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O POVO BRASILEIRO A FORMAÇÃO E O SENTIDO DO BRASIL Darcy Ribeiro

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O POVO

BRASILEIRO

A FORMAÇÃO E O SENTIDO DO BRASIL

DarcyRibeiro

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OPovoBrasileiro

AformaçãoeosentidodoBrasil

DarcyRibeiro

CompanhiadasLetras–1995

SãoPaulo

Segundaedição

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Notadacontra‐capa:

"Paraosquechegavam,omundoemqueentravameraaarenadosseusganhos, emouroeglórias.Paraos índiosqueali estavam,nusnapraia,omundoeraumluxodeseviver.Estefoioencontrofatalquealisedera.Aolongodaspraiasbrasileirasde1500,sedefrontaram,pasmosdeseveremunsaosoutrostalqualeram,aselvageriaeacivilização.Suasconcepções,não sódiferentesmasopostas, domundo, da vida, damorte, do amor, sechocaram cruamente. Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos,escalavradosdeferidasdeescorbuto,olhavamoquepareciaserainocênciae a beleza encarnadas. Os índios, esplêndidos de vigor e de beleza, viam,aindamaispasmos,aquelesseresquesaíamdomar."

"Darcy Ribeiro é um dos maiores intelectuais que o Brasil já teve. Nãoapenas pela alta qualidade do seu trabalho e da sua produção deantropólogo, de educador e de escritor, mas também pela incrívelcapacidadedevivermuitasvidasnumasó,enquantoamaioriadenósTmalconsegueviveruma."

AntonioCandido,FolhadeS.Paulo

Notadasorelhasdolivro:

Porqueobrasilaindanãodeucerto?DarcyRibeiro,aochegarnoexílio,noUruguai,emabrilde1964,queriaéresponderaessaperguntanaformadeum livro‐painel sobre a formação do povo brasileiro e sobre asconfigurações que ele foi tomando ao longo dos séculos. Viu logo, porémque essa era uma tarefa impossível, pois só havia o testemunho dosconquistadores. E sobretudo porque nos faltava uma teoria crítica quetornasseexplicávelomundoibéricodequesaímos,mescladoscomíndiosenegros.

Afundou‐se, desde então, na tarefa de produzir seus Estudos deantropologia da civilização, que pretendem ser essa teoria. A propósitodeles,AnísioTeixeira observou que "emboraum texto introdutório, umainiciação,nãoéreproduçãodesaberconvencional,masvisãogeral,ousadae de longa perspectiva e alcance. Darcy Ribeiro é realmente umainteligência‐fonteeemlivrosdessetipoéquesesenteàvontade.Considero

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Darcy a inteligência do Terceiro Mundo mais autônoma de que tenhoconhecimento. Nunca lhe senti nada da clássica subordinação mental dosubdesenvolvido[...]."

MasDarcycontinuoutrabalhandosemprenoseutextosobreoBrasileosbrasileiros, explorando tanto as fontes bibliográficas disponíveis como asamplasoportunidadesqueeletevedeobservaçãodiretadetodosostiposdegentesdoBrasil.Recentemente,vendo‐seemriscodemorrernumaUTI,fugiudeláparaviveretambémparaescreveresteseulivromaissonhado.Levou consigo, para uma praia de Maricá, as copiosas anotações feitasnaquelesanos,queelecompaginouali.Foramtrintaanosdemaisquarentadias.

Trata‐se de seu livro mais ambicioso, resultantes daqueles estudosprévios,masindependentedeles.Éumatentativadetornarcompreensível,pormeiodeumaexplanaçãohistórico‐antropológica,comoosbrasileirossevieramfazendoasimesmosparaseremoquehojesomos.UmanovaRoma,lavadaemsanguenegroesangue índio,destinadaacriarumaesplêndidacivilização,mestiça e tropical,mais alegre, porquemais sofrida, emelhor,porqueassentadanamaisbelaprovínciadaTerra.

Antroplólogo, ensaísta, romancista e político, Darcy Ribeiro nasceu emMontes Claros, MG, em 1922. É autor de, entre outros, O processocivilizatório(1968),Osíndioseacivilização(1970),Maíra(1976),Omulo(1981),Utopiaselvagem(1982)eMigo(1988).

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Agradeçoaqui,muitíssimo,àquelesquemaismeajudaramaconcluirestelivro.

A Mércio Gomes, meu colega, pela paciência de ler comigo página porpáginadotextooriginal.

ACarlosMoreira,meucompanheiro,cujapré‐leiturajamaisdispenso,quetambémoleu,inteiro,ederramousobremeutextosuafrondosaerudição.

Confesso, porém, que agradecimento maior e mais fundo e sentido é aGiseleJacon,minhaassessora.Estelivroéobranossa.Seeuopensei,elaofez materialmente, lhe dando a consistência física de coisa palpável elegível.

Gratíssimo,

Darcy

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SUMÁRIO

Prefácio 11

Introdução 19

I.ONOVOMUNDO

1MATRIZESÉTNICAS

AilhaBrasil 29

Amatriztupi 31

Alusitanidade,37

2OENFRENTAMENTODOSMUNDOS

Asopostasvisões 42

Razõesdesencontradas 49

Osalvacionismo 56

3OPROCESSOCIVILIZATÓRIO

Povosgerminais 64

Obarrocoeogótico 69

Atualizaçãohistórica 73

II.GESTAÇÃOÉTNICA

1CRIATÓRIODEGENTE

Ocunhadismo 81

Ogovernogeral 86

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Cativeiroindígena 98

2MOINHOSDEGASTARGENTE

Osbrasilíndios 106

Osafro‐brasileiros 113

Osneobrasileiros 121

Osbrasileiros 126

Osereaconsciência 133

3BAGOSEVENTRES

Desindianização 141

Oincrementoprodigioso 149

Estoquenegro 160

III.PROCESSOSOCIOCULTURAL

1AVENTURAEROTINA

AsguerrasdoBrasil 167

AempresaBrasil 176

Avaliação 179

2AURBANIZAÇÃOCAÓTICA

Cidadesevilas 193

Industrializaçãoeurbanização 198

Deterioraçãourbana 204

3CLASSE,COREPRECONCEITO

Classeepoder 208

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Distânciasocial 210

Classeeraça 219

4ASSIMILAÇÃOOUSEGREGAÇÃO

Raçaecor 228

Brancosversusnegros 231

Imigrantes 241

5ORDEMVERSUSPROGRESSO

Anarquiaoriginal 245

Oarcaicoeomoderno 248

Transfiguraçãoétnica 257

IV.OSBRASISNAHISTÓRIA

1BRASIS

Introdução 269

2OBRASILCRIOULO 274

3OBRASILCABOCLO 307

4OBRASILSERTANEJO 339

5OBRASILCAIPIRA 364

6BRASISSULINOS 408

V.ODESTINONACIONAL

Asdoresdoparto 447

Confrontos 452

Bibliografia 457

Índiceremissivo 467

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PREFÁCIO

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Escreverestelivrofoiodesafiomaiorquemepropus.Aindaé.Hámaisdetrintaanoseuoescrevoereescrevo,incansável.

O pior é que me frustro quando não o faço, ocupando‐me de outrasempresas.Nuncapus tantodemim, jamaisme esforcei tanto comonesseempenho, sempre postergado, de concluí‐lo. Hoje o retomo pela terceiravez,istosesócontoaquelaprimeiravezemqueoescreviecompletei,easegunda em que o reescrevi todo, inteiro, esquecendo as inumeráveisretomadasepisódicaseinconseqüentes.

Ultimamente essa angústia se aguçou porque me vi na iminência demorrer sem concluí‐lo. Fugi do hospital, aqui para Maricá, para viver etambémparaescrevê‐lo.Sevocê,hoje,otememmãosparaler,emletrasdefôrma,éporqueafinalvenci,fazendo‐oexistir.Tomara.

Acabodeler,meioporcima,aúltimaversão.AquelaqueescrevinoPeruequeaté foi traduzida emcastelhano,masqueeuvetei. Eraumbom livro,achoagora.Bempodiatersidopublicadotalqualera.Ouaindaé,umavezque aí está tal e qual: desafiante.Mas eunãoquis largá‐lo. Pediamaisdemim,meprometia revê‐lo, refazê‐lo, atéquealcançasseaquela formaquedeviater.Qual?

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Creioquenenhumlivrosecompleta.Oautorsemprepodecontinuar,porumtempoindefinido,comoeucontinueicomesse,aoalcancedamão,semretomá‐lo.Oqueocorreéqueagentesecansadolivro,apenasisto,enessemomento o dá por concluído.Não tenhomuita certeza,mas suspeito quecomigoéassim.

Porquesóagoraoretomo,depoisdetantos,tantíssimosanos,emquemeocupeidastarefasmaisvariadas,fugindodele?

Não sei! Não foi para descansar, certamente. Foi para me dar a outrastarefas. Entre elas, a de me fazer literato e publicar quatro romances,retomandoumalinhadeinteressesquesómehaviatentadoaosvinteanos.Nessalongatravessia,tambémpolitiqueimuito,comêxitoesemêxito,aquienoexílio,emedeiafazimentostrabalhosos,diversos.Inclusivevivi,quasemorri.

Nesses anos todos, o livro, este, ficou por aí, engavetado, amarelando,esperandoatéhoje.Agora,estouaquinapraiadeMaricá,paraondetrouxeaspastascomopapelóriodesuasváriasversões.

A primeira tentativa de escrevê‐lo, que nem chegou a compaginar‐se, sedeuemmeadosdadécadade50,quandoeudirigiaumamploprogramadepesquisas socio‐antropológicas no órgão de pesquisas do Ministério daEducação, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE). Eu oconcebia,então,comosíntesedaquelesestudos,comtodasasambiçõesdeserumretratode corpo inteirodoBrasil, emsua feição rural eurbana, enas versões arcaica emoderna, naquela instância que, ameu ver, era devésperasdeumarevoluçãosocialtransformadora.

Euoabandonei,então‐lásevãotrintaanos‐,paraocupar‐medeplanejareimplantaraUniversidadedeBrasília.

Esta tarefame levou a outras, tais como as deministro daEducação, dechefe do Gabinete Civil do presidente João Goulart, com a missão deconcatenaroMovimentoNacionalpelasReformasdeBase.

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Tudo isso resultou, sabe‐se, no meu primeiro exílio, no Uruguai. Lá, aprimeira versão deste livro, umas quatrocentas páginas densas, tomouforma,depoisdedoisanosdetrabalhointenso.Nãoerajáasíntesequemepropusera. Era, isto sim, a versão resultante de minhas vivências nostrágicos acontecimentos do Brasil de que havia participado comoprotagonista. Esse era o nervo que pulsava debaixo do texto, a busca deumarespostahistórica,científica,naorganizaçãoquenosfazíamosnós,osderrotadospelo golpemilitar. Porque,maisumavez, a classedominantenosvencia?

Naverdade,paraescrevê‐lo,malcompulseioslivrosresultantesdaquelaspesquisas,quechegaramaserpublicados.Elefoifeitodaleituradequantotexto me caiu nas mãos sobre o Brasil e a América Latina. Muitíssimos,lembro‐mebem,graçasàmagníficaBibliotecaMunicipaldeMontevidéu.

Umavezcompletadoo livro,aprimeira leituracríticaqueconsegui fazerdeletodomeassustou:nãodizianada,oupoucodiziaquenãotivessesidodito antes. O pior é que não respondia às questões que propunha,resumíveis na frase que, desde então, passei a repetir: por que o Brasilaindanãodeucerto?

Meu sentimento era de que nos faltava uma teoria geral, cuja luz nostornasse explicáveis em seus próprios termos, fundada em nossaexperiência histórica. As teorizações oriundas de outros contextos eramtodas elas eurocêntricas demais e, por issomesmo, impotentes para nosfazer inteligíveis. Nosso passado, não tendo sido o alheio, nosso presentenão era necessariamente o passado deles, nem nosso futuro um futurocomum.

Atrás de respostas a essas questões, mergulhei, nos anos seguintes, emestudoeassombros.Oquedeviaserumaintroduçãoteórica,nomeuplanode revisão do texto, foi virando livros. A necessidade de uma teoria doBrasil,quenossituassenahistóriahumana,melevouàousadiadeproportoda uma teoria da história. As alternativas que se ofereciam eramimpotentes.

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Serviriam,talvez,comoumaversãoteóricadodesempenhoeuropeu,masnãoexplicavamahistóriadospovosorientais,nemomundoárabeemuitomenos a nós, latino‐americanos. A melhor delas, representada pela novaversão compilada por Engels, nas Origens, e por Marx, nas Formações,opondo‐seumaàoutra,deixavamotemaemaberto.

O processo civilizatório é minha voz nesse debate. Ouvida, quero crer,porquefoi traduzidaparaas línguasdenossocircuitoocidental,editadaereeditadamuitas vezes e é objeto de debates internacionais nos EstadosUnidos e naAlemanha.A ousadia de escrever um livro tão ambiciosomecustoualgumdespeitodosenfermosdesentimentosde inferioridade,quenãoadmitemaumintelectualbrasileiroodireitodeentrarnessesdebates,tratando de matérias tão complexas. Sofreu restrições, também, doscomunistas,porquenãoeraumlivromarxista,edosacadêmicosdadireita,porqueeraum livromarxista. Issonão fezdanoporqueeleacabousendomais editado e mais lido do que qualquer outro livro recente sobre omesmotema.

MasoProcessonãobastava.Aexplicaçãoqueoferecepara10milanosdehistóriaéamplademais.Suasrespostas,necessariamentegenéricas,apenasdãotênuesdelineamentosdonossodesempenhohistórico.Eraoquepodiadar como alternativa aos textos clássicos, com que geralmente setrabalhava esse tema. Um esquema conceitual mais verossímil e maisexplicativo do que os disponíveis, através da proposição de novasrevoluções tecnológicas como motores da história, de novos processoscivilizatórios e de novas formações socioculturais. Vista sob essa luz, anossa realidade se retrata em seus traços mais gerais, resultando numdiscursoexplicativoútilparafinsteóricosecomparativos,masinsuficienteparadarcontadacausalidadedanossahistória.

Saí, então, em busca de explicaçõesmais terra‐a‐terra, emmais anos detrabalho.Otemaquemepropunhaagoraera

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reconstituir o processode formaçãodospovos americanos, numesforçopara explicar as causas do seu desenvolvimento desigual. Salto, assim, daescalade10milanosdehistóriageralparaosquinhentosanosdahistóriaamericana com um novo livro: As Américas e a civilização, em queproponho uma tipologia dos povos americanos, na forma de uma amplaexplanaçãoexplicativa.

Esse meu livro anda aí, desde então, sendo traduzido, reeditado ediscutido,maisporhistoriadoresefilósofosdoqueporantropólogos.Essesmeuscolegastêmumirresistívelpendorbarbarológicoeumapegoatodaconduta desviante e bizarra. Dedicam seu parco talento a quanto temabizarro lhes caia emmãos,negando‐se sempre, aparvalhados, ausar suasforçasparaentenderanósmesmos,fazendoantropologiasdacivilização.

Ocorre, porém, uma vez mais, que, completada a tarefa, vejo os limitesdaquiloquealcanceiemrelaçãoaoquebuscava.

Meu livro ajuda, é certo, a nos fazer inteligíveis, mas é claramenteinsuficiente para nossas ambições. Mergulho outra vez buscando, numaescala nova, sincrônica, as teorias de que necessitávamos para noscompreender. Eram três as mais urgentemente requeridas para tomar olugar dos esquemas menos eurocêntricos do que toscos com que secontava.

Uma teoria de base empírica das classes sociais, tais como elas seapresentamnonossomundobrasileiroelatino‐americano.Visivelmente,oesquemamarxistaaceito,semdemasiadosreparos,nomundoeuropeuenoanglo‐saxãodeultramar,feitodepovostransplantados,empalidecefrenteànossa realidade ibero‐latina. Aqui, não havendo burguesias progressistasdisputando com aristocracias feudais, nem proletariados ungidos porirresistíveis propensões revolucionárias, mas havendo lutas de classe,existiriamblocosantagonistasembuçadosaidentificarecaracterizar.

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Nosfaltava,porigual,umatipologiadasformasdeexercíciodopoderedemilitância política, seja conservadora, seja reordenadora ou insurgente.Toda politicologia copiosíssima de que se dispõe é feita de análisesirrelevantesoudeespeculaçõesfilosofantesquenosdeixammaisperplexosdoqueexplicados.Efetivamente, falarde liberais, conservadores, radicais,ou de democracia e liberalismo e até revolução social e política pode tersentidodedefiniçãoconcretaemoutroscontextos;nonossonãosignificanada, talaambigüidadecomqueessasexpressõesseaplicamaosagentesmaisdiferenteseàsorientaçõesmaisdesconexas.

Faltavaaindaumateoriadacultura,capazdedarcontadanossarealidade,em que o saber erudito é tantas vezes espúrio e o não‐saber popularalcança, contrastantemente, atitudes críticas, mobilizando consciênciaspara movimentos profundos de reordenação social. Como estabelecer aformaeopapeldanossaculturaerudita, feitade transplante, regidapelomodismo europeu, frente à criatividade popular, quemescla as tradiçõesmais díspares para compreender essa nossa nova versão domundo e denósmesmos?ParadarcontadessanecessidadeéqueescreviODilemadaAmérica Latina. Ali, proponho novos esquemas das classes sociais, dosdesempenhospolíticos,situando‐osdebaixodapressãohegemônicanorte‐americanaemqueexistimos,semnosser,parasermosoquelhesconvémaeles.

Num exercício puramente didático, resumi os corpos teóricosdesenvolvidos nesses três livros, para compor Os brasileiros: Teoria doBrasil.Ele só trazdenovoa teoriadaculturaaquealudi.Nãoa situeinoDilema, para não ter que tratar tema tão copioso dentro da dimensãolatino‐americana.

Os índios e a civilização compõe, com os quatro livros citados, meusEstudos de Antropologia da Civilização, ainda que resultasse de umapesquisarealizadaanteriormente.Ocerto,porém,équeseucorpoteóricoéomesmo,fundadonoconceitode

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transfiguração étnica. Vale dizer, o processo através do qual os povossurgem,setransformamoumorrem.

Ocupado nessas escrituras "preliminares", que resultaram em cincovolumes de quase 2mil páginas, descuidei desse livro que agora retomo.Efetivamente, todoseles são frutodabuscade fundamentos teóricosque,tornandooBrasilexplicável,mepermitissemescreverolivroquetenhoemmãos.

FoioquetenteiváriasvezesnoPeru,conformedizia,chegandoaredigi‐lointeiro, já com base nos meus estudos teóricos. Não me satisfazendo aformaquealcanceianosatrás,opusdelado,cuidandoque,comunsmesesamais,oretomaria.

Nãofoiassim.Desencadeou‐sesobremimovendavaldavida.Umcâncerme comia um pulmão inteiro e tive de retirá‐lo. Para tanto, retornei aoBrasil, reativando as candentes luzes políticas que dormiam emmim nosanos de exílio. Tudo isso e, mais que tudo, uma compulsiva pulsãoromanesca que me deu, irresistível, assim que me soube mortal e que,desdeentão,meescraviza,afastando‐medatarefaquemepropunha.

Agora, uma nova pulsão, mortal, reaviva a necessidade de publicar estelivro que, além de um texto antropológico explicativo, é, e quer ser, umgestomeunanovalutaporumBrasildecente.

Portanto,nãoseiludacomigo,leitor.Alémdeantropólogo,souhomemdeféedepartido.Façopolíticaefaçociênciamovidoporrazõeséticaseporumfundopatriotismo.Nãoprocure,aqui,análises isentas.Esteéum livroquequerserparticipante,queaspiraainfluirsobreaspessoas,queaspiraaajudaroBrasilaencontrar‐seasimesmo.

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Páginaembranco.

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INTRODUÇÃO

OBrasil eosbrasileiros, suagestaçãocomopovo,éoque trataremosdereconstituir e compreender nos capítulos seguintes. Surgimos daconfluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português comíndios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outrosaliciadoscomoescravos.

Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizesraciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadasseenfrentamesefundemparadarlugaraumpovonovo(Ribeiro1970),numnovomodelodeestruturaçãosocietária.Novoporquesurgecomoumaetnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras,fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética esingularizadapelaredefiniçãodetraçosculturaisdelasoriundos.Tambémnovo porque se vê a simesmo e é visto como uma gente nova, um novogênerohumanodiferentedequantosexistam.Povonovo,ainda,porqueéum novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma formasingular de organização sócio‐econômica, fundada num tipo renovado deescravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo,inclusive,pelainverossímilalegriaeespantosavontadedefelicidade,numpovotãosacrificado,quealentaecomoveatodososbrasileiros.

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Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Querdizer,comoumimplanteultramarinodaexpansãoeuropéiaquenãoexisteparasimesmo,masparagerarlucrosexportáveispeloexercíciodafunçãodeprovedorcolonialdebensparaomercadomundial,atravésdodesgastedapopulaçãoquerecrutanopaísouimporta.

A sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como variantes daversão lusitana da tradição civilizatória européia ocidental, diferenciadaspor coloridos herdados dos índios americanos e dos negros africanos. OBrasil emerge, assim, como um renovo mutante, remarcado decaracterísticas próprias, mas atado genesicamente à matriz portuguesa,cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer só aqui serealizariamplenamente.

A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia terresultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição decomponentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário,umavezque,apesardesobreviveremnafisionomiasomáticaenoespíritodos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não sediferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais,vinculadasalealdadesétnicasprópriasedisputantesdeautonomiafrenteànação.

As únicas exceções são algumas microetnias tribais que sobreviveramcomoilhas,cercadaspelapopulaçãobrasileira.Ouque,vivendo'paraalémdas fronteiras da civilização, conservam sua identidade étnica. São tãopequenas,porém,quequalquerquesejaseudestino,jánãopodemafetaràmacroetniaemqueestãocontidas.

O que tenham os brasileiros de singular em relação aos portuguesesdecorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizesindígenaseafricanas;daproporçãoparticularemqueelassecongregaramno Brasil; das condições ambientais que enfrentaram aqui e, ainda, danaturezadosobjetivosdeproduçãoqueasengajouereuniu.

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Essa unidade étnica básica não significa, porém, nenhumauniformidade,mesmoporqueatuaramsobreelatrêsforçasdiversificadoras.Aecológica,fazendo surgir paisagens humanas distintas onde as condições de meioambienteobrigaramaadaptações regionais.A econômica, criando formasdiferenciadasdeprodução,queconduziramaespecializações funcionaiseaosseuscorrespondentesgênerosdevida.E,porúltimo,a imigração,queintroduziu, nesse magma, novos contingentes humanos, principalmenteeuropeus, árabes e japoneses. Mas já o encontrando formado e capaz deabsorvê‐los e abrasileirá‐los, apenas estrangeirou alguns brasileiros aogerardiferenciaçõesnas áreas ounos estratos sociais ondeos imigrantesmaisseconcentraram.

Por essas vias se plasmaram historicamente diversosmodos rústicos deser dos brasileiros, que permitem distingui‐los, hoje, como sertanejos doNordeste, caboclosdaAmazônia, crioulosdo litoral, caipirasdoSudeste eCentro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de ítalo‐brasileiros,teuto‐brasileiros,nipo‐brasileirosetc.Todoselesmuitomaismarcadospeloque têm de comum como brasileiros, do que pelas diferenças devidas aadaptaçõesregionaisou funcionais,oudemiscigenaçãoeaculturaçãoqueemprestamfisionomiaprópriaaumaououtraparceladapopulação.

Aurbanização,apesardecriarmuitosmodoscitadinosdeser,contribuiuparaaindamaisuniformizarosbrasileirosnoplanocultural,sem,contudo,borrarsuasdiferenças.Aindustrialização,enquantogênerodevidaquecriasuasprópriaspaisagenshumanas,plasmouilhasfabrisemsuasregiões.Asnovas formas de comunicação de massa estão funcionando ativamentecomodifusoraseuniformizadorasdenovasformaseestilosculturais.

Conquanto diferenciados em suasmatrizes raciais e culturais e em suasfunções ecológico‐regionais, bem como nos perfis de descendentes develhos povoadores ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, sesentemesecomportamcomo

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umasógente,pertencenteaumamesmaetnia.Valedizer,umaentidadenacional distinta de quantas haja, que fala uma mesma língua, sódiferenciadaporsotaquesregionais,menosremarcadosqueosdialetosdePortugal.Participandodeumcorpodetradiçõescomunsmaissignificativopara todosquecadaumadasvariantessubculturaisquediferenciaramoshabitantesdeumaregião,osmembrosdeumaclasseoudescendentesdeumadasmatrizesformativas.

Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia nacional, umpovo‐nação,assentadonumterritóriopróprioeenquadradodentrodeummesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha, naEuropa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que são sociedadesmultiétnicas regidasporEstadosunitários e, por issomesmo, dilaceradaspor conflitos interétnicos, os brasileiros se integram em uma única etnianacional, constituindo assim um só povo incorporado em uma naçãounificada, num Estado uni‐étnico. A única exceção são as múltiplasmicroetnias tribais, tão imponderáveis que sua existência não afeta odestinonacional.

Aquela uniformidade cultural e esta unidade nacional ‐ que são, semdúvida, a grande resultantedoprocessode formaçãodopovobrasileiro ‐não devem cegar‐nos, entretanto, para disparidades, contradições eantagonismos que subsistem debaixo delas como fatores dinâmicos damaior importância. A unidade nacional, viabilizada pela integraçãoeconômica sucessiva dos diversos implantes coloniais, foi consolidada, defato, depois da independência, como um objetivo expresso, alcançadoatravésdelutascruentasedasabedoriapolíticademuitasgerações.Esseé,sem dúvida, o único mérito indiscutível das velhas classes dirigentesbrasileiras.ComparandooblocounitárioresultantedaAméricaportuguesacomomosaico de quadros nacionais diversos a que deu lugar a Américahispânica,podeseavaliaraextraordináriaimportânciadessefeito.

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Essaunidaderesultoudeumprocessocontinuadoeviolentodeunificaçãopolítica, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de todaidentidadeétnicadiscrepanteederepressãoeopressãodetodatendênciavirtualmente separatista. Inclusive demovimentos sociais que aspiravamfundamentalmente edificar uma sociedademais aberta e solidária. A lutapelaunificaçãopotencializaereforça,nessascondições,arepressãosocialeclassista, castigando como separatistasmovimentosque erammeramenterepublicanosouantioligárquicos.

Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde‐se uma profundadistância social, geradapelo tipodeestratificaçãoqueopróprioprocessodeformaçãonacionalproduziu.Oantagonismoclassistaquecorrespondeatoda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssimacamadaprivilegiadaaogrossodapopulação, fazendoasdistâncias sociaismaisintransponíveisqueasdiferençasraciais.

O povo‐nação não surge no Brasil da evolução de formas anteriores desociabilidade, emque gruposhumanos se estruturamemclasses opostas,mas se conjugam para atender às suas necessidades de sobrevivência eprogresso. Surge, isto sim, da concentração de uma força de trabalhoescrava,recrutadaparaservirapropósitosmercantisalheiosaela,atravésdeprocessos tãoviolentosdeordenaçãoerepressãoqueconstituíram,defato,umcontinuadogenocídioeumetnocídioimplacável.

Nessas condições, exacerba‐se o distanciamento social entre as classesdominanteseassubordinadas,eentreestaseasoprimidas,agravandoasoposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico‐cultural e daunidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático. Emconseqüência, as elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois luso‐brasileirase,afinal,brasileiras,viveramsempreevivemaindasobopavorpânico do alçamento das classes oprimidas. Boa expressão desse pavorpânicoéabrutalidaderepressivacontraqualquerinsurgênciaea

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predisposição autoritária do poder central, que não admite qualqueralteraçãodaordemvigente.Aestratificaçãosocialseparaeopõe,assim,osbrasileirosricoseremediadosdospobres,etodoselesdosmiseráveis,maisdoque correspondehabitualmente a esses antagonismos.Nesseplano, asrelações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram todacomunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoriaprivilegiada,queavêeaignora,atrataeamaltrata,aexploraeadeplora,como se esta fosse uma conduta natural. A façanha que representou oprocesso de fusão racial e cultural é negada, desse modo, no nívelaparentementemais fluido das relações sociais, opondo à unidade de umdenominador cultural comum, com que se identifica um povo de 160milhões de habitantes, a dilaceração desse mesmo povo por umaestratificação classista de nítido colorido racial e do tipomais cruamentedesigualitárioquesepossaconceber.

Oespantosoéqueosbrasileiros,orgulhososdesuatãoproclamada,comofalsa, "democraciaracial", raramentepercebemosprofundosabismosqueaquiseparamosestratossociais.

O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes atranspô‐lo, porque se cristalizamnummodus vivendi que aparta os ricosdospobres,comosefossemcastaseguetos.Osprivilegiadossimplesmentese isolamnuma barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cujamiséria repugnanteprocuram ignorarouocultarnumaespéciedemiopiasocial,queperpetuaaalternidade.Opovo‐massa, sofridoeperplexo,vêaordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoriacontemplada porDeus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive odom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e,invariavelmente,imprevisíveis.

Essa alternidade só se potencializou dinamicamente nas lutas secularesdosíndiosedosnegroscontraaescravidão.

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Depois,somentenasrarasinstânciasemqueopovo‐massadeumaregiãose organiza na luta por um projeto próprio e alternativo de estruturaçãosocial, comoocorreucomosCabanos,emCanudos,noContestadoeentreosMucker.

Nessas condições de distanciamento social, a amargura provocada pelaexacerbação do preconceito classista e pela consciência emergente dainjustiça bem pode eclodir, amanhã, em convulsões anárquicas queconflagrem toda a sociedade. Esse risco sempre presente é que explica apreocupaçãoobsessivaquetiveramasclassesdominantespelamanutençãoda ordem. Sintoma peremptório de que elas sabem muito bem que issopodesuceder,casoseabramasválvulasdecontenção.Daísuas"revoluçõespreventivas", conducentes a ditaduras vistas como um mal menor quequalquerremendonaordemvigente.

Édeassinalarqueessapreocupaçãoseassentava,primeiro,nomedodarebeldiadosescravos.Dadaa coloraçãoescuradas camadasmaispobres,esse medo racial persiste, quando são os antagonismos sociais queameaçameclodircomviolênciaassustadora.Efetivamente,poderáassumiraformadeconvulsãosocialterrível,porque,comumaexplosãoemocional,acabaria provavelmente vencida e esmagada por forças repressoras, querestaurariam,sobreosescombros,avelhaordemdesigualitária.

OgrandedesafioqueoBrasilenfrentaéalcançaranecessárialucidezparaconcatenar essas energias e orientá‐las politicamente, com claraconsciênciadosriscosderetrocessosedaspossibilidadesdeliberaçãoqueelas ensejam. O povo brasileiro pagou, historicamente, um preçoterrivelmente alto em lutas dasmais cruentas de que se tem registro nahistória, sem conseguir sair, através delas, da situação de dependência eopressão em que vive e peleja. Nessas lutas, índios foram dizimados enegros foram chacinados aosmilhões, sempre vencidos e integrados nosplantéis de escravos. O povo inteiro, de vastas regiões, às centenas demilhares,foitambémsangradoemcontra‐revoluçõessem

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conseguir jamais, senão episodicamente, conquistar o comando de seudestino para reorientar o curso da história. Ao contrário do que alega ahistoriografiaoficial,nuncafaltouaqui,atéexcedeu,oapeloàviolênciapelaclassedominantecomoarmafundamentaldaconstruçãodahistória.Oquefaltou, sempre, foi espaço paramovimentos sociais capazes de promoversua reversão. Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma claracompreensãodahistóriavivida,comonecessárianascircunstânciasemqueocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamenteformulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandesmaiorias.Não é impensável que a reordenação social se faça sem convulsão social,por viadeum reformismodemocrático.Mas ela émuitíssimo improvávelneste país em que uns poucosmilhares de grandes proprietários podemaçambarcar a maior parte de seu território, compelindo milhões detrabalhadoresaseurbanizaremparaviveravidafamélicadasfavelas,porforça da manutenção de umas velhas leis. Cada vez que um políticonacionalistaoupopulistaseencaminhaparaarevisãodainstitucionalidade,asclassesdominantesapelamparaarepressãoeaforça.

Este livroéumesforçoparacontribuiraoatendimentodessereclamodelucidez.Issoéoquetenteifazeraseguir.Primeiro,pelaanálisedoprocessode gestação étnica que deu nascimento aos núcleos originais que,multiplicados, vierama formar o povobrasileiro.Depois, pelo estudodaslinhasdediversificaçãoqueplasmaramosnossosmodosregionaisdeser.E, finalmente, por via da crítica do sistema institucional, notadamente apropriedade fundiária eo regimede trabalho ‐noâmbitodoqualopovobrasileirosurgiuecresceu,constrangidoedeformado.

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I.ONOVOMUNDO

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1MATRIZESÉTNICAS

AILHABRASIL

A costa atlântica, ao longo dos milênios, foi percorrida e ocupada porinumeráveis povos indígenas. Disputando os melhores nichos ecológicos,elessealojavam,desalojavamerealojavam, incessantemente.Nosúltimosséculos, porém, índios de fala tupi, bons guerreiros, se instalaram,dominadores,naimensidadedaárea,tantoàbeira‐mar,aolongodetodaacostaatlânticaepeloAmazonasacima,comosubindopelosriosprincipais,comooParaguai,oGuaporé,oTapajós,atésuasnascentes.

Configuraram, desse modo, a ilha Brasil, de que falava o velho JaimeCortesão(

1958), prefigurando, no chão da América do Sul, o que viria a ser nossopaís. Não era, obviamente, uma nação, porque eles não se sabiam tantosnemtãodominadores.Eram,tão‐só,umamiríadedepovostribais,falandolínguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um dosquais, ao crescer, se bipartia, fazendo dois povos que começavam a sediferenciarelogosedesconheciamesehostilizavam.

Se a história, acaso, desse a esses povos Tupi uns séculos mais deliberdadee autonomia, épossívelquealgunsdeles se sobrepusessemaosoutros, criando chefaturas sobre territórios cada vez mais amplos eforçando os povos que neles viviam a servi‐los, os uniformizandoculturalmente e desencadeando, assim, um processo oposto ao deexpansãopordiferenciação.

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Nada disso sucedeu.O que aconteceu, emudou total e radicalmente seudestino, foi a introdução no seu mundo de um protagonista novo, oeuropeu. Emboraminúsculo, o grupelho recém‐chegado de além‐mar erasuperagressivo e capaz de atuar destrutivamente de múltiplas formas.Principalmentecomoumainfecçãomortalsobreapopulaçãopreexistente,debilitando‐aatéamorte.

Esse conflito se dá em todos os níveis, predominantemente no biótico,comoumaguerrabacteriológica travadapelaspestesqueobranco traziano corpo e erammortais para as populações indenes. No ecológico, peladisputa do território, de suas matas e riquezas para outros usos. Noeconômico e social, pela escravização do índio, pela mercantilização dasrelações de produção, que articulou os novos mundos ao velho mundoeuropeucomoprovedoresdegênerosexóticos,cativoseouros.

Noplanoétnico‐cultural, essa transfiguração sedápelagestaçãodeumaetnia nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os índiosdesengajados de seu viver gentílico, os negros trazidos de África, e oseuropeusaquiquerenciados.Eraobrasileiroquesurgia,construídocomostijolosdessasmatrizesàmedidaqueelasiamsendodesfeitas.

Reconstituiresseprocesso,entendê‐loemtodaasuacomplexidade,émeuobjetivo neste livro. Parece impossível, reconheço. Impossível porque sótemos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor. Ele é quemnosfaladesuasfaçanhas.Éele,também,quemrelataoquesucedeuaosíndioseaosnegros,raramentelhesdandoapalavraderegistrodesuasprópriasfalas. O que a documentação copiosíssima nos conta é a versão dodominador. Lendo‐a criticamente, é que me esforçarei para alcançar anecessáriacompreensãodessadesventuradaaventura.

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Tarefarelevantíssima,emdoisplanos.Nohistórico,pelareconstituiçãodalinhasingulareúnicadesucessosatravésdosquaischegamosaseroquesomos, nós, os brasileiros. No antropológico, porque o processo geral degestaçãodepovosquenosfez,documentadíssimoaqui,éomesmoquefezsurgir em outras eras e circunstâncias muitos outros povos, como aromanização dos portugueses e dos franceses, por exemplo, de cujoprocessodefazimentosótemosnotíciasescassaseduvidosas.

AMATRIZTUPI

Os grupos indígenas encontrados no litoral pelo português eramprincipalmentetribosdetroncotupique,havendoseinstaladounsséculosantes, ainda estavam desalojando antigos ocupantes oriundos de outrasmatrizes culturais. Somavam, talvez, 1 milhão de índios, divididos emdezenas de grupos tribais, cada um deles compreendendo umconglomeradodeváriasaldeiasdetrezentosa2milhabitantes(Fernandes1949).Nãoerapoucagente,porquePortugalàquelaépoca teriaamesmapopulaçãooupoucomais.

Naescaladaevoluçãocultural,ospovosTupidavamosprimeirospassosda revolução agrícola, superando assim a condição paleolítica, tal comoocorrerapelaprimeiravez,há10milanos,comospovosdovelhomundo.Éde assinalar que eles o faziam por um caminho próprio, juntamente comoutrospovosdaflorestatropicalquehaviamdomesticadodiversasplantas,retirando‐asdacondiçãoselvagemparaademantimentodeseusroçados.Entre elas, a mandioca, o que constituiu uma façanha extraordinária,porquesetratavadeumaplantavenenosaaqualelesdeviam,nãoapenascultivar, mas também tratar adequadamente para extrair‐lhe o ácidocianídrico, tornando‐acomestível.Éumaplantapreciosíssimaporquenãoprecisasercolhidaeestocada,mantendo‐sevivanaterrapormeses.

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Além damandioca, cultivavam omilho, a batata‐doce, o cará, o feijão, oamendoim, o tabaco, a abóbora, o urucu, o algodão, o carauá, cuias ecabaças, as pimentas, o abacaxi, o mamão, a erva‐mate, o guaraná, entremuitasoutrasplantas.Inclusivedezenasdeárvoresfrutíferas,comoocaju,o pequi etc. Faziam, para isso, grandes roçados na mata, derrubando asárvorescomseusmachadosdepedraelimpandooterrenocomqueimadas.

Aagriculturalhesasseguravafarturaalimentardurantetodooanoeumagrande variedade de matérias‐primas, condimentos, venenos eestimulantes. Dessemodo, superavam a situação de carência alimentar aqueestãosujeitosospovospré‐agrícolas,dependentesdagenerosidadedanatureza tropical, que provê, com fartura, frutos, cocos e tubérculosdurante uma parte do ano e, na outra, condena a população à penúria.Permaneciam, porém, dependentes do acaso para obter outros alimentosatravésdacaçaedapesca,tambémsujeitosaumaestacionalidademarcadapor meses de enorme abundância e meses de escassez (Ribeiro 1970;Meggers1971).

Daí a importância dos sítios privilegiados, onde a caça e a pescaabundantesgarantiamcommaiorregularidadeasobrevivênciadogrupoepermitiam manter aldeamentos maiores. Em certos locais especialmentericos, tanto na costa marítima quanto nos vales mais fecundos, essesaldeamentos excepcionais chegavam a alcançar 3 mil pessoas. Eram,todavia, conglomerados pré‐urbanos (aldeias agrícolas indiferenciadas),porquetodososmoradoresestavamcompelidosàproduçãodealimentos,só liberando dela, excepcionalmente, alguns líderes religiosos (pajés ecaraibas)eunspoucoschefesguerreiros(tuxáuas).

Apesardaunidadelingüísticaeculturalquepermiteclassificá‐losnumasómacroetnia, oposta globalmente aos outros povos designados pelosportugueses como tapuias (ou inimigos), os índios do tronco tupi nãopuderamjamaisunificar‐senumaorganizaçãopolíticaque lhespermitisseatuarconjugadamente.

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Suaprópriacondiçãoevolutivadepovosdeníveltribalfaziacomquecadaunidadeétnica,aocrescer,sedividisseemnovasentidadesautônomasque,afastando‐se umas das outras, iam se tornando reciprocamente maisdiferenciadasehostis.

Mesmo em face do novo inimigo todo poderoso, vindo de além‐mar,quandoseestabeleceuoconflitoaberto,osTupisóconseguiramestruturarefêmeras confederações regionais que logo desapareceram. A maisimportantedelas,conhecidacomoConfederaçãodosTamoios,foiensejadapelaaliançacomosfrancesesinstaladosnabaíadeGuanabara.Reuniu,de1563 a 1567, os Tupinambá do Rio de Janeiro e os Carijó do planaltopaulista‐ajudadospelosGoitacáepelosAimorédaSerradoMar,queeramde língua jê ‐para fazeremaguerraaosportuguesese aosoutrosgruposindígenasqueosapoiavam.NessaguerrainverossímildaReformaversusaContra‐Reforma, dos calvinistas contra os jesuítas, em que tanto osfranceses como os portugueses combatiam com exércitos indígenas demilhares de guerreiros ‐ 4557, segundo Léry; 12 mil nos dois lados nabatalhafinaldoRiodeJaneiro,em1567,segundocálculosdeCarlosA.Dias(1981) ‐, jogava‐se o destino da colonização. E eles nem sabiam por quelutavam, simplesmente eram atiçados pelos europeus, explorando suaagressividade recíproca. Os Tamoio venceram diversas batalhas,destruíramacapitaniadoEspíritoSantoeameaçaramseriamenteadeSãoPaulo. Mas foram, afinal, vencidos pelas tropas indígenas aliciadas pelosjesuítas.

Nessas guerras, como nas anteriores ‐ por exemplo, a de Paraguaçu noRecôncavo, em 1559 ‐ e nas que se seguiram até a consolidação daconquistaportuguesa‐comoascampanhasdeextermíniodosPotiguaradoRioGrandedoNorte,em1599,e,noséculoseguinte,aGuerradosBárbaroseasguerrasnaAmazônia‐,osíndiosjamaisestabeleceramumapazestávelcomo invasor,exigindodeleumesforçocontinuado,ao longodedécadas,paradominarcadaregião.

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Essa resistência se explicapelaprópria singelezade sua estrutura socialigualitária que, não contando com um estamento superior que pudesseestabelecerumapaz válida, nemcomcamadas inferiores condicionadas àsubordinação, lhes impossibilitava organizarem‐se como um Estado, aomesmo tempo que tornava impraticável sua dominação. Depois de cadarefregacontraoutrosindígenasoucontraoinvasoreuropeu,sevencedores,tomavam prisioneiros para os cerimoniais de antropofagia e partiam; sevencidos, procuravam escapar, a fim de concentrar forças para novosataques.Quandomuitodizimadosejáincapazesdeagrediroudedefender‐se,ossobreviventesfugiamparaalémdasfronteirasdacivilização.Issoéoqueestáacontecendohoje,quinhentosanosdepois, comosYanomamidafronteiranortedoBrasil.

Cada núcleo tupi vivia em guerra permanente contra as demais tribosalojadas em sua área de expansão e, atémesmo, contra seus vizinhos damesma matriz cultural (Fernandes 1952). No primeiro caso, os conflitoseramcausadospordisputaspelossítiosmaisapropriadosàlavoura,àcaçaeàpesca.Nosegundo,erammovidosporumaanimosidadeculturalmentecondicionada: uma formade interação intertribal que se efetuava atravésde expedições guerreiras, visando a captura de prisioneiros para aantropofagiaritual.

O caráter cultural e co‐participado dessas cerimônias tornava quaseimperativo capturar os guerreiros que seriam sacrificados dentro doprópriogrupo tupi.Somenteestes ‐porcompartilhardomesmoconjuntodevalores‐desempenhavamàperfeiçãoopapelquelheseraprescrito:deguerreiro altivo, que dialogava soberbamente com seu matador e comaqueles que iriam devorá‐lo. Comprova essa dinâmica o texto de HansStaden,quetrêsvezesfoilevadoacerimôniasdeantropofagiaetrêsvezesos índios se recusaram a comê‐lo, porque chorava e se sujava, pedindoclemência.Nãosecomiaumcovarde.

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A antropofagia era tambémuma expressão do atraso relativo dos povosTupi.Comiamseusprisioneirosdeguerraporque,comarudimentaridadede seu sistemaprodutivo,umcativo rendiapoucomaisdoque consumia,não existindo, portanto, incentivos para integrá‐lo à comunidade comoescravo.

Muitos outros povos indígenas tiveram papel na formação do povobrasileiro.Algunsdelescomoescravospreferenciais,porsuafamiliaridadecom a tecnologia dos paulistas antigos, como os Paresi. Outros, comoinimigos irreconciliáveis, imprestáveis para escravos porque seu sistemaadaptativo contrastava demais com o dos povos Tupi. É o caso, porexemplo,dosBororo,dosXavante,dosKayapó,dosKaingangedosTapuiaemgeral.

Ocontrastemaiorseregistrouentreaquelepovomameluco,quese faziabrasileiro, e um contendor realmente capaz de ameaçá‐lo, que eram osGuaikuru,tambémchamadosíndioscavaleiros.Adotandoocavalo,queparaosoutrosíndioseraapenasumacaçanovaquesemultiplicavanoscampos,eles se reestruturaram como chefaturas pastoris que enfrentaramvigorosamenteoinvasor,infringindo‐lhederrotaseperdasquechegaramaameaçaraexpansãoeuropéia.

Umdoscronistasdaexpansãocivilizatóriasobreseusterritóriosnosdiz,claramente,que"poucofaltouparaqueexterminassemtodososespanhóisdoParaguai"(FélixdeAzaraapudHolanda1986:70).FranciscoRodriguesdo Prado (1839:I, 15), membro da Comissão de Limites da Américahispânicaedaportuguesa,avaliouem4milonúmerodepaulistasmortosporelesaolongodasviasdecomunicaçãocomCuiabá.

Esses índios Guaikuru estavam como que propensos para essa viaevolutiva. Primeiro, por sua própria constituição física, quemaravilhou aquantoseuropeusosobservaramnaplenitudedoseudesempenho.Elessãodescritos como guerreiros agigantados, muitíssimo bem proporcionados,que, nos diz, "duvido que haja na Europa povo algum que, em tantos etantos,possa

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comparar‐secomestesbárbaros"(FélixdeAzaraapudHolanda1986:78).Sanches Labrador (1910:I, 146), o jesuíta espanhol que os doutrinou porlongos anos, falando embora de índios encolhidos debaixo de peles parafugir das frialdades impiedosas que às vezes caem sobre aquelas regiões,nosdizque"nãoháimagemmaisexpressivadeumHérculespintado".

Ainda mais explicativo do seu desempenho é o fato de que, antes dachegadadoeuropeu,osGuaikurujáimpunhamsuasupremaciasobrepovosagrícolas,forçando‐osasuprir‐lhesdealimentosedeservos.Testemunhosdatados dos primeiros anos do século XVI nos falam deles como povossagazesquedominavamosGuaná,impondo‐lhesrelaçõesqueelecomparacom o senhorio dos tártaros sobre seus vassalos. Os Mbayá‐Guaikuru setornaramaindamais perigosos quando se aliaramaosPayaguá‐Guaikuru,índiosdecorsoque lutavamcomseusremostransformadosemlançasdeduaspontas,quedizimaramváriasmonçõespaulistasquedesciamdeVilaBela,noaltoMatoGrosso,carregadasdeouro.

SérgioBuarquedeHolanda (1986:82) coletoudadosde fontesprimáriasqueavaliamdedezavinteeatésessentaecemarrobasdeouroroubadoaos paulistas para o escambo com os assuncenos, que assim teriamamealhadograndesfortunas.

A propensão de Herrenvolk dos Guaikuru, armada com o poderio dacavalaria, desabrochou, permitindo sua ascensão da tribalidadeindiferenciada às chefaturas pastoris, capacitadas a impor cativeiro aosservosqueincorporavamaseuscacicadosesuseraniaanumerosastribosagrícolas.

Para os iberos, que disputavam o domínio daqueles vastíssimos sertõesricosemouro,nadapodiasermelhorquealcançaraaliançadosGuaikurupara lançá‐los contra seu adversário. Isso, ambos, a cada tempo, oconseguiram. Mais longamente os espanhóis, duplamente excitados paraessaaliança,porque,noseucaso,àcompetiçãosesomavaacobiça.ÉqueosGuaikuru

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aprenderamrapidamenteapraticaroescambo,preandoescravosnegrosetambém senhores e senhoras europeus emuitíssimosmamelucos, tantosquantospudessem,paravenderemAssunção.

Ao descrever essas alianças, Sérgio Buarque se eriça: "É o confronto deduas humanidades diversas, tão heterogêneas, tão verdadeiramenteignorantes,agorasim,umadaoutra,quenãodeixadeimpor‐seentreelasumaintolerânciamortal"(1986:59).

Os Guaikuru estiveram, alternativamente, aliados com espanhóis e comlusitanos, sem guardar fidelidade a nenhum deles, mesmo porque nãoaceitaramjamaisnenhumadominação.Aliciadosedoutrinadosporjesuítas,cujamissãoacolheramemseustoldos,selançaramcontraosportugueses,atacando Cuiabá e Vila Bela (Labrador 1910). Expulsos os jesuítas, sevoltarammaisdecididamentecontraoscastelhanos,atacandoascercaniasdeAssunção.

Os Mbayá acabaram se fixando no sul de Mato Grosso que, em grandeparte graças a essa aliança, ficou com o Brasil; e os Payaguá, nasvizinhanças de Assunção. A Guerra do Paraguai deu, a uns e outros, suasúltimaschancesdeglória,assaltandoesaqueandopopulaçõesparaguaiasebrasileiras.Terminaram,porfim,despojadosdeseusrebanhosdegadoedesuas cavalarias, debilitados pelas pestes brancas e escorchados. Semembargo,guardaramatéofim,eaindaguardam,suasoberba,naformadeuma identificação orgulhosa consigo mesmos que os contrasta,vigorosamente, com todos os demais índios, como pude testemunhar nosanosemqueconvivinassuasaldeias,porvoltade1947.

ALUSITANIDADE

Aocontráriodospovosqueaquiencontraram,todoselesestruturadosemtribosautônomas,autárquicasenãoestratificadasemclasses,oenxamedeinvasoreseraapresençalocalavançadadeumavastaevetustacivilizaçãourbanaeclassista.

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Seucentrodedecisãoestavanas longurasdeLisboa,dotadasuaCortedemuitos serviços, sobretudo do poderoso Conselho Ultramarino, que tudoprevia,planificava,ordenava,provia.

Outro coordenador poderosíssimo era a Igreja católica, com seu braçorepressivo, o Santo Ofício. Ouvindo denúncias e calúnias na busca deheresias e bestialidades, julgava, condenava, encarcerava e até queimavavivos os mais ousados. Nem aí, na vastidão desses imensos poderios,terminavaaestruturacivilizatóriaqueseimpunhasobreoBrasilnascente.Ela era um conglomerado interativo de entidades equivalentes em ativacompetição,àsvezescruentasumascontraasoutras.

No conjunto, destacava‐se, primeiro, uma ausência poderosíssima, a daEspanha, objeto de especial atenção como ameaça sombria e permanentedeabsorçãoe liquidaçãoda lusitanidade.Vinham,depois, comoentidadesativamente contrapostas a Portugal na disputa por seus novosmundos, aInglaterra e aHolanda. Sobre todas elas pairava Roma, do Vaticano, a daSanta Sé, como centro de legitimação e de sacralização de qualquerempreendimentomundialecentrodaféregidaemseunomeporumvastoclero assentado em inumeráveis igrejas e conventos. Seguia‐se opoderosíssimoaparatodeestadosmercantisarmados,hostisentresi,malemal contidos pela regência papal, tão acatada por uns como atacada poroutros.

Esse complexo do poderio português vinha sendo ativado, nas últimasdécadas, pelas energias transformadoras da revoluçãomercantil, fundadaespecialmentenanova tecnologia,concentradananauoceânica,comsuasnovas velas de mar alto, seu leme fixo, sua bússola, seu astrolábio e,sobretudo,seuconjuntodecanhõesdeguerra.Comelasurgiamsolidáriasatipografla de Gutemberg, duplicando a disponibilidade de livros, além doferrofundido,generalizandoutensílioseapetrechosdeguerra.

Suasciênciaseramumesforçodeconcatenarcomumsaberaexperiênciaqueseiaacumulando.

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E, sobretudo, fazer praticar esse conhecimento para descobrir qualquerterra achável, a fimde a todoomundoestruturarnummundo só, regidopela Europa. Tudo isso com o fim de carrear para lá toda a riquezasaqueávele,depois, todooprodutodacapacidadedeproduçãodospovosconscritos.

Eraahumanidademesmaqueentravanoutrainstânciadesuaexistência,na qual se extinguiriam milhares de povos, com suas línguas e culturasprópriasesingulares,paradarnascimentoàsmacroetniasmaioresemaisabrangentesquejamaisseviu.

OmotordessaexpansãoeraoprocessocivilizatórioquedeunascimentoadoisEstadosnacionais:PortugaleEspanha,queacabavamdeconstituir‐se,superandoofracionamentofeudalquesucederaàdecadênciadosromanos.Nãoeraassim,naturalmente,queelesseviam,osgestoresdessaexpansão.Eles se davam ao luxo de propor‐se motivações mais nobres que asmercantis,definindo‐secomoosexpansoresdacristandadecatólicasobreospovos existentes e por existir no além‐mar. Pretendiam refazer o orbeemmissãosalvadora,cumprindoatarefasupremadohomembranco,paraisso destinado por Deus: juntar todos os homens numa só cristandade,lamentavelmentedivididaemduascaras,acatólicaeaprotestante.

Antesmesmo do achamento do Brasil, o Vaticano estabelece as normasbásicasdeaçãocolonizadora,aoregulamentar,comosolhosaindapostosna África, as novas cruzadas que não se lançavam contra heregesadoradoresdeoutroDeus,mascontrapagãoseinocentes.ÉoqueselênabulaRomanusPontifex,de8dejaneirode1454,dopapaNicolauV:

"Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso diletofilho infante D. Henrique, incendido no ardor da fé e zelo da salvação dasalmas, se esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe o nomegloriosíssimodeDeus,reduzindoàsuafénãosóossarracenos,inimigosdela,comotambémquaisqueroutrosinfiéis.

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Guinéus e negros tomados pela força, outros legitimamente adquiridosforamtrazidosaoreino,oqueesperamosprogridaatéaconversãodopovoou ao menos de muitos mais. Por isso nós, tudo pensando com devidaponderação, concedemosaodito reiAfonsoaplenae livre faculdade,entreoutras, de invadir, conquistar, subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos,inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudopraticar em utilidade própria e dos seus descendentes. Tudo declaramospertencerdedireitoinperpetuumaosmesmosD.Afonsoeseussucessores,eao infante. Se alguém, indivíduo ou coletividade, infringir essasdeterminações,sejaexcomungado[...](inBaião1939:36‐7)."

Maistarde,sempreprevidente,oVaticanodispõenabulaInterCoetera,de4demaiode1493‐quasenasmesmaspalavrasqueabulaanterior‐,quetambém o Novo Mundo era legitimamente possuível por Espanha ePortugal,eseuspovostambémescravizáveisporquemossubjugasse:

"[...]pornossameraliberalidade,edeciênciacerta,eemrazãodaplenitudedo poder Apostólico, todas ilhas e terras firmes achadas e por achar,descobertas ou por descobrir, para o Ocidente e o Meio‐Dia, fazendo econstruindo uma linha desde o pólo Ártico [...] quer sejam terras firmes eilhas encontradas e por encontrar em direção à Índia, ou em direção aqualquer outra parte, a qual linha diste de qualquer das ilhas quevulgarmente são chamadas dos Açores e Cabo Verde cem léguas para oOcidenteeoMeio‐Dia [...]AVóseavossosherdeirose sucessores (reisdeCastela e Leão) pela autoridade doDeus onipotente a nós concedida em S.Pedro, assimcomodovicariadode JesusCristo, aqual exercemosna terra,para sempre, no teor das presentes, vô‐las doamos, concedemos eentregamos com todos os seus domínios, cidades, fortalezas, lugares, vilas,direitos,jurisdiçõesetodasaspertenças.Eavóseaossobreditosherdeirosesucessores, vos fazemos, constituímos e deputamos por senhores dasmesmas, com pleno, livre e onímodo poder, autoridade e jurisdição. [...]sujeitar a vós, por favor da Divina Clemência, as terras firmes e ilhassobreditas,eosmoradoresehabitantesdelas,ereduzi‐losàFéCatólica[...](inMacedoSoares1939:25‐8)"

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É preciso reconhecer que essa é, ainda hoje, a lei vigente no Brasil. É ofundamento sobre o qual se dispõe, por exceção, a daçãodeumpequenoterritório a um povo indígena, ou, também por exceção, a declaraçãoepisódicaetemporáriadequeagentedetaltribonãoeraescravizável.Éofundamento, ainda,dodireitodo latifundiárioà terraque lhe foiumavezoutorgada,bemcomoocomandodetodoopovocomoumameraforçadetrabalho, semdestinopróprio, cuja funçãoera servirao senhoriooriundodaquelasbulas.

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2OENFRENTAMENTODOSMUNDOS

ASOPOSTASVISÕES

Os índios perceberam a chegada do europeu como um acontecimentoespantoso, sóassimilável emsuavisãomíticadomundo.Seriamgentedeseudeussol,ocriador‐Maíra‐,quevinhamilagrosamentesobreasondasdomargrosso.Nãohaviacomointerpretarseusdesígnios,tantopodiamserferozescomopacíficos,espoliadoresoudadores.

Provavelmente seriam pessoas generosas, achavam os índios. Mesmoporque,noseumundo,maisbeloeradarquereceber.Ali,ninguémjamaisespoliaraninguémeapessoaalgumasenegava louvorpor suabravuraecriatividade. Visivelmente, os recém‐chegados, saídos domar, eram feios,fétidose infectos.Nãohaviacomonegá‐lo.Écertoque,depoisdobanhoeda comida, melhoraram de aspecto e de modos. Maiores terão sido,provavelmente,asesperançasdoqueostemoresdaquelesprimeirosíndios.Tantoassiméquemuitosdelesembarcaramconfiantesnasprimeirasnaus,crendoqueseriam levadosaTerrassemMales,moradadeMaíra (NewenZeytung 1515). Tantos que o índio passou a ser, depois do pau‐brasil, aprincipalmercadoriadeexportaçãoparaametrópole.

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Poucomaistarde,essavisãoidílicasedissipa.Nosanosseguintes,seanulae reverte‐se no seu contrário: os índios começam a ver a hecatombe quecaíra sobre eles. Maíra, seu deus, estaria morto? Como explicar que seupovo predileto sofresse tamanhas provações? Tão espantosas e terríveiseramelas,queparamuitosíndiosmelhorforamorrerdoqueviver.

Maistarde,comadestruiçãodasbasesdavidasocialindígena,anegaçãode todos os seus valores, o despojo, o cativeiro, muitíssimos índiosdeitavamemsuasredesesedeixavammorrer,comosóelestêmopoderdefazer. Morriam de tristeza, certos de que todo o futuro possível seria anegaçãomaishorríveldopassado,umavidaindignadeservividaporgenteverdadeira.

Sobre esses índios assombrados com o que lhes sucedia é que caiu apregaçãomissionária, como um flagelo. Com ela, os índios souberam queeraporculpasua,desua iniqüidade,deseuspecados,queobomdeusdocéu caíra sobre eles, como um cão selvagem, ameaçando lançá‐los parasempre nos infernos. O bem e o mal, a virtude e o pecado, o valor e acovardia,tudoseconfundia,transtrocandoobelocomofeio,oruimcomobom.Nadavalia, agoraedoravante,oqueparaelesmaisvalia: abravuragratuita,avontadedebeleza,acriatividade,asolidariedade.Acristandadesurgiaaseusolhoscomoomundodopecado,dasenfermidadesdolorosasemortais,dacovardia,queseadonavadomundoíndio,tudoconspurcando,tudoapodrecendo.

Ospovosqueaindaopuderamfazer,fugirammataadentro,horrorizadoscom o destino que lhes era oferecido no convívio dos brancos, seja nacristandade missionária, seja na pecaminosidade colonial. Muitos deleslevandonoscorposcontaminadosasenfermidadesqueosiriamdizimandoaeleseaospovosindenesdequeseaproximassem.

Mas a atração irresistível das ferramentas, dos adornos, da aventura, osfaziavoltar.Cadanovageraçãoqueriavercomseusprópriosolhosopovoestranho, implantado nas praias, recebendo navios cheios de benspreciosíssimos.

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Algunsseacercavameaderiam,preferindoaaventuradoconvíviocomosnovossenhores,comoflecheirosdesuasguerrascontraosíndiosarredios,doquearotinadavidatribal,queperderaoviçoeobrilho.

Essefoioprimeiroefeitodoencontrofatalqueaquisedera.Aolongodaspraias brasileiras de 1500, se defrontaram, pasmos de se verem uns aosoutros tal qual eram, a selvageria e a civilização. Suas concepções,não sódiferentesmasopostas,domundo,davida,damorte,doamor,sechocaramcruamente. Os navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos de meses denavegação oceânica, escalavrados de feridas do escorbuto, olhavam, emespanto, o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os índios,vestidosdanudezemplumada,esplêndidosdevigoredebeleza,tapandoasventas contra a pestilência, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres quesaíamdomar.

Para os que chegavam, omundo emque entravamera a arena dos seusganhos, em ouros e glórias, ainda que estas fossem principalmenteespirituais, ou parecessem ser, como ocorria com os missionários. Paraalcançá‐las, tudo lhes era concedido, uma vez que sua ação de além‐mar,por mais abjeta e brutal que chegasse a ser, estava previamentesacramentadapelasbulase falasdopapaedo rei.Eleseram,ou seviam,comonovoscruzadosdestinadosaassaltaresaqueartúmulosetemplosdeheregesindianos.Masaqui,oqueviam,assombrados,eraoquepareciaseruma humanidade edênica, anterior à que havia sido expulsa do Paraíso.Abre‐se com esse encontro um tempo novo, em que nenhuma inocênciaabrandaria sequer a sanha com que os invasores se lançavam sobre ogentio,prontosasubjugá‐lospelahonradeDeusepelaprosperidadecristã.Só hoje, na esfera intelectual, repensando esse desencontro se podealcançarseurealsignificado.

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Paraos índiosquealiestavam,nusnapraia,omundoeraumluxodeseviver,tãoricodeaves,depeixes,deraízes,defrutos,deflores,desementes,quepodiadarasalegriasdecaçar,depescar,deplantarecolheraquantagenteaquiviesseter.Nasuaconcepçãosábiaesingela,avidaeradádivadedeusesbons,quelhesdoaramesplêndidoscorpos,bonsdeandar,decorrer,denadar,dedançar,delutar.Olhosbonsdevertodasascores,suasluzesesuas sombras. Ouvidos capazes da alegria de ouvir vozes estridentes oumelódicas, cantos graves e agudos e toda a sorte de sonsquehá.Narizescompetentíssimosparafungarecheirarcatingaseodores.Bocasmagníficasdedegustar comidasdoces e amargas, salgadas e azedas, tirandode cadaqualogozoquepodiadar.E,sobretudo,sexosopostosecomplementares,feitosparaasalegriasdoamor.

Osrecém‐chegadoseramgenteprática,experimentada,sofrida,cientedesuasculpasoriundasdopecadodeAdão,predispostosàvirtude,comclaranoçãodoshorroresdopecadoedaperdiçãoeterna.Osíndiosnadasabiamdisso. Eram, a seu modo, inocentes, confiantes, sem qualquer concepçãovicária, mas com claro sentimento de honra, glória e generosidade, ecapacitados,comogentealgumajamaisofoi,paraaconvivênciasolidária.

Aosolhosdosrecém‐chegados,aquelaindiadalouçã,deencherosolhossópeloprazerdevê‐los,aoshomenseàsmulheres,comseuscorposemflor,tinha um defeito capital: eram vadios, vivendo uma vida inútil e semprestança. Que é que produziam? Nada. Que é que amealhavam? Nada.Viviam suas fúteis vidas fartas, como se neste mundo só lhes coubesseviver.

Aosolhosdosíndios,osoriundosdomaroceanopareciamaflitosdemais.Porqueseafanavamtantoemseusfazimentos?Porqueacumulavamtudo,gostando mais de tomar e reter do que de dar, intercambiar? Suasofreguidão seria inverossímil se não fosse tão visível no empenho dejuntar toras de pau vermelho, como se estivessem condenados, parasobreviver,aalcançá‐laseembarcá‐lasincansavelmente?

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Temeriameles,acaso,queasflorestasfossemacabare,comelas,asaveseascaças?Queosrioseomarfossemsecar,matandoospeixestodos?

"Os nossos tupinambás muito se admiram dos franceses e outrosestrangeirossedaremaotrabalhodeirbuscarosseusarabutan.Umavezumvelhoperguntou‐me:Porquevindesvósoutros,maírseperôs (franceseseportugueses) buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendesmadeira em vossa terra? Respondi que tínhamos muita, mas não daquelaqualidade, e que não a queimávamos, como ele o supunha, mas delaextraíamos tinta para tingir, tal qual o faziam eles comos seus cordões dealgodãoesuasplumas.Retrucou o velho imediatamente: e porventura precisais demuito? ‐ Sim,respondi‐lhe, pois no nosso país existem negociantes que possuem maispanos,facas,tesouras,espelhoseoutrasmercadoriasdoquepodeisimaginare um só deles compra todo o pau‐brasil com que muitos navios voltamcanegados. ‐ Ah! retrucou o selvagem, tu me contas maravilhas,acrescentandodepois de bem compreender o que eu lhe dissera:Mas essehomemtãoricodequemefalasnãomorre?‐Sim,disseeu,morrecomoosoutros.Mas os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquerassunto até o fim, por isso perguntou‐me de novo: e quandomorremparaquemficaoquedeixam?‐Paraseusfilhosseostêm,respondi;nafaltadestesparaosirmãosouparentesmaispróximos.‐Naverdade,continuouovelho,que,comovereis,nãoeranenhumtolo,agoravejoquevósoutrosmaírssoisgrandes loucos, pois atravessais omar e sofreis grandes incômodos, comodizeisquandoaqui chegais, e trabalhais tantoparaamontoar riquezasparavossosfilhosouparaaquelesquevossobrevivem!Nãoseráaterraquevosnutriu suficiente para alimentá‐los também? Temos pais, mães e filhos aquemamamos;masestamoscertosdequedepoisdanossamorteaterraquenosnutriu tambémosnutrirá,por issodescansamossemmaiorescuidados(Léry1960:151‐61)."

Aqueledesencontrodegenteíndiaqueenchiaaspraias,encantadadeverasvelasenfunadas,equeeravistacomfascíniopelosbarbudosnavegantesrecém‐chegados,era,também,oenfrentamentobióticomortaldahigidezeda morbidade. A indiada não conhecia doenças, além de coceiras edesvanecimentosporperdamomentâneadaalma.

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Abranquitudetraziadacáriedentalàbexiga,àcoqueluche,àtuberculosee o sarampo. Desencadeia‐se, ali, desde a primeira hora, uma guerrabiológicaimplacável.Deumlado,povospeneirados,nosséculosemilênios,porpestesaquesobreviverameparaasquaisdesenvolveramresistência.Do outro lado, povos indenes, indefesos, que começavam a morrer aosmagotes.Assiméqueacivilizaçãoseimpõe,primeiro,comoumaepidemiadepestesmortais.Depois,peladizimaçãoatravésdeguerrasdeextermínioedaescravização.Entretanto,esseseramtão‐sóospassos iniciaisdeumaescalada do calvário das dores inenarráveis do extermínio genocida eetnocida.

Paraosíndios,avidaeraumatranqüilafruiçãodaexistência,nummundodadivoso e numa sociedade solidária. Claro que tinham suas lutas, suasguerras. Mas todas concatenadas, como prélios, em que se exerciam,valentes.Umguerreirolutava,bravo,parafazerprisioneiros,pelaglóriadealcançar um novo nome e uma nova marca tatuada cativando inimigos.Tambémserviaparaofertá‐lonumafestançaemquecentenasdepessoasocomeriam convertido em paçoca, num ato solene de comunhão, paraabsorversuavalentia,quenosseuscorposcontinuariaviva.

Umamulherteciaumaredeoutrançavaumcestocomaperfeiçãodequeeracapaz,pelogostodeexpressar‐seemsuaobra,comoumfrutomadurodesuaingentevontadedebeleza.Jovens,adornadosdeplumassobreseuscorposescarlatesdeurucu,ouverde‐azuladosdejenipapo,engalfinhavam‐se em lutas desportivas de corpo a corpo, em que punham a energia debatalhasnaguerraparaviverseuvigoresuaalegria.

