O Porto Secreto

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O PORTO SECRETOJack HigginsTraduo deA. CARMONA TEIXEIRACRCULO DE LEITORESCopyright c) Jack Higgins 1990Impresso e encadernado por Resopalpara Crculo de Leitoresno ms de Dezembro de 1991Nmero de edio: 2990Depsito legal nmero 48 685/91@UmO luar iluminava cadveres a flutuar por todo o lado,com e sem coletes salva-vidas, e, mais alm, o leo a arder erguia chamas sobre o mar. Durante os breves momentos que a ondulao o deixou suspenso na crista deuma onda, Martin Hare conseguiu observar o que aindarestava do contratorpedeiro, cuja proa j tinha submergido. Uma exploso atroou os ares, a popa elevou-se e onavio comeou a afundar-se. Hare deslizou pela outravertente da vaga, mantendo-se superfcie graas aocolete salva-vidas. Bruscamente, abateu-se-lhe por cima outra onda, quase o afogando e obrigando-o a debater-se freneticamente por um pouco de ar, sempreconsciente da dor intensa que um estilhao no peito lheprovocava.A corrente era muito rpida no canal entre as duasilhas, atingindo uns seis ou sete ns, no mnimo. Tinha aimpresso de estar a ser arrastado a uma velocidade incrvel, e a deixar para trs os gritos dos moribundos, que setornavam indistintos na noite que findava. Elevou-se denovo at crista de uma onda, onde ficou suspenso porinstantes, meio cego pelo sal, e, de sbito, mergulhou clere em direco a uma balsa de salvamento.Agarrou-se a uma das alas de corda e olhou para cima. Viu um homem acocorado na jangada, um oficial japons, e reparou que estava descalo. Olharam-se nosolhos durante um longo momento, e, ento, Hare tentouiar-se. Mas no teve foras para tanto.Sem proferir uma palavra, o japons arrastou-se paradiante e, estendendo um brao, segurou-o pelo colete epuxou-o para cima. No mesmo instante, a jangada, apanhada por um redemoinho, girou como um pio, lanando o japons de cabea para o mar.Alguns segundos aps, j o homem se afastara mais dedez metros, com a face iluminada pelo luar a sobressairnas guas. Comeou a nadar de regresso balsa, e, ento, Hare avistou a barbatana do tubaro que o perseguia, cortando a espuma branca que separava as vagas.O japons nem teve tempo de gritar, elevando os braospara o cu e desaparecendo. Como sempre sucedia, foiHare quem gritou, sentando-se de um salto na cama,com o corpo alagado em suor.A enfermeira de servio era a MacPherson, uma mulher de cinquenta anos, rija, sem complacncias, viva ecom dois filhos nos Fuzileiros Navais, a combater alguresnas ilhas. Entrou e deteve-se a observ-lo, com as mosnas ancas.--Novamente o mesmo sonho?Hare atirou as pernas para fora da cama e agarrou oroupo.--Claro! Quem o mdico de servio, hoje noite?--O comandante Lawrence, que no lhe vai dar grande ajuda. Umas plulas para dormir um pouco mais, emcontinuao do que j fez toda a tarde.--Que horas so?--Sete. Porque no toma um banho de chuveiro enquanto eu lhe arranjo a bela farda que lhe trouxeram?Podia ir jantar l em baixo. Sempre lhe fazia bem...--No me parece!Observou-se ao espelho, correndo os dedos por entreos cabelos negros e revoltos, aqui e alm mesclados demechas grisalhas, bem de esperar aos quarenta e seisanos. A face era bastante agradvel, embora plida, emresultado dos meses de internamento no hospital. Osolhos, de "presso ausente, denotavam uma total faltade esperana.Abriu uma gaveta do armrio ao lado da cama, tirou oisqueiro e um mao de cigarros e acendeu um. Comeoua tossir, mal se levantou. Atravessou o quarto para a portaaberta que dava para a varanda e contemplou o jardim.--Mas que falta de juzo!--exclamou ela.--Reduzido a um nico pulmo saudvel, decidiu acabar o trabalho que os japoneses iniciaram!--Ao lado da cama via-se uma garrafa-termo cheia de caf, donde a enfermeiraencheu uma chvena, que lhe levou:--E tempo de comear a viver novamente, comandante. Como se costumadizer nos filmes de Hollywood, a guerra acabou, para si.Alis, nem sequer a deveria ter comeado. brincadeirapara gente nova.Ele beberricou um golo de caf.--E que vou fazer?--Voltar a Harvard, professor.--Sorria, enquanto falava.--Com todas essas medalhas, os estudantes voador-lo! No se esquea de usar o uniforme no primeirodia.A despeito de si prprio, Hare sorriu-se por um breveinstante.--Deus me valha, Maddie, mas no me parece quepossa voltar atrs. Convm no esquecer que f&z a guerra!--E a guerra deu cabo de si, meu anjo!--Bem sei. O matadouro de Tulugu acabou comigo.Diria at que fiquei sem prstimo para nada.--Bem, o senhor j no uma criana! Se pretendesentar-se a um canto deste quarto e deixar-se apodrecerpara ai, o problema seu.--Dirigiu-se para a porta,abriu-a e voltou-se:--S que lhe sugeria que se penteasse e se pusesse apresentvel, pois vai ter uma visita.Hare franziu o sobrolho:--Uma visita?--Sim. Est agora com o comandante Lawrence. Nosabia que tinha parentes ingleses.--De que est a falar?--perguntou Hare, perplexo.--Da sua visita. Alta patente. Um tal brigadeiroMnro, do Exrcito ingls, embora no parea, j quenem sequer est fardado.Saiu, fechando a porta. Hare ficou imvel por um momento, de semblante carregado, e entrou no quarto debanho, abrindo o chuveiro.O brigadeiro Dougal Mnero era um sujeito feio eatraente, tinha sessenta e cinco anos, cabelos brancos,e vestia um fato mal talhado de fazenda axadrezada dopadro do Donegal. Usava uns culos de aros de ao,do tipo regulamentar do Exrcito ingls.--O que eu preciso de saber se ele est apto para oservio, doutor--dizia Munro.Lawrence tinha vestido uma bata cirrgica branca sobre o uniforme de servio. Abrindo uma pasta que tinhana sua frente, disse:--Se se refere ao aspecto fsico, posso dizer-lhe queele tem quarenta e seis anos, foi atingido por trs estilhaos no pulmo esquerdo e passou seis dias numa balsa.Foi um milagre ter-se salvo.--Sim, tambm acho!--concordou Munro.--Um professor de Harvard que se torna oficial da reserva naval, evidentemente, j que se tratava de um velejador famoso, com relaes nos centros de influncia devidos, graas s quais entra para os navios torpedeiroscom a idade de quarenta e trs anos, no incio da guerra.--Folheou o processo.--No falhou uma nica das zonasde guerra do Pacfico. Capito-de-corveta e medalhas.--Encolheu os ombros:--Est aqui tudo, incluindo duas Cruzes Navais, e, por fim, esse combate emTulugu. Um contratorpedeiro japons rebentou-lhe commetade do navio, de modo que ele abalroou-o e f-lo irpelos ares com uma carga explosiva. Devia ter morrido!--Segundo me disseram, foi o que sucedeu a quasetoda a tripulao!--disse Munro.Lawrence fechou a pasta:--Sabe porque que ele no recebeu a Medalha deHonra? Porque foi o general MacArthur quem o props,e a Armada no gosta de interferncias do Exrcito.--Pelo que vejo, no pertence ao quadro permanenteda Armada?--perguntou Munro.--No, com mil diabos!--?ptimo. Tambm no perteno ao quadro permanente do Exrcito, de modo que podemos falar francamente. Ele est apto para o servio?--Fisicamente, sim. Embora tenha cortado dez anosna segunda metade da vida. A inspeco mdica no oindicou para servio no mar. Dado a idade, pode optarpor baixa mdica.--Compreendo.--Munro bateu com os dedos na testa.--E aqui, o que se passa?--Na cabea?--Lawrence encolheu os ombros.-Quem sabe? facto que passou por uma forte depresso,mas isso passa. Dorme mal, raras vezes deixa o quarto ed a impresso ntida de no ter a menor ideia de queraio h-de fazer vida.--Portanto, pode deixar o hospital?--Claro que sim! H semanas que lhe poderia ter sidodado alta. Com a devida autorizao, como evidente!--Tenho-a aqui.Munro tirou uma carta de um bolso interior, abriu-a epassou-a a Lawrence, que a leu e assobiou baixinho:--Jesus, assim to importante?--Sim.--Munro meteu a carta no bolso e pegou nasua gabardina Burberty e no guarda-chuva.Lawrence exclamou:--Meu Deus! Vai mand-lo de volta para a guerra!?Munro sorriu ligeiramente e abriu a porta:--Se no se importa, comandante, vou v-lo agora.Munro passeou o olhar pelo jardim, at s luzes da cidade, que, com o cair da noite, comeavam a acender-se.--Washington, nesta altura do ano, muito agradvel.--Voltou-se e estendeu a mo:--Munro, DougalMunro.--Brigadeiro?--perguntou Hare.--Exactamente.Hare vestia umas calas de desporto e uma camisaaberta no peito, e ainda tinha a cara hmida do banho.--Perdoe-me que lho diga, senhor brigadeiro, mas osenhor o militar de aspecto menos marcial que jamais vi.--Graas a Deus!--exclamou Munro.--At mil novecentos e trinta e nove fui egiptlogo de profisso, um"Fellow of All Souls", em Oxford. A patente que meatriburam destina-se a dar-me autoridade em certosmeios, digamos assim.Hare franziu o sobrecenho.--Um momento! Quer dizer, servios de espionagem?--Precisamente, comandante. J ouviu falar da SOE,comandante?--Special Operations Executive2--disse Hare. -Enviam agentes para a Frana ocupada e coisas do gnero?--Nem mais. Fomos os precursores do vosso OSS,que, tenho muita honra em diz-lo, trabalha em ntimaligao connosco. Tenho a meu cargo a Seco D daSOE, mais vulgarmente conhecida pelo "Departamentodos Golpes Sujos".--E que diabo pretende o senhor brigadeiro de mim?--Segundo sei, o senhor comandante foi professor deliteratura alem em Harvard...--E qual o interesse disso para o caso?--Porque sua me era alem, viveu muito tempo comseus pais na Alemanha, quando era rapaz, no verdade? Chegou at a formar-se na Universidade de Dresda.--E da?--Soube que fala alemo fluentemente (pelo menos,assim mo afirmaram os vossos servios de informao) eque o seu francs muito razovel.Hare assumiu um ar carrancudo:--Que est a tentar insinuar? Pretende aliciar-me como espio ou coisa que o valha?--De modo algum! --respondeu Munro. --Vejabem, o senhor realmente nico, comandante. No apenas o facto de falar fluentemente alemo que o tornainteressante, mas sobretudo a dupla circunstncia de seroficial da Armada, com grande experincia de torpedeiros, e que tambm fala correctamente alemo.--Talvez no fosse m ideia explicar-se melhor.--De acordo.--Munro sentou-se.-- facto queprestou servio nas ilhas Salomo, no Segundo Esquadro de Navios Torpedeiros?--Sim.--Bem, embora se trate de um assunto confidencial,posso dizer-lhe que, a solicitao urgente da Repartiode Servios Estratgicos, os seus homens vo ser transferidos para o canal da Mancha, a fim de recolher agentesnossos na costa francesa.--E o senhor brigadeiro pretende-me para esse servio?--exclamou Hare, com enorme surpresa.--No est bom do juzo! Pois no sabe que estou arrumado devez, e que at querem dar-me baixa mdica?!--Preste ateno!--atalhou Munro.--No canal daMancha, os navios torpedeiros ingleses tm tido imensosproblemas com os seus homnimos germnicos.--Os quais os alemes designam por Sc)mellboot-acrescentou Hare--; isto , um navio rpido, o queconstitui realmente um nome muito adequado.--Claro. Mas, por uma razo qualquer, ns designamo-los de E-boats . Como disse, trata-se de navios rpidos, diabolicamente rpidos. Temos vindo a tentar capturar um desde o inCiO da guerra e, sinto grande prazerao diz-lo, conseguimo-lo finalmente, o ms passado.--Est a brincar!--exclamou Hare, estupefacto.--H-de ver que nunca brinco, comandante--ripostou-lhe Munro.