o Poeta Da Noite Georg Trakl

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GEORG TRAKL: o poeta da noite Trakl, marco essencial da poesia alemã do século XX, ao lado de Hölderlin O poeta austríaco Georg Trakl foi uma grande influência da poesia na primeira metade do século XX. O que há de profundo e desconsertante em seus poemas são as metáforas e superposições de frases que lembram as montagens cinematográficas. Isso numa época que o cinema apenas engatinhava, um pouco antes, inclusive, de o cineasta russo Eisenstein escrever sua famosa teoria de montagem. A maior parte da poesia de Trakl fala da noite, da escuridão e de toda sorte de imagens que se podem encontrar no espaço lúgubre das trevas, da meia luz, como o que acontece na madrugada silenciosa e fria de uma rua aparentemente deserta: "A lua resplandece no quintal. Das telhas caem sombras soberanas. Janelas de silêncio glacial; Afloram quietamente as ratazanas." Eis um exemplo de clareza nas imagens, ficando por conta da montagem a narração e a dinâmica dos movimentos. O poema todo (traduzido por Marco Lucchesi) fala de certa noite enluarada, verão, calor e abafamento, em que os ratos surgem do fedor do esgoto, do ambiente putrefato da privada iluminada pela luz da lua, invadindo a casa. Esses versos, por exemplo, são ilustrativos, fotográficos, videoclipe puro, cuja primeira tomada pega o alto do firmamento, depois desce para o telhado da casa, em seguida mostra as laterais, para fechar a

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GEORG TRAKL: o poeta da noite

Trakl, marco essencial da poesia alemã do século XX, ao lado de Hölderlin

O poeta austríaco Georg Trakl foi uma grande influência da poesia na primeira metade do século XX. O que há de profundo e desconsertante em seus poemas são

as metáforas e superposições de frases que lembram as montagens cinematográficas. Isso numa época que o cinema apenas engatinhava, um pouco

antes, inclusive, de o cineasta russo Eisenstein escrever sua famosa teoria de montagem.

A maior parte da poesia de Trakl fala da noite, da escuridão e de toda sorte de imagens que se podem encontrar no espaço lúgubre das trevas, da meia luz, como o que acontece na madrugada silenciosa e fria de uma rua aparentemente deserta:

"A lua resplandece no quintal.Das telhas caem sombras soberanas.

Janelas de silêncio glacial;Afloram quietamente as ratazanas."

Eis um exemplo de clareza nas imagens, ficando por conta da montagem a narração e a dinâmica dos movimentos. O poema todo (traduzido por Marco

Lucchesi) fala de certa noite enluarada, verão, calor e abafamento, em que os ratos surgem do fedor do esgoto, do ambiente putrefato da privada iluminada pela luz da

lua, invadindo a casa.

Esses versos, por exemplo, são ilustrativos, fotográficos, videoclipe puro, cuja primeira tomada pega o alto do firmamento, depois desce para o telhado da casa,

em seguida mostra as laterais, para fechar a estrofe com uma última frase retratando o chão de onde vêm à superfície os ratos, silenciosamente, como

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silenciosa é a noite, e certamente o era a vida do poeta.

Em outro poema, Romança à noite (tradução de Marco Lucchesi), a mesma frialdade, a inegável solidão:

"O solitário passa pela rua:é meia-noite e brilha o firmamento.

Levanta-se o menino sonolento,seu vulto pardo se desfaz co’a lua."

George Trakl nasceu em Salzburg, Áustria, no dia 3 de fevereiro de 1887. Filho da burguesia austríaca, ainda garoto vê sua família perder tudo o que tem, e ele então não consegue se firmar, pobre, no mundo burguês. Na escola, tinha dificuldade até de ir adiante. Foi reprovado nos exames finais do curso secundário e só entrou na

universidade como ouvinte, onde estudou farmácia.

