o momento prático do exercício desse poder é o das
instituições fixadas, da potestas145.
Sendo a comunidade política o principal sujeito do poder, a potestas, os
representantes nas instituições, exercer o poder de forma obediencial, delegada,
para Dussel um sistema político se corrompe quando o poder é exercido sem o
cumprimento desse mandamento146.
143
Essa constatação fez o Ministro Luís Roberto Barroso voltar atrás acerca de sua declaração sobre a impossibilidade jurídica da constituinte parcial, em que pese manter sua posição contrária à sua realização. Cf. BARROSO, Luís Roberto. Para Barroso, reforma política pode ser feita por Constituinte com limites. Brasília, 25 jun. 2013, G1. Entrevista concedida a Nathalia Passarinho. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/para-barroso-constituinte-poderia-ser-exclusiva-para-reforma-politica.html>. Acesso em: 21 set. 2014. 144
DUSSEL, 2007, p. 31. 145
DUSSEL, 2007, p. 31. 146
DUSSEL, 2007, p. 39.
55
Delegado indica que atua em nome do todo (universalidade) em uma função diferenciada (particularidade) empreendida com atenção individual (singularidade). O exercício singular (privado) de uma ção é a que se realiza em nome próprio. O exercício delegado (público) é a ação que se cumpre em função do todo. O fundamento de tal exercício é o poder da comunidade (como potentia) [...].
147
Dessa corrupção, no sentido aplicado pelo autor, nasce a crise de
representatividade que assola boa parte dos modelos de democracia representativa,
a partir da fetichização do poder e que se materializa na resposta dos manifestantes
brasileiros da não representatividade dos políticos de seu país. A partir desse
diagnóstico, a necessidade da estrutura do sistema político brasileiro resta clara, e
como poderia ser realizada pelos mesmos sujeitos que exercem a potestas nas
instituições políticas do país? A partir de um sistema que já se encontra fetichizado?
Corrompido?
Dussel ([1980?], p 29) define o mundo como uma totalidade formada por
entes conhecidos pelos homens e mulheres que recebem sentido da própria relação
entre eles, desse modo, há mundo apenas enquanto os homens e mulheres existem
neles em constante relação de alteridade, de proximidade. Portanto, a partir desse
conceito, sem homens e mulheres que confraternizam entre si e que exercem seu
trabalho para garantir a sua subsistência e suprir as suas necessidades, que se
relacionam entre si, não há mundo. Essa relação de alteridade se manifesta através
da política, da erótica ou da pedagogia.
A política, por sua vez, se constitui na relação entre os sujeitos do mundo, dos
homens e mulheres, enquanto agentes integrantes de uma dada sociedade que
funciona em um todo onde cada um exerce determinada tarefa no dia-a-dia da
produção material da subsistência148, a disfunção dessa sociedade, no entanto, é o
outro que exerce uma atividade que o aliena enquanto ser humano e deixa o seu
trabalho sob a “propriedade” de outrem. É o trabalho humano que define os rumos
de seu próprio mundo, e sempre numa relação com o outro, que não é ente nem
cosmo, mas outro, com rosto, classe, desejos e emoções. Portanto, nenhum homem
e nenhuma mulher por mais que se esforcem não podem abster-se de intervir no
mundo, nem muito menos na política no sentido forte do termo.
É a partir dessa intervenção no mundo, na política ou em outra esfera, que o
homem e a mulher exercem o seu poder constituinte da realidade. Essa ação não se
147
DUSEL, 2007, p. 34, grifos do autor. 148
DUSSEL, [1980?], p. 74.
56
dá fragmentada, aos poucos em cada esfera, em cada sistema, mas na totalidade
da realidade. Em Maquiavel o princípio constituinte já aparece como fruto da práxis
humana com desejos ora convergentes, ora divergentes.