--Um dos navios da srie S.80 teve problemas com os motores, numa misso nocturna ao largoda costa de Devon. Quando um dos nossos contratorpedeiros apareceu, de madrugada, a tripulao abandonouo navio. Claro que o comandante deixou uma carga explosiva a bordo, preparada para o afundar, a qual, infelizmente para ele, no chegou a explodir. Segundo o interrogatriO que fizemos ao operador de rdio, a ltimamensagem que enviaram para Cherburgo informava queiam afundar o navio, o que significa que ns capturmosa vedeta-torpedeira, e a Kriegsmarine' de nada sabe.-Sorriu:--Est a seguir o meu raciocnio?--No tenho bem a certeza...--Comandante Hare, existe na Cornualha um pequeno porto de pesca chamado Cold Harbour. No tem maisde duas ou trs dzias de vivendas e uma casa senhorial. uma zona de defesa, e os seus habitantes h muito que,de l saram. O meu departamento usa-o para finsespeciais... digamos assim. Dirijo a operao de um par deavies, a partir de l... avies alemes. Um Stork e umcaa nocturno, gu885. Ambos conservam as insgnias daLuft vaffe2, e o homem que os tripula um bravo piloto daRAF,3 que, ele tambm, usa o uniforme da Lufnvaffe.--E o senhor pretende fazer o mesmo com esse torpedeiro?--Exactamente, e aqui que o senhor entra em jogo.No final de contas, um navio da Kriegsmarine ter de teruma tripulao tambm da Kriegsmarine.--O que contraria de tal modo as leis da guerra quemais no necessrio para levar a tripulao perante umpeloto de fuzilamento, se for capturada--contrapsHare.--Estou ciente disso. A guerra, como disse uma vez ovosso general Sherman, o inferno.--Munro levantou-se, esfregando as mos:--Meu Deus, as possibilidadesso ilimitadas. Devo dizer-lhe ainda (e, uma vez mais, isto confidencial) que todo o trfego de informao militar e naval dos alemes cifrado em mquinas Enigmaque os nazis julgam ser totalmente prova de interferncias. Infelizmente para eles, ns montmos um projecto,a que demos o nome de Ultra, por intermdio do qualconseguimos penetrar no sistema. Pense na informaoque poderia obter da Kriegsmarine: sinais de reconhecimento, cdigos do dia para entrada nos portos, eu sei l!--Uma loucura!--comentou Hare.--Teria de searranjar uma tripulao.--O S.80 conta habitualmente com uma guarnio dedezasseis homens. Os meus amigos no Almirantado pensam que o senhor comandante poderia resolver o problema com dez homens, incluindo se a si prprio. Como setrata de um empreendimento conjunto, tanto a nossagente como a vossa esto em busca do pessoal adequado.J tenho o chefe de mquinas perfeito: um refugiado judeu alemo que trabalhou na fbrica Daimler-Benz, queconstri os motores para todos os torpedeiros.Fez-se uma pausa longa. Hare voltou-se e contemploua cidade, circunvagando o olhar para alm do jardim. Estava escuro e, estremecendo, recordou se--sem qualquer razo aparente--de Tulugu. Ao tentar tirar umcigarro do mao, a mo tremeu-lhe: voltando-se, mostrou-a a Munro, dizendo:--V isto? E sabe porqu? Porque estou com medo.--Pois tambm eu tive medo na barriga do malditobombardeiro que me trouxe at aqui--disse Munro.-E voltarei a ter medo no voo de regresso, esta noite, embora desta vez o faa numa fortaleza voadora. Ao que parece, sempre tm um pouco mais de espao.--No--disse Hare com voz rouca--, no aceito.--Oh! A que se engana, senhor comandante. E devo dizer lhe o motivo? Porque no tem mais nada quelhe interesse fazer. evidente que j no consegue voltara Harvard. Voltar ao ensino depois de tudo o que passou? Vou dizer lhe uma coisa a respeito de si prprio,pois ambos navegamos no mesmo barco. Somos homensque passmos parte 'da nossa vida vivendo da cabea.Das histrias de outros homens. Tudo nos livros. Entoveio a guerra, e sabe que mais, meu caro amigo? Viveuintensamente os mais belos momentos... e gostou.--V para o inferno!--respondeu lhe Martin Hare.--Muito provavelmente.--E se eu no aceitar?--Oh! Cus!--Munro tirou uma carta do bolso interior do casaco.--Suponho que reconhece a assinatura aofundo como sendo a do comandante-chefe das Foras Armadas americanas.Hare olhou para a carta, estupefacto.--Meu Deus!--Sim, e ele gostaria de lhe dar uma palavra antes departirmos. Talvez lhe possa chamar uma reunio de comando, de modo que seja bom rapaz e farde-se. J notemos muito tempo!Na Casa Branca, a limusina parou na porta oeste, ondeMunro mostrou o passe aos agentes dos Servios Secretosno turno da noite. Houve uma pausa, enquanto chamavam um ajudante. Aps breves momentos, um jovemtenente da Armada, impecavelmente fardado, veio receb-los:--Senhor brigadeiro--disse, cumprimentando Munro, e, voltando-se para Hare, saudou-o como s os cadetes de Annapolis sabem fazer:--Tenho grande honraem o conhecer, senhor comandante.Hare retribuiu a saudao, ligeiramente embaraado.O jovem disse, ento:--Queiram seguir me, meus senhores. O senhor presidente espera-os.A Sala Oval estava na penumbra, sendo a nica luzproveniente de um candeeiro sobre uma secretria, pejada de papis. Instalado na cadeira de rodas, ao p deuma janela, a brasa de um cigarro brilhando na habitualboquilha comprida, o presidente Roosevelt contemplava,absorto, os jardins. Fazendo girar a cadeira, disse:--Ora c o temos, senhor brigadeiro.--Senhor presidente.--E traz-me o comandante Hare?--Estendeu a mo:--O senhor uma honra para o seu pas. Como seu presidente, agradeo-lhe. Aquele combate de Tulugu foiqualquer coisa de grande.--Homens melhores do que eu morreram para afundar aquele contratorpedeiro, senhor presidente.--Eu sei, meu filho.--Roosevelt segurava a mo deHare entre as suas.--Homens melhores do que o senhor ou eu morrem todos os dias, mas ns temos de continuar e esforarmo-nos por fazer o melhor que pudermos.--Retirou o resto do cigarro da boquilha e p-lono cinzeiro.--O senhor brigadeiro informou o deste caso de Cold Harbour? Agrada-lhe o trabalho?Hare deu um relance de olhos a Munro, hesitou e acabou por dizer:--Uma proposta interessante, senhor presidente.Roosevelt inclinou a cabea para trs e riu-se:--Uma forma correcta de pr o problema.--Deslocou a cadeira at secretria e voltou-se, dizendo:--Sabe que usar um uniforme inimigo radicalmente proibido pelas disposies da Conveno de Genebra?--Sim, senhor presidente.Roosevelt olhou para o tecto:--Corrija me se eu errar, senhor brigadeiro, mas nofoi durante as guerras napolenicas que navios da Armada inglesa entraram ocasionalmente em combate sob abandeira da Frana?--De facto, senhor presidente, assim foi, e, por via deregra, faziam no com navios franceses tomados comopresas de guerra e incorporados seguidamente na Armada britnica.--Por conseguinte, existe um precedente que leve aconsiderar este tipo de aco como um ruse de guerralegtimo?--inquiriu Roosevelt.--Certamente, senhor presidente.Hare interrompeu:--Dever ter se em ateno que, sempre que empreendiam tal tipo de aces, os ingleses costumavamiar a sua prpria bandeira antes de a batalha comear.--Isso agrada me!--observou Roosevelt.--Se umhomem tem de morrer, pois que seja sob a sua prpriabandeira.--Olhou para Hare, e disse:--Uma ordemdirecta do comandante-chefe: trar sempre a bandeirados Estados Unidos nesse torpedeiro, e, se algum dia tiver de entrar em combate, i la , retirando a insgniada Kriegsmarine. Compreendido?--Perfeitamente, senhor presidente.Roosevelt estendeu novamente a mo:--?primo. S me resta desejar lhe felicidades.Apertaram as mos, e, como por obra de magia, o jovem tenente saiu da sombra e acompanhou os porta.Quando a limusina virava para a Constitutional Avenue, Hare comentou:--Um homem notvel.--Isso dizer muito pouco!--exclamou Munro.-O que ele e Churchill conseguiram extraordinrio.-Suspirou:--Gostaria de saber quanto tempo se passarat que algum livro surja por a a provar que a influnciade ambos pouca importncia teve...--Intelectuais de segunda ordem em busca de renome?--exclamou Hare.--Tal como ns?--Precisamente.--Munro olhou para fora, para asruas iluminadas.--Vou sentir a falta desta cidade. O senhor comandante vai ter um choque cultural quandochegarmos a Londres. No s por causa da ocultao deluzes, mas porque a Luftwaffe comeou novamente comos bombardeamentos nocturnos.Hare apoiou se contra o encosto do assento e cerrou osolhos, no por motivo de cansao, mas por ter tido aconscincia sbita de uma alegria feroz. Era como se tivesse estado adormecido durante longo tempo e acordasse de novo.A fortaleza voadora tinha acabado de sair da fbrica, e iajuntar se 8.a Fora Area americana, na Gr-Bretanha.A tripulao esforou-se para que Hare e Munro ficassemto bem instalados quanto possvel, fornecendo cobertorese almofadas do Exrcito, e um par de garrafas-termos.Hare abriu uma, quando sobrevoavam a costa da NovaInglaterra, em direco ao mar.--Caf?--No, obrigado. --Munro ajeitou uma almofadaatrs da cabea, e puxou o cobertor.--Sou apreciadorde ch.--Bom, tem de haver de tudo...--concluiu Hare.Beberricou o caf, enquanto Munro acrescentava:--Esqueci me de lhe dizer que, em funo das actuaiscircunstncias, a Armada decidiu promov lo.--A capito de-fragata?--perguntou Hare, admirado.--No, na realidade a Fregattenkapitan,--respondeuMunro, puxando o cobertor sobre os ombros e preparando se para adormecer.@DoisCraig Osbourne, ao chegar aos arredores de SaintMaurice, ouviu a chicotada de uma salva de espingarda,que fez levantar na mata de faias prxima da igreja da vila uma nuvem negra de gralhas, em discusso acaloradaumas com as outras. Conduzia um Kubelwagen--oequivalente de um jipe no Exrcito alemo, que o utilizava como viatura para fins genricos, capaz de ir a qualquer lado. Estacionou-o junto do porto de entrada docemitrio e saiu do carro, impecavelmente fardado com ouniforme de Standartenfiihrer da Waffen-SSI.Caa uma chuva miudinha, pelo que tirou a gabardinade cabedal negro do assento da retaguarda, lanando-asobre os ombros, e encaminhou-se para o local onde umguarda observava o que se passava na praa. Via-seuma meia dzia de camponeses--no eram mais doque isso--, uma esquadra de fuzilamento da SS, e doisprisioneiros com as mos algemadas atrs das costas, semesperana no rosto. Um terceiro prisioneiro jazia no solo,de face voltada para as pedras da calada. Enquanto Osbourne observava a cena, um oficial idoso entrou na praa, envergando um capote comprido, com bandas cinzentas na gola, correspondentes patente de general da SS.SS--polcia militarizada da Alemanha nazi, especialmente encarregada da segurana dos campos de concentrao e dos territrios ocupados pelo Reich.Waffen-SS--designao das unidades combatentes da SS. (N. do T.)Inclinando-Se para baixo e tirando uma pistola do coldre,disparou um tiro na nuca do homem que jazia no cho.--Presumo que seja o general Dietrich?--perguntouOsbourne, num francs impecvel.O guarda, que no se tinha dado conta da sua aproximao, respondeu automaticamente:--Sim, esse tipo gosta de ser ele prprio a acabar comeles.--Mas, dando meia volta, apercebeu se do uniforme, e, de um salto, tomou a posio de sentido, desculpando-se:--Perdoe me, senhor coronel, no tinha inteno de ofender.--No houve ofensa. Afinal de contas, somos compatriotas.--Craig levantou o brao esquerdo, e o guardanotou de imediato que ele usava no canho da manga alegenda da Brigada Francesa Carlos Magno, da SS.-Sirva se.Estendeu lhe a cigarreira e o guarda aceitou um cigarro. Quaisquer que fossem os seus pensamentos relativosa um compatriota que servia o inimigo, soube guard lospara si prprio, conservando a face inexpressiva.-- frequente suceder isto?