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Let. Cláss., São Paulo, v. 18, n. 2, p. 57-73, 2014 O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo Resumo. Do ponto de vista histórico, a instituição dos reis gregos é insuficientemente documentada e sua exata natureza está ainda por se revelar. A julgar pela obra dos poetas arcaicos e clássicos, no entanto, as características da realeza ficaram bem grava- das na memória dos gregos do Período Clássico. Nesta oportunidade, foram seleciona- das e estudadas algumas passagens da tragédia de Eurípides nas quais a participação do rei pode detalhar ou esclarecer alguns aspectos do poder monárquico nas antigas comunidades gregas e seu reflexo no imaginário dos gregos do século V a.C. Palavras-chave. Realeza; tirania; tragédia grega; Eurípides; história grega. D.O.I. 10.11606/issn.2358-3150.v18i2p57-73 A palavra “rei”, invariavelmente utilizada na língua portuguesa para designar os detentores de poder político pessoal, absoluto e hereditá- rio, reflete melhor as características e atribuições dos reis da Idade Média europeia do que as dos detentores individuais do poder político nas póleis da Grécia Antiga. Usar essa palavra em relação aos gregos da Antiguidade e, mais precisamente, aos do Período Clássico é certamente um anacro- nismo, mas não há dúvida de que em tempos recuados de sua história as comunidades gregas foram conduzidas por indivíduos com poderes políti- cos que se assemelhavam aos da realeza europeia medieval. As primeiras descrições do rei, de seu poder e de seus símbolos podem ser encontradas, como muitos outros elementos da antiga cultura grega, nos poemas homéricos e hesiódicos que refletem, acredita-se, di- versos elementos culturais da Idade das Trevas e do alto Período Arcaico. Comparações entre os mitos descritos por Homero e por Hesíodo com os de outras culturas sugerem, ademais, que alguns conceitos remontam à Idade do Bronze do Egeu, talvez até aos precursores indo-europeus da cultura grega. Mitos de várias culturas antigas relatam que os próprios deuses eram sujeitos aos desígnios de um primum inter pares, de um rei dos deu- * Doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (2011). O arcabouço deste estudo foi apresentado em forma de conferência durante o IV Colóquio do GP Estudos sobre o Teatro An- tigo, As relações de poder no teatro greco-romano, São Paulo, FFLCH–USP, 14–16 de agosto de 2012. ** Artigo recebido em 25.set.2015 e aceito para publicação em 14.dez.2015.

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Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

O PODER DO REI NA TRAGEacuteDIA DE EURIacutePIDES

Wilson Alves Ribeiro Jr

Universidade de Satildeo Paulo

Resumo Do ponto de vista histoacuterico a instituiccedilatildeo dos reis gregos eacute insuficientemente documentada e sua exata natureza estaacute ainda por se revelar A julgar pela obra dos poetas arcaicos e claacutessicos no entanto as caracteriacutesticas da realeza ficaram bem grava-das na memoacuteria dos gregos do Periacuteodo Claacutessico Nesta oportunidade foram seleciona-das e estudadas algumas passagens da trageacutedia de Euriacutepides nas quais a participaccedilatildeo do rei pode detalhar ou esclarecer alguns aspectos do poder monaacuterquico nas antigas comunidades gregas e seu reflexo no imaginaacuterio dos gregos do seacuteculo V aC

Palavras-chave Realeza tirania trageacutedia grega Euriacutepides histoacuteria grega

doi 1011606issn2358-3150v18i2p57-73

A palavra ldquoreirdquo invariavelmente utilizada na liacutengua portuguesa para designar os detentores de poder poliacutetico pessoal absoluto e hereditaacute-rio reflete melhor as caracteriacutesticas e atribuiccedilotildees dos reis da Idade Meacutedia europeia do que as dos detentores individuais do poder poliacutetico nas poacuteleis da Greacutecia Antiga Usar essa palavra em relaccedilatildeo aos gregos da Antiguidade e mais precisamente aos do Periacuteodo Claacutessico eacute certamente um anacro-nismo mas natildeo haacute duacutevida de que em tempos recuados de sua histoacuteria as comunidades gregas foram conduzidas por indiviacuteduos com poderes poliacuteti-cos que se assemelhavam aos da realeza europeia medieval

As primeiras descriccedilotildees do rei de seu poder e de seus siacutembolos podem ser encontradas como muitos outros elementos da antiga cultura grega nos poemas homeacutericos e hesioacutedicos que refletem acredita-se di-versos elementos culturais da Idade das Trevas e do alto Periacuteodo Arcaico Comparaccedilotildees entre os mitos descritos por Homero e por Hesiacuteodo com os de outras culturas sugerem ademais que alguns conceitos remontam agrave Idade do Bronze do Egeu talvez ateacute aos precursores indo-europeus da cultura grega Mitos de vaacuterias culturas antigas relatam que os proacuteprios deuses eram sujeitos aos desiacutegnios de um primum inter pares de um rei dos deu-

Doutor em Letras Claacutessicas pela Universidade de Satildeo Paulo (2011) O arcabouccedilo deste estudo foi apresentado em forma de conferecircncia durante o Iv Coloacutequio do GP Estudos sobre o Teatro An-tigo As relaccedilotildees de poder no teatro greco-romano Satildeo Paulo FFLCHndashUSP 14ndash16 de agosto de 2012

Artigo recebido em 25set2015 e aceito para publicaccedilatildeo em 14dez2015

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ses com poderes absolutos e Hesiacuteodo realmente conta que desde a derrota infligida a Crono o poderoso Zeus ldquoreinardquo (ἀνάσσει) entre os imortais (Hes Th 505) e deteacutem o tiacutetulo de θεῶν βασιλῆα καὶ ἀνδρῶν ldquorei dos deuses e dos homensrdquo (Hes Th 897) Diversos reis humanos miacuteticos eram por sua vez considerados seus descendentes emprestando assim um elemento de di-vindade ou de sanccedilatildeo divina (Il 2204ndash6) ao poder real Menciono apenas para ilustraccedilatildeo Tacircntalo rei da Friacutegia (Od 11582ndash92 Nosti Fr 3 West E El 4ndash10) Lacedecircmon rei de Esparta (ΣD Il 1848665ndash7) e o heroacutei Perseu rei de Argos (Ps-Hes Fr 241 = P Cair 45624 Pherecyd 3 F 10)

Nos registros histoacutericos dispomos de poucas informaccedilotildees sobre os tempos mais recuados da cultura grega todas de natureza arqueoloacutegica ou deduzidas a partir dos registros palaciais gravados em Linear B Na Idade do Bronze havia o wanax1 o lawagetas2 e o gwasileus3 O wanax micecircnico vivia provavelmente em um palaacutecio como os de Cacircnia e Pilos e sua influecircncia eou autoridade se estendia a um grande territoacuterio o lawagetas parece ter sido um wanax de importacircncia e influecircncia menores ou pelo menos um de seus colaboradores de status mais elevado e o gwasileus era aparentemente um simples ldquocheferdquo local talvez um capitatildeo ou comandante militar com atribui-ccedilotildees civis judiciais e administrativas restritas a uma pequena comunidade4

Ateacute o momento nada leva a crer que esse gwasileus possuiacutea as ca-racteriacutesticas do βασιλεύς dos poetas arcaicos mas foi ele o uacutenico detentor de algum poder pessoal que parece ter sobrevivido ao desaparecimento do sistema palacial micecircnico no final da Idade do Bronze Os gregos do Pe-riacuteodo Claacutessico se lembravam desses βασιλεῖς notadamente como monarcas hereditaacuterios e em termos bem gerais (Th 1131 e Arist Pol 1284-6 b e Ath 31ndash2) Tuciacutedides (1131) no entanto afirmou que antes da eacutepoca das tira-nias houve uma eacutepoca de monarquias (μοναρχία ldquogoverno de um soacuterdquo)5 e parece ter sido o primeiro a estabelecer diferenccedilas entre as duas (Mitchel 2013 2) Aristoacuteteles (1286 andash8 a) que viveu uma ou duas geraccedilotildees depois distinguia vaacuterias espeacutecies de governo monaacuterquico e ateacute mesmo considerou ldquotiracircnicardquo um dos tipos de monarquia (1285 b)

1 Eg linear B 6559165577655516558765579 transcriccedilatildeo wa-na-ka-te-ro gr claacutessico ἀνάκτορον que deriva do gr arcaico ϝάναξ

2 Eg linear B 65576 65591 6555265586 transcriccedilatildeo ra-wa-ke-ta O tiacutetulo parece ser uma combinaccedilatildeo de λαός ldquopovordquo e ἄγω ldquoconduzirrdquo ndash ou de ἡγέομαι ldquoliderarrdquo como no gr doacuterico λαγέτας ldquoliacuteder do povordquo (Pi O 189 P 4107)

3 Eg linear B 65571655836557765540 transcriccedilatildeo qa-si-re-u gr arcaico e claacutessico βασιλεύς4 Isso no reino micecircnico centralizado em Pilos no seacuteculo xIII aC pelo menos5 Note-se que o vocaacutebulo portuguecircs ldquomonarquiardquo eacute praticamente a transcriccedilatildeo latina do vocaacute-

bulo grego A primeira ocorrecircncia eacute um fragmento papiraacuteceo de Alceu (Fr 627 = P Oxy 1789) nascido em 625ndash620 aC e contemporacircneo dos tiranos Melancro Piacutetaco e Mirsilo de Mitilene

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Esparta foi a uacutenica poacutelis a emergir da Idade das Trevas com a ins-tituiccedilatildeo da realeza hereditaacuteria ainda vigente Os espartanos tinham natildeo apenas um mas dois βασιλεῖς e cada um deles descendia de uma famiacutelia diferente (Agiacuteadas ou Euripocircntidas) Durante os Periacuteodos Arcaico e Claacutes-sico eles natildeo detinham o poder poliacutetico e suas atribuiccedilotildees se limitavam a declarar guerra a comandar o exeacutercito ao direito de participar do conselho ldquodos velhosrdquo (a geruacutesia) e a receber a primeira porccedilatildeo nos banquetes puacutebli-cos (Arist Pol 1285 a) Sua autoridade judicial se limitava aos casos de cida-datildeos que morriam sem descendecircncia masculina e aos relacionados com as estradas puacuteblicas e com a adoccedilatildeo de filhos

Durante o Periacuteodo Arcaico oligarcas com poderes discricionaacuterios (τύραννοι ldquotiranosrdquo legisladores e αἰσυμνῆται ldquomagistradosrdquo) dominaram o cenaacuterio poliacutetico das poacuteleis gregas (Th 1131)6 Esses homens pertenciam a famiacutelias proeminentes e detinham sozinhos o poder poliacutetico eles eram μούναρχοι (Thgn 52) ldquomonarcasrdquo ie concentravam o poder poliacutetico em sua pessoa Ao lado de benefiacutecios agrave comunidade e de iniciativas e atitudes apropriadas e meritoacuterias os tiranos arcaicos deixaram maacutes recordaccedilotildees Heroacutedoto e outros autores antigos lembravam que aleacutem de ostentar acin-tosamente sua riqueza pessoal e seu poder eles interferiram politicamente nas poacuteleis vizinhas e se envolveram em guerras de agressatildeo contra elas interferiram em cultos tradicionais confiscaram bens humilharam exi-laram escravizaram e mataram seus concidadatildeos inclusive familiares A despeito disso a conotaccedilatildeo pejorativa que a palavra ldquotiranordquo tem em nossos dias comeccedilou apenas no seacuteculo iv aC a partir de Platatildeo

Embora Tuciacutedides e Aristoacuteteles usem com frequecircncia as palavras ldquotiranordquo e ldquoreirdquo de forma mais ou menos excludente (Parker 2007 15ndash7) Heroacutedoto e historiadores tardios as utilizam de forma intercambiaacutevel O exerciacutecio do poder poliacutetico por um uacutenico homem (μοναρχία ldquomonarquiardquo) a transferecircncia do poder dentro da proacutepria famiacutelia e as atitudes beneacuteficas e maleacuteficas dos tiranos arcaicos tornaram efetivamente as duas instituiccedilotildees quase indistinguiacuteveis para os gregos do Periacuteodo Claacutessico

Haacute diversas referecircncias aos monarcas gregos do Periacuteodo Arcaico nos filoacutesofos preacute-socraacuteticos nos poetas liacutericos em Heroacutedoto em Tuciacutedides em Platatildeo em Aristoacuteteles e em historiadores tardios como Diodoro Siacuteculo e Nicolau de Damasco todos presentes nos modernos tratados sobre a histoacute-ria grega antiga Uma fonte de informaccedilotildees notaacutevel e relativamente negli-genciada eacute poreacutem a obra dos poetas traacutegicos do seacuteculo V aC raramente

6 A tirania perdurou em algumas poacuteleis ateacute o seacuteculo II aC (Dillon amp Garland 1994 29) embora os historiadores modernos denominem ldquoIdade dos tiranosrdquo apenas o periacuteodo que vai do iniacutecio da tirania de Ciacutepselo em Corinto (c 658 aC) ateacute a queda dos psistraacutetidas em Atenas (c 510 aC)

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mencionada nesses tratados talvez pelo caraacuteter eminentemente ficcional das trageacutedias Mas reis satildeo personagens ficcionais mais comuns na trageacute-dia grega do que nos poemas arcaicos e sua participaccedilatildeo na accedilatildeo dramaacutetica se baseia provavelmente na memoacuteria dos gregos sobre o poder absoluto ou quase absoluto dos monarcas ndash reis ou tiranos ndash histoacutericos

A obra de Euriacutepides se destaca entre outras coisas pela proximi-dade entre os temas traacutegicos e diversos elementos da cultura ateniense da segunda metade do seacuteculo v aC o que motivou o presente estudo sobre a caracteriacutesticas da monarquia em sua obra As referecircncias satildeo numerosas e por isso restringi a anaacutelise agraves caracteriacutesticas mais ilustrativas do poder real monaacuterquico na trageacutedia euripidiana sem me deter na caracterizaccedilatildeo de reis natildeo helecircnicos e na cronologia relativa das trageacutedias Toda escolha eacute pessoal mas confio ter selecionado as passagens mais representativas do monarca traacutegico nas trageacutedias de Euriacutepides7

DENOMINACcedilAtildeO SIacuteMBOLOS E SEDE DO PODER REAL

Βασιλεύς e seus derivados cujo radical corresponde ao gwasileus do dialeto micecircnico (eg Alc 241 Med 455 e 554 Suppl 444 El 12 HF 182 Ar-chel Fr 229 Hyps Fr 752 g Phaeumlth Fr 773 e 781) deveria designar teorica-mente apenas a figura real de origem hereditaacuteria e τύραννος8 (eg Alc 286 e 1022 Med 700 Ion 626 Hel 4 e 35 Ph 51 Alcmeon em Corinto Fr 76 Antiacutegone Fr 171ndash2 Auge Fr 275 Tieste Fr 397 b Dacircnae Fr 11324) figuras reais de ori-gem natildeo hereditaacuteria Euriacutepides no entanto usava βασιλεύς e τύραννος indi-ferentemente para designar o monarca aquele que detinha o poder real Na Alceste para se referir a Admeto ele usa o primeiro termo (241) e logo depois (286) o segundo

Ἄναξ palavra que corresponde ao wanax do dialeto micecircnico era usada por Euriacutepides como denominativo ou vocativo geneacuterico para indicar a alta posiccedilatildeo do monarca eg γῆς ἄνακτα τῆσδε Θησέα ldquoTeseu senhor desta terrardquo (Hipp B 1153) τῆσδrsquo ἄνακτrsquo εἶναι χθονός ldquosou o senhor desta terrardquo (Ph 591) Ἀγαμέμνων ἄναξ e Μενέλεως ἄναξ (IA 431 436 etc) e em expressotildees se-

7 As trageacutedias fragmentaacuterias sem abreviatura padronizada satildeo mencionadas a seguir pelo tiacutetulo traduzido

8 A palavra natildeo eacute indo-europeia e sua origem eacute provavelmente natildeo grega talvez liacutedia ou etrusca Sua primeira ocorrecircncia nos textos gregos eacute o terceiro verso do Fr 19 West de Arquiacuteloco μεγάλης δrsquo οὐκ ἐρlangέωrang τυραννίδος ldquoe natildeo anseio uma grande tiraniardquo (Dillon amp Garland 1994 29)

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melhantes no Hipoacutelito B (901 e 1249)9 em Heraclidas (825) e no Alexandre Fr 561 Na Antiacuteope Hermes recorre a ἄναξ para se dirigir a Anfiacuteon futuro rei de Tebas (Fr 26368) e a Lico o rei que ainda estava no poder (Fr 223109)

Essas denominaccedilotildees do rei se estendem agrave sua consorte e a outros familiares Alceste esposa do rei Admeto eacute chamada de βασίλεια em Alceste (81) em Heacutecuba (809) a ex-rainha diz τύραννος ἦ ποτrsquo ἀλλὰ νῦν δούλη σέθεν ldquoeu antes era tirana (=rainha) e agora tua escravardquo em Androcircmaca (1055) Hermiacuteone eacute chamada de ldquorainhardquo (βασίλεια) e no verso 65 Androcircmaca diz que antes de ser escrava era ldquosenhora rainhardquo (ἄνασσα) e o mesmo ocorre com Clitemnestra na Electra (988) no Fr 82215 do Frixo A ou do Frixo B a palavra βασίλεια eacute mencionada possivelmente em relaccedilatildeo a Ino Na Medeia (42) a Ama se refere a Jasatildeo novo genro do rei como τύραννον τόν τε γήμαντα ldquoo tirano que se casourdquo e na mesma trageacutedia (877 967 e 1356ndash7) Medeia se refere agrave filha do rei Creonte como ἢ τύραννον ldquoa tiranardquo

Palavras correspondentes a lawagetas natildeo satildeo encontradas em Euriacute-pides e o nome Ἀρχέλαος na trageacutedia Arquelau (Fr 228ndash64) eacute a uacutenica ocor-recircncia do radical λαο- em contexto que sugere realeza Haacute poreacutem algumas ocorrecircncias da palavra λοχαγός ldquoliacuteder militar de um grupo de homens ca-pitatildeordquo (eg Suppl 598 Tr 1260 Ph 123) mas essa funccedilatildeo ou posto militar natildeo parece ter tido o alcance que o tiacutetulo micecircnico lawagetas parece ter nas tabuinhas micecircnicas

A sede do poder real eacute o proacuteprio palaacutecio residecircncia do monarca (τυραννικῶν δόμων Hec 55) como se vecirc em praticamente todas as trageacutedias que tecircm o rei como personagem eg Peliacuteades (Fr 601) Feniacutecias (197) Orestes (1356) Helena (1170) Cresfontes (Fr 448 a 2) Note-se que o ldquopalaacuteciordquo eacute sede e siacutembolo do poder poliacutetico ateacute hoje haja vista as expressotildees modernas Paccedilo Municipal Palaacutecio do Governo Palaacutecio do Alvorada etc Em termos de abrangecircncia geograacutefica os domiacutenios do monarca compreendiam a terra dentro dos limites da poacutelis que ele governava e satildeo quase sempre referidos como ldquoesta terrardquo eg τῆσδrsquo ἄνακτα γῆς ldquorei desta terrardquo (Med 934) e agraves vezes um pouco aleacutem (Hipp B 1084) Haacute ocorrecircncias semelhantes para τύραννος em Heraclidas (111) Suplicantes (399) e Dacircnae (Fr 11324) Na Helena (4 e 1058) a expressatildeo eacute utilizada em relaccedilatildeo ao rei do Egito cujo comportamento eacute comparaacutevel ao dos monarcas gregos retratados em outras trageacutedias

O cetro (σκήπτρος) eacute o siacutembolo do poder real por excelecircncia assim como uma de suas mais frequentes metaacuteforas eg El 11 HF 213 Tr 150 Ph 52 73 e 80 Or 437 IA 311 e 412 Passagens corais da Antiacuteope (Fr 22317ndash8)

9 Euriacutepides escreveu duas trageacutedias intituladas ldquoHipoacutelitordquo Da primeira abreviatura Hipp A temos apenas fragmentos a segunda (abreviatura Hipp B) chegou ateacute noacutes na iacutentegra

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e da Ifigecircnia em Taacuteuris (186ndash7) respectivamente ilustram com precisatildeo a metaacutefora

ὅδrsquo] αὐ[τό]ς εἰ χρὴ δοξάσαι τυραννικῶι σ]κ[ή]πτρωι Λύκος πάρεστι σιγῶμεν φίλοι

Eacute ele se devemos conjeturar pelo realcetro Lico em pessoa calemo-nos amigos

οἴμοι τῶν Ἀτρειδᾶν οἴκων ἔρρει φῶς σκῆπτρόν langτrsquorang οἴμοι

a casa dos Atridas ai de mim a luz de seu cetro estaacute arruinada ai de mim

Note-se que na Androcircmaca (23 588 e 1223) o idoso Peleu ainda deti-nha a dignidade real e usava o cetro embora Euriacutepides decirc a entender ao longo da trageacutedia que ele era uma espeacutecie de rei honoraacuterio e que seu neto Neoptoacutelemo cuidava de tudo

Na maioria das vezes Euriacutepides usou a palavra θρόνος ldquotronordquo para designar simples assentos mas em alguns lugares a metaacutefora para a realeza eacute bem clara eg καὶ παρὰ θρόνον ἀρχέταν10 ldquoe junto ao trono realrdquo (Heraclid 753) κοὐ δεῖ τύρανν[α σκῆπτρα καὶ θρόνους λαβεῖν ldquoe natildeo devem ter parte nem no cetro e nem no trono realrdquo (Melanipp Capt Fr 49520) θρόνους ἔχων ldquopossuo o tronordquo (HF 167) As rainhas tambeacutem tinham direito literal de usaacute-lo jaacute que Helena esposa do rei Menelau sentava-se em um trono dentro do palaacutecio real (Or 1408ndash10)

O rei agraves vezes proclamava pessoalmente suas decisotildees (Med 272 351 e 725 Hipp B 973ndash5 e 1084)11 mas dispunha de representante pessoal que atuava agrave distacircncia o arauto para transmitir desejos decisotildees (eg Heraclid Suppl e Hec passim Phaeumlth Fr 771ndash86) e agraves vezes ateacute sua disposiccedilatildeo na-tural Em Heraclidas por exemplo Euristeu eacute representado por um arauto antipaacutetico e agressivo verdadeiro alter ego do soberano argivo12 mas em Troianas temos o oposto Agamecircmnon eacute representado por Taltiacutebio simpaacute-tico e compassivo embora o atrida natildeo fosse sempre assim

10 Nessa passagem em particular Zuntz (1955 118) acredita que se trate de referecircncia ao trono de Zeus

11 Med 272 ἀνεῖπον ldquoeu proclameirdquo em 351 προυννέπω ldquoeu proclamordquo e em 725 προσημαίνω ldquoeu proclamordquo Hipp B 1084 προεννέπω ldquoeu proclamordquo

12 O rei Euristeu que fala no final de Heraclidas eacute bem diferente da imagem passada ao longo da trageacutedia por seu arauto mas lembremos que nesse momento o exeacutercito argivo havia sido vencido e ele capturado

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REQUISITOS IMPORTAcircNCIA E VANTAGENS DA REALEZA

Creusa filha de rei naturalmente considerava importante a exis-tecircncia da realeza δῶμrsquo ἑστιοῦται γᾶ δrsquo ἔχει τυράννους ldquoa casa tem alicerces (= filhos) a terra tem reisrdquo (Ion 1464) mas era a poacutelis que sancionava a rea-leza pelo menos segundo o rei Menelau ao questionar Orestes (Or 437) Ἀγαμέμνονος δὲ σκῆπτρrsquo ἐᾶι σrsquo ἔχειν πόλις ldquoa poacutelis permite que conserves o cetro de Agamecircmnonrdquo

Uma das deferecircncias requeridas pelo rei era a preferecircncia de passa-gem Em Feniacutecias (40) Jocasta conta que o cocheiro de Laio exigiu que Eacutedipo desse passagem ao rei (tirano) embora o episoacutedio natildeo tenha acabado bem A monarquia tinha outros atrativos tanto que Eteacuteocles filho de Eacutedipo pre-feriu se manter na funccedilatildeo de rei em detrimento da seguranccedila de Tebas (Ph 560) Pouco antes (524ndash5) ele afirmara que para obter a tirania valia a pena cometer injusticcedilas (ἀδικεῖν) e que (504ndash8)

