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O POVO DO CERRADO: RELAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO E AMBIENTE NO ESTADO DE GOIÁS Ivanilton José de Oliveira* *Professor Doutor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected] RESUMO: Este texto apresenta elementos para discussão sobre as relações existentes entre a população do estado de Goiás e o ambiente do Cerrado. Embora a referência ao Cerrado seja cada vez maior, tanto no marketing de empresas particulares quando na publicidade de órgãos públicos, o que se percebe é um distanciamento da população em relação aos ambientes naturais, fruto da urbaniza- ção acelerada. Assim como há um descompasso entre as imagens que são produzidas para o turismo e as paisagens que se transformam pela expansão agropecuária. PALAVRAS-CHAVE: Cerrado; População de Goiás; Turismo; Cultura; Ambiente. ABSTRACT: The relations between the Cerrado´s population and environment in the State of Goiás (Brazil) are presented for discussion in this article. Although the references to the Cerrado are becoming more prevalent in the marketing of private companies as well as in advertisements from public agencies, the Cerrado-area inhabitants are showing an increased unfamiliarity with the natural environment due to rampant and haphazard urbanization. There is also a remarkable contrast between the Cerrado´s images produced for tourism and the landscapes that are being transformed by a fast- paced agro-pasture expansion. KEY WORDS: Cerrado; Population; Tourism; Culture; Environment. Considerações iniciais O trocadilho com o famoso título de O povo do lago, de Leakey e Lewin (1996), foi uma forma de remeter à idéia de um povo para o qual se busca uma identidade, cuja base pode estar na compreensão de sua organização social, seus hábitos alimentares, sua economia, os papéis sociais de seus habitantes e, é claro, em como tudo isso os vincula a determinados ambientes – seja o vale e o lago dos hominídeos de Leakey e Lewin, no passado pré-histórico, seja o cerrado dos goianos, na atualidade. Há tempos surgem nas mídias as referências aos “povos do cerrado”, como uma indicação de populações que, supostamente, têm sua definição sociocultural atrelada aos ambientes do cerrado brasileiro, com os quais travam imbricadas relações de consumo, convivência, exploração, de base econômica ou cultural, como as manifestações da culinária, da religião e da medicina popular, entre outras. Essa imagem de uma relação simbiótica entre população e cerrado tem sido apropriada pelos agentes do turismo, do comércio, da indústria, das atividades econômicas de uma GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, pp. 124 - 136, 2008

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O POVO DO CERRADO: RELAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO EAMBIENTE NO ESTADO DE GOIÁS

Ivanilton José de Oliveira*

*Professor Doutor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]

RESUMO:Este texto apresenta elementos para discussão sobre as relações existentes entre a populaçãodo estado de Goiás e o ambiente do Cerrado. Embora a referência ao Cerrado seja cada vez maior,tanto no marketing de empresas particulares quando na publicidade de órgãos públicos, o que sepercebe é um distanciamento da população em relação aos ambientes naturais, fruto da urbaniza-ção acelerada. Assim como há um descompasso entre as imagens que são produzidas para oturismo e as paisagens que se transformam pela expansão agropecuária.PALAVRAS-CHAVE:Cerrado; População de Goiás; Turismo; Cultura; Ambiente.

ABSTRACT:The relations between the Cerrado´s population and environment in the State of Goiás (Brazil) arepresented for discussion in this article. Although the references to the Cerrado are becoming moreprevalent in the marketing of private companies as well as in advertisements from public agencies,the Cerrado-area inhabitants are showing an increased unfamiliarity with the natural environmentdue to rampant and haphazard urbanization. There is also a remarkable contrast between theCerrado´s images produced for tourism and the landscapes that are being transformed by a fast-paced agro-pasture expansion.KEY WORDS:Cerrado; Population; Tourism; Culture; Environment.

Considerações iniciais

O trocadilho com o famoso título de Opovo do lago, de Leakey e Lewin (1996), foiuma forma de remeter à idéia de um povo parao qual se busca uma identidade, cuja basepode estar na compreensão de suaorganização social, seus hábitos alimentares,sua economia, os papéis socia is de seushabitantes e, é claro, em como tudo isso osvincula a determinados ambientes – seja ovale e o lago dos hominídeos de Leakey eLewin, no passado pré-histórico, seja ocerrado dos goianos, na atualidade.

Há tempos surgem nas mídias asreferências aos “povos do cerrado”, como umaindicação de populações que, supostamente,têm sua definição sociocultural atrelada aosambientes do cerrado brasileiro, com os quaistravam imbricadas relações de consumo,convivência, exploração, de base econômica oucultural, como as manifestações da culinária, dareligião e da medicina popular, entre outras.

Essa imagem de uma relação simbióticaentre população e cerrado tem sido apropriadapelos agentes do turismo, do comércio, daindústria, das atividades econômicas de uma

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maneira geral, como forma de cr iar umaidentidade a ser agregada aos produtos ouserviços, criando um elemento de diferenciação– algo que o ramo do marketing de vendasaprendeu a explorar de forma exímia nomomento da oferta de tais produtos aospotenciais consumidores.