--perguntou Osbourne,dando-lhe lume. O guarda hesitou, mas Osbourne acenou, encorajando-o:--Diga l, homem, diga o que pensa. Pode no concordar comigo, mas somos ambos franceses.A frustrao e a clera vieram ao de cima:--Duas ou trs vezes por semana, aqui e noutros locais. Um carniceiro, este gajo!--Um dos dois homensque aguardavam voltou se contra a parede: ouviu se umaordem de comando e outra salva.--E recusa lhes os ltimos sacramentos. Est a ver, senhor coronel? No lhespermite ter um padre, mas, depois de tudo acabar, correlogo a confessar-se ao padre Paulo, como um bom catlico, para logo de seguida se empanturrar com um altoalmoo, no caf do outro lado da praa!--Sim, j mo tinham dito, de facto--comentou Osbourne.Voltou-se e encaminhou-se para a igreja. O guarda seguiu-o com o olhar, pensativo, e de novo volveu a ateno para a praa, a fim de observar os acontecimentos,precisamente a tempo de ver Dietrich avanar uma vezmais, de pistola em punho.Craig Osbourne subiu o caminho atravs do cemitrio,abriu a grande porta de carvalho da igreja e entrou. Estava escuro no interior, com alguma luz filtrada atravs dosvitrais antigos. Sentia se no ar o cheiro do incenso, eviam-se algumas velas a arder junto do altar. Pouco apsa entrada de Osbourne, abriu-se a porta da sacristia, onde assomou um padre idoso, de cabelos totalmente brancos. Envergava uma alva e trazia uma estola violeta sobreos ombros. Parou, surpreendido:--Deseja alguma coisa?--Talvez. Volte para a sacristia, padre.O velho padre assumiu uma expresso grave:--Agora no, senhor coronel. Tenho gente para ouvirem confisso.Osbourne relanceou o olhar pela igreja vazia, at aosconfessionrios.--No tem muita freguesia, padre, mas evidenteque tambm no seria provvel t-la, uma vez queaguarda o carniceiro do Dietrich.--Assentou firmemente a mo sobre o peito do sacerdote:--Para dentro, por favor.O padre recuou at sacristia, perplexo:--Quem o senhor?Osbourne f lo sentar na cadeira de madeira junto dasecretria e tirou um pedao de corda de um bolso doimpermevel.--Quanto menos souber, padre, tanto melhor. Digamos que nem tudo o que parece. Agora, ponha as mos atrs das costas.--Atou os pulsos do velhocom firmeza.--Deste modo, padre, estou a dar lhe aabsolvio. Nenhuma relao com o que vai sucederaqui. Na realidade, um bom libi para apresentar aosnossos amigos alemes.Tirou um leno do bolso. O velho sacerdote disse:--Meu filho, no sei quais so os seus planos, maslembre-se que est na casa de Deus.--Sim, bem gostaria de acreditar que estou a tratardas coisas de Deus!--concluiu Craig, amordaando ovelho.Deixou o padre, cerrou a porta da sacristia e atravessou a nave em direco aos confessionrios, onde acendeu a luz de aviso sobre a porta do primeiro, entrandonele. Tirou a Walther do coldre, atarraxou um silenciadorno cano, e, entreabrindo ligeiramente a porta, ficou deatalaia porta da igreja.Pouco depois, Dietrich entrou, acompanhado de umjovem capito da SS. Ficaram ambos a conversar algunsmomentos, aps o que o capito se retirou e Dietrichprosseguiu ao longo da coxia central, desabotoando o capote. Parou, tirou o bon e entrou no confessionrio,sentando-se. Osbourne accionou o interruptor, acendendo a pequena lmpada do outro lado da grelha, e mantendo se a si prprio na sombra.--Bom dia, padre--disse Dietrich, em mau francs.--Abenoe me, porque pequei.--Claro que pecaste, grande estupor! --exclamouCraig, introduzindo o silenciador da Walther na grelha ebaleando-o entre os olhos.Osbourne saiu do confessionrio no preciso momento emque o jovem capito da SS abria a porta da igreja e espreitava. O general estava cado sobre a face, com a nuca transformada numa massa de sangue e miolos, e Osbourne emp, ao seu lado. O jovem oficial sacou da pistola e disparou duas vezes, e o som dos disparos ressoou de um modo ensurdecedor entre as paredes antigas. Osbourne respondeu ao fogo, atingindo-o no peito e derrubando-osobre um dos bancos da igreja, e lanou-se em corridapara a porta.Espreitou para fora e viu o carro de Dietrich estacionado em frente e o Kubelwagen mais adiante. Tarde demais para l chegar, j que uma esquadra da SS, com asespingardas ao alto, corria em direco igreja, atradapelos disparos.Osbourne voltou para trs, correu ao longo da coxia esaiu pela porta da sacristia; avanou por entre as pedrastumulares at s traseiras da igreja, saltou por cima deum muro baixo e enveredou, colina acima, em direcoao bosque.Comearam a disparar sobre ele quando j ia a meiaencosta, forando o a ziguezaguear velozmente. Ia j aentrar na mata quando uma bala o atingiu no brao esquerdo, fazendo-o cair de lado, sobre um joelho. Ergueu-se num pice e aumentou a velocidade, em direco linha de crista da colina. Um momento mais tarde conseguia chegar s rvores.Continuou a correr o mais que podia, com ambos osbraos a protegerem-lhe a face contra as vergastadas dosramos das rvores, sem sequer saber para onde se dirigia.Nem tinha transporte nem tinha forma de chegar a tempo ao local de recolha, mas como era costume dizer naSOE, nos velhos tempos, acabara por borrar a pintura.Corria uma estrada ao longo do vale que se avistavamais abaixo, e tambm havia mata na outra encosta.Continuou descendo, escorregando por entre as rvores eacabando por aterrar numa vala; levantou-se, atravessoua estrada em corrida e, nesse preciso momento e para seuassombro total, uma limusina Rolls-Royce surgiu na curva e estacou ao p de si.Ren Dissard, com uma pala negra sobre um olho,conduzia o carro, envergando o uniforme de motorista.A porta de trs abriu-se e Anne-Marie espreitou parafora.--Brincando de novo aos heris, Craig? Ser que nunca mais muda? Entre, por amor de Deus, temos de desaparecer daqui!Quando o Rolls comeou a andar, apontou a manga douniforme, ensopada em sangue:- grave?--No, suponho que no!--Osbourne entalou umleno dentro da manga.--Que diabo faz aqui?--Grand Pierre preveniu me. Como hbito, apenasuma voz ao telefone. Nunca o encontrei cara a cara.--Bom, eu j!--disse-lhe Craig.--E digo-lhe que capaz de ter um choque, quando o vir pela primeira vez.--Ah! Sim? Diz que o Alesander no pode vir busc-lo. Prevem-se nevoeiros fortes e grandes chuvadasprovenientes do Atlntico, segundo a gente dos meteorolgicos. Eu devia esper-lo na quinta e inform-lo, mastive um pressentimento ruim, de modo que decidi virassistir festa. Estvamos no outro lado da aldeia, ao pda estao. Ouvimos o tiroteio e vimo-lo a correr pela colina acima.--Ainda bem para mim!--exclamou Osbourne.--Sim, at porque nada disto me dizia respeito. Dequalquer modo, Ren calculou que deveria passar poraqUI.Acendeu um cigarro e cruzou as pernas caladas com meias de seda, muito elegante num fato negro, com umbroche de diamantes na gola da blusa de seda branca.Usava o cabelo preto cortado curto, com uma franja sobre a testa e encurvado aos lados da cara, emoldurandoos malares salientes e o queixo proeminente.--O que est a ver, to pasmado?--perguntou ela,de modo petulante.--Admiro-a! Demasiada cor nos lbios, como habitual, mas, por outro lado, diabolicamente bela!--Ora! Meta-se debaixo do banco e cale-se!--respondeu-lhe Anne-Marie.Desviou as pernas para o lado, e Craig puxou umaprancha, que deixou vista o espao sob o assento; rastejou l para dentro, voltando a coloc-la na mesma posio. Um momento mais tarde, encontraram um Kubelwagen atravessado na estrada, com meia dzia de SS espera.--Devagar, Ren!--recomendou ela.--H problema?--ouviu-se perguntar Craig Osbourne, numa voz amortecida.--No, se tivermos sorte. Conheo o oficial. Estevecolocado no castelo durante uns tempos.Ren parou o carro e um jovem tenente SS avanou,de pistola em punho. A face iluminou-se-lhe, repondo aarma no coldre:--Mademoiselle Trevaunce! Um prazer inesperado.--Tenente Schultz. --Abriu a porta e estendeu amo.--Um problema muito desagradvel. Um terroristadisparou sobre o general Dietrich, em Saint Maurice.--Pareceu-me ouvir tiroteio para esses lados--disseela.--E como est o general?--Mataram-no, mademoiselle!--respondeu-lheSchultz.--Eu prprio vi o corpo. Uma coisa tremenda.Assassinado na igreja, durante a confisso.--Abanou acabea. -- incrvel que haja gente desta no mundo!--Lamento muito--disse ela, apertando-lhe a mo,num gesto de simpatia.--Venha visitar-nos um dia destes. A condessa tinha um fraco por si... Tivemos muitapena que se tivesse vindo embora!Schultz corou:--Peo-lhe que apresente os meus cumprimentos.No a retenho mais tempo.Gritou uma ordem e um dos seus homens fez recuaro Kubelwagen. Schultz saudou e Ren avanou com ocarro.--A mamselle tem a sorte do Diabo, como sempre!-observou ele.Anne-Marie Trevaunce acendeu outro cigarro, enquanto Craig murmurava:--Errado, Ren, meu amigo. Ela o Diabo.Na quinta, guardaram o Rolls-Royce na garagem, enquanto Ren foi em busca de informao. Osbourne despiu o dlman e rasgou a manga da camisa, ensopada emsangue.Anne-Marie examinou a ferida.--No muito grave. A bala no entrou, apenas cavou um sulco. De qualquer modo, um ferimento feio,no se esquea.Ren voltou com um embrulho de roupas e um pedaode lenol branco, que comeou a rasgar em tiras.--Ligue-o com isto, mamselle.Anne-Marie comeou a pensar o ferimento e Osbourneperguntou:--Qual a situao actual?--S c est o velho Jules, e ele quer-nos fora daqui omais depressa possvel--respondeu Ren.--Vista estasroupas, que ele lana as velhas na fornalha. Recebemosrecado do Grand Pierre a dizer-nos que Londres comunicou que o recolhem num torpedeiro hoje noite, ao largode Lon. Ele no pode ir, mas manda l um dos homens,o Blriot. bom tipo, conheo-o bem.Osbourne passou para o outro lado do Rolls e mudoude roupa. Voltou envergando um bon de l, casaco ecalas de bombazina e botas. Meteu a Walther no bolsoe entregou a farda a Ren, que saiu logo.--Estou bem?--perguntou ele a Anne-Marie.Ela riu-se.--Se tivesse uma barba de trs dias, talvez estivesse,mas, assim, e para lhe ser franca, continua a parecer-meum homem de Yale.--No h dvida que a sua opinio extremamentereconfortante!Ren regressou, e sentou-se atrs do volante:-- melhor irmos andando, mamselle. Vai levar-nosuma hora at l.Anne-Marie baixou a prancha do assento:--Ora vamos l a entrar, como um menino ajuizado!Craig obedeceu, e espreitou para ela.--O ltimo a rir... serei eu! Hoje noite, jantar noSavoy, com os Orpheans a tocar, Carrol Gibson a cantar,baile, lindas mulheres...Ela fechou a prancha, entrou no carro e Ren iniciou amarcha.Lon era uma aldeia de pescadores to pequena quenem tinha um cais, pelo que grande parte dos barcoseram puxados para a praia. O nico sinal de vida em toda a povoao era o som da msica de um acordeo nataberna. Passaram adiante, seguindo um caminho irregular at um farol fora de servio, sobranceiro a uma pequena baa. Um nevoeiro muito denso avanava do marpara terra, e, algures a distncia, ouvia-se o som triste deuma ronca. Ren guiou-os at praia, com uma lanternana mo.Craig voltou-se para Anne-Marie:--No venha connosco at l abaixo. S servir paraestragar os sapatos. Fique no carro.Ela tirou os sapatos e lanou-os sobre o assento traseiro do Rolls.--Certo, meu caro. Todavia, graas aos meus amigosnazis, tenho uma reserva inexaurvel de meias de seda.Posso dar-me ao luxo de dar cabo de um par, em nomeda amizade.Pegou-lhe no brao e foram ter com Ren.--Amizade?--inquiriu Craig.--Se bem me lembro,houve mais do que isso em Paris, nos velhos tempos!