O ser é constituído pela práxis humana que se organiza na desunião universal, e é através da desunião que se organiza o poder constituinte. [...] O poder constituinte forma-se em meio à mutação, como descoberta de sobredeterminar o tempo; [...] o caráter absoluto do poder constituinte pode encontrar tão somente na multidão o sujeito adequado, e tão somente numa forma sempre aberta de governo democrático sua substância.
149
Nesse excerto, Negri, a partir da formulação de Maquiavel, trata de identificar
o sujeito do poder constituinte, a multidão. O que aparece em Negri como multidão,
aparece em Dussel como povo, mas em uma categoria mais concreta, “um ator
coletivo, não essencial nem metafísico, mas sim conjuntural, como um bloco que se
manifesta e desaparece com o poder novo que está sob a práxis de libertação anti-
hegemônica e da transformação das instituições [...]”150. As mudanças no sistema
sempre advém da interpelação daquele que sofrem os seus efeitos negativos, o
povo. O poder constituinte, por sua vez, sempre representa mudança no sistema por
estar voltada ao futuro, por isso encontra nesse sujeito coletivo, o povo que
interpela, seu titular.
Para compreender melhor esse sujeito do poder constituinte, o povo, é
necessário adentrarmos mais um pouco na formulação de Enrique Dussel. As
instituições, potestas, em Dussel, uma das dimensões do poder político, surgem
para dar factibilidade às decisões da comunidade, potentia, é ela a última instância
de soberania uma vez que a política, a vida em comunidade, se apresenta como
forma de tornar a reprodução da vida possível, não como uma opção individual, mas
como uma necessidade prática de produzir as condições de sobrevivência dos
homens e mulheres, uma comunidade comunicativa capaz de produzir
consensos151.
As instituições elaboradas pelo sistema político, a potestas apresentada por
Dussel, são concretas, existentes nas sociedades históricas divididas em classe,
nela, produzem efeitos negativo, dissensos. “[...] Para uma política realista crítica, as
instituições são necessárias, embora nunca perfeitas; são entrópicas e por isso,
149
NEGRI, 2002, p. 127. 150
DUSSEL, 2007, p. 102. 151
DUSSEL, 2007.
57
sempre chega o momento em que devem ser transformadas, trocadas,
aniquiladas”152. Com a produção desses efeitos negativos, fora do sistema político
vigente esta a exterioridade do outro, os oprimidos, os negados, na geopolítica
mundial, a América Latina, a África, as periferias do sistema capitalista global, na
estrutura nacional, o sujeito povo, os oprimidos, os que sofrem as negatividades do
sistema.
O povo se constitui enquanto sujeito conjuntural quando percebem a sua
condição de outro e produzem um consenso crítico, a hiper-potentia, e se lançam
em uma ação política que consegue abarcar um grande número dos outros do
sistema político153. Nesse esquema trazido por Dussel, está estabelecido como se
dá de fato o poder constituinte, a capacidade de a sociedade transformar a sua
esfera política e social ocorre a despeito da vontade do constitucionalismo.
Desse modo, o critério de legitimidade de transformações na estrutura
institucional não repousa no cumprimento de procedimentos previamente
estabelecidos pela potestas. A compreensão de tal fato se dá na análise do Direito
em meio ao processo histórico, na dinâmica real, concreta do poder constituinte. O
poder constituinte não obedece a procedimentos, sua manifestação, enquanto
momento, se dá em determinadas conjunturas em que se é possível realizar
transformações na sociedade. A assembleia constituinte tem sua legitimidade no
próprio processo que a forja e, em que pese interessar ao Direito Constitucional, não
se enquadra em categorias da constitucionalidade ou inconstitucionalidade, seu
terreno é outro, mais complexo, o da totalidade da realidade social.
152
DUSSEL, 2007, p. 61. 153
DUSSEL, 2007.
58
4 CONCLUSÃO
Na descompressão do grito de liberdade e revolta se abriram os portões pesados. Um touro bravo se solta, quem parte berrando: avante! Pode cair, mas não voltar.