Mas, até que ponto realmente existeconsciência do povo goiano quanto a ser um“povo do cerrado”? Será que a população e seuatual estágio de convivência com o território,outrora dominado pelas paisagens do cerrado,ainda guarda vestígios de uma interaçãoexpressiva, como aquela que existia entre osindígenas pré-colombianos?

Certamente ainda é possível encontrarem alguns povoados e vilas, populações cujasmanifestações sócio-culturais mantêm estreitainserção de elementos do cerrado. Contudo,esses núcleos são hoje a exceção, já que osambientes majoritários entre os goianos são oscentros urbanos, onde as relações sociais e detrabalho guardam poucos ou mesmo nenhumvestígio dessa influência mútua do passado.

A distribuição da população em Goiás

De acordo com os dados do IBGE (2000),a população de Goiás atingiu, no ano 2000, acifra de 5.003.228 habitantes, dos quais4.396.645 (87,9%) foram considerados comopopulação urbana. Ou seja, restaram, comohabitantes do campo, da zona rural goiana,pouco mais de 12% do total de sua população– o que já é um evidente indicador de umdistanciamento da imensa maioria doshabitantes de Goiás de uma convivência maispróxima com os resquícios de ambientes decerrado ainda existentes no estado.

É claro que podemos relativizar taisdados, ao considerarmos que boa parte dessapopulação urbana é fruto do êxodo rural, amigração dos habitantes das zonas rurais emdireção às cidades, algo que é marcante naanálise do comportamento da distribuição dapopulação em Goiás nas últimas décadas. Nas

palavras de Estevam (2005),

O êxodo rural em Goiás foi espantoso na décadade 1980 e a sua urbanização, embora em ritmomais acelerado, refletiu a tendência constatadano país. A redistribuição urbano/rural foi maisintensa no Estado em função da adoção deformas capitalistas de produção na agricultura,da valorização das terras, da apropriaçãofundiária especulativa e ainda tendo em vista alegislação que instituiu direitos trabalhistas paraos antigos colonos, levando fazendeiros apreferir “expulsá-los” — por falta de condiçõeseconômicas — do que obedecer às normaslegais.

Os dados dos censos demográficosindicam que o estado de Goiás teve o maiordec résc imo r e lat ivo em te rmos depopulação rural, de todo o país, entre 1980e 1991, total izando -51,21%. E a quedacontinuou expressiva nos anos seguintes,registrando, entre 1991 e 2000, -14,74%.Esse fluxo de pessoas teve como destinoprincipal as cidades do aglomerado urbanode Goiânia, Anápol is e do ent orno deBras í l i a , que r eg ist raram ac résc imosignificativo do quant itat ivo populacional.Isso implica dizer que grande parcela daatual popul ação urbana de Go iás temvínculos estreitos com a zona rural, da qualé oriunda.

Dentre os fatores responsáveis porperda de população, espec ia lmente naszonas rurais e nas menores cidades, há quese destacar a tecnif i cação rural, com aprodução agr ícol a vo l tada para aexportação; a estagnação ou até depressãoeconômica de áreas produtoras (como ooeste goiano e o meio-norte); as migraçõesinternas para áreas mais d inâmicas; aqueda das taxas de f ecund idade enatal idade; a lém das migrações para oext er io r, como para os EUA e Europa(embora não haja dados confiáveis, a mídiatem destacado que Goiás aparece entre osprincipais estados de origem dos imigrantesbrasileiros).

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Mas, talvez ainda mais importante sejao fato de que Goiás é um estadotradicionalmente receptor de migrantes, vindosdas mais diversas regiões do Brasil. De acordocom Estevam (2005), mais de um terço dapopulação de Goiás é constituída de imigrantes.Historicamente, a alocação dessas populaçõesmigrantes, oriundas principalmente do Sudestee do Nordeste do Brasil, obedeceu à lógica dasoportunidades, isto é, foram buscadas aquelasáreas geradoras de riquezas e chances deprosperidade. Após o período aurífero, entre osséculos XVII e XVIII, os marcos maisimportantes, com influência significativa nocrescimento populacional, são a criação deGoiânia (1933) e de Brasília (1960); a Marchapara o Oeste (décadas de 1930/40); os projetosde desenvolvimento, como o Polocentro (décadade 1970) e o Prodecer (década de 1980); e aconsolidação industrial (especialmente a partirda década de 1990), com a instalação ouexpansão das agroindústrias, das indústriasfármaco-químicas, das indústrias têxteis eindústrias de mineração.

De acordo com Arrais (2004), algunsfatores que influenciaram a distr ibuiçãopopulacional no estado de Goiás foram aabertura de estradas, a implantação deindústrias, os projetos de colonização e odesenvolvimento regional. Isso deve explicar,por exemplo, o peso preponderante de Brasíliano contexto mais recente da distribuição docrescimento populacional. Seja a partir daabertura das estradas que interligaram a capitalfederal com o restante do país e da necessidadede mão-de-obra, recursos e serviços durante asua construção, seja pela concentração deriquezas, oriunda dos investimentos federais nacriação e manutenção da urbis burocrática, queconcentra a “nata” do funcionalismo públicofederal e da classe política dirigente do país.