ἄστρων ἂν ἔλθοιμrsquo daggerἡλίουdagger πρὸς ἀντολὰς καὶ γῆς ἔνερθε δυνατὸς ὢν δρᾶσαι τάδε τὴν θεῶν μεγίστην ὥστrsquo ἔχειν Τυραννίδα τοῦτrsquo οὖν τὸ χρηστόν μῆτερ οὐχὶ βούλομαι ἄλλωι παρεῖναι μᾶλλον ἢ σώιζειν ἐμοί

iria aonde os astros e o sol nasceme abaixo da terra se isso estivesse em meu poderpara ter Tirania (ou Realeza) a maior das divindadesPor isso matildee natildeo desejo esse bem entregar a outro prefiro ficar com ele

Para Euriacutepides a realeza natildeo envolvia apenas poder e prestiacutegio Jocasta matildee de Eteacuteocles revela que o rei aumenta suas riquezas pessoais (552ndash3 e 566) ie jaacute era rico antes da monarquia e depois ficava ainda mais rico Em Suplicantes (417ndash22) o arauto de Creonte diz a Teseu que eacute preciso ter tempo disponiacutevel e ser rico para governar a poacutelis pois um lavrador po-bre precisa trabalhar e natildeo tem tempo para isso

Natildeo admira portanto que o rei combatesse energicamente os que se opunham a seu poder Ainda em Suplicantes (444ndash6) diz Teseu

ἀνὴρ δὲ βασιλεὺς ἐχθρὸν ἡγεῖται τόδεκαὶ τοὺς ἀρίστους οὕς ltτrsquogt ἂν ἡγῆται φρονεῖν κτείνει δεδοικὼς τῆς τυραννίδος πέρι

e um homem que eacute rei os considera um inimigoe os melhores deles acha prudente matar temendo por seu proacuteprio poder

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A realeza natildeo estava ao alcance de qualquer um somente membros da aristocracia e seus descendentes podiam almejaacute-la No Hipoacutelito B (1283) Aacutertemis qualifica Teseu rei de Atenas de εὐπατρίδην ldquode nobre famiacuteliardquo ou de ldquonobre nascimentordquo13 e na Alceste (681 e 686ndash8) o ex-rei Feres diz ao rei Admeto seu filho

ἐγὼ δέ σrsquo οἴκων δεσπότην ἐγεινάμην κἄθρεψrsquo (hellip)ἃ δrsquo ἡμῶν χρῆν σε τυγχάνειν ἔχεις πολλῶν μὲν ἄρχεις πολυπλέθρους δέ σοι γύας λείψω πατρὸς γὰρ ταὔτrsquo ἐδεξάμην πάρα

eu te gerei e criei para ser o mestre do palaacutecio (hellip)o que tinhas a receber de mim tu tensmuitos governas e terras extensas14 a tideixarei pois isso recebi de meu pai

Na Medeia (916-7) Jasatildeo diz aos filhos esperar que devido ao casa-mento com a filha do rei Creonte τῆσδε γῆς Κορινθίας τὰ πρῶτrsquo ἔσεσθαι eles ldquoseratildeo os primeiros desta terra coriacutentiardquo Ou seja a hereditariedade e a pro-priedade da terra ie a riqueza eram questotildees vinculadas diretamente ao poder real e tambeacutem agrave sua transmissatildeo

Outros tipos de viacutenculo familiar tambeacutem podiam assegurar a trans-missatildeo do poder real No Iacuteon (57ndash73 e 808ndash28) Hermes e o Velho Servidor de Creusa relatam que o aqueu Xuto pelo casamento com Creusa reinava em Atenas Em Feniacutecias (49ndash54) Eacutedipo entatildeo um desconhecido que havia derrotado a Esfinge se tornou rei de Tebas ao casar inadvertidamente com a proacutepria matildee viuacuteva do rei precedente morto em circunstacircncias mal escla-recidas O poder podia portanto passar pela linhagem feminina mas natildeo parava nela era transmitido ateacute o membro masculino mais proacuteximo

O rei podia tambeacutem entregar voluntariamente o poder Em Feniacutecias (71ndash4) Jocasta conta que seus filhos Eteacuteocles e Polinice haviam combinado inicialmente que um cederia o poder ao outro todos os anos ie cada um reinaria por um ano Na Alceste depreende-se que Feres passou o poder ao filho Admeto porque assim quis e o mesmo nos conta Euriacutepides em Bacan-tes (43ndash4) ao descrever a passagem do poder de Cadmo a seu neto Penteu

Κάδμος μὲν οὖν γέρας τε καὶ τυραννίδα Πενθεῖ δίδωσι θυγατρὸς ἐκπεφυκότι

13 Os εὐπατρίδαι lit ldquoeupaacutetridasrdquo eram os membros da velha aristocracia ateniense14 Lit ldquode muitos pletrosrdquo

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A honraria e tambeacutem o poder real Cadmoentrega a Penteu nascido de sua filha

Na mesma poacutelis posteriormente Hermes diz a Lico (Antiacuteope Fr 223108ndash9)

ὧν χρή σrsquo ἀκούειν [καὶ] χθονὸς μοναρχίαν15 ἑκόντα δοῦνα[ι τοῖσδε Κ]αδμείας ἄναξ

eacute preciso que a eles obedeccedilas e a soberania sobre a terrade Cadmo entregues voluntariamente senhor

Havia ainda outras formas de se tornar rei Euriacutepides menciona a curiosa disputa pelo trono de Micenas entre Atreu e Tieste na Ifigecircnia em Taacuteuris (813ndash7) e no Fr 397 b do Tieste

ΑΤΡΕΥΣδείξας γὰρ ἄστρων τὴν ἐναντίαν ὁδὸνδόμους τrsquo ἔσωισα καὶ τύραννος ἱζόμην

ATREUMostrando dos astros o caminho oposto16

salvei minha casa e estabeleci a tirania

E quando eventualmente ocorriam problemas de sucessatildeo que natildeo podiam ser resolvidos pelos meacutetodos tradicionais a sorte decidia em Hera-clidas (34ndash6) por exemplo fala-se em κλήρωι ldquosorteiordquo Note-se poreacutem que provavelmente se trata de mais um anacronismo jaacute que esse era procedi-mento proacuteprio agrave Atenas democraacutetica do seacuteculo v aC

OS PODERES CIVIS DO REI

O poder poliacutetico estaacute concentrado no rei que em princiacutepio o exerce sozinho Em Hipoacutelito B (1015) e em Androcircmaca (366) Hipoacutelito e Menelau respectivamente se referem ao poder real como μοναρχία ldquopoder de um soacuterdquo Segundo Eteacuteocles rei de Tebas todos satildeo escravos com exceccedilatildeo do rei ἄρχειν παρόν μοι τῶιδε δουλεύσω ποτέ ldquose posso governar porque me tornarei escravo delerdquo (Ph 520) Em Suplicantes (410ndash3) o arauto de Creonte diz a

15 Note-se nessa passagem o viacutenculo entre ἄναξ e μοναρχίαν16 A lenda da mudanccedila de curso do sol que antes dessa disputa nascia no oeste eacute descrita por

Apolodoro (Epiacutetome 210-14) e por Higino (Fab 88)

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Teseu que a poacutelis de onde ele vem (Tebas) eacute governada por um soacute homem e natildeo por uma multidatildeo e nos versos 429ndash32 o rei ateniense Teseu sintetiza

οὐδὲν τυράννου δυσμενέστερον πόλει ὅπου τὸ μὲν πρώτιστον οὐκ εἰσὶν νόμοι κοινοί κρατεῖ δrsquo εἷς τὸν νόμον κεκτημένος αὐτὸς παρrsquo αὑτῶι

nada eacute mais hostil a uma poacutelis do que um reie onde ele estaacute natildeo haacute em primeiro lugar uma leipara todos apenas um tem o poder e a lei nele e soacute nele reside

O poder eacute tatildeo vinculado ao monarca que ateacute o seu nome reflete o po-der ldquoCreonterdquo por exemplo vem de Κρέων = Κρήων = Κρείων ldquogovernanterdquo lit ldquoo mais forte o mais poderosordquo O nome encontrado em Eacutesquilo (Sete contra Tebas) e em Soacutefocles (Eacutedipo Rei Eacutedipo em Colono Antiacutegone) tambeacutem estaacute presente nas trageacutedias de Euriacutepides (Medeia Suplicantes Feniacutecias e Al-cmeon em Corinto Fr 75)

A vontade do rei eacute teoricamente absoluta real despoacutetica ldquotiracircnicardquo envolvendo ateacute vida e morte No Belerofonte (Fr 268) o heroacutei afirma que o rei mata muita gente e efetivamente em Bacantes (355ndash7) Penteu ordenou que o ldquosacerdote de Dionisordquo fosse preso e morto por apedrejamento sem ao menos vecirc-lo depois de ouvir dizer o que ele aparentemente havia feito Em Medeia (352ndash4) Creonte coloca Medeia diante dessa opccedilatildeo caso fosse deso-bedecido em Heraclidas (60) o arauto de Euristeu diz que Iolau foi incon-dicionalmente condenado agrave morte por apedrejamento17 e no v 964 coube a Demofonte decidir se o cativo rei de Argos vencido em batalha viveria ou natildeo No Hipoacutelito B (1055ndash6) Teseu condena seu filho Hipoacutelito sem julga-mento e sem nem mesmo ouvir os adivinhos uma das formas de auscultar a vontade dos deuses Na Medeia (274ndash5) Creonte diz a Medeia ἐγὼ βραβεὺς λόγου τοῦδrsquo εἰμί ldquosou eu o aacuterbitro18 dessa leirdquo embora pouco depois (348) ate-nue a afirmaccedilatildeo dizendo que sua vontade nem sempre eacute τυραννικόν ldquotiracirc-nicardquo Em Suplicantes (349ndash50) por outro lado Teseu diz que a poacutelis precisa se curvar aos seus desejos embora coloque tecircnue verniz democraacutetico nessa despoacutetica atitude

17 Em outra passagem dessa trageacutedia (142) o aspecto legal eacute marcado pela palavra νόμος que tem significado semelhante a δίκη ldquouso costume lei decretordquo

18 O vocaacutebulo βραβεὺς designava o aacuterbitro juiz de disputas atleacuteticas e mais tarde aacuterbitros e juiacutezes em geral

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

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mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

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τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

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forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

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de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

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As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 2: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

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ses com poderes absolutos e Hesiacuteodo realmente conta que desde a derrota infligida a Crono o poderoso Zeus ldquoreinardquo (ἀνάσσει) entre os imortais (Hes Th 505) e deteacutem o tiacutetulo de θεῶν βασιλῆα καὶ ἀνδρῶν ldquorei dos deuses e dos homensrdquo (Hes Th 897) Diversos reis humanos miacuteticos eram por sua vez considerados seus descendentes emprestando assim um elemento de di-vindade ou de sanccedilatildeo divina (Il 2204ndash6) ao poder real Menciono apenas para ilustraccedilatildeo Tacircntalo rei da Friacutegia (Od 11582ndash92 Nosti Fr 3 West E El 4ndash10) Lacedecircmon rei de Esparta (ΣD Il 1848665ndash7) e o heroacutei Perseu rei de Argos (Ps-Hes Fr 241 = P Cair 45624 Pherecyd 3 F 10)

Nos registros histoacutericos dispomos de poucas informaccedilotildees sobre os tempos mais recuados da cultura grega todas de natureza arqueoloacutegica ou deduzidas a partir dos registros palaciais gravados em Linear B Na Idade do Bronze havia o wanax1 o lawagetas2 e o gwasileus3 O wanax micecircnico vivia provavelmente em um palaacutecio como os de Cacircnia e Pilos e sua influecircncia eou autoridade se estendia a um grande territoacuterio o lawagetas parece ter sido um wanax de importacircncia e influecircncia menores ou pelo menos um de seus colaboradores de status mais elevado e o gwasileus era aparentemente um simples ldquocheferdquo local talvez um capitatildeo ou comandante militar com atribui-ccedilotildees civis judiciais e administrativas restritas a uma pequena comunidade4

Ateacute o momento nada leva a crer que esse gwasileus possuiacutea as ca-racteriacutesticas do βασιλεύς dos poetas arcaicos mas foi ele o uacutenico detentor de algum poder pessoal que parece ter sobrevivido ao desaparecimento do sistema palacial micecircnico no final da Idade do Bronze Os gregos do Pe-riacuteodo Claacutessico se lembravam desses βασιλεῖς notadamente como monarcas hereditaacuterios e em termos bem gerais (Th 1131 e Arist Pol 1284-6 b e Ath 31ndash2) Tuciacutedides (1131) no entanto afirmou que antes da eacutepoca das tira-nias houve uma eacutepoca de monarquias (μοναρχία ldquogoverno de um soacuterdquo)5 e parece ter sido o primeiro a estabelecer diferenccedilas entre as duas (Mitchel 2013 2) Aristoacuteteles (1286 andash8 a) que viveu uma ou duas geraccedilotildees depois distinguia vaacuterias espeacutecies de governo monaacuterquico e ateacute mesmo considerou ldquotiracircnicardquo um dos tipos de monarquia (1285 b)

1 Eg linear B 6559165577655516558765579 transcriccedilatildeo wa-na-ka-te-ro gr claacutessico ἀνάκτορον que deriva do gr arcaico ϝάναξ

2 Eg linear B 65576 65591 6555265586 transcriccedilatildeo ra-wa-ke-ta O tiacutetulo parece ser uma combinaccedilatildeo de λαός ldquopovordquo e ἄγω ldquoconduzirrdquo ndash ou de ἡγέομαι ldquoliderarrdquo como no gr doacuterico λαγέτας ldquoliacuteder do povordquo (Pi O 189 P 4107)

3 Eg linear B 65571655836557765540 transcriccedilatildeo qa-si-re-u gr arcaico e claacutessico βασιλεύς4 Isso no reino micecircnico centralizado em Pilos no seacuteculo xIII aC pelo menos5 Note-se que o vocaacutebulo portuguecircs ldquomonarquiardquo eacute praticamente a transcriccedilatildeo latina do vocaacute-

bulo grego A primeira ocorrecircncia eacute um fragmento papiraacuteceo de Alceu (Fr 627 = P Oxy 1789) nascido em 625ndash620 aC e contemporacircneo dos tiranos Melancro Piacutetaco e Mirsilo de Mitilene

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Esparta foi a uacutenica poacutelis a emergir da Idade das Trevas com a ins-tituiccedilatildeo da realeza hereditaacuteria ainda vigente Os espartanos tinham natildeo apenas um mas dois βασιλεῖς e cada um deles descendia de uma famiacutelia diferente (Agiacuteadas ou Euripocircntidas) Durante os Periacuteodos Arcaico e Claacutes-sico eles natildeo detinham o poder poliacutetico e suas atribuiccedilotildees se limitavam a declarar guerra a comandar o exeacutercito ao direito de participar do conselho ldquodos velhosrdquo (a geruacutesia) e a receber a primeira porccedilatildeo nos banquetes puacutebli-cos (Arist Pol 1285 a) Sua autoridade judicial se limitava aos casos de cida-datildeos que morriam sem descendecircncia masculina e aos relacionados com as estradas puacuteblicas e com a adoccedilatildeo de filhos

Durante o Periacuteodo Arcaico oligarcas com poderes discricionaacuterios (τύραννοι ldquotiranosrdquo legisladores e αἰσυμνῆται ldquomagistradosrdquo) dominaram o cenaacuterio poliacutetico das poacuteleis gregas (Th 1131)6 Esses homens pertenciam a famiacutelias proeminentes e detinham sozinhos o poder poliacutetico eles eram μούναρχοι (Thgn 52) ldquomonarcasrdquo ie concentravam o poder poliacutetico em sua pessoa Ao lado de benefiacutecios agrave comunidade e de iniciativas e atitudes apropriadas e meritoacuterias os tiranos arcaicos deixaram maacutes recordaccedilotildees Heroacutedoto e outros autores antigos lembravam que aleacutem de ostentar acin-tosamente sua riqueza pessoal e seu poder eles interferiram politicamente nas poacuteleis vizinhas e se envolveram em guerras de agressatildeo contra elas interferiram em cultos tradicionais confiscaram bens humilharam exi-laram escravizaram e mataram seus concidadatildeos inclusive familiares A despeito disso a conotaccedilatildeo pejorativa que a palavra ldquotiranordquo tem em nossos dias comeccedilou apenas no seacuteculo iv aC a partir de Platatildeo

Embora Tuciacutedides e Aristoacuteteles usem com frequecircncia as palavras ldquotiranordquo e ldquoreirdquo de forma mais ou menos excludente (Parker 2007 15ndash7) Heroacutedoto e historiadores tardios as utilizam de forma intercambiaacutevel O exerciacutecio do poder poliacutetico por um uacutenico homem (μοναρχία ldquomonarquiardquo) a transferecircncia do poder dentro da proacutepria famiacutelia e as atitudes beneacuteficas e maleacuteficas dos tiranos arcaicos tornaram efetivamente as duas instituiccedilotildees quase indistinguiacuteveis para os gregos do Periacuteodo Claacutessico

Haacute diversas referecircncias aos monarcas gregos do Periacuteodo Arcaico nos filoacutesofos preacute-socraacuteticos nos poetas liacutericos em Heroacutedoto em Tuciacutedides em Platatildeo em Aristoacuteteles e em historiadores tardios como Diodoro Siacuteculo e Nicolau de Damasco todos presentes nos modernos tratados sobre a histoacute-ria grega antiga Uma fonte de informaccedilotildees notaacutevel e relativamente negli-genciada eacute poreacutem a obra dos poetas traacutegicos do seacuteculo V aC raramente

6 A tirania perdurou em algumas poacuteleis ateacute o seacuteculo II aC (Dillon amp Garland 1994 29) embora os historiadores modernos denominem ldquoIdade dos tiranosrdquo apenas o periacuteodo que vai do iniacutecio da tirania de Ciacutepselo em Corinto (c 658 aC) ateacute a queda dos psistraacutetidas em Atenas (c 510 aC)

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mencionada nesses tratados talvez pelo caraacuteter eminentemente ficcional das trageacutedias Mas reis satildeo personagens ficcionais mais comuns na trageacute-dia grega do que nos poemas arcaicos e sua participaccedilatildeo na accedilatildeo dramaacutetica se baseia provavelmente na memoacuteria dos gregos sobre o poder absoluto ou quase absoluto dos monarcas ndash reis ou tiranos ndash histoacutericos

A obra de Euriacutepides se destaca entre outras coisas pela proximi-dade entre os temas traacutegicos e diversos elementos da cultura ateniense da segunda metade do seacuteculo v aC o que motivou o presente estudo sobre a caracteriacutesticas da monarquia em sua obra As referecircncias satildeo numerosas e por isso restringi a anaacutelise agraves caracteriacutesticas mais ilustrativas do poder real monaacuterquico na trageacutedia euripidiana sem me deter na caracterizaccedilatildeo de reis natildeo helecircnicos e na cronologia relativa das trageacutedias Toda escolha eacute pessoal mas confio ter selecionado as passagens mais representativas do monarca traacutegico nas trageacutedias de Euriacutepides7

DENOMINACcedilAtildeO SIacuteMBOLOS E SEDE DO PODER REAL

Βασιλεύς e seus derivados cujo radical corresponde ao gwasileus do dialeto micecircnico (eg Alc 241 Med 455 e 554 Suppl 444 El 12 HF 182 Ar-chel Fr 229 Hyps Fr 752 g Phaeumlth Fr 773 e 781) deveria designar teorica-mente apenas a figura real de origem hereditaacuteria e τύραννος8 (eg Alc 286 e 1022 Med 700 Ion 626 Hel 4 e 35 Ph 51 Alcmeon em Corinto Fr 76 Antiacutegone Fr 171ndash2 Auge Fr 275 Tieste Fr 397 b Dacircnae Fr 11324) figuras reais de ori-gem natildeo hereditaacuteria Euriacutepides no entanto usava βασιλεύς e τύραννος indi-ferentemente para designar o monarca aquele que detinha o poder real Na Alceste para se referir a Admeto ele usa o primeiro termo (241) e logo depois (286) o segundo

Ἄναξ palavra que corresponde ao wanax do dialeto micecircnico era usada por Euriacutepides como denominativo ou vocativo geneacuterico para indicar a alta posiccedilatildeo do monarca eg γῆς ἄνακτα τῆσδε Θησέα ldquoTeseu senhor desta terrardquo (Hipp B 1153) τῆσδrsquo ἄνακτrsquo εἶναι χθονός ldquosou o senhor desta terrardquo (Ph 591) Ἀγαμέμνων ἄναξ e Μενέλεως ἄναξ (IA 431 436 etc) e em expressotildees se-

7 As trageacutedias fragmentaacuterias sem abreviatura padronizada satildeo mencionadas a seguir pelo tiacutetulo traduzido

8 A palavra natildeo eacute indo-europeia e sua origem eacute provavelmente natildeo grega talvez liacutedia ou etrusca Sua primeira ocorrecircncia nos textos gregos eacute o terceiro verso do Fr 19 West de Arquiacuteloco μεγάλης δrsquo οὐκ ἐρlangέωrang τυραννίδος ldquoe natildeo anseio uma grande tiraniardquo (Dillon amp Garland 1994 29)

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melhantes no Hipoacutelito B (901 e 1249)9 em Heraclidas (825) e no Alexandre Fr 561 Na Antiacuteope Hermes recorre a ἄναξ para se dirigir a Anfiacuteon futuro rei de Tebas (Fr 26368) e a Lico o rei que ainda estava no poder (Fr 223109)

Essas denominaccedilotildees do rei se estendem agrave sua consorte e a outros familiares Alceste esposa do rei Admeto eacute chamada de βασίλεια em Alceste (81) em Heacutecuba (809) a ex-rainha diz τύραννος ἦ ποτrsquo ἀλλὰ νῦν δούλη σέθεν ldquoeu antes era tirana (=rainha) e agora tua escravardquo em Androcircmaca (1055) Hermiacuteone eacute chamada de ldquorainhardquo (βασίλεια) e no verso 65 Androcircmaca diz que antes de ser escrava era ldquosenhora rainhardquo (ἄνασσα) e o mesmo ocorre com Clitemnestra na Electra (988) no Fr 82215 do Frixo A ou do Frixo B a palavra βασίλεια eacute mencionada possivelmente em relaccedilatildeo a Ino Na Medeia (42) a Ama se refere a Jasatildeo novo genro do rei como τύραννον τόν τε γήμαντα ldquoo tirano que se casourdquo e na mesma trageacutedia (877 967 e 1356ndash7) Medeia se refere agrave filha do rei Creonte como ἢ τύραννον ldquoa tiranardquo

Palavras correspondentes a lawagetas natildeo satildeo encontradas em Euriacute-pides e o nome Ἀρχέλαος na trageacutedia Arquelau (Fr 228ndash64) eacute a uacutenica ocor-recircncia do radical λαο- em contexto que sugere realeza Haacute poreacutem algumas ocorrecircncias da palavra λοχαγός ldquoliacuteder militar de um grupo de homens ca-pitatildeordquo (eg Suppl 598 Tr 1260 Ph 123) mas essa funccedilatildeo ou posto militar natildeo parece ter tido o alcance que o tiacutetulo micecircnico lawagetas parece ter nas tabuinhas micecircnicas