Para os recém‐chegados,muito ao contrário, a vida era uma tarefa, umasofridaobrigação, quea todos condenavaao trabalhoe tudo subordinavaao lucro. Envoltos em panos, calçados de botas e enchapelados, punhamnessaspeçasseu luxoevaidade,apesardemaisvezesasexibiremsujasemolambentas,doquepulcrasebelas.

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Armadosdechuçosdeferroedearcabuzestonitroantes,elessesabiamese sentiam a flor da criação. Seu desejo, obsessivo, eramultiplicar‐se nosventresdasíndiasepôrsuaspernasebraçosaseuserviço,paraplantarecolher suas roças, para caçar epescaroque comiam.Oshomens serviamprincipalmenteparatombare juntarpaus‐de‐tintaouparaproduziroutramercadoriaparaseulucroebem‐estar.

Esses índios cativos, condenados à tristeza mais vil, eram também osprovedores de suas alegrias, sobretudo as mulheres, de sexo bom defornicar, de braço bom de trabalhar, de ventre fecundo para prenhar. Avontade mais veemente daqueles herói d'além‐mar era exercer‐se sobreaquela gente vivente como seus duros senhores. Sua vocação era a deautoridades de mando e cutelo sobre bichos e matos e gentes, nasimensidadesde terrasdeque iamseapropriandoemnomedeDeusedaLei.

O contraste não podia ser maior, nem mais infranqueável, emincompreensão recíproca. Nada que os índios tinham ou faziam foi vistocomqualquerapreço, senãoelespróprios, comoobjetodiversodegozoecomofazedoresdoquenãoentendiam,produtoresdoquenãoconsumiam.Oinvasor,aocontrário,vinhacomasmãoscheiaseasnausabarrotadasdemachados,facas,facões,canivetes,tesouras,espelhose,também,miçangascristalizadas em cores opalinas. Quanto índio se desembestou,enlouquecido,contraoutrosíndioseatécontraseuprópriopovo,poramordessas preciosidades! Não podendo produzi‐las, tiveram de encontrar esofrer todos os modos de pagar seus preços, na medida em que elas setornaram indispensáveis. Elas eram, em essência, a mercadoria queintegravaomundoíndiocomomercado,comapotênciaprodigiosadetudosubverter. Assim se desfez, uniformizado, o recém‐descoberto ParaísoPerdido.

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RAZÕESDESENCONTRADAS

Frenteàinvasãoeuropéia,osíndiosdefenderamatéolimitepossívelseumodo de ser e de viver. Sobretudo depois de perderem as ilusões dosprimeiros contatos pacíficos, quando perceberam que a submissão aoinvasor representava sua desumanização como bestas de carga. Nesseconflitodevidaoumorte,osíndiosdeumladoeoscolonizadoresdooutropunham todas as suas energias, armas e astúcias. Entretanto, cada tribo,lutandoporsi,desajudadapelasdemais‐excetoemumaspoucasocasiõesemqueseconfederaram,ajudadaspeloseuropeusqueviviamentreelas‐pôde ser vencida por um inimigo pouco numeroso mas superiormenteorganizado,tecnologicamentemaisavançadoe,emconseqüência,maisbemarmado.

As vitórias européias se deveram principalmente à condição evolutivamais alta das incipientes comunidades neobrasileiras, que lhes permitiaaglutinar‐se em uma única entidade política servida por uma culturaletrada e ativada por uma religião missionária, que influencioupoderosamente as comunidades indígenas. Paradoxalmente, porém, é opróprio atraso dos índios que os fazia mais resistentes à subjugação,condicionando uma guerra secular de extermínio. Isso se verificacomparando a rapidez da conquista e da pacificação onde o europeu sedeparoucomaltascivilizações‐comonoMéxicoenoPeru‐comalentidãoda conquista do Brasil, que prossegue até hoje com tribos arrediasresistindoarmadasàinvasãodeseusterritóriosparaalémdasfronteirasdacivilização.

Ascrônicascoloniaisregistramcopiosamenteessaguerrasemquarteldeeuropeusarmadosdecanhõesearcabuzescontraindígenasquecontavamunicamente com tacapes, zarabatanas, arcos e flechas. Ainda assim, oscronistasdestacamcomgostoeorgulhooheroísmolusitano.Esseéocasodas loas do padre Anchieta a Mem de Sá, subjugador das populaçõesaborígenesparaescravizá‐lasoucolocá‐lasemmãosdosmissionários.

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Anchieta, descuidado da cordura que corresponderia à sua futurasantidade,louvaassimobravogovernador:

"QuempoderácontarosgestosheróicosdoChefeàfrentedossoldados,naimensamata:Centoe sessentaasaldeias incendiadas,Mil casasarruinadaspela chama devoradora, Assolados os campos, com suas riquezas, Passadotudoaofiodaespada.Essessãoalgunsdos2milversosdelouvaçãoescritosemlatimporJosédeAnchieta(1958:129)nopoema"DeGestisMendideSaa"(circa1560).

O elogio é tantomais compreensível quando se recordaqueMemde Sá,com suas guerras de sujigação e extermínio, estava executandorigorosamente o plano de colonização proposto pelo padre Nóbrega em1558. Esse plano inclemente é o documento mais expressivo da políticaindigenista jesuítico‐lusitana. Em sua eloqüência espantosa, um dosargumentosdequelançamãoéaalegaçãodanecessidadedepôrtetmoàantropofagia,quesócessará,dizele,pondofim"àbocainfernaldecomeratantoscristãos".Outroargumentonãomenosexpressivoéaconveniênciade escravizar logo aos índios todos para que não sejam escravizadosilegalmente.Senãovejamos:

"[...] seS.A.osquerver todosconvertidos,mande‐ossujeitaredeve fazerestenderaoscristãosporaterradentroerepartir‐lhesosserviçosdosíndiosàqueles que os ajudarem a conquistar e senhoriar como se faz em outraspartesdeterrasnovas[...]Sujeitando‐se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos malhavidos e muitos escrúpulos, porque terão os homens escravos legítimos,tomadosemguerrajustaeterãoserviçosdeavassalagemdosíndioseaterrase povoará e Nosso Senhor ganharámuitas almas e S. A. terámuita rendanestaterraporquehaverámuitascriaçõesemuitosengenhos,jáquenãohajamuitoouroeprata.[...]

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Esseparece tambémomelhormeiopara a terra sepovoarde cristãos eseriamelhor quemandar povoadores pobres, como vieram alguns, e pornão trazerem comquemercassemumescravo, comque começassem suavida, não se puderam manter, e assim foram forçados a se tornar oumorreremdebichos;eparecemelhormandargentequesenhoreieaterraefolguedeaceitarnelaqualquerboamaneiradeviver,comofizeramalgunsdosquevieramcomTomédeSouza[...]

Devia de haver um protetor dos índios para os fazer castigar, quando ohouvessemister,edefenderdosagravosquelhesfizessem.Estedeveriaserbem salariado, escolhido pelos padres e aprovado pelo governador. Se ogovernadorfossezelosobastariaopresente.

A1eiqueeleshãodedarédefender‐lhescomercarnehumanaeguerrearsemlicençadogovernador,fazer‐lhesterumasómulher,vestirem‐se,poistemmuito algodão, aomenos depois de cristãos, tirar‐lhes os feiticeiros,mantê‐losemjustiçaentresieparacomoscristãos;fazê‐losviverquietossem se mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendoterrasrepartidasque lhesbastemecomessespadresdaCompanhiaparaosdoutrinar(ApontamentosdecoisasdoBrasil,8demaiode1558inLeite1940:75‐87)."

Tal foi o alto plano jesuítico que regeu e ordenou a colonização. Umsomatório de violência mortal, de intolerância, prepotência e ganância.Todas as qualidades mais vis se conjugaram para compor o programacivilizador de Nóbrega. Aplicado a ferro e fogo por Mem de Sá, esseprograma levou o desespero e a destruição a cerca de trezentas aldeiasindígenasnacostabrasileiradoséculoXVI.

O balanço dessa hecatombe nos é dado pelo próprio Anchieta nestaspalavras:

"Agentequedevinteanosaestaparteégastadanestabahia,parececousaque não se pode crer, porque nunca ninguém cuidou que tanta gente segastassenunca.

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VãoveragoraosengenhosefazendasdaBahia,achá‐los‐ãocheiosdenegrosdaGuinéemuitopoucosdaterraeseperguntaremportantagente,dirãoquemorreu (Informação dos primeiros aldeamentos da Baía, circa 1587 inAnchieta1933:377‐8)."

Semembargo,maisaindaqueasespadaseosarcabuzes,asgrandesarmasdaconquista,responsáveisprincipaispeladepopulaçãodoBrasil,foramasenfermidades desconhecidas dos índios com que os invasores oscontaminaram. A magnitude desse fator letal pode ser avaliada peloregistrodosefeitosdaprimeiraepidemiaqueatingiuaBahia.Cercade40mil índios reunidos insensatamente pelos jesuítas nas aldeias doRecôncavo,emmeadosdoséculoxvI,atacadosdevaríola,morreramquasetodos,deixandoos3milsobreviventestãoenfraquecidosquefoiimpossívelreconstituiramissão.Osprópriossacerdotesoperavammuitasvezescomocontaminadores involuntários, como testemunham suas próprias cartas.Emalgumasdelas comentamoalívioque lhes traziaao "maldopeito"osbonsaresdaterranova;emoutras,relatamcomoosíndiosmorriamfeitomoscas,escarrandosangue,podendosersalvasapenassuasalmas.

Maisbárbaroaindaeraoprojetooposto, igualmentedefendidonoplanoideológicoemuitomaiseficaznocampoprático.AmelhorexpressãodelesedeveuaDomingosJorgeVelhoemcartaael‐rei,datadade1694,emqueo grande capitão dos mamelucos paulistas declara, soberbo, de seuscombatentes,que"nãoégentematriculadanos livrosdeVossaMajestade,nãorecebemsoldo,nemajudadepano,oumunição.Sãoumasagregaçõesque fazemos,algunsdenós, entrandocadaumcomseusservosdearmasque têm". Acrescenta que não vão ao mato cativar índios, como alguns"pretendem fazer crer a Vossa Majestade", para civilizar selvagens. Vão,comsuasprópriaspalavras,"adquirirotapuiagentio‐braboecomedordecarnehumana,paraoreduzirparaoconhecimentodaurbanahumanidadeehumanasociedade".

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Alega,ainda,que "emvão trabalhaquemosquer fazeranjos,antesdeosfazerhomens"(Cartaael‐reidoouteirodoBarriga,de15dejulhode1694inEnnes1938:204‐7).

Em poucas décadas desapareceram as povoações indígenas que ascaravelas do descobrimento encontrarampor toda a costa brasileira e osprimeiros cronistas contemplarammaravilhados. Em seu lugar haviam seinstalado três tipos novos de povoações. O primeiro e principal, formadopelas concentrações de escravos africanos dos engenhos e portos. Outro,disperso pelos vilarejos e sítios da costa ou pelos campos de criação degado,formadoprincipalmentepormamelucosebrancospobres.Oterceiroesteve constituído pelos índios incorporados à empresa colonial comoescravosdeoutrosnúcleosouconcentradosnasaldeias,algumasdasquaisconservavam sua autonomia, enquanto outras eram regidas pormissionários.

Apesar de o projeto jesuítico de colonização do Brasil nascente ter sidoformulado sem qualquer escrúpulo humanitário, tal foi a ferocidade dacolonização leiga, que estalou, algumas décadas depois, um sério conflitoentre os padres da Companhia e os povoadores dos núcleos agrário‐mercantis.Paraosprimeiros,osíndios,entãoemdeclínioeameaçadosdeextinção,passaramasercriaturasdeDeusedonosoriginaisdaterra,comdireitoasobreviverseabandonassemsuasheresiasparase incorporaremao rebanho da Igreja, na qualidade de operários da empresa colonialrecolhidos àsmissões. Para os colonos, os índios eramum gado humano,cuja natureza,mais próximade bichoquede gente, só os recomendava àescravidão.

ACoroaportuguesaapoiounominalmenteosmissionários,emborajamaisnegasseautorizaçãoparaas"guerras justas",reclamadaspelocolonoparaaprisionar e escravizar tanto os índios bravos e hostis como ossimplesmente arredios. Quase sempre fez vista grossa à escravidãoindígena, quedessemodo se tornou inevitável, dadoo caráterdaprópriaempresacolonial,especialmentenasáreaspobres.

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Impedidos de comprar escravos negros, porque eram caros demais, oscolonosdeSãoPauloeoutrasregiõesseviramnacontingênciadeseservirdos silvícolas, ou de ter como seu principal negócio a preia e venda deíndiosparaquemrequeresseseutrabalhonastarefasdesubsistência,queporlongotempoestiveramacargodeles.

Em diversas regiões ‐ mas sobretudo em São Paulo, no Maranhão e noAmazonas ‐ foram grandes os conflitos entre jesuítas e colonos,defendendo, cada qual, sua solução relativa aos aborígenes: a reduçãomissionáriaouaescravidão.Acurtooulongoprazo,triunfaramoscolonos,que usaram os índios como guias, remadores, lenhadores, caçadores epescadores, criados domésticos, artesãos; e sobretudo as índias, como osventres nos quais engendraram uma vasta prolemestiça, que viria a ser,depois,ogrossodagentedaterra:osbrasileiros.

Quase todas as ordens religiosas aceitaram, sem resistência, o papel deamansadorasdeíndiosparaasuaincorporaçãonaforçadetrabalhoounasexpedições armadas da colônia. Os jesuítas, porém, arrependidos de seupapel inicial de aliciadores de índios para os colonos, inspirados naexperiência dos seus companheiros paraguaios, quiserampôr em prática,tambémnoBrasil,umprojetoutópicodereconstruçãointencionaldavidasocial dos índios destribalizados. Tais foram suas missões, nas quais osíndioseramconcentrados‐depoisdeatraídospelospadresousubjugadospelo braço secular ‐ em comunidades ferreamente organizadas comoeconomiasauto‐suficientes,aindaque tambémtivessemalgumaproduçãomercantil. Isso se daria na segunda onda de evangelização, realizada naAmazônia.

O projeto jesuítico era tão claramente oposto ao colonial que resultaespantosohaversidotentadosimultaneamenteenasmesmasáreasesobadominação do mesmo reino. Os conflitos resultantes das disputas pelodomíniodosíndiosnãopermitiramqueasmissõesjesuíticasalcançassem,emterrasbrasileiras,adimensão,quantoaonúmerodeindígenasreunidos,nem o nível de organização e prosperidade que a Companhia de JesusconquistounoParaguai.

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Contribuemparaessefracassoduasordensdefatores.Primeiro,areferidaoposição frontal dos povoadores portugueses a um projeto que lhesdisputava amão‐de‐obra indígena, e que era realizadonasmesmas áreasqueelesocupavam.Segundo,asenfermidadestrazidaspelobrancoque,aopropagarem‐se nas grandes concentrações humanas das missões,provocavam enormemortandade. Depois de algumas décadas, os jesuítasreconheceram que, além de não conseguirem salvar as almas dos índiospeloevidentefracassodaconversão‐oque,deresto,nãoeragrave,porque"o despertar da fé é tarefa de Deus", não domissionário (Nóbrega, apudDourado 1958:44) ‐, também não salvavam suas vidas. Ao contrário. Eraevidenteodespovoamentode todaacostae,vistosos fatosagora,nãosepodedeixardereconhecer,também,queosprópriosjesuítasforamumdosprincipaisfatoresdeextermínio.

Esse foi, de fato, o papel que eles representaram, enquanto diplomatas‐pacificadores,postosemaçãosemprequeosíndiospudessemganharumabatalha. Tal ocorreu emPeruíbe, quandoAnchieta, fazendo‐se passar porummilagrosopai,corriadeumladoaoutrotentandodissuadirosíndiosdeatacarosportugueses,que,atacadosnaquelemomento,poderiamtersidovencidos. De fato, se atribui a ele, com toda razão ‐ a ele e a Nóbrega ‐,haverem salvo, naquela ocasião, a São Paulo e à própria colonizaçãoportuguesa.

Também foi evidentemente nefasto o papel dos jesuítas, retirando osíndios de suas aldeias dispersas para concentrá‐los nas reduções, onde,alémdeserviremaospadresenãoasimesmosedemorreremnasguerrasdos portugueses contra os índios hostis, eram facilmente vitimados pelaspragasdequeelespróprios,semquerer,oscontaminavam.Éevidentequenosdoiscasosopropósitoexplícitodosjesuítasnãoeradestruirosíndios,mas o resultado de sua política não podia ser mais letal se tivesse sidoprogramadaparaisso.

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A atuação mais negativa dos jesuítas, porém, se funda na própriaambigüidade de sua dupla lealdade frente aos índios e à Coroa, maispredispostos,porém,a servir a estaCoroa contra índiosaguerridosqueadefendê‐los eficazmente diante dela. Isso sobretudo no primeiro século,quando sua função principal foi minar as lealdades étnicas dos índios,apelandofortementeparaoseuespíritoreligioso,afimdefazercomquesedesgarrassem das tribos e se atrelassem às missões. A eficácia quealcançamnessepapel alienador é tão extraordinária quanto grande a suaresponsabilidadenadizimaçãoquedelaresultou.

No segundo século, já enriquecidos de seu triste papel e tambémrepresentadosporfigurasmaiscapazesdeindignaçãomoral,comoAntônioVieira,os jesuítasassumiramgrandesriscosnoresguardoenadefesadosíndios. Foram, por isso, expulsos, primeiro, de São Paulo e, depois, doestadodoMaranhãoeGrão‐Parápeloscolonos.Afinal,aprópriaCoroa,napessoa do marquês de Pombal, decide acabar com aquela experiênciasocialistaprecoce,expulsando‐osdoBrasil.Então,ocorreomais triste.Ospadres entregam obedientemente as missões aos colonos ricos,contemplados com a propriedade das terras e dos índios pela gente dePombal, e são presos e recolhidos à Europa, para amargar por décadas otristepapeldesujigadoresquetinhamrepresentado.

OSALVACIONISMO

Nas décadas do achamento, descoberta ou invasão do Brasil, surgiramdescrições cada vez mais minuciosas das novas terras. Assim, elas iamsendoapropriadaspeloinvasortambémpeloconhecimentodeseusriosematas,povos,bichoseduendes.

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Emprincípio,pelaabsorçãodacopiosíssimasabedoria indígena,quenosmilêniosanterioressefamiliarizaracomoqueeraanaturezacircundante,classificandoedandonomesaoslugareseàscoisas,definindoseususoseutilidades. Depois, por sucessivas redefinições, umas vezes retendo osantigosnomes,outras,rebatizando,masnosdoiscasoscompondoumnovocorpodesaber,voltadoparavaloresepropósitosdiferentes.

Foi a gente aqui encontrada que provocoumaior curiosidade. Os índios,vistos em princípio como a boa gente bela, que recebeu dadivosa aosprimeirosnavegantes,passaramlogoaservistoscomocanibais,comedoresde carnehumana, totalmentedetestáveis. Como convívio, tantoos índioscomeçaramadistinguirnoseuropeusnaçõesecaráteresdiferentes, comoestes passaram a diferenciá‐los em grupos de aliados e inimigos, falandolínguasdiferentesetendocostumesdiscrepantes.

Assim, foi surgindo uma etnologia recíproca, através da qual uns iamfigurando o outro. A ela correspondeu, na Europa, um compêndio deinterpretações das novidades espantosas que vinham nas cartas dosnavegantes, depois nas crônicas e testemunhos e, afinal, nessa etnologiaincipiente. A curiosidade se acendeu, inteira, no reino dos teólogos, quecomeçaramasechocarcomalgumasnovas,impensáveisatéentão.

Aquelesíndios,tãodiferentesdoseuropeus,queosviameosdescreviam,mas também tão semelhantes, seriam eles também membros do gênerohumano, feitos do mesmo barro pelas mãos de Deus, à sua imagem esemelhança? Caíram na impiedade. Teriam salvação? Ficou logo evidentequeelescareciam,mesmo,édeumrigorosobanhodelixíviaemsuasalmassujasdetantaabominação,comoaantropofagiadecomerseusinimigosembanquetesselvagens;aruindadecomqueerammanipuladospelodemônioatravés de seus feiticeiros; a luxúria com que se amavam com anaturalidadedebichos;apreguiçadesuavidafartaeinútil,descuidadadequalquerproduçãomercantil.

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Essa curiosidade floresceu, logo, numa teologia bárbara, em que ostratadosdefreiFranciscodeVitória,Nóbregae,depois,osdeVieiraetantosoutros, compunham eruditos discursos em que os índios contracenavamcomrazõesteológicas,evangélicas,apostólicas,providenciais,cataclísmicase escatológicas. Assim é que se foi compondo umdiscurso cada vezmaisracional e cada vez mais insano, frente à realidade do que sucedeu aosíndios: esmagados e escravizadospelo colonizador, cegoe surdoa razõesquenãofossemasdohaveredodeverpecuniários.

Apesar dessas cruas evidências, uns santos homens, em sua alienaçãoiluminada, continuaram crendo que cumpriam uma destinação cristã deconstrutoresdoreinodeDeusnonovomundo,desoldadosapostólicosdacristandade universal. Logo compuseram uma teologia alucinada emessiânica, que via na expansão ibérica, com a sucessiva descoberta dedilatadasterras ignotasedeincontáveispovospagãos,umamissãodivinaquesecumpriapassoapasso.Tordesilhas,nessecontexto, teriasidoumavisãoproféticasobreadestinaçãoibéricadeevangelizaçãoparacriarumaIgreja,porfim,efetivamenteuniversal.

Essesdiscursosrespondiamaumanecessidade igualmente imperativa.Adeatribuiralgumadignidadeformalàguerradeextermínioquese levavaadiante,àbrutalidadedaconquista,àperversidadedaeliminaçãodetantospovos.Oimpérioibérico,sagrando‐sesobreonovomundo,setingiacomastintasdeRoma.Prometiaque,àtorpezaíndia,fariasucederaprudênciaeapiedade cristãs, até converter os infiéis servos do demônio em cristãos,tementesdopecadoedaperdição,adoradoresdoverdadeiroDeus.

Oeuropeuque, forçandoa tradiçãobíblica, fizeradodeusdoshebreusorei dos homens, agora tinha de incluir aquela indianidade pagã nahumanidadedopassado, entre os filhos deEva expulsos doParaíso, e dofuturo,entreosdestinadosàredençãoeterna.

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A polêmica sobre esse tema se acendeu por toda a parte, discutindovivamente o que se podia debitar e creditar a eles da tradição vetusta. OdilúvioocorreutambémparaoNovoMundo,comNoéeseusbichos?Quepastoresevangélicos tiveramaseucargo levarpara láapalavradeDeus?PorquefracassaramemsuamissãoevangélicaoscompanheirosdeCristo?Outambémosíndioseramculpadosdopecadooriginal?OpróximoMessiasirá salvar a eles também? Os cataclismos apocalípticos e o Juízo Finalvalerãoparaosíndios,comoparaosbrancos?Poderia,acaso,oanunciadoFilhodeDeus,nasceríndioentreeles?

Detodoodebate,sóreluzia,claracomoosol,paraacúpularealeparaaIgreja,amissãosalvacionistaquecumpriaàcristandadeexercer,a ferroefogo, se preciso, para incorporar as novas gentes ao rebanho do rei e daIgreja. Esse era um mandato imperativo no plano espiritual. Umadestinaçãoexpressa,umamissãoacargodaCoroa,cujodireitodeavassalaros índios, colonizar e fluir as riquezas da terra nova decorria do sagradodeverdesalvá‐lospelaevangelização.

Na ordem secular, a legitimidade da hegemonia européia se estabeleceusoberana. Na ordem divina, os jesuítas e os franciscanos pretenderam,porém,afiançarqueestavamdestinadosacriarrepúblicaspiaseseráficasde santos homens com os índios recém‐descobertos, a fim de que, comoprescrevia o Livro dos Atos, todos os que crêem vivessem unidos, tendotodososbensemcomum.

Configuram‐se, assim, duas destinações cruamente opostas, desfrutando,cadaqual,opredomínionadominaçãodoNovoMundo.Deumlado,adoscolonos,àfrentedosseusnegócios.Dooutrolado,adosreligiosos,àfrentedesuasmissões.Emprincípio,emterratãovasta,trabalhandocadaqualemsua província, puderam crescer paralelamente, mas logo o contraste seconverteuemconflitoaberto.Oscolonos,trabalhandoparareproduziraquiumsadiomundomercantil,movidosporsuascobiçaseusuras.

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Os frades, fazendoressoarnoNovoMundoantigasheresias joaquinistas.Comoadoinfanted.Henrique,comsuapregaçãodeque,umavezqueerapassadootempodoPai‐dequeregeoVelhoTestamento‐etambémodoFilho – de que trata o Novo Testamento ‐, era chegada a Era do EspíritoSanto, que instalará omilêniodo amor e da alegria nestemundo, comosíndiosconversoseconvertidosemlouvadoresdaglóriadeDeus.

A história faria prevalecer o plano oposto, obrigando os própriosevangelizadores a cumprir o projeto colonial através da guerra genocidacontratodososíndiosedaaçãomissionária,aseupesar,etnocida.

Nastarefasdaconversãodogentioesuaintegraçãonacristandade,foramsoldados principais o jesuíta, o franciscano e o carmelita. Os inacianos,inspirando,apoiando,incentivandoobraçosecularparaque,guerreandoeavassalando, pusessem os índios, humilhados, a seus pés dentro dasmissões. Ali, aparentemente, eles iam viver vidas de índios humildes,contritamente. Na verdade, eles estavam inventando para os índios umavida nova, triste vida de catecúmenos, suportável apenas diante daalternativa que era caírem cativos nas mãos do colono. Assim, foramedificando, dia a dia, ano a ano, a Cidade Cristã, virtuosa e operativa,impensávelnoVelhoMundo,masfactívelaquicomobarrodócilqueeramos índios. Inocentes, simples e puros, sobretudo as crianças, ainda comdentesdeleite,comodiziaGilbertoFreyre.Acabouficandoclaro,paraeles,quenadasepodiaesperardaEuropa,corrompidaecorrupta.AesperançaúnicadesalvaçãopossívelparaelaseriaoApocalipse.NoNovoMundo,aocontrário,elesviamconfirmar,acadadia,suasesperançasdeconcretizarasprofeciasbíblicas.

A tarefa a que os missionários se propunham não era transplantar osmodoseuropeusdeseredeviverparaoNovoMundo.

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Era, ao contrário, recriar aqui o humano, desenvolvendo suas melhorespotencialidades,paraimplantar,afinal,umasociedadesolidária,igualitária,orante e pia, nas bases sonhadas pelos profetas. Essa utopia socialista eseráfica floresce nas Américas, recorrendo às tradições do cristianismoprimitivoeàsmaisgenerosasprofeciasmessiânicas.Elasefunda,porigual,nopasmodosmissionáriosdianteda inocência adâmica edo solidarismoedênico que se capacitaram a ver nos índios, à medida que com elesconviviam.

Os místicos franciscanos que se viam à frente do sistema de castas deíndios remanescentes das civilizações pré‐colombianas avançam,recrutando‐os para converter pirâmides pagãs em templos cristãossuntuosos, para maior glória de Deus. Sonham ordenar a vida indígenasegundo as regras da Utopia, de Morus, inspirados anacronicamente naindianidade original. Acreditaram, mesmo, que era possível abrir essaalternativa para a conquista, fazendo da expansão européia auniversalização da cristandade. Encarnada nos corpos indígenas, acristandade ingressaria no Milênio Joaquinista, em que a felicidade sealcançaria neste mundo. No Brasil, os jesuítas foram adiante no mesmocaminho,reinventandoahistória.

Essasutopiasseopunhamtãocruamenteaoprojetocolonialqueaguerraseinstalouprontamenteentrecolonosesacerdotes.Deumlado,ocolono,querendopôrosbraçosíndiosaproduziroqueosenricasse,ajudadospormundanoscurasregularesdispostosasacramentaracidadeterrena,dandoa Deus o que é de Deus e ao rei o que ele reclamava. Foi um desastre,mesmoondeasmissõesse implantaramprodutivaseatérentáveisparaaprópriaCoroa‐comoocorreucomasdosSetePovos,nosul,eaonorte,namissão tardiadaAmazônia ‐prevaleceuavontadedocolono,quevianosíndiosaforçadetrabalhodequenecessitavaparaprosperar.

Oespantosoparaquemmeditahojeessedramaéovigordafémissionáriadaqueles santos homens, que chegaram até à subversão na luta por seuideal.

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Depois de transigir sem limites, interpretando em tom transcendental aconquista como mal necessário, a porta da estrada que se abriria aocaminho da fé pelo flagelo, caíram em si e começaram a ver seu própriopapelconivente.

Durante décadas não disseram nenhuma palavra de piedade pelosmilharesde índiosmortos,pelasaldeias incendiadas,pelascrianças,pelasmulheres e homens escravizados, aos milhões. Tudo isso eles viramsilentes. Ou até mesmo, como Anchieta, cantando essas façanhas emmilhares de versos servis. Para eles, toda aquela dor era dor necessáriaparacolorirasfacesdaaurora,queelesviamamanhecendo.Sótardiamentecaíram em si, vendo‐se vencidos primeiro na evangelização, depois nareclusão dos índios nas missões. Entretanto, nenhum desastre histórico,nenhum projeto utópico anterior teve tal altitude, porque nenhumaesperançaatéentãoforatãoalentadoraepuderaser levadatãoadiante,ademonstrar a factibilidade de reconstruir intencionalmente a sociedadesegundoumprojeto.

A utopia jesuítica esboroou e os inacianos foramexpulsosdasAméricas,entregando, inermes,desvirilizados, os seus catecúmenosao sacrifício e àescravidãonamãopossessadoscolonos.Omesmoaconteceucomosonhomirífico dos franciscanos, reduzido à visão do que era a boçalidade domundocolonial,ínvio,ímpioebruto.

É de perguntar, aqui, se não foi o próprio êxito que levou os projetosutópicos de jesuítas e de franciscanos ao fracasso. Vendo aincompatibilidadeinsanávelentreeleseoscolonose,porextensão,entreoprojetomissionárioeoreal,seafastaramparacriarsuaprópriaprovínciaeuropéia. Queriam dar à expansão ibérica a alternativa freiral derestauração de uma indianidade cristianizada, que falaria as línguasindígenasesóteria fidelidadeasimesma.Entreasduasproposições,nãohaviadúvidapossível.AsCoroasoptaram,ambas,peloprojetocolonial.

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Os místicos haviam cumprido já a sua função de dignificar á açãoconquistadora. Agora, deviam dar lugar aos homens práticos, queassentariameconsolidariamasbasesdoimpériomaiorquejamaisseviu.Emlugardesacrosreinospios,sobreismissionáriosaserviçodaIgrejaedeDeus,osreisdeEspanhaedePortugalqueriaméoreinodestemundo.

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3OPROCESSOCIVILIZATÓRIO

POVOSGERMINAIS

O processo civilizatório, acionado pela revolução tecnológica quepossibilitou a navegação oceânica, transfigurou as nações ibéricas,estruturando‐as como impérios mercantis salvacionistas. Assim é que seexplica a vitalização extraordinária dessas nações, que de repenteganharamumaenergiaexpansiva inexplicávelnumaformaçãomeramentefeudale tambémnuma formaçãocapitalista.Mesmoporqueessasúltimassósurgirammaistarde,naInglaterraenaHolanda.

De fato, as teorias explicativas da história mundial não oferecemcategoriasteóricascapazesdeexplicarsejaopoderiosingularquealcançouacivilizaçãoÁrabepormaisdeummilêniodeesplendor, sejaaexpansãoibérica,quecriouaprimeiracivilizaçãouniversal.Essacarênciaéquenosobrigou,emnossoestudodoprocessocivilizatório(Ribeiro1968,1972),apropor, com respeito ao mundo árabe, a categoria de império despóticosalvacionista,enfatizandoocaráteratípicodeseusalvacionismo,quenuncaquis converter ninguém. Simplesmente conquistavam a área, gritavam oJihadedeixavamopovoviver.

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A certa altura, como aconteceu com todas as civilizações, entram emobsolescência e se feudalizam, abrindo espaço para um novo gênero desalvacionismo. Ao mundo ibérico propusemos a categoria de impériomercantil salvacionista, gerado pela mesma revolução tecnológica, amercantil,quedeuacessoaoultramar.Tecnologiageradanomundoárabee no mundo oriental, mas acolhida e concatenada primeiro pelosportugueses.

Os iberos, num primeiro movimento, se livraram da secular ocupaçãoárabeeexpulsaramseucontingente judeu,assumindointeirocomandodeseu território através de um poder centralizado que não deixava espaçoparaqualquerautonomiafeudalouqualquermonopóliocomercial.

Num segundo movimento, se expandiram pelos mares, lançando‐se emguerras de conquista, de saqueio e de evangelização sobre os povos daÁfrica, da Ásia e, principalmente, das Américas. Estabeleceram, assim, osfundamentos do primeiro sistema econômico mundial, interrompendo odesenvolvimento autônomo das grandes civilizações americanas.Exterminaram, simultaneamente,milhares de povos que antes viviam emprosperidadeealegria,espalhadosportodaaterracomsuaslínguasecomsuasculturasoriginais.

Ao mesmo tempo, se plasmam a si mesmas como novas formaçõessocioeconômicas e como novas configurações histórico‐culturais, quecobremáreasesubjugampopulaçõesinfinitamentemaioresqueaeuropéia(Ribeiro 1970). É no curso dessa autotransformação que as populaçõesindígenasdasAméricas,doBrasilinclusive,sevêemconscritas,aseupesar,paraastarefasdacivilizaçãonascente.Viabilizando‐anabasedossaberesindígenas, quepermitirama adaptaçãodo europeu emoutras latitudes, eprovendo largamente a força de trabalho que as inseriu no mercadomundialemformação.

Naçõesgerminais,comoRomanopassado, foramos iberos,os ingleseseosrussosnomundomoderno.

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Cadaumdelesdeuorigemaumavarianteponderáveldahumanidade‐alatino‐americana, a neobritânica e a eslava ‐, criando gentes tãohomogêneas entre si, como diferenciadas de todas as demais.Estranhamente, a Alemanha, a França e a Itália, tão realizadas e plenascomoramosdacivilizaçãoocidental,nãoforamgerminais.Fechadasemsi,feudalizadas,ocupadasemdissensõescomsuasvariantesinternas,elasnãoseorganizaramcomoEstadosnacionaisnemexercerampapelseminal.

Oseslavos,simultaneamente,seexpandirampelassuasestepesetundraseforamternoAlasca.Mas,contidospeloesclerosamentodesuasociedadearcaica, rigidamente estratificada, refrearam seu elã de conquistar novosmundos.

Os ingleses se expandiram comooperosos granjeiros puritanos ou comoumaburguesiaindustrialenegocista,quecalculavabemcadaumdosseuslances. Empenhados em outro gênero de colonização, sua tarefa era a detransplantar sua paisagem mundo afora, recriando pequenas Inglaterras,desatentosouindiferentesaoquehaviaaondechegaram.Negando‐seavere a entender as vetustas razões e justificações do Vaticano, propõem‐sesimplesmenteconquistarseunacodoboloamericano.Quandomenosfossepara lá derramar excedentes da humanidade famélica de seus própriosreinos,dando‐lhesnovaspátriaspor fazer.Alcançaram, também,primeiropelasmãos de piratas, de corsários, de contrabandistas, quanto puderamtomardoouroqueos ilhéuscarreavamparaoVelhoMundo.Depois,pelomecanismo de intercâmbio mercantil, se apossaram de parcelas aindamaioresdessasriquezas.

Maistarde,se instalaramemáreasaonortedocontinentecomocolôniasde povoamento. Vizinhos das ilhas caribenhas e de suas ricas plantaçõesescravistas de cana, eles eram os pobres e atrasados. Só floresceram,lentamente,aurindosubstânciadocomérciodealimentoseartefatoscomossenhoresdeescravosdasilhas,produzindoasmercadoriasdospobres.

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Os iberos, ao contrário, se lançaram à aventura no além‐mar, abrindonovos mundos, atiçados pelo fervor mais fanático, pela violência maisdesenfreada, em busca de riquezas a saquear ou de fazer produzir pelaescravaria. Certos de que eram novos cruzados cumprindo uma missãosalvacionista de colocar omundo inteiro sob a regência católico‐romana.Desembarcavamsempredesabusados,acesoseatentosaosmundosnovos,querendo fluí‐los, recriá‐los, convertê‐los e mesclar‐se racialmente comeles. Multiplicaram‐se, em conseqüência, prodigiosamente, fecundandoventresnativosecriandonovosgêneroshumanos.

Como se viu, a causa primeira da expansão ultramarina, e portanto dosdescobrimentos, fora a precoce unificação nacional de Portugal e daEspanha,movidosportodaumarevoluçãotecnológicaquelhesdeuacessoaomundo inteirocomsuasnausarmadas,gestandoumanovacivilização.Libertos da ocupação sarracena, descansados da exploração judaica,dirimidosdospoderioslocaisdanobrezafeudal,emergiaemcadaáreaumEstadonacional.Foramosprimeirosdomundomoderno.

Surgem, assim, entidades capazes de grandes empresas, como osdescobrimentos e o enriquecimento aurido no além‐mar, bem como suaimplantaçãoemimpériocomhegemoniasobreaAmérica,aÁsiaeaÁfrica.SeupoderiocrescetantoqueacertaalturaaEspanhasepropõeexercersuasoberania também sobre a Europa. Portugal se vê compelido a aliar‐se àInglaterra,paramantersuaindependência.

Nessesconflitosdeamplitudemundial,aIbériasedebilitatanto,queacabapor sucumbir como cabeça do Império mundial sonhado tantas vezes.Sucumbe,porém,élánosconflitoscomseuspares.Cá,nosnovosmundos,seus sêmens continuam fecundando prodigiosamente a mestiçagemamericana; sua língua e sua cultura prosseguem expandindo‐se. Nessepasso, se enriquecem para constituir, afinal, uma das províncias maisamplas,maisricaseamaishomogêneadaterra,aAméricaLatina.

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A Inglaterra, que foi a terceira nação a estruturar‐se, assentada noscapitaisenossaberesjudaicosqueacolheu,acabaporapossar‐sedaoutrametade das Américas, sobre a qual se expandira como uma segundamacroetnia,imensamentehomogêneaeneobritânica.

Asdimensõesdessesdomínioseramasdoorbequeacabavamdeocupar.Sua heterogeneidade étnica original, ao contrário, era sem paralelo nahistóriahumana.Sófoirompidaerefundidaatravésdoesforçocontinuadode séculos, anulando qualquer veleidade étnica ou qualquer direito deautodeterminaçãodospovosavassalados.

AssiméqueaIbériaea.Grã‐Bretanha,tãorecheadasdedurasresistênciasdos povos que englobam em seus territórios, que jamais conseguiramdigerir,aquideglutemedissolvemquasetudo.Ondesedeparamcomaltascivilizações,seuspovossãosangrados,contaminados,decapitadosdesuaschefaturas,paraseremconvertidosemmeraenergiaanimalparaotrabalhoservil.Essagentedesfeitasóconsegueguardarnopeitoosentimentodesimesmos, como um povo em si, a língua de seus antepassados ereverberaçõesdaantigagrandeza.

No Brasil, de índios e negros, a obra colonial de Portugal foi tambémradical. Seu produto verdadeiro não foram os ouros afanosamentebuscados e achados, nem as mercadorias produzidas e exportadas. Nemmesmo o que tantas riquezas permitiram erguer no Velho Mundo. Seuproduto real foi um povo‐nação, aqui plasmado principalmente pelamestiçagem, que se multiplica prodigiosamente como uma morenahumanidade em flor, à espera do seu destino. Claro destino, singelo, desimplesmenteser,entreospovos,edeexistirparasimesmos.

Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo dessescincoséculos,doqueessaclassedirigenteexógenaeinfielaseupovo.Noaá de gastar gentes e matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com asflorestasmaisportentosasdaterra.

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Desmontammorrarias incomensuráveis,nabuscademinerais.Erodemearrasamterrassemconta.Gastamgente,aosmilhões.

Tudo, nos séculos, transformou‐se incessantemente. Só ela, a classedirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminávelhegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios novos, super‐homogêneosesolidáriosentresi,numaférreauniãosuperarmadaeatudopredispostaparamanteropovogemendoeproduzindo.Nãooquequereme precisam, mas o que lhes mandam produzir, na forma que impõem,indiferentesaseudestino.

Não alcançam, aqui, nem mesmo a façanha menor de gerar umaprosperidade generalizável à massa trabalhadora, tal como se conseguiu,sobosmesmosregimes,emoutrasáreas.Menosêxitoteve,ainda,emseusesforços por integrar‐se na civilização industrial. Hoje, seu desígnio éforçar‐nosàmarginalidadenacivilizaçãoqueestáemergindo.

OBARROCOEOGÓTICO

Dois estilos de colonização se inauguram no norte e no sul do NovoMundo.Lá,ogóticoaltivodefriasgentesnórdicas,transladadoemfamíliasinteirasparacomporapaisagemdequevinhamsendoexcluídospelanovaagricultura, como excedentes de mão‐de‐obra. Para eles, o índio era umdetalhe,sujandoapaisagemque,paraseeuropeizar,deviaserlivradadeles.Que fossem viver onde quisessem, livres de ser diferentes,mas longe, sepossívelparaoutroalém‐mar,Pacíficoadentro.

Cá, o barroco das gentes ibéricas,mestiçadas, que semesclavam comosíndios,nãolhesreconhecendodireitosquenãofosseodesemultiplicarememmaisbraços,postosaseuserviço.Aoapartheiddosnórdicos,opunhamoassimilacionismodoscaldeadores.

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Uméatolerânciasoberbaeorgulhosadosquesesabemdiferenteseassimquerempermanecer.Outroéatolerânciaopressiva,dequemquerconviverreinando sobre os corpos e as almas dos cativos, índios e pretos, que sópodem conceber como os que deverão ser, amanhã, seus equivalentes,porquetodaadiferençalheéintolerável.

Atuandocomaéticadoaventureiro,queimprovisaacadamomentodiantedodesafioquetemdeenfrentar,osiberosnãoproduziramoquequiseram,mas o que resultou de sua ação,muitas vezes desenfreada. É certo que acolonizaçãodoBrasilsefezcomoesforçopersistente,teimoso,deimplantaraqui uma europeidade adaptada nesses trópicos e encarnada nessasmestiçagens.Masesbarrou,sempre,comaresistênciabirrentadanaturezaecomoscaprichosdahistória,quenosfezanósmesmos,apesardaquelesdesígnios, tal qual somos, tão opostos a branquitudes e civilidades, tãointeriorizadamentedeseuropeuscomodesíndiosedesafros.

Aqueles senhores góticos, de que suas novas pátrias não esperavamriquezas, se deram terras para viverem probas existências camponesas.Como não havia que sujeitá‐los aomundo europeu, porque de lá saíram,nemeranecessáriosujeitá‐losaotrabalhoescravo,porqueeramincapazesdeproduzirqualquermercadoriaprestante,lhesderamterraeliberdade.

Nada disso ocorre no mundo barroco. Aqui, a Europa se defronta commultidõesdepovosexóticos,selvagensuns,civilizadosoutros,quepodiamsermobilizadoscomoamão‐de‐obraindispensávelparagerarriquezasquealiestavam,àvista,ouquefacilmentesepodiamproduzir.

Aqui,nenhumaterrasedesperdiçacomopovoqueseiagerando.Detodaela se apropria a classe dominante,menos para uso, porque é demasiadademais,mas a fim de obrigar os gentios subjugados a trabalhar em terraalheia. Nenhuma liberdade se consente, também, porque se trata comheregesacatequizar,livrando‐osdaperdiçãoeterna.

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Nada mais natural do que pensar assim para um ibero que acabava deexpulsar os hereges sarracenos e judeus, que os haviam dominado porséculos.Aindacomofervordascruzadasgloriosascontraosmouros,elesseassanharam,aqui,contraogentioamericano.OpróprioEstadoassumefunçõessacerdotais,expressamenteconferidaspelopapa,paracumprirseudestinodeCidadedeDeuscontraaReformaeuropéiaecontraaimpiedadeamericana. Para tanto, chega a transferir às coroas ibéricas o maisimportante de seus privilégios, que era o padroado papal, dando‐lhes odireito de nomear, transferir e revogar bispados e outras autoridadeseclesiásticas. Em contraparte, pelo que Deus lhes dava em riqueza e emvassalos nas antípodas, Roma lhes sacramenta a possessão dos novosmundoscomacondiçãodequeprossigamsobreelesaguerradosmouros,naguerraenaconversãodosnovosinfiéisrecém‐descobertos.Quemsabeaté para transformá‐los, através de seus evangelizadores, na cristandadeterminal.

Emconseqüência,cá,emnossouniversocatólicoebarroco,maisdoquelá,noseumundoreformistaegótico,asclassesdirigentestendemadefinir‐secomo agentes da civilização ocidental e cristã, que se considerandomaisperfeitos,prudentesepios,seavantajavamtantosobreaselvageriaqueseudestinoeraimpor‐seaelacomoodomínionaturaldosbonssobreosmaus,dossábiossobreosignaros.Essadominaçãosealcançapelaaçãodaguerra,pela inteligência nos negócios, pela conscrição para o trabalho e pelorefúgio na missão. A seu ver, estavam, simplesmente, forçando aquelaindianidade inativa a viver um destinomais conforme com a vontade deDeuseanaturezadoshomens.Ocolonoseenriqueciaeostrabalhadoressesalvavamparaavidaeterna.

Era a dialética do senhorio natural do cristão contra a servidão, naturaltambém, do bárbaro. Com o passar das eras, este acabaria por sair dainfânciapagã,daindolênciainata,dalubricidadeedopecado.

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Ideologia nenhuma, antes nem depois, foi tão convincente para quemexercia a hegemonia, nem tão inelutável para quem a sofria, escravo ouvassalo. Desapossados de suas terras, escravizados em seus corpos,convertidosembenssemoventesparaosusosqueosenhorlhesdesse,eleseram também despojados de sua alma. Isso se alcançava através daconversão que invadia e avassalava sua própria consciência, fazendo‐osverem‐seasimesmoscomoapobrehumanidadegentílicaepecadoraque,nãopodendosalvar‐senestevaledelágrimas,sópodiaesperar,atravésdavirtude, a compensação vicária de uma eternidade de louvor à glória deDeusnoParaíso.

Taléaforçadessaideologiaqueaindahojeelaimpera,sobranceira.Fazacabeça do senhorio classista convencido de que orienta e civiliza seusserviçais,forçando‐osasuperarsuapreguiçainataparaviveremvidasmaisfecundas e mais lucrativas. Faz, também, a cabeça dos oprimidos, queaprendemaveraordemsocialcomosagradaeseupapelnelaprescritodecriaturasdeDeusemprovação,acaminhodavidaeterna.

Essas linhasde formação correspondem,no ladonórdico, à formaçãodeumpovo livre,donodoseudestino,queengloba todaacidadaniabranca.No nosso sul, o que se engendra é uma elite de senhores da terra e demandantes civis e militares, montados sobre a massa de umasubumanidade oprimida, a que não se reconhece nenhum direito. Aevoluçãodeumaeoutradessasformaçõesdálugar,nasmesmaslinhas,deum lado,aoamadurecimentodeumasociedadedemocrática, fundadanosdireitos de seus cidadãos, que acaba por englobar tambémos negros. Dolado oposto, uma feitoria latifundiária, hostil a seu povo condenado aoarbítrio,àignorânciaeàpobreza.

No plano histórico‐cultural, os nórdicos realizam algumas daspotencialidades da civilização ocidental, como extensão sensaborona elegítimadela.Nós,aocontrário,somosapromessadeumanovacivilizaçãoremarcadaporsingularidades,principalmenteafricanidades.

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Já por isso, aparecemos a olhos europeus como gentes bizarras, o que,somadoànossatropicalidadeíndia,chegaparaaquelesmesmosolhosanosfazerexóticos.

Nãosomoseninguémnostomacomoextensõesdebranquitudes,dessasque se acham a forma mais normal de se ser humano. Nós não. Temosoutras pautas e outros modos tomados de mais gentes. O que, é bomlembrar, não nos fazmais pobres, masmais ricos de humanidades, querdizer, mais humanos. Essa nossa singularidade bizarra esteve mil vezesameaçada,masafortunadamenteconseguiuconsolidar‐se.InclusivequandoaEuropaderramoumultidõesdeimigrantesqueacolhemoseatéograndenúmero de orientais adventícios que aqui se instalaram. Todos eles, ouquasetodos,foramassimiladoseabrasileirados.

ATUALIZAÇÃOHISTÓRICA

Emcontrastecomasetnias tribaisquesobreviveramalgumtempoaseulado, a sociedade colonial nascente, bizarra eprecária, era e atuava comoumrebentoultramarinodacivilizaçãoeuropéia,emsuaversãoportuguesa.Valedizer,era jáumasociedadebipartidaemumacondiçãoruraleoutraurbana,estratificadaemclasses,servidaporumaculturaeruditaeletrada,e integrada na economia de âmbito internacional que a navegaçãopossibilitara.

Essa posição evolutiva mais alta não representava, obviamente, umaascensão das sociedades indígenas originais da sua condição tribal à deuma civilização urbana e estratificada. Era uma simples projeção dosavançoscivilizatóriosalcançadospeloseuropeus,aosaíremdaIdadeMédia,sobre os remanescentes da formação aborígene precedente e dos negrosaliciadosnaÁfricacomoforçadetrabalhoescravo.

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Estamos diante do resultado de um processo civilizatório que,interrompendo a linha evolutiva prévia das populações indígenasbrasileiras,depoisde subjugá‐las, recruta seus remanescentes comomão‐de‐obraservildeumanovasociedade,quejánasciaintegradanumaetapamais elevada da evolução sociocultural. No caso, esse passo se dá porincorporação ou atualização histórica ‐ que supõe a perda da autonomiaétnica dos núcleos engajados, sua dominação e transfiguração ‐,estabelecendo as bases sobre as quais se edificaria daí em diante asociedade brasileira. Tais bases se definiriam com claridade com aimplantação dos primeiros engenhos açucareiros que, vinculando osantigosnúcleosextrativistasaomercadomundial,viabilizavasuaexistênciana condição socioeconômica de um "proletariado externo", estruturadocomoumacolôniamercantil‐escravistadametrópoleportuguesa.

Noplanoadaptativo‐istoé,orelativoàtecnologiacomqueseproduzemereproduzem as condições materiais de existência ‐ os núcleos coloniaisbrasileirosseestabeleceramnasseguintesbases:

‐ a incorporação da tecnologia européia aplicada à produção, ao transporte, à construção e à guerra, com uso deinstrumentosdemetaledemúltiplosdispositivosmecânicos;‐anavegaçãotransoceânicaqueintegravaosnovosmundosemumaeconomiamundial,comoprodutoresdemercadoriasdeexportaçãoecomoimportadoresdenegrosescravosebensdeconsumo;‐ o estabelecimento do engenho de cana, baseado na aplicação de complexos procedimentos agrícolas, químicos emecânicos para a produção de açúcar; e, depois, a mineração de ouro e diamantes que envolviam o domínio de novastecnologias;‐ a introduçãodogado,que forneceriacarneecouro ‐alémdeanimaisde transportee tração ‐,bemcomoacriaçãodeporcos,galinhaseoutrosanimaisdomésticosque,associadaàlavouratropicalindígena,proveriaasubsistênciadosnúcleoscoloniais;‐aadoçãoedifusãodenovasespéciesdeplantascultiváveis,tantoalimentíciasquantoindustriais,queviriamaassumir,maistarde,importânciadecisivanavidaeconômicadediversasvariantesdasociedadenacional;

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‐asingelatecnologiaportuguesadeproduçãodetijolosetelhas,sapatosechapéus,sabão,cachaça,rodasdecarros,pontesebarcosetc.Noplanoassociativo‐querdizer,noqueconcerneaosmodosdeorganizaçãodavidasocialeeconômica‐,aquelesnúcleosseestruturaramcomoimplantaçãodeumacivilizaçãograçasà:‐ substituição da solidariedade elementar fundada no parentesco, característica domundo tribal igualitário, por outrasformas de estruturação social, que bipartiu a sociedade em componentes rurais e urbanos e a estratificou em classesantagonicamenteopostasumasàsoutras,aindaqueinterdependentespelacomplementaridadedeseusrespectivospapéis;‐ introduçãoda escravatura indígena, logo substituídapelo tráficode escravos africanos, quepermitiu aos setoresmaisdinâmicosdaeconomiaprescindirdapopulaçãooriginalnorecrutamentodemão‐de‐obra;‐ integração de todos os núcleos locais em uma estrutura sócio‐política única, que teria como classe dominante umpatronatodeempresaseumaelitepatricialdirigente,cujasfunçõesprincipaiseramtornarviávelelucrativa,dopontodevista econômico, a empresa colonial e defendê‐la da insurgência dos escravos, dos ataques indígenas e das invasõesexternas;‐disponibilidadedecapitaisfinanceirosparacustearaimplantaçãodasempresas,provê‐lasdeescravoseoutrosrecursosprodutivosecapacitadosparaarrecadarasrendasqueproduzissem.

No plano ideológico ‐ ou seja, o relativo às formas de comunicação, aosaber,àscrenças,àcriaçãoartísticaeàauto‐imagemétnica‐,aculturadascomunidadesneobrasileirasseplasmasobreosseguinteselementos:

‐alínguaportuguesa,quesedifundelentamente,séculoapósséculo,atéconverter‐senoveículoúnicodecomunicaçãodascomunidadesbrasileirasentresiedelascomametrópole;

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‐umminúsculoestratosocialdeletradosque,atravésdodomíniodosabereruditoetécnicoeuropeudeentão,orientaasatividadesmaiscomplexaseoperacomocentrodifusordeconhecimentos,crençasevalores;‐ uma Igreja oficial, associada a umEstado salvacionista, que depois de intermediar a submissão dos núcleos indígenasatravésdacatequeseimpõeumcatolicismodecortemessiânicoeexerceumrigorosocontrolesobreavidaintelectualdacolônia,paraimpediradifusãodequalqueroutraideologiaeatémesmodosabercientífico;‐artistasqueexercemsuasatividadesobedientesaosgêneroseestiloseuropeus,principalmenteobarroco,dentrodecujoscânonesanovasociedadecomeçaaexpressar‐seondeequandoexibealgumfausto.

Aquelas inovações tecnológicas, somadas às referidas formas maisavançadas de ordenação social e a esses instrumentos ideológicos decontroleeexpressãoproporcionaramasbasessobreasquaisseedificouasociedade e a culturabrasileira comouma implantação colonial européia.Umaeoutra,menosdeterminadasporsuassingularidadesdecorrentesdeincorporação demúltiplos traços de origem indígena ou africana, do quepela regência colonial portuguesa que as conformou como uma filiallusitanadacivilizaçãoeuropéia.

Issoexplicaaausênciadeumaclassedominantenativa.Osquecumpremessepapel,sejanaqualidadedeagentesdaexploraçãoeconômica,sejanaqualidadedegestoresdahegemoniapolítica,sãonarealidadeprepostosdadominaçãocolonial.Asprópriasclassesdominadasnãocompõemumpovodedicado a produzir suas próprias condições de existência e nem sequercapacitado para reproduzir‐se vegetativamente. São um conglomeradodíspar, composto por índios trazidos de longe, que apenas podiamentender‐se entre si; somados à gente desgarrada de suas matrizesoriginais africanas, uns e outros reunidos contra a sua vontade, para severemconvertidosemmeraforçadetrabalhoescravoaserconsumidanotrabalho; gente cuja renovação mesma se fazia mais pela importação denovoscontingentesdeescravosqueporsuaprópriareprodução.

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Com base nessa comunidade atípica e em seu acervo sociocultural, asnovasentidadespuderamenfrentarprontamentedoisdesafioscruciais.Umfoi aniquilar os grupos indígenas que, não havendo sido apresados eobrigadosatrabalharcomoescravos,seafastaramdolitoralehostilizavam,desde o interior, os núcleos neobrasileiros assentados na costa. Outro foimanteraregênciacolonialportuguesasobreosnúcleosneobrasileiros,quecresceram mantendo sua estratificação social interna e sua dependênciacomrelaçãoàmetrópole.

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IIGESTAÇÃOÉTNICA

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ICRIATÓRIODEGENTE

OCUNHADISMO

A instituição social que possibilitou a formação do povo brasileiro foi ocunhadismo,velhousoindígenadeincorporarestranhosàsuacomunidade.Consistia em lhes dar uma moça índia como esposa. Assim que ele aassumisse,estabelecia,automaticamente,millaçosqueoaparentavamcomtodososmembrosdogrupo.

Isso se alcançava graças ao sistema de parentesco classificatório dosíndios, que relaciona, uns comos outros, todos osmembros de umpovo.Assiméque,aceitandoamoça,oestranhopassavaaternelasuatemericóe,em todos os seus parentes da geração dos pais, outros tantos pais ousogros.Omesmoocorraemsuaprópriageração,emquetodospassavamaserseusirmãosoucunhados.Nageraçãoinferioreramtodosseusfilhosougenros. Nesse caso, esses termos de consangüinidade ou de afinidadepassavam a classificar todo o grupo como pessoas transáveis ouincestuosas.Comosprimeirosdevia ter relaçõesevitativas, comoconvémnotratocomsogros,porexemplo.Relaçõessexualmenteabertas,gozosas,no caso dos chamados cunhados; quanto à geração de genros e norasocorriaomesmo.

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Háamploregistrodessapráticaentreoscronistasetambémavaliaçõesdesua importância devidas a Efraim Cardoso (1959), do Paraguai, e JaimeCortesão(1964),paraoBrasil.Adocumentaçãoespanhola,maisricanisso,revela que emAssunçãohavia europeus commais de oitenta temericó. Aimportância era enorme e decorna de que aquele adventício passava acontar com umamultidão de parentes, que podia pôr a seu serviço, sejaparaseuconfortopessoal,sejaparaaproduçãodemercadorias.

Como cada europeu posto na costa podia fazer muitíssimos dessescasamentos, a instituição funcionava como uma forma vasta e eficaz derecrutamentodemão‐de‐obraparaostrabalhospesadosdecortarpaus‐de‐tinta,transportarecarregarparaosnavios,decaçareamestrarpapagaiosesoíns. Mais tarde, serviu também para fazer prisioneiros de guerra quepodiam ser resgatados a troco de mercadoria, em lugar do destinotradicional,queerasercomidoritualmentenumfestivaldeantropofagia.

Osíndiosnãoqueriamoutracoisaporque,encantadoscomasriquezasqueo europeu podia trazer nos navios, o usavam para se prover de benspreciosíssimosquese tornaram logo indispensáveis, comoas ferramentasde metal, espelhos e adornos. Quando ficaram bem providos dessasmercadorias,outraslhesforamofertadas.E,porfim,setevequepassardocunhadismo às guerras de captura de escravos, quando a necessidade demão‐de‐obraindígenasetornougrandedemais.

AfunçãodocunhadismonasuanovainserçãocivilizatóriafoifazersurgiranumerosacamadadegentemestiçaqueefetivamenteocupouoBrasil.Écrívelatéqueacolonizaçãopudesseser feitaatravésdodesenvolvimentodessaprática.Tinhaodefeito,porém,deseracessívelaqualquereuropeudesembarcadojuntoàsaldeiasindígenas.Issoefetivamenteocorreu,pondoemmovimentoumnúmerocrescentedenavioseincorporandoaindiadaaosistemamercantildeprodução.

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ParaPortugaléquerepresentouumaameaça,jáqueestavaperdendosuaconquistaparaarmadores franceses,holandeses, inglesesealemães,cujosnaviosjásabiamondebuscarsuacarga.

Sem a prática do cunhadismo, era impraticável a criação do Brasil. Ospovoadores europeus que aqui vieram ter eram uns poucos náufragos edegredados, deixados pelas naus da descoberta, ou marinheiros fugidospara aventurar vida nova entre os índios. Por si sós, teriam sido umaerupçãopassageiranacostaatlântica,todapovoadaporgiuposindígenas.

Combasenocunhadismoseestabelecemcriatóriosdegentemestiçanosfocosondenáufragosedegredadosseassentaram.Primeiro, juntocomosíndios nas aldeias, quando adotam seus costumes, vivendo como eles,furando os beiços e as orelhas e até participando dos cerimoniaisantropofágicos,comendogente.Entãoaprendemalínguaesefamiliarizamcom a cultura indígena. Muitos gostaram tanto, que deixaram‐se ficar naboavidadeíndios,amistososeúteis.Outrosformaramunidadesapartadasdas aldeias, compostas por eles, suas múltiplas mulheres índias, seusnumerosos filhos, sempreemcontato coma incontávelparenteladelas.Asobrevivência era garantida pelos índios, de formaquase idêntica à delesmesmos.Viabilizara‐se,porém,umaatividadealtamentenociva,aeconomiamercantil,capazdeoperarcomoagênciacivilizatóriapelaintermediaçãodoescambo,trocandoartigoseuropeuspelasmercadoriasdaterra.

O primeiro e principal desses núcleos é o paulista, assentado muitoprecocementenacosta,talvezatéantesdachegadadeCabral.Centrava‐seaoredordeJoãoRamalhoedeseucompanheiroAntônioRodrigues.Pareceespecializar‐setantonoresgatedeíndioscativosparavenderàsnausqueoancoradouro dos navios com que eles traficavam passou a ser conhecidocomoPortodosEscravos.

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OpovodoRamalho,fundadordapaulistanidade,teveváriosvisitantesqueo retrataram. O aventureiro alemão Ulrich Schmidel, que visitou SantoAndré,povoaçãodeJoãoRamalhoem1553,dissequesesentiamaisseguronumaaldeiadeíndiosdoqueali,naquelecovildebandidos.InformaaindaqueRamalhoeracapazdelevantar5milíndiosdeguerra,enquantotodoogovernoportuguêsnãoconseguiria2mil.

Sobre o próprio João Ramalho, o governador Tomé de Souza, cheio deadmiração, diz em carta ao Rei, de 1553: "[...] tem tantos filhos e netos,bisnetosedescendentesdele,queonãoousodedizeraVossaAlteza.Nãotemcãsnacabeçanemnorostoeandanove léguasapéantesde jantar"("CartadeTomédeSouzaael‐reycommuitasnotíciasdasterrasdoBrasil",1dejunhode1553inCortesão1956:271).

Nóbrega, nomesmo ano, horrorizado com Ramalho, cuja vida consideraumapedradeescândalo,acrescenta:

"[...]éprincipalestorvoparacomagentilidadequetemos,porelesermuitoconhecido emuito aparentado com os índios. Temmuitasmulheres. Ele eseus filhosandamcom irmãse têm filhosdelas, tantoopai comoos filhos.Vão à guerra com os índios e as suas festas são de índios e assim vivemandando nus como os mesmos índios. Por todas as maneiras o temosprovado e nada aproveita, até o deixamos de todo (carta ao pe. LuísGonçalvesdaCâmara,15dejunhode1553inNóbrega1955:173‐4)."

Osjesuítasusaramdetodasasartimanhas,primeiroparaatrairRamalhoesua gentepara juntodeles, depois para fazê‐lo sair, tão vexatória era suaposição de mando indiscutível sobre os índios e da expectativa de quetivesse uma atitude de submissão diante dos padres. Estes não podiamprescindir dele em face da ameaça que representavam os Tamoio,confederados contra o núcleo tupinambá de São Paulo, e ultimamenteinstigados pelos franceses estabelecidos na baía de Guanabara. Só com oapoiodeRamalhoeseusaliados,os jesuítaspuderamenfrentaro inimigoque lhes causavamais horror, que era a presençadaReforma, encarnadapeloscalvinistas,ali,ondeeles,comoaContra‐Reforma,tentavamcriarumreinodehomenspios.

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Outro núcleo pioneiro, de importância essencial, foi o de Diogo Álvares,Caramuru, pai heráldico dos baianos. Ele se fixou, em 1510, na Bahia,também cercado de numerosa família indígena. Conseguiu manter certoequilíbrioentrea indiadacomqueconviviacunhadalmenteeos lusitanosque foramchegando. Converteu‐se, assim,nabase essencial da instalaçãolusitananaBahia.Ajudouatémesmoosjesuítaselegoubensaelesemseutestamento.

UmterceironúcleodeimportânciarelevantefoiodePernambuco,emquevários portugueses, associados com os índios Tabajara, produziramquantidade demamelucos. Inclusive o célebre Jerônimo de Albuquerque,grandecapitãodeguerranalutadaconquistadoMaranhãoocupadopelosfranceses.

NopróprioMaranhão,hánotíciadeumguerreiroquesobreviveudeumaexpediçãofracassadagraçasàssuashabilidadesartesanais,denomePeró,que teria gerado também quantidade de mamelucos, que representarampapelmuitoativonacolonizaçãodaquelaárea.

Osfranceses,porigual,fundaramseuscriatórioscombasenocunhadismo.Tantos, que, no dizer de Capistrano de Abreu, por muito tempo não sesoubeseoBrasilseriaportuguêsoufrancês,talaforçadesuapresençaeopoder de sua influência junto aos índios. O principal deles foi o que seimplantounaGuanabara,juntoaosTamoiodoRiodeJaneiro,gerandomaisde mil mamelucos que viviam ao longo dos rios que deságuam na baía.Inclusive na ilha do Governador, onde deveria se implantar a FrançaAntártica.

Outros mamelucos gerados pelos franceses foram com os Potiguara, naParal'ba,ecomosCaeté,emPernambuco.Alcançaramcertaprosperidadepelasmercadoriasqueeles induziramos índiosaproduzire carrearparanumerososnavios.

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Sua mercadoria era, principalmente, o pau‐de‐tinta, mas tambémbarganhavamapimentadaterra,oalgodão,alémdecuriosidadescomoossoínsepapagaios.

Os espanhóis também participaram da fase cunhadística da implantaçãoeuropéia na costa brasileira. As crônicas falam de um Pero Galego,castelhano,intérpretedosPotiguara,queviviacomosbeiçosfuradoscomoeles. Sua influência teria sido grande, como se vê pelo papel querepresentounaexpulsãodosportuguesesdaParaíbae,depois,naslutasdoMaranhão,sempreaoladodosfranceses.

OGOVERNOGERAL

Parapreservarseusinteresses,ameaçadospelocunhadismogeneralizado,a Coroa portuguesa pôs em execução, em 1532, o regime das donatarias.Quasetodososcontempladosvieramtomarpossecomafunçãodepovoá‐lasefazê‐lasproduzir,elevandoaeconomiacolonialaumnovopatamar.

OprojetorealeraenfrentarseuscompetidorespovoandooBrasilatravésda transladação forçada de degredados. Na carta de doação e foralconcedida a Duarte Coelho (1534), se lê que el‐rei atendendo a muitosvassaloseàconveniênciadepovoaroBrasil,háporbemdeclararcoutoehomizio para todos os criminosos que nele queiram morar, ainda quecondenadosporsentença,atéempenademorte,excetuando‐sesomenteoscrimes de heresia, traição, sodomia e moeda falsa (in Malheiro Dias1924:III,309‐12).

Asdonatarias,distribuídasagrandessenhores,agregadosaotronoecomfortunas próprias para colonizá‐las, constituíram verdadeiras províncias.EramimensosquinhõescomdezenasdeléguasencrestadassobreomarepenetrandoterraadentroatéondetopassemcomalinhadasTordesilhas.

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Algumasdelasalcançaramêxito,comoasdePernambucoedeSãoVicente.Outras fracassaram desastrosamente, por vezes da forma mais trágica,comoadePereiraCoutinho,emIlhéus,queacaboudevoradopelosíndios.Lopes de Souza desinteressou‐se totalmente e nem tomou posse daconcessãoquerecebeu.Quasetodasdeixaramnovospovoadoreseuropeus,organizados embases completamentenovas, nas quais o índio já não eraumparente,masmão‐de‐obrarecrutávelcomoescrava.

O sistema de donatarias foi implantadomais vigorosamente porMartimAfonso, trazendo as primeiras cabeças de gado e as primeiras mudas decana.Não há registro de que tenha trazido negros africanos e os deixadoaqui.Mas,comoosportuguesesviviamcercadosdeescravosjáemLisboa,éaté improvável que ele e seus capitães não tenham vindo acompanhadosdosseusserviçais.

PeroLopesregistranestaspalavrasaobradeMartimAfonso:

"A todos nós pareceu tambemesta terra, que o capitamMartimAfonsodeterminou de a povoar, e deu a todolos homês terras para fazeremfazendas:efezhuavillanailhadeSamVicenteeoutra9leguasdentropelosartam, á borda d'hum rio que se chama Piratininga: e repartiu a gentenestas2villasefeznellasoffciaes:epoztudoemboaobradejustiça,dequeagentetodatomoumuitaconsolaçam,comverempovoarvillaseterleisesacreficiosecelebrarmatrimonioseviverememcomunicaçamdasartes;esercadaumsenhordoseu:evestirasenjuriasparticulares;e ter todolosoutrosbensdavidasiguraeconversavel(apudMarchant1943:68)."