Para Estevam (2005), o estado assumiutambém a condição de “boca do sertão”,servindo de passagem para milhares demigrantes brasileiros que buscam acomodaçãona Região Norte do país. Nesse processo,contudo, boa parte acaba se instalando nascidades “teoricamente” mais promissoras, emtermos de opções de empregos.

Esse é um dos fatores que explica oelevado crescimento populacional de Goiás nasúltimas décadas, embora o estado possua taxasde fecundidade e natalidade próximas da médianacional, que vêm decaindo sucessivamente aolongo dos anos. Estevam (2005) indica que acontagem de 2000, do censo do IBGE, detectouum acréscimo de mais de 300 mil habitantes,comprovando que o estado de Goiás aindacontinua um pólo de atração imigratória. O autorargumenta, entretanto, que sua densidadedemográfica, com pouco mais de 14 habitantespor quilômetro quadrado, “ainda representa umgrande potencial de acomodação”.

Contudo, a distribuição da populaçãopelo terr itório goiano demonstra umaconcentração exorbitante em torno do eixoformado por Goiânia, Anápolis e Brasília (Figura1), algo que pode ser constatado nocrescimento vertiginoso das populações decidades como Luziânia, Águas Lindas, Formosa,Novo Gama, Planaltina, Valparaíso, Aparecida deGoiânia, Senador Canedo e Trindade, que empoucas décadas passaram a ocupar posiçõesentre as maiores cidades do estado. Essaatração é basicamente marcada por um maiordinamismo nos setores secundário e terciárionesses municípios, que passaram a ser os queabsorvem maior volume de mão-de-obra,especialmente a partir do processo detecnificação e profissionalização das atividadesrurais no restante do estado.

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Figura 1 – Distribuição da população no estado de Goiás – 2000

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Em outras palavras, nada indica queesse padrão de concentração populacional váser revertido. Ao contrário, longe de ser umaanomalia, essa tem sido a regra no processode urbanização no Brasil e na maior parte doplaneta, com uma tendência à centralizaçãoem grandes aglomerados urbanos e aoesvaziamento populacional nas zonas rurais.E todos os problemas advindos desseprocesso, como as dificuldades em atender àsdemandas por habitação, emprego, saúde,saneamento básico, educação, infraestruturade serviços etc.

Ao mesmo tempo, isso gera umatransformação cultural das populações, cujaassimilação do modo de vida urbano, seusritmos, anseios e necess idades, tambémsignifica um afastamento contínuo em relaçãoàs tradições rurais, como o tempo guiadopelos ciclos naturais, o conhecimento dasmudanças sazonais no clima e sua influêncianas at ividades produt ivas pr imár ias, aproximidade e a interação com as paisagens,as águas, os remanescentes de vegetação efauna do cerrado, entre outros elementos quesão gradat ivamente (ou bruscamente)perdidos.

O reverso da moeda

Mas, especialmente nas pequenas emédias cidades goianas, ainda há um amplocontingente de pessoas que guarda relaçãomuito próxima com as atividades rurais, pormeio de vínculos familiares, comerciais oumesmo de trabalho. A cidade é vista comofornecedora de bens e serviços que aindasão escassos ou inacess íve is no campo,como a educação e a saúde . Da í anecessidade da habitação urbana, mesmoquando a renda familiar é oriunda da zonarural. Dessa forma, essa população mantém,ainda que pr ecar i ament e, uma ma ioraprox imação com paisagens menosart i f icial izadas existentes no campo; emambientes mais dependentes dos ritmos eciclos naturais.

E mesmo nas maiores cidades é possívelperceber como a origem rural deixa suas marcas,embora sejam cada vez mais imagéticas do queempíricas. As feiras agropecuárias e as festas depeão, a música “sertaneja”, o vestuário country, ogosto por veículos como picapes, entre outrasmanifestações, aparecem incorporadas ao cotidianodos goianos, embora muitos jamais tenham tidoqualquer conexão com os ambientes rurais que estãona base de origem dessas atividades e expressõesculturais e/ou econômicas. E, no caso do estado deGoiás, mais recentemente temos registrado umresgate dessas origens atrelando-as ao cerrado,cuja cobertura vegetal já foi quase totalmenteextirpada no território goiano. O que não deixa deser um paradoxo: na medida em que desapareceno estado, o cerrado “reaparece” no imagináriocoletivo dos goianos acerca de suas “origens”.