A sede do poder real eacute o proacuteprio palaacutecio residecircncia do monarca (τυραννικῶν δόμων Hec 55) como se vecirc em praticamente todas as trageacutedias que tecircm o rei como personagem eg Peliacuteades (Fr 601) Feniacutecias (197) Orestes (1356) Helena (1170) Cresfontes (Fr 448 a 2) Note-se que o ldquopalaacuteciordquo eacute sede e siacutembolo do poder poliacutetico ateacute hoje haja vista as expressotildees modernas Paccedilo Municipal Palaacutecio do Governo Palaacutecio do Alvorada etc Em termos de abrangecircncia geograacutefica os domiacutenios do monarca compreendiam a terra dentro dos limites da poacutelis que ele governava e satildeo quase sempre referidos como ldquoesta terrardquo eg τῆσδrsquo ἄνακτα γῆς ldquorei desta terrardquo (Med 934) e agraves vezes um pouco aleacutem (Hipp B 1084) Haacute ocorrecircncias semelhantes para τύραννος em Heraclidas (111) Suplicantes (399) e Dacircnae (Fr 11324) Na Helena (4 e 1058) a expressatildeo eacute utilizada em relaccedilatildeo ao rei do Egito cujo comportamento eacute comparaacutevel ao dos monarcas gregos retratados em outras trageacutedias

O cetro (σκήπτρος) eacute o siacutembolo do poder real por excelecircncia assim como uma de suas mais frequentes metaacuteforas eg El 11 HF 213 Tr 150 Ph 52 73 e 80 Or 437 IA 311 e 412 Passagens corais da Antiacuteope (Fr 22317ndash8)

9 Euriacutepides escreveu duas trageacutedias intituladas ldquoHipoacutelitordquo Da primeira abreviatura Hipp A temos apenas fragmentos a segunda (abreviatura Hipp B) chegou ateacute noacutes na iacutentegra

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e da Ifigecircnia em Taacuteuris (186ndash7) respectivamente ilustram com precisatildeo a metaacutefora

ὅδrsquo] αὐ[τό]ς εἰ χρὴ δοξάσαι τυραννικῶι σ]κ[ή]πτρωι Λύκος πάρεστι σιγῶμεν φίλοι

Eacute ele se devemos conjeturar pelo realcetro Lico em pessoa calemo-nos amigos

οἴμοι τῶν Ἀτρειδᾶν οἴκων ἔρρει φῶς σκῆπτρόν langτrsquorang οἴμοι

a casa dos Atridas ai de mim a luz de seu cetro estaacute arruinada ai de mim

Note-se que na Androcircmaca (23 588 e 1223) o idoso Peleu ainda deti-nha a dignidade real e usava o cetro embora Euriacutepides decirc a entender ao longo da trageacutedia que ele era uma espeacutecie de rei honoraacuterio e que seu neto Neoptoacutelemo cuidava de tudo

Na maioria das vezes Euriacutepides usou a palavra θρόνος ldquotronordquo para designar simples assentos mas em alguns lugares a metaacutefora para a realeza eacute bem clara eg καὶ παρὰ θρόνον ἀρχέταν10 ldquoe junto ao trono realrdquo (Heraclid 753) κοὐ δεῖ τύρανν[α σκῆπτρα καὶ θρόνους λαβεῖν ldquoe natildeo devem ter parte nem no cetro e nem no trono realrdquo (Melanipp Capt Fr 49520) θρόνους ἔχων ldquopossuo o tronordquo (HF 167) As rainhas tambeacutem tinham direito literal de usaacute-lo jaacute que Helena esposa do rei Menelau sentava-se em um trono dentro do palaacutecio real (Or 1408ndash10)

O rei agraves vezes proclamava pessoalmente suas decisotildees (Med 272 351 e 725 Hipp B 973ndash5 e 1084)11 mas dispunha de representante pessoal que atuava agrave distacircncia o arauto para transmitir desejos decisotildees (eg Heraclid Suppl e Hec passim Phaeumlth Fr 771ndash86) e agraves vezes ateacute sua disposiccedilatildeo na-tural Em Heraclidas por exemplo Euristeu eacute representado por um arauto antipaacutetico e agressivo verdadeiro alter ego do soberano argivo12 mas em Troianas temos o oposto Agamecircmnon eacute representado por Taltiacutebio simpaacute-tico e compassivo embora o atrida natildeo fosse sempre assim

10 Nessa passagem em particular Zuntz (1955 118) acredita que se trate de referecircncia ao trono de Zeus

11 Med 272 ἀνεῖπον ldquoeu proclameirdquo em 351 προυννέπω ldquoeu proclamordquo e em 725 προσημαίνω ldquoeu proclamordquo Hipp B 1084 προεννέπω ldquoeu proclamordquo

12 O rei Euristeu que fala no final de Heraclidas eacute bem diferente da imagem passada ao longo da trageacutedia por seu arauto mas lembremos que nesse momento o exeacutercito argivo havia sido vencido e ele capturado

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REQUISITOS IMPORTAcircNCIA E VANTAGENS DA REALEZA

Creusa filha de rei naturalmente considerava importante a exis-tecircncia da realeza δῶμrsquo ἑστιοῦται γᾶ δrsquo ἔχει τυράννους ldquoa casa tem alicerces (= filhos) a terra tem reisrdquo (Ion 1464) mas era a poacutelis que sancionava a rea-leza pelo menos segundo o rei Menelau ao questionar Orestes (Or 437) Ἀγαμέμνονος δὲ σκῆπτρrsquo ἐᾶι σrsquo ἔχειν πόλις ldquoa poacutelis permite que conserves o cetro de Agamecircmnonrdquo

Uma das deferecircncias requeridas pelo rei era a preferecircncia de passa-gem Em Feniacutecias (40) Jocasta conta que o cocheiro de Laio exigiu que Eacutedipo desse passagem ao rei (tirano) embora o episoacutedio natildeo tenha acabado bem A monarquia tinha outros atrativos tanto que Eteacuteocles filho de Eacutedipo pre-feriu se manter na funccedilatildeo de rei em detrimento da seguranccedila de Tebas (Ph 560) Pouco antes (524ndash5) ele afirmara que para obter a tirania valia a pena cometer injusticcedilas (ἀδικεῖν) e que (504ndash8)

ἄστρων ἂν ἔλθοιμrsquo daggerἡλίουdagger πρὸς ἀντολὰς καὶ γῆς ἔνερθε δυνατὸς ὢν δρᾶσαι τάδε τὴν θεῶν μεγίστην ὥστrsquo ἔχειν Τυραννίδα τοῦτrsquo οὖν τὸ χρηστόν μῆτερ οὐχὶ βούλομαι ἄλλωι παρεῖναι μᾶλλον ἢ σώιζειν ἐμοί

iria aonde os astros e o sol nasceme abaixo da terra se isso estivesse em meu poderpara ter Tirania (ou Realeza) a maior das divindadesPor isso matildee natildeo desejo esse bem entregar a outro prefiro ficar com ele

Para Euriacutepides a realeza natildeo envolvia apenas poder e prestiacutegio Jocasta matildee de Eteacuteocles revela que o rei aumenta suas riquezas pessoais (552ndash3 e 566) ie jaacute era rico antes da monarquia e depois ficava ainda mais rico Em Suplicantes (417ndash22) o arauto de Creonte diz a Teseu que eacute preciso ter tempo disponiacutevel e ser rico para governar a poacutelis pois um lavrador po-bre precisa trabalhar e natildeo tem tempo para isso

Natildeo admira portanto que o rei combatesse energicamente os que se opunham a seu poder Ainda em Suplicantes (444ndash6) diz Teseu

ἀνὴρ δὲ βασιλεὺς ἐχθρὸν ἡγεῖται τόδεκαὶ τοὺς ἀρίστους οὕς ltτrsquogt ἂν ἡγῆται φρονεῖν κτείνει δεδοικὼς τῆς τυραννίδος πέρι

e um homem que eacute rei os considera um inimigoe os melhores deles acha prudente matar temendo por seu proacuteprio poder

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A realeza natildeo estava ao alcance de qualquer um somente membros da aristocracia e seus descendentes podiam almejaacute-la No Hipoacutelito B (1283) Aacutertemis qualifica Teseu rei de Atenas de εὐπατρίδην ldquode nobre famiacuteliardquo ou de ldquonobre nascimentordquo13 e na Alceste (681 e 686ndash8) o ex-rei Feres diz ao rei Admeto seu filho

ἐγὼ δέ σrsquo οἴκων δεσπότην ἐγεινάμην κἄθρεψrsquo (hellip)ἃ δrsquo ἡμῶν χρῆν σε τυγχάνειν ἔχεις πολλῶν μὲν ἄρχεις πολυπλέθρους δέ σοι γύας λείψω πατρὸς γὰρ ταὔτrsquo ἐδεξάμην πάρα

eu te gerei e criei para ser o mestre do palaacutecio (hellip)o que tinhas a receber de mim tu tensmuitos governas e terras extensas14 a tideixarei pois isso recebi de meu pai

Na Medeia (916-7) Jasatildeo diz aos filhos esperar que devido ao casa-mento com a filha do rei Creonte τῆσδε γῆς Κορινθίας τὰ πρῶτrsquo ἔσεσθαι eles ldquoseratildeo os primeiros desta terra coriacutentiardquo Ou seja a hereditariedade e a pro-priedade da terra ie a riqueza eram questotildees vinculadas diretamente ao poder real e tambeacutem agrave sua transmissatildeo

Outros tipos de viacutenculo familiar tambeacutem podiam assegurar a trans-missatildeo do poder real No Iacuteon (57ndash73 e 808ndash28) Hermes e o Velho Servidor de Creusa relatam que o aqueu Xuto pelo casamento com Creusa reinava em Atenas Em Feniacutecias (49ndash54) Eacutedipo entatildeo um desconhecido que havia derrotado a Esfinge se tornou rei de Tebas ao casar inadvertidamente com a proacutepria matildee viuacuteva do rei precedente morto em circunstacircncias mal escla-recidas O poder podia portanto passar pela linhagem feminina mas natildeo parava nela era transmitido ateacute o membro masculino mais proacuteximo

O rei podia tambeacutem entregar voluntariamente o poder Em Feniacutecias (71ndash4) Jocasta conta que seus filhos Eteacuteocles e Polinice haviam combinado inicialmente que um cederia o poder ao outro todos os anos ie cada um reinaria por um ano Na Alceste depreende-se que Feres passou o poder ao filho Admeto porque assim quis e o mesmo nos conta Euriacutepides em Bacan-tes (43ndash4) ao descrever a passagem do poder de Cadmo a seu neto Penteu

Κάδμος μὲν οὖν γέρας τε καὶ τυραννίδα Πενθεῖ δίδωσι θυγατρὸς ἐκπεφυκότι

13 Os εὐπατρίδαι lit ldquoeupaacutetridasrdquo eram os membros da velha aristocracia ateniense14 Lit ldquode muitos pletrosrdquo

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A honraria e tambeacutem o poder real Cadmoentrega a Penteu nascido de sua filha

Na mesma poacutelis posteriormente Hermes diz a Lico (Antiacuteope Fr 223108ndash9)

ὧν χρή σrsquo ἀκούειν [καὶ] χθονὸς μοναρχίαν15 ἑκόντα δοῦνα[ι τοῖσδε Κ]αδμείας ἄναξ

eacute preciso que a eles obedeccedilas e a soberania sobre a terrade Cadmo entregues voluntariamente senhor

Havia ainda outras formas de se tornar rei Euriacutepides menciona a curiosa disputa pelo trono de Micenas entre Atreu e Tieste na Ifigecircnia em Taacuteuris (813ndash7) e no Fr 397 b do Tieste

ΑΤΡΕΥΣδείξας γὰρ ἄστρων τὴν ἐναντίαν ὁδὸνδόμους τrsquo ἔσωισα καὶ τύραννος ἱζόμην

ATREUMostrando dos astros o caminho oposto16

salvei minha casa e estabeleci a tirania

E quando eventualmente ocorriam problemas de sucessatildeo que natildeo podiam ser resolvidos pelos meacutetodos tradicionais a sorte decidia em Hera-clidas (34ndash6) por exemplo fala-se em κλήρωι ldquosorteiordquo Note-se poreacutem que provavelmente se trata de mais um anacronismo jaacute que esse era procedi-mento proacuteprio agrave Atenas democraacutetica do seacuteculo v aC

OS PODERES CIVIS DO REI

O poder poliacutetico estaacute concentrado no rei que em princiacutepio o exerce sozinho Em Hipoacutelito B (1015) e em Androcircmaca (366) Hipoacutelito e Menelau respectivamente se referem ao poder real como μοναρχία ldquopoder de um soacuterdquo Segundo Eteacuteocles rei de Tebas todos satildeo escravos com exceccedilatildeo do rei ἄρχειν παρόν μοι τῶιδε δουλεύσω ποτέ ldquose posso governar porque me tornarei escravo delerdquo (Ph 520) Em Suplicantes (410ndash3) o arauto de Creonte diz a

15 Note-se nessa passagem o viacutenculo entre ἄναξ e μοναρχίαν16 A lenda da mudanccedila de curso do sol que antes dessa disputa nascia no oeste eacute descrita por

Apolodoro (Epiacutetome 210-14) e por Higino (Fab 88)

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Teseu que a poacutelis de onde ele vem (Tebas) eacute governada por um soacute homem e natildeo por uma multidatildeo e nos versos 429ndash32 o rei ateniense Teseu sintetiza

οὐδὲν τυράννου δυσμενέστερον πόλει ὅπου τὸ μὲν πρώτιστον οὐκ εἰσὶν νόμοι κοινοί κρατεῖ δrsquo εἷς τὸν νόμον κεκτημένος αὐτὸς παρrsquo αὑτῶι

nada eacute mais hostil a uma poacutelis do que um reie onde ele estaacute natildeo haacute em primeiro lugar uma leipara todos apenas um tem o poder e a lei nele e soacute nele reside

O poder eacute tatildeo vinculado ao monarca que ateacute o seu nome reflete o po-der ldquoCreonterdquo por exemplo vem de Κρέων = Κρήων = Κρείων ldquogovernanterdquo lit ldquoo mais forte o mais poderosordquo O nome encontrado em Eacutesquilo (Sete contra Tebas) e em Soacutefocles (Eacutedipo Rei Eacutedipo em Colono Antiacutegone) tambeacutem estaacute presente nas trageacutedias de Euriacutepides (Medeia Suplicantes Feniacutecias e Al-cmeon em Corinto Fr 75)

A vontade do rei eacute teoricamente absoluta real despoacutetica ldquotiracircnicardquo envolvendo ateacute vida e morte No Belerofonte (Fr 268) o heroacutei afirma que o rei mata muita gente e efetivamente em Bacantes (355ndash7) Penteu ordenou que o ldquosacerdote de Dionisordquo fosse preso e morto por apedrejamento sem ao menos vecirc-lo depois de ouvir dizer o que ele aparentemente havia feito Em Medeia (352ndash4) Creonte coloca Medeia diante dessa opccedilatildeo caso fosse deso-bedecido em Heraclidas (60) o arauto de Euristeu diz que Iolau foi incon-dicionalmente condenado agrave morte por apedrejamento17 e no v 964 coube a Demofonte decidir se o cativo rei de Argos vencido em batalha viveria ou natildeo No Hipoacutelito B (1055ndash6) Teseu condena seu filho Hipoacutelito sem julga-mento e sem nem mesmo ouvir os adivinhos uma das formas de auscultar a vontade dos deuses Na Medeia (274ndash5) Creonte diz a Medeia ἐγὼ βραβεὺς λόγου τοῦδrsquo εἰμί ldquosou eu o aacuterbitro18 dessa leirdquo embora pouco depois (348) ate-nue a afirmaccedilatildeo dizendo que sua vontade nem sempre eacute τυραννικόν ldquotiracirc-nicardquo Em Suplicantes (349ndash50) por outro lado Teseu diz que a poacutelis precisa se curvar aos seus desejos embora coloque tecircnue verniz democraacutetico nessa despoacutetica atitude

17 Em outra passagem dessa trageacutedia (142) o aspecto legal eacute marcado pela palavra νόμος que tem significado semelhante a δίκη ldquouso costume lei decretordquo

18 O vocaacutebulo βραβεὺς designava o aacuterbitro juiz de disputas atleacuteticas e mais tarde aacuterbitros e juiacutezes em geral

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

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mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

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τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

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forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

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de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

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As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 3: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

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Esparta foi a uacutenica poacutelis a emergir da Idade das Trevas com a ins-tituiccedilatildeo da realeza hereditaacuteria ainda vigente Os espartanos tinham natildeo apenas um mas dois βασιλεῖς e cada um deles descendia de uma famiacutelia diferente (Agiacuteadas ou Euripocircntidas) Durante os Periacuteodos Arcaico e Claacutes-sico eles natildeo detinham o poder poliacutetico e suas atribuiccedilotildees se limitavam a declarar guerra a comandar o exeacutercito ao direito de participar do conselho ldquodos velhosrdquo (a geruacutesia) e a receber a primeira porccedilatildeo nos banquetes puacutebli-cos (Arist Pol 1285 a) Sua autoridade judicial se limitava aos casos de cida-datildeos que morriam sem descendecircncia masculina e aos relacionados com as estradas puacuteblicas e com a adoccedilatildeo de filhos

Durante o Periacuteodo Arcaico oligarcas com poderes discricionaacuterios (τύραννοι ldquotiranosrdquo legisladores e αἰσυμνῆται ldquomagistradosrdquo) dominaram o cenaacuterio poliacutetico das poacuteleis gregas (Th 1131)6 Esses homens pertenciam a famiacutelias proeminentes e detinham sozinhos o poder poliacutetico eles eram μούναρχοι (Thgn 52) ldquomonarcasrdquo ie concentravam o poder poliacutetico em sua pessoa Ao lado de benefiacutecios agrave comunidade e de iniciativas e atitudes apropriadas e meritoacuterias os tiranos arcaicos deixaram maacutes recordaccedilotildees Heroacutedoto e outros autores antigos lembravam que aleacutem de ostentar acin-tosamente sua riqueza pessoal e seu poder eles interferiram politicamente nas poacuteleis vizinhas e se envolveram em guerras de agressatildeo contra elas interferiram em cultos tradicionais confiscaram bens humilharam exi-laram escravizaram e mataram seus concidadatildeos inclusive familiares A despeito disso a conotaccedilatildeo pejorativa que a palavra ldquotiranordquo tem em nossos dias comeccedilou apenas no seacuteculo iv aC a partir de Platatildeo

Embora Tuciacutedides e Aristoacuteteles usem com frequecircncia as palavras ldquotiranordquo e ldquoreirdquo de forma mais ou menos excludente (Parker 2007 15ndash7) Heroacutedoto e historiadores tardios as utilizam de forma intercambiaacutevel O exerciacutecio do poder poliacutetico por um uacutenico homem (μοναρχία ldquomonarquiardquo) a transferecircncia do poder dentro da proacutepria famiacutelia e as atitudes beneacuteficas e maleacuteficas dos tiranos arcaicos tornaram efetivamente as duas instituiccedilotildees quase indistinguiacuteveis para os gregos do Periacuteodo Claacutessico

Haacute diversas referecircncias aos monarcas gregos do Periacuteodo Arcaico nos filoacutesofos preacute-socraacuteticos nos poetas liacutericos em Heroacutedoto em Tuciacutedides em Platatildeo em Aristoacuteteles e em historiadores tardios como Diodoro Siacuteculo e Nicolau de Damasco todos presentes nos modernos tratados sobre a histoacute-ria grega antiga Uma fonte de informaccedilotildees notaacutevel e relativamente negli-genciada eacute poreacutem a obra dos poetas traacutegicos do seacuteculo V aC raramente

6 A tirania perdurou em algumas poacuteleis ateacute o seacuteculo II aC (Dillon amp Garland 1994 29) embora os historiadores modernos denominem ldquoIdade dos tiranosrdquo apenas o periacuteodo que vai do iniacutecio da tirania de Ciacutepselo em Corinto (c 658 aC) ateacute a queda dos psistraacutetidas em Atenas (c 510 aC)

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mencionada nesses tratados talvez pelo caraacuteter eminentemente ficcional das trageacutedias Mas reis satildeo personagens ficcionais mais comuns na trageacute-dia grega do que nos poemas arcaicos e sua participaccedilatildeo na accedilatildeo dramaacutetica se baseia provavelmente na memoacuteria dos gregos sobre o poder absoluto ou quase absoluto dos monarcas ndash reis ou tiranos ndash histoacutericos

A obra de Euriacutepides se destaca entre outras coisas pela proximi-dade entre os temas traacutegicos e diversos elementos da cultura ateniense da segunda metade do seacuteculo v aC o que motivou o presente estudo sobre a caracteriacutesticas da monarquia em sua obra As referecircncias satildeo numerosas e por isso restringi a anaacutelise agraves caracteriacutesticas mais ilustrativas do poder real monaacuterquico na trageacutedia euripidiana sem me deter na caracterizaccedilatildeo de reis natildeo helecircnicos e na cronologia relativa das trageacutedias Toda escolha eacute pessoal mas confio ter selecionado as passagens mais representativas do monarca traacutegico nas trageacutedias de Euriacutepides7

DENOMINACcedilAtildeO SIacuteMBOLOS E SEDE DO PODER REAL

Βασιλεύς e seus derivados cujo radical corresponde ao gwasileus do dialeto micecircnico (eg Alc 241 Med 455 e 554 Suppl 444 El 12 HF 182 Ar-chel Fr 229 Hyps Fr 752 g Phaeumlth Fr 773 e 781) deveria designar teorica-mente apenas a figura real de origem hereditaacuteria e τύραννος8 (eg Alc 286 e 1022 Med 700 Ion 626 Hel 4 e 35 Ph 51 Alcmeon em Corinto Fr 76 Antiacutegone Fr 171ndash2 Auge Fr 275 Tieste Fr 397 b Dacircnae Fr 11324) figuras reais de ori-gem natildeo hereditaacuteria Euriacutepides no entanto usava βασιλεύς e τύραννος indi-ferentemente para designar o monarca aquele que detinha o poder real Na Alceste para se referir a Admeto ele usa o primeiro termo (241) e logo depois (286) o segundo

Ἄναξ palavra que corresponde ao wanax do dialeto micecircnico era usada por Euriacutepides como denominativo ou vocativo geneacuterico para indicar a alta posiccedilatildeo do monarca eg γῆς ἄνακτα τῆσδε Θησέα ldquoTeseu senhor desta terrardquo (Hipp B 1153) τῆσδrsquo ἄνακτrsquo εἶναι χθονός ldquosou o senhor desta terrardquo (Ph 591) Ἀγαμέμνων ἄναξ e Μενέλεως ἄναξ (IA 431 436 etc) e em expressotildees se-

7 As trageacutedias fragmentaacuterias sem abreviatura padronizada satildeo mencionadas a seguir pelo tiacutetulo traduzido

8 A palavra natildeo eacute indo-europeia e sua origem eacute provavelmente natildeo grega talvez liacutedia ou etrusca Sua primeira ocorrecircncia nos textos gregos eacute o terceiro verso do Fr 19 West de Arquiacuteloco μεγάλης δrsquo οὐκ ἐρlangέωrang τυραννίδος ldquoe natildeo anseio uma grande tiraniardquo (Dillon amp Garland 1994 29)

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melhantes no Hipoacutelito B (901 e 1249)9 em Heraclidas (825) e no Alexandre Fr 561 Na Antiacuteope Hermes recorre a ἄναξ para se dirigir a Anfiacuteon futuro rei de Tebas (Fr 26368) e a Lico o rei que ainda estava no poder (Fr 223109)

Essas denominaccedilotildees do rei se estendem agrave sua consorte e a outros familiares Alceste esposa do rei Admeto eacute chamada de βασίλεια em Alceste (81) em Heacutecuba (809) a ex-rainha diz τύραννος ἦ ποτrsquo ἀλλὰ νῦν δούλη σέθεν ldquoeu antes era tirana (=rainha) e agora tua escravardquo em Androcircmaca (1055) Hermiacuteone eacute chamada de ldquorainhardquo (βασίλεια) e no verso 65 Androcircmaca diz que antes de ser escrava era ldquosenhora rainhardquo (ἄνασσα) e o mesmo ocorre com Clitemnestra na Electra (988) no Fr 82215 do Frixo A ou do Frixo B a palavra βασίλεια eacute mencionada possivelmente em relaccedilatildeo a Ino Na Medeia (42) a Ama se refere a Jasatildeo novo genro do rei como τύραννον τόν τε γήμαντα ldquoo tirano que se casourdquo e na mesma trageacutedia (877 967 e 1356ndash7) Medeia se refere agrave filha do rei Creonte como ἢ τύραννον ldquoa tiranardquo