Usava drogas e bebia muito, desde moleque. Completamente desestruturado familiarmente, chegou a praticar incesto com sua irmã, Gretl, a única mulher que ele disse ter amado, e que acabou se suicidando, como também se suicidou Trakl,

em 3 de novembro de 1914, na Cracóvia.

Nessa época, a Primeira Guerra Mundial já estava em curso, e ele era soldado-farmacêutico, encarregado de assistir feridos e mutilados de guerra, sem nenhum

recurso disponível. Um de seus últimos poemas,Lamento (tradução de Claudia Cavalcanti), reflete seu estado de espírito, poema em que ele sintetiza sua angústia

em meio a mortos, feridos e seu amor incestuoso:

"Sono e morte, as tenebrosas águiasRodeiam a noite inteira essa cabeça:

A imagem dourada do HomemEngolida pela onda fria

Da eternidade. Em medonhos recifesDespedaça-se o corpo purpúreo

E a voz escura lamentaSobre o mar.

Irmã de tempestuosa melancoliaVê, um barco aflito afunda

Sob estrelas,Sob o rosto calado da noite."

Trakl, que também escreveu peças de teatro, morreu. Mas sua poesia, que fora publicada em vida apenas em suplementos literários e numa pequena edição de

1913, não morria ali. Pelo contrário, tomou fôlego depois da década de 1940. Antes disso, porém, Heidegger (1913) já colocava Trakl ao lado de Holderlin, como marcos essenciais da poesia alemã do século XX. E em 1915, o não menos brilhante Rainer

Maria Rilke também sentia a força e a complexidade dos versos traklianos.

Se por um lado, a poesia de Trakl é complexa, forçando leitor a ler e reler, por outro, sua musicalidade, o ritmo que nela contém, nos envolve de tal maneira que é

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quase impossível não se buscar sentido no que ela diz.

"Pastores enterraram o sol na floresta nua.Um pescador puxou a lua

Do lago gelado em áspera rede."

Neste poema, tudo caminha rumo à escuridão, ao ocaso. Na imersão no abismo da noite há sempre uma esperança, a escuridão sempre se ameniza com a luz da lua,

como se a força da vida que ainda resta entre o gelo da existência conseguisse pescar um fiapo de calor para um tênue aquecimento. O que no fim das contas não

é o suficiente para aplacar a solidão e a morte.

No poema supracitado, Calma e silêncio, o poeta cria imagens complexas, como “vôo negro dos pássaros”, “o silêncio próximo pensa no esquecido”, e “anjos

apagados”.

A célebre frase do lingüista Noam Chomsky, “colorless green ideas sleep furiously” (idéias verdes sem cores dormem furiosamente), lembra esse tipo de composição

simbolista. A poesia trakliana está cheia dessas armadilhas sinestésicas, com frases que só podem ser compreendidas nos planos simbólico e metafórico, uma vez que

entre os seus componentes não há uma coerência sintática.

Georg Trakl é mesmo um poeta da noite. Sua poesia é uma alimentadora de tormentas, de tempestades da alma. Mas, ao mesmo tempo que a solidão e o

abismo estão ali, presentes, há também um clarão, um resplandecer, tal como um relâmpago, a vigiar, debalde, o desfile dos versos rumo à escuridão e ao silêncio.

A poesia tem dessas coisas. Aliás, a arte tem dessas coisas, nos trazendo o belo no sofrimento dos outros. Em todo caso, é uma beleza dada, e não roubada. Belezas

metafóricas como no poema a seguir:

A tempestade(tradução de Modesto Carone Netto)

"Vós, montanhas selvagens, das águiasSublime luto. Nuvens douradasFumegam sobre pétreo ermo.

Paciente quietude respiram os pinheiros,As negras ovelhas junto ao abismo,

Onde súbito o azulEstranhamente emudece,

O brando zumbido dos zangões.Ó flor verdeÓ silêncio.

Como em sonho estremecem da torrente selvagemEscuros espíritos o coração,

Trevas,Que sobre as gargantas irrompem!