Os termos “reaparece” e “origens” foramdestacados para indicar o fato de que sãoconstruções bem marcadas na análise do discursoencontrado nas mídias, nas propostas políticas egovernamentais, nas estratégias de marketing dainiciativa privada e mesmo nas comunicações dasentidades da sociedade civil organizada (como asONGs). Isso é fruto, inicialmente, da maior relevânciada questão ambiental a partir dos anos 1960, emâmbito mundial, cujas origens estão na escaladacrescente de problemas ocasionados pela poluiçãoe degradação dos ambientes, a partir daapropriação irracional e desmedida dos recursosnaturais, para atender à demanda da produçãoindustrial. Com o tempo, essas preocupaçõesambientais deixaram de ser repelidas e passaram aser incorporadas pelos agentes da produçãoeconômica, como forma de sobrevivência em meio àconcorrência de mercado e/ou como fator dediferenciação mercadológica.

Quando observamos o quadro atual dautilização das terras em Goiás (Figura 2), vê-seclaramente uma situação desalentadora, em queas pastagens e lavouras devastaram as antigasáreas de cerrado, que antes cobriam praticamentetodo o estado e agora restam apenas comoresquícios fragmentados e desconexos, salvo poralgumas poucas grandes manchas que resistem aoavanço do “progresso”.

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Figura 2 – Mapa de uso das terras em Goiás e no Distrito Federal – 2002

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As pastagens estão disseminadas por todoo estado, só perdendo a supremacia em trechos dosul, sudoeste e sudeste, além de áreas na regiãocentral e no entorno do Distrito Federal, onde aslavouras são mais significativas. As manchascontínuas e mais extensas de lavouras aparecemno sudoeste goiano, confirmando a “vocação”natural de suas terras para o cultivo, em função dorelevo plano e dos solos propícios ao emprego damecanização das etapas de produção.

As áreas urbanas já ganham dimensõesexpressivas, especialmente no caso de Goiânia esua conurbação com cidades vizinhas, comoAparecida de Goiânia e Trindade, e na situação deBrasília e suas cidades satélites, cuja mancha urbanajá ultrapassa os limites do Distrito Federal,incorporando cidades goianas limítrofes, que vivemem função da dinâmica econômica de Brasília.

Por sua vez, as antigas manchas de florestaestacional foram praticamente extintas. Restaramcorredores e fragmentos ainda menos significativosdo que o cerrado, destacando-se aqueles dadepressão e planície do curso médio do Rio Araguaia(e seus afluentes), certamente pelas dificuldadesimpostas à sua ocupação pelas oscilações do níveldas águas e pelos solos oriundos de materialinconsolidado (sedimentos), bastante instáveis efrágeis.

Como área contínua, o cerrado é maisexpressivo no nordeste de Goiás, reflexo do padrãohistórico de ocupação do território goiano e, claro,dos obstáculos geomorfológicos e pedológicos, comoas declividades acentuadas em certos trechos derelevos elaborados em antigas estruturas dobradase falhadas, sobre os quais se formaram solos rasose pedregosos, além de naturalmente ácidos e muitopouco férteis – condições que propiciaram ainstalação e manutenção de espécies do cerrado.

Outro elemento importante, masgeralmente negligenciado nessas observações,são as extensas áreas encobertas pela águados reservatórios de usinas hidrelétricas, cujosexemplos mais chamativos, mesmo emrepresentações de pequena escala, são asrepresas de Serra da Mesa, no rio Tocantins, eas existentes ao longo do rio Paranaíba. Essasimensas massas d’água, embora sejam vistas

como territórios potenciais para o turismo –além da sua função primordial de geração deenergia elétr ica –, representam perdassignificativas da biodiversidade, pois incorporamjustamente as terras de mais difícil acesso (altasdeclividades), que geralmente tendem apreservar remanescente de vegetação maisdensa e nichos ecológicos.

Há ainda o fato de os lagos passarem afuncionar como barreiras aos deslocamentos defauna, ou mesmo para as populações locais, quese vêem obrigadas a percorrer extensões muitomaiores em relação a antigos trajetos – semcontar o trauma vivido por uma parcela daspopulações que é objeto de despejos erealocações definitivas, quando suas terras estãoentre aquelas que serão alagadas.

Imagens e ambientes do territóriogoiano

Goiás é vendido nos pacotes turísticoscomo a terra das cachoeiras, dos lagos artificiais,das praias fluviais, das águas quentes, da pesca(Figura 3). Mais recentemente, também se temexplorado a infraestrutura para eventos, comlocalização estratégica, de fácil acesso a todasas regiões do Brasil. Neste último caso, as belezasnaturais do estado entram como atrativossuplementares, reforçando o apelo do contatocom a natureza. Até mesmo o planejamento dosroteiros turísticos principais já indica a deferênciaaos atrativos naturais. Dos quatro “caminhos” doturismo, três são referências à exploração daspaisagens e belezas naturais do estado: ocaminho do sol, que leva às praias do rio Araguaiae às cachoeiras e rios do sul e sudoeste; ocaminho das águas, em direção às águas termaisde Caldas Novas e Rio Quente, e às estânciasbalneárias ao longo do rio Paranaíba; e o caminhoda biosfera, que remete ao ecoturismo nas áreasmais preservadas de cerrado, no norte-nordeste doestado. Somente o caminho do ouro indica comoatrativos aspectos eminentemente culturais, comoos roteiros histórico-religiosos de cidades como Goiáse Pirenópolis.