--Histrias velhas, que melhor esquecer, meu amigo.Segurou-lhe o brao com fora e Osbourne conteve subitamente a respirao, consciente de que o brao lhedoa muito mais. Anne-Marie voltou a cabea e perguntou:--Sente-se bem?--O raio do brao est a doer um bocado, mais nada!Ouviram um murmrio de vozes quando se aproximaram da praia, encontrando Ren e outro homem sentadosao lado de um pequeno bote, com um motor fora de bordo inclinado sobre a r.--Blriot--apresentou Ren.---Mamselle.--Blriot tocou a pala do bon, cumprimentando Anne-Marie.-- este o barco, no verdade?--perguntou Craig.--E que devo eu fazer com ele, mais precisamente?--Passando o cabo v a luz de Grosnez, senhor major.--Com este nevoeiro?--Que est muito baixo.--Blriot encolheu os ombros.--Bem, eu pus no bote uma lanterna de posio, eh isto ainda.--Tirou do bolso uma bola de sinalizaoluminosa.--A SOE fornece-nos estas coisas, que funcionam muito bem na gua.--Onde, muito provavelmente, acabarei por cair,dado o cariz do tempo--comentou Craig, observando asondas a desfazerem-se com fria na praia.Blriot tirou um colete salva-vidas da embarcao eajudou-o a vesti-lo.--No tem outra alternativa, senhor. Tem de ir.O Grand Pierre disse que eles esto a voltar a Bretanhade pernas para o ar, sua procura.Craig deixou que ele lhe apertasse as correias do salva-vidas:--J fizeram refns?--Claro! Dez em Saint Maurice, incluindo o presidente da Cmara e o padre Paulo. Mais dez, nas quintas dascercanias.--Meu Deus!--murmurou Craig.Anne-Marie acendeu um Gitane e passou-lho.--O nome do jogo, meu amado, ambos o sabemos.O resto, no lhe diz respeito.--Bem gostaria de pensar assim!--respondeu-lheCraig, enquanto Ren e Blriot arrastavam o bote para agua. Blriot subiu para bordo e fez funcionar o motor.Voltou a sair.Anne-Marie beijou Craig rapidamente:--Toca a andar, como um menino bem-comportado!Saudades a Carrol Gibbons!Craig entrou no bote e agarrou a cana do leme. Voltou-se para Blriot, que segurava o barco em frente deRen.--Tenho de me encontrar com um torpedeiro, no verdade?--Ou uma canhoneira. Da Armada britnica ou daFrana Livre... de uma ou de outra. Esto l sua espera, senhor. Eles nunca nos deixaram ficar mal, at data.--At vista, Ren, tome conta dela!--disse Craig,enquanto eles o empurravam para alm da rebentao,donde o motorzinho do bote o fez avanar.Passando ao largo do cabo e fazendo-se ao mar aberto,cedo se viu a contas com problemas. As ondas levantavam flocos de espuma, o vento refrescava e a gua entrava a bordo, de tal modo que j lhe chegava aOs tornozelos.Blriot tivera razo, pois, ocasionalmente, lobrip&aa luz de Grosnez entre os farrapos de nevoeiro arrastadopelo vento. Governou o bote na sua direco, quando, desbito, o motor parou. Tentou freneticamente p-lo atrabalhar, puxando a corda de arranque, mas em vo, seguindo o bote ao sabor da corrente.Uma onda enorme--longa e lisa e muito mais alta doque as outras--suspendeu o bote no ar, numa espciede movimento lento, com a gua entrando a jorros.Num pice, o barco mergulhou como uma pedra, eCraig Osbourne ficou deriva na gua, flutuando graasao salva-vidas.A gua estava terrivelmente fria, mordendo-lhe braose pernas como se de cido se tratasse, de tal modo que seesqueceu da dor do ferimento. Outra onda enorme sucedeu primeira, e ficou a boiar do outro lado, em guasmais calmas.--No nos safamos, rapaz!--exclamou para si prprio.--No nos safamos mesmo!--Nesse momento, ovento abriu mais um buraco na cortina de nevoeiro, viua luz de Grosnez, e, ao mesmo tempo que ouvia oronronar surdo de um motor, vislumbrou uma forma escuraum pouco adiante.Elevou a voz e gritou desesperadamente:--Aqui, aqui!--Lembrou se ento da bola luminosaque Blriot lhe tinha dado, e, tacteando com os dedos gelados, tirou-a do bolso, segurando-a com a mo direitasobre a cabea.A cortina de nevoeiro caiu novamente, a luz de Grosnez desapareceu e o ronronar dos motores pareceu serengolido pela noite.--Pr qui, seus sacanas!--urrou Osbourne, e, ento,um torpedeiro emergiu do nevoeiro, como um navio fantasma, e dirigiu-se para ele.Nunca na vida sentira tamanho alvio como quando ligaram um farol e o focaram na gua. Comeou a bracejarem sua direco, esquecendo-se por momentos da dor nobrao, e, subitamente, parou. Havia algo de errado comaquele barco. A pintura, por exemplo, de um branco-sujo mistura com verde-mar, com uma vaga sugestode faixas de camuflagem. De repente, a bandeira no mastro estalou ruidosamente, forada a drapejar com violncia por uma rajada de vento mais forte. Distinguiu perfeitamente a sustica, no canto superior esquerdo, e overmelho e negro da Kriegsmarine. No se tratava de umtorpedeiro ingls, mas de um navio da classe E, alemo;ao passar na sua frente, leu o nome, pintado na proa, aolado do nmero: Lili Marlene.O navio pareceu parar, com os motores num murmrio, apenas. Deixou-se flutuar, com uma mgoa enormeno corao, olhando para dois marinheiros de bons deorelhas e jaquetes de l grossa, que o miravam, l de cima. Um deles lanou uma escada de corda sobre a amurada, gritando:--Sobe, meu velho!--ouviu ele dizer no mais purosotaque cockney.--Sobe pr qui.Tiveram de o ajudar a passar sobre a amurada. Ajoelhou-se e vomitou um pouco no convs. Olhou para cimacautelosamente, ao ouvir o marinheiro alemo perguntaralegremente:--Major Osbourne, no verdade?--Correcto.O alemo baixou-se:--Meu major, est a perder muito sangue do braoesquerdo. Deixe que trate disso! Sou o enfermeiro debordo.Osbourne perguntou:--Mas que se passa aqui?--No me compete dizer-lho, meu major. Isso como comandante, o Fregattenkapitan Hare. Encontra-o naponte.Craig Osbourne levantou-se penosamente, tacteando ascorreias do salva-vidas e tirando-o, e subiu aos tropeesa escada curta. Entrou na casa do leme, que estava entregue a um graduado, um Obersteuennann, ou timoneiro-chefe, a julgar pelas divisas. O homem sentado na cadeira giratria mesa da carta de marear tinha na cabeaum bon amarrotado, com o topo branco-- semelhana do hbito dos comandantes de submarinos, mas tambm suficientemente comum entre os comandantes detorpedeiros, que se consideravam a lite da Kriegsmarine; e usava uma camisola branca de gola alta sob um dlman curto de marinheiro. Voltou-se para olhar para Osbourne, com uma face calma e sem expresso.--Major Osbourne--disse, com bom sotaque americano.-- um prazer t lo a bordo. Peo que me desculpe por um momento. Temos de sair daqui.--Voltou-separa o timoneiro e disse, em alemo: --Muito bem,Langsdorff. Mantenha os silenciadores a trabalhar, atestarmos cinco milhas ao largo. Rota dois-um-zero. Velocidade vinte e cinco ns, at ordem em contrrio.--Rota dois-um-zero, velocidade vinte e cinco ns,Herr Kapitan'--respondeu o homem do leme. O torpedeiro arrancou, num impulso de fora.--Hare! --exclamou Craig Osbourne. --ProfessorMartin Hare!Hare tirou um cigarro de uma lata de Benson Hedgese ofereceu-lhe outro.--Conhece-me? J nos encontrmos?Osbourne pegou no cigarro, com os dedos trementes:--Depois de Yale, interessei-me pelo jornalismo. Trabalhei para a revista Life, entre outras. Paris, Berlim.Passei grande parte da minha juventude por esses lados.O meu pai pertencia ao Departamento de Estado. Era diplomata.--Mas quando nos encontrmos?--Uma vez, voltei a casa, de frias... Boston, Abrilde trinta e nove, devo acrescentar. Um amigo falou-mede uma srie de palestras que o senhor estava a proferirem Harvard. Em princpio, sobre literatura alem, masmuito politicas, muito antinazis. Assisti a quatro dessasconferncias.--Estava l aquando das desordens?--Quando os tipos do American Bund2 tentaram impedir a reunio? Oh! Claro que estava. Parti uma dasmos no focinho de um daqueles macacos. O senhor foina verdade magnfico!--Abriram a porta, entrando ococknfv, e Osbourne sentiu um tremor de frio.--Que se passa, Schmidt?--perguntou-lhe Hare emalemo.Schmidt trazia um cobertor:--Pensei que o senhor major podia precisar disto.Gostaria tambm de fazer notar ao Herr Kapitan que eleest ferido no brao esquerdo e que precisa de cuidadosmdicos.--Faa o seu trabalho, Schmidt--respondeu-lheMartin Hare.--Trate dele.Sentado numa estreita cadeira na pequena sala de oficiais no convs inferior, Osbourne observava Schmidt afazer o penso da ferida com percia profissional.--Um pouco de morfina, patro, para tornar as coisasum pouco mais confortveis.--Tirou uma seringa dabolsa de enfermagem e injectou Osbourne no brao.Craig perguntou-lhe:--Quem voc? evidente que no alemo.--Oh! Mas o caso que sou, de certo modo... ou,pelo menos, eram-no meus pais. Judeus que pensaramque Londres poderia ser um lugar mais hospitaleiro doque Berlim. Quanto a mim, nasci em Vhitechapel.Martin Hare, da porta, disse em alemo:--Schmidt, tens uma boca rota.Schmidt levantou-se de um salto, pondo-se em sentido: _ 3tawohl, Herr Kapitan.--Vamos l, desanda daqui!Schmidt sorriu com ironia, pegou na bolsa de enfermagem e saiu. Hare acendeu um cigarro:--Temos uma tripulao mista. Americanos e britnicos, com alguns judeus, mas todos falam alemo fluentemente e assumem uma nica personalidade, quando servem neste navio.--Um torpedeiro alemo sob a nossa bandeira!--disse Osbourne.--Estou verdadeiramente impressionado.O segredo mais bem guardado que jamais vi.--Devo inform-lo que levamos o caso at s suas ltimas consequncias. Por via de regra, apenas falamosalemo, e s usamos o uniforme de Kriegsmarine. Fazemo-lo at mesmo na base, em terra. Fazemos questo denos mantermos dentro do papel. claro que por vezes osrapazes quebram a regra da linguagem, e Schmidt umbom exemplo disso.--E onde a base?--um portozinho chamado Cold Harbour, perto daponta Lizard, na Cornualha.--A que distncia?--Daqui, Cem milhas. Chegamos l pela manh. Deregresso, nunca vamos muito depressa. O nosso pessoalavisa-nos de antemo das rotas nocturnas dos navios torpedeiros da Royal Navy. Preferimos manter-nos longedas vistas...--Claro que sim. Um encontro com eles seria um azardos diabos! Quem dirige esta operao?--Oficialmente, a Seco D da SOE, mas, na realidade, trata-se de um empreendimento conjunto, segundosei.--Claro.--Um modo de ganhar a vida bem traioeiro!--Bem o pode dizer.Hare sorriu foradamente:--Vejamos se h sanduches na cozinha. Est com aspecto de quem precisa de comer.--E saiu.S pouco antes do alvorecer Osbourne voltou ao convs. O mar estava bastante picado e a espuma fustigava-lhe o rosto. Subindo as escadas e entrando na casado leme, encontrou Hare sozinho, de face sisuda e meditabunda, iluminada pela luz da bitcula. Osbournesentou-se mesa da carta de marear e acendeu um cigarro.--No consegue dormir?,--perguntou Hare.--Navegar no est nos meus hbitos, o que j no sepassa consigo, no verdade?--No, de facto--respondeu-lhe Hare.--No soucapaz de me lembrar de um perodo da minha vida emque os barcos no tenham desempenhado papel importante. Tinha oito anos quando o meu av se fez ao marcomigo, na minha primeira viagem.--Tenho ouvido dizer que o canal da Mancha difcil!--Diferente das ilhas Salomo como o demo que o leve, l isso verdade!--Esteve l, antes disto?--Sim--respondeu Craig, fazendo um aceno com acabea.--Tenho ouvido dizer que os navios torpedeiros sobrincadeira de gente nova...--comentou Osbourne,curioso.--Bem, quando se precisa de algum com a devidaexperincia e que fale alemo fluentemente, h que aceitar o que aparece!