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Brancas vozesErrantes pelos átrios lúgubres,

Terraços destroçados,Dos pais poderoso rancor, o lamento

Das mães,Do menino o áureo grito de guerra

E o não-nascidoGemendo de olhos cegos.

Ó dor, flamejante visãoDa grande alma!

Já estremece na negra confusãoDe corcéis e carruagensUm raio róseo pavorosoNo pinheiro ressoante.

Frescor magnéticoEnvolve esta cabeça orgulhosa,

Incandescente melancoliaDe um deus irado.

Medo, tu ó serpente venenosa,Negra, morra nas pedras!

Precipitam-se das lágrimasAs correntezas bravias,

Tempestade-misericórdia,Ecoam em trovões ameaçadores

Os nevados cumes em volta.Fogo

Purifica noite destroçada. "

Segundo Carone Netto, e seu livro Metáfora e montagem, citando um dos estudiosos de Trakl, Clemens Heselhaus, este poema é uma metáfora do estado de

ânimo ou da paixão da alma. Os elementos da natureza aqui ‘“são signos de realidades psíquicas e espirituais’”.

Já em De Profundis, poema de 1912 (tradução de Claudia Cavalcanti), o poeta parece ter mesmo se encontrado com a morte. Ou pelo menos, a turbulência de seu ser avançou a noite, embora de novo, apareça o clarão da vida, o prenúncio de um

amanhecer:

"Há um restolhal, onde cai uma chuva negra.Há uma árvore marrom, ali solitária.

Há um vento sibilante, que rodeia cabanas vazias.Como é triste o entardecer

Passando pela aldeiaA terna órfã recolhe ainda raras espigas.

Seus olhos arregalam-se redondos e dourados no crepúsculo,E seu colo espera o noivo divino.

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Na voltaOs pastores acharam o doce corpo

Apodrecido no espinheiro.

Sou uma sombra distante de lugarejos escuros.O silêncio de Deus

Bebi na fonte do bosque.

Na minha testa pisa metal frioAranhas procuram meu coração.

Há uma luz, que se apaga na minha boca.

À noite encontrei-me num pântanoPleno de lixo e pó das estrelas.

Na avelãzeiraSoaram de novo anjos cristalinos."

E por fim, um belo poema que revela a montagem em seu esplendor, a intercalação de “dentro” e “fora”, “longe” e “perto”, uma dança de figuras plásticas em versos

razoavelmente otimistas.

A bela cidade(tradução de Modesto Carone Netto)

"Velhas praças silenciam ensolaradas.Profundamente enredadas em azul e ouro

Suaves freiras sonhadoramente se apressamSob o silêncio de faias sufocantes.

Das igrejas pardamente iluminadasOlham as puras imagens da morte,Belos brasões de grandes príncipes.

Coroas cintilam nas igrejas.

Corcéis emergem da fonte.Garras de botões ameaçam das árvores.Meninos, confusos de sonhos, brincamSilenciosos, ao anoitecer, junto à fonte.

Moças estão em pé junto aos portões,Olham tímidas para a vida colorida.

Seus lábios úmidos trememE elas aguardam junto aos portões.

Sons de sino esvoaçam trêmulos,Ressoam o compasso de marcha e os brados da guarda.

Estranhos escutam sobre os degraus.Altos no azul há sons de órgão.

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Claros instrumentos cantam.Pela moldura de folhas dos jardins

Vibra o riso de belas senhoras.Jovens mães cantam baixinho.

Furtivamente bafeja junto às janelas floridasPerfume de incenso, alcatrão e lilás.

Argênteas tremem pálpebras cansadasAtravés das flores junto às janelas."

Bibliografia:

Metáfora e montagem, de Modesto Carone NettoDe profundis, de Georg Trakl (tradução de Claudia Cavalcanti)

Poemas à noite – seleção de poemas de Georg Trakl e Rainer Maria Rilke (tradução de Marco Lucchesi)