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Figura 3 – Mapa dos roteiros do turismo em Goiás, tendo como fundo uma montagem de fotos depaisagens naturais. Disponível em <www.agetur.go.gov.br>

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Interessante é notar que a imagem docontato com a natureza não poderia ser maisdistante do que aquela que se vê no cotidianoda maioria do povo goiano. Aliás, nesse aspecto,a população de Goiás não difere sobremaneirada imensa maioria dos brasileiros, hoje um povomajoritariamente urbano, acostumado aosambientes produzidos pelo trabalho humano –que têm, como marca registrada, paisagenscriadas para atender à aceleração do tempo.Exemplos disso são as ruas e avenidas,projetadas para facilitar o fluxo de pessoas emercadorias; os centros de compras, para fácilacesso dos consumidores; as redes decomunicação, para maximizar as trocas deinformações; entre muitos outros elementos.

Contudo, as sociedades humanas nãoperderam totalmente seus vínculos com suasorigens naturais. Há uma necessidade, muitasvezes inconsciente, de manter-se a proximidadecom a “natureza”. Isso aparece, por exemplo,na busca por áreas mais vegetadas, naconstrução de paisagens artificiais comoparques, jardins, lagos etc., que remetam aexemplos de feições existentes na natureza.Trata-se de algo marcante em Goiás,

especialmente nos últimos anos. O modeloprincipal vem da capital, Goiânia, em quesucessivas administrações municipaismantiveram uma certa ênfase na arborização,implantação de jardins em praças, construçãode parques e preservação de algunsremanescentes da vegetação original.Infelizmente, quase sempre privilegiando osbairros de populações mais abastadas – e porisso mesmo, politicamente influentes.

Por sua vez, essa tendência influenciouas demais cidades, e os jardins, lagos eparques prol iferaram pelo interior goiano(Figura 4) – na medida das possibilidades decada município e nem sempre de forma muitoplanejada. Mas, certamente, isso reflete umavalorização da estética da natureza, como abusca por maior conforto térmico – o que,aliás, deveria ser uma preocupação constanteda população e, consequentemente, do poderpúblico, haja vista que a insolação é um fatorde risco nas terras goianas. Mesmo assim, oque se vê é a inexistência de políticas deambientação, como a arborização de ruas epraças, com a escolha apropriada de espécies.

Figura 4 – Fotomontagem de lagos nas cidades de Catalão, Iporá, Jataí e Palmeiras de Goiás(em sentido horário, de cima para baixo)

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A preocupação com o conforto térmiconão é uma atitude desmedida. Comodemonstrado no mapa da Figura 2, asinterferências ambientais no estado são degrande porte. Embora não seja possívelmensurar todas as conseqüências dessasmudanças, já há registros de oscilações nadinâmica do clima, por exemplo, em meio aosambientes urbanos, como é caso de Goiânia,conformando a existência de micro-climas,oriundos de variações termais e pluviométricas,geradas pelo aumento do albedo (em grandeparte fruto da concentração de construções),menor área vegetada, lançamento de poluentesno ar (como os gases combustíveis e materialparticulado) etc.

Há, também, vários estudos que mostramas perdas de terras e o assoreamento de rios,como o Araguaia, afetando a ictiofauna e, éclaro, as populações ribeirinhas que têm o peixena sua base alimentar. A poluição dos cursosd’água é uma realidade em várias cidades doestado, com a perda de volume e de qualidadedos mananciais, pela exploração das terras emseu entorno e lançamento de dejetos, levandoà necessidade, inclusive, de racionamentos nosperíodos mais críticos de seca. E, é claro, asubstituição da vegetação de cerrado e deflorestas pelas pastagens e lavouras, quesignifica um empobrecimento biogenético, alémde não se saber até que ponto também podeinfluir na dinâmica atmosférica – já que essaspesquisas são ainda incipientes.

Sabe-se que a intervenção humana noclima é principalmente de caráter local. Mas,somadas, essas pequenas interferências formamum conjunto que pode significar uma ação degrande porte. No caso de Goiás, cuja economiaagropecuária é dependente dos ciclosclimáticos, deveria haver uma maior

preocupação com esses levantamentos, pois asoscilações dos padrões rítmicos das chuvas etemperaturas, por exemplo, podem significarperdas irreparáveis para agricultores ecriadores, assim como os índices de umidadeatmosférica, nos períodos de estiagem, já sãofator de inquietação entre as autoridades dasaúde.

As novas relações com o cerrado

Até que ponto a degradação ambientaldo cerrado é algo realmente relevante entre osgoianos? Essa é uma pergunta que ainda estápara ser respondida. Um levantamentointeressante nesse sentido foi realizado pelojornal O Popular (Hirose, 2006), a partir de umprojeto intitulado Agenda Goiás, que objetivoudiagnosticar os principais problemas e anseiosda população do estado. Foram realizadosfóruns de debates em diversos municípios,seguidos de grupos de trabalho com aparticipação de acadêmicos, jornalistas,técnicos e políticos. O documento final integrouas respostas em regiões (que não coincidemcom as microrregiões oficiais do IBGE) e portemáticas.