Palavras correspondentes a lawagetas natildeo satildeo encontradas em Euriacute-pides e o nome Ἀρχέλαος na trageacutedia Arquelau (Fr 228ndash64) eacute a uacutenica ocor-recircncia do radical λαο- em contexto que sugere realeza Haacute poreacutem algumas ocorrecircncias da palavra λοχαγός ldquoliacuteder militar de um grupo de homens ca-pitatildeordquo (eg Suppl 598 Tr 1260 Ph 123) mas essa funccedilatildeo ou posto militar natildeo parece ter tido o alcance que o tiacutetulo micecircnico lawagetas parece ter nas tabuinhas micecircnicas

A sede do poder real eacute o proacuteprio palaacutecio residecircncia do monarca (τυραννικῶν δόμων Hec 55) como se vecirc em praticamente todas as trageacutedias que tecircm o rei como personagem eg Peliacuteades (Fr 601) Feniacutecias (197) Orestes (1356) Helena (1170) Cresfontes (Fr 448 a 2) Note-se que o ldquopalaacuteciordquo eacute sede e siacutembolo do poder poliacutetico ateacute hoje haja vista as expressotildees modernas Paccedilo Municipal Palaacutecio do Governo Palaacutecio do Alvorada etc Em termos de abrangecircncia geograacutefica os domiacutenios do monarca compreendiam a terra dentro dos limites da poacutelis que ele governava e satildeo quase sempre referidos como ldquoesta terrardquo eg τῆσδrsquo ἄνακτα γῆς ldquorei desta terrardquo (Med 934) e agraves vezes um pouco aleacutem (Hipp B 1084) Haacute ocorrecircncias semelhantes para τύραννος em Heraclidas (111) Suplicantes (399) e Dacircnae (Fr 11324) Na Helena (4 e 1058) a expressatildeo eacute utilizada em relaccedilatildeo ao rei do Egito cujo comportamento eacute comparaacutevel ao dos monarcas gregos retratados em outras trageacutedias

O cetro (σκήπτρος) eacute o siacutembolo do poder real por excelecircncia assim como uma de suas mais frequentes metaacuteforas eg El 11 HF 213 Tr 150 Ph 52 73 e 80 Or 437 IA 311 e 412 Passagens corais da Antiacuteope (Fr 22317ndash8)

9 Euriacutepides escreveu duas trageacutedias intituladas ldquoHipoacutelitordquo Da primeira abreviatura Hipp A temos apenas fragmentos a segunda (abreviatura Hipp B) chegou ateacute noacutes na iacutentegra

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e da Ifigecircnia em Taacuteuris (186ndash7) respectivamente ilustram com precisatildeo a metaacutefora

ὅδrsquo] αὐ[τό]ς εἰ χρὴ δοξάσαι τυραννικῶι σ]κ[ή]πτρωι Λύκος πάρεστι σιγῶμεν φίλοι

Eacute ele se devemos conjeturar pelo realcetro Lico em pessoa calemo-nos amigos

οἴμοι τῶν Ἀτρειδᾶν οἴκων ἔρρει φῶς σκῆπτρόν langτrsquorang οἴμοι

a casa dos Atridas ai de mim a luz de seu cetro estaacute arruinada ai de mim

Note-se que na Androcircmaca (23 588 e 1223) o idoso Peleu ainda deti-nha a dignidade real e usava o cetro embora Euriacutepides decirc a entender ao longo da trageacutedia que ele era uma espeacutecie de rei honoraacuterio e que seu neto Neoptoacutelemo cuidava de tudo

Na maioria das vezes Euriacutepides usou a palavra θρόνος ldquotronordquo para designar simples assentos mas em alguns lugares a metaacutefora para a realeza eacute bem clara eg καὶ παρὰ θρόνον ἀρχέταν10 ldquoe junto ao trono realrdquo (Heraclid 753) κοὐ δεῖ τύρανν[α σκῆπτρα καὶ θρόνους λαβεῖν ldquoe natildeo devem ter parte nem no cetro e nem no trono realrdquo (Melanipp Capt Fr 49520) θρόνους ἔχων ldquopossuo o tronordquo (HF 167) As rainhas tambeacutem tinham direito literal de usaacute-lo jaacute que Helena esposa do rei Menelau sentava-se em um trono dentro do palaacutecio real (Or 1408ndash10)

O rei agraves vezes proclamava pessoalmente suas decisotildees (Med 272 351 e 725 Hipp B 973ndash5 e 1084)11 mas dispunha de representante pessoal que atuava agrave distacircncia o arauto para transmitir desejos decisotildees (eg Heraclid Suppl e Hec passim Phaeumlth Fr 771ndash86) e agraves vezes ateacute sua disposiccedilatildeo na-tural Em Heraclidas por exemplo Euristeu eacute representado por um arauto antipaacutetico e agressivo verdadeiro alter ego do soberano argivo12 mas em Troianas temos o oposto Agamecircmnon eacute representado por Taltiacutebio simpaacute-tico e compassivo embora o atrida natildeo fosse sempre assim

10 Nessa passagem em particular Zuntz (1955 118) acredita que se trate de referecircncia ao trono de Zeus

11 Med 272 ἀνεῖπον ldquoeu proclameirdquo em 351 προυννέπω ldquoeu proclamordquo e em 725 προσημαίνω ldquoeu proclamordquo Hipp B 1084 προεννέπω ldquoeu proclamordquo

12 O rei Euristeu que fala no final de Heraclidas eacute bem diferente da imagem passada ao longo da trageacutedia por seu arauto mas lembremos que nesse momento o exeacutercito argivo havia sido vencido e ele capturado

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REQUISITOS IMPORTAcircNCIA E VANTAGENS DA REALEZA

Creusa filha de rei naturalmente considerava importante a exis-tecircncia da realeza δῶμrsquo ἑστιοῦται γᾶ δrsquo ἔχει τυράννους ldquoa casa tem alicerces (= filhos) a terra tem reisrdquo (Ion 1464) mas era a poacutelis que sancionava a rea-leza pelo menos segundo o rei Menelau ao questionar Orestes (Or 437) Ἀγαμέμνονος δὲ σκῆπτρrsquo ἐᾶι σrsquo ἔχειν πόλις ldquoa poacutelis permite que conserves o cetro de Agamecircmnonrdquo

Uma das deferecircncias requeridas pelo rei era a preferecircncia de passa-gem Em Feniacutecias (40) Jocasta conta que o cocheiro de Laio exigiu que Eacutedipo desse passagem ao rei (tirano) embora o episoacutedio natildeo tenha acabado bem A monarquia tinha outros atrativos tanto que Eteacuteocles filho de Eacutedipo pre-feriu se manter na funccedilatildeo de rei em detrimento da seguranccedila de Tebas (Ph 560) Pouco antes (524ndash5) ele afirmara que para obter a tirania valia a pena cometer injusticcedilas (ἀδικεῖν) e que (504ndash8)

ἄστρων ἂν ἔλθοιμrsquo daggerἡλίουdagger πρὸς ἀντολὰς καὶ γῆς ἔνερθε δυνατὸς ὢν δρᾶσαι τάδε τὴν θεῶν μεγίστην ὥστrsquo ἔχειν Τυραννίδα τοῦτrsquo οὖν τὸ χρηστόν μῆτερ οὐχὶ βούλομαι ἄλλωι παρεῖναι μᾶλλον ἢ σώιζειν ἐμοί

iria aonde os astros e o sol nasceme abaixo da terra se isso estivesse em meu poderpara ter Tirania (ou Realeza) a maior das divindadesPor isso matildee natildeo desejo esse bem entregar a outro prefiro ficar com ele

Para Euriacutepides a realeza natildeo envolvia apenas poder e prestiacutegio Jocasta matildee de Eteacuteocles revela que o rei aumenta suas riquezas pessoais (552ndash3 e 566) ie jaacute era rico antes da monarquia e depois ficava ainda mais rico Em Suplicantes (417ndash22) o arauto de Creonte diz a Teseu que eacute preciso ter tempo disponiacutevel e ser rico para governar a poacutelis pois um lavrador po-bre precisa trabalhar e natildeo tem tempo para isso

Natildeo admira portanto que o rei combatesse energicamente os que se opunham a seu poder Ainda em Suplicantes (444ndash6) diz Teseu

ἀνὴρ δὲ βασιλεὺς ἐχθρὸν ἡγεῖται τόδεκαὶ τοὺς ἀρίστους οὕς ltτrsquogt ἂν ἡγῆται φρονεῖν κτείνει δεδοικὼς τῆς τυραννίδος πέρι

e um homem que eacute rei os considera um inimigoe os melhores deles acha prudente matar temendo por seu proacuteprio poder

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A realeza natildeo estava ao alcance de qualquer um somente membros da aristocracia e seus descendentes podiam almejaacute-la No Hipoacutelito B (1283) Aacutertemis qualifica Teseu rei de Atenas de εὐπατρίδην ldquode nobre famiacuteliardquo ou de ldquonobre nascimentordquo13 e na Alceste (681 e 686ndash8) o ex-rei Feres diz ao rei Admeto seu filho

ἐγὼ δέ σrsquo οἴκων δεσπότην ἐγεινάμην κἄθρεψrsquo (hellip)ἃ δrsquo ἡμῶν χρῆν σε τυγχάνειν ἔχεις πολλῶν μὲν ἄρχεις πολυπλέθρους δέ σοι γύας λείψω πατρὸς γὰρ ταὔτrsquo ἐδεξάμην πάρα

eu te gerei e criei para ser o mestre do palaacutecio (hellip)o que tinhas a receber de mim tu tensmuitos governas e terras extensas14 a tideixarei pois isso recebi de meu pai

Na Medeia (916-7) Jasatildeo diz aos filhos esperar que devido ao casa-mento com a filha do rei Creonte τῆσδε γῆς Κορινθίας τὰ πρῶτrsquo ἔσεσθαι eles ldquoseratildeo os primeiros desta terra coriacutentiardquo Ou seja a hereditariedade e a pro-priedade da terra ie a riqueza eram questotildees vinculadas diretamente ao poder real e tambeacutem agrave sua transmissatildeo

Outros tipos de viacutenculo familiar tambeacutem podiam assegurar a trans-missatildeo do poder real No Iacuteon (57ndash73 e 808ndash28) Hermes e o Velho Servidor de Creusa relatam que o aqueu Xuto pelo casamento com Creusa reinava em Atenas Em Feniacutecias (49ndash54) Eacutedipo entatildeo um desconhecido que havia derrotado a Esfinge se tornou rei de Tebas ao casar inadvertidamente com a proacutepria matildee viuacuteva do rei precedente morto em circunstacircncias mal escla-recidas O poder podia portanto passar pela linhagem feminina mas natildeo parava nela era transmitido ateacute o membro masculino mais proacuteximo

O rei podia tambeacutem entregar voluntariamente o poder Em Feniacutecias (71ndash4) Jocasta conta que seus filhos Eteacuteocles e Polinice haviam combinado inicialmente que um cederia o poder ao outro todos os anos ie cada um reinaria por um ano Na Alceste depreende-se que Feres passou o poder ao filho Admeto porque assim quis e o mesmo nos conta Euriacutepides em Bacan-tes (43ndash4) ao descrever a passagem do poder de Cadmo a seu neto Penteu

Κάδμος μὲν οὖν γέρας τε καὶ τυραννίδα Πενθεῖ δίδωσι θυγατρὸς ἐκπεφυκότι

13 Os εὐπατρίδαι lit ldquoeupaacutetridasrdquo eram os membros da velha aristocracia ateniense14 Lit ldquode muitos pletrosrdquo

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A honraria e tambeacutem o poder real Cadmoentrega a Penteu nascido de sua filha

Na mesma poacutelis posteriormente Hermes diz a Lico (Antiacuteope Fr 223108ndash9)

ὧν χρή σrsquo ἀκούειν [καὶ] χθονὸς μοναρχίαν15 ἑκόντα δοῦνα[ι τοῖσδε Κ]αδμείας ἄναξ

eacute preciso que a eles obedeccedilas e a soberania sobre a terrade Cadmo entregues voluntariamente senhor

Havia ainda outras formas de se tornar rei Euriacutepides menciona a curiosa disputa pelo trono de Micenas entre Atreu e Tieste na Ifigecircnia em Taacuteuris (813ndash7) e no Fr 397 b do Tieste

ΑΤΡΕΥΣδείξας γὰρ ἄστρων τὴν ἐναντίαν ὁδὸνδόμους τrsquo ἔσωισα καὶ τύραννος ἱζόμην

ATREUMostrando dos astros o caminho oposto16

salvei minha casa e estabeleci a tirania

E quando eventualmente ocorriam problemas de sucessatildeo que natildeo podiam ser resolvidos pelos meacutetodos tradicionais a sorte decidia em Hera-clidas (34ndash6) por exemplo fala-se em κλήρωι ldquosorteiordquo Note-se poreacutem que provavelmente se trata de mais um anacronismo jaacute que esse era procedi-mento proacuteprio agrave Atenas democraacutetica do seacuteculo v aC

OS PODERES CIVIS DO REI

O poder poliacutetico estaacute concentrado no rei que em princiacutepio o exerce sozinho Em Hipoacutelito B (1015) e em Androcircmaca (366) Hipoacutelito e Menelau respectivamente se referem ao poder real como μοναρχία ldquopoder de um soacuterdquo Segundo Eteacuteocles rei de Tebas todos satildeo escravos com exceccedilatildeo do rei ἄρχειν παρόν μοι τῶιδε δουλεύσω ποτέ ldquose posso governar porque me tornarei escravo delerdquo (Ph 520) Em Suplicantes (410ndash3) o arauto de Creonte diz a

15 Note-se nessa passagem o viacutenculo entre ἄναξ e μοναρχίαν16 A lenda da mudanccedila de curso do sol que antes dessa disputa nascia no oeste eacute descrita por

Apolodoro (Epiacutetome 210-14) e por Higino (Fab 88)

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Teseu que a poacutelis de onde ele vem (Tebas) eacute governada por um soacute homem e natildeo por uma multidatildeo e nos versos 429ndash32 o rei ateniense Teseu sintetiza

οὐδὲν τυράννου δυσμενέστερον πόλει ὅπου τὸ μὲν πρώτιστον οὐκ εἰσὶν νόμοι κοινοί κρατεῖ δrsquo εἷς τὸν νόμον κεκτημένος αὐτὸς παρrsquo αὑτῶι

nada eacute mais hostil a uma poacutelis do que um reie onde ele estaacute natildeo haacute em primeiro lugar uma leipara todos apenas um tem o poder e a lei nele e soacute nele reside

O poder eacute tatildeo vinculado ao monarca que ateacute o seu nome reflete o po-der ldquoCreonterdquo por exemplo vem de Κρέων = Κρήων = Κρείων ldquogovernanterdquo lit ldquoo mais forte o mais poderosordquo O nome encontrado em Eacutesquilo (Sete contra Tebas) e em Soacutefocles (Eacutedipo Rei Eacutedipo em Colono Antiacutegone) tambeacutem estaacute presente nas trageacutedias de Euriacutepides (Medeia Suplicantes Feniacutecias e Al-cmeon em Corinto Fr 75)

A vontade do rei eacute teoricamente absoluta real despoacutetica ldquotiracircnicardquo envolvendo ateacute vida e morte No Belerofonte (Fr 268) o heroacutei afirma que o rei mata muita gente e efetivamente em Bacantes (355ndash7) Penteu ordenou que o ldquosacerdote de Dionisordquo fosse preso e morto por apedrejamento sem ao menos vecirc-lo depois de ouvir dizer o que ele aparentemente havia feito Em Medeia (352ndash4) Creonte coloca Medeia diante dessa opccedilatildeo caso fosse deso-bedecido em Heraclidas (60) o arauto de Euristeu diz que Iolau foi incon-dicionalmente condenado agrave morte por apedrejamento17 e no v 964 coube a Demofonte decidir se o cativo rei de Argos vencido em batalha viveria ou natildeo No Hipoacutelito B (1055ndash6) Teseu condena seu filho Hipoacutelito sem julga-mento e sem nem mesmo ouvir os adivinhos uma das formas de auscultar a vontade dos deuses Na Medeia (274ndash5) Creonte diz a Medeia ἐγὼ βραβεὺς λόγου τοῦδrsquo εἰμί ldquosou eu o aacuterbitro18 dessa leirdquo embora pouco depois (348) ate-nue a afirmaccedilatildeo dizendo que sua vontade nem sempre eacute τυραννικόν ldquotiracirc-nicardquo Em Suplicantes (349ndash50) por outro lado Teseu diz que a poacutelis precisa se curvar aos seus desejos embora coloque tecircnue verniz democraacutetico nessa despoacutetica atitude

17 Em outra passagem dessa trageacutedia (142) o aspecto legal eacute marcado pela palavra νόμος que tem significado semelhante a δίκη ldquouso costume lei decretordquo

18 O vocaacutebulo βραβεὺς designava o aacuterbitro juiz de disputas atleacuteticas e mais tarde aacuterbitros e juiacutezes em geral

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

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mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

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τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

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forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

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de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

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As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

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Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 4: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

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mencionada nesses tratados talvez pelo caraacuteter eminentemente ficcional das trageacutedias Mas reis satildeo personagens ficcionais mais comuns na trageacute-dia grega do que nos poemas arcaicos e sua participaccedilatildeo na accedilatildeo dramaacutetica se baseia provavelmente na memoacuteria dos gregos sobre o poder absoluto ou quase absoluto dos monarcas ndash reis ou tiranos ndash histoacutericos

A obra de Euriacutepides se destaca entre outras coisas pela proximi-dade entre os temas traacutegicos e diversos elementos da cultura ateniense da segunda metade do seacuteculo v aC o que motivou o presente estudo sobre a caracteriacutesticas da monarquia em sua obra As referecircncias satildeo numerosas e por isso restringi a anaacutelise agraves caracteriacutesticas mais ilustrativas do poder real monaacuterquico na trageacutedia euripidiana sem me deter na caracterizaccedilatildeo de reis natildeo helecircnicos e na cronologia relativa das trageacutedias Toda escolha eacute pessoal mas confio ter selecionado as passagens mais representativas do monarca traacutegico nas trageacutedias de Euriacutepides7

DENOMINACcedilAtildeO SIacuteMBOLOS E SEDE DO PODER REAL

Βασιλεύς e seus derivados cujo radical corresponde ao gwasileus do dialeto micecircnico (eg Alc 241 Med 455 e 554 Suppl 444 El 12 HF 182 Ar-chel Fr 229 Hyps Fr 752 g Phaeumlth Fr 773 e 781) deveria designar teorica-mente apenas a figura real de origem hereditaacuteria e τύραννος8 (eg Alc 286 e 1022 Med 700 Ion 626 Hel 4 e 35 Ph 51 Alcmeon em Corinto Fr 76 Antiacutegone Fr 171ndash2 Auge Fr 275 Tieste Fr 397 b Dacircnae Fr 11324) figuras reais de ori-gem natildeo hereditaacuteria Euriacutepides no entanto usava βασιλεύς e τύραννος indi-ferentemente para designar o monarca aquele que detinha o poder real Na Alceste para se referir a Admeto ele usa o primeiro termo (241) e logo depois (286) o segundo

Ἄναξ palavra que corresponde ao wanax do dialeto micecircnico era usada por Euriacutepides como denominativo ou vocativo geneacuterico para indicar a alta posiccedilatildeo do monarca eg γῆς ἄνακτα τῆσδε Θησέα ldquoTeseu senhor desta terrardquo (Hipp B 1153) τῆσδrsquo ἄνακτrsquo εἶναι χθονός ldquosou o senhor desta terrardquo (Ph 591) Ἀγαμέμνων ἄναξ e Μενέλεως ἄναξ (IA 431 436 etc) e em expressotildees se-

7 As trageacutedias fragmentaacuterias sem abreviatura padronizada satildeo mencionadas a seguir pelo tiacutetulo traduzido

8 A palavra natildeo eacute indo-europeia e sua origem eacute provavelmente natildeo grega talvez liacutedia ou etrusca Sua primeira ocorrecircncia nos textos gregos eacute o terceiro verso do Fr 19 West de Arquiacuteloco μεγάλης δrsquo οὐκ ἐρlangέωrang τυραννίδος ldquoe natildeo anseio uma grande tiraniardquo (Dillon amp Garland 1994 29)

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melhantes no Hipoacutelito B (901 e 1249)9 em Heraclidas (825) e no Alexandre Fr 561 Na Antiacuteope Hermes recorre a ἄναξ para se dirigir a Anfiacuteon futuro rei de Tebas (Fr 26368) e a Lico o rei que ainda estava no poder (Fr 223109)

Essas denominaccedilotildees do rei se estendem agrave sua consorte e a outros familiares Alceste esposa do rei Admeto eacute chamada de βασίλεια em Alceste (81) em Heacutecuba (809) a ex-rainha diz τύραννος ἦ ποτrsquo ἀλλὰ νῦν δούλη σέθεν ldquoeu antes era tirana (=rainha) e agora tua escravardquo em Androcircmaca (1055) Hermiacuteone eacute chamada de ldquorainhardquo (βασίλεια) e no verso 65 Androcircmaca diz que antes de ser escrava era ldquosenhora rainhardquo (ἄνασσα) e o mesmo ocorre com Clitemnestra na Electra (988) no Fr 82215 do Frixo A ou do Frixo B a palavra βασίλεια eacute mencionada possivelmente em relaccedilatildeo a Ino Na Medeia (42) a Ama se refere a Jasatildeo novo genro do rei como τύραννον τόν τε γήμαντα ldquoo tirano que se casourdquo e na mesma trageacutedia (877 967 e 1356ndash7) Medeia se refere agrave filha do rei Creonte como ἢ τύραννον ldquoa tiranardquo

Palavras correspondentes a lawagetas natildeo satildeo encontradas em Euriacute-pides e o nome Ἀρχέλαος na trageacutedia Arquelau (Fr 228ndash64) eacute a uacutenica ocor-recircncia do radical λαο- em contexto que sugere realeza Haacute poreacutem algumas ocorrecircncias da palavra λοχαγός ldquoliacuteder militar de um grupo de homens ca-pitatildeordquo (eg Suppl 598 Tr 1260 Ph 123) mas essa funccedilatildeo ou posto militar natildeo parece ter tido o alcance que o tiacutetulo micecircnico lawagetas parece ter nas tabuinhas micecircnicas

A sede do poder real eacute o proacuteprio palaacutecio residecircncia do monarca (τυραννικῶν δόμων Hec 55) como se vecirc em praticamente todas as trageacutedias que tecircm o rei como personagem eg Peliacuteades (Fr 601) Feniacutecias (197) Orestes (1356) Helena (1170) Cresfontes (Fr 448 a 2) Note-se que o ldquopalaacuteciordquo eacute sede e siacutembolo do poder poliacutetico ateacute hoje haja vista as expressotildees modernas Paccedilo Municipal Palaacutecio do Governo Palaacutecio do Alvorada etc Em termos de abrangecircncia geograacutefica os domiacutenios do monarca compreendiam a terra dentro dos limites da poacutelis que ele governava e satildeo quase sempre referidos como ldquoesta terrardquo eg τῆσδrsquo ἄνακτα γῆς ldquorei desta terrardquo (Med 934) e agraves vezes um pouco aleacutem (Hipp B 1084) Haacute ocorrecircncias semelhantes para τύραννος em Heraclidas (111) Suplicantes (399) e Dacircnae (Fr 11324) Na Helena (4 e 1058) a expressatildeo eacute utilizada em relaccedilatildeo ao rei do Egito cujo comportamento eacute comparaacutevel ao dos monarcas gregos retratados em outras trageacutedias

O cetro (σκήπτρος) eacute o siacutembolo do poder real por excelecircncia assim como uma de suas mais frequentes metaacuteforas eg El 11 HF 213 Tr 150 Ph 52 73 e 80 Or 437 IA 311 e 412 Passagens corais da Antiacuteope (Fr 22317ndash8)

9 Euriacutepides escreveu duas trageacutedias intituladas ldquoHipoacutelitordquo Da primeira abreviatura Hipp A temos apenas fragmentos a segunda (abreviatura Hipp B) chegou ateacute noacutes na iacutentegra