(Siba).
Não há que se olvidar da potência constituinte do povo na rua, da
possibilidade do poder popular, com sua potência constituinte, alterar a configuração
do poder constituído. Ora, o constitucionalismo contemporâneo é enfático em
afirmar: todo poder emana do povo. Dos mais variados textos constitucionais
escritos nas mais diversas línguas repete-se algumas combinações lexicais que
reconhecem a titularidade do poder ao povo: o art. 1º da Constituição da Espanha
esclarece que a soberania nacional reside no povo espanhol154, o art. 2º da
Constituição francesa enfatiza que o princípio da República francesa é o governo do
povo, para o povo e pelo povo155, o art. 5º da Constituição Venezuelana expressa
que a soberania reside intransferivelmente no povo156, e o art. 7º da Constituição
Boliviana, no mesmo sentido, afirma que a soberania reside no povo boliviano157.
Assim o faz também a Constituição Brasileira em seu art. 1º, parágrafo único158.
Mas não é o texto que permite o povo exercer sua soberania, seu poder,
como insiste em condicionar os positivistas, mas sim os fatos, as relações materiais,
a política como relação entre os homens e mulheres que produzem sua
sobrevivência e, por conseguinte, sua sociabilidade. O poder, que tem origem
material, nunca ideal, se faz constituído apenas quando perpassa pela legitimidade
do poder constituinte do povo, ou seja, emerge das relações reais dos homens e
mulheres que vivem a história.
Os mecanismos da ideologia e da alienação tratam de escamotear a origem
fática desse poder e de domar seu caráter aberto e inovador. São exatamente esses
mecanismos que justificam a afirmação de que a teoria constitucional anda atrás dos
fatos e que seja absolutamente impensável para alguns teóricos do direito a
realização de uma constituinte parcial do sistema político, por utilizar categorias
abstratas que encontram a realidade apenas para condicioná-la.
154
ESPANHA, 1978. Tradução livre 155
FRANÇA, 1958. Tradução livre. 156
VENEZUELA, 1999. Tradução livre. 157
BOLÍVIA, 2009. Tradução livre. 158
BRASIL, 1988.
59
Mas, uma vez constituído o poder, onde reside o poder constituinte?
Adormece em seu leito, inerte, esperando o beijo apaixonado do poder constituído?
Toma cianureto para escapar das adversidades da história? Precisa, para despertar,
refletir-se no poder constituído? Corre léguas para fugir daquele que tem sua
titularidade, o povo? Acorrenta-se aos pés das oligarquias? Ou abandona as ruas
para viver apenas os reinos oníricos das leis, constituições e teses de juristas?
A soberania repousa nos braços do povo e quando ele não se reconhece no
poder constituído, quando este se desliga completamente do poder popular, nada
mais legítimo que o povo nas ruas faça uso daquela e exerça a sua potência
constituinte. Por isso, o poder constituinte, apesar de toda a cantilena em contrário
do poder constituído, pulsa, é vivo, não dorme, e nunca deixou ou deixará a
realidade das relações humanas, o desconforto da rua que denuncia as contradições
e limites do sistema.
O poder constituinte em sua natureza é um princípio aberto, absoluto, se
realiza cotidianamente no seio da sociedade e tem como titularidade um sujeito
coletivo conjuntural, o povo, sua manifestação se dá no processo histórico e não
pelas previsões da arquitetura constitucional ou de doutrinadores. Portanto, o poder
constituinte, enquanto processo, não para em nenhum momento.
Ao passo que a teoria constitucional passa a legitimar o poder constituinte,
exercido genuinamente pelo povo, sujeito coletivo concreto formado pela
corporalidade dos sujeitos que vivenciam o processo histórico, pela ordem
constituída ela realiza o processo de alienação ao passo que regula a realidade
humana pela coisa constituída pela própria ação humana, o objeto.