Odonatárioeraumgrão‐senhorinvestidodepoderesfeudaispeloreiparagoveroarsuaglebadetrintaléguasdecara.Comopoderpolíticodefundarvilas, conceder sesmarias, licenciar artesãos e comerciantes, e o podereconômico de explorar diretamente ou através de intermediários suasterraseatécomodireitodeimporapenacapital.

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Martim Afonso, o principal deles, veio com quatrocentos povoadores.Trouxe,ainda,novefidalgoscavaleiros,setecavaleirosafidalgados,alémdedoismoços da Câmara Real. Foi amaior injeção de nobreza que o Brasilrecebeu. De seus bagos veio a pretenciosa nobreza nativa, quase todafracassada.

O trabalho ao longo da costa se fazia cada vez mais intenso.Numerosíssimaseramasnausqueaportavam,mandadasporarmadoresdediversospaíseseuropeus,principalmentedaHolandaeAlemanha.Acargaque levavamnãoerapequena.Podiaalcançar3mil torasdepau‐brasil, 3mil peles de onça, muita cera e até seiscentos papagaios falantes. Oequivalente em ferramentas e quinquilharias devia ser algo respeitável.Juntar tudo isso ocuparia quantidade de índios, largo tempo cortandoárvoresaléguasdedistânciaetransportando‐asparaacosta.Esforçosquecontrastavamcomoseumodohabitualdevivereproduzir.

Cargas tão grandes como essas eram depositadas nas feitorias pelosportugueses. Os franceses, não podendo mantê‐las, usavam as própriasnaus para isso, ancorando‐as durante o tempo necessário para que osíndioscoletassemoucolhessemtudoquequeriamtraficar.Essetrabalhosefazia,naturalmente,sobadireçãoimediatadosintérpretesoutruchements,tambémchamadosdecarameluspelosfranceses,nomemaistardedadoaosprópriosmamelucosporelesgerados.

Múltiplas eram as dificuldades que iam surgindo com essa prosperidadecrescente.O fracasso se deu emgrandeparte pela hostilidadedos índios,principalmente pelos que se estabeleceram em áreas de aliados aosfranceses, como Itamaracá, e em Ilhéus, ondeoprópriodonatário acaboudevorado.

A sorte corria variadamente em cada província quando a Coroa,descontente com o que se alcançara, põe sob controle as donatarias quesobreviveram.ImplantaparaissoumGovernoGeral,comTomédeSouza

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Agora,naformadevilas,compelourinho,contingentesmilitaresarmadosefortificados,trazendoaoBrasilnumerosospovoadores.

O primeiro governador chega ao Brasil em 1549, em três naus, duascaravelaseumbergantim.Traziamfuncionárioscivisemilitares,soldadoseartesãos.Maisdemilpessoasaotodo,principalmentedegredados.Comelevieramnovoscolonos,bemcomoosprimeirosjesuítas.Nóbrega,maisvelhoe experiente, à frente, e mais três padres e dois irmãos; Anchieta, umrapagãodedezenoveanos,veionalevaseguinte.

Ogovernoinstala‐senaBahia,construindoacidadecomagentequetraziae com o apoio dos índios e mamelucos de Caramuru. É assinalável aquantidade e qualidadedeprofissionais que iamde cirurgiões, barbeiros,sangradores,aquantidadedepedreiros,serradores,tanoeiros,serralheiros,caldeireiros, cavaqueiros, carvoeiros, oureiros, calheiros, canoeiros,pescadoreseconstrutoresdebergantins.

Não vieram mulheres solteiras, exceto, ao que se sabe, uma escravaprovavelmentemoura, que foi objeto de viva disputa. Conseqüentemente,osrecém‐chegadosacasalaram‐secomasíndias,tomando,comoerausonaterra, tantasquantaspudessem, entrandoaproduzirmaismamelucos.Osjesuítas, preocupados com tamanha pouca‐vergonha, deram para pedirsocorro do reino. Queriammulheres de toda a qualidade, atémeretrizes,porque"háaquiváriasqualidadesdehomens[...]edestemodoseevitarãopecados e aumentará a população no serviço de Deus" (carta de 1550 inNóbrega 1955:79‐80). Queriam, sobretudo, as órfãs del‐rei, que secasariam, aqui, com os bons e os ricos. Poucas conseguiram. Em 1551,chegaram três irmãs; em 1553, vieram mais nove; em 1559, mais sete.Essaspouquíssimasportuguesaspoucopapelexerceramnaconstituiçãodafamíliabrasileira.

ÊxitodiscretosealcançounaimportaçãodetrombadinhasdeLisboaparaconviveremcomosindiozinhosnoscolégiosjesuíticos.

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Em 1550, chegaram à Bahia um bando descrito como feito de "moçosperdidos, ladrões e maus, que aqui chamam patifes". Para São Vicente,foramdez ou doze nomesmo ano. Comeles é que os jesuítas esperavamcivilizar os curumins, e fazê‐los, em aulas conjuntas, aprender gramáticalatina. Tarefa difícil, como se pôde ver em pouco tempo, quando essespixotes, assediados pelas índias, não resistiram à tentação, fugindo comelas.Ospadresmudaram logode tática,abandonandooensinode latimafimdededicarsuasenergiasàformaçãodeirmãosleigosedepadres,quedominassem bem a língua da terra, o tupi‐guarani, para serem osaliciadoresdosíndiosparasuasmissõesdedoutrinaçãoreligiosa.

Nóbrega assinala que para Pernambuco não era necessário mandarmulheresnemmeninos,porhaveremmuitasfilhasdehomensbrancosedeíndias da terra, "as quais todas agora casarão, com a ajuda do Senhor"(cartade1551inNóbrega1955:102).Eramasmamelucas,ingressandonahistória do Brasil, como suas mães primárias. Já não sendo índias,procuravamespaçoparaseralgumacategoriadegentedigna.Aúnicaquese lhes abria era de fiéis contritas dos santos católicos, seguidorasentusiastasdoscultos.Essafoiaúnicaconversãoqueospadresalcançaram.Elas foram, de fato, as implantadoras do catolicismo popular santeiro noBrasil,comosedocumenta,pelotextodeNóbregaquesesegue:

"As índias forras, que há muito que andam com os cristãos em pecado,trabalhamospor remediarpornão se iremao sertão já que são cristãs, elhesordenamosumacasaàcustadosqueastinhamparanelaasrecolheredali casarão com alguns homens trabalhadores pouco a pouco. Todasandam com grande fervor e querem emendar‐se de seus pecados e seconfessam já as mais entendidas e sabem‐se mui bem acusar. Com seganharem estas se ganha muito, porque são mais de quarenta só nestapovoação, afora muitas outras que estão pelas outras povoações, eacarretam outras do sertão assim já cristãs como ainda gentias. Algumasdestasmais antigas pregamàs outras. Temos feito umadelasmeirinha, aqual é tãodiligente emchamaràdoutrina, queépara louvar aN. Senhor(carta"AospadreseirmãosdeCoimbra,Pernambuco",13desetembrode1551inNóbrega1955:92‐3)."

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Oossomaisduroderoerparaonovogovernador,eprincipalmenteparaos jesuítas, foioenfrentamentocomaFrançaAntártica, implantadaquasesimultaneamentenabaíadaGuanabara,combasenosnumerososnúcleosde franco‐mamelucosque láviviam.VieramcomVillegaignonumadezenadecalvinistaseumamassamaiordegentequeeledescrevecomorústica,semhonranemcivilidade,compostademarinheiroselínguasnormandosebretões. Somariam seiscentos os que vieram com o próprio Villegaignon,militares e artesãos principalmente. Com Léry vieram trezentos mais,inclusivecincojovensnoivas,quedepoisdemuitadisputasecasaramali.

No fracasso da França Antártica representou papel relevante o ardorreligioso de Villegaignon,metademonge,metade soldado. Estalaram logoos conflitos entre huguenotes, calvinistas e católicos, e dilaceraram acomunidadenascente.Asituaçãoseagravoucomarevoltados índiosquese negavam a aceitar o novo papel que lhe atribuíam na colonização doBrasil.

A convivência cordial e igualitária do cunhadismo ia dando lugar àdisciplina de uma comunidade pia, num clima insuportável de tensão. Ospastores,querendoacalmarosfervoresmaiseróticosquereligiososdeseusfiéis,enforcaramunsquantosdeles,castigandotambémasíndiascomquetransavam.

Nessa situação crítica é que os franceses tiveram que fazer frente aoataquedasforçasíndiasdosjesuítas,quenissopuseramtodooardor.Eles,quehaviamsidocriadoscomosoldadosdaanti‐Reforma,deparavamaquinaterranovacomaReforma,pretendendocriarsuaprópriautopiacomaindiadanativa.

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Umaverdadeirarevoluçãoeconômicasedáécomosaltodamúltiplaroçaindígena,quesecultivava,misturandodezenasdeplantas,paraa fazendade monótonos canaviais açucareiros. Era o passo da fartura‐fome paraquemlavrava,porqueiamdeixandodecultivaroquesecomiaeusava,paraproduzirmercadoria.

Porlongotempofoifácilaliciaríndiosparaessesimensosesforços,taleraa atração das ferramentas e bugigangas. Com os anos, surgiramdificuldades, porque os índios queriam melhor retribuição por seusserviços, seja porque os paus‐de‐tinta ficavam cada vez mais escassos elongínquos;sejaporqueasroçasqueabriamparaosbrancosemtrocadoescambo tinhamque ser cada vezmaiores, dado o aumento crescente donúmerodeles; seja porque os índios estavam saciados dos artigos que osbrancoslhesdavam.Nessaaltura,aescravidãocomeçouaimpor‐se,comoformadeconscriçãodamão‐de‐obra.

Os registrosmostram que, efetivamente, começa a crescer o número deescravos índios trabalhando para os donatários. Em São Vicente, haviaperto de 3 mil escravos índios trabalhando em seis engenhos de açúcar.Aumentam, também,os enfrentamentosde índiosvizinhosparao resgatecomoescravosecresce,apartirdaí,cadavezmais,onúmerodebandeirasdeenfrentamentosparabuscá‐loscadavezmaislonge.

QuandodachegadadeMemdeSácomogovernador,asituaçãoeracríticanaBahia,assoladapelaepidemiaepelafome(1563‐4).Osíndios,rebeladoscontraoscolonos,senegavamaplantar,acossadosemterrasmaisparaointerior.EraaindamaisgraveasituaçãodaGuanabara,ondeseconsolidavaaocupaçãofrancesa,fortementeapoiadapelosíndios.

Mem de Sá, aconselhado pelos jesuítas, apela simultaneamente para asguerrasmaiscruéiscontraosíndiosvizinhoseparaapazdovencedor,quefoisuaentregaaosmissionários.Cercade34milíndiossãoagrupadosemonzeparóquias, sob a direçãodos jesuítas, dandonascimento àsmissões,oureduções,epovoaçõesorganizadascomovilas,compelourinho.

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Ali,todaavidaindígenaéreguladaparagruposporsexoouporidade,quetinhamtarefasprescritasacumprir,desdeamadrugadaatéoanoitecer,emhoráriosassinaladosporsinos:horadetrabalharnaroça,nacaça,napesca,na fiação, na tecelagem etc. Hora de ler, hora de rezar, hora de fornicar,porque a população diminuía visivelmente. Para atender ao reclame debraço dos colonos, o governador proclamou estado de guerra contra osCaeté. Desencadeou‐se a dissídia, porque os colonos, em lugar de atacaraqueles índios nas suas aldeias longínquas, foram caçar os já pacificados,que viviam dentro das missões jesuíticas. Essas se despovoaramrapidamente.

Missõescomcercade12milalmasviram‐se,empoucotempo,reduzidasamil.Nessasituaçãodesesperadoraéqueocorremasepidemiasdevaríola,de 1562 a 1563, que não atingem os portugueses, mas em três mesesmatammaisde30mil índiosenegros.Surgeumanovaepidemianaqualmorreumaisdeumquartodapopulaçãoindígenasobrevivente.Asaldeias,cheias de mortos insepultos, de gente faminta e desesperada, foramabandonadas por muitos índios, que se entregavam aos brancos comoescravos,emtrocadeumpunhadodefarinha.

Por todoosertão,odesesperograssa também,sejaporqueasepidemiasos atingiram, seja porque os colonos assaltam suas aldeias. Salvos ouinduzidos, com toda forma de truques, a ir para a Bahia, onde osescravizam. Dados de Anchieta, em sua "Informação dos primeirosaldeamentos",registramqueapopulaçãoindígenadosarredoresdaBahia,avaliada em 80 mil pessoas, se viu reduzida a menos de 10 mil. Àsepidemias de varíola, se somou a de febres malignas, completando adestruição.

AntonioBlasquezassimadescreve:

"Neste tempo não se viam entre eles nem ouviam os bailes e regozijosacostumados, tudoera choroe tristeza, vendo‐seuns sempais, outros semfilhos,emuitasviúvassemmaridos,demaneiraque,quemosvianesteseudesamparo,recordando‐sedotempopassado,

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e quãomuitos eram então e quãopoucos agora, e comod'antes tinhamoque comer e ao presente morriam de fome, e como antes viviam comliberdadeeseviam,alémdesuamiséria,acadapassoassaltadosecativosàforçapeloscristãos;consideradaerumiadaestasúbitamudança,nãopodiamdeixardelastimar‐seechorarmuitaslágrimasdecompaixão(Cartade1564inBlasquez1931:405)."

Ao tempo deMem de Sá foi quemais se assanharam as três pragas dohomembranco,representadaspelaspestes,pelaguerraepelaescravização,que se abateram mortais sobre os Tupinambá. Ao final, vencidos, seusremanescentes foramcompelidosaté apagar tributosna reconstruçãodefortalezasoudeengenhos.

Um novo inimigo surge aí: os Aimoré e outros Tapuia que, até entãocontidos pelos Tupinambá, começam a atacar os colonos, despovoandoáreasantesprósperas,comoIlhéus.Vencidososíndios,consolidam‐se,daípor diante, a Bahia e suas projeções no Espírito Santo, em São Vicente ePiratininga e suas extensões para o sul. Também em Pernambuco que,depois de liquidar a resistência dos Caeté e aliados, dos franceses naParaíbaenoCeará, se, imporiaadentro,noMaranhão.Sóaí,ecom índiosdaqui para lá transladados, fugidos dos brancos, é que os jesuítas iriamencontrar mais índios para catequizar. Também eles, em toda a costaatlântica,estavamvencidoscomoalternativaparaacolonizaçãodoBrasil.

Em1570,adominaçãoportuguesaestavaassentada,solidamente,emoitoimplantações,comcercade4milvizinhos(oitoadozepessoascada),quecorrespondiam a uma população de 30 ou 40 mil habitantes. E aqueleseram na maioria mamelucos, porque todos os portugueses que seencontravamnoBrasil não somamuma quarta parte. Destacam‐se, nesseconjunto, quatro implantações: Bahia, Pernambuco, Espírito Santo e SãoPaulocomaprosperidadecrescente.

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Três outras começaram a decair e iriam desaparecer completamente:Itamaracá, que chegou a Ter prosperidade, foi abandonada pelosportugueses em razão dos ataques de índios aliados dos franceses. Omesmo sucedeu a Ilhéus e a Porto Seguro, que chegarama ter, cadaumadelas, mais de duzentos vizinhos, mas também sucumbiram acossadaspelos Aimoré. Acossada pelos mesmos índios, Espírito Santo conseguiusobreviver, mesmo porque, implantada numa ilha, não teve que destruirseusíndiosvizinhos,contouindiretamentecomeles.

AcapitaniadeSãoPaulo,compostaportrêsvilasàbeira‐mar,SãoVicente,Santos e Iperoig e, uma serra acima, pela então Piratininga, representavaum implante medíocre. Os engenhos de açúcar não prosperaram nemsurgiram outras lavouras. Mesmo a produção de pau‐brasil foi sempremedíocre comparada com a de outras províncias. As missões jesuíticastambémalisedesenvolverampouco,reunindoapenasumblocodeíndios.Forte em São Paulo foi a associação dos mamelucos com índios livres eescravos. Vivendo todos, conjuntamente, uma mesma forma de vida,acabam se expandindo na tarefa de capturar índios para o uso ou paravenda.

O Rio de Janeiro português, fundado depois da expulsão dos franceses,1565,viveempazcomosíndiosTupinambá,seusaliados,porquecontavamcomquantidadedeescravosentreosTamoiovencidos.Osjesuítastinham,foradacidade,duasmissõescomcercade3milíndios.

A Bahia era o maior núcleo português. Conseguia manter ao redor dacidade, sob o controle dos jesuítas, diversas comunidades indígenas queajudavam na defesa da cidade e a proviam de braços e demantimentos.Haviatrintaetantosengenhos,movidospor3ou4milescravosnegrose8mil índios. Nessa proporção, o componente negro‐africano iria aumentarcadavezmais.

OmesmohaviasucedidocomPernambuco,quetinhamaisdemilvizinhosconcentrados nas ilhas de Olinda e Igaraçu e comunidades vizinhas.Contava já com dois engenhos altamente produtivos, movidosprincipalmentepormão‐de‐obraafricana.

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Sua população original havia sido praticamente exterminada pelasguerras, pela fome, pelas pestes e, também, pelas secas. Eram tão poucosqueos jesuítasnãopuderamcriar alinenhumamissão.OsdoisportosdabaíadePernambucocomeçavamaserasbocasdeentradadamão‐de‐obraque iria, daí em diante, edificar quanto se edificou, produzir quanto seproduziunoBrasil,queeramosnegrosafricanos.

Os jesuítas, sob forte disciplina inaciana, conseguiam alcançar certaprosperidade, de tipo diferente da do colono, porque voltadafundamentalmenteparaproveraosprópriosíndios,assegurandoamplitudee alguma suntuosidade nas suas edificações. Cadamissão tinha, também,homensearmasparaacudiraogovernadorsemprequesolicitados,eforammuitas vezes contra outros índios, assim como contra negros escravosalçados.Disso proviamalimentos,mantimentos. As cidades,mediante umsistema complexo de escambo demão‐de‐obra, tanto para as vilas comopara os engenhos, através de negociações cada vez mais difíceis, foramfazendocomqueoscolonosdesistissemdessafontedetrabalho.Amaioriados índios desapareceu, uma parcela maior do que quantos foramincorporados,nosestabelecimentosportugueses,porquehaviabempertoomatoparareorganizarsuavidasertãoadentro.

Simultaneamente,iasurgirnoNordesteaçucareiroumanovaformaçãodebrasileiros. Compostos originalmente de mamelucos ou brasilíndios,geradospelamestiçagemdeeuropeuscomíndios, logosedesdobroupelapresençaprecoce e cada vezmaismaciçade escravos africanos. Inclusiveumas contadasmulheres que passaram a gerarmulatos emulatas que jánasciamprotobrasileirosporcarência,umavezquenãoeramassimiláveisaos índios, aos europeus e aos africanos e aos seus mestiços. Em razãodessa presença negra e mulata, e sobretudo pelo reconhecimentoposteriormente alcançado, aquela matriz logo se singularizouprofundamente.

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Surge,assim,aáreaculturalcrioula,centradanacasa‐grandeenasenzala,com sua família patriarcal envolvente e uma vastamultidão de serviçais.Estes,muito semelhantes aos brasilíndios de São Paulo, se diferenciavamtambémpelaespecializaçãosubalternacomogentedeserviço,provedoresdegênerosepescadores.

Uma fração dessa matriz, assumindo a função de criadores de gado,tambémsediferencia,afeiçoando‐seàs lidespastoris.Diferencia‐se,ainda,porque entra em contato sucessivamente com vários povos tapuias decultura especializada à aridez das caatingas, com as quais se cruzaprofundamente, o que dá lugar a um fenótipo novo, o cabeça‐chatanordestino.

Noplanolingüístico,otupi‐guarani,comolíngua‐geral,permaneceusendopor séculos a fala dosbrasilíndiospaulistas. E noNordeste açucareiro foiprontamente suplantado pelo português. Isso porque sua populaçãoprincipal de escravos e mestiços, sendo compelida a adotar a fala docapataz para se comunicar com os outros escravos, realizou o papel deconsolidar a línguaportuguesa noBrasil.Mais tarde, a escravariamaciça,conduzida para a região mineira no centro do país, cumpriria a mesmafunção de introdutora da língua portuguesa. A primeira onda depovoamento,constituídaporpaulistas,deuaquasetodasaságuas,serraseacidentes assinaláveis nomes em tupi, língua jamais falada pelos índiosnativosdaregião.ObrasilíndiodoNordesteseco,quefoiquemocupouasmaiores áreas do Brasil, tangendo gado, não adotou nenhuma língua dasregiões que habitou, mas foi outro difusor da língua portuguesa, porqueseguramentejásaíramdolitorallusitanizados.

Desse modo é que, ao longo de décadas e séculos, vão surgindomodosbrasileirostãodiferenciadosunsdosoutros,porsuassingularidades,comohomogeneizados pelo muito mais que têm em comum. Tais são, porexemplo, o baiano da Bahia gorda; o pernambucano do massapê; o são‐franciscanodaBahiadobode;osertanejonordestino.

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Outras variantes iriam surgir nas mesmas linhas, entre elas o cabocloamazonenseadaptadoàvidanasflorestaseaosaguais,quefoiquemmaisguardou aherança indígenaoriginal.Onde suas comunidadesoriginais semantêm vivas e a se exercer sobre o mundo, através de múltiplas erigorosíssimas formas de ação sobre omeio, que dão à sua vida e à suaculturanãosóumsaborindígenamassuaextraordináriariqueza.Olhandotodo o mundo só comparo os caboclos aos campesinos franceses, pelariquezaextraordináriadesuaculturadepequenosagricultores.Osqueijosdecabra,osvinhos,ospatêsetantacoisamaissãoequivalenteseuropeusao tacacáno tucupi,damaniçoba,da sopademuçuam.Lamentavelmente,essariquezaculinárianossaseestáesvaindocomadecadênciadaculturacabocla,enquantoafrancesaflorescecadavezmais.

Outra variante típica do modo dé ser brasileiro é a dos gaúchos,especializadosnopastoreio,mascomdoiscomponentesdiferenciadores,oda briosa gente de fronteira e de guerra e, sobretudo, o de caçadores degado, mais que de criadores, que cresce explorando os rebanhos quemultiplicavamnoscamposdoSul,cujovalorprincipalcomomercadoriaeraocouro.

CATIVEIROINDÍGENA

Aescravidãoindígenapredominouaolongodetodooprimeiroséculo.Sóno século xvtl a escravidão negra viria a sobrepujá‐la, conforme assinalaBrandão.

"[...]emalgumascapitaniashámaisdelesquedosnaturaisdaterra,etodosos homens que nela vivem tem metida quase toda sua fazenda emsemelhantemercadoria(Brandão1968:115)."

Ainda assim, subsistiu nas áreas pioneiras como estoque de escravosbaratosutilizáveisparafunçõesauxiliares.

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Nenhum colono pôs jamais em dúvida a utilidade da mão‐de‐obraindígena,emborapreferisseaescravaturanegraparaaproduçãomercantilde exportação. O índio era tido, ao contrário, como um trabalhador idealparatransportarcargasoupessoasporterraseporáguas,paraocultivodegêneros e o preparo de alimento, para a caça e a pesca. Seu papel foitambém preponderante nas guerras aos outros índios e aos negrosquilombolas.

A documentação colonial destaca, por igual, as aptidões dos índios paraofícios artesanais, como carpinteiros, marceneiros, serralheiros, oleiros.Nas missões jesuíticas tiveram oportunidade de se fazerem tipógrafos,artistasplásticos,músicoseescritores.

A função básica da indiada cativa foi, porém, a de mão‐de‐obra naproduçãode subsistência. Para isso eramcaçadosnosmatos e engajados,nacondiçãodeescravos,índioslegalmentelivres,masapropriadosporseussenhoresatravésdetodasortedevivências,licençasesubterfúgios.

A partir da carta régia de 1570, em que d. Sebastião autorizava oapresamento de índios em guerras justas, a uma lei de alforria se seguiaoutra,autorizandoocativeiroatravésdeprocedimentosparalegaiscomoosleilões oficiais para venda de índios, as taxas cobradas por índio vendidocomo escravo, as ordens reais parapreia e vendade lotes de índios paracustear obras públicas e até para construir igrejas, como ocorreu com acatedral de São Luís do Maranhão. A rigor, apesar da copiosíssimalegislaçãogarantidoradaliberdadedosíndios,sepodeafirmarqueoúnicorequisito indispensável para que o índio fosse escravizado era ser, ainda,um índio livre.Mesmo os já incorporados à vida colonial ‐ como ocorreucom os recolhidos às missões ‐ inúmeras vezes foram assaltados eacossados. Isso foi o que sucedeu, por exemplo, quando Mem de Sáautorizou uma guerra de vingança para escravizar os índios Caeté porhaveremcomidoobispoFernandesSardinha.

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Oscolonos, combasenessaordemdevingança, caíramsobreasmissõesjesuíticasedos12milcatecúmenossobraramapenasmil,quandoaordemfoirevogada.

Milharesde índios foram incorporadosporessaviaà sociedadecolonial.Incorporadosnãoparase integraremnelanaqualidadedemembros,masparaseremdesgastadosatéamorte,servindocomobestasdecargaaquemdelesseapropriava.Assimfoiaolongodosséculos,umavezquecadafrentede expansão que se abria sobre uma área nova, deparando lá com tribosarredias,faziadelasimediatamenteummanancialdetrabalhadorescativose de mulheres capturadas para o trabalho agrícola, para a gestação decriançaseparaocativeirodoméstico.

Custando uma quinta parte do preço de um negro importado, o índiocativo se converteu no escravo dos pobres, numa sociedade em que oseuropeus deixaram de fazer qualquer trabalho manual. Toda tarefacansativa, fora do eito privilegiadoda economia de exportação, que cabiaaosnegros,recaíasobreoíndio.

Oapresamentosemprefoi tidocomoprática louváveleatémesmocomotécnicade conversão.OpróprioNóbrega,nos seusplanosde colonização,desaconselha a vinda de colonos tão pobres que não pudessem comprarlogo índios cativos para pôr a seu serviço, sugerindo que só fossemmandados para cá os abonados que tivessem condições de adquiri‐los. Écertoqueele,comoosoutrosjesuítas,quiserampôrtermoàganânciadoscolonos que degenerara em práticas que estavam esgotando a populaçãoindígenaemprejuízoparaa colonização.Aindaque fossepor suaposiçãodecompetidor,umavezquetinhaoutradestinaçãoadaraosíndios,ocertoéque tinha a visão clara sobre anecessidadede grande concentração .deíndiosnasvilasmissionáriaseaserviçodosfazendeiros,comooprincipalmecanismoconsolidadordaempresacolonial.

O apoio da Coroa aos jesuítas, aos seus esforços por regulamentar ocativeirodosíndios,nãosefundavasemprenas

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razõesreligiosasemoraisquealegava.Tinhabase,defato,nointeressedaadministração.Comefeito, as aldeiasmissionárias eramconcentraçõesdegente recrutável e disponível a qualquer tempo, a custo nulo para asguerrasaosíndioshostis,aoinvasorestrangeiroeaosnegrosalçados.Eratambémumaimportantefontedeprovimentodegênerosaumapopulaçãofamélica, porque se ocupava fundamentalmente da produção de gênerosalimentícios. Os engenhos só cuidavamdasmercadorias de exportação. Aconcentraçãode índiosnasmissões coincidiu também,muitas vezes, comosinteressesdosescravizadoresque,numsóataque, faziamfartacolheitadecativos.

AcontradiçãoentreospropósitospolíticosdaCoroaedosjesuítas,deumlado, e o imediatismodos traficantesde índios, dooutro, não se resolveununca por umadecisão real pela liberdade ou pelo cativeiro. A legislaçãoque regula a matéria é a mais contraditória e hipócrita que se possaencontrar.Decretadezenasdevezesguerrajustacontraíndiostidoscomoculpadosdegrandesagravosousimplesmentehostispara,aseguir,coibi‐las e, depois, tornar a autorizá‐las, num ciclo sem fim de iniqüidade efalsidade.

Osatosadministrativosqueregiamaescravidãodosíndiossãoigualmenteumvai‐e‐vemde engodos e chicanasque, proibindoo cativeiro, de fato oinstituíam. O índio podia ser legalmente escravizado porque aprisionadonuma guerrajusta; ou porque obtido num justo resgate; ou porquecapturado num ataque autorizado; ou porque libertado do cativeiro dealgumatriboqueameaçavacomê‐lo;ouaindaporquecompunhaumlotedequesepagaraoTquintoaogovernolocal.

"Chegaram finalmente os missionários e, não podendo contrastar osentimentogeral [emfavordaescravização indígena],pactuaramcomele.Porumadessascapitulaçõesdeconsciência,emqueosjesuítassãoexímios,acharam meio de entender que "quanto mais larga fosse a porta doscativeiros lícitos, tanto mais escravos entrariam na Igreja e se poriam acaminhodasalvação"(Vieira,RespostaaosCapítulos,25)."

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Assim, concordando com a prática da escravidão, acompanhavam astropas e, como árbitros, decidiam da justiça das presas. Nessa concessãoestavaaruínadasuaobrae,oquemaisfoi,tambémdasuafama.Ninguémjamais os livrará da pecha de haverem diretamente concorrido para adestruiçãodaraçainfeliz,quepretendiamsalvar(Azevedo1930:169)."

Masissonãoétudo.Instituiu‐setambémaescravidãovoluntáriadeíndiosmaiores de 21 anos que, em caso de necessidade extrema, estavamautorizadosasevenderasimesmosaquemtivesseacaridadedecomprá‐los, depois de bem esclarecê‐los sobre que coisa era ser escravo (Leite1965:119,124).Eralícito,também,acomprademeninosíndiosaseuspaisparacriá‐loslosetreiná‐losparaotrabalho,oquerepresentaocúmulodadesfaçatez, uma vez que não há gentemais extremosamente apegada aosfilhosdoqueassociedadesfundadasnoparentesco.Eratambémlegaleatémeritório comprar meninos trazidos por bugreiros ou regatões, parainstruí‐losnafécristã,oquesucedeatéhojenoscafundósdaAmazônia.Eraigualmente lícito reter como cativo o índio que se acasalava com umaescravaeaindaregistrarcomoescravoofilhogeradodessecasamento.

Émuito difícil avaliar o número de índios escravizados, desgarrados desuastribos.Secontará,certamente,pormilhõesquandoaavaliaçãoforfeitadeformacriteriosa.Issoéoqueindicamaspoucasaproximaçõescomquecontamos,comoadeSimonsen,queavaliaem300milosíndioscapturadose escravizados pelos bandeirantes paulistas, uma terça parte delesdestinados ao tráfico, exportado para outras províncias. Ou nos dados deJusto Mancilla e Simon Masseta (1951:I, 337), que supôs que sobre asmissões jesuíticas do Paraguai, no século XVII, os paulistas tinhamarrancado 200mil cativos. Os descimentos que anualmente se faziam deíndiosdosaltosriosdaAmazônia,ao

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longodosséculos,paraasmissõese,principalmente,paraocativeiro,nãoterãorecrutadoquantidademenor.

OBrasil central, a zona damata deMinas, do Espírito Santo e daBahia,bem comoas regiõesde araucáriado Sul doBrasil deram, também, largaprovisão de braços cativos, à medida que foram sendo devassadas. Emtodasessas áreas, o cativeiroapovos índiosque resistiamà expansão foidecretadopeloreidePortugalcomolegal,porqueobtidoemguerrasjustas.Como o índio capturado é uma fração da tribo avassalada, porquemuitíssimosdelesmorremnalutapelapróprialiberdade,outrosfogemnoscaminhosoumorremdemaus‐tratos,derevoltaederaivanocativeiro,oprocesso de apresamento como forma de recrutar a mão‐de‐obra nativaparaacolonizaçãoconstituiuumgenocídiodeproporçõesgigantescas.

Aamplitudedasdiversas formasde legitimaçãodo cativeiro seexpressabemnocasodospaulistasquejuntavamemcasatantosíndiosescravizadosde tantos tipos que tiveramde desenvolver toda uma nomenclatura paraescriturá‐los comopeçados seus inventários.Assiméque falamdepeçasde serviços, gente roja, serviços obrigatórios, gente do Brasil, servidores(Machado 1943:31‐6, 165‐76). Tudo isso para que asmencionadas peçassucedessem de pai a filho como propriedade privada, sem falar emescravidão.

Aprópriareduçãojesuíticasópodesertidacomoumaformadecativeiro.As missões eram aldeamentos permanentes de índios apresados emguerrasouatraídospelosmissionáriosparaláviverempermanentemente,sobadireçãodospadres.Oíndio,aqui,nãotemoestatutodeescravonemde servo. É um catecúmeno, quer dizer, um herege que está sendocristianizado e assim recuperado para si mesmo, em benefício de suasalvaçãoeterna.Noplanojurídico,seriaumhomemlivre,postosobtutelaem condições semelhantes à de um órfão entregue aos cuidados de umtutor.

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Para os padres, eles seriam almas racionaismas transviadas, postas emcorpos livres,mas carentes de resguardo e vigilância. Estando ali, porém,deviamtrabalharparaseusustentoeparafazerprósperaacomunidadedeque passavam a fazer parte. Também podiam ser recrutados a qualquerhora para a guerra contra qualquer força que ameaçasse os interessescoloniais, porqueessespassavama seros seuspróprios.Podiam tambémsermandados às vilas para trabalho compulsório de interesse público naedificaçãodeigrejas,fortalezas,naurbanizaçãodecidades,naaberturadeestradas ou como remeiros e cozinheiros, ou serviçais nas grandesexpedições ou no que mais lhe fosse indicado, sempre em benefício dacoletividadequepassaraaintegrar.Podiam,fmalmente,serarrendadosaoscolonos mediante salários de duas varas de pano de algodão, formandoassimumpecúlioque,sechegasseaserrecebido,elesaprenderiamcomopadreagastarcriteriosamente,quemsabeemalgumaobradecaridade.

Pior, ainda, que os jesuítas foram os outros missionários, uma vez quenenhumdelesjamaisentrouemqualquerconflitocomquemquerquefossepormanifestarindignaçãocontraoextermíniooucativeirodosíndios.Maisaindaqueosjesuítas,oscurasregularesforamacusadosreiteradamentedecobiçavil, chegandoalgunsa seremdisciplinadosepunidospelogovernocolonialpeloabusocomqueexploravamosíndiosquecaíamemsuasmãos.

Expulsos os jesuítas, a situação piorou muito, porque as suas missõesforam entregues, ao Norte, às familias de contemplados que passaram aexplorá‐las como fazendas privadas. Nas outras regiões, algumasmissõesforamentreguesaordensreligiosasconsentidasnessafunção,porqueeramainda mais propensas a servir ao governo e aos colonos do que seusescravospelaCompanhia.

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Algunsforampostossobadireçãodeadministradorescivisque,podendocobrarporcentagemsobreosíndiosquearrendavamoucolocarosíndiosatrabalhar em suas próprias fazendas, fizeram disso um alto negócio. Tãobom que alguns deles se esforçaram e lograram o supremo favor de setornarem hereditários das antigas missões. A quantidade de índiosexploradosdessa formaterásidomuitogrande,umavezquedocumentosdo fim do século xvü falamde quatrocentas aldeias com administradorescivisemSãoPauloede4milnasoutrascapitanias(Gorender1978).

A expulsão pombalina que visava, nominalmente, liberar os índios dasmissões jesuíticas, integrando‐os como iguais e até com certosprivilégiosna comunidade colonial, representou enorme logro. O regulamento queentão se baixou aboliu o trabalho compulsório bem como os turnossemestrais alternadosde trabalhonamissãode foraoudearrendamentoparaasdiferentescolônias.

Narealidade,essapráticasomenteseaprofundadaíemdiante, lançandoos índios nominalmente livres numa condição generalizada de cativeiromaisgravequeoanterior.Asituaçãodessesíndiosarrendadoserapiorqueadosescravostidospelosenhoratítulopróprio,umavezqueestes,sendoumcapitalhumanoque se comprara combomdinheiro,devia ser zelado,pelomenos para preservar seu valor venal; enquanto o índio arrendado,não custando senãoopreçode seu arrendamento, daria tantomais lucroquanto menos comesse e quanto mais rapidamente realizasse as tarefasparaqueeraalugado.Essedesgastehumanodotrabalhadorcativoconstituiuma outra forma terrível de genocídio imposta a mais de ummilhão deíndios.

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2MOINHOSDEGASTARGENTE

OSBRASILÍNDIOS

Aexpansãododomínioportuguêsterraadentro,naconstituiçãodoBrasil,éobradosbrasilíndiosoumamelucos.Geradosporpaisbrancos,amaioriadeles lusitanos, sobre mulheres índias, dilataram o domínio portuguêsexorbitando a dação de papel das Tordesilhas, excedendo a tudo que sepodiaesperar.

Os portugueses de São Paulo foram os principais gestadores dosbrasilíndios ou mamelucos. O motor que movia aqueles velhos paulistasera,essencialmente,apobrezadafeitoriapaulistana,meravilazinhaalçadano planalto, a quatro dias de viagem do mar, que se alcançavadificultosamente através da selva e de águas tormentosas, subindo edescendoescarpadasmorrarias.NodizerdeSérgioBuarquedeHolanda,osimpelia a "[...] exigência de um triste viver cotidiano e caseiro:teimosamentepelejaramcontraapobreza,epararepará‐lanãohesitaramemdeslocar‐se sobreespaços cadavezmaiores,desafiandoas insídiasdeummundoignoradoetalvezinimigo(Holanda1986:26)."

O que buscavam no fundo dos matos a distâncias abismais era a únicamercadoria que estava a seu alcance: índios para uso próprio e para avenda; índios inumeráveis, que suprissem as suas necessidades e serenovassem à medida que fossem sendo desgastados; índios que lhesabrissem roças, caçassem, pescassem, cozinhassem, produzissem tudo oque comiam, usavam ou vendiam; índios, peças de carga, que lhescarregassemtodaacarga,aolongodosmaislongoseásperoscaminhos.

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Desgastadasas tribosescravizáveisqueviviamporperto,osbrasilíndiospaulistas os foram buscar nos esconsos em que estivessem. Para isso, seorganizavam em bandos imensos de mamelucos e seus cativos que, pormeseseatéanos,sedeslocavamapé,descalços,nasbandeirasouremandoas canoas das monções. Nas entradas mais profundas e pioneiras queduravam anos, viajavam uns quantosmeses e acampavampara plantar ecolherroçascomquesesupriamdemantimentosparaprosseguirviagemsertão adentro, através de matas e de campos naturais. Vanguardasavançadassondavamocaminho,procurandoaldeiasindígenasoumissõesde índios capturáveis, ou se precavendo contra assaltos de índios hostis.Esse ofício de caçadores de gente se converteu em gênero de vida dospaulistas,emcujodesempenhosefizeramrespeitáveis,destacando‐secomaltashonras,aseusprópriosolhos,osmaisvalentesebriosos.

Osmaisbem‐sucedidosdelesalcançavamnãosóaprosperidadequeessapobreeconomiapodiadar,mastambémoreconhecimentopúblicodesuasfaçanhas e omais alto contentamento consigomesmos. Era ummodo devida raro, inusitado,nãohádúvida,mascontrastantecomqualqueroutrotalcomogênerodevidacamponêsoupastorile igualmenteremarcadodesingularidade.

Os brasilíndios foram chamados demamelucos pelos jesuítas espanhóishorrorizadoscomabrutezaedesumanidadeessagentecastigadoradeseugentiomaterno.Nenhumadesignaçãopodiasermaisapropriada.O termooriginalmentesereferiaaumacastadeescravosqueosárabestomavamdeseuspaisparacriareadestraremsuascasas‐criatórios,ondedesenvolviamotalentoqueacasotivessem.

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Seriam janizaros, seprometessem fazer‐seágeis cavaleirosdeguerra,ouxipaios,secovardeseservissemmelhorparapoliciaiseespiões.Castrados,serviriam como eunucos nos haréns, se não tivessem outro mérito. Maspodiamalcançaraaltacondiçãodemamelucosserevelassemtalentoparaexerceromandoeasuseraniaislâmicasobreagentedequeforamtirados.É evidentequeo apelido aplicadoaospaulistas expressao ressentimentoamargodeumjesuíta‐provavelmenteopadreRuizdeMontoya,autordaConquista espiritual que relata o padecimento terrível das missõesjesuíticasparaguaiasassaltadaspelosbandeirantespaulistas.

Nossosmamelucosoubrasilíndios foram,naverdade,aseupesar,heróiscivilizadores, serviçais del‐rei, impositores da dominação que os oprimia.Seu valor maior como agentes da civilização advinha de sua própriarusticidade de meio‐índios, incansáveis nas marchas longuíssimas esobretudonotrabalhoderemar,desolasol,pormesesemeses.Afeitosàbrutezaselvagemdaselvatropical,herdeirosdosabermilenaracumuladopelosíndiossobreterras,plantasebichosdaTerraNovaparaoseuropeus,masqueparaeleseraamoradaancestral.

Outro valor assinalável era sua flexibilidade de gente recém‐feita,moldávelaqualquernovacircunstância,"comaconsistênciadocouro,nãoado ferroedobronze,cedendo,dobrando‐se,amoldando‐seàsasperezasdeummundorude",comodizSérgioBuarquedeHolanda(1986:29).

Os brasilíndios oumamelucos paulistas foram vítimas de duas rejeiçõesdrásticas. A dos pais, com quem queriam identificar‐se,mas que os viamcomo impuros filhos da terra, aproveitavam bem seu trabalho enquantomeninoserapazese,depois,osintegravamasuasbandeiras,ondemuitosdeles fizeram carreira. A segunda rejeição era a do gentio materno. Naconcepçãodosíndios,amulheréumsimplessacoemqueomachodepositasuasemente.Quemnasceéofilhodopai,enãodamãe,assimvistopelosíndios.

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Nãopodendo identificar‐se comunsnemcomoutrosde seus ancestrais,queorejeitavam,omamelucocaíanumaterradeninguém,apartirdaqualconstróisuaidentidadedebrasileiro.

Assiméque,porviadocunhadismo,levadoaextremo,secriouumgênerohumano novo, que não era, nem se reconhecia e nem era visto como talpelosíndios,peloseuropeusepelosnegros.Essegênerodegentealcançouuma eficiência inexcedível, a seu pesar, como agentes da civilização.Falavam sua própria língua, tinham sua própria visão do mundo,dominavamumaaltatecnologiadeadaptaçãoàflorestatropical.Tudoissoauridodoseuconvíviocompulsóriocomosíndiosdematriztupi.

Sua vida venturosa devia ser mais atrativa para jovens índios do que apasmaceira de suas aldeias. Assim é que há vasta documentação doaliciamento espontâneo de índios que preferiam viver o destino dosbrasilíndios,produzindoelesprópriosseusíndiosdecativeiro.

Ao contrário do espanhol, que sempre que pôde comandou como umcavaleiro,omamelucoabriuseumundovastoandandodepédescalço,emfila,portrilhaseestreitossendeiros,carregandocargasnopróprioombroenodeíndioseíndiascativos.

Esteseramostransportadoresdetudo,deenfermoseatédemortos,mastambémdedamas emuitos reinóisque se faziamcarregarpor índios emredesecadeirinhas.

Friederici (1967), comparando‐os com seus êmulos do Canadá, oscoureursdeboi,quesemultiplicaramnosprimeirosséculos,supõequenãose lhes abriria outro caminho histórico senão o extermínio quandosociedades européias mais estruturadas, fundadas em famílias regulares,colonizaramaquelasáreas.

Épelomenoscuriosoocontrasteentreodesempenhohistóricodaquelesmateiros nortistas, vestindo roupas de couro, calçando mocassins e sófalandoas línguas indígenas,emcomparaçãocomaenergiapungentedosmamelucosoubrasilíndiosquevieramafazeroBrasil.

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Esses mateiros do norte representaram papel capital. Foram eles quedevassaramoCanadáeoocuparamatéavendadoterritórioaosingleses.Creio que são descendentes deles os Kevekuá, que amargam umavizinhança hostil com os anglo‐canadenses que ocuparam o território,numacolonizaçãofeitaporfamíliasregulares.

Outrosmamelucosforamosqueabriramoqueéhojeoterntórioargentino,uruguaioeparaguaio.MuitosdelespodemservistosemBuenosAires,ondesãotratadosporcabecitasnegrasemalvistospelosmilhõesdegringosqueos sucederam. Todos ignoram, na Argentina, que o país foi realmenteconquistado,organizadoeconduzidoàindependênciaporcercade800milmamelucos.

NoBrasilseuêxitofoiimensamentemaior,porquepassaramaconstituirocerne mesmo da nação e, somando uns 14 milhões, juntamente com osnegros abrasileirados, puderam suportar a invasão gringa mantendo suacaraesua identidade. Obrasilíndio,comogêneronovodegente,chegoumesmoadefinirumaideologiaprópria,opostaàdocuraeàdoneolusitano.A melhor expressão dela se encontra na citada carta em que DomingosJorgeVelho,oprincipaldospaulistas,reclamaanteoreiquantoàinépciaehipocrisiadosqueseopunhamàaçãomameluca.

Nãofoitarefanadafácilaomamelucosefazeragenteprincipaldahistóriabrasileira.Enfrentaram,deumlado,aodiosidade jesuíticaeamávontadedosreinóise,dooutro, todasasdificuldades imensasdesuaduravidadesertanistas. Inclusive a hostilidade dos índios arredios ‐ tais como osAimorédaBahia;osBotocudodeMinasedoEspíritoSanto;osKaingangeXokleng do Sul; os Xavante de Mato Grosso; e, sobretudo, os Bororo eKayapó,quesemoviamporextensasáreas,atravésdoscerrados,alémdosrios Araguaia e Tocantins ‐, cientes do destino trágico que teriam secapturados.

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EssesTapuiaeram,principalmente,povosdesistemaadaptativoajustadoàs condições do cerrado, muito contrastante com o modo de vida dosagricultores da floresta tropical. Sua própria forma de fazer a guerra eraoutra,preferindodesfechargolpesdetacapeouvararoinimigocomlanças.Como cativos, eram quase inúteis por não terem familiaridade nenhumacomoshábitosagrícolasdosTupi‐Guaraniadotadospelosmamelucos,mas,sobretudo,porexigiremvigilânciapermanenteparanãofugirem,matando,sepossível,seucaptor.

Habituados a percorrer imensas distâncias em seus deslocamentos, osTapuia,principalmenteosKayapó,atacavamsempreinesperadamentenoslugaresmaisdistantes,fazendoprisioneirossemprequepodiam,sobretudomeninas e mulheres que incorporavam à tribo. Essa característica osconverteu no pavor dos bandeirantes e, depois, através de séculos, daspopulaçõessertanejasqueestavamaseualcance.

Frente a esses índios, escolados no enfrentamento com agentes dacivilização, mesmo as vantagens inicialmente indiscutíveis das armas defogo se anularam. Sagacíssimos e manhosos, eles percorriam longasdistâncias a partir de suas aldeias para atacar gente desprevenida comchuvas de suas flechas silenciosas, por vezes ervadas. Enquanto umbandeirante levantavaoclavinote,sustentadonumaforquilha,earmavaocomplicadodisparador,oíndiomandavadetrêsacincoflechadas.

Era indispensável, entretanto, passar sobre os territórios desses índioshostis para alcançar as tribos de plantadores demandioca emilho, maisdóceis como escravos e mais úteis, desde a primeira hora, nas tarefascorriqueiras.Issoporqueaculturaadaptativabásicadaquelesíndioseraepermaneceusendo,porséculosafora,adospovosTupi,cujalínguafoiafaladosbrasilíndiosecujoshábitosepráticaseramquaseosmesmos.

A vida do índio cativo não podia ser mais dura como cargueiro ouremador,queeramseustrabalhosprincipais.Pertencente

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aquemoapresasse,eleeraumbemsemovente,desgastadocomamaiorindiferença, como se isso fosse o seu destino, mesmo porque havia umestoque aparentemente inesgotável de índios para repor os que segastavam.

Algunstextoscoloniais,concernentesagruposindígenasquefacilitaramoassentamentodoeuropeueaceitaramcolaborarcomeles,exigemalgumasponderações, principalmente as de que, acossados por outras tribosindígenas,pudessemelesacharmenosterríveladuravidaeossofrimentosdebaixo dos cristãos que a permanência na terra em guerra contra seusinimigos. É também de supor que um jovem índio, recrutado por umbandeirantecomoguerreiro,sepudessedestacar,preandooutros índiosesendo premiado por isso ou louvado como extraordinário caçador, comoguia e mateiro, de olhos vivos e de grande sabedoria para atravessarflorestasecerrados.

Algunsgrupostribais,aindaqueconscritosàeconomiacolonial,lograrammanter certa autonomia na qualidade de aliados dos brancos para suasguerras contra outros índios. O relevante nesse caso é que, em lugar deamadureceremparaacivilização‐passandoprogressivamentedacondiçãotribal à nacional, da aldeia à vila, como supuseram tantoshistoriadores ‐,esses núcleos autônomos permaneceram irredutivelmente indígenas ousimplesmente se extirìgüiram pelamorte de seus integrantes. Onde querquesetenhadadosconcretos,sepodeobservarqueàcoexistênciadaaldeiaindígena com o núcleo colonizador segue‐se o crescimento deste e aextinção daquela, cuja população vai diminuindo ano após ano, atédesaparecer. Nos raros casos em que logram sobreviver uns tantosindígenas,todoselesmantêmsuaidentificaçãoétnica.

Pesquisas etnológicas empreendidas por mim mesmo revelaram o altograu de resistência destas etnias tribais, que continuam congregando aslealdadesdosseusmembrosedefinindo‐secomoindígenas,mesmoquandosubmetidasdurantedécadas

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a pressões aculturadoras e assimiladoras (Ribeiro 1970). Contra estaresistênciaétnicanadapuderamontemnemhojetodososquecontraelaselançaram.Tãoinúteisforamasameaçasdechacinamentocomoaspressõesintegradoras exercidas com total intolerância pelos missionários e,também,osmétodosditospersuasóriosdosórgãosoficiaisdeassistência.

Índios e brasileiros se opõem como alternos étnicos em um conflitoirredutível,quejamaisdálugaraumafusão.Ondequerqueumgrupotribaltenhaoportunidadedeconservara continuidadedaprópria tradiçãopeloconvívio de pais e filhos, preserva‐se a identificação étnica, qualquer queseja o grau de pressão assimiladora que experimente. Através desseconvívioaculturativo,porém,osíndiossetornamcadavezmenosíndiosnoplano cultural, acabando por ser quase idênticos aos brasileiros de suaregiãonalínguaquefalam,nosmodosdetrabalhar,dedivertir‐seeaténastradiçõesquecultuam.Nãoobstante,permanecemidentificando‐secomsuaetniatribalesendoassimidentificadospelosrepresentantesdasociedadenacionalcomquemmantêmcontato.Opassoquesedánesseprocessonãoé,pois,comosesupôs,otrânsitodacondiçãodeíndioadebrasileiro,masda situação de índios específicos, investidos de seus atributos e vivendosegundo seus costumes, à condição de índios genéricos, cada vez maisaculturadosmassempreíndiosemsuaidentificaçãoétnica.

OSAFRO‐BRASILEIROS

Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidentalafricana. Arthur Ramos (1940, 1942, 1946), prosseguindo os estudos deNinaRodrigues(

1939, 1945), distingue, quanto aos tipos culturais, três grandes grupos.Oprimeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente, pelosgruposYoruba‐chamadosnagô‐,pelosDahomey–designados

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geralmentecomogegê‐epelosFanti‐Ashanti–conhecidoscomomircas‐,alémdemuitosrepresentantesdegruposmenoresdaGâmbia,SerraLeoa,CostadaMalagueta eCostadoMarfim.O segundogrupo trouxe aoBrasilculturasafricanas islamizadas,principalmenteosPeuhl,osMandingaeosHaussa,donortedaNigéria,identificadosnaBahiacomonegrosmaléenoRio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo cultural africano eraintegradopor tribosBantu,dogrupocongo‐angolês,provenientesdaáreahoje compreendida pela Angola e a "Contra Costa", que corresponde aoatualterritóriodeMoçambique.

Acontribuiçãoculturaldonegrofoipoucorelevantenaformaçãodaquelaprotocélula original da cultura brasileira. Aliciado para incrementar aproduçãoaçucareira,comporiaocontingentefundamentaldamão‐de‐obra.Apesardoseupapelcomoagenteculturaltersidomaispassivoqueativo,onegroteveumaimportânciacrucial,tantoporsuapresençacomoamassatrabalhadora que produziu quase tudo que aqui se fez, como por suaintrodução sorrateiramas tenaz e continuada, que remarcou o amálgamaracialeculturalbrasileirocomsuascoresmaisfortes.

Tal como ocorreu aos brancos, vindosmais tarde a integrar‐se na etniabrasileira, os negros, encontrando já constituída aquela protocélula luso‐tupi,tiveramdenelaaprenderaviver,plantandoecozinhandoosalimentosdaterra,chamandoascoisaseosespíritospelosnomestupisincorporadosao português, fumando longos cigarros de tabaco e bebendo cauim. Osnegros do Brasil, trazidos principalmente da costa ocidental da África,foramcapturadosmeioaoacasonascentenasdepovostribaisquefalavamdialetoselínguasnãointeligíveisunsaosoutros.AÁfricaera,então,comoaindahojeoé,emlargamedida,umaimensaBabeldelínguas.Emboramaishomogêneos no plano da cultura, os africanos variavam tambémlargamentenessaesfera.Tudoissofaziacomqueauniformidaderacialnãocorrespondesseaumaunidadelingüístico‐cultural,

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que ensejasse uma unificação, quando os negros se encontraramsubmetidos todos à escravidão. A própria religião, que hoje, após sertrabalhada por gerações e gerações, constituiu‐se uma expressão daconsciência negra, em lugar de unificá‐los, então, os desunia. Foi atéutilizadacomofatordediscórdia,segundocon,fessaocondedosArcos.

Adiversidade lingüísticaeculturaldoscontingentesnegros introduzidosnoBrasil,somadaaessashostilidadesrecíprocasqueelestraziamdaÁfricaeàpolíticadeevitaraconcentraçãodeescravosoriundosdeumamesmaetnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos navios negreiros,impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônioculturalafricano.

Encontrando‐sedispersosnaterranova,aoladodeoutrosescravos,seusiguaisnacorenacondiçãoservil,masdiferentesnalíngua,naidentificaçãotribal e freqüentemente hostis pelos referidos conflitos de origem, osnegros foram compelidos a incorporar‐se passivamente no universoculturaldanovasociedade.Dão,apesardecircunstânciastãoadversas,umpassoadiantedosoutrospovoadoresaoaprenderoportuguêscomqueoscapatazes lhes gritavam e que,mais tarde, utilizariam para comunicar‐seentresi.AcabaramconseguindoaportuguesaroBrasil,alémdeinfluenciardemúltiplasmaneiras as áreas culturais ondemais se concentraram, queforam o nordeste açucareiro e as zonas demineração do centro do país.Hoje,aquelaspopulaçõesguardamumaflagrantefeiçãoafricananacordapele,nosgrossoslábiosenosnarigõesfornidos,bemcomoemcadênciaseritmosenossentimentosespeciaisdecoredegosto.

Nos dois casos, o engenho e a mina, os negros escravos se viramincorporados compulsoriamente a comunidades atípicas, porque nãoestavamdestinadosaatenderàsnecessidadesde suapopulação,mas simaosdesígniosvenaisdosenhor.Nelas,àmedidaqueeramdesgastadosparaproduziroquenãoconsumiam,

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iam sendo radicalmente deculturados pela erradicação de sua culturaafricana. Simultaneamente, vão se aculturando nosmo dos brasileiros deser e de fazer, tal como eles eram representados no universo culturalsimplificado dos engenhos e das minas. Têm acesso, desse modo, a umcorpodeelementosadaptativos,associativoseideológicosoriundodaquelaprotocélula étnica tupi que se consentiu sobreviver nas empresas, para oexercíciodefunçõesextraprodutivas.

Só através de um esforço ingente e continuado, o negro escravo iriareconstituindosuasvirtualidadesdeserculturalpeloconvíviodeafricanosdediversasprocedênciascomagentedaterra,previamenteincorporadaàproto‐etnia brasileira, que o iniciaria num corpo de novas compreensõesmais amplo e mais satisfatório. O negro transita, assim, da condição deboçal – preso ainda à cultura autóctone e só capaz de estabelecer umacomunicaçãoprimáriacomosdemaisintegrantesdonovocontornosocial‐à condição de ladino ‐já mais integrado na nova sociedade e na novacultura.Essenegroboçal,queaindanãofalavaoportuguêsousófalavaumportuguês muito trôpego, era entretanto perfeitamente capaz dedesempenhar as tarefasmaispesadas e ordináriasnadivisãode trabalhodoengenhooudamina.

Concentrando‐se em grandes massas nas áreas de atividade mercantilmaisintensa,ondeoíndioescasseavacadavezmais,onegroexerceriaumpapel decisivo na formação da sociedade local. Seria, por excelência, oagente de europeização que difundiria a língua do colonizador e queensinariaaosescravosrecém‐chegadosastécnicasdetrabalho,asnormasevaloresprópriosda subcultura aque se via incorporado. Consegue, aindaassim,exercer influência,sejaemprestandodenguesao falar lusitano,sejaimpregnando todo o seu contexto com o pouco que pôde preservar daherançaculturalafricana.Comoestanãopodiaexpressar‐senasformasdeadaptação ‐ por diferir, consideravelmente, no plano ecológico etecnológico,dosmodosdeprover

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a subsistêncianaÁfrica ‐, nem tampouconosmodosdeassociação ‐porestarem rigidamenteprescritos pela estruturada colônia como sociedadeestratificada, a que se incorporavana condiçãode escravo ‐, sobreviveriaprincipalmente no plano ideológico, porque ele era mais recôndito epróprio.Querdizer,nascrençasreligiosasenaspráticasmágicas,aqueonegroseapegavanoesforçoingenteporconsolar‐sedoseudestinoeparacontrolarasameaçasdomundoazarosoemquesubmergira.

Juntocomessesvaloresespirituais,osnegrosretêm,nomaisrecônditodesi, .tanto reminiscências rítmicas e musicais, como saberes e gostosculinários.

Essa parca herança africana ‐meio cultural emeio racial ‐, associada àscrenças indígenas, emprestaria entretanto à cultura brasileira, no planoideológico,umasingularfisionomiacultural.Nessaesferaéquesedestaca,porexemplo,umcatolicismopopularmuitomaisdiscrepantequequalquerdasheresiascristãstãoperseguidasemPortugal.

ConscritosnosguetosdeescravidãoéqueosnegrosbrasileirosparticipamefazemoBrasilparticipardacivilizaçãodeseutempo.Nãonasformasqueachamadacivilizaçãoocidentalassumenosnúcleoscêntricos,mascomasdeformações de uma cultura espúria, que servia a uma sociedadesubalterna. Por mais que se forçasse um modelo ideal de europeidade,jamais se alcançou,nemmesmo se aproximoudele, porquepelanaturezadas coisas, ele é inaplicável para feitorias ultramarinas destinadas aproduzir gêneros exóticos de exportação e de valores pecuniários aquiauridos. Seu ser normal era aquela anomalia de uma comunidade cativa,que nem existia para si nem se regia por uma lei interna dodesenvolvimentodesuaspotencialidades,umavezquesóviviaparaoutroseeradirigidaporvontadesemotivaçõesexternas,queoqueriamdegradarmoralmenteedesgastarfisicamenteparausarseusmembroshomenscomobestasdecargaeasmulherescomofêmeasanimais.Asdiferençasentreosdois

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modelos, não sendo degradações nem enfermidades, não podiam jamaisser reestruturadas ou curadas. De fato, era o Brasil que se construía a simesmo como corresponde à sua base ecológica, o projeto colonial, amonoculturaeoescravismodoqueresultaumasociedadetotalmentenova.

Aempresaescravista, fundadanaapropriaçãodesereshumanosatravésda violência mais crua e da coerção permanente, exercida através doscastigosmaisatrozes,atuacomoumamódesumanizadoraedeculturadorade eficácia incomparável. Submetido a essa compressão, qualquer povo édesapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para serninguémaover‐sereduzidoaumacondiçãodebemsemovente,comoumanimaldecarga;depois,paraseroutro,quandotransfiguradoetnicamentena linha consentida pelo senhor, que é a mais compatível com apreservaçãodosseusinteresses.

O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenhodeculturativo, consigam permanecer humanos. Só o conseguem, porém,mediante um esforço inaudito de auto‐reconstrução no fluxo do seuprocessodedesfazimento.Nãotêmoutrasaída,entretanto,umavezquedacondição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portasestreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram;sejapelafugavoluntaristadosuicídio,queeramuitofreqüente,oudafuga,maisfreqüenteainda,queeratãotemeráriaporquequasesempreresultavamortal. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, erasuficientementeaudazpara,tendoumaoportunidade,fugir,sendoporissosupervigiado durante seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seudestino era morrer de estafa, que era sua morte natural. Uma vezdesgastado,podiaatéseralforriadoporimprestável,paraqueosenhornãotivessequealimentarumnegroinútil.

Umamorteprematuranumatentativadefugaeramelhor,quemsabe,queavidadoescravotrazidodetãolongeparacair

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noinfernodaexistênciamaispenosa.Sentindoqueéviolentado,sabendoqueéexplorado,eleresistecomolheépossível."Deixamdetrabalharbemsenãoforemconvenientementeespancados",dizumobservadoralemão,"ese desprezássemos a primeira iniqüidade a que os sujeitou, isto é, suaintroduçãoesubmissão forçada,devíamosdeconsideraremgrandeparteoscastigosquelhesimpõemosseussenhores"(Davatz1941:62‐3).Aíestáaracionalidadedoescravismo,tãoopostaàcondiçãohumanaqueumavezinstituídosósemantématravésdeumavigilânciaperpétuaedaviolênciaatrozdapuniçãopreventiva.

Apresadoaosquinzeanosemsuaterra,comosefosseumacaçaapanhadanuma armadilha, ele era arrastadopelo pombeiro ‐mercador africanodeescravos ‐ para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco,aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado apescoçocomoutrosnegros,numacordapuxadaatéoportoeo tumbeiro.Metidononavio,eradeitadonomeiodecemoutrosparaocupar,pormeiose meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando alimesmo, nomeioda fedentinamais hedionda. Escapando vivo à travessia,caíanooutromercado,noladodecá,ondeeraexaminadocomoumcavalomagro.Avaliadopelosdentes,pelagrossurados tornozelosedospunhos,era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terraadentro,aosenhordasminasoudosaçúcares,paraviverodestinoquelhehaviaprescritoacivilização:trabalhardezoitohoraspordia,todososdiasdoano.Nodomingo,podiacultivarumarocinha,devorarfamintoaparcaeporca raçãodebicho comque restaurava sua capacidadede trabalharnodiaseguinteatéaexaustão.

Semamordeninguém,semfamilia,semsexoquenãofosseamasturbação,semnenhuma identificaçãopossívelcomninguém‐seucapatazpodiaserumnegro,seuscompanheirosdeinfortúnio,inimigos‐,maltrapilhoesujo,feioefedido,perebentoeenfermo,semqualquergozoouorgulhodocorpo,vivia

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a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadassoltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigopreventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamavaatenção, recaíasobreeleumcastigoexemplar,na formademutilaçõesdededos,dofurodeseios,dequeimadurascomtição,detertodososdentesquebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentaschicotadas de uma vez, paramatar, ou cinqüenta chicotadas diárias, parasobreviver.Sefugiaeeraapanhado,podiasermarcadocomferroembrasa,tendoumtendãocortado,viverpeadocomumaboladeferro,serqueimadovivo,emdiasdeagonia,nabocadafornalhaou,deumavezsó,jogadonelaparaardercomoumgravetooleoso.

Nenhumpovoquepassassepor issocomosuarotinadevida,atravésdeséculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós,brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados.Todosnósbrasileirossomos,porigual,amãopossessaqueossupliciou.Adoçuramaisternaeacrueldademaisatrozaquiseconjugaramparafazerdenósagentesentidaesofridaquesomoseagenteinsensívelebrutal,quetambém somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravosseremossempreservosdamalignidadedestiladaeinstaladaemnós,tantopelosentimentodadorintencionalmenteproduzidaparadoermais,quantopeloexercíciodabrutalidadesobrehomens,sobremulheres,sobrecriançasconvertidasempastodenossafúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco acicatrizdetorturadorimpressanaalmaeprontaaexplodirnabrutalidaderacista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridadebrasileira predisposta a torturar, seviciar emachucar os pobres que lhescaem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos daráforças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedadesolidária.

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OSNEOBRASILEIROS

Graçasàauto‐identificaçãoprópriaenovaqueiamassumindoe,também,ao acesso a múltiplas inovações socioculturais e tecnológicas, ascomunidades neobrasileiras nascentes se capa citaram a dar dois passosevolutivos.Primeiro,odeabrangermaiornúmerodemembrosdoqueasaldeias indígenas, liberando parcelas crescentes deles das tarefas desubsistência para o exercício das funções especializadas. Segundo,incorporar todos eles numa só identidade étnica, estruturada como umsistemasocioeconômicointegradonaeconomiamundial.

Apesar de terem um alto grau de auto‐suficiência, dependiam de certosartigos importados, sobretudo de instrumentos de metal, sal, pólvora eoutros mais, que não podiam produzir. Já não viviam, portanto, comoindígenas encerrados sobre si mesmos e voltados fundamentalmente aoprovimento da subsistência. Ao contrário, mantinham vínculosmercantisexternosparaprover‐sedosreferidosbensemtrocadoseuprincipalartigode exportação, que fora, inicialmente, o pau‐de‐tinta, depois, o índioapresado como escravo e, afmal, a produção de alguma mercadoria deexportação.Produziressamercadoriapassouasersuarazãodeviver.

Por longo tempo, contudo, a população básica desses núcleos coloniaisneobrasileiros exibiria uma aparência muito mais indígena que negra eeuropéia, pelomodo comomoravam, pelo que comiam, por sua visão domundo e pelo idiomaque falavam. Tal indianidade era, semdúvida,maisaparente que real, porque o apelo às formas indígenas de adaptação ànatureza, a sobrevivência das antigas tradições, o próprio uso da línguaindígena, estavam postos, agora, a serviço de uma entidade nova, muitomais capaz de crescer e expandir‐se. Conforme assinalamos, enquanto oaumento da população indígena só conduzia à partição das tribos emmicroetniastendentesadiferenciar‐se,independentizar‐se

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e dispersar‐se, as novas comunidades constituíam unidades operativascapazesdecrescerconjugadamentenaformadeumamacroetnia.

O idiomatupi foia línguamaternadeusocorrentedessesneobrasileirosatémeadosdoséculoXVIII.Defato,otupi, inicialmente,seexpandiumaisqueoportuguêscomoalínguadacivilização(sobreaformaçãoeadifusãoda língua geral ver Cortesão 1958 e Holanda 1945). Com efeito, a línguageral,onheengatu,quesurgenoséculoXVIdoesforçodefalarotupicombocadeportuguês,sedifunderapidamentecomoafalaprincipaltantodosnúcleosneobrasileiroscomodosnúcleosmissionários.

Cumpre,primeiro,a funçãode línguadecomunicaçãodoseuropeuscomos Tupinambá de toda a costa brasileira, logo após o descobrimento.Depois, a de língua materna dos mamelucos da Bahia, Pernambuco,Maranhão e São Paulo. Mais tarde, se ex‐pande juntamente com apopulação, como língua corrente tanto das reduções e vilas que osmissionárioseoscolonos fundaramnovaleamazônico,comodosnúcleosgaúchosquesefixaramnoextremosul,frenteaospovoadoresespanhóis.Édenotarque,sendoa línguageralumavariantemuitopoucodiferenciadadoguarani faladonaquelesséculos, tantoemterritórioparaguaioondeseconverte em língua materna como no que viria a ser a Argentina e oUruguaidehoje,estamos,comosevê,,frenteaumaenormeárealingüísticatupi‐guarani.Seguramente,amaisampladasáreaslingüísticasamericanas.

Assimera jáantesdachegadadoeuropeu,umavezquetribosdotroncotupiocupavamquasetodoolitoralatlânticodoBrasilatualesubiam,terraadentro,pelosistemafluvialdoPrata,ocupandovastasregiõesdovaledoAmazonas.Estaárea lingüísticacorresponde,grossomodo,aos territóriosatuaisdoBrasil,doParaguaiedoUruguai.Essaéaqueosneobrasileirosfizeramsua,falandotupiparasecomunicarcomastribos

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quealiviviameaqueelessucederiamecologicamentenomesmoespaço.