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e da Ifigecircnia em Taacuteuris (186ndash7) respectivamente ilustram com precisatildeo a metaacutefora

ὅδrsquo] αὐ[τό]ς εἰ χρὴ δοξάσαι τυραννικῶι σ]κ[ή]πτρωι Λύκος πάρεστι σιγῶμεν φίλοι

Eacute ele se devemos conjeturar pelo realcetro Lico em pessoa calemo-nos amigos

οἴμοι τῶν Ἀτρειδᾶν οἴκων ἔρρει φῶς σκῆπτρόν langτrsquorang οἴμοι

a casa dos Atridas ai de mim a luz de seu cetro estaacute arruinada ai de mim

Note-se que na Androcircmaca (23 588 e 1223) o idoso Peleu ainda deti-nha a dignidade real e usava o cetro embora Euriacutepides decirc a entender ao longo da trageacutedia que ele era uma espeacutecie de rei honoraacuterio e que seu neto Neoptoacutelemo cuidava de tudo

Na maioria das vezes Euriacutepides usou a palavra θρόνος ldquotronordquo para designar simples assentos mas em alguns lugares a metaacutefora para a realeza eacute bem clara eg καὶ παρὰ θρόνον ἀρχέταν10 ldquoe junto ao trono realrdquo (Heraclid 753) κοὐ δεῖ τύρανν[α σκῆπτρα καὶ θρόνους λαβεῖν ldquoe natildeo devem ter parte nem no cetro e nem no trono realrdquo (Melanipp Capt Fr 49520) θρόνους ἔχων ldquopossuo o tronordquo (HF 167) As rainhas tambeacutem tinham direito literal de usaacute-lo jaacute que Helena esposa do rei Menelau sentava-se em um trono dentro do palaacutecio real (Or 1408ndash10)

O rei agraves vezes proclamava pessoalmente suas decisotildees (Med 272 351 e 725 Hipp B 973ndash5 e 1084)11 mas dispunha de representante pessoal que atuava agrave distacircncia o arauto para transmitir desejos decisotildees (eg Heraclid Suppl e Hec passim Phaeumlth Fr 771ndash86) e agraves vezes ateacute sua disposiccedilatildeo na-tural Em Heraclidas por exemplo Euristeu eacute representado por um arauto antipaacutetico e agressivo verdadeiro alter ego do soberano argivo12 mas em Troianas temos o oposto Agamecircmnon eacute representado por Taltiacutebio simpaacute-tico e compassivo embora o atrida natildeo fosse sempre assim

10 Nessa passagem em particular Zuntz (1955 118) acredita que se trate de referecircncia ao trono de Zeus

11 Med 272 ἀνεῖπον ldquoeu proclameirdquo em 351 προυννέπω ldquoeu proclamordquo e em 725 προσημαίνω ldquoeu proclamordquo Hipp B 1084 προεννέπω ldquoeu proclamordquo

12 O rei Euristeu que fala no final de Heraclidas eacute bem diferente da imagem passada ao longo da trageacutedia por seu arauto mas lembremos que nesse momento o exeacutercito argivo havia sido vencido e ele capturado

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REQUISITOS IMPORTAcircNCIA E VANTAGENS DA REALEZA

Creusa filha de rei naturalmente considerava importante a exis-tecircncia da realeza δῶμrsquo ἑστιοῦται γᾶ δrsquo ἔχει τυράννους ldquoa casa tem alicerces (= filhos) a terra tem reisrdquo (Ion 1464) mas era a poacutelis que sancionava a rea-leza pelo menos segundo o rei Menelau ao questionar Orestes (Or 437) Ἀγαμέμνονος δὲ σκῆπτρrsquo ἐᾶι σrsquo ἔχειν πόλις ldquoa poacutelis permite que conserves o cetro de Agamecircmnonrdquo

Uma das deferecircncias requeridas pelo rei era a preferecircncia de passa-gem Em Feniacutecias (40) Jocasta conta que o cocheiro de Laio exigiu que Eacutedipo desse passagem ao rei (tirano) embora o episoacutedio natildeo tenha acabado bem A monarquia tinha outros atrativos tanto que Eteacuteocles filho de Eacutedipo pre-feriu se manter na funccedilatildeo de rei em detrimento da seguranccedila de Tebas (Ph 560) Pouco antes (524ndash5) ele afirmara que para obter a tirania valia a pena cometer injusticcedilas (ἀδικεῖν) e que (504ndash8)

ἄστρων ἂν ἔλθοιμrsquo daggerἡλίουdagger πρὸς ἀντολὰς καὶ γῆς ἔνερθε δυνατὸς ὢν δρᾶσαι τάδε τὴν θεῶν μεγίστην ὥστrsquo ἔχειν Τυραννίδα τοῦτrsquo οὖν τὸ χρηστόν μῆτερ οὐχὶ βούλομαι ἄλλωι παρεῖναι μᾶλλον ἢ σώιζειν ἐμοί

iria aonde os astros e o sol nasceme abaixo da terra se isso estivesse em meu poderpara ter Tirania (ou Realeza) a maior das divindadesPor isso matildee natildeo desejo esse bem entregar a outro prefiro ficar com ele

Para Euriacutepides a realeza natildeo envolvia apenas poder e prestiacutegio Jocasta matildee de Eteacuteocles revela que o rei aumenta suas riquezas pessoais (552ndash3 e 566) ie jaacute era rico antes da monarquia e depois ficava ainda mais rico Em Suplicantes (417ndash22) o arauto de Creonte diz a Teseu que eacute preciso ter tempo disponiacutevel e ser rico para governar a poacutelis pois um lavrador po-bre precisa trabalhar e natildeo tem tempo para isso

Natildeo admira portanto que o rei combatesse energicamente os que se opunham a seu poder Ainda em Suplicantes (444ndash6) diz Teseu

ἀνὴρ δὲ βασιλεὺς ἐχθρὸν ἡγεῖται τόδεκαὶ τοὺς ἀρίστους οὕς ltτrsquogt ἂν ἡγῆται φρονεῖν κτείνει δεδοικὼς τῆς τυραννίδος πέρι

e um homem que eacute rei os considera um inimigoe os melhores deles acha prudente matar temendo por seu proacuteprio poder

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A realeza natildeo estava ao alcance de qualquer um somente membros da aristocracia e seus descendentes podiam almejaacute-la No Hipoacutelito B (1283) Aacutertemis qualifica Teseu rei de Atenas de εὐπατρίδην ldquode nobre famiacuteliardquo ou de ldquonobre nascimentordquo13 e na Alceste (681 e 686ndash8) o ex-rei Feres diz ao rei Admeto seu filho

ἐγὼ δέ σrsquo οἴκων δεσπότην ἐγεινάμην κἄθρεψrsquo (hellip)ἃ δrsquo ἡμῶν χρῆν σε τυγχάνειν ἔχεις πολλῶν μὲν ἄρχεις πολυπλέθρους δέ σοι γύας λείψω πατρὸς γὰρ ταὔτrsquo ἐδεξάμην πάρα

eu te gerei e criei para ser o mestre do palaacutecio (hellip)o que tinhas a receber de mim tu tensmuitos governas e terras extensas14 a tideixarei pois isso recebi de meu pai

Na Medeia (916-7) Jasatildeo diz aos filhos esperar que devido ao casa-mento com a filha do rei Creonte τῆσδε γῆς Κορινθίας τὰ πρῶτrsquo ἔσεσθαι eles ldquoseratildeo os primeiros desta terra coriacutentiardquo Ou seja a hereditariedade e a pro-priedade da terra ie a riqueza eram questotildees vinculadas diretamente ao poder real e tambeacutem agrave sua transmissatildeo

Outros tipos de viacutenculo familiar tambeacutem podiam assegurar a trans-missatildeo do poder real No Iacuteon (57ndash73 e 808ndash28) Hermes e o Velho Servidor de Creusa relatam que o aqueu Xuto pelo casamento com Creusa reinava em Atenas Em Feniacutecias (49ndash54) Eacutedipo entatildeo um desconhecido que havia derrotado a Esfinge se tornou rei de Tebas ao casar inadvertidamente com a proacutepria matildee viuacuteva do rei precedente morto em circunstacircncias mal escla-recidas O poder podia portanto passar pela linhagem feminina mas natildeo parava nela era transmitido ateacute o membro masculino mais proacuteximo

O rei podia tambeacutem entregar voluntariamente o poder Em Feniacutecias (71ndash4) Jocasta conta que seus filhos Eteacuteocles e Polinice haviam combinado inicialmente que um cederia o poder ao outro todos os anos ie cada um reinaria por um ano Na Alceste depreende-se que Feres passou o poder ao filho Admeto porque assim quis e o mesmo nos conta Euriacutepides em Bacan-tes (43ndash4) ao descrever a passagem do poder de Cadmo a seu neto Penteu

Κάδμος μὲν οὖν γέρας τε καὶ τυραννίδα Πενθεῖ δίδωσι θυγατρὸς ἐκπεφυκότι

13 Os εὐπατρίδαι lit ldquoeupaacutetridasrdquo eram os membros da velha aristocracia ateniense14 Lit ldquode muitos pletrosrdquo

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A honraria e tambeacutem o poder real Cadmoentrega a Penteu nascido de sua filha

Na mesma poacutelis posteriormente Hermes diz a Lico (Antiacuteope Fr 223108ndash9)

ὧν χρή σrsquo ἀκούειν [καὶ] χθονὸς μοναρχίαν15 ἑκόντα δοῦνα[ι τοῖσδε Κ]αδμείας ἄναξ

eacute preciso que a eles obedeccedilas e a soberania sobre a terrade Cadmo entregues voluntariamente senhor

Havia ainda outras formas de se tornar rei Euriacutepides menciona a curiosa disputa pelo trono de Micenas entre Atreu e Tieste na Ifigecircnia em Taacuteuris (813ndash7) e no Fr 397 b do Tieste

ΑΤΡΕΥΣδείξας γὰρ ἄστρων τὴν ἐναντίαν ὁδὸνδόμους τrsquo ἔσωισα καὶ τύραννος ἱζόμην

ATREUMostrando dos astros o caminho oposto16

salvei minha casa e estabeleci a tirania

E quando eventualmente ocorriam problemas de sucessatildeo que natildeo podiam ser resolvidos pelos meacutetodos tradicionais a sorte decidia em Hera-clidas (34ndash6) por exemplo fala-se em κλήρωι ldquosorteiordquo Note-se poreacutem que provavelmente se trata de mais um anacronismo jaacute que esse era procedi-mento proacuteprio agrave Atenas democraacutetica do seacuteculo v aC

OS PODERES CIVIS DO REI

O poder poliacutetico estaacute concentrado no rei que em princiacutepio o exerce sozinho Em Hipoacutelito B (1015) e em Androcircmaca (366) Hipoacutelito e Menelau respectivamente se referem ao poder real como μοναρχία ldquopoder de um soacuterdquo Segundo Eteacuteocles rei de Tebas todos satildeo escravos com exceccedilatildeo do rei ἄρχειν παρόν μοι τῶιδε δουλεύσω ποτέ ldquose posso governar porque me tornarei escravo delerdquo (Ph 520) Em Suplicantes (410ndash3) o arauto de Creonte diz a

15 Note-se nessa passagem o viacutenculo entre ἄναξ e μοναρχίαν16 A lenda da mudanccedila de curso do sol que antes dessa disputa nascia no oeste eacute descrita por

Apolodoro (Epiacutetome 210-14) e por Higino (Fab 88)

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Teseu que a poacutelis de onde ele vem (Tebas) eacute governada por um soacute homem e natildeo por uma multidatildeo e nos versos 429ndash32 o rei ateniense Teseu sintetiza

οὐδὲν τυράννου δυσμενέστερον πόλει ὅπου τὸ μὲν πρώτιστον οὐκ εἰσὶν νόμοι κοινοί κρατεῖ δrsquo εἷς τὸν νόμον κεκτημένος αὐτὸς παρrsquo αὑτῶι

nada eacute mais hostil a uma poacutelis do que um reie onde ele estaacute natildeo haacute em primeiro lugar uma leipara todos apenas um tem o poder e a lei nele e soacute nele reside

O poder eacute tatildeo vinculado ao monarca que ateacute o seu nome reflete o po-der ldquoCreonterdquo por exemplo vem de Κρέων = Κρήων = Κρείων ldquogovernanterdquo lit ldquoo mais forte o mais poderosordquo O nome encontrado em Eacutesquilo (Sete contra Tebas) e em Soacutefocles (Eacutedipo Rei Eacutedipo em Colono Antiacutegone) tambeacutem estaacute presente nas trageacutedias de Euriacutepides (Medeia Suplicantes Feniacutecias e Al-cmeon em Corinto Fr 75)

A vontade do rei eacute teoricamente absoluta real despoacutetica ldquotiracircnicardquo envolvendo ateacute vida e morte No Belerofonte (Fr 268) o heroacutei afirma que o rei mata muita gente e efetivamente em Bacantes (355ndash7) Penteu ordenou que o ldquosacerdote de Dionisordquo fosse preso e morto por apedrejamento sem ao menos vecirc-lo depois de ouvir dizer o que ele aparentemente havia feito Em Medeia (352ndash4) Creonte coloca Medeia diante dessa opccedilatildeo caso fosse deso-bedecido em Heraclidas (60) o arauto de Euristeu diz que Iolau foi incon-dicionalmente condenado agrave morte por apedrejamento17 e no v 964 coube a Demofonte decidir se o cativo rei de Argos vencido em batalha viveria ou natildeo No Hipoacutelito B (1055ndash6) Teseu condena seu filho Hipoacutelito sem julga-mento e sem nem mesmo ouvir os adivinhos uma das formas de auscultar a vontade dos deuses Na Medeia (274ndash5) Creonte diz a Medeia ἐγὼ βραβεὺς λόγου τοῦδrsquo εἰμί ldquosou eu o aacuterbitro18 dessa leirdquo embora pouco depois (348) ate-nue a afirmaccedilatildeo dizendo que sua vontade nem sempre eacute τυραννικόν ldquotiracirc-nicardquo Em Suplicantes (349ndash50) por outro lado Teseu diz que a poacutelis precisa se curvar aos seus desejos embora coloque tecircnue verniz democraacutetico nessa despoacutetica atitude

17 Em outra passagem dessa trageacutedia (142) o aspecto legal eacute marcado pela palavra νόμος que tem significado semelhante a δίκη ldquouso costume lei decretordquo

18 O vocaacutebulo βραβεὺς designava o aacuterbitro juiz de disputas atleacuteticas e mais tarde aacuterbitros e juiacutezes em geral

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

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mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

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τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

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forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

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de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

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As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 5: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

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melhantes no Hipoacutelito B (901 e 1249)9 em Heraclidas (825) e no Alexandre Fr 561 Na Antiacuteope Hermes recorre a ἄναξ para se dirigir a Anfiacuteon futuro rei de Tebas (Fr 26368) e a Lico o rei que ainda estava no poder (Fr 223109)

Essas denominaccedilotildees do rei se estendem agrave sua consorte e a outros familiares Alceste esposa do rei Admeto eacute chamada de βασίλεια em Alceste (81) em Heacutecuba (809) a ex-rainha diz τύραννος ἦ ποτrsquo ἀλλὰ νῦν δούλη σέθεν ldquoeu antes era tirana (=rainha) e agora tua escravardquo em Androcircmaca (1055) Hermiacuteone eacute chamada de ldquorainhardquo (βασίλεια) e no verso 65 Androcircmaca diz que antes de ser escrava era ldquosenhora rainhardquo (ἄνασσα) e o mesmo ocorre com Clitemnestra na Electra (988) no Fr 82215 do Frixo A ou do Frixo B a palavra βασίλεια eacute mencionada possivelmente em relaccedilatildeo a Ino Na Medeia (42) a Ama se refere a Jasatildeo novo genro do rei como τύραννον τόν τε γήμαντα ldquoo tirano que se casourdquo e na mesma trageacutedia (877 967 e 1356ndash7) Medeia se refere agrave filha do rei Creonte como ἢ τύραννον ldquoa tiranardquo

Palavras correspondentes a lawagetas natildeo satildeo encontradas em Euriacute-pides e o nome Ἀρχέλαος na trageacutedia Arquelau (Fr 228ndash64) eacute a uacutenica ocor-recircncia do radical λαο- em contexto que sugere realeza Haacute poreacutem algumas ocorrecircncias da palavra λοχαγός ldquoliacuteder militar de um grupo de homens ca-pitatildeordquo (eg Suppl 598 Tr 1260 Ph 123) mas essa funccedilatildeo ou posto militar natildeo parece ter tido o alcance que o tiacutetulo micecircnico lawagetas parece ter nas tabuinhas micecircnicas

A sede do poder real eacute o proacuteprio palaacutecio residecircncia do monarca (τυραννικῶν δόμων Hec 55) como se vecirc em praticamente todas as trageacutedias que tecircm o rei como personagem eg Peliacuteades (Fr 601) Feniacutecias (197) Orestes (1356) Helena (1170) Cresfontes (Fr 448 a 2) Note-se que o ldquopalaacuteciordquo eacute sede e siacutembolo do poder poliacutetico ateacute hoje haja vista as expressotildees modernas Paccedilo Municipal Palaacutecio do Governo Palaacutecio do Alvorada etc Em termos de abrangecircncia geograacutefica os domiacutenios do monarca compreendiam a terra dentro dos limites da poacutelis que ele governava e satildeo quase sempre referidos como ldquoesta terrardquo eg τῆσδrsquo ἄνακτα γῆς ldquorei desta terrardquo (Med 934) e agraves vezes um pouco aleacutem (Hipp B 1084) Haacute ocorrecircncias semelhantes para τύραννος em Heraclidas (111) Suplicantes (399) e Dacircnae (Fr 11324) Na Helena (4 e 1058) a expressatildeo eacute utilizada em relaccedilatildeo ao rei do Egito cujo comportamento eacute comparaacutevel ao dos monarcas gregos retratados em outras trageacutedias

O cetro (σκήπτρος) eacute o siacutembolo do poder real por excelecircncia assim como uma de suas mais frequentes metaacuteforas eg El 11 HF 213 Tr 150 Ph 52 73 e 80 Or 437 IA 311 e 412 Passagens corais da Antiacuteope (Fr 22317ndash8)

9 Euriacutepides escreveu duas trageacutedias intituladas ldquoHipoacutelitordquo Da primeira abreviatura Hipp A temos apenas fragmentos a segunda (abreviatura Hipp B) chegou ateacute noacutes na iacutentegra

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e da Ifigecircnia em Taacuteuris (186ndash7) respectivamente ilustram com precisatildeo a metaacutefora

ὅδrsquo] αὐ[τό]ς εἰ χρὴ δοξάσαι τυραννικῶι σ]κ[ή]πτρωι Λύκος πάρεστι σιγῶμεν φίλοι

Eacute ele se devemos conjeturar pelo realcetro Lico em pessoa calemo-nos amigos

οἴμοι τῶν Ἀτρειδᾶν οἴκων ἔρρει φῶς σκῆπτρόν langτrsquorang οἴμοι

a casa dos Atridas ai de mim a luz de seu cetro estaacute arruinada ai de mim

Note-se que na Androcircmaca (23 588 e 1223) o idoso Peleu ainda deti-nha a dignidade real e usava o cetro embora Euriacutepides decirc a entender ao longo da trageacutedia que ele era uma espeacutecie de rei honoraacuterio e que seu neto Neoptoacutelemo cuidava de tudo

Na maioria das vezes Euriacutepides usou a palavra θρόνος ldquotronordquo para designar simples assentos mas em alguns lugares a metaacutefora para a realeza eacute bem clara eg καὶ παρὰ θρόνον ἀρχέταν10 ldquoe junto ao trono realrdquo (Heraclid 753) κοὐ δεῖ τύρανν[α σκῆπτρα καὶ θρόνους λαβεῖν ldquoe natildeo devem ter parte nem no cetro e nem no trono realrdquo (Melanipp Capt Fr 49520) θρόνους ἔχων ldquopossuo o tronordquo (HF 167) As rainhas tambeacutem tinham direito literal de usaacute-lo jaacute que Helena esposa do rei Menelau sentava-se em um trono dentro do palaacutecio real (Or 1408ndash10)

O rei agraves vezes proclamava pessoalmente suas decisotildees (Med 272 351 e 725 Hipp B 973ndash5 e 1084)11 mas dispunha de representante pessoal que atuava agrave distacircncia o arauto para transmitir desejos decisotildees (eg Heraclid Suppl e Hec passim Phaeumlth Fr 771ndash86) e agraves vezes ateacute sua disposiccedilatildeo na-tural Em Heraclidas por exemplo Euristeu eacute representado por um arauto antipaacutetico e agressivo verdadeiro alter ego do soberano argivo12 mas em Troianas temos o oposto Agamecircmnon eacute representado por Taltiacutebio simpaacute-tico e compassivo embora o atrida natildeo fosse sempre assim

10 Nessa passagem em particular Zuntz (1955 118) acredita que se trate de referecircncia ao trono de Zeus

11 Med 272 ἀνεῖπον ldquoeu proclameirdquo em 351 προυννέπω ldquoeu proclamordquo e em 725 προσημαίνω ldquoeu proclamordquo Hipp B 1084 προεννέπω ldquoeu proclamordquo

12 O rei Euristeu que fala no final de Heraclidas eacute bem diferente da imagem passada ao longo da trageacutedia por seu arauto mas lembremos que nesse momento o exeacutercito argivo havia sido vencido e ele capturado

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REQUISITOS IMPORTAcircNCIA E VANTAGENS DA REALEZA

Creusa filha de rei naturalmente considerava importante a exis-tecircncia da realeza δῶμrsquo ἑστιοῦται γᾶ δrsquo ἔχει τυράννους ldquoa casa tem alicerces (= filhos) a terra tem reisrdquo (Ion 1464) mas era a poacutelis que sancionava a rea-leza pelo menos segundo o rei Menelau ao questionar Orestes (Or 437) Ἀγαμέμνονος δὲ σκῆπτρrsquo ἐᾶι σrsquo ἔχειν πόλις ldquoa poacutelis permite que conserves o cetro de Agamecircmnonrdquo

Uma das deferecircncias requeridas pelo rei era a preferecircncia de passa-gem Em Feniacutecias (40) Jocasta conta que o cocheiro de Laio exigiu que Eacutedipo desse passagem ao rei (tirano) embora o episoacutedio natildeo tenha acabado bem A monarquia tinha outros atrativos tanto que Eteacuteocles filho de Eacutedipo pre-feriu se manter na funccedilatildeo de rei em detrimento da seguranccedila de Tebas (Ph 560) Pouco antes (524ndash5) ele afirmara que para obter a tirania valia a pena cometer injusticcedilas (ἀδικεῖν) e que (504ndash8)

ἄστρων ἂν ἔλθοιμrsquo daggerἡλίουdagger πρὸς ἀντολὰς καὶ γῆς ἔνερθε δυνατὸς ὢν δρᾶσαι τάδε τὴν θεῶν μεγίστην ὥστrsquo ἔχειν Τυραννίδα τοῦτrsquo οὖν τὸ χρηστόν μῆτερ οὐχὶ βούλομαι ἄλλωι παρεῖναι μᾶλλον ἢ σώιζειν ἐμοί

iria aonde os astros e o sol nasceme abaixo da terra se isso estivesse em meu poderpara ter Tirania (ou Realeza) a maior das divindadesPor isso matildee natildeo desejo esse bem entregar a outro prefiro ficar com ele

Para Euriacutepides a realeza natildeo envolvia apenas poder e prestiacutegio Jocasta matildee de Eteacuteocles revela que o rei aumenta suas riquezas pessoais (552ndash3 e 566) ie jaacute era rico antes da monarquia e depois ficava ainda mais rico Em Suplicantes (417ndash22) o arauto de Creonte diz a Teseu que eacute preciso ter tempo disponiacutevel e ser rico para governar a poacutelis pois um lavrador po-bre precisa trabalhar e natildeo tem tempo para isso

Natildeo admira portanto que o rei combatesse energicamente os que se opunham a seu poder Ainda em Suplicantes (444ndash6) diz Teseu