Um dos temas foi o “meio ambiente”(Quadro 1) e, da análise das “necessidades decada região”, emergem questões pertinentes acada local (como a ocupação desordenada, naregião metropolitana de Goiânia; a relação entredevastação e ausência de planos diretores paraa maioria dos municípios, no entorno do DF),mas também há preocupações que são comuns,como a poluição dos mananciais e contaminaçãodo solo pela agricultura, a destinação dosresíduos sólidos nas cidades, o desmatamentoe a má-gestão dos recursos hídr icos, odesrespeito à legislação ambiental, entre outrospontos.

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A utilização excessiva de herbicidas e fungicidas nas lavouras colabora para deteriorar a qualidade do ar. É preciso imprimir maior rigor na fiscalização da legislação ambiental.

Sudoeste

Há um problema delicado com o uso indevido ou excessivo de agrotóxicos nas plantações, principalmente de tomate. Um projeto de manejo dos resíduos sólidos, com o controle de agrotóxicos e defensivos agrícolas éimprescindível.

Centro

Somente Caldas Novas e Rio Quente têm mais de 20% de sua vegetação nativa preservada. Nos demais municípios, a situação é crítica. Outro problema é a má gestão dos recursos hídricos, inclusive contaminação por agrotóxicos. As margens dos rios muitas vezes são devastadas por novosempreendimentos.

Sul

Muitos assentamentos são instituídos na região sem respeito às leis ambientais. Incêndios castigam a área e não há brigadas suficientes para contê-los. Uma das formas de preservar o meio ambiente na área é adotar a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e instituir os comitês de bacia.

Nordeste

Como alternativa para promover a preservação ambiental está a criação da Faculdade de Cinema e Vídeo, na cidade de Goiás, que pode gerar vários empregos e fomentar a conscientização ambiental. É necessário recuperar a bacia do Araguaia.

Noroeste

Os produtores não preservam a reserva legal de suas fazendas. No Vale do Araguaia, os dejetos são lançados no rio. O desmatamento nas margens dos rios devasta a cobertura e causa o assoreamento. Falta fiscalização. Os recipientes com agrotóxicos não recebem a destinação que deveriam e acabam poluindo o solo e as águas.

Oeste

A falta de um plano diretor para a maioria dos municípios colabora para a devastação. Não há um programa de gestão de resíduos sólidos e a queima nos lixões gera prejuízos ambientais. As áreas de mata ciliar são frequentemente desmatadas, os mananciais são assoreados e as águas poluídas pelo uso indevido dos agrotóxicos.

Entorno do DF

A mineração e o uso indevido de agrotóxicos e defensivos agrícolas colaboram para a devastação do solo e dos mananciais. Não há, na região, nenhum parque ecológico ou unidade de preservação. Deve-se realizar um trabalho de fiscalização punitivo, mas sobretudo de cunho informativo.

Norte

A monocultura desgasta o solo, as plantas criam resistência aos defensivos agrícolas, a irrigação colabora para a escassez de água e o adubo químico não é eficaz como precisaria. Seria importante investir em ovino-caprino cultura, para diversificar as atividades do segmento. Também se deve discutir com os produtores e com o governo a implantação do mercado de créditos de carbono, que pode colaborar para preservar o meio ambiente e ativar a economia regional.

Sudeste

A ocupação desordenada é grave. A agricultura na zona urbana polui os mananciais e contamina o solo. Os municípios gerem os resíduos sólidos de maneira isolada. É preciso promover e integrar a gestão com a utilização do lixo nos aterros para a geração de energia. É necessário promover o aumento da área da faixa ciliar na região de 30 para 50 metros.

Metropolitana

Necessidades ambientaisRegião

A utilização excessiva de herbicidas e fungicidas nas lavouras colabora para deteriorar a qualidade do ar. É preciso imprimir maior rigor na fiscalização da legislação ambiental.

Sudoeste

Há um problema delicado com o uso indevido ou excessivo de agrotóxicos nas plantações, principalmente de tomate. Um projeto de manejo dos resíduos sólidos, com o controle de agrotóxicos e defensivos agrícolas éimprescindível.

Centro

Somente Caldas Novas e Rio Quente têm mais de 20% de sua vegetação nativa preservada. Nos demais municípios, a situação é crítica. Outro problema é a má gestão dos recursos hídricos, inclusive contaminação por agrotóxicos. As margens dos rios muitas vezes são devastadas por novosempreendimentos.

Sul

Muitos assentamentos são instituídos na região sem respeito às leis ambientais. Incêndios castigam a área e não há brigadas suficientes para contê-los. Uma das formas de preservar o meio ambiente na área é adotar a bacia hidrográfica como unidade de planejamento e instituir os comitês de bacia.

Nordeste

Como alternativa para promover a preservação ambiental está a criação da Faculdade de Cinema e Vídeo, na cidade de Goiás, que pode gerar vários empregos e fomentar a conscientização ambiental. É necessário recuperar a bacia do Araguaia.