A substituiçãoda língua geral pela portuguesa como línguamaternadosbrasileiros só se completaria no curso do século XVIII. Mas desde antesvinhaseefetuando,demaneiramaisrápidaeradicalondeaeconomiaeramais dinâmica e, em conseqüência, eramaior a concentraçãode escravosnegros e de povoadores portugueses; e, mais lentamente, nas áreaseconomicamente marginais, como a Amazônia e o extremo sul. No rioNegro,atéoséculoxx,sefalavaalínguageral,apesardequeosTupijamaistivessem chegado ao norte do Amazonas. Introduzido como línguacivilizadora pelos jesuítas, o nheengatu permaneceu, depois da expulsãodeles, como a fala comum da população brasileira local e subsistiu comolínguapredominanteaté1940(CensoNacional1940).

No Sul, a presença de uma vasta área guaranítica na bacia do Prata secomprova, de um lado, pela toponímia predominantemente guarani daszonasdeantigaocupaçãodoUruguaiedaArgentina,e,deoutrolado,pelapresençaatualdoguaranicomoalínguavernáculadoParaguai.

O mesmo processo de sucessão ocorre com a tecnologia produtiva.Inicialmentequasesóindígena,elavaisendosubstituída,comopassardosséculos, por técnicas européias, tanto mais rapidamente quanto maiscompletamenteseintegracadazonanaeconomiamercantilesemoderniza.Ainda assim, ao longo dos séculos, a tecnologia do Brasil rústico foi econtinuasendobasicamente indígena,noquedizrespeitoàsubsistência ‐baseadanocultivoenopreparodamandioca,domilho,daabóboraedasbatatas, e demuitas outras plantas ‐ bem como às técnicas indígenas decaçaedepesca.

Essa base tecnológica indígena, desde o primeiro momento, vem sendoenriquecidaporcontribuiçõeseuropéiasque,poucoapouco,aumentaramasuaprodutividade.Taleraocasodos

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instrumentosde ferro ‐machados, facas, facões, foices,enxadas,anzóis ‐;das armas de fogo para a caça e para a guerra; de aparelhosmecânicos,comoaprensa,queàsvezessubstituiuotipitiindígenatrançadodepalha;domonjolo,grandemorteirodeáguacomquesepilaomilho;dasmoendasdeespremercana;darodahidráulica,docarrodeboi,darodadooleiro,dotearcomposto,dodescaroçadordealgodãoe, ainda,dos tachosepanelasde metal, que substituíam o torrador de cerâmica para o tratamento dafarinhademandioca;e,porfim,dosanimaisdomésticos‐galinhas,porcos,bois,cavalos‐,utilizadosparaaalimentação,caça,transporteetração.

As casas dos novos núcleos se reduzem enormemente de dimensão emrelação às malocas indígenas porque, em lugar de acolherem famíliasextensas,abrigandocentenasdepessoas,agoraacolhemfamíliasmenoresouaescravaria.Melhora,porém,atécnicadeedificaçãocomoempregodataipa e do adobe cruna construçãodas casasmais humildes, e de tijolos,pedras,caletelhasparaassenhoriais.Simultaneamente,asresidênciasdagente mais rica se engalanam com um mobiliário mais elaborado,deslocandoasredesdedormirparadarlugaracatres;ascestastrançadas,substituídasporcanastrasdecouroouarcasdemadeira;aque,maistarde,se somariam mesas, bancos, armários e oratórios. A tudo isso seacrescentam, logo, as técnicas de preparo e de uso do sal e do sabão, daaguardente, das lâmpadas de azeite, dos couros curtidos, de novosremédios,desandáliasedechapéus.

Osprincipaiselementosaglutinadoresdosnovosnúcleossãoumcomandoadministrativo e político, representado localmente pelas autoridadesseculares e eclesiásticas, e uma gerência socioeconômica a cargo doempresariadodeprodutoresecomerciantes.Aunidadedecomandodessaestrutura do poder permitiu às comunidades nascentes crescerem e sediferenciarem, cada vez mais, num componente rural e outro urbano. Oprimeiro

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assentado principalmente nas fazendas, sob o mando de seusproprietários,mastrabalhadasporescravosnegrosocupadosnaproduçãomercantileporgentenascidana terra;estesúltimosdevotadosa funçõesadministrativas e de defesa e à produção de alimentos. O segundo eraconstituído pela parcela urbanizada da população, regida por capitães eprelados e ativado por trabalhadores braçais, artesãos, comerciantes,funcionários e sacerdotes. Sua função era administrar o empreendimentocolonial, conformá‐lo como possessão portuguesa, plasmá‐lo dentro doscânonesda cultura lusitana e totalmente fiel à Igreja católica apostólica eromana.

No conjunto dessa população colonial, destaca‐se prontamente umacamadasuperior,desligadadastarefasprodutivas,formadaportrêssetoresletrados, participantes de certos conteúdos eruditos da cultura lusitana.Taiseram:umaburocraciacolonialcomandadaporLisboa,queexerciaasfunçõesdegovernocivilemilitar;outrareligiosa,quecumpriaopapeldeaparatodeindoutrinaçãoecatequesedosíndiosedecontroleideológicodapopulação, sob a regência de Roma; e, finalmente, uma terceira, queviabilizava a economia de exportação, representada por agentes de casasfinanceiras e de armadores, atenta aos interesses e às ordens dos portoseuropeus importadores de artigos tropicais. Esses três setores,mais seuscorposdepessoalauxiliar, instaladosnosportos, constituíramocomandoda estrutura global. Compunha um componente urbano demontante tãoponderável quanto o das sociedades européias da época; formadas, elastambém, por populações majoritariamente rurais. Era, de fato, umasubestrutura da rede metropolitana européia, menos independente queseusdemaiscomponentes,porqueestavaintermediadaporLisboa.

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OSBRASILEIROS

O processo de formação dos povos americanos tem especificidades quedesafiam a explicação. Por que alguns deles, até mais pobres na etapacolonial,progrediramaceleradamente, integrando‐sede formadinâmicaeeficaz na revolução industrial, enquanto outros se atrasaram e ainda seesforçampormodernizar‐se?Evidentemente,ospovostransplantados,cujaidentidadeétnicajáveioperfeitamentedefinidadaEuropa,encontramemsua própria configuração facilidades de incorporar‐se a uma novacivilização surgidano seiode suasmatrizes.Outroéo casodepovosqueestavam se fazendo como uma configuração totalmente diferente de suasmatrizes, que enfrentava a tarefa de difundir os povos que reuniu, tãodiversos uns dos outros. É tarefa sua, inclusive, definir sua identidadeétnica,aqualnãopodeserademeroseuropeusdeultramar.

Outra argüição posta pela história é sobre a causa da uniformidadelingüística dos povos americanos. Tanto no norte comono sul, as línguasque se falam em imensos territórios, por milhões de pessoas, são asmesmas‐oinglês,oespanhol,oportuguês‐,quenemapresentamdialetos.Comonadadissoocorreuemnenhumoutrolugardaterra,cumpreindagarcomosedeuaqui.

O nome Brazil geralmente identificado com o pau‐de‐tinta é na verdademuitomaisantigo.Velhascartaselendasdomaroceanotraziamregistrosde uma ilha Brasil referida provavelmente por pescadores ibéricos queandavam à cata de bacalhau (cf. Gandia 1929). Mas ele foi quaseimediatamente referido à nova terra, ainda que o governo portuguêsquisesselhedarnomespios,quenãopegaram.Osmapasmaisantigosdacosta jáa registramcomo"brasileira"eos filhosda terra foram, também,desdelogochamados"brasileiros".Entretanto,ousodonome

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comogentílico,queumpovoatribuaasimesmo,sósurgiriamuitodepois.

O gentílico se implanta quando se torna necessário denominardiferencialmenteosprimeirosnúcleosneobrasileiros, formadossobretudode brasilíndios e afro‐brasileiros, quando começou a plasmar‐se aconfiguração histórico‐cultural nova, que envolveu seus componentes emummundonãoapenasdiferente,masopostoaodoíndio,aodoportuguêseaodonegro.

A consciência plenadessa oposição só seria alcançadamuitomais tarde,masapercepçãodosantagonismosediferenças sedádesdeasprimeirasdécadas.Revela‐senaprevençãodonativocomrelaçãoaometropolitanoe,comocontrapartida,nodesprezodestepelagentedaterra.Evidencia‐senaperplexidadedomissionárioque,emvezdefamíliascompostasdeacordocom o padrão europeu, depara no Brasil com verdadeiros criatórios demestiços, gerados pelo pai branco em suas múltiplas mulheres índias.Denota‐se, na inquietação do funcionário real que, dois séculos após adescoberta do Brasil, se pergunta se um dia chegará aquela multidãomestiça,seentendendoemtupi‐guarani,afalarportuguês.

É bem provável que o brasileiro comece a surgir e a reconhecer‐se a siprópriomaispelapercepçãodeestranhezaqueprovocavano lusitano,doque por sua identificação comomembro das comunidades socioculturaisnovas, porventura também porque desejoso de remarcar sua diferença esuperioridadefrenteaosindígenas.

Naquela busca de sua própria identidade, talvez até se desgostasse daidéia de não ser europeu, por considerar, ele também, como subalternotudo que era nativo ou negro.Mesmo o filho de pais brancos nascido noBrasil,mazombo,ocupandoemsuaprópriasociedadeumaposiçãoinferiorcom respeito aos que vinham da metrópole, se vexava muito da suacondiçãodefilhoda

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terra, recusando o tratamento de nativo e discriminando o brasilíndiomamelucoaoconsiderá‐locomoíndio.

O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, essebrasilíndiomestiçonacarneenoespírito,quenãopodendo identificar‐secomosque foramseusancestraisamericanos ‐queeledesprezava‐,nemcomoseuropeus‐queodesprezavam‐,esendoobjetodemofadosreinóisedosluso‐nativos,via‐secondenadoàpretensãodeseroquenãoeranemexistia:obrasileiro.

Atravésdessasoposiçõesedeumpersistenteesforçodeelaboraçãodesuaprópria imagem e consciência como correspondentes a uma entidadeétnico‐cultural nova, é que surge, pouco a pouco, e ganha corpo abrasilianidade.

É bem possível que ela só se tenha fixado quando a sociedade local seenriqueceu, com contribuiçõesmaciças dedescendentesdos contingentesafricanos, já totalmente desafricanizados pela mó aculturativa daescravidão.Essesmulatosouerambrasileirosounãoeramnada, jáqueaidentificação com o índio, com o africano ou com o brasilíndio eraimpossível.Alémdeajudarapropagaroportuguês como língua corrente,esses mulatos, somados aos mamelucos, formaram logo a maioria dapopulaçãoquepassaria,mesmocontrasuavontade,aservistaetidacomoagenterasileira.Aindaqueaespecializaçãoprodutivaecológico‐regional‐açúcar, gado, ouro, borracha etc. ‐ conduzisse a diferenciações locaisremarcadas,aquelacomunidadebásicaoriginalmenteluso‐tupisemantém,sempre dando uma linha de continuidade, que tanto destaca suaespecificidadeétnicacomoopõeasmatrizesdasquaissurgiuequematouaoconstituir‐se.

Aquela protocélula cultural, plasmada nas primeiras décadas, quando oelementoafricanoaindaestavaausenteouerararo,operou,daíemdiante,como o denominador comum do modo de vida popular dos futurosbrasileirosdetodasasregiões.

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Seu patrimônio básico estava constituído pelas técnicas milenares deadaptaçãodospovosTupiàflorestatropical,queseintegraramnaherançaculturaldomameluco.

De fato, os novos núcleos puderam brotar e crescer em condições tãoinviáveis, e emmeio tão diverso do europeu, porque aprenderam com oíndio a identificar, a denominar e a classificar e usar toda a naturezatropical, distinguindo as plantas úteis das venenosas, bem como asapropriadas à alimentação e as que serviam a outros fins. Aprenderam,igualmente, comeles, técnicaseficazmenteajustadasàscondições locaiseàsdiferentesestaçõesdoano,relativasaocultivoepreparaçãodevariadosprodutosde suas lavouras, à caçanamataeàpescanomar,nas lagoasenos rios. Com os índios aprenderam, ainda, a fabricar utensílios decerâmica,a trançaresteirasecestosparacompora tralhadomésticaedeserviço,atecerredesdedormiretipóiasparacarregarcrianças.Foi,comosíndios, também, que aprenderam a construir as casas mais simples,ajustadasaoclima,comoosmocambos,comosmateriaisdaterra,nasquaisviveriaagentecomum;afabricarcanoascomcascadeárvoreoucavadasafogo em um só tronco. Sobre essa base é que se acumulariam, depois, asherançastecnológicaseuropéiasque,modernizandoasociedadebrasileiranascente,permitiriammelhorintegrá‐lacomospovosdeseutempo.

Enfim,aatuarprodutivamentesobreumanaturezadiversadaeuropéiaeda africana, em condições climáticas também distintas, preenchendo osrequisitosnecessáriosà

sobrevivência nos trópicos. Essa herança técnico‐cultural em que seassentava a adaptação ecológica dos brasileiros era essencialmente amesma de todas as tribos agrícolas da floresta tropical. Tinha, porém,muitaspeculiaridadesqueafaziam

reconhecívelcomodeorigemtupi.Paratantoaquisesomamàlínguafaladapelos

neobrasileiros,onheengatu,queeraumavariantedotroncotupi;afórmulaecológica

específicadesobrevivêncianostrópicos,com

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basena agriculturadeles, que era também tupi; e a própria constituiçãogenéticadosnúcleosmamelucosgeradosporpaiseuropeusprincipalmentenasíndiasdacosta,queerampredominantementetupi;para,tudosomado,daraosbrasileirosoriginaisumaflagrantefisionomiatupi.

Com efeito, enquanto neotupis é que os núcleos mamelucos brasileirosopunham‐se às outras matrizes indígenas ‐ tratando‐as genericamentecomo tapuias ‐, desprezando‐as etnocentricamente como gente inferior,porquenãofalavamamesmalíngua,nãocomiamfarinhademandioca,nemse comportavam como era cabível a verdadeiros homens. Mesmo aetnologiabrasileira, sónopresenteséculo tornou‐secapazdedistinguiramultiplicidadedepovos, confundida sobaqueladesignaçãogenérica, edeapreciar suas verdadeiras características culturais. As pesquisas de CurtNimuendaju demonstraram o caráter especializado e relativamenteavançadodasculturasJê.

Nesse sentido, o Brasil é a realização derradeira e penosa dessas gentestupis,chegadasàcostaatlânticaumoudoisséculosantesdosportugueses,e que, desfeitas e transfiguradas, vieram dar no que somos: uns latinostardios de além‐mar, amorenados na fusão com brancos e com pretos,deculturados das tradições de suas matrizes ancestrais, mas carregandosobrevivênciasdelasqueajudamanoscontrastartantocomoslusitanos.

Como se vê, estava constituída jáuma fórmula extraordinariamente felizde adaptação do homem ao trópico como uma civilização vinculada aomundoportuguêsmasprofundamentediferenciadadele.SobreessamassadeneobrasileirosfeitospelatransfiguraçãodesuasmatrizeséquepesariaatarefadefazerBrasil.

Aassunçãodesuaprópriaidentidadepelosbrasileiros,comoderestoporqualquer outro povo, é um processo diversificado, longo e dramático.Nenhum índio criado na aldeia, creio eu, jamais virou um brasileiro, tãoirredutíveléaidentificaçãoétnica

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Já o filho da índia, gerado por um estranho, branco ou preto, seperguntariaquemera,sejánãoeraíndio,nemtampoucobrancooupreto.Seria ele o protobrasileiro, construído como um negativo feito de suaausênciadeetnicidade?Buscandoumaidentidadegrupalreconhecívelparadeixardeserninguém,eleseviuforçadoagerarsuaprópriaidentificação.

Onegroescravo,enculturadonumacomunidadeafricana,permanece,elemesmo, na sua identidade original até a morte. Posto no Brasil, estevesempre em busca de algum irmão da comunidade longínqua com quemconfraternizar.Nãoumcompanheiro,escravoouescrava,comoelepróprio,masalguémvindodesuagenteafricana,diferentedetodososqueviaaqui,aindaqueelesfossemnegrosescravos.

Sobrevivendo a todas as provações, no trânsito de negro boçal a negroladino,aoaprenderalínguanova,osnovosofíciosenovoshábitos,aquelenegroserefaziaprofundamente.Nãochegava,porém,aseralguém,porquenãoreduziajamaisseupróprioseràsimplesqualidadecomumdenegronaraçaedeescravizado.Seufilho,crioulo,nascidonaterranova,racialmentepuro ou mestiçado, este sim, sabendo‐se não‐africano como os negrosboçaisqueviachegando,nembranco,nemíndioeseusmestiços,sesentiadesafiadoasairdaninguendade,construindosua identidade.Seria,assim,eletambém,umprotobrasileiroporcarência.

O brasilíndio como o afro‐brasileiro existiam numa terra de ninguém,etnicamentefalando,eéapartirdessacarênciaessencial,paralivrar‐sedaninguendadedenão‐índios, não‐europeusenão‐negros, queeles se vêemforçadosacriarasuaprópriaidentidadeétnica:abrasileira.

Oportuguês,pormaisqueseidentificassecomaterranova,gostavadesetercomopartedagentemetropolitana,eraumreinoleestaerasuaúnicasuperioridade inegável. Seu filho, também, certamente, preferiria serportuguês.Terásidoassim,até

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queaquelesmamelucose índioseaquelesnegrosmestiçadosganhassementidade, como identificação coletiva para que o mazombo deixasse depermanecerlusitano.

Temos aqui duas instâncias. A do ser formado dentro de uma etnia,sempre irredutível por sua própria natureza, que amarga o destino doexilado, do desterrado, forçado a sobreviver no que sabia ser umacomunidadedeestranhos,estrangeiroeleaela,sozinhoelemesmo.Aoutra,doserigualmentedesgarrado,comocriadaterra,quenãocabia,porém,nasentidades étnicas aqui constituídas, repelido por elas como um estranho,vivendoàprocuradesuaidentidade.Oqueseabreparaeleéoespaçodaambigüidade.Sabendo‐seoutro,temdentrodesuaconsciênciadesefazerdenovo,acercando‐sedosseussimilaresoutros,comporcomelesumnóscoletivo viável. Muito esforço custaria definir essa entidade nova comohumana, se possível melhor que todas as outras. Só por esse tortuosocaminho deixariam de ser pessoas isoladas como ninguéns aos olhos detodos.

Trata‐se,emessência,deconstruirumarepresentaçãocoparticipadacomoumanovaentidadeétnicacomsuficienteconsistênciaculturalesocialparatorná‐la viável para seus membros e reconhecível por estranhos pelasingularidadedialetaldesuafalaeporoutrassingularidades.Precisava,porigual,sertambémsuficientementecoesanoplanoemocionalparasuportara animosidade inevitável de todos osmais dela excluídos e para integrarseusmembrosnumaentidadeunitária, apesardadiversidade internadosseusmembrosserfreqüentementemaiorquesuasdiferençascomrespeitoaoutrasetnias.

Quando é que, no Brasil, se pode falar de uma etnia nova, operativa?Quando é que surgem brasileiros, conscientes de si, senão orgulhosos deseupróprioser,aomenosresignadoscomele? Issosedáquandomilhõesdepessoaspassama se ver não comooriundasdos índiosde certa tribo,nemafricanos tribaisougenéricos,porquedaquilohaviamsaído, emuitomenoscomo

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portuguesesmetropolitanosoucrioulos,easesentirsoltasedesafiadasaconstruir‐se, a partir das rejeições que sofriam, com nova identidadeétnico‐nacional,adebrasileiros.

Ofato,porém,équeumarepresentaçãocoletivadessaidentificaçãotemdeexistir fora dos indivíduos, para que eles com ela se identifiquem e aassumam tão plausivelmente, que os mais os aceitem numa mesmaqualidade co‐participada. Numa primeira instância, essa função é oreconhecimento de peculiaridades próprias que tanto diferencia e o opõeaosqueanãopossuem,comooassemelhaeassociaaosqueportamigualpeculiaridade.Quando sediz: nossosnegros, a referência é a cordapele;quando se fala de mestiços, aponta‐se secundariamente para isso. Mas orelevanteéqueunseoutrossãobrasileiros,qualidadegeralquetranscendesuaspeculiaridades.

O surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que possa envolver eacolheragentevariadaqueaqui se juntou,passa tantopelaanulaçãodasidentificações étnicas de índios, africanos e europeus, como pelaindiferenciação entre as várias formas de mestiçagem, como os mulatos(negroscombrancos),caboclos(brancoscomíndios),oucuribocas(negroscomíndios).

Só por esse caminho, todos eles chegam a ser uma gente só, que sereconhece como igual em alguma coisa tão substancial que anula suasdiferençaseosopõeatodasasoutrasgentes.Dentrodonovoagrupamento,cadamembro,comopessoa,permanece inconfundível,maspassaa incluirsuapertençaacertaidentidadecoletiva.

OSEREACONSCIÊNCIA

Lamentavelmente, o processo de construção da etnia não deixa marcasreconhecíveissenãonosregistrosdeumgrupotãoexóticoeambíguocomoos letrados. Esses, por duas razões, além de poucos e raros, sãofanaticamenteidentificadossejacom

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aetniadocolonizadorportuguês,sejacomsuavarianteluso‐jesuítica.

Preciosos, nesse sentido, são os comentários já referidos de Nóbrega eAnchieta sobre João Ramalho. Mais expressivos ainda são os textos deGregório de Matos (1633‐96), um dos primeiros intelectuais brasileiros,que se pôs, na Bahia, a zombar gostosamente de toda a gente daquelacidadenovaeexóticaaindaemser.SobreanobrezadaBahia,elenosdiz:

"Acadacantoumgrandeconselheiro,Quenosquergovernaracabana,evinha,Nãosabemgovernarsuacozinha,Epodemgovernaromundointeiro(MatosGuerra1990:33)."

Sobreosmestiços:

"Queéfidalgonosossos,cremosnós,quenistoconsistiaomorbrasão[...]daquelesquecomiamseusavós(MatosGuerra1990:637)."

Mostrando uma Bahia já cheia de negros e mulatos, Gregório deixa umregistropreciosodecomoeleseramvistospelosbrancos:

"Nãosei,paraqueénascernesteBrasilempestadoumhomembranco,ehonradosemoutraraça.Terratãogrosseira,ecrassa,queaninguémsetemrespeitosalvoquemmostraalgumjeitodeserMulato(MatosGuerra1990:1164)."

OmundomultirracialdaBahiasurgeinteironessasestrofesdeGregório:

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"Xinga‐teonegro,obrancotepragueja;Eatinadatealeija:Eporteusemsaborepoucagraça,Ésfábuladolar,rizodapraça.Ah!Queaballa,queobraçotelevára,Venhasegundavezlevar‐teacara!(MatosGuerra1946:79)."

Devemos também a ele uma referência expressa aos mamelucos, aoretratarogovernadordaBahia:

"Pariuaseutempoumcuco,Ummonstro,digo,inhumano,Quenobicoeratocano,Enosanguemamaluco[...]Lheveio,semserrogadoUmtroçodefidalguia,Pedestrecavallaria,Todadebicofurado.[...]Antesdesepôrempé,Eantesdeestardevez,Nãofalavaportuguez,Masdiziaoseucobé.[...]Pagâmos,queéhomembranco,Racionalcomoumcalháo;MamalucoemquartográoEmalignodesdeotronco.[...](MatosGuerra1946:80‐3)."

SobreosfidalgosdaBahia,GregóriodeMatosseroladerir,mastambémsofreporqueosversostranscritosaseguirlhecustaramadeportaçãoparaAngola.

"Umcalçãodepindobaameiazorra;Camizadeurucu;matéodearara,Emlogardecotó,arcoetacoara;Penachodeguarás,emvezdegorra;Furadoobeiço,semtemerquemorraOpai,quelheenvaroucomumatitára;

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SendoamãeaqueapedralheaplicáraPorreprimir‐lheosangue,quenãocorra.Alarvesemrazão,brutosemfé:Semmaisleiqueadogosto;equandoerra,Defaunosetornouemabaeté.Nãoseicomoacabou,nememqueguerra:SóseiquedesteAdãodeMaçapé,Unsfidalgosprocedemdestaterra(MatosGuerra1946:148)."

OmelhortestemunhodaquelestempossedeveafreiVicentedoSalvador,naturaldaBahia.Foioprimeirointelectualassumidocomointeligênciadopovonascente, capazdeolharnossomundoeosmundosdosoutroscomolhos nossos, solidário com nossa gente, sem dúvidas sobre nossaidentidade, e até com a ponta de orgulho que corresponde a umaconsciência crítica. A quase todos os escribas de depois, até hoje em dia,faltam essas qualidades de amor à terra, que faz de nós um povodescabeçadoporfaltadeintelectualidadeprópria,nativista,queiluminariaavisãodonossopovoentreospovosdiantedonossodestino.

Doutor em Coimbra, frade franciscano, frei Vicente ajudou a construir oconventodeSantoAntônio,noRiode Janeiro,e chegouavigário‐geraldeSalvador, numa carreirade grandes êxitos. Em1627, deupor concluída asuaHistóriadoBrasildizendo:"Soude63anosejáétempodetratarsódeminhavidaenãodasalheias".Vivedezanosmaisnaesperançadeversuaobrapublicada,oquesósucederiaem1888,numaprimeiraediçãoparcialde Capistrano de Abreu, de excelente qualidade. Nisso Portugal jamaisfalhou. Calava todas as vozes que falassem do Brasil, principalmente aslouvandeiras.

Ofreideviaserhomemdeboacomicidade,pelomenosescreviacommuitobomhumor.ContaqueseupaifoisalvodeumnaufrágioquandovinhaparaoBrasilfugindodamadrasta.Do

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governador Mem de Sá, matador e fustigador de índios, revela que"morreu gozoso" de suas vitórias. De Duarte Coelho, fundador dePernambuco,únicodonatárioeficiente,contaque,voltandoàmetrópole,"lámorreu, desgostoso por haver el‐rei recebido com remoques e poucagraça".Acresce,ainda,àcrônicacolonial,anotíciadequeopoderosoTomédeSouza,queesperouanos, impaciente,a licençaparavoltaraoreino,aorecebê‐la,teriadito:"Verdade,équeeudesejavamuitoemecresciaaáguanabocaquandocuidavaemirparaPortugal.Masnãoseiqueéqueagorame seca a boca de tal modo que quero cuspir e não posso" (Salvador1982:18).

MasfreiVicentetambémfaz justiça.Porexemplo:deA1buquerque,alémdelouvaravalentiasemparalelo,acrescequefoi"sempremuitolimpodemãos",coisarara,louvávelatéhoje,entrenós.

Seujuízosobreoscolonosnãoélisonjeiro.Paraofrei,osportugueses"nãosabem povoar nem aproveitar as terras que conquistaram". E são muitoingratos"porqueosserviçosnoBrasilraramentesepagam".

Emcertospassos,nossofreichegaáqueixar‐se.Éoquefaz,porexemplo,reclamandoodescasodoreipornós.Tamanho,quepreferiusersenhordaGuinéquedoBrasil.

Dospovoadores,elenosdizaindaque,"pormaisarraigadosquenaterraestejamemais ricos que sejam, tudopretendem levar a Portugal e, se asfazendas e bens que possuem souberam falar, também lhe houveram deensinaradizercomoaospapagaios,aosquaisaprimeiracoisaqueensinamé:`papagaiorealparaPortugal',porquetudoqueremparalá;unseoutrosusam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para adesfrutaremeadeixaremdestruída" (Salvador1982:57‐8). Suahistória éemgrandeparteumacrônicatestemunhal.Alémdevivermeioséculocomolhosdevertudooquesucedia

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a seu redor, ouviu numerosos velhos que podiam contar de experiênciaprópriaoquesucedeuemerasanteriores.

Gaba nossos rios, suas matas de cedros, vinháticos e outros paus,tantíssimos, que dão cipós de atar cercas e casas, estopas de calafetar,caibrosdeentelhare imensosmadeirosescavadospelos índiospara fazercanoas de dez palmos de boca que comportavam vinte remeiros de cadalado.

Ainda que sucinto, nosso frei se derrama também na apresentação dasresinasmilagrosas,dosbálsamosmedicinais,dosóleoscheirosos.Encanta‐secomofrutodeárvorespossantes,comoamassaranduba,maisaindacomo jenipapo, cujo suco, tão aguado, tingia os índios de negro por semanas.Agrada‐se imensamente dos cajus e dos ananases. Os feijões sãoincomparavelmentemelhoresqueosdoReino.Atédasensitivadánotícia,com sua capacidade de encolher‐se ao menor toque. No capítulo dosmantimentos,gaba,principalmente,amandiocaeoaipim.

Falando dos bichos, nos apresenta os porcos do mato, capivaras, antas,tamanduás comedores de formigas, onças capazes de derrubar e comertouros, raposas, as variedades de macacos, e fala até de cobras. Relatainclusiveomauhábitodeumadelas.ÉocasodeumadonadePernambuco"que estando parida, lhe viera algumas noites uma cobra mamar em ospeitos, o que fazia com tanta brandura que ela cuidava ser a criança e,depois que conheceu o engano, o disse aomarido, o qual a espreitou nanoiteseguinteeamatou"(Salvador1982:72).

Saiu daí para os bichos‐de‐pé, piolhos e percevejos. Às vezes exagera,quandofalaporexemplodehomensmarinhosqueforamvistossaird'águaatrás de índios para comer seus olhos e narizes. Fala, copiosamente, dospeixes, mexilhões, caranguejos, e sobretudo dos goiamuns azuis que, àsprimeiraschuvas,saemdesuastocasevãometendo‐senascasas.

Suadescriçãodos índiosé sumária,maschegaanotarque"nemtêmreiquelhadêeaquemobedeçam,senãoéumcapitão,

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maisparaaguerraqueperapaz"(Salvador1982:78).Comenta,também,asaudação lacrimosa comqueos índiosTupi recebiamvisitantes queridos,inclusive os portugueses que falavam sua língua. Os recebiam chorandomuito e lamentando "[...] a pouca ventura que seus avós e os maisantepassadostiveramquenãoalcançaramgentetãovalerosacomosãoosportugueses,quesãosenhoresdetodasascoisasboasquetrazemàterra,dequeelesdantescareciameagoraastêmcomtantaabundância,comosãomachados,foices,anzóis,facas,tesouras,espelhos,penteseroupas,porqueantigamente roçavam osmatos com cunhas de pedra e gastavammuitosdiasemcortarumaárvore,pescavamcomunsespinhos,faziamocabeloeasunhas compedrasagudas, equandosequeriamenfeitar faziamdeumalguidar de água espelho, e que desta maneira viviam mui trabalhados,porém agora fazem suas lavouras e todas as mais coisas com muitodescanso,peloqueosdevemteremmuitaestima(Salvador1982:79)."

Umanotíciaimportanteéadequeumprisioneirodeguerra,destinadoasercomido,valiaummachadoouumafoicederesgatecomosportugueses.Comoessesbenssetornaramrapidamenteindispensáveis,édesesuporaenormequantidadede índiosque foramsalvosassimdomoquémparaseperderemnocativeiro.

Malicioso, o frei se consente até em falarmal deAnchieta, relatandoumepisódio vexatório nojustiçamento de um calvinista francês. Ele nos diz:"Vendoseroalgozpoucodestroemseuofício,equesedetinhaemdaramorte ao réu e com isso o angustiava e punha em perigo de renegar averdade que já tinha confessada, repreendeu o algoz e o industriou peraquefizessecomprestezaoseuofício".Eacrescenta,judicioso:"Casoscomoestesãomaisperaadmirarqueperaimitar"(Salvador1982:167).

Nossofreiantecipoudeséculosumsentimentodebrasilidadequesóiriaamadurecerexpressamentecomoscompanheiros

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deTiradentes,quefalamdebrasileiroscomodesignaçãopolíticadopovoqueelesqueriamalçar.

Também o movimento nativista do século passado, identificado comoindianismo,foiumaassunçãodaqualidadedenativosnãoportuguesesqueseachavammuitomelhoresdoqueoslusitanos.Muitosefaladeidentidadeem termos psicologísticos e filosóficos que pouco acrescentam ao fatoconcretoevisível:éosurgimentodobrasileiro,construídoporsimesmo,jáplenamente ciente de que era uma gente nova e única, se não hostil pelomenosdesconfiadadetodasasoutras.

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3BAGOSEVENTRES

DESINDIANIZAÇÃO

Nãocontandocomsériesestatísticasconfiáveisparaopassado‐senãoastemosnemnopresente‐, faremosusoaqui,vastamente,doqueeuchamodemografiahipotética.Valedizer,sérieshistóricascompostascombasenospoucosdadosconcretosecompletadascomoquepareceverossímil.

Édetodoprovávelquealcançasse,oupoucoexcedesse,acincomilhõesototaldapopulaçãoindígenabrasileiraquandodainvasão.Seria,emtodoocaso, muito maior do que supõem as avaliações correntes, conformedemonstramestudosdedemografiahistórica(Borah1962,1964;Dobbynse Thompson 1966). Baseados em análises da documentação disponível,realizadasà luzdenovoscritérios,essesestudosmultiplicaramosantigoscálculosdapopulaçãoindígenaoriginaldasAméricas.

Havia,tantodoladoportuguêscomodoespanhol,umatendênciaevidentedosestudiososparaminimizarapopulaçãoindígenaoriginal.Sejaporcrerquehouvesseexageronasfontesprimáriasdoscronistas,queefetivamenteviramos índios com seupróprios olhos, o que era umabsurdo. Seja pelatendênciaprevalecentepormuitotempo‐eaindahojeperceptível–de

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dignificaropapeldosconquistadoresecolonizadores,ocultandoopesodoseu impacto genocida sobre as populações americanas, o que é maisabsurdo ainda. Não existem, ainda, estudos elaborados à luz dessa novaperspectiva para reavaliar a população indígena original do territóriobrasileiro,paraguaioedoriodaPrata.Maselaseria,certamente,superioraoscálculosindiretosaparentementemaisbemfundamentados,comoodeJulian Steward (1949:666), que a estimou em 1 milhão e pouco; Lugon(1968), que elevou estenúmero a3milhões eHemming (1978:487‐501),queoreduziua2,4milhões.

O número de referência que utilizamos para toda a área (5 milhões)deverá, por conseguinte, ser visto com reserva até que contemos comestudos diretos sobre o tema, com base na documentação disponível, deacordo com a nova metodologia da demografia histórica. Trata‐se, semdúvida, de umnúmero elevado,mesmo em comparação coma populaçãoportuguesade1500,quepoucoexcediaa1milhãodehabitantes.

Entretanto,nossaavaliaçãodapopulação indígenaoriginaldoBrasilnãodeve ser exagerada, porque ela é coerente com as fontes primárias e, nahora de fixá‐la, levamos em conta as taxas da depopulação tribal que sesegue ao primeiro século de contato. Com efeito, os numerosos casosconcretos que conhecemos diretamente de depopulação resultante dosprimeiros contatos (Ribeiro 1970:261) confirmam as taxas dos estudosdemográficos referidos, que é da ordem de 25 por um. Esse cálculo sebaseia, fundamentalmente, no desmoronamento da população mexicanalogoapósaconquista,quecaiude25,3milhõespara1milhãoentre1519e1605 (Cook e Borah 1957). Isso significa que os 100 mil indígenasbrasileiros que alcançarama primeirametadedo presente século seriam,originalmente,aomenos2,5milhões.Como,entretanto,consideramos,porumlado,umaáreaqueincluiosterritóriosdoParaguaiedoUruguai,muitopopulosos

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e,poroutro lado,umperíododequatro séculos,nocursodoqual foramextintosmuitosgrupos indígenas,édesesuporqueapopulação indígenaoriginaltenhasido,defato,muitomaior,provavelmenteodobro,oquenoslevaàcifracomquetrabalhamos.

Seguindoesseraciocínio,supomosqueaqueles5milhõesdeindígenasde1500 se teriam reduzido a 4milhões um século depois, com a dizimaçãopelas epidemias das populações do litoral atlântico, que sofreram oprimeiro impacto da civilização pela contaminação das tribos do interiorcomaspestes trazidaspeloeuropeuepelaguerra.Nosegundoséculo,de1600a1700,prossegueadepopulaçãoprovocadapelas epidemias epelodesgastenotrabalhoescravo,bemcomooextermínionaguerra,reduzindo‐seapopulaçãoindígenade4para2milhões.

Assim foi, então, o desgaste das tribos isoladas qué viviam nas áreas decolonização recente e, sobretudo, na região Sul, onde os mamelucospaulistas liquidaram as enormes concentrações de índios Guarani dasmissões jesuíticas. É provável que naquele século se tenham escravizadomaisde300mil índios, levadosparaSãoPauloevendidosnaBahiaeemPernambuco(Simonsen1937).Essacapturadeescravossefazia,também,por intermédio de muitíssimos índios cativos, aliciados nas bandeiras. Aproporção de índios para "brancos" nas bandeiras foi de setecentos paraduzentos na de Cristóvão de Barros e de novecentos para 150 na deAntônio Dias Adorno, em 1574; e de mil para duzentos na bandeira deRaposoTavaresàsreduçõesjesuíticasemItatins(1648).OpróprioNassaumandoucontraPalmares,em1645,umaexpediçãocomsetecentosíndiosecemmulatos para trezentos soldados holandeses, que aliás fracassou. OsPalmaresforamdestruídosmeioséculodepoisporhomensdeJorgeVelho,que seguiu do Piauí para combater, primeiro, os índios Janduí (1688) e,depois,Palmares(1694)comumatropade1300índiospara150"brancos".Foitambémdeíndiosogrossodasforças

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comqueosportugueseslutaramcontraosfrancesesnaGuanabarae,maistarde,noMaranhão,assimcomocontraosholandeses,naParaíba.

No terceiro século, de 1700 a 1800, se teria gasto ‐ conforme a bizarraexpressão dos cronistas coloniais ‐ outro milhão, principalmente noMaranhão, no Pará e no Amazonas, reduzindo‐se o montante de índiosisolados de 2 para 1 milhão. Esse último milhão vem minguando, desdeentão, com a ocupação de vastas áreas florestais, paulatinamenteexploradas, emMinasGerais, SãoPaulo,ParanáeSantaCatarina, e comaaberturadeamplasfrentesdeexpansãonoBrasilcentralenaAmazônia.

Em cada século e em cada região, tribos indígenas virgens de contato eindenes de contágio foram experimentando, sucessivamente, os impactosdasprincipaiscompulsõesepestesdacivilização,esofreramperdasemseumontante demográfico de quejamais se recuperaram. O efeito dizimadordasenfermidadesdesconhecidas,somadoaoengajamentocompulsóriodaforça de trabalho e ao da deculturação, conduziram a maior parte dosgrupos indígenasàcompletaextinção.Emmuitoscasos,porém,sobreviveumremanescenteque,viaderegra,correspondeàquelaproporçãodeumpor25dapopulaçãooriginal.Apartirdessemínirrroéquevoltouacrescerlentissimamente.

Conformesevê,apopulaçãooriginaldoBrasilfoidrasticamentereduzidaporumgenocídiodeprojeçõesespantosas,quesedeuatravésdaguerradeextermínio, do desgaste no trabalho escravo e da virulência das novasenfermidadesqueosachacaram.Aele se seguiuumetnocídio igualmentedizimador,queatuouatravésdaesmoralizaçãopelacatequese;dapressãodosfazendeirosqueiamseapropriandodesuasterras;dofracassodesuaspróprias tentativas de encontrar um lugar e um papel no mundo dos"brancos". Ao genocídio e ao etnocídio se somam guerras de extermínio,autorizadaspelaCoroacontraíndiosconsiderados

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hostis,comoosdovaledorioDoceedoItajaí.Desalojaramedestruíramgrande número deles. Apesar de tudo, espantosamente, sobreviveramalgumas tribos indígenas ilhadas na massa crescente da população iuralbrasileira. Esses são os indígenas que se integram à sociedade nacional,comoparcelaremanescentedapopulaçãooriginal.

Já assinalamos que essa integração não corresponde a uma assimilaçãoqueosconvertaemmembrosindiferenciadosdaetniabrasileira.Significa,tão‐somente,a fixaçãodeummodusvivendiprecaríssimoatravésdoqualtransitam da condição de índios específicos, com sua raça e culturapeculiares, à de índios genéricos. Esses, ainda que crescentementemestiçadoseaculturados,permanecemsempre"indígenas"naqualidadedealternosdos"brasileiros",porquesevêemesesofremcomoíndioseassimtambémsãovistosetratadospelagentecomqueestãoemcontato.

Existe uma copiosíssima documentação, que vem do primeiro século,sobre esses índios genéricos concentrados em suas aldeias, algumasautônomas, outras administradas por missões religiosas ou por serviçosoficiaisdeproteção.Nelessobrevivempordécadas,ouporséculos,sempreinassimilados, os remanescentes da hecatombe que sofreram com oimpacto da civilização. Sempre irredutivelmente indígenas frente aosbrasileiros.Nãoencontranenhumabasenos fatos,conformesevê,a idéiadequeosíndios,atravésdeprocessosdeaculturação,amadureçamparaacivilização.

A historieta clássica, tão querida dos historiadores, segundo a qual osíndiosforamamadurecendoparaacivilizaçãodeformaquecadaaldeiafoise convertendo em vila, é absolutamente inautêntica. O estudo querealizamosparaaunresco, esperançososdeapresentaroBrasil comoumpaísporexcelênciaassimilacionista,demonstrouprecisamenteocontrário.O índio é irredutível em sua identificação étnica, tal como ocorre com ocigano

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oucomojudeu.Maisperseguiçã0sóosafundamaisconvictamentedentrode si mesmos. Tal não conseguem os serviços oficiais de proteção,geralmente entregues a missionários, e também não conseguem essesúltimos.Povoshá,comoosBororo,porexemplo,commaisdeséculoemeiode vida catequética, que permanecem Bororo, pouco alterados pela açãomissionária; ou os Guarani, com mais de quatro séculos de contato edominação.

Algumêxitoalcançammissõesmuitoatrasadas,comoossalesianosdorioNegro, que, empenhados em ocidentalizar e catequizar os índios daquelaárea, juntaram as crianças de tribos diferentes nas mesmas escolas,preenchendoassimacondiçãoessencialparadesindianizarosíndios,queéa ruptura das relações da velha transmissão de pais a filhos. O quealcançaram não foram italianinhos,masmoças e rapazcsmarginalizados,quenãosabiamseríndiosnemcivilizados,elávivememviltristeza.

A incorporação de indígenas à população brasileira só se faz no planobiológico e mediante o processo, tantas vezes referido, de gestação dosmamelucos, filhos do dominador commulheres desgarradas de sua tribo,que se identificavamcomopai e se somavamaogrupopaterno.Poressavia, através dos séculos, a mulher indígena veio plasmando o povobrasileiro emseupapeldeprincipal geratriz étnica.Numa sociedade comcarência principalmente de mulheres, os índios e negros aliciados comoescravosraramenteconseguemumacompanheira.Saint‐Hilaire,falandodaregião do Rio Grande do Sul, observa que os índios escravizados "seinutilizamparaopovoamentodosolo,vistocomolongedesuasterrasnãoencontrammulherescomquempudessemcasar"(Saint‐Hilaire1939).

Na primeira década deste século, a situação indígena brasileira eraaltamenteconflitiva.Missionáriosseapropriavamdasterrasdosíndiosquecatequizavameasestavamloteando,comgranderevoltadosíndios.Vastasáreas entregues à colonização estrangeira, principalmente alemã, viviamconvulsionadaspor

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bugreiros pagos pelos colonos para limpar suas terras do incômodo"invasor".OprópriodiretordoMuseuPaulistaeeminentecientistapediuaogovernoqueoptasseentreaselvageriaeacivilização.Seseupropósitoeracivilizaropaís,cumpriaabrirguerrasdeextermíniocomtropasoficiaispararesolveroproblema.

Nessa situação é que se levanta o principal dos humanistas brasileiros,Cândido Rondon. Tendo muito mais experiência de trato com os índios,porquehaviaestendidomilharesdequilômetrosde linhas telegráficasemterritórioindígenasementraremconflitocomeles,Rondonexigiadopaísrespeito à sua população original. Seu apelo foi atendido não só pelogovernomaspordezenasdeoficiaisdasforçasarmadaseprofissionaisdetoda a sorte, que decidiram dedicar suas vidas à salvação dos povosindígenas.

FundadonosprincípiosdopositivismodeAugustoComte,massuperando‐os largamente, Rondon e seus companheiros estabeleceram um corpo dediretrizesquepordécadasorientaramumapolíticaindigenistaoficial.Elesafirmavam que o objetivo não podia ser exterminar ou transformar oindígena,masfazerdeleumíndiomelhor,dando‐lheacessoaferramentasea orientação adequada. O que cumpria fazer em essência era asseguraraquelemínimo indispensávela cadapovo indígena,queéodireitode seríndio,medianteagarantiadeumterritórioondepossamviversossegados,asalvodeataques,ereconstituirsuavidaeseuscostumes.Anecessidadede abrir novas frentes de colonização tinha que ser precedida de umcuidadosotrabalhojuntoaosíndios.

AinovaçãoprincipaldeRondonfoi,porém,oestabelecimentopioneirodoprincípio, só hoje reconhecido internacionalmente, do direito à diferença.Em lugar da fofa proclamação da igualdade de todos os cidadãos, osrondonianos diziam que, não sendo iguais, essa igualdade só servia paraentregarosíndiosaseusperseguidores.Oquecumpriaerafixarasnormasdeumdireitocompensatório,

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peloqualosíndiostinhamosmesmosdireitosqueosbrasileiros‐desereleitor,defazerserviçomilitar,porexemplo‐,masessesdireitosnãolhespodiamsercobradoscomodeveres.

CurtNimuendaju,umdosmaioresetnólogoseconhecedoresdosíndiosdoBrasil,traçaoperfildoíndiocivilizado:

"[...] mais do que em qualquer outra parte do Brasil por mim conhecida,achei no Içana eUaupés as relações entre índios e civilizados ‐ os brancoscomoalisediz‐irremediavelmenteestragadas:umabismoseabriuentreosdoiselementos,àprimeiravista, apenasperceptível, encobertopelovéudeummodusvivendiarranjadopelasduaspartes,masmostrando‐se logoemtoda sua profundidade intransponível, assim que se trata de conquistar aconfiançadosíndiosedepenetrarnoíntimodapsiquedeles.Claroestáqueamaioriadoscivilizados,nãocompreendendonemprecisandodenadadisto,nunca chega ao conhecimento desse abismo, dando‐se pormuito satisfeitacomomodusvivendieoapresentandomuitasvezesorgulhosamentecomoresultadodosseusprocessoscivilizadores("ViagemaorioNegro",relatórioapresentado à Inspetoria do Amazonas do Serviço de Proteção aos Índios,datadodesetembrode1927inNimuendaju1950:173)."

Nosidosde1954,trabalhandonaOrganizaçãoInternacionaldoTrabalho(OIT) para estabelecer os direitos dos povos indígenas, o pensamentorondoniano ali apresentado impressionou tanto a dois intelectuaisindianos, que eles pediram intérprete e almoçaram comigo, querendonotíciasdessegrandebrasileiroquedesconheciam.Eulhesmostreiquenãohavia nenhuma relação entre Rondon e Gandhi. Eram tão‐só doishumanismos paralelos. É curioso recordar que eles quiseram saber se eueraum juramentado.A custoentendi suapergunta,quandodisseramqueeles próprios eram juramentados da causa dos povos minoritários eoprimidos da Índia. Ou seja, prometeram que nos dez anos posteriores àsua formaturauniversitária sódedicariamseupensamentoe suasmãosaessacausa.

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OINCREMENTOPRODIGIOSO

As grandes façanhas históricas brasileiras foram a conquista de umterritório continental e a construçãodeumapopulaçãoqueultrapassaos150 milhões. Nenhum desses feitos foi gratuito. Portugal, que viveu milanosnaobsessãodefronteira,temerosodeserengolidopelaEspanha,aqui,desdeaprimeirahora,tratoudemarcarealargarasbasesdesuaspossesterritoriais. Plantou fortalezas a mil léguas de qualquer outro povoador.Mantevepelaguena,porséculos,pontosdefixaçãodesuaslindes,comoaColôniadoSacramento.

Aconstruçãodapopulaçãosenãosefezcomoumpropósitodeliberado,foiresultantedeumapolíticademográficaespontaneístadequeresultoutantoadepopulaçãodemilhõesde trabalhadorescomoo incrementodeoutrosmilhões.

No plano genésico, a população brasileira se constrói simultaneamentepela dizimaçãomais atroz e pelo incrementomais prodigioso. Utilizandolargamente a imensa disponibilidade de ventres de mulheres indígenasescravizadas, o incremento da população mestiça foi nada menos quemiraculoso.

Em1584,opadreJosédeAnchietaavaliavaapopulaçãodoBrasilem57mil almas, sendo 25 mil brancos da terra quer dizer, principalmentemestiços de portugueses com índias ‐, 18 mil índios e 14 mil negros. Onúmeroseriamuitomaiorseaavaliaçãose referisseàáreaocupadahojepelo Brasil. E, sobretudo, se incluísse os índios que, embora vivendoautonomamente, já estavam em interação permanente com a sociedadenascente,avaliáveisempelomenos200mil.Anchieta,porém,sósereferiaàpopulaçãoincorporadaaoempreendimentocolonial,queocuparia,naquelaépoca,nãomaisde15milquilômetrosquadrados.

Essa população estava assentada, fundamentalmente, no Nordeste,ocupadanaeconomiaaçucareiraemembriãoenaexploração

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do pau‐de‐tinta. Haveria, então, catorze vilas, sendo as principais delasOlinda, com setecentos habitantes; a Bahia e o Rio de Janeiro, comquinhentos; e as restantes, com uma média de quatrocentos, o querepresentava um importante componente urbano articulador doempreendimentocolonial.

Com base na avaliação de Anchieta e em dados de outros cronistascontemporâneos,sepodeadmitirque,em1600,apopulaçãoneobrasileirafosse de 200 mil habitantes (Capistrano de Abreu 1929:123). Isto é, apopulaçãodiretamente incorporada ao empreendimento colonial, somadaaos grupos indígenas que estavam em interação direta e pacífica com oscolonizadoresequerepresentariam120mil.Quantoaoscontingentesnãoindígenas,teriamatingidocercade50milosbrancospordefinição,quasetodos mestiçados; e 30 mil os negros escravos. O contingente urbanochegariade6a8milhabitantes,pelocrescimentodasvilas,registradoporAnchieta, assim como a criação de novos núcleos que estruturariam aocupaçãodeumaáreade30milquilômetrosquadrados.

Celso Furtado (1959) calcula que funcionariam, então, 120 engenhos deaçúcar, e queo rebanhobovino atingiria, já, 680mil cabeças.Aproduçãoanualdeaçúcarteriaalcançado2milhõesdearrobas,cujovalorseriade2,5milhõesdelibrasesterlinasdaqueletempo.Comoeleassinala,umarendatãoextraordinariamentealtafaziadoempreendimentocolonialportuguêsaempresamaisprósperadaépoca.E,por issomesmo,amaiscobiçadaporholandesesefranceses,quepassariam,desdeentão,adisputarsuaposse.

O balanço demográflco deste primeiro século de ocupação nos dá, comoprincipal resultado, a dizimação de 1 milhão de índios, mortosprincipalmentepelas epidemiasque grassavamna costa, atingindo logoointerior;nocativeirodasmissõesenasguerras.Simultaneamente,oíndioesuascriasmestiçascrescemcomoumavirulência.

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Em1700,apopulaçãoneobrasileirateriaatingidouns500milhabitantes,dos quais 200 mil representados por indígenas integrados ao sistemacolonial, e havia dobrado sua áreade ocupação.Os negros seriam, talvez,150 mil, concentrados principalmente nos engenhos de açúcar, mastambémnaszonasrecentementeabertasàmineração.Umaparceladelesserefugiava em quilombos, para além das fronteiras da civilização, masPalmares,oprincipalnúcleo,quechegaraareunir30milnegros,acabavade ser destruído. A população "branca", que seria de 150mil habitantes,formadamajoritariamentepormestiçosdepaiseuropeusemãesindígenas,falava principalmente o nheengatu como língua materna. Contrastacruamente com esta parcela de brasilíndios um número ponderável demulatosoriginadospordiversoscruzamentos‐obandaforra(brancocomnegro), o salta‐atrás (mameluco com negro), o terceirão (recruzado dobrancocomomulato)‐que,sendomuitoaculturadosefalandoportuguês,ajudariam daí em diante o colonizador a impor‐se culturalmente aosmamelucos.

Ano Brancos Escravos Índios“integrados”

Índiosisolados

Total

1500 0 0 0 5.000.000 5.000.000

1600 50.000 30.000 120.000 4.000.000 4.200.000

1700 150.000 150.000 200.000 2.000.000 2.500.000

1800 2.000.000 1.500.000 500.000 1.000.000 5.000.000

TabelaICrescimentodapopulaçãointegradanoempreendimentocolonialediminuiçãodoscontingentesaboríginesautônomos.

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A economia estava concentrada fundamentalmente na produçãoaçucareira, que liderava as exportações; na criação de gado, que teriaalcançado um rebanho de 1, 5 milhão de cabeças e assumira certaimportânciacomofontedeexportaçãodecouros;

nas lavouras de tabaco, que também se converteriam em um importanteartigodeexportação,principalmenteparacustearaimportaçãodeescravosafricanos. A produção de ouro dos veios recém‐descobertos surgia comextraordinário vigor e estava destinada a constituir‐se, nas décadasseguintes,nosetormaisdinâmicodaeconomia.Como tal, atrairiaparaaszonas auríferas do centro do país grandes contingentes populacionais debrancos, vindosdo reinoedasáreasdeantigaocupação, e, sobretudo,denegrostransladadosdosengenhosoudiretamenteimportadosdaÁfrica.

Comefeito,amineraçãodeouro(1701‐80)e,depois,adediamante(1740‐1828)vieramalterarsubstancialmenteoaspectoruraledesarticuladodosprimeiros núcleos coloniais. Sua primeira conseqüência foi atrairrapidamenteumanovapopulação‐maisde300milpessoas,nossessentaprimeiros anos ‐ para uma área do interior, anteriormente inexplorada,incorporandoosterritóriosdeMinasGerais,GoiáseMatoGrossoàvidaeàeconomiadacolônia.

Para avaliar a importância da atividade mineradora, é suficienteconsiderar que teria produzido, em ouro, cerca de mil toneladas e, emdiamante,3milhõesdequilates,cujovalortotalcorrespondea200milhõesde libras esterlinas, o equivalente a mais da metade das exportações demetaispreciososdasAméricas.

AregiãoauríferafoiobjetodamaiordisputaquesedeunoBrasil.Deumlado, os paulistas, que haviam feito a descoberta e reivindicavam oprivilégio de sua exploração. De outro lado, os baianos, que, havendochegadoantesàregiãocomseusrebanhosdegado,tinhamtidoocuidadoderegistrarsuaspropriedades

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territoriais‐umcertoGuedes,tabeliãodaBahia,registrouparasimesmoumfazendãoqueiadaBahiaatéomeiodeMinasGerais.Aguerraentreosdisputantesagravouenormementeaviolência,comtraições,assassinatoseroubos.Umpaimandouenforcarseufilho;umfilho largouseupaidentrodeumesquifemaciçonoriodasVelhas,rezandoparaqueelechegasseaomareaPortugal.

Masseuimpactofoimuitomaior.ORiodeJaneironasceecrescecomooporto das minas. O Rio Grande do Sul e até a Argentina, provedores demulas,seatamaMinas,bemcomoopatronatoeboapartedaescravariadoNordeste.TudoissofezdeMinasonóqueatouoBrasilefezdeleumacoisasó.

Asterraseramtãoricasemouroetamanhaeraasofreguidãoporalcançá‐loqueossenhoresvenderamseusescravosasimesmosquandoesses,alémdaproduçãoordinária,produziamexcedentes.Assiméquesurgiramalgunsbizarros nababos negros. Espantosa também foi a fome de gente quecompravaumagalinhaporseupesoemouro.

Décadas de política habilidosa de delações e subornos tranqüilizaram,afinal, a área, aquietando o gentiomineiro. Não antes que quase tudo seperdesseparaPortugalnumcomplôentreosmineiroseogovernonorte‐americano, regido pelos mais inverossímeis subversivos, poetas,magistrados, militares, curas etc. O complô acabou sendo abafado,enforcando e esquartejando o herói maior para escarmentar o povo edeixandoosoutrosconspiradoresapodreceremexiladosnaÁfrica.

Ali, em Ouro Preto e arredores, quando o ouro já não era tanto, se viuflorescer a mais alta expressão da civilização brasileira. Com figurasextraordinárias de artistas, comoAleijadinho; de poetas, comoGonzaga eCláudioManoeldaCosta.Releve,masnão resisto à tentaçãodedar à sualeituraocapítulo"Cal"demeuromancedamineiridade:Migo.

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VendoestasMinastãomofinas,quemdiria,desatinado,queescarmentado,somosopovodestinado?Somosotiôiopovodosheróisassinalados.Elesaíestão, há séculos, a nos cobrar amor à liberdade. Filipe grita, Joaquim Joséresponde:‐Libertasquaeseratamen.‐Liberdade,aquieagora.Já!AFilipe,esquartejado,comoéqueoacabaram?Oscavalosmaisfortesdosbrasis lá estavam: mordendo os freios, escumando, escoiceando na praçaempedrada. Eram quatro. Um cavalo foi atrelado no seu braço esquerdo.Outrocavalo,napernadireita.O terceirocavalo,nobraçodireito.Oúltimocavalo, na perna esquerda. Cada cavalo, montado por um tropeiroencouraçado.Açoitados, esporeados, os quatro cavalos dispararam, cada qual para seuIado.Mas lá ficaram parados, tirando faíscas com as ferraduras no pedral,atados que estavam na carne rija de Filipe. Chicoteados, esporeados desangrar, afinal, com Filipe estraçalhado, partiu libertado o cavalo do braçodireito, levandocomobraçoumpedaçodopeito.Rápidos, instantâneos,osoutros três cavalos dispararam, despedaçando Filipe, cada qual com seupedaço.O que fizeram quando os cavalos suados já longe, pararam, cumprida aordemhedionda?Láseforam,arrastandoseusquartospelasestradas,paraomonturo de um antigo cascalhal. Lá no buraco preto, já pelo meio de cal,jogaramoquerestavadascarneseossosdoheróiemaiscal lançaramporcima. Filipe ferveu nas carnes parcas sua morte derradeira. Para todo osempre,mataramFilipe.Mataramtãomatadoquepara todoosempreseráelelembrado.Meioséculocorreucomopovoagachadoatéchegarahoraeavezdeoutroassinalado. O destino caiu, coroou desta vez a cabeça de Joaquim José,condenado pela Rainha Louca a morrer morte natural na forca, seresquartejado e exposto para escarmento do povo. Despedaçado, lá ficaramsuas partes apodrecendo, até que o tempo as consuma como queria donaMaria.Osquatroquartosplantadosfedendo,naEstradaReal.Acabeçacomacabeleiraeabarba,bastas,alçadanumpostealto,emOuroPreto,guardadapor famintos urubus asas de ferro, bicos agudos: tenazes. Estes foram, sóeles,seuscoveiros.Acabadoassimtãoacabado,semaomenosacaridadedecal virgem, Tiradentes não se acabou nem se acaba. Prossegue em nós,latejando.Pelosséculoscontinuaráclamandonacarnedosnetos

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denossosnetos,cobrandodecadaqualsuadignidade,seuamoràliberdade.Asbarba.s.Asbarbas.Asbarbas.AquipermanecerãoÀesperadoutracaraedoutravergonha.Estes são nossos heróis assinalados, símbolos de uma grandeza recônditaquehavia.Aindahá,euquerocrer,maisraraqueosoutros,porgarimpar.Maiorqueelesdois,porém,éamultidãoquevouchamar.Veja:‐Venham,euosconvoco,venhamtodos.Venhamaquidizerdadordosnervosdilacerados,do cansaçodosmúsculos esgotados. Venham todos, com suas tristes caras,com suas murchas ilusões, venham vestidos ou nus, tal como foramenterrados, se foram. Venham morrer aqui de novo suas miúdas mortesinglórias.Venha primeiro você, você mineiro anônimo que furtou o crânio deTiradentes,rezouporsuaalmaeosepultou.Masvenhamtodos!Vocêosvê?Forammilhõesdealmasvestidasdecorposmortais,doídos,osqueaquinessasMinassegastaram.Olhedenovopraeles,olhebem.Vejasó.Noprincípio eramprincipalmente índiosnativos eunspoucosbrancarrõesimportados.Depois, principalmentenegros, vindosde longe, africanos.Maslogo,logo,vejasó:eramjámultidõesdemestiços,crioulos,daquimesmo.Esses milhões de gentes tantas são as mulas desta gueena de lavarcascalhais. Vê você como eles todos nos olham, olhos baixos, temerosos,perguntandocalados:‐Quemsomosnós?Existimos,paraquê?Porquê?Paranada?Somosopovodosheróis assinalados,mas somosmesmoé opovodessasmultidõesmedonhasdegentes,enganadasegastadas.Opovoescarmentadonacarneenaalma.Somosopovoqueviuequevê.Opovoquevigiaeespera.Minas estelar, páramo, mãe do ferro, mãe do ouro e do azougue. Mãemineral, fulgor sulfúrico.Minas sideral, lusa quina de rocha viva enterradaalém‐mar.Minasantiga,cruelsatrápiadofeledaagonia,soueuquetepeço:ponhaumfinalnestaagonia:relampeia.Relampeiaagora,peçaamorte.Morra!Morraerenasça. Rolem pedras saltadas do mar petrificado; rolem, arrombem osubterrâneoparedãodegranitoque

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aprisiona o povo e o tempo, escravizando, sangrando, esfomeando,assassinando.Minas,árvorealta.Minasdesangue,de lágrima,decólera.Minas,mãedoshomens.Minas do esperma, domilho, da pétala, da pá, da dinamite.Minascarnal da flor e da semente. Minas mãe da dor, mãe da vergonha. Minas,minhamãecrepuscular.Havemos de amanhecer. O mundo se tinge com as tintas da antemanhã(Ribeiro1988:376‐8).

Nossa glóriamaior como povo é eles terem existido e se expressado deforma tão alta. Eles são nossa glória. Suas obras, na forma de magníficaarquitetura e escultura, de música erudita da mais alta qualidade, depoemaselivros,sãonossoorgulho.

Essa explosão de prosperidade teria múltiplas conseqüências. Entreoutras, a de interiorizar o esforço colonizador que, até então ‐ antes dasincursões dos bandeirantes ‐, havia se limitado às terras do litoral,"contentando‐seemarrastar‐seaolongodacostacomocaranguejos",dissefreiVicentedoSalvador.E,sobretudo,adecomeçaraarticularosnúcleosbrasileirosdispersosnauniftcaçãodoterntórionacional.

Até então, o Brasil era um arquipélago de implantes coloniais, ilhados eisoladosunsdosoutrospordistânciasdemilharesdequilômetros.Agorasecriavaumarededeintercâmbiocomercialqueteriaenormeimportâncianofuturo,porquedavaumabaseeconômicaàunidadenacional.

Outroefeitodoaugeaurífero foi reterno interiordopaísumamassaderecursosquepermitiuedificarrapidamenteaamplaredeurbanadaszonasde mineração, criando cidades prodigiosamente ricas e belas. Nela e nosantigosportos,floresce,então,umacivilizaçãodoouroqueseexpressaemtemplos e palácios suntuosos, cuja edificação e decoração ocuparam umavasta mão‐de‐obra especializada de artesãos e de artistas. Os ricosbrasileirossetornarammaisricosemaisostentatórios,saindo

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darudezapaulistanaedamediocridadepernambucanaebaianadosdoisprimeirosséculos.

Com o esgotamento das jazidas de ouro, veio a diáspora. Aquelacivilizadíssimapopulaçãodenegros,mulatosemestiçossedispersoupelassesmariasdeMinas,implantandoalimodosdeviver,decomer,devestir,decalar, de entristecer‐se e até de se suicidar que são únicos no Brasil. É amineiridade.

Maissignificativaaindafoiainfluênciadasegundainvasãoportuguesa.Deum dia para outro, quase 20 mil portugueses, fugindo das tropas deNapoleão,aportamàBahiaeaoRio.

O sábio rei sabia bemque seu reino prestante estava aqui. Assim é que,vendo Portugal invadido por Napoleão, veio ter aqui, tangendo sua mãelouca.Trouxe consigoomelhordaburocraciaportuguesa. Foium imensoempreendimento naval em que milhares de portugueses desembestaramparaoBrasil,disputandolugaresatapanasnausinglesasconvocadasparaaoperação.Suainfluênciafoiprodigiosa.

O Brasil que nunca tivera universidades recebe de abrupto toda umaclasse dirigente competentíssima que, naturalmente, se faz pagarapropriando‐sedomelhorquehavianopaís.Masnosensinaagovernar.

EnquantoaAméricahispânicaseesfacelaeemcadaportoseinventaumanação pouco viável, aqui, apesar das imensas diferenças regionais, semantémaunidade.Cada levante,mesmoos tisnadosde republicanos, eraenfrentadopelosgeneraisdorei,levandonumamãooscanhõesenaoutradragonasedecretosdeanistia.É claroquemuitasdessas lutas foram tãoferozes que obrigaram el‐rei a mandar fuzilar quantidades de curas, queeram os intelectuais rebeldes de então.Mas terminada a refrega, tudo sereconciliava.

Em 1800, a população do território brasileiro recupera seu montanteoriginalde5milhões.Masofazcomumacomposiçãoinvertida.Ametadeéformada,agora,por"brancos"doBrasil,

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predominantemente "pardos" ‐ quer dizer, mestiços e mulatos ‐, falandoprincipalmente o português como língua materna, e já completamenteintegradosàculturaneobrasileira.Osnegrosescravossomam1,5milhão,sendoumaterçapartedelesconstituídapor"crioulos"‐querdizer,negrosnascidos no Brasil e amplamente aculturados. Os remanescentes dapopulação indígena original, que haviam sido subjugados e estavamintegrados à população neobrasileira como força de trabalho escrava,diretamentesubjugadaou incorporadaaosistemaatravésdasmissõesoudasdiretoriasdeíndios,somariammeiomilhão.Paraalémdasfronteirasdacivilização, fugindo ou resistindo à conscrição na força de trabalho e aoavassalamento, viveria mais 1 milhão de índios arredios e hostis,concentrando‐seprincipalmentenaAmazônia,masdisseminadosportodoopaís,ondequerqueumazonadematasindevassadaslhesproporcionasserefúgio.

Oanode1800representouumaviradanahistóriabrasileira.Aeconomiaexportadora atravessava um período de declínio, o que constituía,certamente,umdesafogoparaapopulação.Comefeito,reduzidooritmodaproduçãoaçucareirae superadaaépocadeprosperidadedasexploraçõesde ouro e diamantes, que ocupavam os principais contingentes detrabalhadoresnegrosebrancos,estessedispersaramembuscadeformasautárquicas de sobrevivência. A produção açucareira, que se debatia nacrise desencadeada com a expansão dos novos centros produtores dasAntilhas, passou a contribuir com metade do valor da exportação, quetambémhaviadiminuídobastante.Apecuáriaseestendeuprodigiosamentepelos sertões interiores e pelas pastagens sulinas. O setormais dinâmicoera, então, o cultivo de arroz e, depois, de algodão do Maranhão, cujoprincipal comprador eram as manufaturas inglesas em conflito com osprodutoresnorte‐americanos.

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Oresultadofundamentaldostrêsséculosdecolonizaçãoedossucessivosprojetos de viabilização econômica do Brasil foi a constituição dessapopulação ‐ de 5 milhões de habitantes, uma das mais numerosas dasAméricasdeentão‐,comasimultâneadeculturaçãoetransfiguraçãoétnicadas suas diversas matrizes constitutivas. Até 1850, só o México (7, 7milhões)tinhamaiorpopulaçãoqueoBrasil(7,2milhões).Oprodutorealdo processo de colonização já era, naquela altura, a formação do povobrasileiro e sua incorporação a uma nacionalidade étnica eeconomicamente integrada. Esse último resultado parece haver sidoalcançadoumasdécadasantes,quandoquase todososnúcleosbrasileirosjáseintegravamemumaredecomercial internaeestapassaraasermaisimportante que o mercado externo. Os revezes experimentados pelasdiversas economias regionais de exportação e a conseqüente queda dopoderio do empresariado latifundiário emonocultor pareceram abrir aosbrasileiros,naquelemomento,aoportunidadedeseestruturaremcomoumpovo que existisse para si mesmo. Isso talvez tivesse ocorrido se nãosurgisseumnovoprodutodeexportação‐ocafé‐,queviriarearticulartodaaforçadetrabalhoparaumnovomododeintegraçãonomercadomundialedereincorporaçãodosbrasileirosnacondiçãodeproletariadoexterno.