ἀνὴρ δὲ βασιλεὺς ἐχθρὸν ἡγεῖται τόδεκαὶ τοὺς ἀρίστους οὕς ltτrsquogt ἂν ἡγῆται φρονεῖν κτείνει δεδοικὼς τῆς τυραννίδος πέρι

e um homem que eacute rei os considera um inimigoe os melhores deles acha prudente matar temendo por seu proacuteprio poder

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A realeza natildeo estava ao alcance de qualquer um somente membros da aristocracia e seus descendentes podiam almejaacute-la No Hipoacutelito B (1283) Aacutertemis qualifica Teseu rei de Atenas de εὐπατρίδην ldquode nobre famiacuteliardquo ou de ldquonobre nascimentordquo13 e na Alceste (681 e 686ndash8) o ex-rei Feres diz ao rei Admeto seu filho

ἐγὼ δέ σrsquo οἴκων δεσπότην ἐγεινάμην κἄθρεψrsquo (hellip)ἃ δrsquo ἡμῶν χρῆν σε τυγχάνειν ἔχεις πολλῶν μὲν ἄρχεις πολυπλέθρους δέ σοι γύας λείψω πατρὸς γὰρ ταὔτrsquo ἐδεξάμην πάρα

eu te gerei e criei para ser o mestre do palaacutecio (hellip)o que tinhas a receber de mim tu tensmuitos governas e terras extensas14 a tideixarei pois isso recebi de meu pai

Na Medeia (916-7) Jasatildeo diz aos filhos esperar que devido ao casa-mento com a filha do rei Creonte τῆσδε γῆς Κορινθίας τὰ πρῶτrsquo ἔσεσθαι eles ldquoseratildeo os primeiros desta terra coriacutentiardquo Ou seja a hereditariedade e a pro-priedade da terra ie a riqueza eram questotildees vinculadas diretamente ao poder real e tambeacutem agrave sua transmissatildeo

Outros tipos de viacutenculo familiar tambeacutem podiam assegurar a trans-missatildeo do poder real No Iacuteon (57ndash73 e 808ndash28) Hermes e o Velho Servidor de Creusa relatam que o aqueu Xuto pelo casamento com Creusa reinava em Atenas Em Feniacutecias (49ndash54) Eacutedipo entatildeo um desconhecido que havia derrotado a Esfinge se tornou rei de Tebas ao casar inadvertidamente com a proacutepria matildee viuacuteva do rei precedente morto em circunstacircncias mal escla-recidas O poder podia portanto passar pela linhagem feminina mas natildeo parava nela era transmitido ateacute o membro masculino mais proacuteximo

O rei podia tambeacutem entregar voluntariamente o poder Em Feniacutecias (71ndash4) Jocasta conta que seus filhos Eteacuteocles e Polinice haviam combinado inicialmente que um cederia o poder ao outro todos os anos ie cada um reinaria por um ano Na Alceste depreende-se que Feres passou o poder ao filho Admeto porque assim quis e o mesmo nos conta Euriacutepides em Bacan-tes (43ndash4) ao descrever a passagem do poder de Cadmo a seu neto Penteu

Κάδμος μὲν οὖν γέρας τε καὶ τυραννίδα Πενθεῖ δίδωσι θυγατρὸς ἐκπεφυκότι

13 Os εὐπατρίδαι lit ldquoeupaacutetridasrdquo eram os membros da velha aristocracia ateniense14 Lit ldquode muitos pletrosrdquo

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A honraria e tambeacutem o poder real Cadmoentrega a Penteu nascido de sua filha

Na mesma poacutelis posteriormente Hermes diz a Lico (Antiacuteope Fr 223108ndash9)

ὧν χρή σrsquo ἀκούειν [καὶ] χθονὸς μοναρχίαν15 ἑκόντα δοῦνα[ι τοῖσδε Κ]αδμείας ἄναξ

eacute preciso que a eles obedeccedilas e a soberania sobre a terrade Cadmo entregues voluntariamente senhor

Havia ainda outras formas de se tornar rei Euriacutepides menciona a curiosa disputa pelo trono de Micenas entre Atreu e Tieste na Ifigecircnia em Taacuteuris (813ndash7) e no Fr 397 b do Tieste

ΑΤΡΕΥΣδείξας γὰρ ἄστρων τὴν ἐναντίαν ὁδὸνδόμους τrsquo ἔσωισα καὶ τύραννος ἱζόμην

ATREUMostrando dos astros o caminho oposto16

salvei minha casa e estabeleci a tirania

E quando eventualmente ocorriam problemas de sucessatildeo que natildeo podiam ser resolvidos pelos meacutetodos tradicionais a sorte decidia em Hera-clidas (34ndash6) por exemplo fala-se em κλήρωι ldquosorteiordquo Note-se poreacutem que provavelmente se trata de mais um anacronismo jaacute que esse era procedi-mento proacuteprio agrave Atenas democraacutetica do seacuteculo v aC

OS PODERES CIVIS DO REI

O poder poliacutetico estaacute concentrado no rei que em princiacutepio o exerce sozinho Em Hipoacutelito B (1015) e em Androcircmaca (366) Hipoacutelito e Menelau respectivamente se referem ao poder real como μοναρχία ldquopoder de um soacuterdquo Segundo Eteacuteocles rei de Tebas todos satildeo escravos com exceccedilatildeo do rei ἄρχειν παρόν μοι τῶιδε δουλεύσω ποτέ ldquose posso governar porque me tornarei escravo delerdquo (Ph 520) Em Suplicantes (410ndash3) o arauto de Creonte diz a

15 Note-se nessa passagem o viacutenculo entre ἄναξ e μοναρχίαν16 A lenda da mudanccedila de curso do sol que antes dessa disputa nascia no oeste eacute descrita por

Apolodoro (Epiacutetome 210-14) e por Higino (Fab 88)

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Teseu que a poacutelis de onde ele vem (Tebas) eacute governada por um soacute homem e natildeo por uma multidatildeo e nos versos 429ndash32 o rei ateniense Teseu sintetiza

οὐδὲν τυράννου δυσμενέστερον πόλει ὅπου τὸ μὲν πρώτιστον οὐκ εἰσὶν νόμοι κοινοί κρατεῖ δrsquo εἷς τὸν νόμον κεκτημένος αὐτὸς παρrsquo αὑτῶι

nada eacute mais hostil a uma poacutelis do que um reie onde ele estaacute natildeo haacute em primeiro lugar uma leipara todos apenas um tem o poder e a lei nele e soacute nele reside

O poder eacute tatildeo vinculado ao monarca que ateacute o seu nome reflete o po-der ldquoCreonterdquo por exemplo vem de Κρέων = Κρήων = Κρείων ldquogovernanterdquo lit ldquoo mais forte o mais poderosordquo O nome encontrado em Eacutesquilo (Sete contra Tebas) e em Soacutefocles (Eacutedipo Rei Eacutedipo em Colono Antiacutegone) tambeacutem estaacute presente nas trageacutedias de Euriacutepides (Medeia Suplicantes Feniacutecias e Al-cmeon em Corinto Fr 75)

A vontade do rei eacute teoricamente absoluta real despoacutetica ldquotiracircnicardquo envolvendo ateacute vida e morte No Belerofonte (Fr 268) o heroacutei afirma que o rei mata muita gente e efetivamente em Bacantes (355ndash7) Penteu ordenou que o ldquosacerdote de Dionisordquo fosse preso e morto por apedrejamento sem ao menos vecirc-lo depois de ouvir dizer o que ele aparentemente havia feito Em Medeia (352ndash4) Creonte coloca Medeia diante dessa opccedilatildeo caso fosse deso-bedecido em Heraclidas (60) o arauto de Euristeu diz que Iolau foi incon-dicionalmente condenado agrave morte por apedrejamento17 e no v 964 coube a Demofonte decidir se o cativo rei de Argos vencido em batalha viveria ou natildeo No Hipoacutelito B (1055ndash6) Teseu condena seu filho Hipoacutelito sem julga-mento e sem nem mesmo ouvir os adivinhos uma das formas de auscultar a vontade dos deuses Na Medeia (274ndash5) Creonte diz a Medeia ἐγὼ βραβεὺς λόγου τοῦδrsquo εἰμί ldquosou eu o aacuterbitro18 dessa leirdquo embora pouco depois (348) ate-nue a afirmaccedilatildeo dizendo que sua vontade nem sempre eacute τυραννικόν ldquotiracirc-nicardquo Em Suplicantes (349ndash50) por outro lado Teseu diz que a poacutelis precisa se curvar aos seus desejos embora coloque tecircnue verniz democraacutetico nessa despoacutetica atitude

17 Em outra passagem dessa trageacutedia (142) o aspecto legal eacute marcado pela palavra νόμος que tem significado semelhante a δίκη ldquouso costume lei decretordquo

18 O vocaacutebulo βραβεὺς designava o aacuterbitro juiz de disputas atleacuteticas e mais tarde aacuterbitros e juiacutezes em geral

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

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mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

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τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

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forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

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de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

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As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 6: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

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e da Ifigecircnia em Taacuteuris (186ndash7) respectivamente ilustram com precisatildeo a metaacutefora

ὅδrsquo] αὐ[τό]ς εἰ χρὴ δοξάσαι τυραννικῶι σ]κ[ή]πτρωι Λύκος πάρεστι σιγῶμεν φίλοι

Eacute ele se devemos conjeturar pelo realcetro Lico em pessoa calemo-nos amigos

οἴμοι τῶν Ἀτρειδᾶν οἴκων ἔρρει φῶς σκῆπτρόν langτrsquorang οἴμοι

a casa dos Atridas ai de mim a luz de seu cetro estaacute arruinada ai de mim

Note-se que na Androcircmaca (23 588 e 1223) o idoso Peleu ainda deti-nha a dignidade real e usava o cetro embora Euriacutepides decirc a entender ao longo da trageacutedia que ele era uma espeacutecie de rei honoraacuterio e que seu neto Neoptoacutelemo cuidava de tudo

Na maioria das vezes Euriacutepides usou a palavra θρόνος ldquotronordquo para designar simples assentos mas em alguns lugares a metaacutefora para a realeza eacute bem clara eg καὶ παρὰ θρόνον ἀρχέταν10 ldquoe junto ao trono realrdquo (Heraclid 753) κοὐ δεῖ τύρανν[α σκῆπτρα καὶ θρόνους λαβεῖν ldquoe natildeo devem ter parte nem no cetro e nem no trono realrdquo (Melanipp Capt Fr 49520) θρόνους ἔχων ldquopossuo o tronordquo (HF 167) As rainhas tambeacutem tinham direito literal de usaacute-lo jaacute que Helena esposa do rei Menelau sentava-se em um trono dentro do palaacutecio real (Or 1408ndash10)

O rei agraves vezes proclamava pessoalmente suas decisotildees (Med 272 351 e 725 Hipp B 973ndash5 e 1084)11 mas dispunha de representante pessoal que atuava agrave distacircncia o arauto para transmitir desejos decisotildees (eg Heraclid Suppl e Hec passim Phaeumlth Fr 771ndash86) e agraves vezes ateacute sua disposiccedilatildeo na-tural Em Heraclidas por exemplo Euristeu eacute representado por um arauto antipaacutetico e agressivo verdadeiro alter ego do soberano argivo12 mas em Troianas temos o oposto Agamecircmnon eacute representado por Taltiacutebio simpaacute-tico e compassivo embora o atrida natildeo fosse sempre assim

10 Nessa passagem em particular Zuntz (1955 118) acredita que se trate de referecircncia ao trono de Zeus

11 Med 272 ἀνεῖπον ldquoeu proclameirdquo em 351 προυννέπω ldquoeu proclamordquo e em 725 προσημαίνω ldquoeu proclamordquo Hipp B 1084 προεννέπω ldquoeu proclamordquo

12 O rei Euristeu que fala no final de Heraclidas eacute bem diferente da imagem passada ao longo da trageacutedia por seu arauto mas lembremos que nesse momento o exeacutercito argivo havia sido vencido e ele capturado

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REQUISITOS IMPORTAcircNCIA E VANTAGENS DA REALEZA

Creusa filha de rei naturalmente considerava importante a exis-tecircncia da realeza δῶμrsquo ἑστιοῦται γᾶ δrsquo ἔχει τυράννους ldquoa casa tem alicerces (= filhos) a terra tem reisrdquo (Ion 1464) mas era a poacutelis que sancionava a rea-leza pelo menos segundo o rei Menelau ao questionar Orestes (Or 437) Ἀγαμέμνονος δὲ σκῆπτρrsquo ἐᾶι σrsquo ἔχειν πόλις ldquoa poacutelis permite que conserves o cetro de Agamecircmnonrdquo

Uma das deferecircncias requeridas pelo rei era a preferecircncia de passa-gem Em Feniacutecias (40) Jocasta conta que o cocheiro de Laio exigiu que Eacutedipo desse passagem ao rei (tirano) embora o episoacutedio natildeo tenha acabado bem A monarquia tinha outros atrativos tanto que Eteacuteocles filho de Eacutedipo pre-feriu se manter na funccedilatildeo de rei em detrimento da seguranccedila de Tebas (Ph 560) Pouco antes (524ndash5) ele afirmara que para obter a tirania valia a pena cometer injusticcedilas (ἀδικεῖν) e que (504ndash8)

ἄστρων ἂν ἔλθοιμrsquo daggerἡλίουdagger πρὸς ἀντολὰς καὶ γῆς ἔνερθε δυνατὸς ὢν δρᾶσαι τάδε τὴν θεῶν μεγίστην ὥστrsquo ἔχειν Τυραννίδα τοῦτrsquo οὖν τὸ χρηστόν μῆτερ οὐχὶ βούλομαι ἄλλωι παρεῖναι μᾶλλον ἢ σώιζειν ἐμοί

iria aonde os astros e o sol nasceme abaixo da terra se isso estivesse em meu poderpara ter Tirania (ou Realeza) a maior das divindadesPor isso matildee natildeo desejo esse bem entregar a outro prefiro ficar com ele

Para Euriacutepides a realeza natildeo envolvia apenas poder e prestiacutegio Jocasta matildee de Eteacuteocles revela que o rei aumenta suas riquezas pessoais (552ndash3 e 566) ie jaacute era rico antes da monarquia e depois ficava ainda mais rico Em Suplicantes (417ndash22) o arauto de Creonte diz a Teseu que eacute preciso ter tempo disponiacutevel e ser rico para governar a poacutelis pois um lavrador po-bre precisa trabalhar e natildeo tem tempo para isso

Natildeo admira portanto que o rei combatesse energicamente os que se opunham a seu poder Ainda em Suplicantes (444ndash6) diz Teseu

ἀνὴρ δὲ βασιλεὺς ἐχθρὸν ἡγεῖται τόδεκαὶ τοὺς ἀρίστους οὕς ltτrsquogt ἂν ἡγῆται φρονεῖν κτείνει δεδοικὼς τῆς τυραννίδος πέρι

e um homem que eacute rei os considera um inimigoe os melhores deles acha prudente matar temendo por seu proacuteprio poder

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A realeza natildeo estava ao alcance de qualquer um somente membros da aristocracia e seus descendentes podiam almejaacute-la No Hipoacutelito B (1283) Aacutertemis qualifica Teseu rei de Atenas de εὐπατρίδην ldquode nobre famiacuteliardquo ou de ldquonobre nascimentordquo13 e na Alceste (681 e 686ndash8) o ex-rei Feres diz ao rei Admeto seu filho

ἐγὼ δέ σrsquo οἴκων δεσπότην ἐγεινάμην κἄθρεψrsquo (hellip)ἃ δrsquo ἡμῶν χρῆν σε τυγχάνειν ἔχεις πολλῶν μὲν ἄρχεις πολυπλέθρους δέ σοι γύας λείψω πατρὸς γὰρ ταὔτrsquo ἐδεξάμην πάρα

eu te gerei e criei para ser o mestre do palaacutecio (hellip)o que tinhas a receber de mim tu tensmuitos governas e terras extensas14 a tideixarei pois isso recebi de meu pai

Na Medeia (916-7) Jasatildeo diz aos filhos esperar que devido ao casa-mento com a filha do rei Creonte τῆσδε γῆς Κορινθίας τὰ πρῶτrsquo ἔσεσθαι eles ldquoseratildeo os primeiros desta terra coriacutentiardquo Ou seja a hereditariedade e a pro-priedade da terra ie a riqueza eram questotildees vinculadas diretamente ao poder real e tambeacutem agrave sua transmissatildeo

Outros tipos de viacutenculo familiar tambeacutem podiam assegurar a trans-missatildeo do poder real No Iacuteon (57ndash73 e 808ndash28) Hermes e o Velho Servidor de Creusa relatam que o aqueu Xuto pelo casamento com Creusa reinava em Atenas Em Feniacutecias (49ndash54) Eacutedipo entatildeo um desconhecido que havia derrotado a Esfinge se tornou rei de Tebas ao casar inadvertidamente com a proacutepria matildee viuacuteva do rei precedente morto em circunstacircncias mal escla-recidas O poder podia portanto passar pela linhagem feminina mas natildeo parava nela era transmitido ateacute o membro masculino mais proacuteximo

O rei podia tambeacutem entregar voluntariamente o poder Em Feniacutecias (71ndash4) Jocasta conta que seus filhos Eteacuteocles e Polinice haviam combinado inicialmente que um cederia o poder ao outro todos os anos ie cada um reinaria por um ano Na Alceste depreende-se que Feres passou o poder ao filho Admeto porque assim quis e o mesmo nos conta Euriacutepides em Bacan-tes (43ndash4) ao descrever a passagem do poder de Cadmo a seu neto Penteu

Κάδμος μὲν οὖν γέρας τε καὶ τυραννίδα Πενθεῖ δίδωσι θυγατρὸς ἐκπεφυκότι

13 Os εὐπατρίδαι lit ldquoeupaacutetridasrdquo eram os membros da velha aristocracia ateniense14 Lit ldquode muitos pletrosrdquo

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A honraria e tambeacutem o poder real Cadmoentrega a Penteu nascido de sua filha

Na mesma poacutelis posteriormente Hermes diz a Lico (Antiacuteope Fr 223108ndash9)

ὧν χρή σrsquo ἀκούειν [καὶ] χθονὸς μοναρχίαν15 ἑκόντα δοῦνα[ι τοῖσδε Κ]αδμείας ἄναξ

eacute preciso que a eles obedeccedilas e a soberania sobre a terrade Cadmo entregues voluntariamente senhor

Havia ainda outras formas de se tornar rei Euriacutepides menciona a curiosa disputa pelo trono de Micenas entre Atreu e Tieste na Ifigecircnia em Taacuteuris (813ndash7) e no Fr 397 b do Tieste

ΑΤΡΕΥΣδείξας γὰρ ἄστρων τὴν ἐναντίαν ὁδὸνδόμους τrsquo ἔσωισα καὶ τύραννος ἱζόμην

ATREUMostrando dos astros o caminho oposto16

salvei minha casa e estabeleci a tirania

E quando eventualmente ocorriam problemas de sucessatildeo que natildeo podiam ser resolvidos pelos meacutetodos tradicionais a sorte decidia em Hera-clidas (34ndash6) por exemplo fala-se em κλήρωι ldquosorteiordquo Note-se poreacutem que provavelmente se trata de mais um anacronismo jaacute que esse era procedi-mento proacuteprio agrave Atenas democraacutetica do seacuteculo v aC

OS PODERES CIVIS DO REI

O poder poliacutetico estaacute concentrado no rei que em princiacutepio o exerce sozinho Em Hipoacutelito B (1015) e em Androcircmaca (366) Hipoacutelito e Menelau respectivamente se referem ao poder real como μοναρχία ldquopoder de um soacuterdquo Segundo Eteacuteocles rei de Tebas todos satildeo escravos com exceccedilatildeo do rei ἄρχειν παρόν μοι τῶιδε δουλεύσω ποτέ ldquose posso governar porque me tornarei escravo delerdquo (Ph 520) Em Suplicantes (410ndash3) o arauto de Creonte diz a

15 Note-se nessa passagem o viacutenculo entre ἄναξ e μοναρχίαν16 A lenda da mudanccedila de curso do sol que antes dessa disputa nascia no oeste eacute descrita por

Apolodoro (Epiacutetome 210-14) e por Higino (Fab 88)

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Teseu que a poacutelis de onde ele vem (Tebas) eacute governada por um soacute homem e natildeo por uma multidatildeo e nos versos 429ndash32 o rei ateniense Teseu sintetiza

οὐδὲν τυράννου δυσμενέστερον πόλει ὅπου τὸ μὲν πρώτιστον οὐκ εἰσὶν νόμοι κοινοί κρατεῖ δrsquo εἷς τὸν νόμον κεκτημένος αὐτὸς παρrsquo αὑτῶι

nada eacute mais hostil a uma poacutelis do que um reie onde ele estaacute natildeo haacute em primeiro lugar uma leipara todos apenas um tem o poder e a lei nele e soacute nele reside

O poder eacute tatildeo vinculado ao monarca que ateacute o seu nome reflete o po-der ldquoCreonterdquo por exemplo vem de Κρέων = Κρήων = Κρείων ldquogovernanterdquo lit ldquoo mais forte o mais poderosordquo O nome encontrado em Eacutesquilo (Sete contra Tebas) e em Soacutefocles (Eacutedipo Rei Eacutedipo em Colono Antiacutegone) tambeacutem estaacute presente nas trageacutedias de Euriacutepides (Medeia Suplicantes Feniacutecias e Al-cmeon em Corinto Fr 75)

A vontade do rei eacute teoricamente absoluta real despoacutetica ldquotiracircnicardquo envolvendo ateacute vida e morte No Belerofonte (Fr 268) o heroacutei afirma que o rei mata muita gente e efetivamente em Bacantes (355ndash7) Penteu ordenou que o ldquosacerdote de Dionisordquo fosse preso e morto por apedrejamento sem ao menos vecirc-lo depois de ouvir dizer o que ele aparentemente havia feito Em Medeia (352ndash4) Creonte coloca Medeia diante dessa opccedilatildeo caso fosse deso-bedecido em Heraclidas (60) o arauto de Euristeu diz que Iolau foi incon-dicionalmente condenado agrave morte por apedrejamento17 e no v 964 coube a Demofonte decidir se o cativo rei de Argos vencido em batalha viveria ou natildeo No Hipoacutelito B (1055ndash6) Teseu condena seu filho Hipoacutelito sem julga-mento e sem nem mesmo ouvir os adivinhos uma das formas de auscultar a vontade dos deuses Na Medeia (274ndash5) Creonte diz a Medeia ἐγὼ βραβεὺς λόγου τοῦδrsquo εἰμί ldquosou eu o aacuterbitro18 dessa leirdquo embora pouco depois (348) ate-nue a afirmaccedilatildeo dizendo que sua vontade nem sempre eacute τυραννικόν ldquotiracirc-nicardquo Em Suplicantes (349ndash50) por outro lado Teseu diz que a poacutelis precisa se curvar aos seus desejos embora coloque tecircnue verniz democraacutetico nessa despoacutetica atitude

17 Em outra passagem dessa trageacutedia (142) o aspecto legal eacute marcado pela palavra νόμος que tem significado semelhante a δίκη ldquouso costume lei decretordquo

18 O vocaacutebulo βραβεὺς designava o aacuterbitro juiz de disputas atleacuteticas e mais tarde aacuterbitros e juiacutezes em geral

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

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mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

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τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

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forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

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de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

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As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 7: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

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REQUISITOS IMPORTAcircNCIA E VANTAGENS DA REALEZA

Creusa filha de rei naturalmente considerava importante a exis-tecircncia da realeza δῶμrsquo ἑστιοῦται γᾶ δrsquo ἔχει τυράννους ldquoa casa tem alicerces (= filhos) a terra tem reisrdquo (Ion 1464) mas era a poacutelis que sancionava a rea-leza pelo menos segundo o rei Menelau ao questionar Orestes (Or 437) Ἀγαμέμνονος δὲ σκῆπτρrsquo ἐᾶι σrsquo ἔχειν πόλις ldquoa poacutelis permite que conserves o cetro de Agamecircmnonrdquo