Noroeste

Os produtores não preservam a reserva legal de suas fazendas. No Vale do Araguaia, os dejetos são lançados no rio. O desmatamento nas margens dos rios devasta a cobertura e causa o assoreamento. Falta fiscalização. Os recipientes com agrotóxicos não recebem a destinação que deveriam e acabam poluindo o solo e as águas.

Oeste

A falta de um plano diretor para a maioria dos municípios colabora para a devastação. Não há um programa de gestão de resíduos sólidos e a queima nos lixões gera prejuízos ambientais. As áreas de mata ciliar são frequentemente desmatadas, os mananciais são assoreados e as águas poluídas pelo uso indevido dos agrotóxicos.

Entorno do DF

A mineração e o uso indevido de agrotóxicos e defensivos agrícolas colaboram para a devastação do solo e dos mananciais. Não há, na região, nenhum parque ecológico ou unidade de preservação. Deve-se realizar um trabalho de fiscalização punitivo, mas sobretudo de cunho informativo.

Norte

A monocultura desgasta o solo, as plantas criam resistência aos defensivos agrícolas, a irrigação colabora para a escassez de água e o adubo químico não é eficaz como precisaria. Seria importante investir em ovino-caprino cultura, para diversificar as atividades do segmento. Também se deve discutir com os produtores e com o governo a implantação do mercado de créditos de carbono, que pode colaborar para preservar o meio ambiente e ativar a economia regional.

Sudeste

A ocupação desordenada é grave. A agricultura na zona urbana polui os mananciais e contamina o solo. Os municípios gerem os resíduos sólidos de maneira isolada. É preciso promover e integrar a gestão com a utilização do lixo nos aterros para a geração de energia. É necessário promover o aumento da área da faixa ciliar na região de 30 para 50 metros.

Metropolitana

Necessidades ambientaisRegião

Quadro 1 – As necessidades ambientais em Goiás. Adaptado do guia Agenda Goiás, do Jornal OPopular, edição de 13 ago. 2006

Page 12: O POVO DO CERRADO: RELAÇÕES ENTRE POPULAÇÃO ......cifra de 5.003.228 habitantes, dos quais 4.396.645 (87,9%) foram considerados como população urbana. Ou seja, restaram, como

O povo do cerrado: relações entre população e ambiente no Estado de Goiás, pp. 124 - 136 135

O quadro chama a atenção também pelofato de destacar, repetidas vezes, os problemasadvindos do uso excessivo de agrotóxicos. Numestado que alardeia a imagem da pujançaeconômica oriunda dos “agronegócios”, issonão chega a ser surpresa. Incoerente é a outraimagem que se constrói na mídia turística, deum estado que se destaca pela preservação deseus cenários naturais, das águas límpidas, davida selvagem à espera do “ecoturista”. Umoutro ponto interessante no quadro são asreferências à destinação do lixo. Apesar deimportante, haja vista os problemas que oacúmulo desordenado do lixo pode ocasionaraos ambientes e à saúde, não é possível afirmarque haja uma visão concreta da situação: quasesempre as pessoas não se reconhecem comoagentes ativos na criação do problema quedenunciam, pelo fato de assumirem padrões eformas de consumo que são diretamenteresponsáveis tanto pela devastação aceleradados recursos naturais, quanto pela produçãoexacerbada de dejetos, muitos subutilizados.

Contudo, é possível perceber que há umacerta consciência dos problemas e de que elessão urgentes, devem ser enfrentados eassumidos como políticas públicas. Nos últimosanos, inclusive, já se registra uma maior atuaçãoda esfera pública na área ambiental. Semdúvida, hoje a f iscalização dos órgãosambientais é mais rigorosa – embora aindamuito distante do ideal – e tem conseguidoimplantar novas práticas, entreempreendedores, empresários e mesmogovernos, no trato com os ambientes. Por outrolado, a ação da sociedade civil organizadatambém já se faz presente, a partir de umamaior pressão social, que se reflete na inserçãoda temática ambiental entre oscomprometimentos políticos e empresariais.

Cabe um destaque ao Ministério Público,especialmente a partir dos últimos anos, por terse tornado uma referência para a sociedade,em busca de apoio institucional na luta contraos problemas ambientais. Um exemplo concretodessa atuação é a recente ação civil públicaajuizada contra siderúrgicas mineiras, grandes

consumidoras de produtos e subprodutosflorestais, e que há anos exploram o cerradode forma predatória e ilegal. O relatório deatividades do órgão (Ministério Público de Goiás,2004) destaca o fato de que essas siderúrgicasnão cumprem a obrigação legal de auto-suprimento integral desses produtos esubprodutos florestais e provocam adesertificação de extensa área de cerrado,principalmente no nordeste do Estado.