Bempodeser,porém,que,mesmosemoaugedocafé,aquelareversãodosbrasileiros sobre si mesmos não se cumprisse. O Brasil, produto daexpansão da economia mundial, necessitaria profundas transformaçõespara subsistir fora dela. As decisões indispensáveis para isso ‐ abolição,reforma agrária, industrialização autônoma ‐ excediam à capacidadedaquele segmento social existente,umavezque,paraa classedominante,permanecia sendo lucrativa economicamente a importação de bensmanufaturadosdoscentroseuropeuseaexportaçãodeprodutostropicais.Acresce, ainda, que, não existindo então modelos de reconstruçãointencionaldasociedade,umareversãopuramente

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autonomista teriaresultado,nomáximo,emumaautarquia feudal.Comoem todos os casos de feudalização, isso representaria uma ruptura dosistema mercantil, que tornaria impraticável a escravidão porque nãohaveriacomoadquirirnovosescravoseporqueostornariainúteisemsuafunção efetiva, que é a de produtores de mercadorias. Mas condenaria asociedade nascente a um retrocesso histórico que a tornaria,provavelmente, incapaz de defender para simesma a posse do territórioque ocupava e de evitar as ameaças de cair sob a regência de outradominação colonial direta por parte de algumas das novas potênciasindustriaisemergentes.

Quisesseounão, oBrasil eraumcomponentemarginal edependentedacivilização agrário‐mercantil em vias de se industrializar. Dentro dequaisquerdessestiposdecivilização,ofracassodeumalinhadeproduçãoexportadora só incitava a descobrir outra linha que, substituindo‐a,revitalizasse a economia colonial, fortalecendo, em conseqüência, adependênciaexternaeaordenaçãooligárquicainterna.

ESTOQUENEGRO

O "branco" colonizador e seus descendentes aumentavam século apósséculo, não pelo ingresso de novos contingentes europeus, mas,principalmente, pelamultiplicação demestiços emulatos. Os negros, porsuavez,crescerampassoapassocomosbrancos,mas,aocontráriodestes,só o fizeram pela introdução anual maciça de enormes contingentes deescravos, destinados tanto a repor os desgastados no trabalho, como aaumentaroestoquedisponívelparaatenderanovosprojetosprodutivos.

Reconstituiremos a seguir esse processo biótico de consumação dosnegros e de multiplicação discreta de mulatos, que te ve lugarsimultaneamente comsuadeculturação e incorporaçãona sociedade enaculturabrasileiras.

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Os primeiros contingentes de negros foram introduzidos no Brasil nosúltimosanosdaprimeirametadedoséculoxvi,talvezem1538.Erampouconumerosos porém, como se deduz pelas dificuldades que têm oshistoriadores em documentar esses primeiros ingressos. Logo a seguir,entretanto, com o desenvolvimento da economia açucareira, passam achegar em grandes levas. A caçada de negros na África, sua travessia e avenda aqui passam a constituir o grande negócio dos europeus, em queimensoscapitaisforaminvestidosequeabsorveria,nofuturo,pelomenosmetadedovalordoaçúcare,depois,doouro.

ACoroapermitiaacadasenhordeengenhoimportaraté120"peças",masnuncafoilimitadoseudireitodecomprarnegrostrazidosaosmercadosdeescravos. Com base nessa legalidade, os concessionários reais do tráficonegreirotiveramumdosnegóciosmaissólidosdacolônia,quedurariatrêsséculos,permitindo‐lhestransladarmilhõesdeafricanosaoBrasile,destemodo,absorveramaiorparceladerendimentodasempresasaçucareiras,auríferas,dealgodão,detabaco,decacauedecafé,queeraocustodamão‐de‐obraescrava.Secalculaem160milhõesdelibras‐ouroocustopagopelaeconomia brasileira para a aquisição de escravos africanos nos trezentosanosdetráflco.

Oimensonegócioescravistararamentefoiobjetodereser‐.Aocontrário,se considerava meritório realizar as caçadas humanas, matando os queresistissem,comoummododelivraronegrodoseuatrasoeatécomoumatopiodeaproximá‐losdo

deusdosbrancos.

AsprimeirasestimativasrelativasàquantidadedenegrosintroduzidosnoBrasilduranteostrêsséculosdetráficovariammuito.Vãodesdenúmerosexageradamente altos, como 13, 5 milhões para Calógeras (1927) ou 15milhõesparaRochaPombo (1905), até cálculosmuito exíguos, como4, 6milhõesparaTaunay(1941)e3,3milhõesparaSimonsen(1937).

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Lamentavelmente, não há estudos demográficos criteriosamenteelaboradosquepermitamsubstituiravaliaçõestãodesencontradasporumcálculobemfundado.EmumestudodePCurtin(1969),feitocombasenosregistrosoficiaisarquivadosnaBahia,foramconsignados959.600escravosintroduzidos de 1701 a 1760, 931.800 de 1761 a 1810 e, finalmente,1.145.400de1811a1860.Querdizer,umtotalde3.036.800,que,somadoaos 180 mil prováveis ingressos anteriores, nos daria um total de3.216.800. A utilização de dados fiscais, como base dos cômputos, leva asuporqueestessesituammuitoabaixodacifraverdadeira.Comefeito,nãose leva em conta, na devida proporção, o contrabando e a ocultação decontingentes escravos para evitar o pagamento de impostos, o que fazsupor que o número real bem possa se aproximar, até, do dobro doassinalado.

Umaestimativapróximadestenúmero,devidaaM.Buescu(1968),parecemaispróximadonúmerorealdeescravosintroduzidosnoBrasil.Partindodo total de escravos geralmente admitido nas fontes primárias para cadaséculo, Buescu aplica a taxa de reposição que supõe ser necessária paramanter o volume de população ‐ sabendo‐se que seu crescimentovegetativoeranegativo‐eagregataxasadicionaisparaosperíodosemqueaumentouamassaescrava.Comoresultadodeseuscálculos,considerandoumataxaanualdecrescentedereposição,quevaide5%noséculoXVIa2%no século XIX, admite um ingresso global de 75mil negros para o séculoXVI,452.000paraoXVII,3.621.000paraoXVIIIe2.204.000paraoséculoXIX, o que soma um total de 6.352.000 escravos importados de 1540 a1860. Esses números, de demografia hipotética, não contam com aquantidadegeralmenteadmitidanasfontesprimárias.

A composição da população escrava por sexo e por idade é ainda maisdifícil de ser avaliada. Só se conta, por isso, comestimativas vagas e comalgumas séries dispersas do número de negros locais que se registraramsobretudoemMinasGerais.Para

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ototaleparagrandesperíodostemosdeextrapolar,noscontentandocomvaguedades.

Aproporçãogeralmenteadmitidadehomenspormulheresnaimportaçãoé de quatro para um. Alguns autores, analisando plantéis de escravosafricanos, aceitam avaliações como 162% ou 138% de homens em áreascomo Pernambuco, para meados do século passado. Dados colhidos emVassouras, no estado do Rio de Janeiro, para omesmo período, admitemumapopulaçãoequilibradadehomensemulheres.

Comoteriamchegadoaquitantasmulheres,queasestatísticasdosportosnão registram? Tratava‐se de negrinhas roubadas que alcançavam altospreços,àsvezesodedoismulatões,sefossemgraciosas.Eramluxosquesedavamos senhores e capatazes. Produziramquantidades demulatas, queviverammelhoresdestinosnascasas‐grandes.Algumasseconverteramemmucamaseaté se incorporaramàs famílias, comoamasde leite, tal comoGilbertoFreyredescrevegostosamente.

Anegra‐massa,depoisdeserviraossenhores,provocandoàsvezesciúmesemqueassenhoraslhesmandavamarrancartodososdentes,caíamnavidadetrabalhobraçaldosengenhosedasminasemigualdadecomoshomens.Sóaestanegra, largadaeenvelhecida,onegrotinhaacessoparaproduzircrioulos.

Foi tentador demais o desejo de montar fazendas de criação de negrosparalivrarosempresáriosdasimportações.Onegócionuncadeucerto.Osnegrinhos,espertíssimos,quealisecriavam,encontravammodosdeganharo mundo fazendo‐se passar por negros forros, o que tornava o negóciomuitooneroso.Acresceque,omolequequenãoentrassenodurotrabalhodo canavial muito novinho, doze anos presumivelmente, jamais seadaptariaàdurezadessetrabalho.

Um parente meu guardou a carta de um capataz que calcula bem asvantagens relativas de usar negros cativos ou importados, optandofrancamenteporestesúltimoscomoosmaisrentáveis.

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Dispende‐semaiscomestesinúteisescravosparaseuvestuário,unspelosoutros, dois covados de baeta, e seis varas de pano de algodão que nãoimportamenosde2$200cadaum,etodos,290$400,perfazendoosustento,evestuárioanual,3:181$200réis,alémdoscurativosdassuasdoenças,quesempresegastamaisdoquequandogozamsaúde.

Estadespesafazanualmenteoengenhocomacriaçãodosmeninos,ecomosinválidos,edecrépitosporobrigaçãodacaridadeparacomuns,eoutros,esperandoqueosmeninosdequinzeanosparadiantesejamtrabalhadores,e suprama faltados africanos.É semcontrovérsiaque ametadedosquenascem,morrem até a idade de dez anos, e calculando a despesa de umescravocriouloatédarserviço,monta24$600porano,quenosquinzeanosde criaçãovema ficarpelaquantiade369$000 réis, quandoumafricanodestamesma idade compra‐se por 150$000 réis, e eis aqui o crioulo emmaiscarestia,excedendoaoafricanoem219$000réis.

Outra observação provada pela experiência, que ao duro trabalho dosengenhos resiste mais o escravo africano, do que o crioulo, por ser deconstituiçãomenos robusta, ede cinqilenta anosparadiantenão sepodecontar em linha de serviços, contando‐se aliás o africano até sessenta ecinco, uns mais, e outros menos, o que não sucede geralmente com oscrioulos,mulatosemestiços (Tópicode cartasdoadministradornaBahiaaossenhoresdaCasadaPonteemLisboa‐"EngenhodaMatta, janeirode1818.Descontodosescravosincapazesdoagrestetrabalhodoengenho"inRibeiroPires1979298).

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IIIPROCESSOSOCIOCULTURAL

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1AVENTURAEROTINA

ASGUERRASDOBRASIL

Às vezes se diz que nossa característica essencial é a cordialidade, quefaria de nós um povo por excelência gentil e pacífico. Será assim? A feiaverdadeéqueconflitosde todaaordemdilaceraramahistóriabrasileira,étnicos,sociais,econômicos,religiosos,raciaisetc.Omaisassinaláveléquenuncasãoconflitospuros.Cadaumsepintacomascoresdosoutros.

O importante, aqui, é a predominância que marca e caracteriza cadaconflito concreto. Assim, a luta dos Cabanos, contendo, embora, tensõesinter‐raciais (brancos versus caboclos), ou classistas (senhores versusserviçais), era, em essência, um conflito interétnico, porque ali uma etniadisputava a hegemonia, querendo dar sua imagem étnica à sociedade. OmesmoocorreemPalmares, tida freqüentementecomouma lutaclassista(escravosversussenhores)quesefez,noentanto,noenfrentamentoracial,que por vezes se exibe como seu componente principal. Também osquilombolasqueriamcriarumanovaformadevidasocial,opostaàqueladequeelesfugiam.Nãochegaramaamadurecercomoumaalternativaviávelaopodereàregênciadasociedade,massuaslutaschegaramaameaçá‐las.

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UmterceiroexemploéCanudos,quetambémmostraessastrêsordensdetensão. A classista prevalece porque os sertanejos, sublevados peloConselheiro, combatiam, de fato, a ordem fazendeira, que, condenando opovoavivernummundotododivididoemfazendas,oscompeliaaserviraumfazendeiroouaoutro,semjamaisterseupé‐de‐chão.Emconseqiiência,nãotinhamqualquerpossibilidadedeorientarseuprópriotrabalhoparaoatendimento de suas necessidades. Mas lá estavam pulsando os conflitosraciaiseoutros,inclusiveoreligioso.

Oprocessodeformaçãodopovobrasileiro,quesefezpeloentrechoquedeseuscontingentesíndios,negrosebrancos,foi,porconseguinte,altamenteconflitivo. Pode‐se afirmar,mesmo, que vivemos praticamente em estadode guerra latente, que, por vezes, e com freqüência, se torna cruento,sangrento.

Conflitosinterétnicosexistiramdesdesempre,opondoastribosindígenasumas às outras. Mas isto se dava sem maiores conseqüências, porquenenhumadelas tinha possibilidade de impor sua hegemonia às demais. Asituaçãomudacompletamentequandoentranesseconflitoumnovotipodecontendor, de caráter irreconciliável, que é o dominador europeu e osnovosgruposhumanosqueelevaiaglutinando,avassalandoeconfigurandocomoumamacroetniaexpansionista.

De1500atéhoje,essesenfrentamentossevêmdesencadeandoatravésdelutasarmadascontracadatriboquesedefrontacomasociedadenacional,emsuaexpansãoinexorávelpeloterritóriodequevaiseapropriandocomoseu chão do mundo: a base física de sua existência. Os Yanomami e asemoçõesdesencontradasqueelesprovocamentreosqueosdefendemeosquequeremdesalojá‐lossãoapenasoúltimoepisódiodessaguerrasecular.

O conflito interétnico seprocessano cursodeummovimento seculardesucessãoecológicaentreapopulaçãooriginaldoterritórioeoinvasorqueafustigaafimdeimplantarumnovo

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tipodeeconomiaedesociedade.Trata‐se,porconseguinte,deumaguerrade extermínio. Nela, nenhuma paz é possível, senão com um armistícioprovisório,porqueosíndiosnãopodemcedernoqueseesperadeles,queseria deixar de ser elesmesmos para ingressar individualmente na novasociedade,ondeviveriamoutraformadeexistênciaquenãoéasua.Osseusalternos,quesãoosbrasileiros,nãoabremmão,também,dosentimentodeque,nesteterntório,nãocabeoutraidentificaçãoétnicaqueasuaprópria,que tendo sido assumidapor tantos europeus, negros e asiáticos, deveriaseraceitatambémpelosíndios.

Esseconflitonãosedá,naturalmente,comoumdebateemquecadaparteapresentaseusargumentos.Obrasileiroquecapturaumíndioparausá‐locomoescravo,ofazachandoqueseriaumainutilidadedeixá‐losvivendoàtoa.Oíndio,repelindosuaescravizaçãoqueocoisificaria,prefereamorteàsubmissão.Nãoporqualquerheroísmo,masporum imperativoétnico, jáqueasetniassãopornaturezaexcludentes.

As forçasquesedefrontamnessas lutasnãopodiamsermaiscruamentedesiguais. De um lado, sociedades tribais, estruturadas com base noparentesco e outras formas de sociabilidade, armadas de uma profundaidentificação étnica, irmanadas por um modo de vida essencialmentesolidário. Do lado oposto, uma estrutura estatal, fundada na conquista edominação de um território, cujos habitantes, qualquer que seja a suaorigem, compõem uma sociedade articulada em classes, vale dizer,antagonicamente opostas mas imperativamente unificadas para ocumprimento de metas econômicas socialmente irresponsáveis. Aprimeira das quais é a ocupação do território. Onde quer que umcontingenteetnicamenteestranhoprocure,dentrodesseterritório,manterseu própriomodo tradicional de vida, ou queira criar para si um gêneroautônomodeexistência,estalaoconflitocruento.

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Mashá,também,conflitosvirulentosentreosinvasores.Omaiscomplexodeles, quanto a suas motivações, ainda que também remarcado porcomponentesclassistas,racistaseétnicos,foialongaguerrasemquarteldecolonoscontraosjesuítas.Muitocedosurgiramdesentendimentosentreoprojeto comunitário dos inacianos para a indiada nativa e o processocolonial lusitano que lhes reservava o destino de mão‐de‐obra de suasempresas.Surgiramassimqueospadresfugiramdesuafunçãoprevistadeamansadoresdeíndiosparasearvoraremaseusprotetores.

Ao longo de dois séculos e meio, os conflitos se sucederam no planoadministrativo, chegando até à deportação dos jesuítas, primeiro, de SãoPaulo e, depois, do Maranhão e Grão‐Pará pelos colonos, seguida de seuretorno por ordem da Coroa. Também graves foram os enfrentamentosentrecatecúmenosecolonos,dosquaisospadresprocuravamse.esquivar,dadooseucompromissoderealizarumaconquistaespiritual, sem jamaisapelarparaaforça.

Desdeosprimeirosdias de colonizaçãooprojeto jesuítico se configuroucomo uma alternativa étnica que teria dado lugar a um outro tipo desociedade,diferentedaquelaquesurgianaáreadecolonizaçãoespanholaeportuguesa.

Estrutura‐se com base na tradição solidária dos grupos indígenas econsolida‐se com os experimentos missionários de organizaçãocomunitária, de caráter proto‐socialista. Também por isso contrastavacnzamente com omodelo que o colono ia implantando. Essa divergênciaamadureceu completamente no caso das missões paraguaias quealcançaram um alto grau de prosperidade e autonomia. Mas a mesmaoposiçãoficouevidentetambémnoBrasil,principalmentenasregiõesondeasmissõesseimplantaramcommaisêxito,sobretudonobaixoAmazonas.Nosdoiscasos,acrescia,deformamaisameaçadora,ofatodequealínguautilizadapelosmissionáriosjesuítasnassuasreduções

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parareordenarosíndiosecivilizá‐losnãoeraoportuguêsnemoespanhol,masonheengatu.

A motivação de maior importância, porém, fof a cobiça despertada noscolonos com o enriquecimento extraordinário de algumas das Missões.Explorando as terras indígenas e sua força de trabalho, os jesuítascomeçaram a funcionar como províncias prósperas que se proviam dequase tudo, graças ao grande número de artesãos com que contavam, eaindaproduziamexcedentes, explorandodrogasdamataque, juntamentecomoprodutodesuaslavourasecomoutrasproduçõesmercantis,faziamdelesumadasforçaseconômicasprincipaisdoincipientemercadocolonial.

Igualmente importantes como fontes de enriquecimento foram as ricasdoaçõesquereceberamdecolonos,quetudodavam,pedindoasalvaçãodesuas almas. Várias doações ficaram célebres, como aquela em que aCompanhiasecomprometearezarcincomissasdiáriasemaisumamissacantada semanal, até o fim do mundo, pela salvação da alma de GarciaD'Ávila.

O vulto do patrimônio jesuítico, ao tempo do seu confisco (1760), eraenormíssimo. Estendia‐se de norte a sul do país, na forma de missões econcessões territoriais concedidas pela Coroa, onde instalavam suascinqüenta missões de catequese, cuja base material eram engenhos deaçúcar (dezessete), dezenas de criatórios de gado, com rebanho avaliadoem150milreses,alémdeengenhos,serrariasemuitosoutrosbens.

ACompanhiaseriatambémamaiorproprietáriaurbana,pelonúmerodecasasnascidadesqueabrigavamoscolégios,osseminários,oshospitais,osnoviciados,osretiros,regidospor649padreseirmãosleigos.SónaBahia,elespossuíam186casas,noRiosetentaeemSãoPaulolhesrestavaaindacercadeseis,emuitasmaisnoMaranhão,emRecife,emBelémeportodaaparte,dasquaisfluíamaltasrendasdealuguel.

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A cobiçaqueprovocou tamanha riquezaera, pelomenos,proporcional aela, fazendo crescer a cada dia os que exigiam sua desapropriação, comesperança de apropriar‐se, eles próprios, de tantos bens. A necessidadedessa desapropriação era defendida pela burocracia, revoltada contra oprivilégio fiscal de não pagar impostos nem dízimos. O sonho dosburocratas e dos colonos acabou por alcançar‐se e alguns deles selocupletaramcomo"contemplados"comosbensdospadresedosprópriosíndios, declarados livres,mas, de fato, submetidos ao cativeiro, tão rígidocomoaescravidãodosnegros.

A saída dos jesuítas das aldeias de índios, de cujo domínio haviam sidoprivados pouco antes da expulsão final, foimarcada por um açodamentomercantildescritoporLúciodeAzevedo:

"Alfaias, imagenseparamentos,tudoossacerdotescarregavamembarcos,muitas vezes oculto demaneira indecorosa, entre os gêneros de comércio,restodasgrangeariasdequenãoqueriamprivaracomunidade.Ondehaviagados e canoas, isso vendiam a trôco de gêneros. E, deslizando asembarcações,detantaspartes,rioabaixo,achapinharcomopesodascargas,mais pareciamvoltar depredatórias incursões, que recolher ao cenóbiodecatequistas, só ocupados na pregação do Evangelho. [...] e não somente doterreno, com produtos da cultura, senão também dos índios que otrabalhavam,escravosnodizerdojesuíta,transmudadodoantigoaltruísmo,eobjurgandojáagoraasliberdades.Aoreieàrainha,emlacrimosassúplicas,recorriam os padres, por outra parte, das violências de Mendonça,asseverando que tirar‐lhes os escravos o mesmo era que privá‐los dosúltimosmeiosdesubsistência(Azevedo1930:325‐6)."

A guerra dos Cabanos, que assumiu tantas vezes o caráter de umgenocídio,comoobjetivodetrucidaraspopulaçõescaboclas,éoexemplomais claro de enfrentamento interétnico. Ali se digladiam a populaçãoantiga da Amazônia, caracterizável como neobrasileira porque já não eraindígenamas aspirava viver autonomamente para si mesma, e a estreitacamada dominante, fundamentalmente luso‐brasileira, formando umprojetode

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existência que correspondia à ocupação das outras áreas do país. Essecontingentecivilizatórioéque,ajudadoporforçasvindasdefora,enfrentouos cabanos, destruindo‐os núcleo a núcleo. Os cabanos ganharammuitasbatalhas,chegarammesmoaassumiropodercentralnaregião,ocupandoBelém,Manauseoutrascidades,masviviamoantiprivilégiodramáticodenãopoder perder batalha alguma. Isso é o que finalmente sucedeu e elesforamdizimados.

Outra modalidade principal de conflito é a dos enfrentamentospredominantemente raciais.Aqui, vemosopondo‐seumasàsoutras todasas três matrizes da sociedade, cada uma delas armada de preconceitosraciais contra as outras duas. Esses antagonismos alcançam carátermaiscruento no enfrentamento dos negros, trazidos da África para seremescravos, que se vêem condenados a lutar por sua liberdade e, mesmodepois de alcançada a abolição, a continuar lutando contra asdiscriminações humilhantes de que são vítimas, bem como contra asmúltiplasformasdepreterição.

Aslutassãoinevitavelmentesangrentas,porquesóàforçasepodeimporemanteracondiçãodeescravo.Desdeachegadadoprimeironegro,atéhoje,eles estão na luta para fugir da inferioridade que lhes foi impostaoriginalmente, e que é mantida através de toda a sorte de opressões,dificultando extremamente sua integração na condição de trabalhadorescomuns,iguaisaosoutros,oudecidadãoscomosmesmosdireitos.

Palmares é o caso exemplar do enfrentamento inter‐racial. Ali, negrosfugidosdosengenhosdeaçúcaroudasvilasorganizam‐separasimesmos,na forma de uma economia solidária e de uma sociedade igualitária. Nãoretornamàs formasafricanasdevida, inteiramente inviáveis.Voltam‐seaformas novas, arcaicamente igualitárias e precocemente socialistas. Suadestruiçãosendorequisitodesobrevivênciadasociedadeescravista,tornaesses conflitos crescentes inevitáveis, seja para reaver escravos fugidos,sejaparaprecaver‐secontranovasfugas.Mastambém

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paraacautelar‐secontraoquepoderiaviraserumaameaçapiordoqueasinvasõesestrangeiras,queseriaasublevaçãogeraldosnegros.

Uma terceira modalidade de conflitos que envolvem as populaçõesbrasileirasédecaráterfundamentalmenteclassista.

Aquiseenfrentam,deumlado,osprivilegiadosproprietáriosdeterras,debensdeprodução,quesãopredominantementebrancos,edeoutrolado,asgrandes massas de trabalhadores, estas majoritariamente mestiças ounegras.

Ainda que nas outras duas formas de conflito sempre se encontremcomponentes classistas, mesmo porque em todas elas está presente apreocupação com o recrutamento de mão‐de‐obra para a produçãomercantil, em certas circunstâncias elas ganham especificidade comoenfrentamentos interclassistas. Isso ocorre quando não são contingentesdiferenciados racialmente ou etnicamente que se opõem, masconglomerados humanos ou estratos sociais multirraciais e multiétnicospropensos a criar novas formas de ordenação socioeconômica,inconciliáveiscomoprojetodasclassesdominantes.

Canudos é um bom exemplo dessa classe de enfrentamentos, como agrande explosão dessa modalidade de lutas. Ali, sertanejos atados a umuniverso arcaico de compreensões, mas cruamente subversivos porquepretendiamenfrentaraordemsocialvigente,segundovaloresdiferenteseatéopostosaosdosseusantagonistas,enfrentavamumasociedadefundadana propriedade territorial e no poderio do dono, sobre quem vivesse emsuasterras.DesdeoprincípioosfiéisdoConselheiroeramvistoscomoumgrupocrescentedelavradoresquesaíamdasfazendaseseorganizavamemsieparasi,sempatrõesnemmercadores,epareciaeeratidocomooquehádemaisperigoso.

Quandoasituaçãoamadureceucompletamente,essecontingentehumanofoi capaz de enfrentar e vencer, primeiro, as autoridades locais e osfazendeiros,aliciandojagunços;depois,as

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tropas estaduais e, por fim, diversos exércitos armados pelo governofederal. Venceram sempre, até a derrota total, porque nenhuma paz erapossível entre quem lutava para refazer o mundo em nome dos valoresmaissagradoseasforçasarmadasquecumpriamseupapeldemanteressemundotalqualé,ajudadasnesseempenhoportodasasforçasdasociedadeglobal.

EuclidesdaCunhanosdáoretratomaisveementedaqueleenfrentamentoinverossímil. Já ao fim das lutas, registra, dos poucos sobreviventes, quenãosevia"[...]nemumrostoviril,nemumbraçocapazdesuspenderumaarma, nem um peito resfolegante de campeador domado: mulheres, semnúmero de mulheres, velhas espectraes, moças envelhecidas, velhas emoças indistinctas na mesma fealdade, escaveiradas e sujas, filhosescanchados[...]Canudosnãoserendeu.Exemploúnicoemtodaahistória,resistiu até ao esgottamento completo. Expugnado palmo a palmo, naprecisãointegraldotermo,cahiunodia5,aoentardecer,quandocahíramosseusúltimosdefensores,quetodosmorreram.Eramquatroapenas:umvelho, dous homens feitos e uma creança, na frente dos quais rugiamraivosamentecincomilsoldados(Cunha1945:606,611)."

Osexemplosdeconflitoscontinuadossemultiplicamaolongodessetexto.O que têm de comum emais relevante é a insistência dos oprimidos emabrirereabriraslutasparafugirdodestinoquelheséprescrito;e,deoutrolado, a unanimidade da classe dominante que compõe e controla umparlamento servil, cuja função é manter a institucionalidade em que sebaseiaolatifúndio.Tudoissogarantidopelaprontaaçãorepressoradeumcorpo nacional das forças armadas que se prestava, ontem, ao papel deperseguidordeescravos,comocapitãesdomato,esepresta,hoje,àfunçãodepau‐mandadodeumaminoriainfecundacontratodososbrasileiros.

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AEMPRESABRASIL

Noplanoeconômico,oBrasiléprodutodaimplantaçãoedainteraçãodequatroordensdeaçãoempresarial,comdistintasfunções,variadasformasde recrutamento da mão‐de‐obra e diferentes graus de rentabilidade. Aprincipal delas, por sua alta eficácia operativa, foi a empresa escravista,dedicada seja à produção de açúcar, seja à mineração de ouro, ambasbaseadasnaforçadetrabalhoimportadadaÁfrica.Asegunda,tambémdegrandeêxito,foiaempresacomunitáriajesuítica,fundadanamão‐de‐obraservildosíndios.Emborasucumbissenacompetiçãocomaprimeira,enosconflitos com o sistema colonial, também alcançou notável importância eprosperidade.Aterceira,derentabilidademuitomenor,inexpressivacomofontedeenriquecimento,masdealcancesocialsubstancialmentemaior,foiamultiplicidadedemicroempresasdeproduçãodegênerosdesubsistênciaedecriaçãodegado,baseadaemdiferentesformasdealiciamentodemão‐de‐obra, que iam de formas espúrias de parceria até a escravização doindígena,cnzaoudisfarçada.

A empresa escravista, latifundiária e monocultora, é sempre altamenteespecializada e essencialmente mercantil. A jesuítica, apropriando‐seemboradeextensasáreaseproduzindomercadoriasparaocomérciolocale ultramarino, mais do que uma empresa propriamente era uma formaalternativadecolonizaçãodostrópicospeladestribalizaçãoeintegraçãodapopulaçãooriginalnumtipodiferentedesociedade,quesequeriapura,piae seráfica. A microempresa de subsistência funcionou, de fato, como umcomplementodagrandeempresaexportadoraoumineradoraque,graçasaela, se desobrigava de produzir alimentos para a população e para seuprópriousonasquadrasdemaiorprosperidadeeconômica,quando tinhaque concentrar toda a força de trabalho no seu objetivo essencial. Essasmicroempresas é que fundaram, de fato, o Brasil‐povo, gestandoprecocemente

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ascélulasque,multiplicadas,deramnoquesomos.Issoporqueasmissõesteriam gerado uma sociedade teocrática e as plantações nem sequersobreviveriam sem a viabilidade que lhes dava uma população local deapoioesustento.

Na realidade, competindo embora, essas três formas de organizaçãoempresarialseconjugavamparagarantir,cadaqualnodesempenhodesuafunção específica, a sobrevivência e o êxito do empreendimento colonialportuguêsnostrópicos.AsempresasescravistasintegramoBrasilnascentena economia mundial e asseguram a prosperidade secular dos ricos,fazendo do Brasil, para eles, um alto negócio. As missões jesuíticassolaparam a resistência dos índios, contribuindo decisivamente para aliquidação, a começar pelos recolhidos às reduções, afinal entreguesinermes a seus exploradores. As empresas de subsistência viabilizaram asobrevivênciadetodoseincorporaramosmestiçosdeeuropeuscomíndiose com negros, plasmando o que viria a ser o grosso do povo brasileiro.Foram,sobretudo,umcriatóriodegente.

Com efeito, o corpo do Brasil rústico, seus tecidos constitutivos ‐ carne,sangue,ossos,peles‐,seestrutura,nessasmicroempresasdesubsistência,configuradasnasdiversasvariantesecológico‐regionais.Ésobreessecorpo,comomecanismodesucçãodesuasubstância,mastambémdeejeçãosobreele da matéria humana emprestável para seus fins mercantis, que seinstalam,comocarcinomas,asempresasagroexportadorasemineradoras.

Sobre essas três esferas empresariais produtivas pairava, dominadora,umaquarta,constituídapelonúcleoportuáriodebanqueiros,armadoresecomerciantes de importação e exportação. Esse setor parasitário era, defato,ocomponentepredominantedaeconomiacolonialeomais lucrativodela.Ocupava‐sedasmiltarefasdeintermediaçãoentreoBrasil,aEuropaeaÁfricanotráficomarítimo,nocâmbio,nacompraevenda,para

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ocumprimentodesuafunçãoessencial,queeratrocarmaisdemetadedoaçúcaredoouroqueaquiseproduziaporescravoscaçadosnaÁfrica,afimderenovarosempredeclinanteestoquedemão‐de‐obranecessárioparaasuaprodução.

Essa intermediaçãoalucinada foi,porséculos,omotormaispoderosodacivilizaçãoocidental.Aquelequemaisafetouodestinodogênerohumanopelo número espantoso de povos e de seres que mobilizou, desgastou etransfigurou.Foiexercidosempreeficazmente,daformamais impessoalefria, por honrados dignatários, como sentimento de que se ocupavamdeum negócio, muitas vezes, aliás, dignificado como a grande missão dohomembrancocomoheróicivilizadorecristianizador.

Tratamos até agora das cúpulas empresariais. Elas seriam inexplicáveis,porém,semasuacontraparte,queeraopatriciadoburocrático.Todaavidacolonialerapresididaeregida,defato,pelaburocraciacivildefuncionáriosgovernamentais e exatores, e pela militar dos corpos de defesa e derepressão. A seu lado, operando de forma solidária, estava a burocraciaeclesiástica dos servidores de Deus, consagrando, dignificando os que seocupavam dos negócios terrenos, sobretudo captando a maior parte dosrecursosqueficavamnaterra,paracomelesexaltaragrandezadeDeusnascasase templosdesuasordens.Essacúpulapatricial, cujaeliteeraquasetoda oriunda da metrópole, formava com a cúpula empresarial e, com amercantil,aelitedominantedacolônia,essencialmentesolidáriafrenteaosoutroscorposdasociedade,apesardesuascruasoposiçõesdeinteresses.

Esta classe dominante empresarial‐burocrático‐eclesiástica, emboraexercendo‐se como agente de sua própria prosperidade, atuou também,subsidiariamente, como reitora do processo de formação do povobrasileiro.Somos, talqualsomos,pela fôrmaqueela imprimiuemnós,aonos configurar, segundo correspondia a sua cultura e a seus interesses.Inclusivereduzindoo

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queseriaopovobrasileirocomoentidadecívicaepolíticaaumaofertademão‐de‐obraservil.

Foi sempre nada menos que prodigiosa a capacidade dessa classedominantepararecrutar,desfazerereformargentes,aosmilhões. Isso foifeitonocursodeumempreendimentoeconômicosecular,omaisprósperodeseu tempo,emqueoobjetivo jamais foicriarumpovoautônomo,mascujo resultado principal foi fazer surgir como entidade étnica econfiguração cultural um povo novo, destribalizando índios,desafricanizandonegros,deseuropeizandobrancos.

Aodesgarrá‐losdesuasmatrizes,paracruzá‐losracialmenteetransfigurá‐los culturalmente,oque seestava fazendoeragestaranósbrasileiros talqual fomos e somos em essência. Uma classe dominante de caráterconsular‐gerencial, socialmente irresponsável, frente a um povo‐massatratado como escravaria, que produz o que não consome e só se exerceculturalmentecomoumamarginália,foradacivilizaçãoletradaemqueestáimersa.

Entre aquela estreita cúpula e esta larga base, um contingente deescapadosdamisériaedaignorânciageralbuscabrechasinstitucionaisemque se possa meter para fazer o Brasil a seu jeito. No princípio eramprincipalmentecurasemilitaressubversivos,mesmoporquesóeleseramalfabetizados eminimamente informadosnaquele submundoda opressãocolonial.

AVALIAÇÃO

O padre Cardim, que foi reitor do Colégio da Bahia, gostava muito dedescreveromundoquevia.Foi,parameugosto,umdosprimeirosemaisaltosintelectuaisbrasileiros.Identificadocomnossascoisasenossagente,descreve encantado florestas, roças, pescarias, sempre com omais vívidointeresse(Cardim,TratadosdaterraegentedoBrasil,1584).

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Não podia haver balanço crítico melhor que o dele sobre a obra daCompanhia, por um lado, e a dos colonos, do lado oposto. Ele conseguemanter uma extraordinária objetividade quando fala de uma e outro. Ocontrastenãopodiasermaiscru.Os índiosseacabandoeaprosperidadechegandoferoz.Visitandoasváriasmissõesentreosanosde1583e1590,emcompanhiadopadreCristóvãodeGouveia,obomCardimnoscontaospoucosíndiosqueaíestavamemcadaumadelas,todosvivendonamaisvilpobreza,simulandoumaconversãoinverossímil,mascheiosdeunçãoeatédeadulaçãodiantedospadres.

Nasuahistóriaseincluiumbalançogeraldospovosindígenas,queviviamnacostadomaratéosertãoondechegaramosportuguesesequeeledivideemtupisetapuias.Osprimeiros,repartidosemdeznaçõesprincipais,queviviamdePernambucoaSãoVicente.Falavam"umasólínguaeestaéaqueentendem os portugueses. É facil e elegante, e suave; e copiosa. Adificuldade dela está em ter muitas composições". Acrescenta que osportugueses,quasetodosqueestãonoBrasil,"asabemembrevetempoeseusfilhos,homensemulheres,asabemmelhor"(Cardim1980:101).

OquemaisnosinteressanobalançodeCardiméoregistrodamortandadedapopulaçãoquevinhaocorrendoediantedaqualelepróprioseespanta:"Eramtantososdessacastaqueparecia impossívelpoderem‐seextinguir,porémosportugueseslhestêmdadotalpressaquequasetodossãomortoselhestêmtalmedo,quedespovoamacostaefogempelosertãoadentroatétrezentasaquatrocentasléguas"(Cardim1980:101).

Aseguir,relacionandoasnaçõesdeumaououtra,assinalaoprogressivoextermínio.DosViatã,daParaíba,queerammuitíssimos,dizque"jánãohánenhuns porque sendo eles amigos dos Potiguara e parentes osportugueses os fizeram entre si inimigos, dando‐lhos a comer para quedessamaneiralhespudessefazerguerraetê‐losporescravose,finalmente,tendouma

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grande fome, os portugueses em vez de lhes acudir, os cativaram emandaram barcos cheios a vender a outras capitanias". Acrescenta que"assimseacabouessanaçãoeficaramosportuguesessemvizinhosqueosdefendessem dos Potiguaras" (Cardim 1980:102). Sobre os Tupinaquins,que habitavam toda a costa de Ilhéus, Porto Seguro até Espírito Santo,informa que "procederam dos de Pernambuco e se espalharam por umacorda do sertão,multiplicando grandementemas já são poucos" (Cardim1980:102). Ainda sobre outra nação, parente desses Tupinaquins, quehabitavaosertãodeSãoVicenteatéPernambuco,osTupiguae,Cardimdizque "são sem número. Vão se acabando porque os portugueses os vãobuscar para se servirem deles e os que lhes escapam fogem para muitolonge por não serem escravos" (Cardim 1980:102). Outra nação, osTememinó, "já são poucos". E, ainda, sobre os Tamuya doRio de Janeiro,acrescenta, "estes destruíram os portugueses quando povoaram o Rio edeleshámuitopoucos"(Cardim1980:103).

Nem ele, nem o visitador em nome de quem escreve se impressionammuitocomisso.ProvavelmenteseconsolamcomoqueseriaavontadedeDeus:umprocessodesucessãoecológicapeloqualapopulaçãooriginaldacostadoBrasil,quealcançara1milhãode índios, forasucedidaporumaspoucascentenasquealiestavamseacabando.

Depois de avaliar o extermínio dos índios que primeiro tiveram contatocom os invasores, Cardim abre os olhos de contentamento diante dasfuturas vítimas ‐ os Carijó, que habitavam "além de São Vicente, com 80léguas, contrários aos Tupinaquins. Destes, há infinidades, e correm pelacostadomaresertãoatéoParaguaiquehabitamosCastelhanos"(Cardim1980:103). Jáno seu tempo, essesCarijóouGuarani, começavama ser asprincipaisvítimasdascaçadasdeescravosdospaulistas,principalobjetodaconversãodestribalizadoradosjesuítas.

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Aindamais expressivo é o retrato que nos traça Cardim dos resultadosconcretos de três décadas de pregaçãojesuítica na selva brasileira.Acompanhando o visitador principal da Companhia, ele vai relatando,piedoso,oquevê,aldeiaporaldeia,nasaldeiasquesobraramdasreduções.Esteofrutodasofridaseara.

"AaldeiadoEspíritoSanto,seteléguasdaBahia,comalgunstrintaíndios,quecomseusarcoseflechasvieramparaacompanharopadreerevezadosdedoisemdoisolevavamnumarede.[...]Chegamosàaldeiaàtarde;antesdela umbomquarto de légua, começaram as festas que os índios tinhamaparelhadas, as quais fizeram em uma rua de altíssimos e frescosarvoredos,dosquaissaíamunscantandoetangendoaseumodo,outrosemciladas saíam com grande grita e urros, que nos atroavam e faziamestremecer.Oscunumismeninos,commuitosmolhosdeflechaslevantadaspara cima, faziam seumotim de guerra e davam sua grita, e pintados devárias cores, nuzinhos, vinhamcomasmãos levantadas receber a bençãodopadre,dizendoemportuguês,"louvadosejaJesusCristo".Outrossaíramcom uma dança d'escudos à portuguesa, fazendo muitos trocados edançando ao som da.viola, pandeiro e tamboril e flauta, ejuntamenterepresentavamumbrevediálogo,cantandoalgumascantigaspastoris.Tudocausavadevoçãodebaixodetaisbosques,emterrasestranhasemuitomaispornãoseesperaremtaisfestasdegentetãobárbara(Cardim1980:145)."

Comosevê,dosselvagenssobreviveramalgunscostumes,convertidosempalhaçada.UmdeleseraotemoraoodiadoAnhangá,queressurgiaagora,saindo do mato para assustar os índios, mas encarnado por um padreportuguês.Outro foiocerimonialdoEreiupe,ousaudação lacrimosa,comqueosTupirecebiamosvisitantesqueridos.Nocaso,ressurgenafiguradevelhosmorubixabasquesaúdamaovisitantecomo"vieste?ebeijando‐lheamão recebiamabenção".Enquanto isso, "asmulheresnuas (cousaparanósmuinova)comasmãoslevantadasaoCéu,tambémdavamseuEreiupe,dizendoemportuguês,'louvadosejaJesusCristo'"(Cardim1980,146).

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Sobrevive, também, o costume soleníssimo do aconselhamentoTupinambá,queeraumaatribuição,talvezaprincipal,domorubixaba.DizCardim:

"Aquelanoite,os índiosprincipais,grandes línguas,pregavamdavidadopadre a seu modo, que é da maneira seguinte: começavam a pregar demadrugadadeitadosnaredeporespaçodemeiahora,depoisselevantam,ecorremtodaaldeiapéantepémuitodevagar,eopregartambémépausado,freimático e vagaroso; repetem muitas vezes as palavras por gravidade,contamnestaspregaçõestodosostrabalhos,tempestades,perigosdemorteque o padre padeceria, vindo de tão longe para os visitar, e consolar, ejuntamenteos incitama louvaraDeuspelamercêrecebida,eque tragamseuspresentesaopadre,emagradecimento(Cardim1980:146)."

UmabelasurpresaosaguardanavisitaàaldeiadeSãoMateus,emPortoSeguro. Iam,ovisitantee seusacólitos, calmos,pelaalegrepraia, "eisquedescedeumaltomonteumaíndiavestidacomoelascostumam,comumaporcelanadaÍndia,cheiadequeijadinhasd'açúcar,comumgrandepúcarod' água fria; dizendo que aquilomandava seu senhor ao padre provincialJoseph" (Cardim 1980:148). Este Joseph não era menos que o próprioAnchieta, que vinha atrás com a soitaina arregaçada, descalço e bemcansado,comseusmuitíssimosanosdevidaetantosanosdepregaçãonoBrasil.

Nessa aldeia e nas outras todas visitadas, viajando sempre de rede ecarregadopelos índios,queserevezavamparaquenenhumficassesemaglóriadocarreto, sãorecebidoscomamesmaalegriapelospoucos índiosque sobreviviam. Nosso cândido Cardim não se cansa de pasmar, seja aoconfessar índios e índias através de intérpretes, vendo que são"candidíssimos e vivem com muito menos pecados que os portugueses",seja com o candor da criançada. "Iam conosco alguns sessenta meninos,nuzinhos, como costumam. Pelo caminho fizeram grande festa ao padre,umasvezesocercavam,outrasocativavam,outras

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arremedavam pássaros muito ao natural; no rio fizeram muitos jogosaindamaisgraciosos,etêmelesn'águamuitagraçaemqualquercoisaquefazem"(Cardim1980:155).

Longedali,Cardimseencantariaaindamais"comumadançademeninosíndios,omaisvelhoseriadeoitoanos,todosnuzinhos,pintadosdecertascores aprazíveis, com seus cascavéis nos pés, e braços, pernas, cinta, ecabeçascomvárias invençõesdediademasdepenas,colaresebraceletes"(Cardim1980:169).

Sobre a rotina na vida das velhasmissões, Cardim conta que "[...] nasaldeias, grandes e pequenos, ouvemmissa muito cedo cada dia antes deiremaseusserviços,eantesoudepoisdamissalhesensinamasoraçõesemportuguêsenalíngua,eàtardesãoinstruídosnodiálogodafé,confissãoecomunhão. Alguns assim homens como mulheres, mais ladinos, rezam orosário de Nossa Senhora; confessam‐se a miúdo; honram‐se muito dechegaremacomungar,eporissofazemextremos,atédeixarseusvinhosaquesãomuitodados,eéaobramaisheróicaquepodemfazer;quandoosincitamafazeralgumpecadodevingançaoudesonestidadeetc.respondemquesãodecomunhão,quenãohãodefazeratalcousa.Enxergam‐seentreelesosquecomungamnoexemplodeboavida,modéstiaecontinuaçãodasdoutrinas; têm extraordinário amor, crédito e respeito aos padres e nadafazem sem seu conselho, e assim pedem licença para qualquer cousa porpequenaqueseja,comosefossemnoviços(Cardim1980:156)."

Seuprincipallazer,agora,dizCardim,sãoasfestasreligiosas.

A primeira, é das fogueiras de São João, porque suas aldeias ardem emfogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva a roupa, ainda quealgumasvezeschamusquemocouro.Asegundafestaéaderamos,porqueécoisaparaver,aspalavras,floreseboninasquebuscam,afestacomqueostêmnasmãosaoofício,eprocuramquelhescaiaáguabentanosramos.Aterceira,quemaisquetodasfestejam,

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diadecinza,porquedeordinárionenhumfalta,edocabodomundovêmàcinza,efolgamquelhesponhamgrandecruznatesta(Cardim1980:156).

Nocomumdasaldeias,

"[...] há escolas de ler e escrever, aonde os padres ensinam os meninosíndios;ealgunsmaishábeistambémensinamacontar,cantaretanger;tudotomam bem, e há já muitos que tangem flautas, violas, cravos e oficiammissasemcantod'órgão, coisasqueospais estimammuito.Estesmeninosfalam português, cantam à noite a doutrina pelas ruas, e encomendam asalmasdopurgatório.Nas mesmas aldeias há confrarias do Santíssimo Sacramento, de NossaSenhora, e dos defuntos. Osmordomos são os principais emais virtuosos;têmsuamesana igreja comseupano,eeles trazemsuasopasdebaetaououtropanovermelho,brancoeazul;servemdevisitarosenfermos,ajudaraenterrarosmortos,eàsmissas(Cardim1980:I55‐6)."Impressionante mesmo é o contraste entre esse panorama de pobreza ehumilhação e a glória e suntuosidade dos engenhos, que alcançavamplenaprosperidade.Eleviu,talvez,omomentomaisfaustosodessahistória.Aqueleque antecede às invasões holandesas, as lutas internas e a competiçãointernacional.O fato é que o Brasil havia encontrado um filão de riquezas que pareciainesgotável e que lhe dava, naqueles anos, a posição de economia maisprósperaeexibicionistadoplaneta.Acompanhemossuadescrição.NaBahiaeleencontra[...]umaterrafartademantimentos,carnesdevaca,porco,galinha,ovelhas,eoutrascriações; tem36engenhos,neles se fazomelhoraçúcarde todaacosta; temmuitas madeiras de paus de cheiro, de várias cores, de grandepreço;teráacidadecomseutermopassantede3milvizinhosportugueses,8mil índios cristãos, e 3 ou 4 mil escravos de Guiné; tem seu cabido decônegos,vigáriogeralprovisoretc.,comdezoudozefreguesiasporfora,nãofalandoemmuitasigrejas

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e capelas que alguns senhores ricos têm em suas fazendas (Cardim1980:144).

TambémaCompanhiadeJesusenriqueceranotavelmente,comosevêpeladescriçãodoColégiodaBahiafeitaporCardim.

"Os padres têm aqui colégio novo quase acabado; é uma quadra formosacom boa capela, livraria, e alguns trinta cubículos, os mais deles têm asjanelasparaaomar.Oedifícioétododepedraecaldeostra,queétãoboacomoapedradePortugal.Oscubículossãograndes,osportaisdepedra,asportasd'angelim,forradasdecedro;dasjanelasdescobrimosgrandepartedaBahia,evemoscardumesdepeixesebaleiasandarsaltandon'água,osnaviosestaremtãopertoquequaseficamàfala.Aigrejaécapaz,bemcheiadericosornamentosdedamascobrancoe roxo, veludoverdee carmesim, todosdetela d'ouro; tem uma cruz e tursôulo de prata, uma boa custódia para asendoenças,muitosedevotospainéisdavidadeCristoetodososApóstolos.Todosostrêsaltarestêmdocéis,comsuascortinasdetafetácarmesim;temuma cruz de prata dourada, de maravilhosa obra, com Santo Lenho, trêscabeças das onze mil virgens, com outras muitas e grandes relíquias desantos,euma imagemdeNossaSenhoradeS.Lucas,mui formosaedevota(Cardim1980:144)."

MaioraindaeraapompadosengenhosquemaravilharamCardim.

"Deumacoisamemaravilheinestajornada,efoigrandefacilidadequetêmem agasalhar os hóspedes, porque a qualquer hora da noite ou do dia quechegávamos em brevíssimo espaço nos davam de co‐mer a cinco daCompanhia(aforaosmoços)todasasvariedadesdecarnes,galinhas,perus,patos,leitões,cabritos,eoutrascastasetudotêmdesuacriação,comtodoogênero de pescado emariscos de toda sorte, dos quais sempre têm a casacheia,por teremdeputadoscertosescravospescadorespara isso,edetudotêmacasatãocheiaquenafarturaparecemunscondes,egastammuito(Cardim1980:157‐8)."

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EraaBahiagordadorecôncavoaçucareiro,tãoopostaàBahiadebodedossertõessão‐franciscanos,ondesobreviviamosTapuiaeosCariri,entãoemplenaguerracontrao invasor.Nelaacivilizaçãose implantara,opulentaerefinada,sobreotrabalhodeescravosnegroseíndios.

"Grandesforamashonraseagasalhos,quetodosfizeramaopadrevisitador,procurandocadaumdeseesmerarnãosomentenasmostrasd'amor,granderespeito e reverência, que no tratamento e conversão lhemostravam,masmuitomaisnosgrandesgastosdasiguarias,dalimpezaeconsertodoserviço,nasricascamaseleitosdeseda(queopadrenãoaceitava,porquetraziaumarede que lhe serve de cama, e cousa costumada na terra) (Cardim1980:157)."

Asrecepçõessesucedem:

"[...]aquelanoite,fomosteràcasadeumhomemricoqueesperavaopadrevisitador:énestaBahiaosegundoemriquezasporterseteouoitoléguasdeterraporcosta,emaqualseachaomelhorâmbarqueporcáhá,esóemumanocolheuoitomilcruzadosdele,semlhecustarnada.Temtantogadoquelhenãosabeonúmero,esódobravoeperdidosustentouasarmadasd'el‐rei.Agasalhouopadreemsuacasaarmadadeguadamecinscomumaricacama,deu‐nos sempre de comer aves, perus, manjar branco etc. Ele mesmo,desbarretado,serviaamesaenosajudavaàmissa,emumasuacapela,amaisformosaquehánoBrasil,feitatodadeestuqueetimtimdeobramaravilhosademolduras, laçarias,ecornijas;édeabóbadasextavadacomtrêsportas,etem‐na mui bem provida de ornamentos. Nesta e outras ermidas melembrava de Vossa Reverência, e de todos dessa província (Cardim1980:154)."

EmPernambucoeramaioraindaasuntuosidadeenãoforammenoresasgalas,agradoseoencantodosvisitantescomavila.

"Foi o padre mui freqüentemente visitado do sr. bispo, ouvidor geral, eoutros principais da terra, e lhe mandaram muitas vitelas, porcos, perus,galinhaseoutrascoisas,comoconservasetc.;epessoahouvequedaprimeiravezmandoupassantedecinqüentacruzadosem

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carnes, farinhas de trigo de Portugal, um quarto de vinho etc.; e nãocontentes com isto o levaram às suas fazendas algumas vezes, que sãomaioresemaisricasqueasdaBahia;enelas lhe fizeramgrandeshonrasegasalhados,comtãograndesgastosquenãosabereicontar,porquedeixandoàparteosgrandesbanquetesdeextraordináriasiguarias,oagasalhavamemleitosdedamascocarmesim,franjadosdeouro,ericascolchasdaÍndia(masopadreusavadesuaredecomocostumava)(Cardim1980:161)."

OpróprioCardimdissemissasolenenamatrizdeOlinda,

"[...]àpetiçãodosmordomos,quesãoosprincipaisdaterra,ealgunsdelessenhores d'engenhos de quarenta e mais mi1 cruzados de seu. Seis delestodosvestidosdeveludoedamascodeváriascoresmeacompanharamatéopúlpito, e não é muito achar‐se esta polícia em Pernambuco (Cardim1980:162).A genteda terra éhonrada:háhomensmuito grossosde40, 50, e80milcruzados de seu: alguns devem muito pelas grandes perdas que têm comescravaria de Guiné, que lhes morrem muito, e pelas demasias e gastosgrandes que têm em seu tratamento. Vestem‐se, e asmulheres e filhos detoda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisto têm grandesexcessos. As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas, nemfreqüentamasmissas,pregações,confissõesetc.:oshomenssãotãobriososque compramginetes de duzentos e trezentos cruzados, e alguns têm três,quatrocavalosdepreço.Sãomuidadosafestas.Casandoumamoçahonradacom um vianês, que são os principais da terra, os parentes e amigos sevestiramuns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco eoutras sedas de várias cores, e os guiões e selas dos cavalos eram dasmesmassedasqueiamvestidos.Aquelediacorreramtouros,jogaramcanas,pato,argolinha,evieramdarvistaaocolégioparaosveropadrevisitador;epor esta festa se pode julgar o que farão nas mais, que são comuns eordinárias. São sobretudo dados a banquetes, em que de ordinário andamcomendo um dia dez ou doze senhores de engenho juntos, e revezando‐sedestamaneira gastam quanto têm, e de ordinário bebem cada ano 50milcruzados de vinhos de Portugal; e alguns anos beberam 80 mi1 cruzadosdados em rol. Enfim em Pernambuco se achamais vaidade que em Lisboa(Cardim1980:164)."

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Chegam,afinal,aoRiodeJaneiro,ondeoencantamentodeCardimcomaterrabrasílicaatingeoauge.Vejamossó:

"Acidadeestásituadaemummontedeboavistaparaomar,edentrodabarra tem uma baía que bem parece que a pintou o supremo pintor earquitetodomundodoDeusNossoSenhor,eassimécoisaformosíssimaeamaisaprazívelqueháemtodooBrasil,nemlhechegaavistadoMondegoeTejo; é tão capazque terá vinte léguas em roda cheiapelomeiodemuitasilhas frescas de grandes arvoredos, e não impedem a vista umas às outrasqueéoquelhedágraça.Temabarrameialéguadacidade,enomeiodelauma lájea de sessenta braças em comprido, e bem larga que a divide pelomeio, e por ambas as partes tem canal bastante para naus da Índia; nestalájeamandael‐Reifazerafortaleza,eficaráacousainexpugnável,nemselhepoderá esconder um barco; a cidade tem 150 vizinhos com seu vigário, emuitaescravariadaterra(Cardim1980:170)."

AténoRiooêxitoeraenorme.Aqui,comumapeculiaridade.Apopulaçãodesindianizada, sobretudo o mulherio, procurando uma identidade novaparasimesma,seidentificafervorosamentecomafiguradeD.Sebastião,ojovemreiperdidonumaloucacruzada,emquelevaraàmorteanobrezadePortugal,doqueresultouaperdadaindependêncianacionaleaentregadeLisboa aodomíniodeMadri.Mas, Sebastião era tambémo santo romano,apresentadosemprecomoumaestátuadesnuda,sendomortoapedradas.

"Ospadrestêmaquimelhorsítiodacidade.Têmgrandevistacomtodaestaenseada defronte das janelas: têm começado o edifício novo, têm já trezecubículos de pedra e cal que não dão vantagem aos de Coimbra, antes lhelevamnaboavista.Sãoforradosdecedro,aigrejaépequena,detaipavelha.Agora se começaanovadepedrae cal, todavia têmbonsornamentos comumacustódiadepratadouradaparaasendoenças,umacabeçadasonzemilvirgens, o braço de S. Sebastião com outras relíquias, uma imagem daSenhoradeS.Lucas(Cardim1980:171)."

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Aquelereioráculo,queportuguesesebrasileirosdeculturarústicaaindaesperam ver reencarnado, se funde com esse santo romano, provocandoefusões de fé religiosa. Ainda hoje, no Rio de Janeiro, a procissão de SãoSebastiãomobilizacentenasdemilharesdepessoas,quenãosabemnemnoque crêem. Mas isso não importa, porque o que querem é ter umaidentidadeprópria,queporessaviaalcançamplenamente.

AreferidarelíquiadeSãoSebastião,trazida,aliás,pelovisitador,eraumabelapeçaengastadanumbraçodeprata.Foirecebidacomgrandefestançaporserestacidadedoseunomeesereleopadroeiroeprotetor.

"O padre visitador com o mesmo governador e os principais da terra ealguns padres nos embarcamos numa grande barca bem embandeirada eenramada:nelasearmouumaltarealcatifouatoldacomumpálioporcima;acudiram algumas vinte canoas bem equipadas, algumas delas pintadas,outrasempenadas,e'osremosdeváriascores.EntreelasvinhaMartimAfonso,comendadordeCristo,índioantigoabaetêemoçacára, grande cavaleiro e valente, que ajudoumuito os portugueses natomada deste Rio. Houve no mar grande festa de escaramuça naval,tambores, pífaros e flautas, com grande grita e festa dos índios; e osportugueses da terra com sua arcabuzaria e também os da fortalezadispararam algumas peças de artilharia grossa e com esta festa andamosbarlaventeandoumpoucoàvela,easantarelíquiaianoaltardentrodeumarica charola, com grande aparato de velas acesas,música de canto d'órgãoetc.Desembarcando viemos emprocissão até àMisericórdia, que estájuntoda praia, com a relíquia debaixo do pálio; as varas levaram os da câmara,cidadãosprincipais,antigoseconquistadoresdaquelaterra.EstavaumteatroàportadaMisericórdiacomumatoldadeumavela,easantarelíquiasepôssobreumricoaltarenquantoserepresentouumdevotodiálogodomartíriodo santo, com choros e várias figuras muito ricamente vestidas; e foiasseteadoummoçoatadoaumpau:causouesteespetáculomuitaslágrimasde devoção e alegria a toda a cidade por representar ao vivo martírio dosanto,nemfaltoumulherquenãoviesseàfesta(Cardim1980:169)."

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DiferenteéoretratoquenosdádeSãoPauloesuasquatropobresvilas.SãoVicente,"[...]situadaemlugarbaixomanencolisadoesoturno,emumailhade duas léguas de comprido. Esta foi a primeira vila e povoação deportuguesesquehouvenoBrasil; foirica,agoraépobreporse lhefecharoportodemarebarraantiga,porondeentroucomsuafrotaMartimAfonsodeSousa; e também por estarem as terras gastas e faltarem índios que ascultivem, se vai despovoando; terá oitenta vizinhos, com seu vigário. Aquitêmos padres uma casa aonde residemde ordinário seis da Companhia: osítio é mal‐assombrado, sem vista, ainda que muito sadio (Cardim1980:174)."

Santos,

"[...]oitentavizinhos,comseuvigário.Itanhaém,queéaterceirapovoaçãoda costa, que terá cinqüenta vizinhos, não tem vigário. Os padres visitam,consolameajudamnoquepodem,ministrando‐lhesossacramentosporsuacaridade(Cardim1980:174).PiratiningaéviladainvocaçãodaconversãodeSãoPaulo;estádomarpelosertãodentrodozeléguas;éterramuitosadia,hánelagrandesfriosegeadase boas calmas, é cheia de velhosmais que centenários, porque em quatrojuntos e vivos se acharam quinhentos anos. Vestem‐se de burel, e pelotespardoseazuis,depertinascompridas,comoantigamentesevestiam.Vãoaosdomingosàigrejacomroupõesoubérniosdecacheirasemcapa.Avilaestásituadaembomsítioaolongodeumriocaudal.Terácentoevintevizinhos,commuitaescravariadaterra,nãotemcuranemoutrossacerdotessenãoosda Companhia, aos quais têm grande amor e respeito e por nenhummodoqueremaceitarcura(Cardim1980:173)."

Nenhum balanço crítico é melhor que o de Cardim sobre o resultadopráticodasmissõesedacolonização.Aquelas,tendoentregueseusangueesua energia para fazer a sociedade nova, só sobreviviam nos corpos dosbrasilíndios como um patrimônio genético que se repetirá pelos séculosafora,remarcandoafisionomiadosbrasileiros.Esta,querodizer,asoluçãocolonial,eraomaisbem‐sucedidoimplanteeuropeunoalém‐mar.Chegoua

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terigrejasecolégiossuntuososcomonãoocorreuemlugarnenhummais.Viveu assim e ainda vive a vida de um proletariado externo, cuja sortedependedasoscilaçõesdomercadomundial.

Podia‐sedizer,talvez,queofracassomaiorfoidostalinismojesuítico,quetentou um socialismo precoce e inviável, e fracassou. Ao contrário, osucessofoideseusopositores.Tambémfracassados,porquenãosendoumpovoparasinabuscadesuascondiçõesdeprosperidade,permanecesendoumpovoparaosoutros.

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2AURBANIZAÇÃOCAÓTICA

CIDADESEVILAS

Assinalamos que o Brasil, surgindo embora pela via evolutiva daatualização histórica, nasceu já como uma civilização urbana. Vale dizer,separada em conteúdos rurais e citadinos, com funções diferentes mascomplementaresecomandadaporgruposeruditosdacidade.AprimeiraéLisboa, que não conta. Nossa primeira cidade, de fato, foi a Bahia, já noprimeiroséculo,quandosurgiram,também,oRiodeJaneiroeJoãoPessoa.No segundo século, surgem mais quatro: São Luís, Cabo Frio, Belém eOlinda. No terceiro século, interioriza‐se a vida urbana, com São Paulo;Mariana, emMinas; e Oeiras, no Piauí. No quinto século, a rede explode,cobrindotodooterritóriobrasileiro.

No curso desses séculos as cidades cresceram e se ornaram comoportentosos centros de vida urbana, só comparáveis aos do México. Osholandeses enriqueceram Recife. A riqueza dasminas se exibiu em OuroPreto e outras cidades do ouro, engalanou a Bahia e, depois, o Rio. AvalorizaçãodoaçúcartransladaossenhoresdeengenhoparaRecifeeparaaBahia, onde ergueram seus sobrados e viverama vida tãobemdescritapor Gilberto Freyre (1935). A independência derramou quantidades delusitanos

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FinsdoséculoXVI:númerodecidades‐3,númerodevilas‐14FinsdoséculoXVII:númerodecidades‐7,númerodevilas‐51FinsdoséculoXVIII:númerodecidades‐10,númerodevilas–60PopulaçãodasprincipaiscidadesevilasFins do século XVI: Salvador ‐ 15.000, Recife/Olinda ‐ 5.000, São Paulo ‐1.500,RiodeJaneiro‐1.000Fins do século XVII: Salvador ‐ 30.000, Recife ‐ 20.000, Rio de Janeiro ‐4.000,SãoPaulo‐3.000Fins do século XVIII: Salvador ‐ 40.000, Recife ‐ 25.000, Rio de Janeiro ‐43.000,OuroPreto‐30.000,SãoLuís‐20.000,SãoPaulo‐15.000PopulaçãodoBrasil:FinsdoséculoXVI:60.000FinsdoséculoXVII:300.000FinsdoséculoXVIII:3.000.000

Tabela2"BRASIL‐REDEURBANACOLONIALFonte:Estimativasbaseadasemcronistascontemporâneos."

por toda a parte, todos muito voltados ao comércio, como agentes deempresasinglesas.AGuerradeSecessãonosEstadosUnidosfezcrescerSãoLuís,quenocensode1872comparecemaioremaisricaqueSãoPaulo.Aabolição, dando alguma oportunidade de ir e vir aos negros, encheu ascidades do Rio e da Bahia de núcleos chamados africanos, que sedesdobraramnasfavelasdeagora.

AcrisededesempregoqueocorrenaEuropanapassagemdoséculonosmanda 7 milhões de europeus. Quatro e meio milhões deles se fixaramdefinitivamente no Brasil, principalmente em São Paulo, onde renovaramtodaavidaeconômicalocal.Foramelesquepromoveramoprimeirosurtode industrialização, que mais tarde se expandiria com a industrializaçãosubstitutivadeimportações.

Decuplica‐se, comosevê,o contingenteurbanizado,quandoapopulaçãototaldopaíscresceradeduasvezesemeia,passandode30,6milhões,em1920, para 70, 9 milhões, em 1960. No mesmo período, a redemetropolitanacresceradeseiscidadesmaioresde100milhabitantespara31. Maior, ainda, foi o incremento das cidades pequenas e médias, queconstituíam, em 1960, uma rede de centenas de núcleos urbanosdistribuídospor

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todo o país na forma de constelações articuladas aos centrosmetropolitanosnacionaiseregionais.

Ascidadesevilasdaredecolonial,correspondentesàcivilizaçãoagrária,eram,essencialmente,centrosdedominaçãocolonialcriados,muitasvezes,por ato expresso da Coroa para defesa da costa, como Salvador, Rio deJaneiro, São Luís, Belém, Florianópolis e outras. Exerciam, como funçãoprincipal,ocomércio,atravésde importaçãoecontrabando,eaprestaçãode serviços aos setores produtivos, na qualidade de agências reais decobrança de impostos e taxas, de concessão de terras, de legitimação detransmissõesdebensporherançaouporvendaedejulgamentonoscasosdeconflito.Alémdessasfunções,prestavamassistênciareligiosa,associadaquasesemprecomatividadesescolaresdenívelprimárioepropedêuticasdo sacerdócio. Proviam, também, assistência médica para os casosdesesperados, resistentes às mezinhas domésticas tradicionais. Sua vidagiravaemtornodessasatividadesedasegundafunçãobásica,queeraadeempórios de importação de escravos e manufaturas e de exportação doaçúcar,maistardedoouro,pedraspreciosasepoucasoutrasmercadorias.

Suas principais edificações eram as igrejas, conventos e fortalezas, queconstituíam, também, seu principal atrativo. Por ocasião das festasreligiosas,aaristocraciaruraldeixavaas fazendasparaviveraliumbreveperíododeconvíviourbanofestivo.Aforaestasocasiões,atravessavamumaexistênciapacata;sóanimadapelafeirasemanal,pelasmissasenovenasepela chegada de algum veleiro ao porto. A não ser isso, só semovimentavamcomotrinardoscincerrosdastropasdemulasquevinhamdointerior,oucomorugidodeatritodoscarrosdeboiquechegavamdossítioscarregadosdemantimentosedelenha.

Aclassealtaurbanaeracompostadefuncionários,escrivãesemeirinhos,militares e sacerdotes ‐ que também eram os únicos educadores ‐ enegociantes.Excetoaaltahierarquiacivil

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e eclesiástica, toda essa gente era considerada "de segunda" em relaçãoaos senhores rurais, orgulhosos de suas posses, do seu isolamento econvictos de sua superioridade social. Uma camada intermediária debrancosemestiçoslivres,paupérrimos,procuravasobreviveràsombradosricosouremediados.

Cadafazendeirooucomerciantetinhaemantinhaessesagregadosqueosserviam devotadamente sem qualquer salário, em contrapartida dosobséquiosqueocasionalmenterecebiamedequeviviam.Essagenteenchiaascasas,auxiliandoemtodasastarefasdomésticasenoartesanatosingelodepanoseredes,decosturaebordado,dofabricodesabãooudelingüiçaedoces.Algunsartíficesautônomostrabalhavamporencomenda,emselasetralhademontaria,emsapatosdecouro,comoferreirosemecânicosounosofíciosligadosàsconstruções.Abaixovinhaacriadariaescravadestinadaaabrilhantaraposiçãodos.ricoseremediados,carregandoaelespróprios,aseus objetos e dejetos, amamentando os recém‐nascidos, servindo‐lhes,enfim,demãosedepés.

O crescimento dos centros urbanos dá lugar a uma burocracia civil eeclesiástica da mais alta hierarquia e a um comércio autônomo e rico,integrado quase exclusivamente por reinóis. Mesmo estes, porém, sóalcançavam categoria social respeitável e se integravam na classedominante,quandosefaziamtambémproprietáriosdeterraefazendeiros.Sónasregiõesmineradoras,comovimos,seimplantaumaverdadeiraredeurbanaindependentedaproduçãoagrícola,contandocomumaponderávelcamadaintermediáriademodosdevidacitadinos.