O poder constituinte tem duas formas de manifestação:1) como processo
social, capaz de alterar e constituir toda a realidade humana a partir da ação dos
homens e das mulheres através do trabalho, da produção das suas condições de
sobrevivência, esse processo constituinte é, portanto, o que movimenta o vetor-
histórico social que é o Direito, ele jamais é interrompido uma vez que se concretiza
nas relações humanas cotidianas - na política, pedagógica e na erótica; e 2) como
momento, no qual verificamos a alteração no ordenamento positivado através de
assembleias ou congressos constituintes e emendas constitucionais, esse momento
constituinte de forma alguma é estanque, cindido daquela outra forma de
manifestação do poder constituinte (o processo constituinte). Entre eles há uma
60
relação concreta em que o processo constituinte que se manifesta no processo
histórico determina o momento constituinte.
A ciência jurídica clássica, que flerta com as ideologias jurídicas trazidas
nesse trabalho, volta suas preocupações unicamente ao momento constituinte e
cinde, através de categorias abstratas ou mesmo remissão unicamente à ordem
constituída, a relação entre o processo e o momento. Com isso, a noção de
totalidade do fenômeno jurídico e, especificamente, da categoria poder constituinte,
é sacrificada, o que permite que se conceba um poder constituinte submisso aos
procedimentos e normas da ordem constituída e a ação política dos sujeitos na
história a sua adequação com as normas do direito, isso reflete diretamente nos
posicionamentos teóricos negadores da possibilidade da constituinte parcial que
tomam o momento constituinte como única manifestação do poder constituinte e
ignoram o processo constituinte, seu legitimador e condicionador.
No que tange à previsão na ordem positiva, uma constituição não tem como
prever seu fim já que é a comunidade política que a sustenta quem decide pela
manutenção ou não dos seus mecanismos constitucionais. Como bem salientou o
Ministro Carlos Ayres Brito, uma Constituição não tem vocação suicida, mas tal fato
não é obstáculo à manifestação do poder constituinte – como momento ou processo,
por ele não emanar da constituição, mas da própria comunidade política. O poder de
convocar uma Assembleia constituinte, o momento constituinte, não cabe ao poder
constituído, mas a esta, à potentia, legitimada pelo processo constituinte.
O processo constituinte de 86, por exemplo, como qualquer outro na história
das constituições do mundo, nasceu e se legitimou na interpelação dos que estavam
fora do sistema e exigiram uma nova conformação e roupagem do poder constituído,
e não se deu por procedimentos já estabelecidos no texto constitucional. Ele nasceu
a partir de sua potência constituinte do povo, das manifestações de rua, das
movimentações de diversos setores da sociedade brasileira quando estes
resolveram que era hora de repensar as estruturas do país. Esse processo
constituinte teve início na década de 70 com o travamento de debates acerca da
necessidade de mudar o texto constitucional do país, a estrutura que estava em
volta do poder. É evidente que nenhum sistema político, nenhuma constituição
prevê, na hora de seu nascimento, o momento em que terá seu fim, em que se
abrirá para comportar os novos anseios dos homens e das mulheres que fazem sua
história. No entanto, por serem históricas, todas as constituições sempre estarão
61
passíveis de mudanças pontuais ou radicais quando aqueles que as legitimam
acharem pertinente.
A explicação da constituinte parcial não tem como ser realizada pela
dualidade entre constitucionalidade e inconstitucionalidade, como insiste em fazer o
positivismo, pois o poder constituinte não é mediado pela ordem constituída, ele não
encontra limites no ordenamento positivado, mas na realidade material que forja o
momento constituinte. A origem desse poder é em uma zona anômica, em que a
ação não precisa estar de acordo ou não com procedimentos estabelecidos em
textos legais, mas sim com critérios de legitimidade forjados no próprio processo
histórico em movimento.