O relatório afirma que foram acionadas 11grandes siderúrgicas, que somente nos últimos anosdevastaram mais de 60 mil hectares e retiraram maisde 105 milhões de árvores. Liminarmente, o MP pedeque as empresas façam suprimento integral dosprodutos e subprodutos que consomem, recupereme compensem os danos ambientais,socioeconômicos e à saúde pública provocados emrazão de suas atividades. Pede ainda a paralisaçãode todas as atividades nocivas de utilização,industrialização, transformação, transportes,armazenamento ou consumo de produtos esubprodutos de matéria-prima vegetal do Estado,além da suspensão de novas guias florestais,emitidas em favor das usinas siderúrgicas, atéquitação do passivo ambiental.

Considerações finais

Falar em povo do cerrado pode remeter à idéiade populações cuja vida é permeada pela dinâmicade suas interações com os ecossistemas do cerradobrasileiro; da existência de um modo de vida guiadopor práticas econômicas e relações culturais, sociaise de trabalho que têm uma base ecológica muitoforte, no sentido de perceber a natureza tambémcomo fonte dos valores humanos. Alguns autoresdefendem que manifestações desse “modo de vida”ainda persistem entre os goianos. Almeida (2005) eRigonato (2005) citam alguns exemplos, retiradosde pesquisas no norte e nordeste de Goiás, ondesão encontrados, por exemplo, povos como oskalunga, descendentes em sua maioria de ex-escravos de origem africana, que praticam aagricultura de subsistência, a criação de pequenoporte e o extrativismo, e que têm um “ricoconhecimento das espécies do Cerrado,

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136 - GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 24, 2008 OLIVEIRA, I. J. de

principalmente no que diz respeito às plantasmedicinais. Nas formações campestres e capoeirões,abundam-se as sementes, resinas, raízes, cascas efolhas indicadas por eles para cicatrizes, infecções,depurativos, coceiras, problemas pulmonares etc.”(Almeida, 2005, p. 336).

Almeida (2005, p. 337) faz referência aindaaos “cerradeiros, geraizeiros e populaçõestradicionais do cerrado”, encontrados em povoadoscomo Moinho, Engenho, Boca do Sertão, Vila Borba,Campo Limpo, Garimpinho, Indaianópolis, Funil,Riachão e Santo Antonio (ou Filó), todos emmunicípios do norte/nordeste de Goiás, cujas“peculiaridades dos habitats rurais, as áreas deroçados, as casas e seus quintais e com as maneirasde seus moradores relacionarem-se com a natureza,são bens ambientais mas, também, são formasobjetivadas da cultura”.

É certo, contudo, que essa realidade é cadavez mais distante daquela vivenciada pela imensamaioria dos goianos, cuja identidade cultural com ocerrado é apenas relacional, imagética e nãoempírica, como dito anteriormente. A terra do“pequi”, hoje, remete a um povo em transformação,substancialmente urbano, mas ainda com raízesrurais; globalizado, mas ainda “sertanejo”; que viveo mundo dito “moderno”, mas que comporta umasociedade “conservadora”. Talvez uma forma de“cultura híbrida”, para usar o termo de Canclini (1998).

Numa visão pessimista do futuro, em quedesapareça por completo a cobertura vegetal docerrado - algo não tão distante assim da realidade,já que restam pouquíssimos remanescentes e rarase (quase) inacessíveis unidades de conservação -,ficam então as dúvidas: ainda será possível falarem um povo do cerrado? Qual será, então, aidentidade do povo goiano?

ALMEIDA, Maria Geralda de. A captura do cerrado ea precarização de territórios: um olhar sobre sujeitosexcluídos. In: ALMEIDA, Maria Geralda de (Org.).Tantos cerrados: múltiplas abordagens sobre abiogeodiversidade e singularidade cultural. Goiânia:Vieira, 2005. p. 321-347.

ARRAIS, Tadeu Pereira Alencar. Geografiacontemporânea de Goiás. Goiânia: Vieira, 2004.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas:estratégias para entrar e sair da modernidade. Trad.Heloísa P. Cintrão e Ana Regina Lessa. 2. ed. SãoPaulo: Edusp, 1998. 392 p.

ESTEVAM, Luís. “Geração de emprego: segundamarcha para o Oeste”. Jornal Opção On-line, Goiânia,25 set.-01 out. 2005. Economia. Disponível em:<www.jornalopcao.com.br>. Acesso em: 21 ago.2006.

HIROSE, Rodrigo. “Um antídoto para propostasirreais”. O Popular, Goiânia, 13 ago. 2006. AgendaGoiás: guia para os candidatos, p. 1-4.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA EESTATÍSTICA. Censo demográfico 2000. Disponívelem <www.ibge.gov.br/censo>. Acesso em: 15 ago.2006.

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RIGONATO, Valney Dias. A dimensão sociocultural daspaisagens do cerrado goiano: o distrito de VilaBorba. In: ALMEIDA, Maria Geralda de (Org.). Tantoscerrados: múltiplas abordagens sobre abiogeodiversidade e singularidade cultural. Goiânia:Vieira, 2005. p. 63-96.

Trabalho enviado e aceito em agosto de 2008

Bibliografia

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