Aglomeradosmenores surgiramno interior de cada área produtiva paraexercer funções especiais, à medida que a população aumentava e seconcentrava. Tais são os vilarejos estradeiros, que serviam de pouso naslongas viagens entre os núcleos ocupados do interior, ou que apareciamondeseimpusesseanecessidadedebaldearcargasdeumaestradaaumrionavegável,

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ouparaatravessiadeste.Éocaso,também,dasfeirasdegadodetodoomediterrâneo interior, algumas das quais alcançariam grande expressão,comoadeCampinaGrande, Sorocaba, Feirade Santana, CampoGrande eoutras. Contam‐se, também, as feiras de algodão, como a de Itapicuru‐mirim,Caxias,Oeiras,Cratoetc.

A economia extrativista criou os portos de exportação de borracha daAmazônia e sua constelação de vilas e cidades auxiliares. E, finalmente, arededecidadesquenasceramacompanhandoamarchadocafé,amaioriadas quais decairia depois, transformadas em cidades mortas, quando afronteirasedistanciava,dandolugaraoutras"bocasdosertão".

Essas cidades e vilas, grandes e pequenas, constituíam agências de umacivilizaçãoagrário‐mercantil,cujopapelfundamentalerageriraordenaçãocolonial da sociedade brasileira, integrando‐a no corpo de tradiçõesreligiosasecivisdaEuropapré‐industriale fazendo‐arenderproventosàCoroa portuguesa. Como tal, eram centros de imposição das idéias e dascrençasoficiais ededefesadovelho corpode tradiçõesocidentais,muitomaisquenúcleoscriadoresdeumatradiçãoprópria.

Assim, apesardas imensasdiferençasquemediavamentre as formaçõessocioculturaiseuropéiaseasbrasileiras, ambaseram frutodeummesmomovimentocivilizatório.Coma industrializaçãosealteraessa constelaçãourbana no que tinha de fundamental, que era sua tecnologia produtiva,transformandotodooseumododeser,depensaredeagir.Provocariaumaseqüênciadealteraçõesreflexasnassociedadesdependentes,denaturezatantotécnicaquantoideológicaque,aquitambém,transfiguraramocaráterdaprópriacivilização.

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INDUSTRIALIZAÇÃOEURBANIZAÇÃO

A industrialização e a urbanização são processos complementares quecostumammarcharassociadosumaooutro.Aindustrializaçãooferecendoempregos urbanos à população rural; esta entrando em êxodo na buscadessas oportunidades de vida.Mas não é bem assim. Geralmente, fatoresexternos afetam os dois processos, impedindo que se lhes dê umainterpretaçãolinear.NoséculoXVI,sãooscarneirosinglesesqueexpulsamapopulaçãodocampo.

NoBrasil,váriosprocessosjáreferidos,sobretudoomonopóliodaterraea monocultura, promovem a expulsão da população do campo. No nossocaso, as dimensões são espantosas, dada a magnitude da população e aquantidade imensa de gente que se vê compelida a transladar‐se. Apopulaçãourbanasaltade12,8milhões,em1940,para80,5milhões,em1980. Agora é de 110, 9 milhões. A população rural perde substânciaporquepassa,nomesmoperíodo,de28,3milhõespara38,6eé,agora,35,8milhões.Reduzindo‐se, emnúmeros relativos, de68,7%para32,4%epara24,4%dototal.

Conformesevê,vivemosumdosmaisviolentosêxodosrurais,tantomaisgrave porque nenhuma cidade brasileira estava em condições de receberesse contingente espantoso de população. Sua conseqüência foi amiserabilizaçãodapopulaçãourbanaeumapressãoenormenacompetiçãoporempregos.

Embora haja variações regionais e São Paulo represente um grandepercentualnesse translado, o fenômeno sedeuem todoopaís. Inchouascidades, desabitou o campo sem prejuízo para a produção comercial daagricultura, que, mecanizada, passou a produzirmais emelhor. Se nossoprograma fosse produzir só gêneros de exportação, isso seria admissível.Comoaquestãoqueahistórianospõeéorganizar todaa economiaparaquetodos

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trabalhemecomam,esse transladoastronômico,daordemde80%,geraenormesproblemas.

Nopresenteséculo,tevelugarumaurbanizaçãocaóticaprovocadamenospela atratividade da cidade do que pela evasão da população rural.Chegamos,assim,àloucuradeteralgumasdasmaiorescidadesdomundo,taiscomoSãoPauloeRiodeJaneiro,comodobrodapopulaçãodeParisouRoma, mas dez vezes menos dotadas de serviços urbanos e deoportunidadesdetrabalho.ÉummistérioinexplicadoatéagoracomoviveopovaréudoRecife,daBahia, comaquela trêfegaalegria,e,ultimamente,comosobrevivemsemtrabalhomilhõesdepaulistasecariocas.

Cidadescom500mila1milhãodedehabitantes:1900:RiodeJaneiro‐8111950:Recife‐5251991:CampoGrande ‐525,Terezina ‐598,Natal ‐607,Maceió ‐629,SãoLuís‐695,Goiânia‐921Cidadescommaisde1milhão:1950:SãoPaulo‐2.198,RiodeJaneiro‐2.3771991:Manaus ‐ 1.011,Belém ‐ 1.245, PortoAlegre ‐ 1.263,Recife ‐ 1.297,Curitiba ‐ 1.313, Brasília ‐ l.598, Fortaleza ‐ 1.766, Belo Horizonte ‐ 2.017,Salvador‐2.072,RiodeJaneiro‐5.474,SãoPaulo‐9.627PopulaçãodoBrasil:1872:9.930.4781900:17.438.4341950:51.944.3971991:146.917.459

Tabela 3 EVOLUÇÃO DA REDE DE CIDADES COM MAIS DE l00 MILHABITANTESDE1900A1991. Fonte:AnuárioEstatísticodoBrasil 1993,IBGE(populaçãoresidente)."

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Entre essas cidades, muitas foram criadas por atos de vontade, comoocorrera com a velha Bahia; Belém do Pará, para fechar a boca doAmazonas; e Sacramento, no sul, à frente da nascente Buenos Aires,mantida em guerra pelos portugueses durante um século, paramarcar olimite sul do Brasil. E, ultimamente, Goiânia; Belo Horizonte e, afinal,Brasília, criada no centro do Brasil, numa extraordinária façanha daengenharia,paraservirdepólocentralordenadordavidabrasileira.

Esse crescimento explosivo entra em crise em 1982, anunciando aimpossibilidade de seguir crescendo economicamente sob o peso dasconstriçõessociaisquedeformavamodesenvolvimentonacional.Primeiro,a estrutura agrária dominada pelo latifúndio que, incapaz de elevar aproduçãoagrícolaaoníveldocrescimentodapopulação,deocuparepagarasmassas rurais, as expulsa em enormes contingentes do campo para ascidades, condenando a imensa maioria da população à marginalidade.Segundo, a espoliação estrangeira, que amparada pela políticagovernamental fortalecera seu domínio, fazendo‐se sócia da expansãoindustrial, jugulandoaeconomiadopaíspelasucçãode todasas riquezasprodutivas.

O Brasil alcança, desse modo, uma extraordinária vida urbana,inaugurando,provavelmente,umnovomododeserdasmetrópoles.Dentrodelas geram‐se pressões tremendas, porque a população deixada aoabandono mantém sua cultura arcaica, mas muito integrada e criativa.Dificulta, porém, uma verdadeiramodernização, porque nenhum governoseocupaefetivamentedaeducaçãopopularedasanidade.

Em nossos dias, o principal problema brasileiro é atender essa imensamassaurbanaque,nãopodendoserexportada,comofezaEuropa,deveserreassentada aqui. Está se alcançando, afinal, a consciência de que não émais possível deixar a população morrendo de fome e se trucidando naviolência,nem

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ainfânciaentregueaovícioeàdelinqüênciaeàprostituição.Osentimentogeneralizadoédequeprecisamostornarnossasociedaderesponsávelpelascrianças e anciãos. Isso só se alcançará através da garantia de plenoemprego,quesupõeumareestruturaçãoagrária,porquealiéondemaissepodemultiplicarasoportunidadesdetrabalhoprodutivo.

Não há nenhum indício, porém, de que isso se alcance. A ordem socialbrasileira, fundada no latifúndio e no direito implícito de ter e manter aterra improdutiva, é tão fervorosamente defendida pela classe política epelasinstituiçõesdogovernoqueissosetornaimpraticável.ÉprovávelqueaUniãoDemocráticaRuralista (UDR), que representa os latifundiáriosnoCongresso,sejaomaispoderosoórgãodoParlamento.Éimpensávelfazê‐laadmitiroprincípiodequeninguémpodemantera terra improdutivaporforçadodireitodepropriedade,afimdedevolverasterrasdesaproveitadasàUniãoparaprogramasdecolonização.

Aindústria,porsuavez,seorientacadavezmaisparasistemasprodutivospoupadoresdemão‐de‐obra,nosquaiscadanovoempregoexigealtíssimosinvestimentos. Isso ocorre, aliás, em todo o mundo, mas de forma maisaguda no Brasil, em razão da massa de desocupados que juntou e dosefeitosdesastrososdodesempregosobreasociedade.

Amodernaindustrializaçãobrasileirateveoseuimpulsoinicialatravésdedoisatosdeguerra.GetúlioVargasimpôsaosaliados,comocondiçãodedarseu apoio em tropas e matériasprimas, a construção da CompanhiaSidenirgicaNacionalemVoltaRedondaeadevoluçãodas jazidasde ferrode Minas Gerais. Surgiram, assim, imediatamente após a guerra, doisdínamosdamodernizaçãonoBrasil.VoltaRedondafoiamatrizdaindústrianavaleautomobilísticaedetodaaindústriamecânica.AValedoRioDocepôsnossasreservasmineraisaserviçodoBrasil,provendodelasomercadomundial.Cresceu,assim, comoumadasprincipaisempresasdeseuramo.Alémdessasempresas,oEstadocriouváriasoutrascomêxitomenor,

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comoaFábricaNacionaldeMotoreseaCompanhiaNacionaldeAlcalis.

Essa política de capitalismo de Estado e de industrialização de baseprovocou sempre a maior reação por parte dos privatistas e dos porta‐vozes dos interesses estrangeiros. Assim é que, quandoGetúlioVargas sepreparaparacriaraPetrobráseaEletrobrás,umacampanhauníssonadetoda a mídia levou seu governo a tal desmoralização que ele se viu naiminência de ser enxotado do Catete. Venceu pelo próprio suicídio, queacordouanaçãoparaocaráterdaquelacampanhaeparaosinteressesqueestavamatrásdosinimigosdogoverno.

Em conseqüência, os líderes da direita não alcançaram o poder e ocandidato de centro‐esquerda, Juscelino Kubitschek, foi eleito presidente.Comele,sedesencadeiaaindustrializaçãosubstitutiva.Nummundoemquenem Dutra nem Getúlio conseguiam qualquer investimento, Jtc,abandonando a política de capitalismo de Estado, atrai numerosasempresas para implantar subsidiárias no Brasil, no campo da indústriaautomobilística,naval, química,mecânicaetc.Para tanto, concedeu todaasortedesubsídios,taiscomoterrenos,isençãodeimpostos,empréstimoseavais a empréstimos estrangeiros. O fez com tanta largueza, que muitaindústriacustouaseusdonosmenosde20%de investimentorealdoseucapital(Tavares1964).

O fundamento dessa política, formulada pelo Centro de Estudos para aAméricaLatina(CEPAL),eraodeque,elevandoasbarreirasalfandegáriasparareservaromercado internoàs indústriasqueaquise instalassem,sepromoveria uma Revolução Industrial equivalente à que ocorreuoriginalmente em outros países. Os resultados foram, por um lado,altamente exitosos pela modernização que essas indústrias substitutivasdasimportaçõespromoveram,dinamizandotodaaeconomianacional.Poroutrolado,concentrou‐setantoemSãoPaulo,quefezdesseestadoumpólodecolonizaçãointerna,crescendoexorbitantemente

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e coactando o desenvolvimento industrial de outros estados.Simultaneamente comesseprocesso, asmetrópolesdoBrasil absorveramimensasparcelasdapopulaçãoruralque,nãotendolugarnoseusistemadeprodução,seavolumaramcomomassadesempregada,gerandoumacrisesemparalelodeviolênciaurbana.

O Estado brasileiro não tem nenhum programa de reestruturaçãoeconômicaquepermitagarantirplenoempregoaessasmassasdentrodeprazosprevisíveis.Quefazer?Prosseguirogenocídiodospioneiros,quenasterras de ninguém da Amazônia procuram seu pé‐de‐chão? Continuarcastrando as mulheres de Goiás, por exemplo, para guardar espaçobrasileiro não se sabepara quem? Insistir num liberalismo aloucado, queregeu a economia desde 64, enriquecendo os ricos e empobrecendo ospobres? Continuar imbuídos da ilusão de que omelhor para o Brasil é oespontaneísmo, regido pelo lucrismo dos banqueiros, que acabará porresolver nossos problemas? Até quando este país continuará sem seuprojetoprópriodedesenvolvimentoautônomoeauto‐sustentável?

Os tecnocratasdosúltimosgovernos sóvêemsaídanavendaaqualquerpreço das indústrias criadas no passado com tão grandes sacrifícios,seguida domergulho da indústria brasileira nomercado global, confianteem que ele nos dará a prosperidade, se não para o povo trabalhador, aomenosparaosqueestãobemintegradosnosistemaeconômico.

Se fôssemos uma pequena nação, seria uma fatalidade para nós aintegração no Colosso. Sendo o que somos, não se pode adiar mais aformulação de um projeto próprio que nos insira no contexto mundial,guardandonossaautonomiaeconômicaparaumcrescimentoautônomo.Oque nos falta hoje é maior indignação generalizada em face de tantodesemprego, tanta fome e tanta violência desnecessárias, porqueperfeitamente sanáveis com alterações estratégicas na ordem econômica.Falta

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mais,ainda,competênciapolíticaparausaropodernarealização

denossaspotencialidades.

Ahistórianosfez,peloesforçodenossosantepassados,detentoresdeumterritórioprodigiosamentericoedeumamassahumanametidanoatrasomassedentademodernidadeedeprogresso,quenãopodemosentregaraoespontaneísmo do mercado mundial. A tarefa das novas gerações debrasileirosétomarestepaísemsuasmãosparafazerdeleoquehádeser,umadasnaçõesmaisprogressistas,justaseprósperasdaterra.

DETERIORAÇÃOURBANA

Aprópriapopulaçãourbana,largadaaseudestino,encontrasoluçõesparaseusmaioresproblemas.Soluçõesesdrúxulaséverdade,massãoasúnicasque estão a seu alcance. Aprende a edificar favelas nas morrarias maisíngremes fora de todos os regulamentos urbanísticos, mas que lhepermitem viver junto aos seus locais de trabalho e conviver comocomunidades humanas regulares, estruturando uma vida social intensa eorgulhosa de si. Em São Paulo, onde faltam morrarias, as favelas seassentamnochãolisodeáreasdepropriedadecontestadaeorganizam‐sesocialmente como favelas. Resistem quanto podem a tentativasgovernamentais de desalojá‐las e exterminá‐las. Quempuder oferecer 1milhão de casas, terá direito de falar em erradicação de favelas. Outraexpressão da criatividade dos favelados é aproveitar a crise das drogascomofonteslocaisdeemprego.Essa"solução",aindaquetãoextravaganteeilegal,refleteacrisedasociedadenorte‐americanaquecomseusmilhõesde drogados produz bilhões de dólares de drogas, cujo excesso derramaaqui. É nessa base que se estrutura o crime organizado, oferecendo umamassadeempregosnaprópriafavela,bemcomoumaescaladeheroicidadedosqueocapitaneiameumpadrãodecarreira

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altamentedesejável para a criançada.Antigamente, tratava‐se apenasdojogo do bicho, que empregava ex‐presidiários e marginais, lhes dandocondições de existência legal. Hoje em dia é o crime organizado comogrande negócio que cumpre o encargo de viciar e satisfazer o vício de 1milhão de drogados. Quem quiser acabar com o crime organizado, deveconterosubsídioaovíciodadopelosnorte‐americanos.

Até então, o que temos são gestos vãos, de curta duração, incapazes deconter por si os problemas das cidades. É pensável uma reforma urbana.Hoje tãourgentequantoaagrária.É tambémpensável umaeconomiadepleno emprego, mas ninguém tem planos concretos, nesse sentido, quepossamserpostosemprática.

Outro processo dramático vivido por nossas populações urbanas é suadeculturação. Sua gravidade é quase equivalente à primeira grandedeculturaçãoquesofremos,noprimeiroséculo,aodesindianizarosíndios,desafricanizarosnegrosedeseuropeizaroeuropeuparanosfazermos.Issoresultounumapopulaçãodeculturaarcaica,masmuito integrada,emqueumsaberoperativosetransmitiadepaisafilhoseemquetodosviviamumcalendário civil regido pela Igreja, dentro de padrões morais bemprescritos.

A questão hoje é mais grave. A luta dentro dessa massa urbana éferocíssima. Se associam, eventualmente, nos festivais, comooCarnaval ecerimôniasdeCandomblé,comopaixõesesportivasco‐participadasecomoos cultos de desesperados. Esses marginais não devem, porém, serconfundidoscomasecularpopulaçãofaveladadasgrandescidades,quedefatosãosuasprincipaisvítimas.

O normal na marginália é uma agressividade em que cada um procuraarrancaroseu,sejadequemfor.Nãoháfamlia,masmerosacasalamentoseventuais.Avidaseassentanumaunidadematricêntricademulheresqueparemfilhosdevárioshomens.

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Apesardetodaamiséria,essaheróicamãedefendeseusfilhose,aindaquecom fome,arranjaalgumacoisaparapôremsuasbocas.Não tendooutrorecurso,sejuntaaelesnaexploraçãodolixoenamendicâncianasruasdascidades.ÉincrívelqueoBrasil,quegostatantodefalardesuafamíliacristã,nãotenhaolhosparavereadmiraressamulherextraordináriaemqueseassentatodaavidadagentepobre.

Aanomiafreqüentementeseinstala,prostrandomultidõesnodesânimoenoalcoolismo.Muitasvezessedeteriora, também,naanarquia,emgestosfugazesderevoltaincontrolável.

Um corpo elementar de valores co‐participados a todos afeta, oriundosprincipalmente dos cultos afro‐brasileiros, do futebol e do Carnaval, suaspaixões.Ascircunstânciasfazemsurgir,periodicamente,liderançasferozesqueatodosseimpõemnadivisãododespojodesaqueios.Essasituaçãoéagravada por uma lúmpen‐burguesia demicroempresários que vivem daexploração dessa gente paupérrima e os controla através de matadoresprofissionais, recrutados entre fugidos da prisão e policiais expulsos desuascorporações.

O doloroso é que esses bandos se instalam no meio das populaçõesfaveladasedasperiferias,impondoamaisduraopressãoparaimpedirqueescapem do seu domínio. Isso é o que desejam muitas famílias pobres,geralmentedesajustadas.Paradoxalmente,confiaménocrimeorganizado,que costuma limpar a favela dos pequenos delinqüentes maisirresponsáveis e violentos e põe cobro à caçada de crianças pelosmatadores profissionais. Talvez, por isso, tanto se apeguem aos cultosevangélicos que salvam os homens do alcoolismo, as mulheres dapancadariadosmaridosbêbados,ascriançasdetodasortedeviolênciaedoincesto. Os cultos católicos, regidos por sacerdotes bem formados,raramente aparecem ali. Quem compete mais com os evangélicos são oscultosafro‐brasileiros,quecomsua

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hierarquia rígidae comsua liturgiaapuradíssimaabremperspectivasdecarreirareligiosaedevidasdevotadasaoculto.

Ultimamente, a coisa se tornou mais complexa porque as instituiçõestradicionaisestãoperdendotodooseupoderdecontroleededoutrinação.Aescolanãoensina,aigrejanãocatequiza,ospartidosnãopolitizam.Oqueoperaéummonstruososistemadecomunicaçãodemassafazendoacabeçadas pessoas. Impondo‐lhes padrões de consumo inatingíveis,desejabilidades inalcançáveis, aprofundandomais amarginalidade dessaspopulações e seu pendor à violência. Algo tem que ver a violênciadesencadeada nas ruas com o abandono dessa população entregue aobombardeio de um rádio e de uma televisão social e moralmenteirrresponsáveis, para as quais é bom o quemais vende, refrigerantes ousabonetes, sem se preocupar com o desarranjo mental e moral queprovocam.

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3CLASSE,COREPRECONCEITO

CLASSEEPODER

Nossa tipologiadas classes sociais vêna cúpuladois corpos conflitantes,masmutuamentecomplementares.Opatronatodeempresários,cujopodervem da riqueza através da exploração econômica; e o patriciado, cujomandodecorredodesempenhodecargos,talcomoogeneral,odeputado,obispo, o líder sindical e tantíssimos outros. Naturalmente, cada patrícioenriquecidoquerserpatrãoecadapatrãoaspiraàsglóriasdeummandatoquelhedê,alémderiqueza,opoderdedeterminarodestinoalheio.

Nasúltimasdécadassurgiueseexpandiuumcorpoestranhonessacúpula.Éoestamentogerencialdasempresasestrangeiras,quepassouaconstituirosetorpredominantedasclassesdominantes.Eleempregaostecnocratasmaiscompetentese controlaamídia,conformandoaopiniãopública.Eleelegeparlamentaresegovernantes.Elemanda,enfim,comdesfaçatezcadavezmaisdesabrida.

Abaixo dessa cúpula ficam as classes intermediárias, feitas de pequenosoficiais, profissionais liberais, policiais, professores, o baixo‐clero esimilares.Todoselespropensosaprestar

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homenagem às classes dominantes, procurando tirar disso algumavantagem.Dentrodessaclasse,entreocleroeosraros intelectuais,équesurgiram mais subversivos em rebeldia contra a ordem. A insurgênciamesmo foi encarnada por gente de seus estratos mais baixos. Por issomesmo mais padres foram enforcados que qualquer outra categoria degente.

Seguem‐seasclassessubalternas,formadasporumbolsãodaaristocraciaoperária, que têm empregos estáveis, sobretudo os trabalhadoresespecializados, e por outro bolsão que é formado por pequenosproprietários,arrendatários,gerentesdegrandespropriedadesruraisetc.

Abaixo desses bolsões, formando a linha mais ampla do losango dasclasses sociais brasileiras, fica a grandemassa das classes oprimidas doschamados marginais, principalmente negros e mulatos, moradores dasfavelas e periferias da cidade. São os enxadeiros, os bóias‐frias, osempregados na limpeza, as empregadas domésticas, as pequenasprostitutas, quase todos analfabetos e incapazes de organizar‐se parareivindicar. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o que sendoimpraticável,ossituanacondiçãodaclasseintrinsecamenteoprimida,cujaluta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Desfazer asociedadepararefazê‐la.

Essaestruturadeclassesenglobaeorganizatodoopovo,operandocomoumsistemaautoperpetuantedaordemsocialvigente.Seucomandonaturalsão as classes dominantes. Seus setores mais dinâmicos são as classesintermédias. Seu núcleo mais combativo, as classes subalternas. E seucomponentemajoritáriosãoasclassesoprimidas,sócapazesdeexplosõescatárticas ou de expressão indireta de sua revolta. Geralmente estãoresignadascomseudestino,apesardamiserabilidadeemquevivem,eporsuaincapacidadedeorganizar‐seeenfrentarosdonosdopoder.

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O diagrama abaixo retrata a estratificação social brasileira tal como avemos, empiricamente. Aí estão seus quatro estratos superpostos,correspondentesàsclassesdominantes,aossetoresintermédios,àsclassessubalternas e às classes oprimidas. Os primeiros, cujo número éinsignificante, detêm, graças ao apoio das outras classes, o poder efetivosobre toda a sociedade. Os setores intermédios funcionam como umatenuador ou agravador das tensões sociais e são levados mais vezes aoperar no papel de mantenedores da ordem do que de ativistas detransformações.

As classes subalternas são formadas pelos que estão integradosregularmente na vida social, no sistema produtivo e no corpo deconsumidores,geralmentesindicalizados.Seupendorémaisparadefenderoque já têmeobtermais,doquepara transformarasociedade.Oquartoestrato, formadopelasclassesoprimidas,éodosexcluídosdavidasocial,quelutamporingressarnosistemadeproduçãoepeloacessoaomercado.Naverdade,éaesteúltimocorpo,apesardesuanaturezainorgânicaecheiade antagonismos, que cabe o papel de renovador da sociedade comocombatente da causa de todos os outros explorados e oprimidos. Issoporque só tem perspectivas de integrar a vida social rompendo todaestrutura de classes. Essa configuração de classes antagônicas masinterdependentes organiza‐se, de fato, para fazer oposição às classesoprimidas ‐ ontem escravos, hoje subassalariados ‐ em razão do pavor‐pânico que infunde a todos a ameaça de uma insurreição socialgeneralizada.

DISTÂNCIASOCIAL

Com efeito, no Brasil, as classes ricas e as pobres se separam umas dasoutras por distâncias sociais e culturais quase tão grandes quanto as quemedeiamentrepovosdistintos.Aovigorfísico,àlongevidade,àbelezadospoucossituadosnoápice‐comoexpressãodousufrutodariquezasocial‐secontrapõeafraqueza,aenfermidade,oenvelhecimentoprecoce,afeiúradaimensamaioria‐expressãodapenúriaemquevivem.Aotraçorefinado,à inteligência ‐ enquanto reflexo da instrução ‐, aos costumes patrícios ecosmopolitasdosdominadores,correspondeotraçorude,osabervulgar,aignorânciaeoshábitosarcaicosdosdominados.

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Diagrama1

"ESTRATIFICAÇÃOSOCIALBRASILEIRA

‐Classesdominantes:

PATRONATO:Oligárquico ‐SenhorialParasitário;Moderno ‐EmpresarialContratista

(EstamentoGerencialEstrangeiro

PATRICIADO: Estatal ‐ Político Militar Tecnocrático; Civil ‐ EminênciasLiderançasCelebridades

‐Setoresintermediários:

AUTÔNOMOS:Profissionaisliberais;Pequenosempresários

DEPENDENTES:Funcionários;Empregados

‐Classessubalternas:

CAMPESINATO:Assalariadosrurais;Parceiros;Minifundistas

OPERARIADO:Fabril;Serviços

‐Classesoprimidas:

MARGINAIS: Trabalhadores estacionais; Recoletores – Volantes;Empregados domésticos; Biscateiros – Delinqüentes; Prostitutas –Mendigos"

Quando um indivíduo consegue atravessar a barreira de classe paraingressarnoestratosuperiorenelepermanecer,sepodenotaremumaouduasgeraçõesseusdescendentescrescerememestatura,seembelezarem,se refinarem, se educarem, acabando por confundir‐se com o patriciadotradicional.

Observandoamassa.populardeaglomeradosbrasileiros,ondepredominaumououtroestrato,sepodevercomosecontrastaram

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gritantemente.AmultidãodeumapraiadeCopacabanaeosmoradoresdeuma favela ou subúrbio carioca, ou mesmo o público em um comício deNatal ou em Campinas, como representações dessas camadas opostas, seconfiguramaoobservadormaisdesavisadocomohumanidadesdistintas.

A estratificação social gerada historicamente tem também comocaracterística a racionalidade resultante de sua montagem como negócioque a uns privilegia e enobrece, fazendo‐os donos da vida, e aos demaissubjuga e degrada, como objeto de enriquecimento alheio. Esse caráterintencional do empreendimento faz do Brasil, ainda hoje, menos umasociedade do que uma feitoria, porque não estrutura a população para opreenchimento de suas condições de sobrevivência e de progresso, masparaenriquecerumacamadasenhorialvoltadaparaatenderàssolicitaçõesexógenas.

Essasduascaracterísticascomplementares ‐asdistânciasabismaisentreos diferentes estratos e o caráter intencional do processo formativo ‐condicionaramacamadasenhorialparaencararopovocomomeraforçadetrabalho destinada a desgastar‐se no esforço produtivo e sem outrosdireitos que o de comer enquanto trabalha, para refazer suas energiasprodutivas,eodereproduzir‐separareporamão‐de‐obragasta.

Nem podia ser de outromodo no caso de um patronato que se formoulidando com escravos, tidos como coisas e manipulados com objetivospuramente pecuniários, procurando tirar de cada peça o maior proveitopossível. Quando ao escravo sucede o parceiro, depois o assalariadoagrícola, as relações continuam impregnadas dosmesmos valores, que seexprimemnadesumanizaçãodasrelaçõesdetrabalho.

Em conseqüência, nas vilas próximas às fazendas, se concentra umapopulação detritária de velhos desgastados no trabalho e de criançasentreguesaseusavós.Ogrossodapopulação

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em idade ativa passa a vida fora, sobre os caminhões de bóias‐frias oucomoempregadasdomésticas,prostitutasetc.

Nas metrópoles, essa situação se agrava e, também, se abranda. Nascamadas mais pobres se podem distinguir famílias se esforçando paraascender e outras tantas soterradas cada vez mais na pobreza, nadelinqüênciaenamarginalidade.

As classes sociais brasileiras não podem ser representadas por umtriângulo, comumnível superior,umnúcleoeumabase.Elas configuramum losango, com um ápice finíssimo, de pouquíssimas pessoas, e umpescoço, que se vai alargando daqueles que se integram no sistemaeconômicocomotrabalhadoresregularesecomoconsumidores.Tudoissocomo um funil invertido, em que está a maior parte da população,marginalizada da economia e da sociedade, que não consegue empregosregularesnemganharosaláriomínimo.

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Dadaadiversidadedesituaçõesregionais,deprosperidadeedepobreza,osimples transladodeumtrabalhador,quevádeumaregiãoaoutra,poderepresentarumaascensãosubstancial,seeleconsegueincorporar‐seaumnúcleomaispróspero.

Uma pesquisa que fiz realizar sobre as condições de existência dascamadasurbanaseruraisdasváriasregiõesdoBrasilnosdánítidoperfildascondiçõesdevidadessaspopulações.Ocritérioutilizadofoiumíndicede conforto doméstico medido objetivamente pelos bens que havia navivenda.Uma trempepara cozinhar, umpote, umprato e alguns talherespodiamvalerquarentapontos;enquantoumacasacheiadetodososbens,com televisão, geladeira, telefone e automóveis, podia valer até 2800pontos. As amostras de casas rurais e urbanas de catorze cidades foramutilizadas para compor o índice e representá‐lo graficamente (Ribeiro1959;Albershime1962).

Operfilmais feioéodeSantarém,noPará, regiãoextrativista emqueamassa da população está soterrada no nível mais baixo. Os gráficosseguintes mostram que a passagem de Catalão, em Goiás ‐ região delatifúndiospastoris‐,paraJúliodeCastilhos,noRioGrandedoSul‐lugardesítios e fazendas ‐, pode representar um grande progresso na vida. OtransladoparaLeopoldina,emMinas,piorariaasituação.

O perfilmelhor é o de Ibirama, em Santa Catarina, região granjeira quepraticamente integroutodasuapopulação,dedescendentesde imigrantesalemães,aosistemaprodutivo,dando‐lhemelhorescondiçõesdevida.Issoporque sucessivos governos, querendo atrair imigrantes europeus,inclusiveparamelhorararaça,aelesdeulotesdeterraeajudaeconômica.Coisaquenuncasefez,eatéseproibiufazer,paraosbrasileiros.

AsuperposiçãodosperfisdeIbirama,MococaeSantarémdemonstracomoavariaçãoespacialafetaascondiçõesdevidadapopulaçãoecomoessaéumadasrazõesporqueobrasileironãopára,estásempresetransladandodeumaáreaaoutra.

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Essas diferenças sociais são remarcadas pela atitude de fria indiferençacomqueasclassesdominantesolhamparaessedepósitodemiseráveis,deonderetiramaforçadetrabalhodequenecessitam.

Éprecisovivernumengenho,numa fazenda,numseringal, para sentir aprofundidade da distância com que um patrão ou seu capataz trata osserviçais,noseudescasopelodestinodestes,comopessoas,suainsciênciade que possam ter aspirações, seu desconhecimento de que estejam, elestambém,investidosdeumadignidadehumana.

A suscetibilidade patronal a qualquer gesto que possa ser tido comolonginquamente desrespeitoso por parte de um empregado contrastaclaramente com o tratamento boçal com que trata este. Exemplificativodissoéadiferençadecritériosdeumpolicialoudeumjuizquandosevêdiantedeofensasoudanosfeitosaummembrodaclassesenhorialouaumpopular.

Diagrama4

"IBIRAMA‐MOCOCA‐SANTARÉM

Issoemilsíndromesmais‐sobreviventesprincipalmentenaszonasrurais,mastambémpresentesnascidades‐indicamcomofoiprofundooprocessode degradação do caráter do homem brasileiro da classe dominante. Eleestáenfermode

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desigualdade. Enquanto o escravo e o ex‐escravo estão condenados àdignidade de lutadores pela liberdade, os senhores e seus descendentesestãocondenados,aocontrário,aoopróbiode lutadorespelamanutençãodadesigualdadeedaopressão.

Aclassedominantebifurcousuacondutaemdoisestiloscontrapostos.Um,presididopelamaisviva cordialidadenas relações comseuspares;outro,remarcadopelodescasonotratocomosquelhesãosocialmenteinferiores.Assim é que namesma pessoa se pode observar a representação de doispapéis, conforme encarne a etiqueta prescrita do anfitrião hospitaleiro,gentilegenerosodiantedeumvisitante,ouopapelsenhorial,emfacedeumsubordinado.Ambosvividoscomumaespontaneidadequesóseexplicapelaconformaçãobipartidadapersonalidade.

A essa corrupção senhorial corresponde uma deterioração da dignidadepessoal das camadas mais humildes, condicionadas a um tratamentogritantemente assimétrico, predispostas a assumir atitudes desubserviência,compelidasasedeixaremexploraratéaexaustão.Sãomaiscastasqueclasses,pelaimutabilidadedesuacondiçãosocial.

Adignidadepessoal,nessascondições,sósepreservaatravésdeatitudesevitativas, extremamente cautelosas na prevenção de qualquerdesentendimento. Essa é a explicação da reserva e da desconfiança doslavradoresdiantedaclassepatronal, frutodesuaconsciênciadeque,umavez toldadas as relações, só lhes resta a fuga, sem possibilidades dereclamar qualquer direito. Aqueles que não conseguem introjetar essasatitudes, prontamente se desajustam, saindo a perambular de fazenda afazendaouencaminhando‐seàscidades,quandonãocaemnaanomiaounobanditismo. Na maior parte das vezes, porém, o contexto sociocultural ésuficientemente homogêneo para induzir os indivíduos à acomodação, sóescapando delas as personalidades mais vigorosas, que, por sua própriarebeldia,vãosendoexcluídasdasfazendas.

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Os subprodutos mais característicos desse sistema foram o coronelfazendeiroeocabra,geradossocialmentecomotiposhumanospolarmenteopostos, substituídos hoje pelo gerente e pelo bóia‐fria. O primeiro, nasgrandes cidades, comercia sua produção, onde vive temporadas e educaseus filhos. É um homem em todo o valor da expressão, um cidadãoprestantedesuapátria.Osegundo,nascendoevivendodentrodocercadodafazenda,numacasafeitacomsuasprópriasmãos,sópossuindodeseuatralhaqueelemesmo fabrica,devotadodesolasolaserviçodopatrão,émantido no analfabetismo e na ignorância. Jamais alcança condiçõesmínimas para o exercício da cidadania, mesmo porque a fazenda é suaverdadeira e única pátria. Escorraçado ou fugido dela é umpária, que sóaspiraaganharomatoparaescaparaobraçopunitivodopatrão,parasepossívelsubmeter‐seaindamaissolícitoao"amparo"deoutrofazendeiro.

Ambosrepresentamosprodutoshumanosnaturaisenecessáriosdeumaordem que brilha no fazendeiro como a sua expressão mais nobre e sedegrada no lavrador como o seu dejeto, produzido socialmente paratrabalharcomoenxadeiro,apenasaspirandoaascenderacapataznausina,apeãonaestânciaouacabravalentenosertão.

Dentrodessecontextosocial jamais sepuderamdesenvolver instituiçõesdemocráticas com base em formas locais de autogoverno. As instituiçõesrepublicanas,adotadasformalmentenoBrasilparajustificarnovasformasde exercício do poder pela classe dominante, tiveram sempre como seusagentes junto ao povo a própria camada proprietária. Nomundo rural, amudança de regime jamais afetou o senhorio fazendeiro que, dirigindo aseutalanteasfunçõesderepressãopolicial,asinstituiçõesdapropriedadenaColônia,no ImpérioenaRepública,exerceudesdesempreumpoderiohegemônico.

Asociedaderesultantetemincompatibilidadesinsanáveis.

Dentreelas,aincapacidadedeassegurarumpadrãodevida,

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mesmomodestamentesatisfatório,paraamaioriadapopulaçãonacional;a inaptidão para criar uma cidadania livre e, em conseqüência, ainviabilidade de instituir‐se uma vida democrática. Nessas condições, aeleiçãoéumagrandefarsaemquemassasdeeleitoresvendemseusvotosàqueles que seriam seus adversários naturais. Por tudo isso é que ela secaracteriza como uma ordenação oligárquica que só se pode manterartificiosaourepressivamentepelacompressãodas forçasmajoritáriasàsquaiscondenaaoatrasoeàpobreza.

Nãoéporacaso,pois,queoBrasilpassadecolôniaanaçãoindependenteedeMonarquiaaRepública,semqueaordemfazendeirasejaafetadaesemque o povo perceba. Todas as nossas instituições políticas constituemsuperfetaçõesdeumpoderefetivoquesemantémintocado:opoderiodopatronatofazendeiro.

Aúnicasaídapossívelparaessaestruturaautoperpetuantedeopressãoéo surgimento e a expansão do movimento operário. Nas cidades, aocontrário da roça, o operário sindicalizado já atua como um lutador livrediante do patrão, chegando a ser arrogante na apresentação de suasreivindicações. É por esse caminho que as instituições políticas podemaperfeiçoar‐se,dandorealidadefuncionalàRepública.

CLASSEERAÇA

AdistânciasocialmaisespantosadoBrasiléaqueseparaeopõeospobresdos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre negros,mulatoseíndios,sobretudoosprimeiros.

Entretanto, a rebeldia negra é muito menor e menos agressiva do quedeveriaser.Nãofoiassimnopassado.AslutasmaislongasemaiscruentasquesetravaramnoBrasilforamaresistênciaindígenasecularealutadosnegroscontraaescravidão,

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que duraram os séculos do escravismo. Tendo início quando começou otráfico,sóseencerroucomaabolição.

Sua forma era principalmente a da fuga, para a resistência e para areconstituição de sua vida em liberdade nas comunidades solidárias dosquilombos,quesemultiplicaramaosmilhares.

Eram formações protobrasileiras, porque o quilombola era um negro jáaculturado, sabendosobrevivernanaturezabrasileira, e, também,porquelheseriaimpossívelreconstituirasformasdevidadaÁfrica.Seudramaeraa situação paradoxal de quem pode ganhar mil batalhas sem vencer aguerra,masnãopodeperdernenhuma.Issofoioquesucedeucomtodososquilombos,inclusivecomoprincipaldeles,Palmares,queresistiupormaisdeumséculo,masafinalcaiu,arrasado,eteveoseupovovendido,aoslotes,paraosuleparaoCaribe.

Entretanto, a lutamais árdua do negro africano e de seus descendentesbrasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar e de um papel departicipante legítimo na sociedade nacional. Nela se viu incorporado àforça.Ajudouaconstruí‐lae,nesseesforço,sedesfez,mas,ao fim,sónelasabia viver, em razão de sua total desafricanização. A primeira tarefaculturaldonegrobrasileirofoiadeaprenderafalaroportuguêsqueouvianos berros do capataz. Teve de fazê‐lo para comunicar‐se com seuscompanheiros de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo‐o, sereumanizou,começandoasairdacondiçãodebemsemovente,meroanimalou força energética para o trabalho. Conseguindo miraculosamentedominar a nova língua, não só a refez, emprestando singularidade aoportuguês do Brasil, mas também possibilitou sua difusão por todo oterritório,umavezquenasoutrasáreasse falavaprincipalmentea línguadosíndios,otupi‐guarani.

Calculo que o Brasil, no seu fazimento, gastou cerca de 12 milhões denegros, desgastados como a principal força de trabalho de tudo o que seproduziu aqui e de tudoque aqui se edificou.Ao fimdoperíodo colonial,constituíaumadasmaiores

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massasnegrasdomundomoderno.Suaabolição,amaistardiadahistória,foiacausaprincipaldaquedado ImpérioedaproclamaçãodaRepública.Mas as classes dominantes reestruturaram eficazmente seu sistema derecrutamentodaforçadetrabalho,substituindoamão‐de‐obraescravaporimigrantes importados da Europa, cuja população se tornara excedente eexportávelabaixopreço.

Onegro,condicionadoculturalmenteapouparsuaforçadetrabalhoparanão ser levado à morte pelo chicote do capataz, contrastava vivamentecomo força de trabalho com o colono vindo da Europa, já adaptado aoregimesalarialepredispostoaesforçar‐seaomáximoparaconquistar,elepróprio,umpalmodeterraemquepudesseprosperar,livredaexploraçãodosfazendeiros.

Onegro,sentindo‐sealiviadodabrutalidadequeomantinhatrabalhandonoeito,sobamaisdurarepressão–inclusiveaspuniçõespreventivas,quenãocastigavamculpasoupreguiças,massóvisavamdissuadiaronegrodefugir‐,sóqueriaaliberdade.Emconseqüência,osex‐escravosabandonamas fazendasemque labutavam,ganhamasestradasàprocuradeterrenosbaldiosemquepudessemacampar,paraviveremlivrescomoseestivessemnosquilombos,plantandomilhoemandiocaparacomer.Caíram,então,emtal condição de miserabilidade que a população negra reduziu‐sesubstancialmente. Menos pela supressão da importação anual de novasmassas de escravos para repor o estoque, porque essas já vinhamdiminuindo há décadas. Muito mais pela terrível miséria a que foramatirados. Não podiam estar em lugar algum, porque cada vez queacampavam,os fazendeirosvizinhosseorganizavameconvocavam forçaspoliciais para expulsá‐los, uma vez que toda a terra estava possuída e,saindo de uma fazenda, se caía fatalmente em outra. As atuais classesdominantes brasileiras, feitas de filhos e netos dos antigos senhores deescravos,guardam,diantedonegro

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amesmaatitudededesprezovil.Paraseuspais,onegroescravo,oforro,bemcomoomulato,erammeraforçaenergética,comoumsacodecarvão,quedesgastadoerasubstituídofacilmenteporoutroquesecomprava.Paraseusdescendentes,onegrolivre,omulatoeobrancopobresãotambémoque há de mais reles, pela preguiça, pela ignorância, pela criminalidadeinatase inelutáveis.Todoselessão tidosconsensualmentecomoculpadosde suasprópriasdesgraças, explicadas comocaracterísticasda raçaenãocomo resultado da escravidão e da opressão. Essa visão deformada éassimilada também pelos mulatos e até pelos negros que conseguemascender socialmente, os quais se somam ao contingente branco paradiscriminaronegro‐massa.

A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nunca feznada pela massa negra que a construíra. Negou‐lhe a posse de qualquerpedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em que pudesse educarseus filhos,edequalquerordemdeassistência.Só lhesdeu,sobejamente,discriminação e repressão. Grande parte desses negros dirigiu‐se àscidades,ondeencontravaumambientedeconvivênciasocialmenoshostil.Constituíram, originalmente, os chamados bairros africanos, que deramlugar às favelas. Desde então, elas vêm semultiplicando, como a soluçãoque o pobre encontra para morar e conviver. Sempre debaixo dapermanenteameaçadeseremerradicadoseexpulsos.

Onegrorural, transladadoàs favelas, temdeaprenderosmodosdevidadacidade,ondenãopodeplantar.Afortunadamente,encontramnegrosdeantiga extração nelas instalados, que já haviam construído uma culturaprópria,naqualseexpressavamcomaltograudecriatividade.Umaculturafeita de retalhos do que o africano guardara no peito nos longos anos deescravidão,comosentimentosmusicais,ritmos,saboresereligiosidade.

Apartirdessasprecáriasbases,onegrourbanoveioaseroquehádemaisvigorosoebelonaculturapopularbrasileira.

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CombasenelaéqueseestruturaonossoCarnaval,ocultodeIemanjá,acapoeiraeinumeráveismanifestaçõesculturais.Masonegroaproveitacadaoportunidade que lhe é dada para expressar o seu valor. Isso ocorre emtodos os campos em que não se exige escolaridade. É o caso da músicapopular,dofuteboledenumerosasformasmenosvisíveisdecompetiçãoedeexpressão.Onegrovemaser,por isso,apesarde todasasvicissitudesqueenfrenta,ocomponentemaiscriativodaculturabrasileiraeaqueleque,juntocomosíndios,maissingularizaonossopovo.

O enorme contingente negro e mulato é, talvez, o mais brasileiro doscomponentes de nosso povo. O é porque, desafricanizado na mó daescravidão,nãosendo índionativonembrancoreinol, sópodiaencontrarsua identidade como brasileiro. Vale dizer, como um povo novo, feito degentesvindasdetodaparte,emplenoealegreprocessodefusão.Assiméqueosnegrosnãoseaglutinamcomoumamassadisputantedeautonomiaétnica, mas como gente intrinsecamente integrada no mesmo povo, obrasileiro.

O mulato, participando biológica e socialmente do mundo branco, podeacercar‐se melhor de sua cultura erudita e nos deu algumas das figurasmaisdignas e cultasque tivemosnas letras, nas artes enapolítica. Entreeles, o artista Aleijadinho; o escritor Machado de Assis; o jurista RuiBarbosa;ocompositorJoséMaurício;opoetaCruzeSousa;otribunoLuísGama; como políticos, os irmãos Mangabeira e Nelson Carneiro; e, comointelectuais,AbdiasdoNascimentoeGuerreiroRamos.Teve, também,porsuavivacidadeepelaextraordináriabelezademuitosdeles‐sobretudodasmulatas‐,resultantesdovigorhíbrido,maioreschancesdeascensãosocial,ainda que só progredisse namedida emque negava sua negritude. Postoentre os dois mundos conflitantes ‐ o do negro, que ele rechaça, e o dobranco,queorejeita‐,omulatosehumanizanodramadeserdois,queéodeserninguém.

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Nosúltimosanos,porefeitodosucessodonegroamericano,que foi tidopelos brasileiros como uma vitória da raça, mas principalmente pelaascensão de uma parcela da população de cor, através da educação e daampliaçãodasoportunidadesdeemprego,onegrobrasileirovemtomandocoragemdeassumirorgulhosamentesuacondiçãodenegro.

Omesmoocorreuamuitosmulatosquesaltaramparaoladonegrodesuadupla natureza. Essa passagem, de fato, era muito difícil, em razão daimensamassanegra,afundadanamisériamaisatroz,comquenãopodiaseconfundir.Massaquecompõeaimagempopulardonegro,cujacondiçãoéabsolutamente indesejável, porque sobre ela recai, com toda dureza, opauperismo,asenfermidades,acriminalidadeeaviolência.

Issoocorrenumasociedadedoentia,deconsciênciadeformada,emqueonegroé considerado comoculpadode suapenúria.Nessas circunstâncias,seu sofrimento não desperta nenhuma solidariedade e muito menos aindignação. Em conseqüência, o destino dessa parcela majoritária dapopulaçãonãoéobjetodenenhumaformaespecíficadeajudaparaquesaiadamisériaedaignorância.

Prevalece,emtodooBrasil,umaexpectativaassimilacionista,quelevaosbrasileirosasuporedesejarqueosnegrosdesapareçampelabranquizaçãoprogressiva. Ocorre, efetivamente, umamorenização dos brasileiros, masela se faz tanto pela branquização dos pretos, como pela negrização dosbrancos. Desse modo, devemos configurar no futuro uma populaçãomorena em que cada família, por imperativo genético, terá por vezes,ocasionalmente,umanegrinharetintaouumbranquinhodesbotado.

Éverdadequecomosmaioresíndicesdefertilidadedospretos,emrazãode sua pobreza e da conduta que corresponde a ela, os negros iriamimprimir mais fortemente sua marca na população brasileira. Não éimpossívelque,lápelosmeadosdo

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próximo século, num Brasil de 300 milhões, haja uma nítidapreponderânciadepretosemulatos.

Acaracterísticadistintivadoracismobrasileiroéqueelenãoincidesobrea origem racial das pessoas, mas sobre a cor de sua pele. Nessa escala,negroéonegroretinto,omulatojáéopardoecomotalmeiobranco,eseapele é um poucomais clara, já passa a incorporar a comunidade branca.Acrescequeaquiseregistra,também,umabranquizaçãopuramentesocialou cultural. É o caso dos negros que, ascendendo socialmente, com êxitonotório, passam a integrar grupos de convivência dos brancos, a casar‐seentre eles e, afinal, a serem tidos comobrancos.A definiçãobrasileira denegro não pode corresponder a um artista ou a um profissional exitoso.Exemplifica essa situação o diálogo de um artista negro, o pintor SantaRosa,comumjovem,tambémnegro,quelutavaparaascendernacarreiradiplomática, queixando‐se das imensas barreiras que dificultavam aascensãodaspessoasdecor.Opintordisse,muitocomovido:"Compreendoperfeitamenteoseucaso,meucaro.Eutambémjáfuinegro".

Jánoséculopassado,umestrangeiro,estranhandoverummulatonoaltoposto de capitão‐mor, ouviu a seguinte explicação: "Sim, ele foi mestiço,mascomocapitão‐mornãopodedeixardeserbranco"(Koster1942:480).

Aformapeculiardoracismobrasileirodecorredeumasituaçãoemqueamestiçagemnãoépunidamas louvada.Comefeito,asuniões inter‐raciais,aqui,nuncaforamtidascomocrimenempecado.ProvavelmenteporqueopovoamentodoBrasilnãosedeuporfamíliaseuropéiasjáformadas,cujasmulheresbrancascombatessemtodoointercursocommulheresdecor.

Nós surgimos, efetivamente, do cruzamento de uns poucos brancos commultidõesdemulheresíndiasenegras.

Essa situação não chega a configurar uma democracia racial, como quisGilberto Freyre e muita gente mais, tamanha é a carga de opressão,preconceitoediscriminaçãoantinegroqueela

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encerra. Não o é também, obviamente, porque a própria expectativa dequeonegrodesapareçapelamestiçageméumracismo.Masocertoéquecontrasta muito, e contrasta para melhor, com as formas de preconceitopropriamenteracialqueconduzemaoapartheid.

É preciso reconhecer, entretanto, que o apartheid tem conteúdos detolerânciaqueaqui se ignoram.Quemafastaoalternoeopõeàdistânciamaior possível, admite que ele conserve, lá longe, sua identidade,continuando a ser ele mesmo. Em conseqüência, induz à profundasolidariedade interna do grupo discriminado, o que o capacita a lutarclaramente por seus direitos sem admitir paternalismos.Nas conjunturasassimilacionistas, ao contrário, se dilui a negritude numa vasta escala degradações,quequebraasolidariedade,reduzacombatividade, insinuandoaidéiadequeaordemsocialéumaordemnatural,senãosagrada.

O aspectomais perverso do racismo assimilacionista é que ele dá de siumaimagemdemaiorsociabilidade,quando,defato,desarmaonegroparalutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições deterrívelviolênciaaqueésubmetido.Édeassinalar,porém,queaideologiaassimilacionista da chamada democracia racial afeta principalmente osintelectuais negros. Conduzindo‐os a campanhas de conscientização donegroparaaconciliaçãosocialeparaocombateaoódioeaoressentimentodonegro.Seuobjetivo ilusórioécriarcondiçõesdeconvivênciaemqueonegro possa aproveitar as linhas de capilaridade social para ascender,através da adoção explícita das formas de conduta e de etiqueta dosbrancosbem‐sucedidos.

Cadanegrodetalentoextraordináriorealizasuaprópriacarreira,comoade Pelé, a de Pixinguinha ou a de Grande Otelo e inumeráveis outrosesportistaseartistas,semencontrarumalinguagemapropriadaparaalutaanti‐racista.Oassimilacionismo,comosevê,criaumaatmosferadefluideznasrelações

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inter‐raciais, mas dissuade o negro para sua luta específica, semcompreenderqueavitóriasóéalcançávelpelarevoluçãosocial.

A Revolução Cubana veio demonstrar que os negros estão muito maispreparados do que se pode supor para ascender socialmente. Comefeito,alguns anos de escolaridade francamente aberta e de estímulo à auto‐superaçãoaumentaram,rapidamente,ocontingentedenegrosquealçaramaos postos mais altos do governo, da sociedade e da cultura cubanas.Simultaneamente, toda a parcela negra da população, liberada dadiscriminaçãoedoracismo,confraternizoucomosoutroscomponentesdasociedade,aprofundandoassinalavelmenteograudesolidariedade.

Tudo,issodemonstra,claramente,queademocraciaracialépossível,massó é praticável conjuntamente com a democracia social. Ou bem hádemocracia para todos, ou não há democracia para ninguém, porque àopressão do negro condenado à dignidade de lutador da liberdade,correspondeoopróbiodobrancopostonopapeldeopressordentrodesuaprópriasociedade.

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4ASSIMILAÇÃOOUSEGREGAÇÃO

RAÇAECOR

A análise do crescimento da população brasileira e de sua composiçãosegundo a cor é altamente expressiva das condições de opressão que obrancodominadorimpôsaosoutroscomponentes.Avaliamosem6milhõesonúmerodenegrosintroduzidosnoBrasilcomoescravosaté1850,quandodaaboliçãodotráfico;em5milhõesonúmeromínimodeíndioscomqueasfronteiras da civilização brasileira se foram defrontando, sucessivamente,no mesmo período; e em 5 milhões, no máximo, o número de europeusvindos para o Brasil até 1950. Destes 5 milhões, apenas 500 milingressaramnoBrasilantesde1850.Deseusbagosviemos.Consideradaacomposiçãodapopulaçãoem1950(oscensosde1960e1970nãotrazemdados referentes à raçaou à cor), verifica‐sequeos índiosde vida tribal,maisoumenosautônomos,estavamreduzidosacercade100mil(Ribeiro1957);osnegrosterãoalcançadoummáximode5,6milhões;enquantoosquesedefinemcomopardos(mulatos)seriam13,7milhões;eosbrancos(que são principalmente mestiços) ascenderiam a 32 milhões. Os índiosinesperadamente se triplicaram de 1950 a 1990, provavelmente por seteremadaptado àsmoléstias dosbrancos e por efeitodaproteçãooficial,quediminuiusubstancialmenteaschacinas.

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CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO BRASILEIRA SEGUNDO A COR (emMilhares)

Ano Brancos Pretos Pardos* Totais:

1872

1890

1940

1950

1990

3.854(38%)

6.302(44%0

26.206(63%)

32.027(62%)

81.407(55%)

1.976(20%)

2.098(15%0

6.644(15%)

5.692(11%)

7.264(5%)

4.262(42%)

5.934(41%)

8.760(21%)

13.786(26%)

57.822(39%)

9.930

14.333

41.236

51.922

147.306

Tabela 4 *Pardos (Englobamos nesta parcela (pardos) os contingentesdesignados como amarelos nos censos brasileiros, representadosprincipalmentepelosnipo‐brasileiroseosíndios,quenãoalcançam5%dostotais). Fontes: IBGE: Conselho Nacional de Estatística (Laboratório deEstatística),1961;eAnuárioEstatísticodoBrasil,1993."

Apesardasdeformaçõesquesãoimpostaspelaconfusãobembrasileiradacondiçãosocialcomacor,discrepânciascensitáriastãoespantosasnãoseexplicamsimplesmenteporisso,nemportaxasdiferenciaisdefecundidade,mas por fatores ecológicos e sociais. A própria miscigenação deve seranalisada em relação à circunstância de que todos os contingentesalienígenas eram constituídos principalmente por homens que tinham dedisputarasmulheresdaterra,asíndias.Ésabidoquantofoiinsignificanteaproporção de mulheres brancas vindas para o Brasil. Nessas condições,recaiusobreamulherindígenaafunçãodematrizfundamental,geralmentefecundadapelobranco.

Assim se explica, em parte, a branquização dos brasileiros, já que osmestiçosdeeuropeucomíndioconfiguramumtipomorenoclaroque,aosolhoseàsensibilidaderacialdequalquerbrasileiro,sãopurosbrancos.

Oscensosrefletem,comosevênatabela4,umdecréscimoprogressivodaproporçãodenegrosnapopulaçãobrasileira,

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quepassadeumquintoparaumvigésimodapopulaçãonoúltimoséculo.Também em números absolutos houve queda, porque depois de umascensode2a6,6milhões,noscinqüentaanosposterioresàabolição,caiupara 5, 6 milhões em 1950 e apenas alcança 7, 2 milhões em 1990. Épresumívelquemuitonegrosetenhaclassificadocomopardo,porquecadapessoaescolheusuacorouadeseugrupodoméstico.

Éevidente,porém,ocontrastedaprogressãodogruponegrocomogrupobranco,que saltade38%,em1872,para62%,em1950, epara55%,em1990. Numericamente, de 3, 8 para 32 e para 81, 4 milhões no mesmoperíodo. O alto incremento do contingente branco não é explicável pelocrescimento damigração européia, a partir de 1880.O vulto desta nuncaalcançouumnívelquepermitisseinfluirdecisivamentesobreacomposiçãodapopulaçãooriginal.Aexplosãodemográficados"brancos"brasileirossóéinteligível,pois,emtermosdeumcrescimentovegetativomuitointenso,em números absolutos. É prodigiosamente grande em relação às outrasparcelas da população, propiciado pelas melhores condições de vida quefruíam em relação aos negros e aos pardos; aqui também atuou,provavelmente, a tendência a classificar como brancos todos os bem‐sucedidos.

Quanto ao contingente indígena, contamos com estudos dos fatoresresponsáveis por seu extermínio, entre os quais sobrelevam, no nívelbiótico,osefeitosdasmoléstiasintroduzidaspeloeuropeue,nonívelsocial,ascondiçõesdeopressãoaquefoisubmetido(Ribeiro1956).Poucosesabecom respeito aos negros, sendo, porém, admissível uma ação igualmentedeletéria dos mesmos fatores, preponderando, talvez, as condições deopressãosobreosefeitosletaisdasenfermidades.Istoporque,jánaÁfrica,eles estavam expostos aomesmo circuito de contágio de doenças que oseuropeus.Depoisdaaboliçãodaescravatura,continuaramatuandosobreonegro livre, como fatores de redução de sua expansão demográfica, asterríveiscondiçõesde

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penúria a que ficou sujeito. Basta considerar a miserabilidade daspopulações brasileiras das camadas mais pobres, dificilmente suportávelporqualquergrupohumano,equeafetaaindamaisduramenteosnegros,paraseavaliaropesódessefator.

BRANCOSVERSUSNEGROS

O censo de 1950 permite algumas comparações significativas entre ascondiçõesdevidaedetrabalhodenegrosebrancosnapopulaçãobrasileiraativa.Considerando,porexemplo,ogrupopatronalemconjunto,verifica‐seque as possibilidades de um negro chegar a integrá‐lo são enormementemenores, já que de cadamil brancos ativosmaiores de dez anos, 23 sãoempregadores, contra apenas quatro pretos donos de empresas por cadamilempregados.

Comparando a posição ocupacional dos 4milhões de pretosmaiores dedez anos de idade comomilhão de estrangeiros registrados pelomesmocenso, verifica‐se que, enquanto os primeiros contribuem com apenas 20mil empregadores, os últimos detém 86 mil propriedades. É visível queessesestrangeiros,vindosaoBrasilnasúltimasdécadascomo imigrantes,encontraram condições de ascensão social muito mais rápida que oconjuntodapopulaçãoexistente,porémenormementemais intensaqueogruponegro.

Segundo os dados do mesmo censo, no conjunto das ocupações de altopadrãohavia umempregadorpreto para cada25nãopretos; e umpretopara cada cinqüenta profissionais liberais. Coerentemente, nas categoriasprofissionais mais humildes, se encontrava um preto para cada seteoperáriosfabrisdeoutrascorese,oqueémuitoexpressivo,umpretoparacadaquatrooutroslavradoresdoeito.

Examinando a carreira do negro no Brasil se verifica que, introduzidocomoescravo,elefoidesdeoprimeiromomento

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chamado à execução das tarefas mais duras, como mão‐de‐obrafundamentaldetodosossetoresprodutivos.Tratadocomobestadecargaexaurida no trabalho, na qualidade de mero investimento destinado aproduzir o máximo de lucros, enfrentava precaríssimas condições desobrevivência.Ascendendoàcondiçãodetrabalhadorlivre,antesoudepoisda abolição, o negro se viajungido a novas formas de exploração que,embora melhores que a escravidão, só lhe permitiam integrar‐se nasociedadeenomundocultural,quese tornaramseus,nacondiçãodeumsubproletariadocompelidoaoexercíciodeseuantigopapel,quecontinuavasendoprincipalmenteodeanimaldeserviço.

Enquantoescravopoderiaalgumproprietárioprevidenteponderar,talvez,que resultaria mais econômico manter suas "peças" nutridas para tirardelas, a longo termo, maior proveito. Ocorreria, mesmo, que um negrodesgastado no eito tivesse oportunidade de envelhecer num canto dapropriedade, vivendo do produto de sua própria roça, devotado a tarefasmais leves requeridas pela fazenda. Liberto, porém, já não sendo deninguém,seencontravasóehostilizado,contandoapenascomsuaforçadetrabalho,nummundoemqueaterraetudoomaiscontinuavaapropriada.Tinhadesujeitar‐se,assim,aumaexploraçãoquenãoeramaiorquedantes,porque isso seria impraticável, mas era agora absolutamentedesinteressada do seu destino. Nessas condições, o negro forro, quealcançaradealgummodocertovigorfísico,poderia,sóporisso,sendomaisapreciadocomotrabalhador,fixar‐senalgumafazenda,alipodendoviverereproduzir. O débil, o enfermo, o precocemente envelhecido no trabalho,erasimplesmenteenxotadocomocoisaimprestável.

Depoisdaprimeira leiabolicionista ‐aLeidoVentreLivre,que libertaofilhodanegraescrava‐,nasáreasdemaiorconcentraçãodaescravaria,osfazendeiros mandavam abandonar, nas estradas e nas vilas próximas, ascriasdesuasnegrasque,jánãosendocoisassuas,nãosesentiammaisnaobrigação

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dealimentar.NosanosseguintesàLeidoVentreLivre(1871),fundaram‐senasvilasecidadesdoestadodeSãoPaulodezenasdeasilosparaacolheressascrianças,atiradasforapelosfazendeiros.Apósaabolição,àsaídadosnegros de trabalho que não mais queriam servir aos antigos senhores,seguiu‐se a expulsão dos negros velhos e enfermos das fazendas.Numerososgruposdenegrosconcentraram‐se,então,àentradadasvilasecidades, nas condições mais precárias. Para escapar a essa liberdadefamélica é que começaram a se deixar aliciar para o trabalho sob ascondiçõesditadaspelolatifúndio.

Comodesenvolvimentoposteriordaeconomiaagrícoladeexportaçãoeasuperação conseqüente da auto‐suficiência das fazendas, que passaram aconcentrar‐se nas lavouras comerciais (sobretudo no cultivo do café, doalgodãoe,depois,noplantiodepastagensartificiais),outroscontingentesde trabalhadores e agregados foram expulsos para engrossar amassa dapopulação residualdasvilas.Eraagora constituídanãoapenasdenegros,mas tambémdepardosebrancospobres, confundidos todoscomomassadostrabalhadores"livres"doeito,aliciáveisparaasfainasquerequeressemmão‐de‐obra. Essa humanidade detritária predominantemente negra emulata pode ser vista, ainda hoje, junto aos conglomerados urbanos, emtodasasáreasdo latifúndio, formadaporbraceirosestacionais,mendigos,biscateiros, domésticas, cegos, aleijados, enfermos, amontoados emcasebresmiseráveis.Osmaisvelhos, jádesgastadosnotrabalhoagrícolaena vida azarosa, cuidam das crianças, ainda não amadurecidas para neleengajar‐se.

Nessas condições é que se deve procurar a explicação da gritantediscrepância entre a expansão do contingente branco e do negro nodesenvolvimentodapopulaçãobrasileira,permitindoaoprimeirocrescer,nosúltimosséculos,naproporçãodeumparanovee,aooutro,apenasdeumparadoisemeio,reduzindoseumontantetantopercentualmentecomoemnúmerosabsolutos,

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porque caíram de 6, 6 milhões, em 1940, para 5, 7 milhões, em 1950,voltandoaaumentarparaapenas7,2milhões,em1990.

Tambémnascidadesemesmonasáreasindustriaisqueabsorveram,nasúltimasdécadas,enormesmassasrurais,incorporando‐asaooperariado,aintegração do contingente negro não parece ter sido proporcional ao seuvultonapopulaçãototal.Pesquisassobreasrelaçõesinter‐raciaisnoBrasilrevelam que se somam, no caso, fatores de despreparo do negro para aintegraçãonasociedade industriale fatoresderepulsão,quetornammaisdifícilocaminhodaascensãosocialparaaspessoasdecor(Pierson1945;Costa Pinto 1953; Nogueira 1955; Ianni 1962; Cardoso 1962; Fernandes1964).

Asituaçãodeinferioridadedospardosenegroscomrespeitoaosbrancospersiste em 1990. Os poucos dados disponíveis mostram que 12% dosbrancosmaioresdeseteanoseramanalfabetos,masosnegroseram30%eos pardos 29%. Por outro lado, o rendimento anual médio (em Cr$) depessoasdemaisdedezanoserade32.212paraosbrancos,de13.295paraospretosede15.308paraospardos(AnuárioEstatísticodoBrasil, IBGE,1993).Lamentavelmente,asinformaçõesquantoàcorpara1990sãomuitomaisescassasquepara1950.

Assim, o alargamento das bases da sociedade, auspiciado pelaindustrialização,ameaçanãorompercomasuperconcentraçãodariqueza,dopoderedoprestígiomonopolizadopelobranco,emvirtudedaatuaçãode pautas diferenciadoras só explicáveis historicamente, tais como: aemergência recente do negro da condição escrava à de trabalhador livre;uma efetiva condição de inferioridade, produzida pelo tratamentoopressivo que o negro suportou por séculos sem nenhuma satisfaçãocompensatória; a manutenção de critérios racialmente discriminatóriosque,obstaculizandosuaascensãoàsimplescondiçãodegentecomum,igualatodososdemais,tornoumaisdifícilparaeleobtereducaçãoeincorporar‐senaforçadetrabalhodossetoresmodernizados.

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As taxasdeanalfabetismo,decriminalidadeedemortalidadedosnegrossão,porisso,asmaiselevadas,refletindoofracassodasociedadebrasileiraemcumprir,naprática,seuidealprofessadodeumademocraciaracialqueintegrasseonegronacondiçãodecidadãoindiferenciadodosdemais.

Florestan Fernandes assinala que "enquanto não alcançarmos esseobjetivo,nãoteremosumademocraciaracialetampoucoumademocracia.Porumparadoxodahistória,onegroconverteu‐se,emnossaera,napedrade toque da nossa capacidade de forjar nos trópicos esse suporte dacivilizaçãomoderna"(1964:738).

Apesardaassociaçãodapobrezacomanegritude,asdiferençasprofundasque separam e opõem os brasileiros em extratos flagrantementecontrastantes são de natureza social. São elas que distinguem os círculosprivilegiadosecamadasabonadas‐queconseguiram,numaeconomiageralde penúria, alcançar padrões razoáveis de consumo ‐ da enorme massaexploradanotrabalho,ouatédeleexcluídaporviveràmargemdoprocessoprodutivoe,emconseqüência,davidacultural,socialepolíticadanação.Areduçãodessasdiferençasconstituiomaisantigodosdesafiosquereptamasociedade brasileira a promover uma reordenação social que enseje aintegraçãodetodoopovonosistemaprodutivoe,poressavia,nasdiversasesferasdavidasocialeculturaldopaís.

Assim, os brasileiros de mais nítida fisionomia racial negra, apesar deconcentrados nos estratosmais pobres, não atuam social e politicamentemotivados pelas diferenças raciais, mas pela conscientização do caráterhistórico e social ‐ portanto incidental e superável ‐ dos fatores queobstaculizamsuaascensão.Nãoécomonegrosqueelesoperamnoquadrosocial,mas como integrantes das camadas pobres,mobilizáveis todas poriguaisaspiraçõesdeprogressoeconômicoesocial.O fatodesernegrooumulato,entretanto,custatambémumpreçoadicional,

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porque,àcruezadotratodesigualitárioquesuportamtodosospobres,seacrescentamformassutisoudesabridasdehostilidade.