Desse modo, são as forças reais existentes na sociedade civil, a correlação
de forças dadas no processo, que constituem o poder e que erguem um sistema
político e jurídico a partir de suas relações de alteridade na produção da vida
humana, dos homens e mulheres fazendo história, é dessas interações que qualquer
texto constitucional ou sistema político ganha sua legitimidade.
É na crise, no acirramento das contradições, na interpelação da exterioridade
do sistema político, dos outros que sofrem as consequências negativas deste que o
fenômeno constituinte se faz concreto. Tal fato não foge da normalidade do
constitucionalismo, uma vez que ao longo da história constitucional brasileira, latino-
americana, e dos demais continentes, constituições nascem e morrem ao gosto da
sua capacidade de atender às necessidades políticas de um povo, de atender o seu
objetivo primeiro, qual seja, o de permitir a reprodução da vida. As instituições e o
direito se modificam no processo histórico quando as condições materiais assim
exigem, e a rigidez constitucional não pode ser pretexto para impossibilitar
modificações necessárias.
A possibilidade de realizar uma reforma política dentro das atuais regras do
jogo, por dentro do atual sistema político, só consegue ser defendida se for pensada
de forma abstrata. De fato, há procedimentos que permitem a modificação pontual
do sistema político brasileiro, mas pouco se avança a discussão por dentro dos
poderes constituídos159. Além disso, levando em conta o atual quadro brasileiro de
159
No congresso Nacional tem surgido algumas propostas com o intento de realizar reformas no sistema político brasileiro, as propostas divergem na abrangência do termo, mas, em regra, tratam de trazer uma série de propostas sobre reformulação das eleições não sendo capaz de discutir, por exemplo, a ampliação da participação popular nas decisões do Estado, uma tendência global quando se trata de democracia, ou mesmo de reformular o exercício mesmo do poder que perpassa,
62
poder fetichizado e principalmente do exercício do poder de forma não obediencial,
não delegada, pouco se tem a esperar que as reivindicações populares sejam
atendidas pelos sujeitos que hoje ocupam as instituições brasileiras.
A sociedade brasileira, como vimos em junho de 2013, pede por mudanças,
no entanto, de fato não está definido que ela se realizará por uma assembleia
constituinte, mas, ressalta-se, através dela se permite pensar reformas que não
estejam submetidos à lógica privatista do atual sistema político e mais se exercita o
a poder popular, real fonte de legitimidade de qualquer momento constituinte. Está
dada a possibilidade jurídica de tal proposta, cabe agora às mobilizações populares,
à potentia, à comunidade brasileira de fato decidir se o momento é constituinte ou
não, porque o processo constituinte, de fato, nunca findou.
O povo nas ruas derrubou governos, enterrou e implantou modos de
produção, desfez textos legais, referendou constituições, constituiu sistemas
políticos, econômicos e sociais, e somente ele poderá dizer quando exercerá a sua
potência constituinte, com plebiscitos, marchas, ou qualquer outra tática que decidir
usar, pois, estando ou não nos mandamentos constitucionais, todo poder emana
dele e por ele deve ser exercido.
necessariamente, sobre a discussão da Comunicação Social e da concretização do Direito Humano à Comunicação, corolário do direito de livre expressão. Mas o dado mais série sobre isso é que os trabalhos no Congresso, especialmente no Congresso, onde foi criada em 2011 uma comissão especial sobre a Reforma Política, pouco tem andado os trabalhos sobre o tema, tendo proposto dois anteprojetos (APJ 2/2011 E APJ 3/2012) de reforma política também paralisados nas instâncias da casa, e no Senado onde também foi criada a comissão especial sobre reforma política em 2011. Cf. BRASIL. CÂMARA LEGISLATIVA. Comissão de reforma política. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/reforma-politica> Acesso em 30 out. 2014.; BRASIL. SENADO FEDERAL. Comissão de reforma política. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/comissoes/comissao.asp?origem=&com=1547>. Acesso em: 30 out. 2014.
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