--e, assim dizendo, Hare deu umagargalhada.Pairava agora uma luminosidade cinzenta em torno donavio. O mar estava mais calmo, e j se avistava terra, lmais para a frente.--A ponta Lizard--anunciou Hare.Sorria novamente, e Osbourne respondeu:--Gosta desta vida, no verdade?--Bem, talvez possa dizer que sim!--respondeu Hare, encolhendo os ombros.--Gostar de verdade, quero eu dizer. Presumo queno gostaria de voltar para o seu trabalho anterior... paraHarvard.--Talvez no.--Hare assumiu um ar grave.--Haver algum de ns que saiba o que vai fazer quando istoacabar? O senhor sabe, por exemplo?--No tenho para onde voltar, mas o meu problema diferente!--volveu-lhe Osbourne.--Parece que at tenho talento para isto. Ontem, matei um general alemo... numa igreja, s para demonstrar como no soudotado dos sentimentos mais nobres. Tratava-se do chefedos Servios de Informao da SS para toda a BretanhaFrancesa. Um carniceiro que merecia morrer.--Ento, qual o seu problema?--Eu mato-o, eles fazem vinte refns e fuzilam-nos.A morte segue as minhas pisadas, se bem compreende oque quero dizer.Hare no respondeu. Reduziu a potncia e abriu umajanela, deixando entrar a chuva. Contornaram a ponta, eOsbourne distinguiu uma pequena angra encaixada nabaa que se avistava do largo, com um vale arborizado sobranceiro.Um portozinho cinzento aninhava-se ao fundo da angra, com escassas duas dzias de vivendas em volta. Havia ainda uma casa senhorial entre as rvores.A tripulao subiu ao convs inferior.--Cold Harbour, major Osbourne--disse-lhe Hare.Dirigiu para l o Lili Marlene.@TrsA tripulao ficou ocupada com a atracao do navio, enquanto Hare e Osbourne saam e seguiam pelo caisI empedrado.--As casas parecem todas iguais--observou Craig.- --Mas que so mesmo!--respondeu-lhe Hare.-O lugar foi fundado pelo senhor da manso, um tal Sir- William Chevely, em meados do sculo dezoito: as casas,o porto, o cais, tudo isto. De acordo com a lenda local,grande parte do dinheiro que fez veio do contrabando.Era conhecido como o Black Bill. --Estou a ver. Esta aldeia de pescadores-modelo servia-lhe de cobertura para as suas outras actividades.--Exactamente. A propsito, aqui o bar. Os rapazes usam-no como messe.Era um edifcio baixo e largo, com um fronto alto,madeiramento vista e janelas de pilar ao centro, que lhe conferiam um arisabelino.--No me parecem de estilo jorgiano. Tudor, talvez--comentou Craig.--As adegas so medievais. Houve sempre uma espcie de estalagem neste local--disse Hare, coxeando paraum jipe porta do bar.--Entre, vou lev-lo ao solar. Craig observou a tabuleta sobre o bar:--"O Enforcado".--Bastante apropriado--disse Hare, fazendo arrancaro motor.--Na verdade, trata-se de uma tabuleta nova.A antiga estava a cair de podre, e era revoltante. Um desgraado a balanar na ponta de uma corda, mos amarradas, lngua de fora.Comeara a andar, e Craig voltou-se para observar denovo a tabuleta. Mostrava um jovem de cabea para baixo, suspenso pelo tornozelo direito de uma forca de madeira. A face era calma, e a cabea estava rodeada porum halo.--Sabe que a tabuleta representa uma carta do Tarot.--perguntou.--Claro que sei. Foi a governanta do solar quem tevea ideia, Madame Legrand. Ela percebe dessas coisas.--Legrand. Ser Julie Legrand?--perguntou Craig.--Sim, essa mesmo.--Hare olhou-o, com curiosidade.--Conhece-a?--Conheci o marido antes da guerra. Ensinava filosofia na Sorbona. Mais tarde, entrou para a Resistncia,em Paris. Travei conhecimento com eles em quarenta edois. Ajudei-os a fugir, quando a Gestapo os perseguia.--Bem, ela est aqui desde o incio do projecto. Trabalha para a SOE.--E o marido, Henri?--Por aquilo que sei, morreu com um ataque cardacoem Londres, no ano passado.--Compreendo.Ultrapassaram a ltima casa. Hare informou:--Isto uma zona de defesa. Todos os civis forammandados embora. Usamos as casas para aboletamentodo pessoal. Para alm da minha tripulao, temos algunsmecnicos da RAF, que tratam dos avies.--Tambm tm aqui avies? Para qu?--Para os fins habituais. Lanar agentes ou traz-losde volta.--Sempre supus que esses trabalhos fossem da contado Esquadro dos Servios Especiais, em Tempsford.--E so, ou, pelo menos, so-no normalmente. A nossa actividade um pouco menos normal. Vou mostrar-lhos. Estamos a chegar ao campo de aviao.A estrada fazia uma curva entre rvores e, mais alm,na-se um enorme prado, com uma pista de aterragemrelvada. Numa ponta, erguia-se um hangar pr-fabricado.Hare entrou com o jipe pela porta da cerca, seguiu pelarelva e parou. Tirou um cigarro e acendeu-o.--Que acha?Um Fieseler Stork de reconhecimento saa do hangar,com a insgnia da Luftwaffe pintada nas asas e na fuselagem, e os dois mecnicos que o acompanhavam envergavam fatos-macaco da Luftwaffe. Mais atrs, j dentro dohangar, via-se um caa nocturno gu88.--Meu Deus!--exclamou Craig, em voz baixa.--J lhe tinha dito que as coisas por aqui eram sobreo inusitado.O piloto do Stork saltou para fora do avio, trocou algumas palavras com os mecnicos e encaminhou-se paraeles. Usava botas de voo, calas largas e confortveis emazul-cinza, iguais s dos pilotos de caa da Luftvaffe-pouco vulgares, com grandes bolsos para mapas. UmFliegerbluse' curto dava-lhe um ar elegante. Usava o distintivo de prata de piloto do lado esquerdo, com umaCruz de Ferro de La classe por cima, e o emblema daLuftwaffe do lado direito.--Tudo, inclusive o raio da Cruz de Cavaleiro!--comentou Osbourne.--Sim, este moo bastante fantasista--disse-lheHare.--Talvez at algo psicopata, se pretende a minhaopinio. No entanto, ganhou duas DFC2 na Batalha daInglaterra.O piloto aproximou-se. Tinha cerca de vinte e cincoanos, e o cabelo sob o bon era louro-palha, quase branco. Embora parecesse sorrir com frequncia, tinha umricto de crueldade na boca e os olhos eram frios.--Tenente-aviador Joe Edge, major Craig Osbourne,do OSS.Edge sorriu com simpatia suficiente, e estendeu amo:--Especializado em banditismo, hem?Craig no gostou dele nem um pouquinho, mas tentouno o mostrar.--Tm aqui uma boa organizao.--Bem, o Stork pode levantar e aterrar em qualquerstio. Na minha opinio, melhor que o ALysander.--Como camuflagem, as insgnias da Luftvaffe sopouco correntes...Edge riu-se:--H ocasies em que so teis. O ms passado tiveum problema com o tempo, de tal modo que fiquei compouco combustvel. Aterrei na base de caas da Luftvaffe em Granville. Consegui que eles me reabastecessem.No houve problema.--Sabe, ns temos umas credenciais maravilhosas, assinadas por Himmler e confirmadas pelo Fhrer, queprovam que nos encontramos em misso especial de segurana para a SS. Ningum ousa p-las em dvida!-explicou Hare.--At me ofereceram jantar na messe!--continuouEdge, falando para Craig. --Claro, como a minhamezinha querida uma Kraut, eu falo fluentementeambas as Lnguas, o que ajuda muito.--Voltou-se paraHare:--D-me uma boleia para o solar, meu velho? Segundo me disseram, o patro deve estar a chegar, vindode Londres.--No sabia--respondeu Hare.--Salte para dentro.Edge sentou-se no banco traseiro. Quando comearama andar, Craig perguntou:--A sua me? Est c, no?--Santo Deus! Est! Viva. Vive em Hampstead.O maior desgosto da vida dela foi Hitler no ter conseguido subir pela Mall at ao Palcio de Buckingham, emquarenta.Riu estrondosamente. Craig voltou-se, detestando-oainda mais, e dirigiu-se a Hare:--Tenho estado a pensar. Disse o senhor que a Seco D dirige esta coisa. No me diga que se trata do Departamento dos Golpes Sujos?--Nem mais.--Ser Dougal Munro quem ainda o dirige?--Tambm o conhece, ento!?--Oh! Claro que conheo! Trabalhei para a SOEdesde o incio. Antes de ns termos entrado na guerra.Tivemos relaes, eu e o Dougal. Um sacana sem piedade.--Como que se ganham as guerras, meu velho!-comentou Edge.--Estou a ver. Para si vale tudo, no?--perguntouCraig.--Desde que faamos o nosso trabalho...Durante um breve instante, Crai;g entreviu atravs dagrelha do confessionrio a face assustada do general Dietrich. Voltou-se, pouco vontade.Hare comentou:--Munro no mudou. O lema dele que todos osmeios so lcitos, mas o senhor ter ocasio de o verificarpor si prprio, dentro em pouco.Passou alm da cancela levadia e parou num ptiocom um mastro de bandeira ao centro. Era uma mansode trs andares, construda em pedra cinzenta. Muito antiga, muito pacfica, sem nada que a relacionasse de qualquer modo com a guerra.--Isto tem nome?--perguntou Craig.--Abadia de Grancester. Magnificente, hem?--informou Edge.Hare disse:--Eis-nos chegados.--Saiu do jipe.--Enfrentemoso urso no covil, se que j l est.Ora, nesse preciso momento, o brigadeiro Dougalunro era introduzido na Biblioteca de Hayes Lodge,em Londres--a casa que o general Dwight Eisenhowerusava como quartel-general provisrio. O general bebiacaf, que acompanhava com uma torrada, e lia a edioda manh de The Tites, no momento em que um jovemcapito fez entrar Dougal Munro, fechando a porta atrsde S.--Bom dia, brigadeiro. Caf, ch... o que quiser anesse armrio.--Munro serviu-se de ch.--Como vaiesse seu projecto de Cold Harbour?--At agora, bem, meu general.--O senhor sabe que a guerra se parece um poucocom o prestidigitador que engana as pessoas, fazendo-asobservar a sua mo direita, enquanto a esquerda faz otrabalho que se pretende.--Eisenhower serviu-se demais caf.--Decepo o nome do jogo. Recebi um relatrio das Informaes que me diz que Rommel tem feito coisas incrveis, desde que o encarregaram da Muralhado Atlntico.-- um facto, meu general.--Esse seu torpedeiro j fez tantas misses nocturnasde transporte de oficiais de engenharia s costas de Frana, para a estudarem as praias, que o senhor deve nestemomento ter formado uma ideia bastante razovel do local onde pretendemos atacar.--Assim , meu general--respondeu Munro, calmamente.--Tudo indica que se trate da Normandia.--Correcto. Voltamos, por conseguinte, decepo.--Eisenhower dirigiu-se para um mapa mural.--TenhoPatton a comandar um exrcito fantasma na AngliaOriental. Acampamentos militares simulados, avies falsos... trabalhos da engenharia.--O que indicar aos alemes que temos a inteno detomar a via mais curta e fazer a invaso na zona do Pasde Calais?--O que eles tm considerado desde sempre comosendo a nossa inteno, por ser a mais lgica, sob o aspecto militar--acrescentou Eisenhower.--Pusemos ascoisas em movimento, tendo em vista dar fora a essaideia. De facto, a RAF e a Oitava Fora Area iro atacaressa zona com frequncia, quando se aproximar a data dainvaso, para que parea que estamos a tentar enfraquecer a oposio que possamos encontrar. Os grupos da Resistncia da regio sabotaro constantemente linhas deaLta tenso, caminhos de ferro e objectivos do gnero.Naturalmente, os agentes duplos de que dispomos transmitiro as informaes verdadeiras... que so as falsas...ao Quartel-General da Abwehr'.Manteve-se em p, contemplando o mapa, at queMunro perguntou:--Preocupa-o algo, meu general?Eisenhower dirigiu-se para a janela oitavada, acendendo um cigarro:--Houve quem pretendesse a invaso para o fim doano passado. Deixe-me explicar-lhe porque no o fizemos. Foi sempre convico da SHAEF que s podemoslevar a melhor nesta invaso se dispusermos de todas asvantagens. Mais homens do que os alemes, mais carrosde combate, mais avies... superioridade total. E sabeporqu? Porque, em todas as batalhas desta guerra travadas ente foras iguais, fossem elas com russos, inglesesou americanos, os alemes levaram sempre a melhor.Unidade contra unidade, eles provocam normalmentecinquenta por cento de baixas a mais.