Uma das deferecircncias requeridas pelo rei era a preferecircncia de passa-gem Em Feniacutecias (40) Jocasta conta que o cocheiro de Laio exigiu que Eacutedipo desse passagem ao rei (tirano) embora o episoacutedio natildeo tenha acabado bem A monarquia tinha outros atrativos tanto que Eteacuteocles filho de Eacutedipo pre-feriu se manter na funccedilatildeo de rei em detrimento da seguranccedila de Tebas (Ph 560) Pouco antes (524ndash5) ele afirmara que para obter a tirania valia a pena cometer injusticcedilas (ἀδικεῖν) e que (504ndash8)

ἄστρων ἂν ἔλθοιμrsquo daggerἡλίουdagger πρὸς ἀντολὰς καὶ γῆς ἔνερθε δυνατὸς ὢν δρᾶσαι τάδε τὴν θεῶν μεγίστην ὥστrsquo ἔχειν Τυραννίδα τοῦτrsquo οὖν τὸ χρηστόν μῆτερ οὐχὶ βούλομαι ἄλλωι παρεῖναι μᾶλλον ἢ σώιζειν ἐμοί

iria aonde os astros e o sol nasceme abaixo da terra se isso estivesse em meu poderpara ter Tirania (ou Realeza) a maior das divindadesPor isso matildee natildeo desejo esse bem entregar a outro prefiro ficar com ele

Para Euriacutepides a realeza natildeo envolvia apenas poder e prestiacutegio Jocasta matildee de Eteacuteocles revela que o rei aumenta suas riquezas pessoais (552ndash3 e 566) ie jaacute era rico antes da monarquia e depois ficava ainda mais rico Em Suplicantes (417ndash22) o arauto de Creonte diz a Teseu que eacute preciso ter tempo disponiacutevel e ser rico para governar a poacutelis pois um lavrador po-bre precisa trabalhar e natildeo tem tempo para isso

Natildeo admira portanto que o rei combatesse energicamente os que se opunham a seu poder Ainda em Suplicantes (444ndash6) diz Teseu

ἀνὴρ δὲ βασιλεὺς ἐχθρὸν ἡγεῖται τόδεκαὶ τοὺς ἀρίστους οὕς ltτrsquogt ἂν ἡγῆται φρονεῖν κτείνει δεδοικὼς τῆς τυραννίδος πέρι

e um homem que eacute rei os considera um inimigoe os melhores deles acha prudente matar temendo por seu proacuteprio poder

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A realeza natildeo estava ao alcance de qualquer um somente membros da aristocracia e seus descendentes podiam almejaacute-la No Hipoacutelito B (1283) Aacutertemis qualifica Teseu rei de Atenas de εὐπατρίδην ldquode nobre famiacuteliardquo ou de ldquonobre nascimentordquo13 e na Alceste (681 e 686ndash8) o ex-rei Feres diz ao rei Admeto seu filho

ἐγὼ δέ σrsquo οἴκων δεσπότην ἐγεινάμην κἄθρεψrsquo (hellip)ἃ δrsquo ἡμῶν χρῆν σε τυγχάνειν ἔχεις πολλῶν μὲν ἄρχεις πολυπλέθρους δέ σοι γύας λείψω πατρὸς γὰρ ταὔτrsquo ἐδεξάμην πάρα

eu te gerei e criei para ser o mestre do palaacutecio (hellip)o que tinhas a receber de mim tu tensmuitos governas e terras extensas14 a tideixarei pois isso recebi de meu pai

Na Medeia (916-7) Jasatildeo diz aos filhos esperar que devido ao casa-mento com a filha do rei Creonte τῆσδε γῆς Κορινθίας τὰ πρῶτrsquo ἔσεσθαι eles ldquoseratildeo os primeiros desta terra coriacutentiardquo Ou seja a hereditariedade e a pro-priedade da terra ie a riqueza eram questotildees vinculadas diretamente ao poder real e tambeacutem agrave sua transmissatildeo

Outros tipos de viacutenculo familiar tambeacutem podiam assegurar a trans-missatildeo do poder real No Iacuteon (57ndash73 e 808ndash28) Hermes e o Velho Servidor de Creusa relatam que o aqueu Xuto pelo casamento com Creusa reinava em Atenas Em Feniacutecias (49ndash54) Eacutedipo entatildeo um desconhecido que havia derrotado a Esfinge se tornou rei de Tebas ao casar inadvertidamente com a proacutepria matildee viuacuteva do rei precedente morto em circunstacircncias mal escla-recidas O poder podia portanto passar pela linhagem feminina mas natildeo parava nela era transmitido ateacute o membro masculino mais proacuteximo

O rei podia tambeacutem entregar voluntariamente o poder Em Feniacutecias (71ndash4) Jocasta conta que seus filhos Eteacuteocles e Polinice haviam combinado inicialmente que um cederia o poder ao outro todos os anos ie cada um reinaria por um ano Na Alceste depreende-se que Feres passou o poder ao filho Admeto porque assim quis e o mesmo nos conta Euriacutepides em Bacan-tes (43ndash4) ao descrever a passagem do poder de Cadmo a seu neto Penteu

Κάδμος μὲν οὖν γέρας τε καὶ τυραννίδα Πενθεῖ δίδωσι θυγατρὸς ἐκπεφυκότι

13 Os εὐπατρίδαι lit ldquoeupaacutetridasrdquo eram os membros da velha aristocracia ateniense14 Lit ldquode muitos pletrosrdquo

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A honraria e tambeacutem o poder real Cadmoentrega a Penteu nascido de sua filha

Na mesma poacutelis posteriormente Hermes diz a Lico (Antiacuteope Fr 223108ndash9)

ὧν χρή σrsquo ἀκούειν [καὶ] χθονὸς μοναρχίαν15 ἑκόντα δοῦνα[ι τοῖσδε Κ]αδμείας ἄναξ

eacute preciso que a eles obedeccedilas e a soberania sobre a terrade Cadmo entregues voluntariamente senhor

Havia ainda outras formas de se tornar rei Euriacutepides menciona a curiosa disputa pelo trono de Micenas entre Atreu e Tieste na Ifigecircnia em Taacuteuris (813ndash7) e no Fr 397 b do Tieste

ΑΤΡΕΥΣδείξας γὰρ ἄστρων τὴν ἐναντίαν ὁδὸνδόμους τrsquo ἔσωισα καὶ τύραννος ἱζόμην

ATREUMostrando dos astros o caminho oposto16

salvei minha casa e estabeleci a tirania

E quando eventualmente ocorriam problemas de sucessatildeo que natildeo podiam ser resolvidos pelos meacutetodos tradicionais a sorte decidia em Hera-clidas (34ndash6) por exemplo fala-se em κλήρωι ldquosorteiordquo Note-se poreacutem que provavelmente se trata de mais um anacronismo jaacute que esse era procedi-mento proacuteprio agrave Atenas democraacutetica do seacuteculo v aC

OS PODERES CIVIS DO REI

O poder poliacutetico estaacute concentrado no rei que em princiacutepio o exerce sozinho Em Hipoacutelito B (1015) e em Androcircmaca (366) Hipoacutelito e Menelau respectivamente se referem ao poder real como μοναρχία ldquopoder de um soacuterdquo Segundo Eteacuteocles rei de Tebas todos satildeo escravos com exceccedilatildeo do rei ἄρχειν παρόν μοι τῶιδε δουλεύσω ποτέ ldquose posso governar porque me tornarei escravo delerdquo (Ph 520) Em Suplicantes (410ndash3) o arauto de Creonte diz a

15 Note-se nessa passagem o viacutenculo entre ἄναξ e μοναρχίαν16 A lenda da mudanccedila de curso do sol que antes dessa disputa nascia no oeste eacute descrita por

Apolodoro (Epiacutetome 210-14) e por Higino (Fab 88)

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Teseu que a poacutelis de onde ele vem (Tebas) eacute governada por um soacute homem e natildeo por uma multidatildeo e nos versos 429ndash32 o rei ateniense Teseu sintetiza

οὐδὲν τυράννου δυσμενέστερον πόλει ὅπου τὸ μὲν πρώτιστον οὐκ εἰσὶν νόμοι κοινοί κρατεῖ δrsquo εἷς τὸν νόμον κεκτημένος αὐτὸς παρrsquo αὑτῶι

nada eacute mais hostil a uma poacutelis do que um reie onde ele estaacute natildeo haacute em primeiro lugar uma leipara todos apenas um tem o poder e a lei nele e soacute nele reside

O poder eacute tatildeo vinculado ao monarca que ateacute o seu nome reflete o po-der ldquoCreonterdquo por exemplo vem de Κρέων = Κρήων = Κρείων ldquogovernanterdquo lit ldquoo mais forte o mais poderosordquo O nome encontrado em Eacutesquilo (Sete contra Tebas) e em Soacutefocles (Eacutedipo Rei Eacutedipo em Colono Antiacutegone) tambeacutem estaacute presente nas trageacutedias de Euriacutepides (Medeia Suplicantes Feniacutecias e Al-cmeon em Corinto Fr 75)

A vontade do rei eacute teoricamente absoluta real despoacutetica ldquotiracircnicardquo envolvendo ateacute vida e morte No Belerofonte (Fr 268) o heroacutei afirma que o rei mata muita gente e efetivamente em Bacantes (355ndash7) Penteu ordenou que o ldquosacerdote de Dionisordquo fosse preso e morto por apedrejamento sem ao menos vecirc-lo depois de ouvir dizer o que ele aparentemente havia feito Em Medeia (352ndash4) Creonte coloca Medeia diante dessa opccedilatildeo caso fosse deso-bedecido em Heraclidas (60) o arauto de Euristeu diz que Iolau foi incon-dicionalmente condenado agrave morte por apedrejamento17 e no v 964 coube a Demofonte decidir se o cativo rei de Argos vencido em batalha viveria ou natildeo No Hipoacutelito B (1055ndash6) Teseu condena seu filho Hipoacutelito sem julga-mento e sem nem mesmo ouvir os adivinhos uma das formas de auscultar a vontade dos deuses Na Medeia (274ndash5) Creonte diz a Medeia ἐγὼ βραβεὺς λόγου τοῦδrsquo εἰμί ldquosou eu o aacuterbitro18 dessa leirdquo embora pouco depois (348) ate-nue a afirmaccedilatildeo dizendo que sua vontade nem sempre eacute τυραννικόν ldquotiracirc-nicardquo Em Suplicantes (349ndash50) por outro lado Teseu diz que a poacutelis precisa se curvar aos seus desejos embora coloque tecircnue verniz democraacutetico nessa despoacutetica atitude

17 Em outra passagem dessa trageacutedia (142) o aspecto legal eacute marcado pela palavra νόμος que tem significado semelhante a δίκη ldquouso costume lei decretordquo

18 O vocaacutebulo βραβεὺς designava o aacuterbitro juiz de disputas atleacuteticas e mais tarde aacuterbitros e juiacutezes em geral

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

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mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

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τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

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forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

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de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

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As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 8: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

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A realeza natildeo estava ao alcance de qualquer um somente membros da aristocracia e seus descendentes podiam almejaacute-la No Hipoacutelito B (1283) Aacutertemis qualifica Teseu rei de Atenas de εὐπατρίδην ldquode nobre famiacuteliardquo ou de ldquonobre nascimentordquo13 e na Alceste (681 e 686ndash8) o ex-rei Feres diz ao rei Admeto seu filho

ἐγὼ δέ σrsquo οἴκων δεσπότην ἐγεινάμην κἄθρεψrsquo (hellip)ἃ δrsquo ἡμῶν χρῆν σε τυγχάνειν ἔχεις πολλῶν μὲν ἄρχεις πολυπλέθρους δέ σοι γύας λείψω πατρὸς γὰρ ταὔτrsquo ἐδεξάμην πάρα

eu te gerei e criei para ser o mestre do palaacutecio (hellip)o que tinhas a receber de mim tu tensmuitos governas e terras extensas14 a tideixarei pois isso recebi de meu pai

Na Medeia (916-7) Jasatildeo diz aos filhos esperar que devido ao casa-mento com a filha do rei Creonte τῆσδε γῆς Κορινθίας τὰ πρῶτrsquo ἔσεσθαι eles ldquoseratildeo os primeiros desta terra coriacutentiardquo Ou seja a hereditariedade e a pro-priedade da terra ie a riqueza eram questotildees vinculadas diretamente ao poder real e tambeacutem agrave sua transmissatildeo

Outros tipos de viacutenculo familiar tambeacutem podiam assegurar a trans-missatildeo do poder real No Iacuteon (57ndash73 e 808ndash28) Hermes e o Velho Servidor de Creusa relatam que o aqueu Xuto pelo casamento com Creusa reinava em Atenas Em Feniacutecias (49ndash54) Eacutedipo entatildeo um desconhecido que havia derrotado a Esfinge se tornou rei de Tebas ao casar inadvertidamente com a proacutepria matildee viuacuteva do rei precedente morto em circunstacircncias mal escla-recidas O poder podia portanto passar pela linhagem feminina mas natildeo parava nela era transmitido ateacute o membro masculino mais proacuteximo

O rei podia tambeacutem entregar voluntariamente o poder Em Feniacutecias (71ndash4) Jocasta conta que seus filhos Eteacuteocles e Polinice haviam combinado inicialmente que um cederia o poder ao outro todos os anos ie cada um reinaria por um ano Na Alceste depreende-se que Feres passou o poder ao filho Admeto porque assim quis e o mesmo nos conta Euriacutepides em Bacan-tes (43ndash4) ao descrever a passagem do poder de Cadmo a seu neto Penteu

Κάδμος μὲν οὖν γέρας τε καὶ τυραννίδα Πενθεῖ δίδωσι θυγατρὸς ἐκπεφυκότι

13 Os εὐπατρίδαι lit ldquoeupaacutetridasrdquo eram os membros da velha aristocracia ateniense14 Lit ldquode muitos pletrosrdquo

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A honraria e tambeacutem o poder real Cadmoentrega a Penteu nascido de sua filha

Na mesma poacutelis posteriormente Hermes diz a Lico (Antiacuteope Fr 223108ndash9)

ὧν χρή σrsquo ἀκούειν [καὶ] χθονὸς μοναρχίαν15 ἑκόντα δοῦνα[ι τοῖσδε Κ]αδμείας ἄναξ

eacute preciso que a eles obedeccedilas e a soberania sobre a terrade Cadmo entregues voluntariamente senhor

Havia ainda outras formas de se tornar rei Euriacutepides menciona a curiosa disputa pelo trono de Micenas entre Atreu e Tieste na Ifigecircnia em Taacuteuris (813ndash7) e no Fr 397 b do Tieste

ΑΤΡΕΥΣδείξας γὰρ ἄστρων τὴν ἐναντίαν ὁδὸνδόμους τrsquo ἔσωισα καὶ τύραννος ἱζόμην

ATREUMostrando dos astros o caminho oposto16

salvei minha casa e estabeleci a tirania

E quando eventualmente ocorriam problemas de sucessatildeo que natildeo podiam ser resolvidos pelos meacutetodos tradicionais a sorte decidia em Hera-clidas (34ndash6) por exemplo fala-se em κλήρωι ldquosorteiordquo Note-se poreacutem que provavelmente se trata de mais um anacronismo jaacute que esse era procedi-mento proacuteprio agrave Atenas democraacutetica do seacuteculo v aC

OS PODERES CIVIS DO REI

O poder poliacutetico estaacute concentrado no rei que em princiacutepio o exerce sozinho Em Hipoacutelito B (1015) e em Androcircmaca (366) Hipoacutelito e Menelau respectivamente se referem ao poder real como μοναρχία ldquopoder de um soacuterdquo Segundo Eteacuteocles rei de Tebas todos satildeo escravos com exceccedilatildeo do rei ἄρχειν παρόν μοι τῶιδε δουλεύσω ποτέ ldquose posso governar porque me tornarei escravo delerdquo (Ph 520) Em Suplicantes (410ndash3) o arauto de Creonte diz a

15 Note-se nessa passagem o viacutenculo entre ἄναξ e μοναρχίαν16 A lenda da mudanccedila de curso do sol que antes dessa disputa nascia no oeste eacute descrita por

Apolodoro (Epiacutetome 210-14) e por Higino (Fab 88)

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Teseu que a poacutelis de onde ele vem (Tebas) eacute governada por um soacute homem e natildeo por uma multidatildeo e nos versos 429ndash32 o rei ateniense Teseu sintetiza

οὐδὲν τυράννου δυσμενέστερον πόλει ὅπου τὸ μὲν πρώτιστον οὐκ εἰσὶν νόμοι κοινοί κρατεῖ δrsquo εἷς τὸν νόμον κεκτημένος αὐτὸς παρrsquo αὑτῶι

nada eacute mais hostil a uma poacutelis do que um reie onde ele estaacute natildeo haacute em primeiro lugar uma leipara todos apenas um tem o poder e a lei nele e soacute nele reside

O poder eacute tatildeo vinculado ao monarca que ateacute o seu nome reflete o po-der ldquoCreonterdquo por exemplo vem de Κρέων = Κρήων = Κρείων ldquogovernanterdquo lit ldquoo mais forte o mais poderosordquo O nome encontrado em Eacutesquilo (Sete contra Tebas) e em Soacutefocles (Eacutedipo Rei Eacutedipo em Colono Antiacutegone) tambeacutem estaacute presente nas trageacutedias de Euriacutepides (Medeia Suplicantes Feniacutecias e Al-cmeon em Corinto Fr 75)

A vontade do rei eacute teoricamente absoluta real despoacutetica ldquotiracircnicardquo envolvendo ateacute vida e morte No Belerofonte (Fr 268) o heroacutei afirma que o rei mata muita gente e efetivamente em Bacantes (355ndash7) Penteu ordenou que o ldquosacerdote de Dionisordquo fosse preso e morto por apedrejamento sem ao menos vecirc-lo depois de ouvir dizer o que ele aparentemente havia feito Em Medeia (352ndash4) Creonte coloca Medeia diante dessa opccedilatildeo caso fosse deso-bedecido em Heraclidas (60) o arauto de Euristeu diz que Iolau foi incon-dicionalmente condenado agrave morte por apedrejamento17 e no v 964 coube a Demofonte decidir se o cativo rei de Argos vencido em batalha viveria ou natildeo No Hipoacutelito B (1055ndash6) Teseu condena seu filho Hipoacutelito sem julga-mento e sem nem mesmo ouvir os adivinhos uma das formas de auscultar a vontade dos deuses Na Medeia (274ndash5) Creonte diz a Medeia ἐγὼ βραβεὺς λόγου τοῦδrsquo εἰμί ldquosou eu o aacuterbitro18 dessa leirdquo embora pouco depois (348) ate-nue a afirmaccedilatildeo dizendo que sua vontade nem sempre eacute τυραννικόν ldquotiracirc-nicardquo Em Suplicantes (349ndash50) por outro lado Teseu diz que a poacutelis precisa se curvar aos seus desejos embora coloque tecircnue verniz democraacutetico nessa despoacutetica atitude

17 Em outra passagem dessa trageacutedia (142) o aspecto legal eacute marcado pela palavra νόμος que tem significado semelhante a δίκη ldquouso costume lei decretordquo

18 O vocaacutebulo βραβεὺς designava o aacuterbitro juiz de disputas atleacuteticas e mais tarde aacuterbitros e juiacutezes em geral

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

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mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

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τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

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forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

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de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

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As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 9: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

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A honraria e tambeacutem o poder real Cadmoentrega a Penteu nascido de sua filha

Na mesma poacutelis posteriormente Hermes diz a Lico (Antiacuteope Fr 223108ndash9)

ὧν χρή σrsquo ἀκούειν [καὶ] χθονὸς μοναρχίαν15 ἑκόντα δοῦνα[ι τοῖσδε Κ]αδμείας ἄναξ

eacute preciso que a eles obedeccedilas e a soberania sobre a terrade Cadmo entregues voluntariamente senhor

Havia ainda outras formas de se tornar rei Euriacutepides menciona a curiosa disputa pelo trono de Micenas entre Atreu e Tieste na Ifigecircnia em Taacuteuris (813ndash7) e no Fr 397 b do Tieste

ΑΤΡΕΥΣδείξας γὰρ ἄστρων τὴν ἐναντίαν ὁδὸνδόμους τrsquo ἔσωισα καὶ τύραννος ἱζόμην

ATREUMostrando dos astros o caminho oposto16

salvei minha casa e estabeleci a tirania

E quando eventualmente ocorriam problemas de sucessatildeo que natildeo podiam ser resolvidos pelos meacutetodos tradicionais a sorte decidia em Hera-clidas (34ndash6) por exemplo fala-se em κλήρωι ldquosorteiordquo Note-se poreacutem que provavelmente se trata de mais um anacronismo jaacute que esse era procedi-mento proacuteprio agrave Atenas democraacutetica do seacuteculo v aC

OS PODERES CIVIS DO REI

O poder poliacutetico estaacute concentrado no rei que em princiacutepio o exerce sozinho Em Hipoacutelito B (1015) e em Androcircmaca (366) Hipoacutelito e Menelau respectivamente se referem ao poder real como μοναρχία ldquopoder de um soacuterdquo Segundo Eteacuteocles rei de Tebas todos satildeo escravos com exceccedilatildeo do rei ἄρχειν παρόν μοι τῶιδε δουλεύσω ποτέ ldquose posso governar porque me tornarei escravo delerdquo (Ph 520) Em Suplicantes (410ndash3) o arauto de Creonte diz a

15 Note-se nessa passagem o viacutenculo entre ἄναξ e μοναρχίαν16 A lenda da mudanccedila de curso do sol que antes dessa disputa nascia no oeste eacute descrita por

Apolodoro (Epiacutetome 210-14) e por Higino (Fab 88)

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Teseu que a poacutelis de onde ele vem (Tebas) eacute governada por um soacute homem e natildeo por uma multidatildeo e nos versos 429ndash32 o rei ateniense Teseu sintetiza

οὐδὲν τυράννου δυσμενέστερον πόλει ὅπου τὸ μὲν πρώτιστον οὐκ εἰσὶν νόμοι κοινοί κρατεῖ δrsquo εἷς τὸν νόμον κεκτημένος αὐτὸς παρrsquo αὑτῶι

nada eacute mais hostil a uma poacutelis do que um reie onde ele estaacute natildeo haacute em primeiro lugar uma leipara todos apenas um tem o poder e a lei nele e soacute nele reside

O poder eacute tatildeo vinculado ao monarca que ateacute o seu nome reflete o po-der ldquoCreonterdquo por exemplo vem de Κρέων = Κρήων = Κρείων ldquogovernanterdquo lit ldquoo mais forte o mais poderosordquo O nome encontrado em Eacutesquilo (Sete contra Tebas) e em Soacutefocles (Eacutedipo Rei Eacutedipo em Colono Antiacutegone) tambeacutem estaacute presente nas trageacutedias de Euriacutepides (Medeia Suplicantes Feniacutecias e Al-cmeon em Corinto Fr 75)

A vontade do rei eacute teoricamente absoluta real despoacutetica ldquotiracircnicardquo envolvendo ateacute vida e morte No Belerofonte (Fr 268) o heroacutei afirma que o rei mata muita gente e efetivamente em Bacantes (355ndash7) Penteu ordenou que o ldquosacerdote de Dionisordquo fosse preso e morto por apedrejamento sem ao menos vecirc-lo depois de ouvir dizer o que ele aparentemente havia feito Em Medeia (352ndash4) Creonte coloca Medeia diante dessa opccedilatildeo caso fosse deso-bedecido em Heraclidas (60) o arauto de Euristeu diz que Iolau foi incon-dicionalmente condenado agrave morte por apedrejamento17 e no v 964 coube a Demofonte decidir se o cativo rei de Argos vencido em batalha viveria ou natildeo No Hipoacutelito B (1055ndash6) Teseu condena seu filho Hipoacutelito sem julga-mento e sem nem mesmo ouvir os adivinhos uma das formas de auscultar a vontade dos deuses Na Medeia (274ndash5) Creonte diz a Medeia ἐγὼ βραβεὺς λόγου τοῦδrsquo εἰμί ldquosou eu o aacuterbitro18 dessa leirdquo embora pouco depois (348) ate-nue a afirmaccedilatildeo dizendo que sua vontade nem sempre eacute τυραννικόν ldquotiracirc-nicardquo Em Suplicantes (349ndash50) por outro lado Teseu diz que a poacutelis precisa se curvar aos seus desejos embora coloque tecircnue verniz democraacutetico nessa despoacutetica atitude