É assinalável, porém, que a natureza mesma do preconceito racialprevalente no Brasil, sendo distinta da que se registra em outrassociedades, o faz atuar antes como força integradora do que comomecanismodesegregação.Opreconceitoderaça,depadrãoanglo‐saxônico,incidindoindiscriminadamentesobrecadapessoadecor,qualquerquesejaa proporção de sangue negro que detenha, conduz necessariamente aoapartamento,àsegregaçãoeàviolência,pelahostilidadeaqualquerformade convívio. O preconceito de cor dos brasileiros, incidindo,diferencialmente, segundo o matiz da pele, tendendo a identificar comobranco omulato claro, conduz antes a uma expectativa demiscigenação.Expectativa, na verdade, discriminatória, porquanto aspirante a que osnegros clareiem, em lugar de aceitá‐los tal qual são, mas impulsora daintegração(Nogueira1955).

Acresce, ainda, que, conforme assinalamos repetidamente, mais do quepreconceitosderaçaoudecor,têmosbrasileirosarraigadopreconceitodeclasse. As enormes distâncias sociais que medeiam entre pobres eremediados, não apenas em função de suas possesmas tambémpelo seugrau de integração no estilo de vida dos grupos privilegiados ‐ comoanalfabetosou letrados, comodetentoresdeum saber vulgar transmitidooralmenteoudeumsabermoderno,comoherdeirosdatradiçãofolclóricaou do patrimônio cultural erudito, como descendentes de famílias bemsituadasoudeorigemhumilde‐,opõempobresericosmuitomaisdoquenegrosebrancos.

Assim é que mais facilmente se admite o casamento e o convívio comnegrosqueascendemsocialmenteeassumemasposturas,osmaneirismoseoshábitosdaclassedominante,doquecomopobrerudeegrosseiro,sejaele negro, branco ou mulato, por sua efetiva discrepância social, e suaevidentemarginalidade

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cultural. Brancos e negros, vivendo juntos essas mesmas condições,tendemalutar,juntostambém,pelasupressãodapobreza,entrelaçando‐see se mesclando como um caudal socialmente uniforme que, forçandoconjuntamente sua ascensão a melhores condições de vida, forçam, aomesmotempo,areordenaçãosocial.

GilbertoFreyre(1954)seenlanguece,descrevendoaatraçãoqueexerciaamulher morena sobre o português, inspirado nas lendas da moiraencantada e até nas reminiscências de uma admiração lusitana àsuperioridade cultural e técnica dos seus antigos amos árabes. Essasobservaçõespodematéserverdadeirasesão,seguramente,atrativascomobizarrices.Ocorre,porém,quesãototalmentedesnecessáriasparaexplicarumintercursosexualquesempresedeunomundointeiro,ondequerqueoeuropeu deparasse com gente de cor em ausência de mulheres brancas.AssimfoimesmonaÁfricadoSul,entreinglesesouholandesesemulhereshotentotes,porexemplo,cujostraçosfísicosdiscrepantesexplicariamcertareserva. Ainda assim, eles se mesclaram por longo tempo, gerando umavasta camada mestiça que continuou até que a população branca sehomogeneizasse pela composição equilibrada de homens e mulheres,criando um ambiente cultural emoral capaz de operar como barreira aointercurso.

Assinale‐se, também, que as relações entre brancos e escravas negrasregistram‐se em todas as áreas e não apenas nas de colonizaçãoportuguesa.Aíestão,paracomprová‐lo,osmestiçosnorte‐americanos,porexemplo, mais numerosos hoje do que os negros mesmo, gerados,evidentemente,pelointercursosexualdopuritanismoprotestanteeapesardaausênciadaslendassobremoirasencantadas.

Oqueosfatosparecemindicaréaexistênciadegrausdepermeabilidadeda barreira racial, em lugar da oposição de um padrão de abstinênciacompletaeumoutrodeintercursogeneralizado

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Onde quer que povos racialmente diferenciados entraram em contato,gerou‐se uma camada mestiça maior ou menor. O que diferencia ascondições de conjunção interacial no Brasil das outras áreas é odesenvolvimento de expectativas reciprocamente ajustadas, maisincentivadorasquecondenatóriasdointercurso.Onascimentodeumtìlhomulatonascondiçõesbrasileirasnãoénenhumatraiçãoàmatriznegraouàbranca,chegandomesmoasermotivodeespecialsatisfação.

Essa ideologia integracionista encorajadora do caldeamento é,provavelmente, o valormais positivo da conjunção inter‐racial brasileira.Não conduzirá, por certo, a uma branquização de todos os negrosbrasileiros na linha das aspirações populares ‐ afinal racistas, porqueesperam que os negros clareiem, que os alemães amorenem, que osjaponeses generalizem seus olhos amendoados ‐, mas tem o valor dereprimirantesasegregaçãoqueocaldeamento.

É de se supor que, por esse caminho, a população brasileira sehomogeneizarácadavezmais, fazendocomque,no futuro,se torneaindamaisco‐participadoportodosumpatrimôniogenéticomultirracialcomum.Ninguémestranha,noBrasil,osmatizesdecordosfilhosdosmesmospais,que vão, freqüentemente, domoreno amulatado, em umdeles, ao brancomaisclaro,nooutro;oucombinamcabeloslisosenegrosdeíndiooudurose encaracolados de negro, ou sedosos de branco, de todos os modospossíveis;comdiferentesaberturasdeolhos,formasdeboca,conformaçõesnasaisouproporçõesdasmãosepés.

Naverdade,cadafamíliabrasileiradeantigaextraçãoretratanofenótipode seusmembros características isoladasde ancestraismaispróximosoumais remotos dos três grandes troncos formadores. Conduzindo, em seupatrimôniogenético,todasessasmatrizes,osbrasileirossetornamcapazesdegerarfilhostãovariadoscomovariadassãoasfacesdohomem.

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Oquecaracterizaoportuguêsdeontemeobrasileirodeclassedominantede hoje é a duplicidade de seus padrões de relação sexual: um, para asrelaçõesdentrodeseucírculosocial,eoutro,oposto,paracomagentedecamadas mais pobres. Nesse caso, se particulariza, pela desenvoltura noestabelecimentoderelaçõessexuaisdohomemcomamulherdecondiçãosocial inferior,movida pelo puro interesse sexual, geralmente despido dequalquervínculoromântico.Semcorteprévia,ohomemdecondiçãosocialsuperiortentarelaçõescomanegra,aíndia,amulatacativante,semprequeseapresentaumaocasiãopropícia.Oapego,oamordecaráterlíricoentrepessoasdenívelsocialdíspar,éfatoraro,excepcional.

As relações sexuais, nessas circunstâncias desigualitárias, nem mesmogeram intimidade, permanecendo a mulher servil ou dependente, tãoigualmente respeitosa antes como depois das relações, dada sua posiçãosocial assimétrica em relação ao homem. Onde e quando permanece nacondiçãodedependência servil, temdeaceitarohomemque lhe impõemparagerarmaisescravos,ouobrancoquedela sequeira servir.Umavezlivre,jápodeaspirararelaçõesmaisigualitárias.Nascondiçõesprevalentesde pobreza, porém, essas se conformam como relações ocasionais ouamasiamentos temporários. Nessas circunstâncias, a família se estruturacentradanamulher,quegerafilhosdediferenteshomens,acujocuidadosedesvela,freqüentementedesajustadapelosdiversospais.

Somentequandoascendedapobrezaacertasuficiênciaeconômicaéqueamulher alcança condições mínimas para aspirar a uma vida sentimentalautônoma, para impor dignidade às relações sexuais, conduzindo‐as àforma de um jogo co‐participado e, finalmente, à oportunidade deestruturar uma vida familiar estável, revestida dos símbolos religiosos elegais do reconhecimento social. O novo padrão de relações prevalece jáparaaparceladapopulaçãonegra,brancaoumestiçaintegradana

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matriz moderna da sociedade nacional. Mas conforma um ideal aindalongínquo para os enormes contingentes de brasileiros socialmentemarginalizados.

Semdúvida,nosúltimosanos,graçasàmodernizaçãoeàdifusãodenovasatitudes,inspiradassobretudonorevivalismodonegronorte‐americano,seobservaumaveementeafirmaçãodenegrosemulatos,afinalorgulhososdesimesmoseàsvezesatécompensatoriamenteracistasemsuanegritude.Atransformação dos padrões de relações inter‐raciais parece tender, não auma simples generalização a todos os valores que presidem as relaçõesentre a gente das classes dominantes, mas a abrandar a rigidez deexpectativas destas quanto à virgindade e a limitar a desenvolturamasculinaparao intercursosexual livree irresponsávelcommulheresdeposiçãosocialinferior.

Nessasnovascondições,amulherdecor,quesemprefoiparceiradesejadaeatéespecialmenteapreciadapararelaçõeseventuais,passaráacompetircomtodasasoutrasparaconformarrelaçõesestáveiseigualitárias.Assim,sepoderásuperar,umdia,aestrnturaprevalentedafamíliabrasileira,quesemprefoimatricêntrica.Paraissoseráindispensávelquesesupere,antes,acondiçãodemarginalidadesocioeconômicadamaioriadapopulação,queé o fundamento da paternidade irresponsável. É provável que, então, seatenuemos ideais de branquizaçãodonegro como formade preconceito,masqueprossigaatendênciaàsrelaçõesinter‐raciais,quecontinuariamarepresentar um importante papel no processo integrativo. Bem podeocorrer, entretanto, que surjam novas e maiores tensões propensas adesacelerar o caldeamento, pela resistência em todos os níveis sociais àascensãomaciçadocontingentemaisnegro,emcompetiçãocomomenosnegro, e pela nova atitude, mais exigente, da mulher de cor noestabelecimentoderelações.

A massa de brasileiros mulatos é, porém, tão grande e tão amplamentedistribuídapelosestratosdasclassesmédiaebaixa,

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que já será capaz, certamente, de presidir o processo, operando comogeratriz de novos contingentes mais morenos que brancos, mantendo efomentando a tendência caldeadora. Seu papel é tanto mais importanteporque os grupos privilegiados ‐ predominantemente brancóides outendentes a identificar sua cor cobriça por uma ancestralidade antesindígenadoquenegra‐,afetadospelaideologiasegregacionista,jáexibemposturasintolerantescaracteristicamenteracistas.

Entretanto, o vigor da ideologia assimilacionista, assentada na culturavulgar e também ensinada nas escolas, e das atitudes que começam ageneralizar‐se entre todos os brasileiros de orgulho por sua origemmultirracial, e dos negros por sua própria ancestralidade, permitirão,provavelmente,enfrentarcomêxitoastensõessociaisdecorrentesdeumaascensão do negro, que lhe augure uma participação igualitária nasociedadenacional.Éprecisoqueassimseja,porquesomenteassimsehádesuperarumdosconflitosmaisdramáticosquedesgarraasolidariedadedosbrasileiros.

IMIGRANTES

O contingente imigratório europeu integrado na população brasileira éavaliado em 5 milhões de pessoas, quatro quintas partes das quaisentraramnopaísnoúltimo século (sobreopapelda imigraçãonoBrasil,ver Ávila 1956; Carneiro 1950; Martins 1955; Cortes 1954; Saito 1961;Waibel1949;Willems1946;Laytano1952;DiéguesJr.1964;Ianni1966).Écomposto,principalmente,por1,7milhãodeimigrantesportugueses,quese vieram juntar aos povoadores dos primeiros séculos, tornadosdominantespelamultiplicaçãooperadaatravésdocaldeamentocomíndiosenegros. Seguem‐seos italianos, com1,6milhão;osespanhóis, com700mil;osalemães,commaisde250mil;os

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japoneses, com cerca de 230 mil e outros contingentes menores,principalmente eslavos, introduzidos no Brasil sobretudo entre 1886 e1930. Os diversos censos nacionais registram na população presenteporcentagensdeestrangeiros ebrasileirosnaturalizadosque sobemde2,45%em1890a6,16%em1900,caindo,depois,sucessivamente,de5,11%em1920,a3,91%em1940,a2,34%em1950ea0,8%em1970.

Ano Portugueses Italianos Espanhóis Japoneses Alemães Totais

1851‐1885 237 128 17 0 59 441

1886‐1900 278 911 187 0 23 1.398

1901‐1915 462 323 258 14 39 1.096

1916‐1930 365 128 118 85 81 777

1916‐1930 105 19 10 88 25 247

Totais 1.447 1.509 590 187 227 3960

Tabela 5 DISTRIBUIÇÃO DOS CONTINGENTES IMIGRATÓRIOS PORPERÍODOSDEENTRADA(emMilhares)

Apesar de numericamente pouco ponderável, o papel do imigrante foimuito importante como formador de certos conglomerados regionais nasáreas sulinas em que mais se concentrou, criando paisagenscaracteristicamente européias e populações dominadoramente brancas.Conquantorelevantenaconstituiçãoracialeculturaldessasáreas,nãotevemaiorrelevâncianafixaçãodascaracterísticasdapopulaçãobrasileiraedasua cultura. Quando começou a chegar em maiores contingentes, apopulação nacional já era tão maciça numericamente e tão definida doponto de vista étnico, que pôde iniciar a absorção cultural e racial doimigrantesemgrandesalteraçõesnoconjunto.

NãoocorrenoBrasil,porconseguinte,nadaparecidocomoquesucedeunospaísesrio‐platenses,ondeumaetniaoriginal

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numericamente pequena foi submetida por massas de imigrantes que,representandoquatro quintos do total, imprimiramuma fisionomia nova,caracteristicamente européia, à sociedade e à cultura nacional,transfigurando‐osdepovosnovosempovostransplantados.OBrasilnasceecrescecomopovonovo,afirmandocadavezmaisessacaracterísticaemsua configuraçãohistórico‐cultural.Oassinalávelno casobrasileiroé,porumlado,adesigualdadesocial,expressaracialmentenaestratificaçãopelaposição inferiorizada do negro e do mulato. E, por outro lado, ahomogeneidade cultural básica, que transcende tanto as singularidadesecológicas regionais, bem como as marcas decorrentes da variedade dematrizesraciais,comoasdiferençasoriundasdaproveniênciaculturaldosdistintoscontingentes.

Apesar da desproporção das contribuições ‐ negra, em certas áreas;indígena, alemã ou japonesa, em outras ‐, nenhuma delas se autodefiniucomocentrodelealdadesétnicasextranacionais.Oconjunto,plasmadocomtantas contribuições, é essencialmente uno enquanto etnia nacional, nãodeixandolugaraquetensõeseventuaisseorganizememtornodeunidadesregionais,raciaisouculturaisopostas.Umamesmaculturaatodosenglobae uma vigorosa autodefinição nacional, cada vez mais brasileira, a todosanima.

Essebrasileirismoéhojetãoarraigadoqueresultaemxenofobia,porumlado, e, por outro lado, em vanglória nacionalista. Os brasileiros todostorcemnascopasdomundocomumsentimentotãoprofundocomosesetratassedeguerradenossopovocontratodososoutrospovosdomundo.As vitórias são festejadas em cada família e as derrotas sofridas comovergonhaspessoais.

Pudesentir,noexílio,comoédifícilparaumbrasileiroviverforadoBrasil.Nosso país tem tanta seiva de singularidade que torna extremadamentedifícilaceitaredesfrutardoconvíviocomoutrospovos.OprefeitodeNatalmorreuemMontevidéu

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de pura tristeza. Nunca quis aprender espanhol, nem o suficiente paracomprar uma caixa de fósforo. Alguns se suicidaram e todos sofreramdemais.Bastaverumareuniãodebrasileiros,domeiomilhãoqueestamosexportando como trabalhadores, para sentir o fanatismo com que seapegam a sua identidade de brasileiros e o rechaço a qualquer idéia dedeixar‐seficarláfora.

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5ORDEMVERSUSPROGRESSO

ANARQUIAORIGINAL

Acontrapartedialéticadaintencionalidadedoprojetocolonialéocaráteranárquico;selvagemesocialmenteirresponsáveldaexpansãodosnúcleosbrasileiros.Atuandosobreumarealidadediferente,queobrigavaabuscarsoluções próprias ajustadas à sua natureza e agindo longe das vontadesoficiais,aaçãodocolonoexerceu‐sequasesempreimprovisadamenteeaosabor das circunstâncias. Sendo imprevisível, ela crescia desgarrada atéque, por reiteração, constituísse uma pauta de ação suscetível de sercopiadaeregulada.

Emmuitoscamposaregrajamaisvingou.Umbomexemploéafornicaçãocom as índias na gestação prodigiosa demestiços fora de qualquer regracanonizávelque se tevedeadmitir egeneralizar.Outroexemplonosdáabandeira,comooperaçãoguerreiradepreiadeescravosíndiosparausarepara vender.Obandeirante, agentedeumaviolênciaprivada, passa a seragentedaCoroa.Éelequemviabiliza,porsuaaçãoecomseusmeios,avidaeconômica nas regiões pobres e a apropriação física do Brasil. Embora ailusãooficialfossedaraosíndiosonobre

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destino copiosamente alegado nos documentos oficiais, a metrópolejamaisopôsqualquerobstáculosérioaocativeiro.

Mais tarde, quando os bandeirantes tropeçam com ouro e, depois, comdiamantesnosermosondeandavam,équevemaCoroa legalizarapossedascatas, impondoformasdeexaçãocadavezmaisescorchantes.Nocasodosdiamantes ‐ tal comoocorrera antes como tabacoeo sal ‐ decretaomonopólio real para que ninguém mais lucrasse com a riqueza nova,convertendo os garimpeiros em contrabandistas condenados pelo furorfiscalaoexercícioclandestinodesuasatividades.

Nós somos resultantesdo embatedaquele racionalismoburocrático, quequeriaexecutarnaterranovaumprojetooficial,comesseespontaneísmoque a ia formando ao deus‐dará, debaixo do poderio e das limitações daecologiatropicaledodespo‐tismodomercadomundial.

Quem somos nós, os brasileiros, feitos de tantos e tão variadoscontingenteshumanos?Afusãodelestodosemnósjásecompletou,estáemcurso,oujamaisseconcluirá?Estaremoscondenadosaserparasempreumpovo multicolorido no plano racial e no cultural? Haverá algumacaracterísticadistintivadosbrasileiroscomopovo,feitoqueestáporgentevindadetodaparte?Todasessasargüiçõessecularestêmjárespostaclaraencontradanaaçãoconcreta.

Nesse campo de forças é que o Brasil se fez a si mesmo, tão oposto aoprojeto lusitano e tão surpreendente para os próprios brasileiros. Hojesomos, apesardos lusosedos seus colonizadores,mas tambémgraçasaoqueelesaquinosjuntaram,tantoostijolosbiorraciaiscomoasargamassassocioculturaiscomqueoBrasilvemsefazendo.

Assiméque,emboraembarcadosnumprojetoalheio,nosviabilizamosaonos afirmar contra aquele projeto oficial e ao nos opor aos desígnios docolonizadoredeseussucessores.Pelavontadedeles,osíndios,osnegrosetodosnós,mestiçosdeles,

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recrutadospelaempresacolonial,prosseguiríamosna funçãoquenos foiprescrita de proletariado de ultramar, destinado a produzir mercadoriaexportável, sem jamais chegar a ser gente com destino próprio. Às vezespenso que continuamos cumprindo esse desígnio mesmo sem osportugueses,debaixodoguantedavelhaclassedominantededescendentesdossenhoresdeescravosqueseseguiuaelesnoexercíciodopoderedasnovas elites cujo setor predominante é, hoje, o corpo gerencial dasmultinacionais.Osmesmostecnocratasaindameninosmasjáaconselhandogovernos se afundam ainda mais no espontaneísmo do mercado e nairresponsabilidadesocialdoneoliberalismo.

Omaiorsustoquetiveramosportugueses,nopassado, foivera forçadetrabalho escrava, reunida com propósitos exclusivamentemercantis paraserdesgastadanaprodução, insurgir‐se,pretendendoser tidacomogentecom veleidades de autonomia e autogoverno. Domesmomodo, a grandeperplexidade das classes dominantes atuais é que esses descendentesdaqueles negros, índios e mestiços ousem pensar que este país é umarepúblicaquedeveserdirigidapelavontadedelescomoseupovoquesão.

Nãoétarefafácildefinirocaráteratípicodenossoprocessohistórico,quenãoseenquadranosesquemasconceituaiselaboradosparaexplicaroutroscontextoseoutrasseqüências.Comefeito,surgindonoleitodocunhadismo,estruturando‐se com base numa força de trabalho africana, o Brasil seconfiguracomoumacoisadiferentedequantashaja,sóexplicávelemseustermos,historicamente.

Velhasquestões institucionais,não tendosidoresolvidasnemsuperadas,continuam sendo os principais fatores de atraso e, ao mesmo tempo, osprincipaismotoresdeumarevoluçãosocial.Comefeito,agrandeherançahistóricabrasileiraéa façanhadesuaprópriaconstituiçãocomoumpovoétnica,nacionaleculturalmenteunificado.É,também,omalogrodosnossosesforçosdenosestruturarmossolidariamente,noplanosocioeconômico,

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como um povo que exista para si mesmo. Na raiz desse fracasso dasmaioriasestáoêxitodasminorias,queaindaestãoaí,mandantes.Emseusdesígnios de resguardar velhos privilégios por meio da perpetuação domonopólio da terra, do primado do lucro sobre as necessidades e daimposição de formas arcaicas e renovadas de contingenciamento dapopulaçãoaopapeldeforçadetrabalhosuperexplorada.

Como não há nenhuma garantia confiável de que a história venha afavorecer, amanhã, espontaneamente, os oprimidos; e há, ao contrário,legítimo temor de que, também no futuro, essas minorias dirigentesconformem e deformem o Brasil segundo seus interesses; torna‐se tantomais imperativa a tarefa de alcançar o máximo de lucidez para intervireficazmente na história a fim de reverter sua tendência secular. Esse énossopropósito.

OARCAICOEOMODERNO

A passagem do padrão tradicional, tornado arcaico, ao padrãomodernoopera a diferentes ritmos em todas as regiões, mas mesmo as maisprogressistas se vêem tolhidas e reduzidas a uma modernização reflexa.Issonãoseexplica, contudo,porqualquerresistênciadeordemculturalàmudança,umavezqueumveementedesejodetransformaçãorenovadoraconstitui,talvez,acaracterísticamaisremarcáveldospovosnovose,entreeles, os brasileiros. Mesmo as populações rurais e as urbanasmarginalizadas enfrentam resistências, antes sociais do que culturais, àtransfiguração, porqueumas e outras estão abertas aonovo. São, de fato,antes atrasadas do que conservadoras. Cada estrada que se abre,quebrandooisolamentodeuma"ilhaarcaica",atrainovoscontingentesaocircuitodecomunicaçãointerna.

Dadaahomogeneidadeculturaldasociedadebrasileira,cadaumdosseusmembrostantoécapazdecomunicar‐secom

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oscontingentesmodernizados,comosepredispõeaaceitarinovações.Nãoestando atados a um conservadorismo camponês, nem a valorestradicionaisdecarátertribaloufolclórico,nadaosapegaàsformasarcaicasde vida, senão as condições sociais que os atam a elas, a seu pesar. Essaatitudereceptivaàmudança,emcomparaçãocomoconservadorismoquese observa em outras configurações histórico‐culturais, não é suficiente,porém, por si só, parapromover a renovação.A famíliamais humilde, dointerior mais recôndito, vê no primeiro caminhão que chega umaoportunidade de libertação. Seus membros mais jovens só aspirarão afazer‐semotoristasetodosquererãoantespartirdoqueficar,prontosqueestãoaseincorporaraosnovosmodosdevida.

Esseéoresultadofundamentaldoprocessodedeculturaçãodasmatrizesformadoras do povo brasileiro. Empobrecido, embora, no plano culturalcomrelaçãoaseusancestraiseuropeus,africanoseindígenas,obrasileirocomumseconstruiucomohomemtábuarasa,maisreceptivoàsinovaçõesdo progresso do que o camponês europeu tradicionalista, o índiocomunitárioouonegrotribal.

As formas futuras que deverá assumir a cultura brasileira com odesenvolvimento conduzirão, seguramente, ao reforço da unidade étnico‐nacionalpelamaiorhomogeneizaçãodosmodosdefazer,deinteragiredepensar. Mas comportarão, por muito tempo ainda, variedades locais,certamente menos diferenciadas do que as atuais porque os fatoresespecializantes do meio são menos poderosos que os uniformizantes datecnologiaprodutivaedecomunicação,apesardoprocessotransformadoroperar sobre contextos culturais previamente diferenciados. Assim, sepreservará,possivelmente,algodocoloridomosaicoquehojeenriqueceoBrasil pela adição, às diferenças de paisagem, de variações de usos ecostumesdeumaregiãoaoutra,atravésdavastidãodoterritório.

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A resistência às forças inovadoras da Revolução Industrial e a causafundamental de sua lentidão não se encontram, portanto, no povo ou nocaráterarcaicodesuacultura,masnaresistênciadasclassesdominantes.Particularmente nos seus interesses e privilégios, fundados numaordenação estrutural arcaica e num modo infeliz de articulação com aeconomiamundial,queatuamcomoumfatordeatraso,massãodefendidoscom todas as suas forças contra qualquer mudança. Esse é o caso dapropriedade fundiária, incompatível com a participação autônoma dasmassas rurais nas formas modernas de vida e incapaz de ampliar asoportunidades de trabalho adequadamente remuneradas oferecidas àpopulação.Étambémocasodaindustrializaçãorecolonizadora,promovidaporcorporaçõesinternacionaisatuandodiretamenteouemassociaçãocomcapitaisnacionais.Emboramodernizeaproduçãoepermitaasubstituiçãodasimportações,apenasadmiteaformaçãodeumempresariadogerencial,sem compromissos outros quenão seja o lucro a remeter a seus patrões.Estes se fazem pagar preços extorsivos, onerando o produto do trabalhonacionalcomenormescontasdelucroseregalias.Seuefeitomaisdanosoéremeter para fora o excedente econômico que produzem, em lugar deaplicá‐loaqui.Defato,elesemultiplicaénoestrangeiro.

Amaisgravedessascontinuidadesresidenaoposiçãoentreosinteressesdo patronato empresarial, de ontem e de hoje, e os interesses do povobrasileiro. Ela se mantém ao longo de séculos pelo domínio do poderinstitucionaledocontroledamáquinadoEstadonasmãosdamesmaclassedominante, que faz prevalecer uma ordenação social e legal resistente aqualquer progresso generalizável a toda a população. Ela é que regeu aeconomia colonial, altamente próspera para uma minoria, mas quecondenavaopovoàpenúria.Elaéquedeforma,agora,opróprio

processo de industrialização, impedindo que desempenhe aqui o papeltransformador

querepresentouemoutrassociedades.

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Aindaéelaque,nadefesadeseusinteressesantinacionaiseantipopulares,permite a implantação das empresas multinacionais, através das quais acivilização pós‐industrial se põe emmarcha como ummero processo deatualizaçãohistóricadospovosfracassadosnahistória.

Modernizada reflexamente, apesar de jungida nessa institucionalidaderetrógrada,asociedadebrasileiranãoconformaumremanescentearcaicodacivilizaçãoocidental, cujosagentes lhederamnascimento,masumdosseus "proletariados externos", conscritos para prover certas matérias‐primaseparaproduzirlucrosexportáveis.Umproletariadoexternoatípicocomrespeitoaosprotagonistashistóricos,assimdesignadosporA.Toynbee(1959),porquenãopossuiumaculturaoriginaleporquesuaprópriaclassedirigenteéoagentedesuadominaçãoexterna.

Ao contrário do que ocorre nas sociedades autônomas, aqui o povo nãoexisteparasiesimparaoutros.Ontem,eraumaforçadetrabalhoescravadeumaempresaagromercantilexportadora.Hoje,éumaofertademão‐de‐obraqueaspiraatrabalhareummercadopotencialqueaspiraaconsumir.Nosdoiscasos,foisempreumaempresapróspera,aindaquesóofosseparaminoriasprivilegiadas.Comotal,manteveoEstadoeenriqueceuasclassesdominantes ao longo de séculos, beneficiando também os mercadoresassociadosaonegócioeaelitedeproprietárioseburocrataslocais.Amão‐de‐obra engajadanaprodução, como tra‐livres, apenaspode sobreviver eprocriar, reproduzindo seus modestos modos de existência. Ostrabalhadoresconscritoscomoescravosnemissoalcançavam,porqueeramumasimplesfonteenergéticagastaparamanterosistemaglobale fazê‐logerarprosperidadeparaoutros.

Entretanto, essa população constituída pelos descendentes doscontingentesaliciadosparaoprojetoagromercantil exportadoracabaporassumirocaráterdeumaetnianacionalnova,

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aspiranteàautonomia,que,porfim,seindependentizadovínculocolonial.Aos primeiros intentos de ruptura, muitos senhores nativos e todos oslusitanosreagemcomperplexidade,indagando,espantados,comofeitoriaspodiam confundir‐se com nações, reivindicantes de autonomia e atéaspirantesaconstituircidadaniasautênticas.

Quando é declarada a independência, a classe dominante local senacionaliza alegremente, preparando‐se para lucrar com o regimeautônomo, tal como lucrara como colonial. Apropriada por essa classe, aindependência não representou nenhuma descolonização do sistema quepermitissetransformaroproletariadoexternoemumpovoparasi,voltadoaopreenchimentodesuasprópriascondiçõesdeexistênciaedeprogresso.Representou o translado da regência política, encarnada por um reiportuguês, sediado em Lisboa, para seu filho, assentado agora no Rio deJaneiro, de onde negociaria a independência nacional com a potênciahegemônica da época, que era a Inglaterra. Uma vez reconhecidaexternamenteeimpostainternamentealegitimidadedeseupoder,passaaregerdaquiasociedadebrasileira, feitanação,contraos interessesdeseuprópriopovo.

Nessascircunstâncias,oEstadoapresentatambémmaiscontinuidadesdoque rupturas, estruturando‐se comoumamáquina político‐administrativade repressão, destinada a manter a antiga ordenação, operando nasmesmas linhas a serviço da velha elite, agora ampliada pelas famíliasfidalgas que vieram comomonarca e por novos‐ricos que surgem com amodernização. O povo reage ao longo de quase todo o país contra aestreiteza dessa independência, exigindo a expulsão dos agentes maisvisíveisdavelhaordem,queeramos comerciantes lusitanos.A repressãomaiscruentaocompeleasubmeter‐se.

OEstadomonárquicoseconsolida,renovaeamplianasdécadasseguintes.Anteriormente, uns quantos clérigos e alguns administradores coloniais,unspoucosmilitaresprofssionaisebacharéis

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com formação universitária, graduados no Reino, podiam dar conta dasnecessidades. Agora, torna‐se indispensável criar escolas médias esuperioresqueformemasnovasgeraçõesdeletradosparaamagistraturaeoParlamento,debacharéisnativos,deengenheirosmilitaresparaadefesa,edemédicosparacuidardasaúdedosricos.Aculturavulgare,comela,amaioriadastécnicasprodutivas,entreguesaseusprodutoresimediatos,sómuito lentamente começaria amodernizar‐se.Comoà criaçãodasescolasparaaselitesnãocorrespondeuqualquerprogramadeeducaçãodemassas,opovobrasileiropermaneceuanalfabeto.

Apesar de tudo, as novas forças unificadoras não conseguem anular asdiferenças regionais da sociedade nacional, que são formas de adaptaçãoespecializada da configuração histórico‐cultural. Embora tenhammais decomumquedepeculiar,nelasseregistrammodosprópriosdeadaptaçãoànatureza no processo produtivo, formas particulares de regulação dasrelações sociais e econômicas, devidas ao atendimento dos imperativosoriundos do gênero de produção a que se dedicam, bem como dasobrevivênciaderepresentaçõestípicasdesuavisãoparticulardomundo.

Oentendimentodecadaumadessasvariantesimportananecessidadedeanalisarsimultaneamentetantoopapeldiferenciadordoesforçoadaptativocomoaforçaunificadoradatecnologiaprodutiva,dosmodosdeassociaçãoedascriaçõesideológicasqueconferemumpatrimôniocomumatodasasáreas(tentativasdeclassificaçãodasáreasculturaisdoBrasilseencontramemDiéguesJr.1960eemWagleyeHarris1955).Essaanálisedeveserfeitatanto sincronicamente –mediante cortesdo continuumhistórico‐cultural,parafocalizarasrelaçõesqueseapresentamnummomentodadoentreosmodos de adaptação, as formas de sociabilidade e o mundo dasrepresentaçõesmentais‐,comodiacronicamente,aprofundandoapesquisahistóricaparaalcançarumaperspectivadetempoquepermitaverificar

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gina254

comosurgiramesegeneralizaramastécnicasemuso,asrelaçõesvigentesdetrabalho,avisãodomundoeosoutrosaspectosessenciaisdomododeserdessasvariantesdasociedadenacional.

Composta como uma constelação de áreas culturais, a configuraçãohistórico‐cultural brasileira conformauma culturanacional comalto graudehomogeneidade.Emcadaumadelas,milhõesdebrasileiros,atravésdegerações,nascemevivemtodaasuavidaencontrandosoluçõesparaseusproblemas vitais, motivações e explicações que se lhes afiguram como omodonaturalenecessáriodeexprimirsuahumanidadeesuabrasilidade.Constituem, essencialmente, partes integrantes de uma sociedade maior,dentro da qual interagem como subculturas, atuando entre si de mododiverso do que o fariam em relação a estrangeiros. Sua unidadefundamental decorre de serem todas elas produto do mesmo processocivilizatório que as atingiu quase aomesmo tempo; de terem se formadopelamultiplicaçãodeumamesmaprotocélulaétnicaedehaveremestadosempredebaixododomíniodeummesmocentroreitor,oquenãoensejadefiniçõesétnicasconflitivas.

Comefeito,essaregênciacomumenglobavadesdeoprincípioa todososcomponentes e, quando necessário, usava da repressão policial‐militar.Ainda assim, por forçado isolamento, da especializaçãoouda atuaçãodeoutros fatores, algumas unidades se diversificaram suficientemente paratenderem à cissiparidade ou à reordenação do contexto global, segundoseus interesses imediatos. Via de regra, essas tendências autonomistasapenas se esboçavam, voltando à unidade e à uniformidade tanto pelapressão das forças repressivas como em virtude do papel integrador dosistema econômico e, sobretudo, da homogeneidade cultural básicaalcançadaprecocemente.

Osistemaeconômicoepolítico,gerandoomesmotipodeestratificaçãoedeordenaçãocívica,criouemcadaunidadea

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mesmaformadehierarquizaçãoquequalificava,faceàsociedadetotal,ascamadas dirigentes de cada variante como componentes da mesmaestrutura de poder, e as fez essencialmente solidárias frente à ameaçacomumrepresentadapeloantagonismodasclassesoprimidas.Opatronato,na função de coordenador das atividades produtivas, e o patriciado, noexercíciodopapeldeordenadordavidasocial,puderamassimfazerfrenteatodasastendênciasdissociativas,preservandoaunidadenacional.

DessemodoéqueoBrasilseimplantacomosociedadenacionalsobreumimensoterritório,envolvendomilhõesdepessoasmedianteocrescimentoediversificaçãoadaptativadonúcleounitáriooriginal,simultaneamentecomoestabelecimentoderepresentaçõeslocaisdamesmacamadadirigenteemcada uma das variantes regionais. O cuidado domonarca português e dobrasileiro em engalanar cada precedência conquistada localmente comtítulos de fidalguia e a habilidade do sistema republicano em fazer dessacamada socioeconômica sua elite dirigente preservaram, a um tempo, aunidadenacionaleamanutençãodosistema.Evitou‐se,assim,queviessema operar, como uma secessão, tanto as diversificações regionais como ascrisesdetransfiguraçãodaformaçãosocioeconômicadecolonial‐escravistaem neocolonial e a transição de colônia a nação politicamenteindependente.

A contraparte dessa tarefa unificadora foi a ordenação da sociedadenacional em cada uma de suas formações, com estreita obediência aosinteresses oligárquicos, diante dos quais o próprio poder central sempreclaudicou,incapazdeenfrentá‐los,apesardaoposiçãoflagranteentreseusinteresses e os da população trabalhadora. Isto é o que torna as classesdirigentes brasileiras tão parecidas aos consulados romanos, comorepresentantes locais de um poder externo, primeiro colonial, depoisimperialista, a que servem como agentes devotados e de quem tiram suaforçaimpositiva.E,sobretudo,comoconsuladossocialmente

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irresponsáveispelodestinodapopulaçãoque,aseusolhos,nãoconstituium povo, mas uma força de trabalho, ou melhor, uma fonte energéticadesgastávelnassuasfaçanhasempresariais.

As esferas de poder estatal e privado se imbricam, aqui, sobrepondo‐seocasionalmenteumaàoutra,masatendendosempreaoscondicionamentosobjetivos da escravidão e do monopólio da terra como princípiosordenadores da economia colonial. Nessa interação prevalece sempre aracionalidade do projeto intencional da Coroa, tolhido, é certo, pelovoluntarismo anárquico do plantador, do minerador, do contrabandista.Jamais as aspirações singelas do índio apresado que quer a liberdade, donegro escravo que pede alforria, do caipira, do sertanejo, do caboclopaupérrimo que desejam escapar da opressão e da subordinação paraviveremumavidamaisvivível.

Do mesmo modo, a conscrição da força de trabalho negra se efetuaartificialmente através da montagem da mais ampla e mais complexaoperaçãomercantildaqueleséculo,habilitadaparacaçarnaÁfrica,exportaratravés do Atlântico e vender nos postos brasileiros milhões de negrosdestinadosasedesgastaremfriaesistematicamentenaproduçãovenal.

A própria independência do Brasil, quando se torna inevitável, éempreendidapelametrópolecolonial,quetransladaparacáaparcelamaisvivaz e representativa das classes dirigentes lusitanas e sua burocraciamais competente. Aqui sediada, se mimetiza de brasileira e tão bemorganizaaindependênciaparasimesmaquecontinuaregendooBrasilporoitenta anos mais. No curso dessas décadas, enfrenta e vence todos oslevantespopulares,matandoseus líderesouosanistiandoe incorporandosemressentimentoaogrupodominante.

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TRANSFIGURAÇÃOÉTNICA

Transfiguração étnica é o processo através do qual os povos, enquantoentidades culturais, nascem, se transformam e morrem. Tivemosoportunidade de estudá‐lo tanto por observação direta, quanto porreconstiução histórica do impacto da civilização sobre as populaçõesindígenas brasileiras no correr dos séculos; reconstituindo suas váriasinstâncias.

Umpovojáconfiguradoresistetenazmenteàsuatransfiguração,masofazprecisamentemudando ao assumir aquelas alterações que viabilizam suaexistênciadentrodocontextoemqueeleinterage.Quatrosãoasinstânciasbásicasdatransfiguração,simultâneasousucessivas.

Primeiro, a biótica, pela qual os seres humanos, interagindo com outrasforças vivas, podem transfigurar‐se radicalmente. É o caso das epidemiastrazidaspeloeuropeu,peloafricanoepeloasiáticoaospovos indenesdasAméricas, sobre os quais produziram imensa depopulação. Com respeitoaos germes que o estranho trazia no corpo, já não o vitimavam, masexterminavamquemdeleseaproximasse.

Uma segunda instância é a ecológica, pela qual os seres vivos, porcoexistirem, afetam‐se uns aos outros em sua forma física, em seudesempenho vital. Exemplificaria esse caso a própria introdução doeuropeu, comsuabicharadadevacas,bezerros,porcos, galinhasetc., que,disputandofatoresvitaiscomapopulaçãoautóctone,porumladofacilitamsua sobrevivência,mas por outro lado podem ser fatais. A introdução deanimais domésticos no mundo asteca e no incaico promoveu umaverdadeirasubstituiçãodapopulaçãoindígenaporcriaçõesanimais.

A terceira instância da transfiguração étnica é a econômica, que,convertendoumapopulaçãoemcondiçãodeexistênciamaterialdeoutra,em prejuízo de si própria, pode levá‐la ao extermínio. É o caso daescravidãopessoal,que,desgarrandouma

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pessoadeseucontextovitalparaconvertê‐laemmeraforçadetrabalhoaserviço de outrem, custa enorme desgaste humano. Junto à interaçãoeconômicasedátodaatramaderelaçõessociaisque,afetandoosmodosdecoexistir,deconvivereampliandoouestreitandosuasoportunidadesdesereproduzir, também exerceu papel fatal. Exemplifica essa interação a leifundiária que, nos Estados Unidos, por exemplo, produziu milhões degranjeiroslivres.Aquiproletarizou,urbanizandoforçadamente

milhõesdetrabalhadores,desencadeandoodesempregoeaviolência.

Umaúltimainstânciadatransfiguraçãoéapsicocultural,quepodedizimarpopulações retirando‐lhes o desejo de viver, como ocorreu com os povosindígenas que se deixaram morrer por não desejar a vida que se lhesofereciam.Aquitemtambémumpapelcapitaloethosouorgulhonacionalde uma população que, uma vez quebrado, a dissuade de lutar parasobreviver na medida em que poderia fazê‐lo. O preconceito social e adiscriminação, interiorizados em seus valores básicos, representamtambémumimportantepapeletnocida.

Sob qualquer dessas instâncias um povo pode ser transfigurado. Valedizer, morrer ou renascer através de alterações estratégicas que tornemsuasobrevivênciamaleável.NahistóriadoBrasil,vimossurgirobrasilíndiocomoumcontingentedevigoradmiráveltantonadestruiçãodeseugentiomaterno,como formadeexpandir‐se,quantoapropriando‐sedemulherespara reproduzir. Vimos algo semelhante ocorrer com o negro, que,refugiando‐senumquilombo, reconstitui a vidaque aprendera a vivernonúcleo colonial de forma a readquirir sua dignidade e possibilitar suasobrevivência.

Aimigraçãoestrangeira,principalmentedepobrestrabalhadoresbrancoseuropeus, tornados excedentes de suas economias nacionais, representoutambém uma enorme ameaça de transfiguração da população brasileirapreexistente,talcomo

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ocorreunoUruguaieArgentina.NoBrasil,encontrandoumasociedadejáformada e etnicamente integrada, apenas afetou seu destino, assimilandoquasetodaessamassa imigrante, transformando‐semaisosrecém‐vindosdo que os que aqui viviam. Através de todas essas instâncias, o povobrasileiro acabou por conformar‐se como uma configuração histórico‐culturalúnicaediferenciadadetodasasoutras.

Taissãoosbrasileirosdehoje,naetapaqueatravessamdesua lutapelaexistência. Já não há praticamente índios ameaçando o seu destino.Também os negros desafricanizados se integraram nela como umcontingentediferenciado,masquenãoaspiraanenhumaautonomiaétnica.Oprópriobrancovaificandocadavezmaismorenoeatéorgulhosodisso.

Aolongodenossoscincoséculosdeprocessoformativo,opovobrasileiroexperimentou sucessivas transfigurações. Sempre, porém, dentro daconfiguração de povo novo, já conformado larvarmente nas protocélulasétnicas luso‐tupis. Sofreu o impacto de duas revoluções tecnológicas, aagrária e a industrial, que contribuírammais que nada para configurá‐lo.Todasassuas forças transformativas,porém, foramcontidaspelasclassesdominantesdentrodelimitesquenãoameaçavamsuahegemonia.

Primeiro, a revolução agrário‐mercantil, que, transformando o modo deprodução indígena, sobretudo através da lavouramonocultora, promoveuuma extraordinária prosperidade que nos deu existência no quadromundial, tornando‐noscapazesdeprescindirpraticamentedareproduçãovegetativa da população pela compra de novos membros através daescravidão.

Segundo, a Revolução Industrial, que, obsolescendo o músculo humanocomo força energética, inviabilizou a escravidão, envolvendo a sociedadenum processo transformativo extremamente grave no qual a populaçãonegra chegou a reduzir‐se em números absolutos e levou décadas paraaprenderaviverumaexistêncialivreeautônoma.

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A introdução de dispositivos mecânicos, como máquinas de vapor, depetróleoedeeletricidade,nostornoumuitomaiseficazesnãoparanósmaspara o exercício de provedores no mercado mundial. Exportamos muitomaisgêneros,minérioseoutrasmercadoriasapreços relativamente cadavez menores, perdéndo substância em razão da desigualdade dointercâmbioeconômico.

Posteriormente, sobretudo no pós‐guerra, uma imensa quantidade demercadoriasnovas,comomedicamentos,plásticos,meiosdecomunicação,formasderecreação,nosatoumaisaindaaomundo.Reagimos,procurandoproduzir esses bens aqui mesmo, num esforço de industrializaçãosubstitutiva das importações. Mas só o pudemos fazer associados ainteressesestrangeirosque,senostornarammaiseficazesemodernos,nosfizeram mais lucrativos e úteis para eles que para nós, inclusiveimplantando um colonialismo interno que provocou intensoempobrecimentorelativodezonasdeantigaocupação.

Nocursodessesdoispassos‐umdetrêsséculos,ooutrodequasedois‐,asociedade brasileira assumiu diversas formas, variantes no tempo e noespaço, como modos sucessivos de ajustamento a distintos imperativosexternos e a diferentes condições econômicas e ecológicas regionais. Noprimeiro caso, moeu e fundiu as matrizes originais indígena, negra eeuropéiaemumaentidadeétnicanova,pelaviaevolutivadaatualizaçãoouincorporaçãohistórica, que foi o caminho comumde formaçãodospovosnovosdasAméricas.

No segundo passo, a sociedade resultante do longo processo formativooutra vez se transfigura por atualização. Agora, para incorporar, numaversão neocolonial da civilização industrial, os contingenteshomogeneizadosatravésdadeculturaçãoprocessadaanteriormente,sobapressãoda escravidão, e reajustá‐los aumanovaordenação sociopolítica.Sempre regida por uma estrutura de poder capaz de continuarconscrevendoapopulação

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aotrabalho,atravésdeumregimepara‐salarialnasempresasprodutivasde artigos de exportação e nas novas empresas dedicadas a atender aomercado interno. Essa reincorporação do Brasil na rede econômicamundial,apesardemenostraumatizante,

também exigiu um certo grau de violência, sobretudo na repressão doslevantes populares que aspiram a uma reordenação social profunda e nocontrolepreventivodosgruposvirtualmenteinsurgentes.

O caráter distintivo de nossa transfiguração étnica é a continuidade,atravésdosséculos,deelementoscruciaisdaordenaçãosocialarcaica,dadependência da economia e do caráter espúrio da cultura. Essacontinuidade, mantida através dos dois tipos de civilização e dascorrespondentes formações econômico‐sociais, importou em sériasconstriçõesaodesenvolvimento.

Assim é que o impacto da industrialização, operando sobre formasestruturaisarcaicas,seviucontidonasuacapacidadedetransformação.Osistema de conscrição de mão‐de‐obra ‐ primeiro escrava, depoisassalariada‐,subsistindodebaixodasnovascondições,continuouaoperarcomo uma rede que deformou o crescimento econômico dentro docapitalismo industrial e a integração do povo nos estilos de vida da novacivilização. Sua transformaçãomais importante foi passar de um sistematecnológico de baixa energia, mas altamente exigente de mão‐de‐obra edesgastador da mesma, a um sistema que utilizava uma tecnologiamecanizada e servida por motores, cada vez menos capaz de absorver aforçadetrabalhodisponível,etendente,porisso,amarginalizá‐la.

Por conseqüência, a economia brasileira, que sempre viveu faminta demão‐de‐obra, tendo que importar grande parte de sua força de trabalho,hojevêsuapopulaçãotornar‐seexcedentedasnecessidadesdaprodução.Éotrabalhadorbrasileiroquesetornaobsoletocomoumaforçadescartáveldentrodaeconomianacional.

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Vivemos, hoje, às vésperas de transformações ainda mais abrangentes,porque surge no horizonte uma outra revolução tecnológicamais radicalqueasanteriores.Seumavezmaisnosdeixarmos fazerconsumidoresdeseus frutos, em lugardedominadoresdesua tecnologianova,asameaçassobreanossasobrevivênciaesobreasoberanianacionalserãoaindamaisintensas.Asclassesdominanteseseusporta‐vozesjádefiniramseuprojetode continuidadeatravésdas transformaçõesestratégicas.Tal éodiscursoneoliberal e privatista, unanimemente defendido e propagado por toda amídiaeapoiadoenfaticamenteportodasasforçasdadireita.

No plano cultural, as duas etapas formativas compreendem,respectivamente, uma cultura colonial, que floresce e se arcaíza, e umacultura renovada, que surge por modernização. Ambas remarcadamenteespúrias.Aculturabrasileiratradicional,queanimavaosnúcleoscoloniais,erajá uma cultura da civilização que, correspondendo a uma formaçãosocialurbanaeestratificada,sedesdobravaemumaesferaeruditaeoutravulgarcomvariantesruraisecitadinas.

A camada senhorial, integrada pelo patronato de empresários e pelopatriciado de clérigos e burocratas civis e militares, todos eles urbanos,integra a sociedade total comoumdos seus elementos constitutivos,masopera como uma parcela diferenciada no plano cultural, tanto da culturavulgar da cidade como do campo. Participando, embora, dos folguedospopulares,porexemplo,ofaziamantescomopatrocinadoresdoquecomointegrantesemcomunhãofuncionalcomascrençaspopulares.Naverdade,essa camada senhorial constitui um círculo fechado de convívioeurocêntrico, quemais cultuaamodaque seusprópriosvaloreshauridosno acesso ao centrometropolitano, onde, bem oumal, se faz herdeira daliteratura, da música, das artes gráficas e plásticas, bem como de outrasformaseruditasdeexpressãodeumaculturaque,apesardealheia,passariaaserasuaprópria.

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Todo esse processo se agrava, movido em nossos dias pela forçaprodigiosa da indústria cultural que, através do rádio, do cinema, datelevisão e de inúmeros outros meios de comunicação cultural, ameaçatornaraindamaisobsoletaaculturabrasileiratradicionalparanosimporamassa de bens culturais e respectivas condutas que dominam o mundointeiro.Nósquesemprefomoscriativosnasartespopularesedetudoqueestivesse ao alcance do povo‐massa, nos vemos hojemais ameaçados doquenuncadeperderessacriatividadeembenefíciodeumauniversalizaçãodequalidadeduvidosa.

Entretanto,sendoessaaculturapredominante,elaéqueseexpressanossetorestecnologicamentemaisavançadosdaprodução,naarquiteturadascasassenhoriais,nasfortificaçõesenostemplos,bemcomonasartesqueosadornam. Todos eles se edificam estilizados como implantaçõesultramarinasdacivilizaçãoeuropéia,conformadosdeacordocomosestilosnelaprevalecentesequesóincidentalmentesecontaminamcomelementoslocais.Há,écerto,tambémnoplanoerudito,umareaçãobrasileira.Elanãoé, porém, nenhum nativismo. Suas criações são conquistas do gênerohumanoquepodiamtersurgidoemqualquerparte,masafortunadamentefloresceram aqui, na construção de Brasilia, na arquitetura de OscarNiemeyer,namúsicadeVilla‐Lobos,napinturadePortinari,napoesiadeDrummond,noromancedeGuimarãesRosaeunstantosoutros.

Aculturapopular,assentadanosabervulgar,detransmissãooral,emborasedividisseemcomponentesruraiseurbanos,eraunificadaporumcorpocomumdecompreensões,valoresetradiçõesdequetodosparticipavamequeseexpressavamnofolclore,nascrenças,noartesanato,noscostumesenasinstituiçõesqueregulavamaconvivênciaeotrabalho.

Frenteaessaculturapopular,ouvulgar,mesmoaantigaculturaerudita‐mais influenciada por concepções estrangeiras, mais receptiva a novosvaloreseanovasformasdeexpressão

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‐ contrastava com o "moderno" em face do arcaico. Nas cidades e vilas,essa modernidade impregnou desde cedo amplas parcelas da população,diferenciando‐as das massas rurais por atitudes relativamente maisracionalistas, impessoais emenos conservadoras. Essas diferenciações nalinhadoruraledourbano,doarcaicoedomoderno,nãonegam,porém,ocaráter espúrio de toda a cultura erudita e popular que corresponde anosso ser de encarnação ultramarina e tropical da civilização ocidental.Cadagestocriativonosso,umavezesboçado,estácondenadoacairnessereduto,queéouniversoaquepertencemos.Trata‐se,portanto,paratodosos artistas criadores, de um desafio que não é a busca do singular e dobizarroesimoesforçodeseromelhordomundo.

Algumasdasnovasalterações transfigurativas servemdebaseagrandesesperanças.Primeiroquetudo,oacessodetodoopovoàcivilizaçãoletradaeaosnovossistemasmundiaisdeintercomunicaçãocultural.Issosignificaqueacriatividadepopularnãosefaráexclusivamente,doravante,noníveldo futebol,damúsicaeoutrosvalorese tradições transmitidosoralmentepelapopulação.Segundo,emrazãodarevoluçãodapllulaedaliberaçãodoorgasmo, que mudou radicalmente a posição da mulher na sociedade,convocando‐aacontinuartrabalhandocomosemprefez,masemmelhorescondiçõesdeexistência.

Ofundamental,porém,équemilagrosamenteopovo,sobretudoonegro‐massa, continua tendo erupções de criatividade. Esse é o caso do culto aIemanjá, que em poucos anos transformou‐se completamente. Essaentidadenegra,quesecultuavaa2

de fevereiro na Bahia e a 8 de março em São Paulo, foi arrastada pelosnegros do Rio de Janeiro para 31 de dezembro. Com isso aposentamos ovelho e ridículo Papai Noel, barbado, comendo frutas européias secas,arrastado num carro puxado por veados. Em seu lugar, surge, depois daGrécia,aprimeirasanta

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quefode.AIemanjánãosevaipediracuradocânceroudaAIDS,pede‐seumamantecarinhosoequeomaridonãobatatanto.

Comprimidaportodasessaspressõestransformadoras,aculturapopularbrasileira tradicional, tornada arcaica, se vai transfigurando em novosmoldes. Estes, embora correspondentes ao padrão "ocidental" comum àssociedades pós‐industriais, assumem no Brasil qualidades peculiaresrelacionadas à especificidade do processo histórico nacional. Como essasvariam por regiões, as áreas culturais operam como estruturas deresistênciaàmudança,numesforçodepreservaçãodesuascaracterísticas.Mas elas sópodemmanter‐se tradicionais comoarcaísmos em relação aoque se tornara o perf 1 cultural predominante como obsolescência comrespeitoànovaeconomiaprevalecente.

Todavia,forçadaspelasnovascondiçõesuniformizadoras,asantigasáreasculturais se vão tornando cada vezmais homogêneas, por imperativo doprocessogeralde industrializaçãoquea todosafetaeemvirtudedaaçãouniformizadoradossistemasdecomunicaçãodemassas,queaproximamosgaúchos, do Sul, dos caboclos amazônicos e os fazem interagirreciprocamente e com respeito aos centros dinâmicos do processo deindustrialização.

Isso significa que, apesar de tudo, somos uma província da civilizaçãoocidental. Uma nova Roma, uma matriz ativa da civilização neolatina.Melhorqueasoutras,porque lavadaemsanguenegroeemsangue índio,cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar omundoavivermaisalegreemaisfeliz.

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IV.OSBRASISNAHISTÓRIA

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1.BRASIS

INTRODUÇÃO

Depoisdecomportodaumavastateóriadahistória,queconcluocomestelivro, devo confessar que as grandes seqüências históricas, únicas eirrepetíveis,emessênciasãoinexplicáveis.

Oquealcançamossãoalgumasgeneralizaçõesválidasquelançamosaquieali,iluminandopassagens.É,porém,irresistível,comoaventuraintelectual,aprocuradessasgeneralizações.Étambémindispensável,porquenenhumpovovivesemumateoriadesimesmo.Senãotemumaantropologiaqueaproveja,improvisa‐aedifunde‐anofolclore.

A história, na verdade das coisas, se passa nos quadros locais, comoeventosqueopovorecordaeaseumodoexplica.Éaí,dentrodaslinhasdecrençasco‐participadas,devontadescoletivasabruptamenteeriçadas,queas coisas sedão.Essaéa razãoporque, em lugardeumquadrogeraldahistóriabrasileira,compusessescenáriosregionais.

Umacopiosadocumentaçãohistóricamostraque,poucasdécadasdepoisda invasão, já se havia formado no Brasil uma protocélula étnicaneobrasileiradiferenciadatantodaportuguesa

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comodas indígenas.Essaetniaembrionária,multiplicadaedifundidaemváriosnúcleos‐primeiroaolongodacostaatlântica,depoistransladando‐separaossertõesinterioresousubindopelosafluentesdosgrandesrios‐,éque iriamodelar a vida social e cultural das ilhas‐Brasil. Cada uma delassingularizadapeloajustamentoàscondiçõeslocais,tantoecológicasquantode tipos de produção, mas permanecendo sempre como um renovogenésicodamesmamatriz.

Essas ilhas‐Brasil operaram como núcleos aglutinadores e aculturadoresdosnovoscontingentesapresadosnaterra,trazidosdaÁfricaouvindosdePortugal e de outras partes, dando uniformidade e continuidade aoprocessodegestaçãoétnica,cujofrutoéaunidadesocioculturalbásicadetodososbrasileiros.

Acredito que se possa distinguir a existência dessa célula culturalneobrasileira, diferenciada e autônoma em seu processo dedesenvolvimento,apartirdemeadosdoséculoxvl;quandoseerigiramosprimeirosengenhosdeaçúcar,sendoaindadominanteocomérciodepau‐de‐tinta, e quando ainda se tratava de engajar o índio como escravo dosetor agroexportador. Era a destinação e a obra dos mamelucos‐brasilíndios,quejánãosendoíndiosnemeuropeus,nemnada,estavamembuscadesimesmos,comoumpovonovoemsuaformaaindalarvar.

Era gestada nas comunidades constituídas por índios desgarrados daaldeiaparaviver comosportuguesese seusmestiços ‐quecomeçavamamultiplicar‐senacostapernambucana,baiana,cariocaepaulista.Combaseno compadrio, ainda no tempo das relações de escambo com índios quepermaneciam em suas aldeias independentes. Aqueles núcleos pioneirosevoluíram rapidamentepara a condiçãode comunidades‐feitoriasquandopassaram a integrar também indígenas capturados, estruturando‐se emvoltadeumnúcleodemamelucosefuncionandocomobasesoperacionaisdosbrancosqueserviamdeapoioaosnavios,estabelecendosuasprópriasrelaçõesdealiançaoude

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guerracomtribosvizinhas.Aindaqueembebidosnacultura indígena,sófalando a língua da terra e estruturados em bases semitribais, já eramregidos por princípios organizativos procedentes da Europa. Constituíam,assim,defato,brotosmutantesdoqueviriaaserumacivilizaçãourbanaeletrada.

Dessas comunidades se projetaram os grupos constitutivos de todas asáreassocioculturaisbrasileiras,desdeasvelhaszonasaçucareirasdolitoraleoscurraisdegadodointerioratéosnúcleosmineirosdocentrodopaís,os extrativistas da Amazônia e os pastoris do extremo sul. Cobrindomilharesdequilômetros,essaexpansão‐porvezeslentaedispersacomoapastoril, por vezes intensa e nucleada como a mineradora ‐ foimultiplicandomatrizes,basicamenteuniformes,portodoofuturoterritóriobrasileiro.Apesardetãoinsignificantes,defatodisseminaram‐secomoumaenfermidade, contaminando a indianidade circundante, desfazendo‐as erefazendo‐as como ilhas civilizatórias. Só muito depois começaram acomunicar‐se regularmente umas com as outras, através dos imensosespaçosdesertosqueasseparavam.

Sobre aquele arquipélago, integrando societariamente essas ilhas, seestendiam três redesaglutinadoras: a identidadeétnica,que jánão sendoíndia se fazia protobrasileira; a estrutura socioeconômica colonial decaráter mercantil, que as vinculava umas com as outras através danavegação oceânica e com o Velho Mundo, como provedores de pau‐de‐tinta; uma nova tecnologia produtiva, que as ia tornando mais e maiscomplexas e dependentes de artigos importados. Sobre todas elas falavaumaincipienteculturaerudita,principalmentereligiosa,depadrãobásico,que se ia difundindo. Tal como o índioUirá, que saiu à procura deDeus,para identificar‐se ante a divindade declara "eu sou de seu povo, o quecomefarinha",todosnós,brasileiros,podemosdizeromesmo:"Nóssomosopovoquecomefarinhadepau".

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A identidade étnica dos brasileiros se explica tanto pela precocidade daconstituiçãodessamatrizbásicadanossaculturatradicional,comoporseuvigoreflexibilidade.Essaúltimacaracterísticalhepermitirá,comoherdeiradeumasabedoriaadaptativamilenar,aindadosíndios,conformar‐se,comajustamentoslocais,atodasasvariaçõesecológicasregionaisesobreviveratodosossucessivosciclosprodutivos,preservandosuaunidadeessencial.Apartir daquelas protocélulas, através de um processo de adaptação ediferenciação que se estende por quatro séculos, surgem as variantesprincipaisdaculturabrasileiratradicional(verconceitosdeculturarústicae cultura caipira em Melo e Souza 1964; de cultura camponesa e folk‐cultureemRedfield1941e1963;deculturacaboclaemWillems1947edeculturacrioulaemGillin1947).

Elas são representadas pela cultura crioula, que se desenvolveu nascomunidadesda faixade terras frescase férteisdoNordeste, tendocomoinstituição coordenadora fundamental o engenho açucareiro. Pela culturacaipira, da população das áreas de ocupação dos mamelucos paulistas,constituída, primeiro, através das atividades de preia de índios para avenda, depois, da mineração de ouro e diamantes e, mais tarde, com asgrandesfazendasdecaféeaindustrialização.Pelaculturasertaneja,quesefundeedifundeatravésdoscurraisdegado,desdeoNordesteáridoatéoscerrados do Centro‐Oeste. Pela cultura cabocla das populações daAmazônia, engajadas na coleta de drogas da mata, principalmente nosseringais.PelaculturagaúchadopastoreionascampinasdoSulesuasduasvariantes, a matuta‐açoriana (muito parecida com a caipira) e a gringo‐caipiradasáreascolonizadasporimigrantes,predominantementealemãeseitalianos.

Emtermosdeformaçãoeconômico‐social,sepodedizerqueessasfacesdoBrasil rústico se plasmaram como produtos exógenos da expansãoeuropéia,queasfezsurgirdentrodeuma

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formaçãoagrário‐mercantil‐escravista,bipartidasem implantes citadinosecontextosruraismutuamentecomplementares,estratificadasemclassessociais antagônicas, ainda que também funcionalmente integradas. Seumotor foioprocessocivilizatóriodesencadeadopelaRevoluçãoMercantil,que permitiu aos povos ibéricos expandir‐se para o além‐mar e criar aprimeiraeconomiadeâmbitomundial.

O Brasil, como fruto desse processo, desenvolve‐se como subproduto deumempreendimentoexógenodecaráteragrário‐mercantilque,reunindoefundindoaquiasmatrizesmaisdíspares,dánascimentoaumaconfiguraçãoétnica de povo novo e o estrutura como uma dependência colonial‐escravistadaformaçãomercantil‐salvacionistadospovosibéricos.

Não se trata, como se vê, de umdesdobramento autônomo, produzido apartirdaetapaevolutivaemqueviviamosindígenas(revoluçãoagrícola)edo tipo de formação com que se estruturavam (aldeias agrícolasindiferenciadas,istoé,nãoestratificadasemclasses).Trata‐se,istosim,daruptura e transfiguração das mesmas, por via da atualização históricapromovida por uma macroetnia em expansão: a mercantil‐salvacionistaportuguesa(Ribeiro1968).

Ésimplesmenteespantosoqueessesnúcleostãoiguaisetãodiferentessetenhammantido aglutinados numa só nação. Durante o período colonial,cada um deles teve relação direta com a metrópole e o "natural" é que,como ocorreu na América hispânica, tivessem alcançado a independênciacomocomunidadesautônomas.Masahistóriaécaprichosa,o"natural"nãoocorreu.Ocorreuoextraordinário,nosfizemosumpovo‐nação,englobandotodasaquelasprovínciasecológicasnumasóentidadecívicaepolítica.

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2.OBRASILCRIOULO

"[...]osersenhordeengenhoétítuloaque

muitosaspiramporquetrazconsigooser

servido,obedecidoerespeitadodemuitos.

Esefor,qualdeveser,homemdecabedale

governo,bemsepodeestimarnoBrasilo

sersenhordeengenho,quanto

proporcionalmenteestimamostítulosentre

osfidalgosdoReino[...]

Andreoni1967"

O engenhoaçucareiro,primeira formadegrandeempresaagroindustrialexportadora, foi, a um tempo, o instrumento de viabilização doempreendimento colonial português e amatriz do primeiromodo de serdos brasileiros. Sem ele, naquela época, seria inimaginável a ocupaçãoeuropéiadeumavastaáreatropical,semriquezasmineraispordescobrir,habitadaporindígenasqueapenaslograramconstruirculturasagrícolaseque não constituíam uma força de trabalho facilmente disciplinável eexplorável.

Afortunadamente, a cana‐de‐açúcar só necessitava de terras tropicaisférteisefrescas,eoengenhoquefaziadocaldodecanaoprodutomercantileraumaprensademadeiraseferros

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queos carpinasportugueses, construtoresdenaus, podiam fabricar comfacilidade.Aoseremtransplantadosaosespaçosbrasileiros,oscanaviaiseos engenhos se multiplicaram em poucas décadas, tendo como únicaslimitaçõesàsuaexpansãoadisponibilidadedemão‐de‐obraescravaparaoeitoeaamplitudedomercadoconsumidoreuropeu.

Os portugueses, que já haviam experimentado a plantação de cana e aproduçãodeaçúcarempequenaescala,comtecnologiaárabe,nasilhasdaMadeiraedosAçores,sehabilitaramparaestenderastronomicamenteessaproduçãonasnovas terras,montandopara isso todoumvastosistemaderecrutamentodemão‐de‐obra.

Ninguém podia imaginar então que um produto exótico e precioso,destinadoaoconsumodosmaisabastados,pudessecrescerdeproduçãoebaixardepreçoapontodefazer‐seacessívelaoconsumidorcomumcomogênerode usodiário. Isso foi o que sucedeu, o açúcar deixoude ser umaespeciariaparaconverter‐senumprodutocomercialcomum.Mesmoassim,seus preços de custo e de venda eram suficientemente atrativos parapermitir o custeio da produção e o transporte transatlântico do próprioaçúcar, e o do transporte ultramarino, em sentido inverso, da escravariaafricanaqueoproduziria.

Os primeiros engenhos de açúcar surgem no Brasil antes de 1520 erapidamente se dispersam por todos os pontos da costa habitados porportugueses. Acabaram por concentrar‐se nas terras de massapé doNordesteedorecôncavobaiano,fmcandoasbasesdacivilizaçãodoaçúcar,cujas expressões urbanas floresceramnas cidades‐porto deOlinda‐Recife,emPernambuco,edeSalvador,naBahia.

Meio século depois, os engenhos haviam se multiplicado tanto que aprodução brasileira de açúcar era a principal mercadoria do comérciointernacionalesuasafraanualvaleriamaisqueaproduçãoexportáveldequalquerpaíseuropeu.Nasdécadas

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seguintes, apesar da guerra, da resistência dos negros de Palmares e daocupaçãoholandesa,aeconomiaaçucareiraeseuscomplementoscrescemmaisainda.Osgrandesengenhossaltamdecinqüentaacemeaduzentos.Neles passam a trabalhar 10 mil, depois 20 mil e, mais tarde, 30 milescravos importados. O volume e o valor da produção açucareira anualcrescem, correlativamente, até atingir e superar largamente 1 milhão delibrasesterlinas.

PorvoltadeI650,esseincrementosedesaceleraeaeconomiaaçucareiracai em crise quando entra maciçamente no comércio internacional aprodução dos engenhos holandeses das Antilhas. A produção brasileiraprossegue, apesarde tudo, sustentandoa implantação colonialdas velhasáreasdeocupação.

Sómuitomaistarde,depoisde1700,comoiníciodociclodoouro,deixade sero setormaisdinâmicoda economiabrasileira eomais importantecomofontederecursosparaaCoroa.