--Tenho conhecimento de to infeliz circunstncia,meu general.--Os Servios de Informao enviaram-me pormenores de um discurso de Rommel aos seus generais, h diasatrs. Dizia ele que, se no nos batesse nas praias, os alemes perderiam a guerra.--E penso que tem razo, meu general.Eisenhower voltou-se:--Brigadeiro Munro, tenho sido at hoje muito cptico quanto ao verdadeiro valor dos agentes secretos nestaguerra. Na melhor das hipteses, o material que conseguem usualmente superficial. Parece-me que as melhores informaes que conseguimos tm sido obtidas atravs da descodificao de mensagens do projecto Ultra.--Concordo.--Munro hesitou.--Na realidade, se,' Abwe)tr: equivalente germnico do Estado-Msior-General das ForasArmadas. (N. do T.) logo partida, a informao principal no tiver sido cifrada pelas mquinas Enigma, os factos no constaro dasmensagens que descodificmos, e podero muito bem seresses os factos mais relevantes.--Precisamente.--Eisenhower inclinou-se para afrente.--O senhor enviou-me um relatrio a semanapassada que quase me recuso a acreditar. Dizia-me neleque vai realizar-se dentro em breve uma reunio de estado-maior presidida pelo prprio Rommel. Uma reuniocujo objectivo nico so as defesas da Muralha do Atlntico.--Exactamente, meu general. Num local chamadoChateau de Voincourt, na Bretanha.--Dizia ainda que dispe de um agente que pode penetrar nessa reunio?--Correcto--respondeu Munro.Eisenhower respondeu:--Meu Deus, se eu fosse mosca e pudesse estar presente nessa reunio! Conhecer o pensamento de Rommele as suas intenes.--Ps uma das mos sobre os ombros de Munro.--Faz ideia da importncia de que isto sepode revestir? Trs milhes de homens e milhares de navios... mas a devida informao pode tornar tudo diferente. Compreende?--Perfeitamente.--No me deixe ficar mal, brigadeiro Munro. .Voltou-se e ficou a contemplar o mapa. Munro saiu dasala sem fazer rudo, desceu as escadas, pegou no chapue no sobretudo, respondeu com um aceno continnciadas sentinelas e entrou no automvel. O ajudante, o capito Jack Carter, estava sentado na retaguarda, com asmos apoiadas sobre o casto da bengala. Carter tinhauma perna postia, em recordao de Dunquerque.--Tudo bem, meu brigadeiro?--perguntou ele,quando j se afastavam.Munro subiu o vidro transversal, cortando qualquercomunicao com o motorista.--A conferncia de Voincourt assumiu importnciacrucial. Preciso de entrar em contacto com Anne-MarieTrevaunce. Ela poder inventar mais uma falsa viagem aParis. Arranje-me uma recolha com um Lysander. Tenhode falar com ela, cara a cara. Digamos, de hoje a trsdias.--Correcto.--H alguma noticia que deva conhecer?--Veio uma mensagem de Cold Harbour. Parece queo OSS teve problemas, ontem. Um dos agentes deles eliminou o general Dietrich, o chefe da SD na Bretanha.Devido ao mau tempo, a recolha com o Lysander que tinham planeado no pode efectuar-se, de modo que nospediram auxlio.--Sabe bem que essas coisas no me agradam.--Sim, meu brigadeiro. O caso que o comandanteHare recebeu a mensagem directamente, fez a travessiaat Grosnez e recolheu o agente em causa. Um tal majorOsbourne.Fez-se uma pausa e Munro voltou-se, atnito:--Craig Osbourne!--Parece que sim.--Meu Deus! Ele ainda est vivo? Mas que homem desorte! Ele foi o melhor agente que jamais tive na SOE!_ E Harry Martineau, meu brigadeiro?--Est certo, tem razo... e, para alm do mais, ele americano! Osbourne est em Cold Harbour, neste momento?--Sim, meu brigadeiro.--Bom, nesse caso pare no telefone mais prximo.Entre em contacto com o comandante da RAF em Croydon e pea-lhe um Lysander para mim, dentro de umahora. Prioridade mxima. Aguente o forte por aqui, etrate do caso da Anne-Marie Trevaunce. Vou at ColdHarbour falar com Osbourne.--Acha que ele nos vai ser til?--Certamente, Jack, pode ter a certeza disso!-Munro voltou-se e olhou atravs da janela, sorrindo.Craig Osbourne, de tronco nu, sentou-se numa cadeirajunto ao lavatrio do amplo e antiquado quarto de banho; Schmidt, ainda com o uniforme da Kriegsmarine e com a bolsa mdica aberta no cho, fazia-lhe o penso dobrao, sentado ao seu lado. Julie Legrand, encostada porta, observava. Entrava nos ltimos anos da dcadados trinta e usava calas largas, uma camisola castanha eo cabelo louro atado sem enfeite atrs da cabea, fazendocontraste com uma face calma e suave.--Como est isso?--perguntou ela.--Assim-assim.--Schmidt encolheu os ombros.-Nunca se sabe o que vai suceder com feridas de bala. Tenho aqui essa droga nova, a penicilina. Diz-se que temefeitos maravilhosos nas infeces.Accionou uma seringa, enchendo-a a partir de umfrasquinho. Julie disse:--Esperemos que sim. Vou buscar caf.Saiu, ficando Schmidt a dar a injeco. Osbourne vacilou ligeiramente e Schmidt aplicou um penso, ligando obrao com destreza.--Parece-me que vai precisar de um mdico, patro--disse ele, alegremente.--Vamos l ver!--respondeu Craig.Levantou-se, e Schmidt ajudou-o a vestir uma camisade caqui que Julie tinha arranjado. Conseguiu apert-laele prprio, e passou ao quarto seguinte, enquantoSchmidt reacondicionava a sua bolsa mdica.O quarto era muito agradvel, mas um pouco pobre emuito necessitado de nova decorao. Tinha uma cama,moblia de mogno e uma mesa e duas poltronas junto dajanela. Craig foi observar as vistas. Em baixo, havia umterrao com uma balaustrada, um jardim por cuidar emfrente da casa, faias mais alm e uma lagoa num covo.Tudo muito tranquilo.Schmidt saiu do quarto de banho, com o estojo mdiconuma das mos:--Volto a observ-lo mais tarde. Quanto a mim, boaaltura para uma dose de presunto e ovos.--Sorriu, coma mo sobre o puxador da porta.--E no me venha recordar que sou judeu! H j muitos anos que fui corrompido pelo pequeno-almoo inglesa.Quando abriu a porta, Julie Legrand entrou com umabandeja com caf, po torrado, marmelada e bolos.Schmidt saiu e ela colocou o tabuleiro na mesa ao p dajanela. Sentaram-se em frente um do outro.Servindo-lhe o caf, Julie tagarelou um pouco:--Sinto-me feliz por v-lo novamente, Craig.--Parece j coisa de h tanto tempo, o que se passouem Paris...--disse ele, pegando na chvena de caf queela lhe passava.--H mil anos!--Lamento o que se passou com o Henri--continuou.--Ataque do corao, no foi?Julie acenou:--Ele no deu por nada. Morreu a dormir... mas, aomenos, sempre viveu os ltimos dezoito meses em Londres. Devemo-lo a si.--No diga isso!--Craig sentia-se estranhamenteembaraado.-- a verdade, nada mais. Quer torradas ou um bolo?--No, obrigado. No tenho apetite. Mas bebia outrachvena de caf.Serviu-o, dizendo:--Sem o senhor, nunca teramos conseguido fugir Gestapo, naquela noite. O senhor estava doente, Craig.J esqueceu o que aqueles animais lhe fizeram? E, noobstante, voltou atrs com o camio, por causa de Henri,quando muitos outros o teriam abandonado.--Ficourepentinamente muito comovida, com as lgrimas abrotarem-lhe dos olhos.--Deu-lhe uma vida, Craig,fez-lhe a ddiva dos ltimos meses de vida em Inglaterra. Por causa disso, sentir-me-ei eternamente em divida para consigo.Ele acendeu um cigarro, levantou-se e olhou para fora.--Deixei a SOE depois desse caso. A minha gente estava a organizar o OSS. Eles precisavam da minha experincia e, para lhe ser honesto, j estava farto do DougalMunro.--Trabalho para ele h quatro meses, aqui--disseela.--Ns usamos isto como ponto de partida, asilo seguro, enfim, o costume.--D-se bem com Munro, ento?-- um homem duro.--Encolheu os ombros:-Mas, que fazer, se a guerra tambm dura!Ele anuiu.--Uma organizao estranha, esta que aqui tm, e aspessoas ainda so mais estranhas. O piloto Edge, porexemplo, pavoneando-se no uniforme da Luftwaffe, numa espcie de teatralizao de Adolfo Galante.--Sim, Joe mesmo louco, at nos seus dias bons-disse ela.--Por vezes, penso que ele se julga mesmo daLuftwaffe. Pe-nos os nervos em franja, mas sabe como Munro... sempre pronto a olhar para o outro lado,quando se convence que um homem mesmo bom noservio. E, na verdade, o currculo de Edge extraordinrio.--E Hare?--Martin?--Ela sorriu, enquanto voltava a colocaras chvenas na bandeja.--Ah! Mas Martin outra coisa. Tenho a impresso que estou um bocadinho apaixonada por ele...A porta abriu-se e Edge entrou, sem bater:--Ento, ambos aqui. rao tate-tate!Encostou-se parede e entalou um cigarro no canto daboca. Julie disse com ar cansado:--No fundo, s mesmo um velhacote, no verdade,Joe?--Toque num ponto sensvel, minha linda? No terales.--Voltou-se para Osbourne.--O patro acaba dechegar de Croydon.--Munro?--Deve querer v-lo com urgncia, pois est sua espera na biblioteca. Eu levo-o l.Saiu. Osbourne voltou-se e sorriu para Julie:--At logo!--disse, e foi atrs de Edge.A biblioteca era uma sala imponente, com as paredescheias de livros desde o cho at a um tecto muito belo,em estuque jacobino. Ardia um toro numa lareira aberta,com poltronas e cadeiras de couro, muito confortveis,alinhadas sua volta. Quando Craig entrou, Munro estava de p, em frente do fogo, limpando cuidadosamenteos culos. Edge ficou encostado parede, perto da porta.Munro ajeitou os culos no nariz e olhou calmamente para Osbourne.--Podes esperar l fora, Joe.--Ora! Ento vou perder o espectculo?--exclamouEdge"embora obedecendo ordem.--E bom voltar a v-lo, Craig--disse Munro.--No posso dizer que pense do mesmo modo!-respondeu-lhe Craig, dirigindo-se para uma das cadeiras,sentando-se e acendendo um cigarro.--Voltamos demasiadamente atrs no tempo.--No seja azedo, meu caro, no prprio.--Oh! Mas sou, pois, para o senhor, fui sempre uminstrumento rombo.Munro sentou-se em frente.--Dito de uma forma colorida, mas correcta. E agora,como vai esse brao? Schmidt tem-no tratado?--Diz ele que tenho de ir a um mdico, para evitarque surja agravamento.--Isso no problema. J vamos tratar do assunto.Este caso do Dietrich, Craig. Na verdade, foi um feito,em que demonstrou todo o seu talento habitual, se me permitido diz-lo. Vai dar a Himmler e ao SD problemasgraves.--E quantos refns fuzilaram, em retaliao?Munro encolheu os ombros:--E a guerra. No problema que lhe diga respeito.Craig respondeu:--Precisamente a frase que Anne-Marie usou. Exactamente a mesma.--Ah! Sim, tive o prazer de saber que ela lhe prestouajuda. Sabe, ela trabalha para mim.--Que Deus a ajude, ento!--volveu Craig, de modoforado.--E a si tambm, meu caro. Sabe, o senhor, a partirde agora, faz parte da organizao.Craig inclinou-se para a frente, lanando o cigarro aolume.--Um raio me parta, se fao! Sou oficial do Exrcitoamericano, major do OSS. No me pode tocar.--Mas claro que posso! Trabalho sob o comando directo do prprio general Eisenhower. O projecto de ColdHarbour um empreendimento conjunto. Hare e quatrodos seus homens so americanos. O senhor vai trabalharcomigo, Craig, por trs razes. A primeira, porque sabedemasiado acerca do Projecto de Cold Harbour. A segunda, porque eu preciso aqui do senhor: h muitas coisas asucederem e o seu contributo pode ser muito positivo.--E qual a terceira razo?--perguntou Craig.--Muito simples. O senhor oficial das Foras Armadas do seu pas, tal como eu, e cumpre ordens, tal comoeu.