17 Em outra passagem dessa trageacutedia (142) o aspecto legal eacute marcado pela palavra νόμος que tem significado semelhante a δίκη ldquouso costume lei decretordquo

18 O vocaacutebulo βραβεὺς designava o aacuterbitro juiz de disputas atleacuteticas e mais tarde aacuterbitros e juiacutezes em geral

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 69

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

70 WILSON ALVES RIBEIRO JR

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 71

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

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de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

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As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 10: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

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Teseu que a poacutelis de onde ele vem (Tebas) eacute governada por um soacute homem e natildeo por uma multidatildeo e nos versos 429ndash32 o rei ateniense Teseu sintetiza

οὐδὲν τυράννου δυσμενέστερον πόλει ὅπου τὸ μὲν πρώτιστον οὐκ εἰσὶν νόμοι κοινοί κρατεῖ δrsquo εἷς τὸν νόμον κεκτημένος αὐτὸς παρrsquo αὑτῶι

nada eacute mais hostil a uma poacutelis do que um reie onde ele estaacute natildeo haacute em primeiro lugar uma leipara todos apenas um tem o poder e a lei nele e soacute nele reside

O poder eacute tatildeo vinculado ao monarca que ateacute o seu nome reflete o po-der ldquoCreonterdquo por exemplo vem de Κρέων = Κρήων = Κρείων ldquogovernanterdquo lit ldquoo mais forte o mais poderosordquo O nome encontrado em Eacutesquilo (Sete contra Tebas) e em Soacutefocles (Eacutedipo Rei Eacutedipo em Colono Antiacutegone) tambeacutem estaacute presente nas trageacutedias de Euriacutepides (Medeia Suplicantes Feniacutecias e Al-cmeon em Corinto Fr 75)

A vontade do rei eacute teoricamente absoluta real despoacutetica ldquotiracircnicardquo envolvendo ateacute vida e morte No Belerofonte (Fr 268) o heroacutei afirma que o rei mata muita gente e efetivamente em Bacantes (355ndash7) Penteu ordenou que o ldquosacerdote de Dionisordquo fosse preso e morto por apedrejamento sem ao menos vecirc-lo depois de ouvir dizer o que ele aparentemente havia feito Em Medeia (352ndash4) Creonte coloca Medeia diante dessa opccedilatildeo caso fosse deso-bedecido em Heraclidas (60) o arauto de Euristeu diz que Iolau foi incon-dicionalmente condenado agrave morte por apedrejamento17 e no v 964 coube a Demofonte decidir se o cativo rei de Argos vencido em batalha viveria ou natildeo No Hipoacutelito B (1055ndash6) Teseu condena seu filho Hipoacutelito sem julga-mento e sem nem mesmo ouvir os adivinhos uma das formas de auscultar a vontade dos deuses Na Medeia (274ndash5) Creonte diz a Medeia ἐγὼ βραβεὺς λόγου τοῦδrsquo εἰμί ldquosou eu o aacuterbitro18 dessa leirdquo embora pouco depois (348) ate-nue a afirmaccedilatildeo dizendo que sua vontade nem sempre eacute τυραννικόν ldquotiracirc-nicardquo Em Suplicantes (349ndash50) por outro lado Teseu diz que a poacutelis precisa se curvar aos seus desejos embora coloque tecircnue verniz democraacutetico nessa despoacutetica atitude

17 Em outra passagem dessa trageacutedia (142) o aspecto legal eacute marcado pela palavra νόμος que tem significado semelhante a δίκη ldquouso costume lei decretordquo

18 O vocaacutebulo βραβεὺς designava o aacuterbitro juiz de disputas atleacuteticas e mais tarde aacuterbitros e juiacutezes em geral

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

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mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

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τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 71

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forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

72 WILSON ALVES RIBEIRO JR

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 73

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

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O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 67

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δόξαι δὲ χρήιζω καὶ πόλει πάσηι τόδε δόξει δrsquo ἐμοῦ θέλοντος

Desejo que a poacutelis toda ratifique issotambeacutem pois eacute o que eu quero

O cumprimento da vontade real envolvia algumas vezes o uso da forccedila Em Heraclidas (105ndash6) o arauto de Euristeu diz que poderaacute usar forccedila contra Iolau e os filhos de Heacuteracles e antes nos versos 65ndash76 e 127ndash9 jaacute havia tentado arrancar Iolau do altar pela violecircncia em Feniacutecias (1660) o Creonte de Tebas ordena que agarrem Antiacutegona e a levem para casa em Medeia (335) o Creonte de Corinto diz a Medeia que ἐξ ὀπαδῶν χειρὸς ὠσθήσηι βίαι ldquopela matildeo de meu atendentes seraacutes expulsa agrave forccedilardquo e em Bacantes (434ndash42) um servo conta a Penteu que conforme ordens dele caccedilou e prendeu o forasteiro No Hipoacutelito B (1084) Teseu ordena aos seus escravos que expul-sem Hipoacutelito e pouco antes (974ndash5) jaacute dissera que Hipoacutelito natildeo poderia ir nem para Atenas e nem εἰς ὅρους γῆς ἧς ἐμὸν κρατεῖ δόρυ ldquoaos limites da terra submetida por minha lanccedilardquo

O rei decidia portanto quem podia ou natildeo ficar na poacutelis admitindo novos cidadatildeos ou expulsando quem laacute vivia Em Heraclidas (153ndash4) Demo-fonte podia receber os filhos de Heacuteracles ldquonos seus domiacuteniosrdquo (ἐς γαῖαν) ou mandaacute-los embora No Hipoacutelito B (893ndash8) o rei Teseu expulsa de Trezena e de Atenas seu filho Hipoacutelito e em Medeia (272ndash6 352ndash4 e 706) Creonte exila Medeia e seus filhos de Corinto embora nenhum deles fosse originalmente cidadatildeo coriacutentio Esse poder aparentemente se estendia aos suacuteditos que esta-vam fora da sua terra jaacute que em Heraclidas (99ndash100) Euristeu exigiu a devolu-ccedilatildeo de Iolau e dos filhos de Heacuteracles a Argos Nos versos 68 e 105 seu arauto explicou que eles pertenciam a Euristeu eram propriedade dele mas nos ver-sos 139ndash43 diante do rei Demofonte procurou levar a coisa para o lado legal afirmando que se tratava de fugitivos condenados agrave morte pela lei de Argos

O poder do rei se estendia agraves posses e do ponto de vista sexual agraves filhas dos cidadatildeos Em Suplicantes (450-4) Teseu diz ao arauto de Creonte

κτᾶσθαι δὲ πλοῦτον καὶ βίον τί δεῖ τέκνοις ὡς τῶι τυράννωι πλείονrsquo ἐκμοχθῆι βίον ἢ παρθενεύειν παῖδας ἐν δόμοις καλῶς τερπνὰς τυράννοις ἡδονὰς ὅταν θέληι δάκρυα δrsquo ἑτοιμάζουσι

eacute preciso adquirir riquezas e bens para os filhos 450e aumentar a riqueza do rei com seus bens Para que criar donzelas em casa virtuosamenteafim de que reis tenham seus prazeres sempre que queremprovocando laacutegrimas nos que entregam [as donzelas]

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

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Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

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τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

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forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

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de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

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As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

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Na praacutetica havia limites ao poder real e alguns atos do rei podiam ser criticados e eventualmente considerados desmedidos Em Bacantes (671) por exemplo o Mensageiro disse a Penteu que temia τὸ βασιλικὸν λίαν o ldquoex-cesso do poder realrdquo e em Feniacutecias (1651) Antiacutegone diz a Creonte que o decreto (δίκην)19 que proibia o enterro de Polinice natildeo seguia o costume (οὐκ ἔννομον) No Fr 172 da trageacutedia Antiacutegone algueacutem afirma

οὔτrsquo εἰκὸς ἄρχειν οὔτε χρῆν εἶναι νόμον τύραννον εἶναι μωρία δὲ καὶ θέλειν lang rangὃς τῶν ὁμοίων βούλεται κρατεῖν μόνος

natildeo conveacutem nem governar e nem querer reinar sem lei e eacute tambeacutem loucura almejarlang rangaquele que deseja governar sozinho os seus iguais

As decisotildees do rei podiam ser eventualmente criticadas e ateacute revo-gadas ou moduladas por ele apoacutes suacuteplica ou interferecircncia de parentes Na Medeia (349ndash55) Creonte estendeu um pouco o prazo de permanecircncia da exilada Medeia em Corinto apoacutes suacuteplica formal nessa mesma trageacutedia Ja-satildeo tentou fazer o rei revogar o exiacutelio dos seus filhos atraveacutes da intercessatildeo da sua nova esposa filha dele que poderia abrandar o rei (939ndash44) e ela realmente conseguiu fazecirc-lo (1002ndash4) E tambeacutem era possiacutevel reclamar Em Hipoacutelito B (983ndash1035) Hipoacutelito tenta se defender perante Teseu depois de condenado ao exiacutelio e na Alceste (677ndash8) o ex-Rei Feres alega durante aacutecida discussatildeo com o filho e rei Admeto

οὐκ οἶσθα Θεσσαλόν με κἀπὸ Θεσσαλοῦ πατρὸς γεγῶτα γνησίως ἐλεύθερον

natildeo sabes que sou Tessaliano de pai Tessaliano legitimamente nascido e livre

Os nobres que viviam na poacutelis sem nela ter nascido no entanto natildeo tinham liberdade para falar (Ph 391)

A possibilidade de contestar ou de pelo se queixar das decisotildees reais implica na existecircncia de uma espeacutecie de coacutedigo de conduta provavelmente estabelecido pelo costume que guiava os atos do rei Na Antiacutegone (Fr 171) Euriacutepides conta de forma gnocircmica que δεῖ τοῖσι πολλοῖς τὸν τύραννον ἁνδάνειν ldquoeacute preciso que o rei agrade muitas pessoas (=a multidatildeo)rdquo O rei certa-

19 Δίκη originalmente ldquocostume usordquo e tambeacutem ldquopena sentenccedilardquo mais tarde o resultado de um julgamento ou decisatildeo legal (decreto)

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 69

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mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

70 WILSON ALVES RIBEIRO JR

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 71

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

72 WILSON ALVES RIBEIRO JR

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 73

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 13: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 69

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

mente natildeo podia ignorar as disposiccedilotildees divinas como fez Teseu no Hipoacutelito B (1055ndash6) em Heraclidas (340 e 400ndash5) antes da batalha entre atenienses e argivos o rei Demofonte corretamente consultou oraacuteculos e ofereceu sacri-fiacutecios para verificar as disposiccedilotildees das divindades e pouco depois (411ndash3) afirmou que natildeo podia obrigar um cidadatildeo ateniense a ceder um de seus filhos para ser sacrificado aos deuses em prol da seguranccedila da poacutelis

Em uma das passagens mais interessantes da trageacutedia Erecteu (Fr 363) o rei ateniense daacute conselhos e seu filho e sucessor antes de entrar em batalha para o caso de perecer O texto conservado por Estobeu (33) eacute um pouco confuso devido ao mau estado de conservaccedilatildeo mas eacute possiacutevel dis-tinguir os conselhos de pai dos conselhos de rei Selecionei os nove dizeres que me parecem mais aplicaacuteveis ao poder real

1 manter a doccedilura (= ldquotemperamento gentilrdquo φρένας ἠπίους)2 para ser respeitado dar partes iguais ie tratar igualmente ricos e

pobres3 procurar enriquecer mas sem adquirir bens por meio de injusti-

ccedilas a fim de viver longamente no palaacutecio4 ter como amigos os que natildeo concordam com tudo e evitar os que

soacute procuram comprazecirc-lo5 procurar a companhia dos mais velhos 6 evitar os dissolutos que soacute procuram prazeres faacuteceis efecircmeros7 jamais usar o poder real para satisfazer seus prazeres8 natildeo desonrar os filhos de gente pobre e honesta9 natildeo permitir que os maus prosperem na poacutelis

O rei tinha portanto deveres e obrigaccedilotildees O mais importante deles era ser o mais patriota dos cidadatildeos e se necessaacuterio fazer sacrifiacutecios pes-soais em prol da poacutelis Na Medeia (329) por exemplo Creonte afirma que a paacutetria depois de seus filhos eacute o que ele mais aprecia e em Feniacutecias (560ndash1) Jocasta diz que entre ser rei e salvar a poacutelis correta eacute a segunda opccedilatildeo O test i do Erecteu (= Fr 349ndash70) conta que quando Erecteu era rei (βασιλεύς) de Atenas o oraacuteculo de Delfos vaticinou que ele derrotaria os exeacutercitos que ameaccedilavam a poacutelis se sacrificasse sua filha e ele assim o fez Em Heraclidas o rei Demofonte esteve diante de um dilema parecido mas natildeo cogitou sa-crificar sua filha ou a de outro cidadatildeo ateniense para defender cidadatildeos de Argos que embora acolhidos como suplicantes natildeo eram atenienses20 No Iacuteon (621ndash3) Iacuteon pondera

20 A filha de Heacuteracles se ofereceu no entanto para assegurar a vitoacuteria ateniense e a salvaccedilatildeo de seus irmatildeos resolvendo o impasse traacutegico

70 WILSON ALVES RIBEIRO JR

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 71

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

72 WILSON ALVES RIBEIRO JR

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 73

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 14: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

70 WILSON ALVES RIBEIRO JR

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

τυραννίδος δὲ τῆς μάτην αἰνουμένης τὸ μὲν πρόσωπον ἡδύ τἀν δόμοισι δὲ λυπηρά

A realeza eacute exaltada sem razatildeo eembora a fachada seja agradaacutevel dentro do palaacutecio haacute tristezas

O poder monaacuterquico podia por outro lado subir agrave cabeccedila do rei e ser ne-fasto aos cidadatildeos Mas havia perigo para ambos os ladoshellip No Hipoacutelito B (1013ndash5) Hipoacutelito diz a Teseu

ἀλλrsquo ὡς τυραννεῖν ἡδὺ τοῖσι σώφροσιν daggerἥκιστά γrsquo εἰ μὴdagger τὰς φρένας διέφθορεν θνητῶν ὅσοισιν ἁνδάνει μοναρχία

mas ser rei (= tirano) natildeo seria doce para os saacutebiosde modo algum se isso destruir a mentedos mortais que se comprazem com o poder uacutenico

E em Peliacuteades (Fr 605) diz o rei Peacutelias a Medeia21

τὸ δrsquo ἔσχατον δὴ τοῦτο θαυμαστὸν βροτοῖς τυραννίς οὐχ εὕροις ἂν ἀθλιώτερον φίλους τε πορθεῖν καὶ κατακτανεῖν χρεών πλεῖστος φόβος πρόσεστι μὴ δράσωσί τι

Isso que os mortais mais admiram a tirania (= realeza) natildeo se acha nada mais lamentaacutevelEacute necessaacuterio arruinar e ateacute matar os amigose se vive com muito medo de que eles faccedilam algo

ALGUNS ASPECTOS MILITARES DA REALEZA

O rei era o comandante do exeacutercito da poacutelis Em Feniacutecias Eteacuteocles lidera as forccedilas tebanas e embora discuta o assunto com Creonte cabe a ele decidir a estrateacutegia da batalha Por falar em estrateacutegia em Heraclidas 391 haacute um anacronismo o rei Demofonte se diz στρατηγός palavra que geralmente se traduz por ldquogeneralrdquo Ele comanda as tropas de Atenas e Euristeu as de Argos Na Androcircmaca (759ndash60) Peleu ainda controla o exeacutercito da Ftia e na Ifigecircnia em Aacuteulis o rei Agamecircmnon chefia suas forccedilas e todas as outras

21 A atribuiccedilatildeo do fragmento a esses personagens eacute conjetural (Van Looy 2002 526)

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 71

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

72 WILSON ALVES RIBEIRO JR

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 73

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

Page 15: O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES - warj.med.brwarj.med.br/pdf/poder-rei.pdf · O PODER DO REI NA TRAGÉDIA DE EURÍPIDES Wilson Alves Ribeiro Jr. * Universidade de São Paulo

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 71

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

forccedilas gregas que se dirigem a Troia No Heacuteracles (1163ndash71) finalmente o rei Teseu chega a Tebas com um exeacutercito ateniense para ajudar Heacuteracles

Na vida real e tambeacutem na trageacutedia guerras podiam ser tanto agres-sivas quanto defensivas como se vecirc no embate entre Demofonte e Euristeu em Heraclidas No Beleronte (Fr 2865ndash6) diz o heroacutei

φήμrsquo ἐγὼ τυραννίδα κτείνειν τε πλείστους κτημάτων τrsquo ἀποστερεῖν ὅρκους τε παραβαίνοντας ἐκπορθεῖν πόλεις

E eu afirmo que a realeza (=tirania)mata muita gente espolia as possese viola juramentos saqueando poacuteleis

Em Suplicantes Teseu comanda o exeacutercito ateniense contra os teba-nos que natildeo querem permitir o enterro de Polinice e dos heroacuteis argivos der-rotados Os soldados escolhidos entre os cidadatildeos da poacutelis (Heraclid 335) podiam eventualmente desempenhar outras tarefas Em Bacantes (780ndash5) por exemplo Penteu convoca os soldados para combater as bacantes

Vejamos finalmente a curiosa e anacrocircnica passagem da Ifigecircnia em Aacuteulis na qual Menelau descreve o comportamento ldquopoliacuteticordquo de Agamecircm-non para obter o comando do exeacutercito grego formado por contingentes che-fiados por outros reis (337ndash48)

οἶσθrsquo ὅτrsquo ἐσπούδαζες ἄρχειν Δαναΐδαις πρὸς Ἴλιον τῶι δοκεῖν microὲν οὐχὶ χρήιζων τῶι δὲ βούλεσθαι θέλων ὡς ταπεινὸς ἦσθα πάσης δεξιᾶς προσθιγγάνων καὶ θύρας ἔχων ἀκλήιστους τῶι θέλοντι δηmicroοτῶνκαὶ διδοὺς πρόσρησιν ἑξῆς πᾶσι κεἰ microή τις θέλοι τοῖς τρόποις ζητῶν πρίασθαι τὸ φιλότιmicroον ἐκ microέσου κἆιτrsquo ἐπεὶ κατέσχες ἀρχάς microεταβαλὼν ἄλλους τρόπους τοῖς φίλοισιν οὐκέτrsquo ἦσθα τοῖς πρὶν ὡς πρόσθεν φίλος δυσπρόσιτος ἔσω τε κλήιθρων σπάνιος ἄνδρα δrsquo οὐ χρεὼντὸν ἀγαθὸν πράσσοντα microεγάλα τοὺς τρόπους microεθιστάναιἀλλὰ καὶ βέβαιον εἶναι τότε microάλιστα τοῖς φίλοις ἡνίκrsquo ὠφελεῖν microάλιστα δυνατός ἐστιν εὐτυχῶν

Lembras quando ansiavas por comandar os Dacircnaos contra Iacutelion sem aparentar que o desejavas mas querendo muito Como eras humilde de todos a dextra apertando a porta nunca fechada aos homens do povo que queriam dirigindo a palavra a todos um apoacutes outro mesmo aos que natildeo queriam buscando comprar do puacuteblico com esses modos a honrariaAiacute quando obtiveste o comando mudaste para outros modos e natildeo eras como antes um amigo para os amigos de difiacutecil acesso raro atraacutes de portas Natildeo deve um homem

72 WILSON ALVES RIBEIRO JR

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 73

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

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72 WILSON ALVES RIBEIRO JR

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

de bem ao atingir a grandeza mudar de comportamento mas ser constante em especial com os amigos de antigamente ao prosperar estaacute apto a lhes prestar grandes serviccedilos

DOIS REIS

Em Euriacutepides a existecircncia de dois reis eacute mencionada de forma in-cidental e mesmo perifeacuterica e sem relaccedilatildeo com a realeza dual de Esparta Em Heraclidas (34ndash6) Iolau comenta que Maratona eacute governada pelos dois filhos de Teseu mas quando o arauto de Euristeu pergunta quem eacute o rei o Coro responde que eacute Demofonte filho de Teseu que se aproxima com seu irmatildeo Acamas (115ndash9) Em Feniacutecias (71ndash6) o arranjo entre Eteacuteocles e Polinice para a alternacircncia anual de poder natildeo funcionou mas em teoria Tebas tinha dois reis Seriam os acontecimentos descritos na trageacutedia um tecircnue eco de ocorrecircncias antigas ou uma criacutetica ao sistema espartano

CONCLUSAtildeO

Os benefiacutecios e os malefiacutecios da monarquia entendida aqui como o exerciacutecio do poder poliacutetico por uma soacute pessoa rei ou tirano eram bem lembrados por Euriacutepides e pelo seu puacuteblico Na memoacuteria dos cidadatildeos do Periacuteodo Claacutessico a somatoacuteria dos benefiacutecios e malefiacutecios do poder absoluto era evidentemente negativa o que Euriacutepides sintetiza no Fr 2751ndash2 da Auge atribuiacutedo a Heacuteracles (que provavelmente se dirige a Aleu)

κακῶς δrsquo ὄλοιντο πάντες οἳ τυραννίδι χαίρουσιν ὀλίγῃ τrsquo ἐν πόλει μοναρχίᾳ

que tenham maacute morte todos aqueles que na poacutelisa tirania (= a realeza) desejam da monarquia ou da oligarquia

Note-se que nessa passagem o poeta natildeo faz distinccedilatildeo entre o governo de um soacute e o governo de pequena parte dos cidadatildeos aplicaacutevel agrave sua proacutepria eacutepoca

As passagens analisadas demonstram que os reis das trageacutedias de Euriacutepides satildeo muito parecidos com reis e tiranos presentes em poemas eacutepicos e liacutericos do Periacuteodo Arcaico e assim como eles evocavam antigos personagens e sistemas de governo mal documentados pela histoacuteria do Pe-riacuteodo Arcaico mas que deixaram marcas evidentes na cultura ateniense do seacuteculo v aC

O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 73

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history

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O PODER DO REI EM EURIacutePIDES 73

Let Claacutess Satildeo Paulo v 18 n 2 p 57-73 2014

As trageacutedias de Euriacutepides sem duacutevida acrescentam detalhes signifi-cativos aos nossos conhecimentos sobre a monarquia tirania arcaica e se natildeo tecircm valor histoacuterico formal para os puristas dada a natureza ficcional do enredo traacutegico no miacutenimo documentam o impacto da monarquia ar-caica e suas lembranccedilas na sociedade grega de meados do Periacuteodo Claacutessico

REFEREcircNCIAS

Dillon M Garland L 1994 Ancient Greece social and historical documents from Archaic times to the death of Socrates (c 800ndash399 BC) London and New York Routledge

Mitchel L 2013 The heroic rulers of Archaic and Classical Greece London and New York Bloombsbury

Parker V 2007 ldquoTyrants and lawgiversrdquo In The Cambridge Companion to Archaic Greece edited by H A Shapiro 13ndash39 New York Cambridge University Press

Van Looy H 2002 ldquoΠΕΛΙΑΔΕΣ Les Peacuteliadesrdquo In Euripide trageacutedies tome 82 Frag-ments de Belleacuterophon agrave Proteacutesilas texte eacutetabli et traduit par F Jouan et H Van Looy 515ndash30 Paris Les Belles Lettres

Zuntz G 1955 The Political plays of Euripides Manchester Manchester University Press

Title Royal power in Euripidesrsquo tragedy

Abstract On historical perspective the Greek kingship institution is insufficiently documented and its exact nature is yet to be revealed Judging by archaic and classical poets however royal power characteristics were engraved in the memory of Classi-cal Period Greeks We selected and studied a few verses from Euripidesrsquo tragedy were kings presence may detail or clarify some aspects of monarchy in ancient Greek com-munities and its reflection in the minds of fifth century BC Greeks

Keywords Royals tyranny Greek tragedy Euripides Greek history