--Munro levantou-se:--Deixemo-nos de toleimas,Craig. Vamos at ao bar, encontramo-nos com Hare e informamo-lo, a ele e tripulao, que o senhor passa a fazer parte do clube.Voltou-lhe as costas e encaminhou-se para a porta;Craig seguiu-o, sentindo a cabea vazia e desespero nocorao.O Enforcado era precisamente o que se poderia esperar, um bar rural ingls tpico. O cho era empedrado,havia um toro a arder numa lareira aberta, mesas de ferro trabalhado com anos e anos de muito uso, cadeiras demadeira de espaldares altos. O tecto tinha as traves vista e o balco de mogno era suficientemente convencional,com as garrafas ordenadas em prateleiras na parede pordetrs. O nico facto incongruente era Julie a tirar cervejas e os uniformes da Kriegsmarine usados pelos homensencostados ao balco.Quando o brigadeiro entrou, seguido por Osbourne eEdge, Hare estava sentado lareira, bebendo caf e lendo um jornal. Levantou-se, e deu uma voz de comando,em alemo:--Sentido. Oficial general presente!Os homens bateram os calcanhares. O brigadeiroMunro acenou com a mo, e disse, em alemo passvel:-- vontade. Continuem bebendo.--Estendeu umamo e disse a Hare:--No h necessidade das formalidades usuais. Falemos em ingls. As minhas felicitaespelo trabalho de ontem noite.--Obrigado, meu brigadeiro.Munro aqueceu as costas ao fogo.--Bom, o senhor tomou a iniciativa, neste caso... oque est correcto... mas, para futuro, deve apresentar-meo problema.Edge voltou-se para Hare:--Bom trabalho, meu velho. Pelo que sabemos, o bravo major bem podia ter sido abandonado sua sorte!Algo passou pelos olhos de Hare, que avanou um passo na direco de Edge, recuando este e rindo:--Pronto, meu caro, nada de violncias, por favor!--Voltou-se para o bar:--Jlia, minha flor! Um gimtnico dos grandes, s'il vous plait.--Tenha calma, Martin! ` interveio Munro.--Umvelhaco desagradvel, mas um piloto de gnio. Uma bebida para todos!--Voltou-se para Craig:--No quesejamos alcolicos, por c. Mas, como os rapazes trabalham de noite, bebem de manh!--Elevou a voz:--Prestem ateno, por favor. Como todos sabem, temos entre ns o major Craig, da Repartio de ServiosEstratgicos. O que ainda no sabem que, a partir deagora, passa a trabalhar connosco, aqui em Cold Harbour.Fez-se silncio. Julie, ao balco, deteve-se no acto detirar uma cerveja, com a face sria, mas Schmidt ergueua caneca de cerveja, brindando:--Que Deus o ajude, patro!Ouviu-se uma gargalhada geral e Munro disse a Hare:--Apresente-lhe o pessoal, Martin.--Voltou-se paraOsbourne:-- claro, sob as identidades que aqui assumiram.O sargento-chefe, Langsdorff, que tinha visto ao leme,era americano, bem como Hardt, Wagner e Bauer.Schneider, o chefe de mquinas, era obviamente alemoe, como descobriu mais tarde, Wittig e Brauch, tal comoSchmidt, eram judeus ingleses.Craig sentia-se agora mesmo mal. Suava e tinha conscincia de ter a testa a escaldar.--Est calor, aqui! Um calor infernal!--disse ele.Hare olhou-o com curiosidade.--Quanto a mim, at me parece que est frio, estamanh. Sente-se bem?Edge aproximou-se com dois copos. Entregou um aMunro e o outro a Craig:--O senhor parece-me homem de gim, major. Beba-ode um trago. Pe-lhe o pulso a galope! Julie h-de gostar!--V-se foder!--respondeu-lhe Craig, embora aceitando o copo e bebendo.--No, a ideia principal fod-la, meu velho. Muitoembora ela parea guardar-se.--s um porco ordinrio, no s, Joe?--atirou-lheMartin Hare.Edge olhou-o de relance, assumindo um ar magoado.--Homem-pssaro intrpido, velho camarada, isso que eu sou. Um galante cavaleiro do ar.--Tal como Hermann Goering--acrescentou Craig.--Exactamente. Um piloto brilhante. Passou a comandar o Circo Voador, depois da morte de Von Richthofen.Craig falou e a voz soou-lhe como se viesse de outrapessoa:--Uma ideia interessante, o heri de guerra psicopata.Deve sentir-se mesmo em casa, com esse 7u88 que estna pista, l em cima.--7u885, meu velho, sejamos precisos. O sistema dereforo de propulso que possui f-lo atingir uma velocidade de cerca de quatrocentas milhas por hora.--Ele esqueceu-se de lhe dizer que o tal sistema de reforo da propulso depende de trs cilindros de xido nitroso. Uma bala num deles e acaba em milhes de bocadinhos!--concluiu Martin Hare.--No seja assim, meu velho!--Edge aproximou-sede Craig.--Este pssaro mesmo uma maravilha! Normalmente, tem uma tripulao de trs: piloto, navegadore artilheiro da retaguarda. Introduzimos-lhe alguns melhoramentos, de tal modo que consigo tripul-lo sozinho.Por exemplo, o sistema de radar L&chtens&n, que nospermite ver no escuro, foi recolocado na carlinga, de talmodo que eu posso ver e...Craig ouviu-lhe a voz a sumir-se, sentiu que mergulhava na escurido e rolou pelo cho. Schmit acorreu do balco e ajoelhou-se ao p dele, numa sala que ficara subitamente silenciosa. Olhou para Munro:--Cristo! Est com uma febre altssima. Isto foi de repente! Ainda h menos de uma hora que o estive a tratar!--Claro!--disse Munro, muito srio, voltando-se para Hare.--Levo-o para Londres no Lysander. Para ohospital.Hare anuiu:--Perfeitamente, meu brigadeiro.--Afastou-se, paradar passagem a Schmidt e a outros dois homens, que tinham pegado em Osbourne e o levavam para fora.Munro dirigiu-se a Edge:--Joe, entra em contacto com Jack Carter, no meu gabinete. Diz-lhe para providenciar no sentido de Craig seradmitido na Casa de Sade de Hampstead, mal l cheguemos.--E saiu, seguindo os outros.Craig Osbourne acordou de um sono profundo, sentindo-se fresco e bem desperto e sem sombras de febre.Apoiou-se num cotovelo e verificou que se encontrava noque parecia ser um pequeno quarto de hospital, com paredes pintadas de branco. Lanou as pernas para fora dacama e deixou-se ficar sentado, no preciso instante emque a porta do quarto se abria e uma enfermeira jovementrava.--O senhor ainda no pode levantar-se!Empurrou-o novamente para a cama e Craig perguntou:--Onde estou?Ela saiu. Passaram-se alguns minutos. A porta abriu-sede novo e entrou um mdico, de bata branca e estetoscpio dependurado do pescoo.Sorriu:--Ento como estamos, senhor major?--disse, tomando o pulso a Craig. Tinha sotaque alemo.--Quem o senhor?--Baum o meu nome.--E onde estou?--Numa pequena casa de sade no Norte de Londres.Hampstead, para ser mais preciso.--Meteu um termmetro na boca de Craig e verificou a temperatura poucoaps.--Muito bem. Bom aspecto. Nenhuma febre. Estapenicilina um milagre! claro que o moo que o tratoulhe deu uma injeco, mas eu dei-lhe mais. Muito mais.A que reside o segredo.--H quanto tempo estou aqui?--Este o terceiro dia. Estava muito mal, quandochegou. Francamente, sem a droga...--Baum encolheuos ombros.--Bem! Agora vai tomar ch, enquanto euligo ao brigadeiro Munro, para o informar de que j estbom.Saiu. Craig ficou na cama, depois levantou-se, encontrou um roupo e vestiu-o, sentando-se janela, a observar um jardim cercado por muros altos. A enfermeiravoltou com um bule de ch.--Espero que no se importe, senhor major. No temos caf.--No faz mal--respondeu-lhe.--Tem tabaco?--O senhor no devia fumar!--Hesitou, e, ento, tirou do bolso um mao de Players e uma carteira de fsforos.--No diga ao doutor Baum quem lhos arranjou!--Um verdadeiro anjo!--e, dizendo isto, Craig beijou-lhe a mo.--Na primeira noite que sair levo-a aoRainbow Corner, em Picadilly. O melhor caf de Londres e um ptimo suing para danar.Ela corou e saiu, rindo. Continuou sentado, fumandoe contemplando o jardim, e, aps um bocado, Jack Carter bateu porta e entrou coxeando, apoiando-se numabengala, e trazendo uma mala de mo.--Ol, Craig.Craig, sobremodo satisfeito por o ver, levantou-se:--Jack, formidvel ver-te, depois de tanto tempo!Ento, ainda trabalhas para aquele velho sacana?--Oh! Claro!--Carter sentou-se e abriu a mala._ O doutor Baum diz que ests muito melhor!--Assim parece.--Bem. O brigadeiro queria que tu lhe fizesses umtrabalho, se te sentires em condies, como evidente.--J? O que que ele quer? Matar-me de vez?Carter levantou uma mo:--Por favor, Craig, ouve-me bem. No se trata de coisa boa. Lembras-te daquela tua amiga, Anne-Marie Trevaunce?Craig fez uma pausa, de cigarro nos lbios.--Que se passa com ela? --O brigadeiro precisa de lhe falar. H algo de grande em preparao. Mesmo muito grande. Craig acendeu o cigarro.a _ No assim, sempre?--No, desta vez mesmo de importncia suprema,i Craig. De qualquer modo, eu conto-te: arranjaram um. Lysander para a recolher, mas as coisas deram mesmo. para o torto.--Passou-lhe uma pasta.--Tu prpriopodes ler.Craig foi para a cadeira ao p da janela, abriu a pasta ecomeou a ler. Depois de um bocado, fechou-a, dandomostras de grande dor.Carter consolou-o:--Lamento. Muito mau, no verdade?--O pior possvel! Uma histria de horror!Ficou sentado, pensando em Anne-Marie, com os lbios muito pintados, a pose arrogante, as belas pernascom meias escuras, o cigarro permanente... to irritante,to maravilhosa, e agora...?Carter perguntou-lhe:--Sabias da existncia em Inglaterra desta irm, Genevieve Trevaunce?--No.--Craig devolveu a pasta.--Nunca se fezmeno dela durante todo o tempo que me dei comAnne-Marie, mesmo at nos velhos tempos. Sabia que opai era ingls, mas sempre pensei que tivesse morrido.Uma vez, disse-me que Trevaunce era um nome da Cornualha.--No morreu, no. mdico, e vive na Cornualha.No Norte da Cornualha. Numa aldeiazinha chamadaSaint Martin.--E a filha? Essa tal Genevieve?-- enfermeira no Hospital de So Bartolomeu. Teveuma gripe, h pouco tempo. Est com o pai, em SaintMartin, na situao de licena por doena.--E depois?--O brigadeiro gostaria que tu a fosses ver.--Cartertirou um sobrescrito da mala de mo e passou-lho.--Isto vai fazer-te compreender a importncia que assume oteu auxlio neste caso.Craig abriu o sobrescrito, retirou uma carta dactilografada e comeou a ler lentamente.@QuatroMesmo atrs da aldeia de Saint Martin havia uma colina, um lugar estranho e sem nome, assinalado nos mapascomo tendo sido provavelmente uma espcie de forte romano-britnico, em tempos que j l vo. Era o pouso favorito de Genevieve Trevaunce. Tendo as gaivotas comonica companhia, sentava-se l no cimo e avistava todo oesturio, at onde a rebentao se quebrava contra os escolhos traioeiros.Tinha subido at l, depois do almoo, pela que deveria ser a ltima vez. Na noite anterior, encarara com relutncia o facto de que j estava curada e que os ataquesareos a Londres, de acordo com as notcias da BBC, haviam aumentado. No Hospital de So Bartolomeu certamente estavam a precisar de todo o pessoal disponvelnas enfermarias.Era um belo e calmo dia, de um tipo peculiar Cornualha do Norte, com o cu muito azul e a gua quebrando-se em espuma branca contra a barra do rio. Pelaprimeira vez aps muitos meses, sentia-se em paz consigoprpria, feliz e tranquila. L em baixo, na aldeia, o paitrabalhava no jardim do velho presbitrio.Ao olhar para baixo, avistou um automvel, ao longe.Nesta altura da guerra, com o rigoroso racionamento dagasolina, uma tal apario significava habitualmente omdico ou a policia; porm, quando o carro se aproximou um pouco mais, conseguiu distinguir a cor de quehavia sido pintado--o verde-bao caracterstico das viaturas militares.A viatura parou junto ao presbitrio e apeou-se um homem fardado. Genevieve comeou logo a correr colinaabaixo. Viu o pai erguer-se, pr a p de lado e dirigir-separa o porto. Trocaram algumas palavras, aps o queambos se dirigiram para o interior da casa.No gastou mais do que dois ou trs minutos a chegarao sop da colina, a tempo de ver o pai abrir a porta dafrente e comear a descer o caminho. Encontraram-se noporto.Viu-lhe a face a tremer terrivelmente, e um brilho vidrado nos olhos. Ps-lhe a mo no brao:--Mas o que foi? Que se passa?Os olhos focaram-se nela por breves instantes, e logorecuou, como que horrorizado.--A Anne-Marie!--exclamou em voz rouca.--Morreu. A Anne-Marie morreu.Ultrapassou-a, encaminhando-se para a igreja. Correuatravs do cemitrio numa meia corrida grotesca, cambaleante, e atravessou o prtico. A grande porta de carvalho cerrou-se com um baque surdo.O cu continuava azul, e as gralhas nas rvores paraalm da torre da igreja chamavam em voz dissonanteumas pelas outras. Nada tinha mudado, e, no entanto,tudo era diferente. Ficou parada ali, subitamente gelada.Sem sentir qualquer emoo, apenas totalmente vazia.Ouviu passos atrs de si.--Miss Trevaunce?Voltou-se lentamente. A farda era americana, com umimpermevel aberto sobre um uniforme de combate verde-oliva. Um major, com vrias fitas de condecoraes--na verdade, em quantidade surpreendente, para umhomem to novo. Usava o bon de pala inclinado sobre ocabelo louro, j com algumas mechas grisalhas. A facecalma e plida nada exprimia, e os olhos eram do mesmocinzento frio do Atlntico, durante o Inverno. Entreabriua boca ligeiramente e voltou a fech-la, como se no conseguisse falar.Genevieve dirigiu-se-lhe:--Trouxe-nos ms notcias, senhor major!--Osbourne.--Pigarreou um pouco.--Craig Osbourne. Santo Deus! Miss Trevaunce, por momentos tivea iluso de estar a ver um fantasma.J no trio, ela pegou-lhe no impermevel e abriu aporta da sala de estar.--Entre, por favor, e fique vontade, enquanto voudizer governanta para nos trazer ch. Peo que nos desculpe, mas no temos caf.-- muita gentileza da sua parte.Espreitou pela porta da cozinha:--Pode arranjar-nos ch, senhora Trembath? Temosuma visita. O meu pai foi para a igreja. Ms notcias!A governanta afastou-se da pia, limpando as mos aoavental. Era uma mulher ossuda, com a face forte dagente da Cornualha, muito calma, os olhos azuis muitovivos.--Da Anne-Marie, no ?-- Morreu!--disse Genevieve com simplicidade, fechando a porta.Quando regressou sala, Craig estava de p, em frenteda cornija da lareira, observando uma fotografia antigade Anne-Marie e dela, ainda crianas.--Quase no faziam diferena!--disse ele.--Assombroso.--Vejo que conhecia a minha irm.--Sim. Encontrmo-nos em Paris em mil novecentose quarenta. Eu era jornalista, ento. Tornmo-nos amigos. Sabia que o pai era ingls, mas, para lhe ser franco,ela nunca me falou em si. Nem sequer uma aluso suaexistncia.Genevieve Trevaunce no respondeu. Sentou-se numadas cadeiras de espaldar alto, junto do lume, e disse calmamente:--Veio de longe, senhor major?--De Londres.--Uma viagem longa.--No foi difcil, pois no h muito trfego nas estradas, hoje em dia.Fez-se uma pausa embaraosa, mas no podia adiar apergunta mais tempo:--Como morreu, afinal, a minha irm?--Num acidente de aviao--respondeu-lhe Craig.--Em Frana.--Exactamente.--Mas como souberam disso?--perguntou Genevieve.--A Frana territrio ocupado.--Temos os nossos canais de informao. As pessoaspara quem trabalho.--E quem so elas?A porta abriu-se e a Sra. Trembath entrou com umabandeja, que colocou com cuidado sobre uma mesinha.Deu uma olhadela a Osbourne, de relance, e saiu. Genevieve serviu o ch.--Devo dizer-lhe que est a suportar tudo isto commuita coragem.--E o senhor conseguiu evitar uma resposta minhapergunta, mas no tem importncia.--Passou-lhe umachvena de ch.--Eu e a minha irm nunca fomos muito ntimas.--No ser isso coisa rara, entre gmeas?--Ela foi viver para Frana, em trinta e cinco. Eu fiquei com o meu pai. Nada mais. Agora, deixe-me tentarde novo. Para quem trabalha?--Repartio dos Servios Estratgicos--respondeuele.--Uma organizao especializada, de certo modo.S ento ela notou um pormenor estranho na farda.Na manga direita, usava umas asas com as letras SF aocentro, que, conforme veio a saber mais tarde, significavam "Special Forces", e, por debaixo, as asas dos pra-quedistas ingleses.--Comandos?--No propriamente. O nosso pessoal no costumafardar-se, a maior parte do tempo.Ela atalhou:--Quer dizer-me que a minha irm estava envolvidanesse tipo de trabalho?Craig tirou um mao de tabaco do bolso e ofereceu-lheum cigarro. Ela recusou, abanando a cabea negativamente:--No fumo.--Incomoda-a o fumo?--De modo nenhum.Acendeu um cigarro, levantou-se e caminhou at janela.--Conheci a sua irm na Primavera de quarenta,quando trabalhava para a revista Life. Ela vivia entregente da alta sociedade..., o que, como bvio, do seuconhecimento.--Claro.--Tinha feito um trabalho sobre os Voincourt que,por motivos de vria ordem, nunca veio a lume, mas queme obrigou a entrevistar a condessa...--continuou,olhando para o jardim.--Hortense?Ele voltou-se, com um sorriso seco nos lbios:--Uma autntica senhora. Tinha acabado de perder oquarto marido, quando a conheci. Um coronel de infantaria, morto em combate.--Sim. E a minha irm?--Bem, tornmo-nos...--Craig fez uma pausa-bons amigos.--Voltou para junto da lareira, sentando-se.--Foi quando os Alemes ocuparam Paris. Dadaa minha qualidade de neutral, no me incomodaram, aprincpio, mas o pior que eu envolvi-me com a genteerrada, do ponto de vista deles, e fui forado a abandonar a cena rapidamente, pela esquerda baixa. Regressei aInglaterra.--Que foi quando se alistou nesse vosso OSS?--No. Nessa altura, a Amrica ainda no estava emguerra com a Alemanha. Trabalhei para os Ingleses, antes disso, na SOE. O mesmo tipo de trabalho, pode dizer-se. Mais tarde, fui transferido para o meu exrcito.--E como que a minha irm se envolveu convosco?--O Alto-Comando alemo comeou a usar o casteloda sua tia. Generais, e gente do gnero, que iam l descansar um dia ou dois, ou fazer uma ou outra reunio.--E Anne-Marie e a minha tia?--Autorizadas a ficar, desde que se soubessem comportar, j que era til para fins de propaganda ter a condessa de Voincourt e sua sobrinha a servirem de hospedeiras.Genevieve encolerizou-se:--Espera que eu acredite nisso? Que Hortense deVoincourt se deixasse usar dessa maneira?--Aguarde um minuto e deixe-me explicar--disseCraig.--A sua irm estava autorizada a ir a Paris, sempre que quisesse. Entrou l em contacto com a gente daResistncia. Ofereceu-se para trabalhar para ns, e estavanuma posio nica para o fazer.--Portanto, tornou-se agente?--No parece muito surpreendida.--E no estou. Provavelmente, pensava que o vossotipo de trabalho era fascinante.--A guerra--continuou Craig sossegadamente-no tem qualquer encanto. E o que a sua irm fazia ainda menos, se se considerar ao que se sujeitava, caso fosseapanhada.--Devo dizer-lhe que sou enfermeira no Hospital deSo Bartolomeu, em Londres, senhor major--disse Genevieve.--Na enfermaria militar nmero dez. Um dosnossos rapazes foi l ter, a semana passada. Era artilheirode uma fortaleza voadora. Tivemos de lhe amputar o quelhe restava de uma das mos. No precisa de me falar arespeito do encanto da guerra. O que eu queria dizer eratotalmente diferente. Se conheceu a minha irm comodiz, sabe muito bem a que me referia.Ele no respondeu. Levantou-se, deu alguns passos nasala, com nervosismo.--Tivemos conhecimento de uma reunio especial queos nazis vo realizar. Algo muito importante. To importante que era necessrio que a nossa gente falasse comAnne-Marie, pessoalmente. Ela inventou uma ida a Parise envimos um Lysander para a recolher. A ideia era traz-la a Inglaterra, para uma reunio, e mand-la de volta,em seguida.--Isso costume?--Sucede muitas vezes. H um servio de vaivm regular. Eu prprio j o fiz. Ela deveria ir at Saint Maurice, para apanhar o comboio. Na realidade, algum tomaria conta do carro, e tr-la-iam de camioneta at aocampo onde o Lysander devia aterrar.--Que sucedeu de errado?--De acordo com fontes nossas na Resistncia, oavio foi abatido por um caa nocturno alemo, quandolevantava voo. Parece que explodiu instantaneamente.--Estou a ver--disse Genevieve.Craig parou de cirandar na sala, e interpelou-a, irritado.--No se importa? No se rala nem um pouquinho?--Quando tinha treze anos, major Osbourne--respondeu-lhe ela--, Anne-Marie partiu-me o polegardireito em dois stios.--Levantou a mo.--Veja, ficoutorto. Dizia ela que queria avaliar a dor que eu era capazde suportar. Fez uso de um quebra-nozes antigo, daqueles que preciso apertar com muita fora. Disse-me queeu no devia gritar, por muito que doesse, porque eu erauma Voincourt.--Santo Deus!--murmurou ele.--E eu no gritei. Muito simplesmente, desmaiei,quando a dor se tornou insuportvel, mas, ento, o malj estava feito.--Que sucedeu?--Nada. Uma brincadeira que saiu mal, tudo. Noque se referia ao meu pai, ela nunca podia proceder mal.--Genevieve serviu-se de mais uma chvena de ch.-A propsito, o que disse ao meu pai a este respeito?--Disse-lhe apenas que a sua irm tinha morrido numacidente de automvel.--Mas porque mo diz a mim, e no a ele?--Porque me pareceu que podia suportar o relato, eele no.Mentia, e pressentiu-o instantaneamente, mas, nessemomento, o pai passou pela janela. Levantou-se.--Vou ver como ele est.Quando se preparava para abrir a porta, Craig disse:--O assunto no me diz respeito, mas eu diria queMiss Trevaunce a ltima pessoa que ele deseja ver, neste momento.Sentiu-se magoada, mesmo muito magoada, porque, lno fundo do corao, sabia bem que era verdade.--T-la perto s vai tornar as coisas piores para ele-acrescentou Craig, com brandura.--Cada vez que a vir,o seu pai pensar que a Anne-Marie, nem que seja apenas por um breve instante.--Desejar que eu fosse ela, major Osbourne--corrigiu-o Genevieve.--Mas que sugere, ento?--Eu regresso a Londres, se isso lhe pode servir de alguma ajuda.S ento ela compreendeu, sem sombra de dvida.-- por isso que est aqui, no verdade? Eu sou arazo da sua vinda-- isso mesmo, Miss Trevaunce.Voltou-se e saiu da sala, deixando-o junto ao lume, efechando a porta atrs de si.O pai estava novamente a trabalhar no jardim, arrancando ervas daninhas e lanando-as para um carrinho demo. O sol brilhava, o cu estava azul. Um dia lindo, como se nada houvesse acontecido.Endireitou-se e disse:--Vais-te embora no comboio de amanh, em Padstow?--Pensei que quisesse que eu ficasse mais algum tempo. Posso telefonar para o hospital. Pedir prolongamentoda licena.--Isso ia alterar alguma coisa?--O pai acendia o cachimbo, com as mos ligeiramente trmulas.--No!--respondeu Genevieve com ar cansado.-Parece-me que no.--Ento, porque queres ficar?--O pai voltou-lhe ascostas e continuou a mondar as ervas.Genevieve deu alguns passos no seu quartinho, certificando-se de que no se esquecera de nada. Parou janela, observando o pai a trabalhar, l em baixo. Gostaria elemais da Anne-Marie, s porque a no podia ter junto asi? Seria isso? Nunca tinha sentido que houvesse qualquer semelhana entre si prpria e o resto da famlia.A nica pessoa em qualquer dos lados a quem tinha verdadeiro apego era tia Hortense, mas, essa, era um casoespecial, na verdade.Abriu a janela e chamou o pai.--O major Osbourne segue agora para Londres e ofereceu-me boleia.O pai olhou para cima:--Amabilidade da parte dele. Se fosse a ti, aceitava-a.Voltou ao trabalho, parecendo pelo menos vinte anosmais velho do que uma hora antes. Como se j se tivessearrastado at cova, para o lado da sua queri