A sociedadebrasileira, emsua feição cultural crioula,nasceem tornodocomplexo formado pela economia do açúcar, com suas ramificaçõescomerciais e fmanceiras e todos os complementos agrícolas e artesanaisque possibilitavam sua operação. Amassa humana organizada em funçãodo açúcar se estrutura em uma formação econômico‐social atípica comrespeitoàsamericanaseàseuropéiasdeentão.Muitomaissingela,porumlado, por seu caráter de empresa colonial destinada a lograr propósitoseconômico‐mercantis claramente buscados. Nela, a forma de existência, aorganizaçãoda família, a estruturadepodernãoeramcriaçõeshistóricasoriundasdeumavelhatradição,masmerasresultantesdeopçõesexercidaspara dar eficácia ao empreendimento. Mas, por outro lado, muito maiscomplexa, como população surgida da fusão racial de brancos, índios enegros,comoculturasincréticaplasmadapelaintegraçãodasmatrizesmaisdíspares e como economia agroindustrial inserida no comércio mundialnascente.

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Chamamos área cultural crioula à configuração histórico‐culturalresultantedaimplantaçãodaeconomiaaçucareiraedeseuscomplementoseanexosnafaixalitorâneadoNordestebrasileiro,quevaidoRioGrandedoNorte à Bahia. Entre seus complementos se conta a fabricação deaguardente e de rapadura, que era a produção principal dos pequenosengenhos,destinadaaomercadointerno.Entreosseusanexos,destacam‐seas lavouras comerciais de tabaco e a fabricação do fumo, a que sededicavam pequenos produtores sem cabedal para montar um engenho,mascujovalordeexportaçãochegariaarepresentarumadécimapartedovalor da safra açucareira.Muitomais tarde, outros produtos agrícolas deexportação, como o cacau, se somariam aos primeiros para permitir aextensãoaoutrasregiõesdasformasdevidaedetrabalhocriadasaoredordoengenhocanavieiro,ampliandodessemodoaáreaculturalcrioula.

Apolaridadesocialbásicadaeconomiaaçucareira‐osenhordeengenhoeo escravo ‐, uma vez plasmada como uma forma viável de coexistência,constituiria uma matriz estrutural que, adaptada a diferentes setoresprodutivos,possibilitariaaedificaçãodasociedadebrasileiratradicional.Osenhordeengenho,apesardeseupapeldeagentedaexploraçãoexternadapopulaçãopostadebaixodeseudomínio,erajáumempresárionativo.Viviaem sua casa‐grande, construída para durar e legar a seus herdeiros. Noconvívio coma genteda terra, se abrasileira em seushábitos. Por fim, seconstrói a si mesmo como um senhorio totalménte diferente de quantoshouvera,inclusivedospoucosportuguesesqueaferiamrendasemelhante.

O escravo, índio ou negro, que sobrevivia ao duro trabalho no engenhotambém se abrasileirava no mesmo ritmo e com igual profundidade.Emborapolarmenteopostosaosenhor,tinham,nofim,maisdecomumcomelepelalínguaquefalavam

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e pela visão do mundo que com seus ancestrais tribais brasileiros ouafricanos.Enquantoescravos,porém,elesconstituíamaúnicaforçaopostaaosistemaque,exercendoumaaçãosubversivaconstante,exigiaareaçãopermanente de um aparato repressivo. Sendo, entretanto, incapazes dedestruí‐lo, seja para restaurar formas arcaicas de existência, já inviáveis,seja para implantar precocemente uma formação econômico‐social maissolidária, coexistiam conflitivamente, reproduzindo‐se tal qual eram. Onegro,mesmoquandoescapavadoengenhoparaacoitar‐senosquilombos,continuavasimbioticamenterelacionadocomasociedadecomaqualestavaem guerra, na qual se formara e da qual dependia para prover‐se deelementos que se tornaram indispensáveis à sua existência, como asferramentas,osaleapólvora.

Emborafossem,defato,duasformaspolarmenteopostasnoplanosocial,peloantagonismoessencialdeseusinteressesdeclasse,eramtambémdoisalternosmutuamentecomplementaresdentrodamutualidadedesigualdeuma formação colonial‐escravista. Eram ainda e essencialmente duasexpressões variantes de uma cultura formada dentro dos cânones dacivilizaçãoeuropéia.

Esta unidade dentro da diversidade a compelia a gerar, pela dinâmica desua ação recíproca, novas formas de organização da vida social quesimultaneamente reafrmassem a senhorialidade todo‐poderosa do donodosnegros,quevaliammaisquetodooconjuntodapropriedade,equeseexerceria através de muitos braços e bocas destinados todos a fazerfuncionaraquelafábricarural,provavelmenteaempresamaiscomplexadaépoca.Onegroboçal,recém‐chegado,eraaforçabrutadetrabalho,levadoao canavial para operar de sol a sol, orientado por negros ladinosespecializadosnessemister.

A família patriarcal do senhor, seus filhos e aparentados mais diretos,ocupava tão exaustivamente as funções do lar de tipo romano que nãodeixavaespaçoparaoutrasformasdignasde

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acasalamento.Oprópriosenhoreseus filhoseram,de fato,reprodutoressoltos ali para emprenharema quempudessem.Nenhumahipótese havianesseambienteparaqueosnegrosemestiçostivessemqualquerchancedeseestruturarfamiliarmente.

AhistóriadoBrasilé,porisso,ahistóriadessaalternidadeoriginaledasqueaelasesucederam.Éelaquedánascimentoàprimeiracivilizaçãodeâmbitomundial,articulandoaAméricacomoassentamento,aÁfricacomoaprovedoradeforçadetrabalhoeaEuropacomoconsumidorprivilegiadoecomosócioprincipaldonegócio.

Dentre os povos europeus, os portugueses eram os mais habilitados aimplantarumsistemaeconômiconãomeramenteextrativista,nembaseadona mera pilhagem de riquezas nas áreas tropicais americanas. Só elestinham real experiência de conduzir o trabalho escravo e de produziraçúcar. Somente nas suas pegadas e com base na experiência pioneiralusitana, outras nações lançaram‐se, também, mais tarde, aempreendimentosfundadosnosistemadefazendas(Steward1960),tantonoNovoMundocomonosoutroscontinentes.

Os holandeses e os franceses foramosmais exitosos em levar adiante oexperimento português. A Holanda foi refeita, se armou e se defendeu apartirdeseuminúsculoterntório,comoscapitaisacumuladosnasAntilhas.OHaitieraapérolaprincipaldaCoroafrancesa.FoiláquesurgiuanobrezaqueconstruiriaosbeloscastelosdoLoire,esquecidosdonegroqueforaoestrumedetamanhaaristocracia.

Aplicado primeiro ao açúcar, e aí elaborado como modelo estrutural, osistemadefazendasescravistasseaplicaria,aseguir,aotabaco,aoanileaocacau. Mais tarde, ao café e, já recentemente, ao cultivo de bananas, doananás,dochá,daseringa,

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dosisal,dajutaedasoja.Essasúltimasjánumregimeassalariado.

Osportugueseshabilitaram‐separaessafaçanhagraçasaoconhecimentopréviodastécnicasdecultivodacana,defabricaçãodomelaçoederefinodoaçúcar,que jáproduziamnas ilhasatlânticasantesdadescoberta,combasenobraçoescravoafricanoesegundoumafórmulanovadeorganizaçãoda produção: a fazenda. Dali partiram os especialistas que edificaram osprimeiros engenhos brasileiros, tanto no plano tecnológico como nosocietário, lançandoumasementeque,aomultiplicar‐se,darianascimentoà economia brasileira tal como se conformou. Habilitou‐os também paraessepapelaparticipaçãoquejátinhamalcançadodocomércioeuropeudeespeciarias, entre elas o açúcar, ao lado de capitalistas holandeses,principalmentejudeus.

Não menos importante foi seu domínio da técnica de navegaçãotransoceânica,bemcomoapossedeumadasmaioresfrotascomerciaisdaépoca. A tudo isso se somaria a existência de disponibilidade de capitalfinanceiro, tanto próprio como italiano, holandês, alemão e outros, paracustear o novo empreendimento, com vistas no lucro monetário queproduziria,eoespíritoempresarialqueanimavacertascamadasdaclassedominanteportuguesa.

Importante papel terá representado, igualmente, o caráter mourisco emestiço dos povos ibéricos. Efetivamente, forçados pela longa dominaçãoárabe, os lusitanos se fzeram herdeiros de sua cultura técnica,fundamentalmentepara anavegação, para aproduçãode açúcar epara aincorporação de negros escravos à força de trabalho. O portuguêsquinhentista, sendo de fato um euro‐africano no plano cultural e racial,afeito ao convívio com povos morenos, estava mais preparado quequaisquer outros tanto para contingenciar os indígenas americanos aotrabalho esporádico, quanto para aliciar as multidões de trabalhadoresnegrosquetornariampraticávelosistemaprodutivodaplantação.

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Desdeosprimeirospassos,essesistemase implantapelacombinaçãodeinteresses pecuniários dos comerciantes que financiavam oempreendimento, dos empresários que se incumbiam diretamente daproduçãoedaCoroaquegarantiaadominaçãoesereservavaomonopóliodacomercialização,apropriando‐se,assim,daparcelaprincipaldoslucros.Com base em todos esses elementos se configurou o Brasil como umaformação colonialescravista de caráter agromercantil, dotada de enormespotencialidades, que contribuiria altamente nos séculos seguintes para aconstrução de uma sistema econômico de base mundial que passaria aordenaravidademilhõesdehomensdetodososcontinentes.Nosistemade fazendas já se anunciava a ousadia empresarial capitalista que,quebrando unidades societárias arcaicas, quaisquer que fossem, engajavaseusmembrosnasempresasprodutivas,sejaporforçadaescravização,seja"livremente",comoproletários.

A produção açucareira caracteriza‐se, essencialmente, pela grandeextensão das áreas de cultivo de cana e pela complexidade doprocessamento químico‐industrial de produção de açúcar. Exige aparticipação de trabalhadores especializados e uma alta concentração demão‐de‐obra, uns e outros residentes no local, inteiramente devotados àproduçãoesubmetidosaumarígidadisciplinadetrabalho.Caracteriza‐se,também, pela natureza mercantil do empreendimento que é atender àssolicitações do mercado externo com vistas à obtenção do lucro. Todosesses atributos conferem à produção açucareira um caráter de empresaagroindustrial que requer altos investimentos de capital e a torna maissemelhante a uma fábrica que a uma exploração agrária tradicional pelosprocedimentosindustriaisqueexigeepelosproblemasdegerênciademão‐de‐obraqueimplica.

Nosvelhosbangüês, todavia, jáseencontravamoselementosestruturaisbásicos do sistema de fazendas, que exerceriam influência decisiva nadeculturaçãodoescravonegroedoindígena

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engajadosnotrabalho,naordenaçãodasrelaçõessociais,naformaçãodafamíliaeemtodaaconfiguraçãodaculturabrasileiranasuaformalocal.

Antonil (João Antônio Andreoni), jesuíta italiano, nos deixou, em 1711,umaexcelentedescriçãodosengenhosdaBahiaqueelevisitoueobservoucriteriosamente (Andreoni 1967). Outros testemunhos tambémsignificativos sãoosdeGabriel Soaresde Sousaparao séculoXVI, e odeLuís dos Santos Vilhena para fins do século XVIII (Sousa 1971; Vilhena1969).Asterras,segundosuasqualidades,sedestinavamaoscanaviais,nosquais se concentrava a maior parte dos trabalhadores; às pastagensdestinadasaosboisdecarga,cujonúmeroseigualavaaodeescravos;eàslavourasondesecultivavamalimentos,principalmentemandiocaemilho.Mas alguma terra virgem de mata devia ser deixada para prover toda alenha necessária ao fabrico e, se possível, também amadeira de lei paraconstruções. Quando as terras se tornavam escassas, algumas áreasvizinhas eram arrendadas a lavradores para produzir cana, que eles seobrigavamaentregaraoengenho,ouparaplantarmantimentos.

O engenhopropriamentedito compreendiadiversas construções sólidas,providas do respectivo equipamento. A casa grande, de residência dosenhordeengenho,queàsvezesalcançavagrandezadesolarsenhorialcomtorres e capelas; e a senzala, onde se acumulavam dezenas de escravos,geralmente na forma de um vasto barracão coberto de palha. Amoenda,construída com grandes troncos de.madeira de lei e movida a água ou aforça animal, devia ser suficiente para moer diariamente vinte a trintacarros de cana; o caldo corria das moendas para cinco ou seis grandesfornalhas,debaixodasquaissequeimavamcarradasecarradasdelenha.Amesadepesagem,paraondepassavaomelaçodasfornalhasparaconvertê‐loempãesdeaçúcarbrancoemascavo.

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Aoperaçãodessa fábrica,queproduziaanualmente7a8mil arrobasdeaçúcarnosgrandesengenhos,exigiaoconcursodedezenasdeescravosdoeitoparao trabalhodeenxadae foicenocanavial,alémdecarreirosparatransportaracanaea lenhaaoengenhoegrandequantidadedenegrosenegrasparaostrabalhosdemoagemepurgadoaçúcar.Alémdessaforçadetrabalho básica, o engenho devia contar "com um mestre‐de‐açúcar, umbanqueiro e um soto‐banqueiro, um purgador, um caixeiro no engenho eoutronacidade,feitoresnospartidoseroças,umfeitor‐mordeengenho.Ecada um desses oficiais têm soldada" (Andreoni 1967:139). Se a essestrabalhadores especializados se acrescentam os artesãos indispensáveispara fazer funcionar os engenhos, como os oleiros e carpinteiros e aescravariadascasas,carrosebarcos,oscalafates,osvaqueiroseescravosdomésticos,severificaaamplitudeeacomplexidadeda forçadetrabalhoquemoviaaagroindústriaaçucareira.

O sistema de fazendas opõe‐se, como modelo ordenador, tanto àsencomiendashispano‐americanas, comoàsvilascamponesaseaosistemadegranjas.Primeiro,porqueimportanasubordinaçãodiretaetotaldetodaapopulaçãoengajadaàautoridadeúnicadoproprietáriodasterras,queétambémdonodascasas,dasinstalações,dosanimais,daspessoas,detudopodendo dispor com absoluto arbítrio. Essa centralização autocráticacombinadacomumaatitudepuramentemercantil ‐que levaraa trataraspessoas integradas na plantação, sobretudo os escravos, como simplesinstrumentosdeganho‐permitiriaexercerumapressãoconformadoradoscostumes e impositiva da deculturação, maior que em qualquer outrosistema de produção. Daí a extraordinária eficácia aculturativa eassimilativa da fazenda, comparada com a encomienda. Esta semprepressupunha um certo modus vivendi com a comunidade preexistente,gerenciada por intermediários, co‐participantes de doismundos culturaisopostos.Enorme,também,éocontrastecomasempresaspastoris

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porque, nestas, os vaqueiros e peões pobres conservavam certo grau deautonomia e de brio, que obrigava o dono a levá‐los em conta comopessoas.Ocontrastealcançaextremosquandosecomparaafazendacomasvilascamponesasoucomosgranjeiroslivres.Esteseramgruposfamiliaresque existiam para si mesmos, cujas atividades só secundariamente sãomercantis, porque seu propósito é essencialmente o de preencher suasprópriascondiçõesdeexistência.

Ocaráteroficialdoempreendimentoaçucareiro ‐ instituídoeestimuladopelaCoroaatravésdaconcessãodas terrasemsesmaria,daatribuiçãodeprivilégios,honrariasetítuloshonoríficos‐davaaossenhoresdeengenhoum poder hegemônico na ordenação da vida colonial. E era natural queassimfosse,emfacedoêxitoeconômicodoempreendimentoquepermitiaprover altas rendas à metrópole, além de preencher excelentemente anecessidade de ocupar as terras recém‐descobertas, pobres em ouro, eresguardá‐lascontraacobiçadeoutrasnações.Qualquermedidapleiteadaem nome da defesa desses interesses pesava mais e tinha maiorespossibilidadesdeatendimento.

Assim,opoderdosenhordeengenho,dentrodoseudomínio,seestendiaà sociedade inteira. Situado nessa posição dominadora, ele ganha umaautoridade que a própria nobreza jamais tivera no reino. Diante dele securvavam, submissos, o clero e a administração reinol, integrados todosnumsistemaúnicoqueregiaaordemeconômica,política,religiosaemoral.Nesse sentido, constituía uma oligarquia que operava com a cúpulapatronal da estrutura de poder da sociedade colonial. Frente a ela, só acamadaparasitáriadearmadoresecomerciantesexportadoresdeaçúcareimportadoresdeescravos ‐queera tambémquemfinanciavaossenhoresde engenho ‐ guardava certa precedência. Mas não dava lugar aantagonismos, porque suas disputas eram menos relevantes que suacomplementaridade.

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A congruênciadessaestruturaglobal reforçavaopodereadisciplinadoengenho, não deixando condição alguma para a rebeldia ou para seexprimirem reivindicações que lhe fossem opostas. No seu domínio, osenhor de engenho era o amo e o pai, de cuja vontade e benevolênciadependiam todos, já que nenhuma autoridade política ou religiosa existiaque não fosse influenciada por ele. Sua família, residente no engenho,cultora dos valores cristãos, configurava um padrão ideal de organizaçãofamiliar, naturalmente inatingível por ninguém mais, mesmo porque suaestabilidadeseassentavasobreolivreacasalamentocomomulheriolocal.

Ao lado da casa‐grande, contrastando com seu conforto ostentatório,estava a senzala, constituída de choças onde os escravos viviam umaexistência subumana, que só se tornava visível porque eles eram osescravos.Dacasa‐grande,comafiguradosenhor,dasinhá,dassinhazinhasesuasmucamas,temosdescriçõesasmaisexpressivasenostálgicasdeumaantropologia que sempre focalizou o engenho através dos olhos do dono.Dos brancos pobres e dos mestiços livres, engajados como empregados,mascates e técnicos, assim como do submundo dos escravos do eito nãocontamos,ainda,comreconstituições fidedignase,menosainda,comumaperspectivaadequadadeinterpretação.

As características fundamentais da plantação açucareira são a extensãolatifundiáriadodomínio; amonocultura intensiva; a grande concentraçãolocal de mão‐de‐obra e a diversificação interna em especializaçõesremarcadas;oaltocustorelativodo investimento financeiro;adestinaçãoexterna da produção; a dependência da importação da força de trabalhoescravo que onerava em 70% os resultados da exportação; o caráterracional e planejado do empreendimento que exigia, além dopreenchimentodecondiçõestécnico‐agrícolaseindustriaisdeprodução,

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umaadministraçãocomercialinteiradadascondiçõesdecomercialização,dosprocedimentosfinanceirosedequestõesfiscais.

Algumasdessascaracterísticaslevammuitosestudiososaclassificá‐laoracomo escravista, ora como feudal. Se atentarmos, porém, para as suascaracterísticaseconômicascruciais,quefazemdelaumprojetoempresarialdestinadoaproduzirlucrosfinanceiros,torna‐seevidentesuanaturezadeempreendimentomercantil.Aposiçãocolonialdesseempreendimentoeoconteúdo escravista das relações de produção obrigam, porém, acaracterizá‐lo como a contraparte colonial‐escravista de uma formaçãosocioeconômica mercantil‐salvacionista, que se exprimia no centro reitormetropolitano (sobre as revoluções tecnológicas e respectivas formaçõessocioeconômicas,verRibeiro1968).Nessetipodeformaçãobipartidamasoperativamente integrada é que se encontra a forma específica deincorporação da sociedade brasileira no nascente sistema econômicocapitalista de âmbito mundial responsável tanto pelos progressos queensejou,comopeloatrasoepenúriaquerepresentou.Osistema,comoumtodo,tinhaprecisamentenosseusconteúdosformaismaisarcaicos‐comoo escravismo ‐ emaismodernos ‐ como a produção para omercado ‐ osinstrumentos de reimplantação ampliada de um sistema econômico deacumulaçãocapitalistaoriginária,atravésdeinvestimentosfinanceirosedainserçãonomercadointernacional.

O sistema produtivo da plantação é um produto característico daRevoluçãoMercantilnaetapaemqueestapermiteàssociedadeseuropéiasa constituição de um sistema econômico de amplitude mundial. Não seassentanaeconomia"natural"camponesademodelofeudaleuropeu,masna formação de um rurícola de novo tipo, concentrado em núcleospopulosos, dirigido por uma administração centralizada, participante deuma economia mercantil mais complexa, diferenciado em especialidadestécnicasefuncionais.

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Comparado com o lavrador que cultiva sua roça com a ajuda da famíliainteira e leva a colheita ao mercado, o trabalhador da fazenda é umparticipante de um grupo produtivo, despessoalizado, individualmentevinculado ao comando das atividades de produção, tal como só o seria,muito mais tarde, o trabalhador assalariado engajado nas manufaturaseuropéias e, depois, o operário fabril. O trabalhador rural, integrado nosistemaeconômicocomoparceiroemterraalheia‐queelevivificacomseutrabalhoatravésdegerações,cumprindotarefascompletas,dasementeiraàcolheita ‐, aspira, fundamentalmente, a possuir aquela terra, fazendo‐sesitianteeproprietário.Otrabalhadordeengenho,aocontrário,engajadoedisciplinado numa unidade produtivamaior, dirigida impessoalmente, deque ele é apenas uma parcela mínima incumbida de tarefas parciais eincompletas, mais do que à posse da terra, aspira à melhoria de suascondiçõesde trabalhoeaumpadrãodevidamaisalto.Quando livre, suaatitudemais se aproxima à postura do assalariado do que à do parceiro;maisàdooperáriofabrilqueàdocamponês.

Portudoisso,osistemaprodutivodaplantaçãonãopodeserreduzidoaossistemas não mercantis do feudalismo europeu conformador da vidacamponesa medieval, nem ao sistema granjeiro moderno. Constitui umaespécienova,quedevesercompreendidaemseuspróprios termos.Éumsistemaagrário‐mercantildecolonizaçãoescravista,conformadocomoumconjunto integrado de relações centralizadas no objetivo de produçãomonocultoraparaexportação.

Paraatenderaesseobjetivo,aplantaçãodestacadanaturezaumtratodeterra, mediante a instituição legal da sesmaria, estabelecendo ali o seudomínio.Dentrodesseespaçopossuído, compõeumsistemaordenadodeprodução através do aliciamento demão‐de‐obra, não com o objetivo defazer viver e procriar uma comunidade humana na novamorada,mas deorganizar‐se para produzir bens de exportação. A comunidade, assimformada,

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atenderá a outras tarefas, como as de reprodução biológica, desubsistência da força de trabalho, de construção e reconstrução doinstrumental de produção, tendo em vista, porém, sempre eimplacavelmente,oseuobjetivounívoco:aproduçãodoquenãoconsomepara atender a solicitações externas. Gera, assim, uma ordem internaautoritária, fundada namais rigorosa disciplina de trabalho, a um tempoimpositivaeconscienteparatodososquenelaestãoengajados.Seusmodosde ação sobre a natureza, suas formas de organização das relaçõesinterpessoais, sua visão do mundo representam uma combinação deelementos tomados dos atrimônios culturais de cada contingenteformador, selecionados por sua capacidade maior de contribuir paraobjetivosdeproduçãoouporsuacapacidadedeconciliar‐secomeles.

Nessas circunstâncias, é nomundo do engenho que se plasma o núcleofundamental da área cultural que designamos cultura crioula. Os quenascemouingressamnessemundosãocompelidosanelaintegrar‐secomooúnicomododese fazeremmembrosdaquelasociedadeedese fazeremhumanos na forma prescrita pelas necessidades de produção. A culturacrioulaé,porisso,aexpressãonacondutaenoscostumesdosimperativosdaeconomiamonocultoradestinadaàproduçãodeaçúcar.

Esta tem raízesmergulhadas nasmatrizes culturais indígena, africana eeuropéiadequeselecionaseus traçoscircunstanciais,massecontrapõeatodascomoumestilodevidanovo,cujos integrantesolharãoomundo,serelacionarão uns com os outros e atuarão sobre o meio, de maneiracompletamente diferente. O senhor de engenho, seus empregados e suaescravaria, cada qual em seu plano próprio, definido por uma hierarquiarígida,sãotransfiguraçõesoperadasporessaculturanova,nelaintegradosempapéisdistintos,porémcomplementares,que,noseuconjunto,operampara produzi‐la e reproduzi‐la sempre idêntica a simesma. Surge, assim,uma estrutura socioeconômica totalmente distinta da feudal, ainda quearcaicaepré‐capitalista

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Mas se constitui não pelo mergulho de uma antiga área imperial numaregressão feudal, não mercantil, como ocorrera na Europa, mas porimplantaçãodecorrentedeatosdevontadeeà luzdeumprojetoprópriobem definido. Uma vez instituído, esse projeto operará como um novomodeloestrutural,multiplicável,deexploraçãomercantildeterrasnovas:ocolonialismoescravista.

A senhorialidadedopatronato açueareiro lembra, emmuitos aspectos, ada aristocracia feudal, pelos poderes equivalentes que alcança sobre apopulaçãoque vivia em seusdomínios, pelo exercício dajudicatura e pelacentralizaçãopessoaldomando.

As duas formas se opõem, porém, umavez que o senhor feudal governauma população voltada sobretudo para o preenchimento das suascondições de sobrevivência. Cumpria‐lhe, essencialmente, zelar pela suaauto‐sufciência, porque vivia de seus parcos excedentes e porque seuassentamentosobreelaéquelhepermitiaexercersuafunçãomaisaltadecomando guerreiro sobre homens recrutados no próprio feudo. Seusdireitosfeudais,fundados,primeiro,naconquista,masconsolidadosdepoisatravés da primogenitura, davam estabilidade ao sistema e lheasseguravam meios de vida mas não de enriquecimento, mesmo porqueimportavam na contingência de não entrar nas competições mercantis,senão para dirimir conflitos, pelo cultivo de uma atitude de soberbodesinteressepelapecúnia.

Sócomarupturadofeudalismoeuropeu,arestauraçãodaredemercantil,é que os senhorios feudais começam a interessar‐se pela gerênciaeconômica de seus bens em termos de produção capitalista. Mas, então,estalamasrebeliõescamponesascontraas ingerênciasemsuavidaepelodireito de comercializarem, eles próprios, suas colheitas, comoproprietáriosdesuasglebas.

O senhor de engenho, ao contrário, já surge como o proprietário de umnegócio que incluía as terras, as instalações e as gentes de seu domínio,exercendoseucomandoparaconduzi‐las

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a uma atividade econômica exógena. Assumia, assim, uma atitudemercantil face às pessoas, sobretudo à escravaria, menos gente, a seusolhos,doque instrumentoseficazesounão, lucrativosoudispendiososdenegócio. Desenvolvia, desse modo, um agudo sentido pecuniário, pelacontingência de obter lucros para mais enriquecer ou perdê‐los, nacompetição com outros produtores autônomos, na disputa com osparticipantes da comercialização do produto e na dependência decomplexossistemasfmanceirosefiscaisqueoexploravam.

Adiferençaessencialdosdoissistemasestá,porém,nopapelenafunçãoda população envolvida: no primeiro caso, sobreviver de acordo com suaconcepçãodevida;nosegundo,produzir lucros,comoseforaumafábricamoderna, e integrar‐se na condição de vida que lhe era imposta comocamadasubalternadeumasociedadecolonial.

Em seu desdobramento posterior, o sistema feudal e o sistema deplantação geram complexos socioeconômicos inteiramente diferentes. Oprimeiro,desfazendo‐seàmedidaquecresciao setorcomercialexternoaele, dá lugar a um campesinato livre co‐participante, pela propriedadedesua gleba, do sistema capitalista nascente. O segundo, evoluindocongruentementecomosistemacolonial‐escravista,queogerara,passadoescravismo, que era seu conteúdomais obsoleto, a formas capitalistas decontingenciamento da força de trabalho, jamais colocando em causa adistribuiçãoda terra comoquestão crucial,mas, ao contrário, tendendo àconcentraçãodapropriedade, àpreservaçãododomínioempresarial e aofortalecimento, cada vez maior, do seu caráter de entidade comercial eindustrial.

Pelomesmocaminho,osistemapreserva,também,suacaracterísticamaisnegativa: a ordenação da economia segundo solicitações externas, que oinduz a servir não aos que nele estão engajados como força de trabalho,mas ao enriquecimento do proprietário e ao abastecimento do mercadomundial.Mesmo

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após a decadência em que descamba a produção açucareira das velhasáreas, o engenho continuará representando um bom negócio para ossituadosnaposiçãodedonos.Seufracassoessencial,comoveremos,estánasua incapacidade de abrir perspectivas de integração da sua massatrabalhadora numa economia de consumo, capaz de proporcionar‐lhe umpadrãodevidamaisdigno.

Representa papel relevante na formação desse núcleo básico da culturacrioula a circunstância de o fazendeiro ou senhor de engenho residir nafazenda. Esse fato importaria em proporcionar ao mundo do engenhoaçucareiroumaoutradimensão,nãoapenasprodutiva,quevisavaaprovera família senhorial de confortos e gozos que sua posição e riquezapermitiamfruir.Essadimensãoéqueproduziunoengenhoacasa‐grande,com seus amplos espaços, seu ricomobiliário, sua tralhade conforto, sua"civilização". E diferenciou a escravaria do eito ‐ atirada na senzala edesgastada como bestas de carga ‐ do círculo das mucamas e criadosdomésticos, escolhidos dentre os negros e negras de aspecto maisagradável,nascidosjánoengenho,paraserviràfamíliasenhorial.

O caráter familiar da empresa açucareira daria continuidade a essarelação, fazendo sucederem‐se gerações de senhores e de escravos sob omesmodomínio,cadavezmaisafeitosunsaosoutrosemaisespecializadosdevotadosasuasrespectivastarefasetambémcadavezmaisimpregnadospor aquele complexo cultural. Assim, um patrimônio social de usos, deatitudesedeprocedimentoscomunsseplasmaesetransmitedegeraçãoageração, emprestando sabor e congruência aos destinos daqueles quenasciamemorriamnaquelemundooriginal,voltadoporinteiroaproduziraçúcar que se exportava, e reproduzir modos de vida tão extremamenteopostos,primeirode senhorese escravos,depoisdosmesmos senhoresedeumaforçadetrabalhojánãoescrava,massubmetidaquaseàsmesmascondiçõesdeexistência.

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Naorladosengenhos,asociedadedaáreaculturalcrioulacrescetambémesediferencia,produzindobrancosemestiços livresdevotadosacultivossecundárioseatarefasmaishumildesqueraramentecompensavampagaro braço escravo, pelo menos o escravo africano. Essa população eraconstituída, na zona rural, por famílias de granjeiros e de parceiros,dedicados a lavouras comerciais, como o tabaco, ou de subsistência; osprimeiros para consumo interno e exportação; os últimos para seremlevados semanalmente às feiras. Algumas dessas produções de tabacocresceram tanto como cultivo quanto na industrialização, exigindorecrutamento demão‐de‐obra e uma base de organização empresarial. Jánão era aproduçãode tabacoparao consumo,maspara exportação, queconstituiu, aliás, a principalmoeda de troca para compra de escravos naÁfrica. E nas vilas e cidades, outros contingentes complementares dessesistema econômico eram constituídos por funcionários, clérigos,negociantes,artesãos,serviçaisdostransportesecarregadoresdoporto.

Comunidadesespecializadaseautárquicaseramformadasporpescadoresque, combinando técnicas nativas e a técnica portuguesa, proviam aomercadoumprodutomercarltilespecíficoeacessível.Elassedistribuíramem aldeias pelas praias, dando uma ocupação humana permanente aolitoral.Constituíaumaoutraeconomiadapobreza,quepossibilitariamaiorfarturaalimentarmasnãoensejavariqueza.

Tão opressivo se tornara, porém, o domínio da grande fazenda comoinstituiçãocentralordenadora,que todaessaorlaconduzia‐secomo forçaauxiliar na manutenção da ordem açucocrática. Cada comerciante, cadapadreecadaoficialdaCoroatinhamcomoidealsupremochegar,umdia,afazer‐se também senhores de engenho; e enquanto não o alcançassem,honrá‐los como seu apoio, sua admiração e respeito, como aos donos davida.Essa

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subserviência elevava o senhor de engenho à categoria de setorpredominante da classe dominante cuja hegemonia se projetava sobre asociedadeinteira,submetendotodosàestruturahierárquicadoengenhoeaenglobando,numsistemacoesoeunificado.

Suahegemoniasónãoeracompletaporqueelesdependiam,porsuavez,dos dois outros corpos da classe dominante. Em primeiro lugar, dopatronato parasitário de armadores e negociantes de importação eexportação que relacionavam a economia açucareira com o mercadomundial. Também dependente da prosperidade da economia açucareira,que era sua fonte de riqueza, esse patronato urbano se impunha aossenhoresdeengenho,quemantinhamatadosatravésdeumendividamentopermanente, mas atuavam sempre na defesa dos interesses comuns donegócio.Dependiam,emsegundolugar,dooutrocorpodaclassedominanteformadopelopatriciadogovernamentalqueorganizava,regiaedefendiaoempreendimento colonial, tudo fazendo também pela prosperidade daeconomia açucareira. Entretanto, os burocratas; o eclesiástico, querendomaisóbulosparaaglóriadeDeuseasalvaçãodasalmas;omilitar,pedindoajuda nas obras de engenharia de defesa; o clero comum; e até algunspoetinhas, intrigando e falando mal da vida alheia, freqüentemente seopunhamaosinteressesimediatosdosdoispatronatos.

Comosevê,encontramosnoBrasil,desdeosprimeirosanos,umaclassedominantepartidaemdoiscorpos:opatronaleopatricial,oprimeirodelesdividido, por sua vez, em empresários produtores e negociantesparasitários. Conforme assinalamos, essas diferenças, sem dúvidaimportantes, nunca chegaram, porém, a constituir um antagonismoirredutível,porquetodaselasformavam,emessência,acúpulahomogêneae coesa de um mesmo sistema de dominação externa e de exploraçãointerna.

Algumas características da nova sociedade assomariam claramente nolimiar do século xvll, quando os holandeses assaltam e se apoderam daprincipalzonaaçucareiradoNordestebrasileiro.

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Essesinvasoreseramosantigossóciosefinanciadoresdosportuguesesnaimplantação dos engenhos de açúcar, cuja distribuição haviampraticamente monopolizado. Expulsos do negócio pela absorção dePortugalpelaCoroaespanhola,osholandesesprocuravamrecuperar,pelaconquista,ocentrodeproduçãodeaçúcardoseusistemacomercial.Depoisde alguma luta, a nova metrópole colonial impõe tranqüilamente seudomínioporcincolustros,semqueossenhoresdeengenholheopusessemgranderesistência.

Éque,apósumséculodeesforços,oscolonossehaviamconstituídonumasociedade rigidamente estratificada que, ao contrário dos ocupantesoriginaisdacostabrasileira,contavacomcamadassubalternaspreparadasaprestarserviçosaqualquersenhorioecomumacamadasenhorialprontaanegociareaseacomodardiantedequalquerconquistadorvitorioso.Aosolhos demuitos desses senhores deve ter parecidomelhor uma sujeiçãocomercialaumaHolandaprósperaqueaumPortugalfalidoesubmetidoàEspanha.

Osholandeses,comseumaiordesenvolvimentocapitalista,suaposiçãodeverdadeiros controladores do mercado europeu de.açúcar ‐ que apenaspassava pelos portos portugueses para onerar‐se com taxas ‐ e dedetentores de um sistema fmanceiro mais provido de capitais, pareciamabriraossenhoresdeengenhoperspectivasmaisalvissareirasdemelhoraro negócio. E, efetivamente, os negócios melhoraram prontamente. Osprodutores receberam os financiamentos de que necessitavam parareequipar suas instalações, renovar sua escravaria e prover decomodidades industriais as suas casas‐grandes mediante ocomprometimento de futuras safras. A ruptura só se dá quando, maiscongruentemente capitalista, a administração holandesa passa a exigir opagamento pontual dos créditos concedidos, executando as dívidas pelaexpropriaçãodosengenhosdosdevedoresremissos.Então,algunsdosmaisafoitosemcolaborarnaprimeira

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fasesefizerammaispatriotasemaispiosnadefesadapátriaportuguesaedareligiãocatólica.

Unidosos remissos ‐ liderandoapopulação combatente, engajável entãocomo o fora antes ‐ expulsaram o invasor. O episódio teve váriasconseqüências, sendo a principal delas a transferência dos capitaisholandesespara a aberturadenovasplantações açucareirasnasAntilhas,que,umadécadamaistarde,disputariamomercadomundial,acabandopordominá‐lo. No período de entendimentos amistosos, o holandês seassenhoreavadastécnicasdeplantioedefabrico,habilitando‐separaabriranovafrenteprodutora.

Aaçucocraciasóencontrouresistênciaefetivaeenfrentouoposiçãoativaporpartedonegroescravo,quelutouporsualiberdadenãoapenascontraoamomascontratodaasociedadecolonial,unidaecoerentenadefesadosistema. Foi uma luta longa e terrível que se exprimiu de mil modos.Diariamente, pela resistência dentro do engenho, cujo funcionamentoexigiuopulsoeoaçoitedofeitorparaimporemanteroritmodetrabalho.Episodicamente, pela fuga de negros já conhecedores da terra paraterritóriosermosondeseacoitavam,formandoquilombos.

O mais célebre deles, Palmares, sobreviveu, combatendo sempre, porquase um século, reconstituindo‐se depois de cada razzia. Ao fmal,concentravacercade30milnegrosemdiversascomunidadesedominavauma enorme área encravada na região mais rica da colônia, entrePernambuco e aBahia. Sua destruição exigiu armar um exército de 7milsoldados,chefiadopelosmaisexperimentadoshomensdeguerradetodaacolônia,principalmentepaulistas.

Palmares, como dezenas de outros quilombos surgidos na área dasdiversas regiões onde se concentravam núcleos escravos, estruturava‐sedentro dos moldes culturais neobrasileiros e não como restauração deculturas africanas. Suas casas, seus cultivos, a língua que falavam, todo oseumodosocioculturaldeser

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eraessencialmenteomesmodetodaaáreacrioula.NoNordeste,comoportodo o país, o negro fora deculturado de suas matrizes originais eaculturadoàetnianeobrasileira,quealcançouprontamenteasaturaçãodostraçosafricanosquepodiaabsorver.

Os cultos fundadosemconteúdos religiososafricanos, aindahojevívidosnaszonasquereceberammaiorescontingentesnegros,seconstituíramemoutro reduto da resistência escrava. Estruturam‐se principalmente nasgrandescidades,ondeonegrogozavademaior independênciaeondeseuesforço por ascender socialmente encontrava, por um lado, chances dealentá‐lo e, por outro, resistências que mais o apicaçavam. Com oaprofundamento dessas duas tendências opostas e complementares egraçasà liberdadequeonegropôdegozarapósaabolição,oscultosafro‐brasileirosforamalcançandoimportânciacrescente.

O negro, que no fim do período colonial se integrara nas organizaçõesreligiosas católicas tradicionais ‐ uma das poucas instituições queaceitavam sua participação, definindo‐lhe um lugar e um papel ‐, as foiabandonando, progressivamente, sobretudo nos centros metropolitanos,em favor dos cultos afrobrasileiros. Eles são, hoje, provavelmente maispoderososdoqueemqualquertempodopassado.Contribuiuparaisso,nocampo religioso, o esforço da Igreja católica por imprimir uma maiorortodoxia ao culto e, no campo social, as condições de penúria einsegurança que enfrentam os negros e as camadas mais humildes queformamamassaprincipaldessescultos.NascidadesdaBahia,doRecife,deSãoLuís,doRiodeJaneiro,ocandomblé,oxangô,amacumbaconstituemoscentrosdevidareligiosamaisativadaspopulaçõespobres, tantopretasepardascomobrancas.

A economia açucareira do Nordeste colonial, fundada no sistema defazendas,foiamaisbem‐sucedidadasformasdecolonizaçãodasAméricasnos primeiros dois séculos. Em meados do século xvii, a exportação deaçúcargeravaumarendainterna

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líquida anual superior a 1 milhão de libras‐ouro, grande parte da qualficava em mãos dos senhores de engenho. Era aplicada na ampliaçãosucessivadacapacidadeprodutora,nocusteiodosfatoresdeproduçãoqueeram importados, sobretudo da escravaria, e na manutenção do sistemaexternode financiamento e comercialização (Furtado1959:59‐61). Criou‐se, assim, uma enorme disponibilidade para gastos gerais e suntuários,permitindoaosproprietáriosaltosníveisdeconsumo.

Essa riqueza exprimiu‐se principalmente na edificação das cidades doRecife, Olinda e da Bahia, que mais tarde, com o aporte da riquezaproveniente da mineração, se ergueriam como os maiores e mais ricoscentrosurbanosdasAméricas,excetuadaaCidadedoMéxico.Asenormes,numerosaseriquíssimasigrejaseconventosdessascidades,sobretudodaBahia, sua vida urbana brilhante e ostentória, eram a alta expressão dacivilizaçãocrioulaquetinhasuacontrapartenavidaenamorte iníqüadoescravodoeito,sobrecujascostaspesavaaquelaopulência.

Nos séculos seguintes, a competição com a nova área produtiva dasAntilhas desloca o Nordeste dos mercados mundiais e provoca umadeterioraçãocrescentedospreços,quegerariaumacrisecrônicanaregiãoaçucareira. O sistema implantado se revelaria, entretanto, perfeitamentecapaz de enfrentar essa crise e a exacerbação da única contradição ativa,que era a rebeldia escrava, cruamente subversiva e atentatória à ordemsocial,cujarepressãoestavaacargodoEstado.Assimsobreviveosistemaporséculos,apesardaquedaconstantedarentabilidade.Paraisso,porém,écompelido a adotar formas cada vez mais autárquicas de produção,utilizandooescravodisponívelnasépocasderecessãoparaprovernãosóaprópriasubsistênciaalimentar,masospanosquevestia,osequipamentosdesgastados de engenho e até as alfaias. Em certos períodos deagravamento da crise o engenho como patrimônio familiar se salva pelavendadepartedaescravaria

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que ele próprio produzia aos empresários da regiãomineradora, para aqualsetransferiraofulcrodaeconomiacolonial.

O impacto das forças transformadoras da Revolução Industrialdesencadeia uma era de revoluções sociais em todo o mundo, antes decristalizar‐senumanovaordenaçãosocialestável.Entreelassecontamasinsurreições, inconfidências e levantes que antecedem a independênciabrasileira e que se seguem a ela. Todas buscavam os caminhos de umareordenação da sociedade que, rompendo com a trama constritiva dadominação colonial e com a estreiteza da ordenação classista interna,abrissem ao povo melhores condições de desempenho na civilizaçãoemergente. Essas forças renovadoras, atuando sobre o contexto da áreacultural crioula abrem, pela primeira vez, às suas populações urbanas,oportunidades de rebelar‐se contra a velha ordem. Estalam, emconseqüência, múltiplas insurreições nas quais lideranças encarnadas,principalmente, por padres libertários aliciam e põem em ação massasirredentas, desde São Luís do Maranhão até o Recife e a Bahia. Nessaseclosões,múltiplas tensões subjacentes e jamaismanifestas se expressamruidosamente.Aojerizadopovoaonegociante lusitanoemqueelevêseuexplorador imediato. A animosidade do pobre ao rico. O antagonismo doempresário nativo ao estrangeiro. O ressentimento do negro para com omulatoeoódiodeambosaobranco.Entretanto,ograndeantagonismoquepulsavadebaixodetodasessastensõeseoposições,odoescravoaosenhor,malpodeexpressar‐se,porqueacondiçãodehomenslivresdosbrancosemulatososunificavamaisqueseudenominadorcomumdegentepobreeexplorada.Eporqueosideaislibertáriosdoslíderesinsurgentestinhamumlimitenosacrossantorespeitoàpropriedade,queincluíaaescravaria.

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Nasinsurreiçõeslevantava‐seumaprimeiraliderançanativaopostatantoà dominação colonial quanto à velha estratificação social interna que,mesmo entre os homens livres, estabelecia distâncias abismais entre ospobreseosricos.Essaslideranças,porém,seapavoramdiantedosriscosdegeneralizar‐se a convulsão social, ensejando à massa escrava aoportunidadedemanifestarseusrancoresseculares,queensangüentariamtoda a sociedade numa guerra de castas. A imagem da revolta do Haitipairavasobreosinsurgentesbrasileiros,aterrorizandoaquasetodoseles.Com alguma razão, é certo, dada a carga enorme de ressentimento racialque,pulsandocontidanopeitodamaioriadapopulação,podiaexplodiraqualquer momento. José Honório Rodrigues (1965:38) cita uma quadra,cantada em 1823 pelos insurgentes de Pernambuco, que opunha osmarinheiros(reinóis)ecaiados(brancos)aospardosepretos:

"Marinheirosecaiados

Todosdevemseacabar

Porqueospardosepretos

Opaíshãodehabitar."

O país já habitavam; sua aspiração eramandar. Era refazer a ordenaçãosocial segundo seu próprio projeto. É fácil imaginar e está bemdocumentado o pavor pânico provocado por essas expressões deinsurgência dos pretos e dos pardos, ensejadas por sua participação naslutaspolíticas.Asclassesdominantesviamnelaaameaçaiminentedeuma"guerra de castas" violenta e terrível pelo ódio secularmente contido quefaria explodir na forma de convulsões sociais sangrentas. E, a seus olhos,tãomaisterrívelporquequalquerdebateouredefmiçãodaordemvigenteconduziria, fatalmente, a colocar em questão as duas constriçõesfundamentais:apropriedadefundiáriaeaescravidão.

Nessas circunstâncias, é compreensível que os mais brancos e osprivilegiadosterminassemporseconvencerdequeseus

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interesseseramcoincidentescomumaindependênciaformal,monárquicae lusófila,porquesóestaestavaarmadacomovelhoaparatorepressivoeeraessencialmentesolidáriacomolatifúndioeaescravidão.

Enfeixadas dentro desses limites, aquelas revoltas tumultuárias debarbeiros,boticários,sangradores,ferradores,alfaiates,artesãos,muleiros,etodaamultidãodegenteslivresepobresarmadasdetrabucos,albardasechuços,semprepuderamserdominadasereprimidas.Algumasvezescomosimplesconcursodegentesubmissatrazidadosengenhosparareforçarastropasprofissionais.Outrasvezes,porém,foinecessáriotravarverdadeirasbatalhaseverterefusõesdesangue.

AprincipaldelasocorreuemPernambuco,em1817,ondeosinsurgentesconquistaram o poder e só puderam ser desalojados dele depois decombates emque lutavammilharesde soldados eque custaramcentenasde vidas. A vitória da ordem oligárquica foi alcançada, afinal, sobre oscorpos de nove líderes enforcados em Pernambuco e quatro fuzilados naBahia. Mas nem assim os pernambucanos se aquietaram, porque poucosanosdepoisnovasrevoltas,sobomandodeliderançasaindamaisradicais,foramreprimidascomofuzilamentodequinzepatriotas.Cadacrisesurgidanaestruturadopoderensejanovasmanifestaçõespopularesqueestouramem levantes.Assiméque,em1831e1848, todaaáreadaculturacrioulavolta a convulsionar‐se várias vezes, travando‐se lutas com milhares decombatentes que custarammilhares de vidas, novas prisões, execuções edegredos.

Estavam, então, claramentepostas emcausaparaas lide rançasurbanasnordestinas as bases mesmas da ordenação social vigente. Entre essas aconvicçãodanecessidade imperativadeaboliraescravidãoeapercepçãodaurgênciadeumareformaagráriaqueampliasseasbaseseconômicasdasociedade. O deputado pernambucano Antonio Pedro de Figueiredo, emmeados

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do século passado, advogava para o Brasil a adoção da solução norte‐americanaparaoproblemadaterra:

"[...]200ou300mildosnossosconcidadãos,maisporventura,vivememterras de que podem ser despedidos dentro de poucas horas; humildesvassalosdoproprietário, cujosódios,partidopolítico etc. sãoobrigadosaesposar. Nesse fato da grande propriedade territorial, nesses novoslatifundia, deparamos nós a base desta feudalidade que mantémdiretamentesobjugoterrível,metadedapopulaçãodaprovíncia,eoprimea outra metade por meio de imenso poder que 1he dá esta massa devassalosobediente"(apudRodrigues1965:61)."

A vitória da velha ordem se impôs, porém, a todos os revoltosos,consolidandoamonarquialusitanae,comela,aescravidãoeolatifúndio.Aaboliçãodaescravidãosóviriadécadasdepois.Emboratardia,mergulhaosistemadefazendasnumasériacriseestrutural.Entretanto,acircunstânciadequeoex‐escravonãotinhaparaondedirigir‐seafimdetrabalharparasimesmo, num mundo em que a terra fora monopolizada, o compeliria apermanecernoeito.Mudariatalvezdeamo,paranãoservircomohomemlivre àquele de quem fora escravo. A liberdade, todavia, se reduziria àassunçãodesseescravoàposiçãodeparceiro:receberiaumtratodeterrapara lavrar, a fim de produzir a comida escassa que, agora, ninguém lhedava, coma obrigaçãode fazer osmesmos serviços de outrora,medianteumpagamentoquelhepermitiacomprarosal,ospanoseaspouquíssimasoutras coisas indispensáveis para cobrir a nudez e satisfazer àsnecessidadeselementaresdesuavidafrugal.

Assim, omesmomodelo estrutural desenvolvido antes da abolição paraincorporar ao trabalho a gente pobre e livre – o sistema de parceria pormeaçãoouoregimedeagregadosquetrabalhamemterraalheia‐équeseapresenta ao ex‐escravo como seu horizonte de ascensão social e deintegraçãonacional.

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Enquanto prevaleceu a escravidão, os agregados dos engenhos e dasfazendas representavamumduplo papel. Eramos cooperadoresmenoresdoprocessoprodutivo, encarregadosde tarefasmenos lucrativas, comooprovimentodasubsistênciadasfazendasmonocultorasedasvilas.Eeramtambémosaliadosdoproprietárionarepressãoaosfreqüentesalçamentosdaescravaria.Existedocumentaçãoindicativadequemuitosproprietáriosfacilitavam a instalação em suas terras de índios, mestiços e brancos,localizando‐osnaorladaexploração intensivaentregueaobraçoescravo,comoauxiliareseventuaisdoscapatazesnasujigaçãodonegroàdisciplinadotrabalhonoeito.Comaabolição,osnegrossomaram‐seaessesbrancose pardos pobres que, para enfatizar sua superioridade de homens de tezmais clara, por vezes lhes agiam mais odientos que os brancos ricos. Aintegraçãodeunseoutrosnamassamarginaldasociedadebrasileiraaindaseprocessaemnossosdias,dificultadaporhostilidadesquedisfarçamsuaidentidadefundamentaldeinteresses,comocamadaexplorada.

Essenovohomemlivre,pretooubranco,formadonomundodoengenhoaçucareiro com sua hierarquia remarcada, enquanto nele permanecemergulhadoéquasetãoigualmenterespeitosoeservilaosenhoreaofeitorquanto o antigo escravo, mesmo porque não conta com qualquerperspectiva de sobreviver fora das fazendas. Essas condições tornaram onegromais resignado com seu destino, agoramelhorado pela assunção àdignidadedeserhumanoeaindamais indoutrinávelaumaconcepçãodomundo que explica a ordem social como sagrada, e a riqueza do rico e apobrezadopobrecomodestinaçõesinapeláveis.

A economia açucareira experimenta um segundo impacto inovador, apartirdemeadosdoséculoXIX,quandoatecnologia

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daRevoluçãoIndustrial invadeseudomínio.Talsedácomasubstituiçãodoengenhoderoda‐d'águaoudetraçãoanimalporinstalaçõesmovidasavapor,deeficiênciaeprodutividadeenormementemaiores.Começacomaimplantaçãodecentraisdefabricoqueadquiremacanacultivadanasáreasvizinhas, transformando os antigos senhores de engenho em merosfornecedores.Segue‐seaconcentraçãodapropriedadedasterrasemmãosdascentrais,quetomamaformadegrandesusinasmodernas,instaladasàcusta de empréstimos a banqueiros estrangeiros e estruturadas comosociedadesanônimas.Ossenhoresdeengenho,quesobrevivemnonegóciocomodonos ou como cotistas das novas empresas, transferem‐se para ascidades, entregando a casa‐grande ao administrador e utilizando novosmeiosde transporte, comoo treme,mais tarde,oautomóvel,paravisitarperiodicamenteapropriedade.

Aessacrisesesomaoutra,decorrentedadisputadomercadointernocomnovaszonasprodutorasdeaçúcarinstaladasnoSul,noRioeemSãoPaulo,próximasaoscentrosconsumidores.Nessaetapa,assumepapeldecisivoaposição social conquistada e, apesar de tudo, mantida pela oligarquiapatricial do açúcar, que passaria a utilizá‐la cada vez mais para pleitearfavores governamentais. A indústria açucareira do Nordeste se mantém,doravante, graças à ajuda oficial, na forma de empréstimos de favor,moratórias e privilégios de mercado. Acaba, porém, por burocratizar‐sepela interferência sempre mais impositiva de organizações oficiaiscontroladorasdaproduçãoeda comercialização.Nessasnovas condições,comoproprietáriodeterrasemáquinashipotecadas‐obtendorendimentosgarantidos pelo Estado ‐, o que possibilita a sobrevivência da oligarquiaaçucareiraé,principalmente,suacapacidadedeaçãopolítica,seucontroledo sistema partidário local e da votação de seus empregados. O velhosenhordeengenhoésubstituídoporumpatronatogerencialdeempresasquecaíramemmãosdefirmasbancárias.

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Os filhosbacharéisdosantigos senhores, todoseles citadinos, têmagoracomosua "fazenda"a cotadeaçõesquerestoudapropriedade familiare,sobretudo,oeráriopúblicodequesetornaumadasprincipaisclientelas.

A área de cultura crioula assentada, embora, na economia açucareiraabrangeváriasatividadesancilaresquecomplementamcomoutrasformasdeproduçãosuascondiçõesdeexistênciaedão lugaravariantes ruraiseurbanas de seu modo de vida. Dentre outras, se contam diversasespecializaçõesprodutivasquediversificaramcertasparcelasdapopulaçãoe certas zonas, configurando intrusões dentro da área. Tais são,principalmente, os núcleos litorâneos de pescadores ‐ os jangadeirosnordestinos‐,desalineiroseassubáreasdecultivodocacauedotabacoeasexploraçõesdepetróleodorecôncavobaiano.Apesardasdiferençasdeseusmodosdeprodução,essasintrusõesrepresentam,pelacomposiçãodeseuscontingentespopulacionais,porseupatrimôniodesaber,denormasedevalores,merasvariantesdaculturacrioula.

Depoisdaindependência,muitopoucasalteraçõesafetamavidadamassaassalariada que permanece atada às plantações e submetida ao mandoimediato dos capatazes. Só recentemente, comum rompimento episódicoda hegemonia política do patronato açucareiro, surgiramnovas fontes depoderinfluentessobreoEstado,queameaçamimporumareordenaçãodosistema.

De fato,entre1960e1964,secomeçouareverascondiçõesdotrabalhorural, já não levando em conta exclusivamente os interesses oligárquicos.Assim, se estabelece um sistema de comunicações que defendia novosvalores, representados politicamente por lideranças que falavam outralinguagem.Empenhavam‐se,nessaluta,ladoalado,liderançasdeesquerdaeumnovocleroquevoltaadespertarparasuasresponsabilidadessociais

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eparaocombatecontraavelhaordem.Nessemovimento foramcriadascentenas de ligas camponesas e de sindicatos rurais que abriram aoativismopolíticooquadrosocialnordestinocomojamaisocorreraantes.

Em 1963, se alcançou, por essa via, impor o pagamento em dinheiro dosalário mínimo regional, mediante uma elevação do preço do açúcardestinada a custear esses gastos, tal como se fez, antes, em benefícioexclusivodosusineiros.Comoseriadeesperar,essasmedidassubversivasprovocaram a reação mais indignada do patronato, que se uniu emprotestos contra essa intervenção "abusiva" no seumundo privativo, quelhe prevê as rendas que usufrui e lhe proporciona os votos que negocia,permitindomanterosprivilégiosquedesfrutapordireitodeherançaeporforçadesuahegemoniapolítica.

Essastransformaçõespareciamanunciaramortedopatronatoaçucareiro,de hámuito ocorrida no plano econômico,mas que conseguiramanter afaceeoprestígiopelapreservação,medianteprocessospolíticos,daantigadominação.Anunciava,também,noNordesteaçucareiro,aobsolescênciadeuma cultura crioula tradicional, tornada arcaica, e a emergência de umaculturamoderna,debase industrial,quepareciadestinadaareordenarasvelhasformasdevidasocial.

Poressecaminhoseiagerandonotrabalhadoranalfabetoemiserávelumanova consciência do mundo e de si mesmo. Criavam‐se condições parasubstituiraantigaresignaçãoepassividadeemfacedograndemundodospoderososeaconcepçãosagradadaordemsocialporumaatitudecadavezmais inconformadacomapobrezaquesecomeçavaaexplicaremtermosseculares e dinâmicos. Desse modo, aos poucos se ia preenchendo ascondiçõesparaaintegraçãodaspopulaçõesruraisnordestinasnasformasdevidadetrabalhadoreslivreseparaoexercíciodopapeldecidadãosdeseupaís.

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Todas essas esperanças se frustraram, porém, com a derrubada dogoverno reformista, que propiciara essa mobilização, e o retorno àestruturadopoder,pormãosdo regimemilitar,davelhaoligarquia,paradefenderaperpetuaçãodeseusinteressesminoritários.

Há quem suponha que a repressão à rebeldia nordestina tenha sido daspiores que o Brasil sofreu e que, nela, milhares de camponeses e seuscompanheirosdelutaforamtorturados,dizimados,mortosedispersados.

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3.OBRASILCABOCLO

"[...]etodaaquelagenteseacabouounósa

acabamos;empoucomaisdetrintaanos[...]

erammortosdosditosíndiosmaisdedois

milhões[...]

Pe.AntônioVieira,1652"

A área de floresta tropical da bacia amazônica cobre quase metade doterritóriobrasileiro,massuapopulaçãomalcomporta10%danacional.SuaincorporaçãoaoBrasilsefezporherançadopatrimôniocolonialportuguês,pelaunidadedeformaçãoculturalfundadanasmesmasmatrizesbásicas,epela emigração de cerca de meio milhão de nordestinos conduzidos àAmazônia nas últimas décadas do século passado e nas primeiras deste,paraaexploração,dosseringaisnativos.Essaintegraçãoterritorial,culturale humana se vem fazendo orgânica, nos últimos anos, graças àscomunicaçõesdiretasestabelecidasatravésdosriosquecorremdoplanaltocentralparaoAmazonasedasrodoviasrecém‐abertasparaligarBrasíliaaoRio‐Mare,incipientemente,paracortartransamazonicamenteafloresta,denorteasul,delesteaoeste.

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Hoje,aAmazôniaseofereceaoBrasilcomosuagrandeáreadeexpansão,paraaqualinevitavelmentemilhõesdebrasileirosjáestãosetransladandoecontinuarãoa se transladarno futuro.A florestavemsendoatacadaemtoda a sua orla e também desde dentro num movimento demográficopoderoso,movidoporfatoreseconômicoseecológicos.Maisdemetadedapopulação original de caboclos da Amazônia já foi desalojada de seusassentos, jogada nas cidades de Belém eManaus. Perde‐se, assim, toda asabedoria adaptativa milenar que essa população havia aprendido dosíndiosparavivernafloresta.

Osnovospovoadorestudo ignoram;vêema florestacomoobstáculo.Seupropósitoétombá‐laparaconvertê‐laempastagensouemgrandesplantioscomerciais.Aeficáciadessemododeocupaçãoédetododuvidosa,massuacapacidadedeimporseéinelutável,mesmoporquecontacomasgraçasdogoverno.Aditaduramilitarchegoumesmoasubsidiargrandesempresáriosestrangeiros, atraídos pela doação de imensas glebas de terra e comfinanciamentos a juros negativos dos empreendimentos que lançassem.Devolvia,inclusive,oimpostoderendadegrandesgruposempresariaisdosul do país que prometessem aplicá‐lo na Amazônia. Esses programaslevaramaumredondo fracasso.Nãoassima invasãosorrateirade todaaflorestaporgentedesalojadadoslatifúndioseatédosminifúndiosdetodooBrasil,quealiestáaprendendoavivernamata,criandoumnovogênerodeocupaçãoqueaindanãoseconfigurou.

OsistemafluvialSolimões‐Amazonaspercorremaisde5milquilômetrosem território brasileiro, desde a fronteira peruana até o delta, na ilha deMarajó. Representa, para a navegação, uma extensão do litoral atlântico,continenteadentro,porondepodementrargrandesnavios.Seusprincipaisafluentes decuplicam a extensão navegável, formando a mais ampla dasredesfluviais.

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Todaaáreaeraocupada,originalmente,portribosindígenasdeadaptaçãoespecializada à floresta tropical. Amaioria delas dominava as técnicas delavoura praticadas pelos grupos Tupi do litoral atlântico, com que sedepararam os descobridores. Em algumas várzeas emanchas de terra deexcepcionalfertilidadeedefácilprovimentoalimentar,atravésdacaçaedapesca, floresceramculturas indígenasdemaisaltoníveltecnológico,comoas de Marajó e de Tapajós, que podiammanter aldeamentos com algunsmilharesdehabitantes.

Eram, todavia, sociedades de nível tribal, classificáveis como aldeiasagrícolas indiferenciadas, porque não chegaram a desenvolver núcleosurbanos,nemseestratificaramemclasses,jáquetodosestavamigualmentesujeitosàstarefasdeproduçãoalimentar,nemtinhamcorposdiferenciadosdemilitares e de comerciantes. Ensejavam, porém, condições de convíviosocial amplo e de domínio de extensas áreas. Os cronistas, quedocumentaram aqueles aldeamentos após os primeiros contatos com acivilização, ressaltaram o vulto das populações, que se contavam pormilhares em cada aldeia, a fartura alimentar e a alegria de viver quegozavam.Estudosarqueológicosrecentesestãorevelandoaextraordináriaqualidadedoseuartesanato,sobretudodacerâmicamodeladaecolorida.

Essaafirmaçãodificilmentepoderiaserrepetida,hoje,paraqualquerdoscontingentes populacionais da Amazônia, todos engolfados na mais vilpenúria. Em nenhuma outra região brasileira a população enfrenta tãoduras condições de miserabilidade quanto os núcleos caboclos dispersospela floresta, devotados ao extrativismo vegetal e, agora, também aoextrativismo mineral do ouro e do estanho. Os seus modos de vidaconstituem uma variante sociocultural típica da sociedade nacional que,embora comporte algumas diferenciações funcionais, segundo o tipo deproduçãoemqueseengajeapopulação,apresenta

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suficiente uniformidade para ser tratada em conjunto como uma áreacultural.

A característicabásicadessavariante éoprimitivismode sua tecnologiaadaptativa, essencialmente indígena, conservadae transmitida, atravésdeséculos,semalteraçõessubstanciais.Ea inadequaçãodessemododeaçãosobreanaturezaparaprevercondiçõesdevidasatisfatóriaseummínimode integração nas modernas sociedades de consumo. Na verdade, acivilização não se revelou capaz, até agora, de desenvolver um sistemaadaptativoajustadoàscondiçõesdaflorestatropical,multiplicávelatravésdeummodeloempresarialquelheassegureviabilidadeeconômica.

O correspondente amazônico do engenho açucareiro, da grande lavouracomercial ou da fazenda de criação de gado das áreas pastoris é umaempresaextrativistaflorestal,incipientementecapitalista:oseringal.Elesópôdeoperareconomicamenteenquantomanteveomonopóliodaproduçãomundialdaborracha,fazendo‐sepagarpreçosdezvezesmaisaltosdoqueos atuais. Com o surgimento de seringais cultivados no Oriente e daborracha sintética, a exploração da borracha nativa tornou‐seeconomicamenteinviável.Desdeentão,oseringalsósobrevivegraçasaumprotecionismo estatal que o mantém artificialmente, subvencionando opatronato seringalista, mas sem a preocupação de amparar a massa detrabalhadoresneleengajada.Estasituaçãopermanece inalterávelhámeioséculo,submetendoaspopulaçõesdaAmazôniaàmaiormiséria,semlhesensejar uma alternativa de inserir‐se em outras formas de produçãoeconômica.

A compreensão do modo de vida das populações amazônicas e dosproblemascomquesedefrontamexige,porém,umbreveexamehistóricodecomochegaramelasàpresentesituaçãoedasprincipais forçassociaisqueatuaramparaconformaro

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seudestino.Esseexamemostraqueapenetraçãoeaexploraçãodovalesefizeram como grandes empreendimentos, seguidos sempre de largosperíodos letárgicos, até atingir o último, que já dura quase um século.Osprotagonistasdessesesforçosforamalgunslusitanos,muitosneobrasileirosmestiços, saídos daquelas primeiras células‐Brasil, e a indiada engajadacomomão‐de‐obraescravaparatodasastarefaspesadasegastanessedurotrabalho.

Comefeito, a ocupaçãoportuguesado rioAmazonas se faz, inicialmente,visando a expulsar os franceses, holandeses e ingleses, deserdados noTratadodeTordesilhas,queprocuravaminstalar‐senasvizinhançasdesuadesembocadura.Paraissotiveramquetravarlutaseconstruirfortificações.Estas começaram a operar na região como feitorias, traficando com osíndiosaliadosasdrogasdamataporbugigangas.Quandoseaperceberamdo valor comercial das especiarias assim obtidas, substitutivas das quePortugal trazia das Índias, um esforço deliberado se empreendeu pararacionalizar e ampliar o negócio. Como a única forma factível de obtermaiorproduçãoconstituíaaescravizaçãodosíndiosparaoscompeliraumtrabalho regular, isso foi feito. A maior dificuldade, porém, estava nacontingênciainevitáveldedeixarosíndiossoltos,parajuntarascobiçadasespeciariasquecrescem,aoacaso,namatainfinita.Asoluçãoconsistiuemescravizar aldeias inteiras, mantendo as mulheres e as criançaspraticamente como reféns, enquanto os homens trabalhavam nasexpediçõesquebatiamafloresta.

A reação indígena a esse tratamento desencadeou a guerra e oafastamento das tribos antes aliadas para refúgios em que se punham asalvo da escravidão. Impondo‐se ir buscá‐los onde se acoitassem,organizaram‐segrandesexpediçõesquesubiamosriosnapreiaaosíndiosarredios.Essasforamastropasderesgate,soluçãocaraeprecária,porquesempreocupavamaisgentena

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guerra que no trabalho e matava mais índios do que escravizava,reduzindo‐se,

assim,ocontingentehumanoquedeveriaaliciar.

Uma solução melhor seria encontrada com a instalação de núcleosmissionários,

principalmentejesuíticosmastambémcarmelitasefranciscanos.Masestestiveramquelutarmuitocomospróprioscolonizadoresparaaimporcomoamaisracionaleproveitosa.Oacordosefez,afinal.Oscatecúmenosdecadamissão‐aldeamento eram divididos em três grupos. Um terço para osserviçosdospadres,incluindodepreferênciaosíndiosrecém‐preados,aosquaisnãosepoderiaimpor,ainda,todoopesodoguanteescravizador.UmoutroterçoparaaedificaçãodasobraspúblicaseoserviçodasautoridadesdaCoroa.Eoterçorestanteparaserdistribuídoentreoscolonizadoresnasquadrasdecoletadedrogasdamata.

Paraosíndioscondenadosaumaescravidãoaindamaisduraemmãosdoscolonizadores,oregimedasmissões,senãorepresentavaumaamenidade,eratodaviamaissuportável.Permitia‐lhessobreviver,porvezesconservarcerta vida familiar, quando suasmulheres não eram cobiçadas por algumportuguês oumestiço, emanter um convívio comunitário que ensejava atransmissãodesuastradições.Mas,mesmoassim,apopulaçãoindígenasedesgastavarapidamente,exigindoconstantesreposições.

Começa, então, a etapa dos descimentos, promovida pelos missionários,parafazerbaixar,pelapersuasãooupelaforça,malocasinteirasrefugiadasnos altos cursos dos rios para os aldeamentos‐reduções. Estes se fazemmistos, incorporando gente de diferentes tribos, de línguas e costumesdiversos, submetidos todos àmó civilizadora do trabalho extrativista, doserviçoobrigatórionasobraspúblicas‐construçãodefortificações,portos,edifícios administrativos, casas senhoriais ‐, bem como das lavouras desubsistência dos próprios aldeamentos e da edificação de igrejas econventos.

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Adisciplinaimpostaporessestrabalhoseascondiçõesdeconvívioentreíndiosdediferentesmatrizesimpuseramahomogeneizaçãolingüísticaeoenquadramento cultural compulsório do indígena no corpo de crenças enosmodos de vida dos seus cativadores. Sob essas compulsões é que setupinizaram as populações aborígenes da Amazônia, em sua maioriapertencentes a outros troncos lingüísticos, mas que passaram a falar alínguageral,aprendidanãocomoumidiomaindígena,mascomoafaladacivilização,comoocorriaentãocomquasetodaapopulaçãobrasileira.

Aorganizaçãodosaldeamentos‐reduçõesexpandiu‐seportodoovale,quese fazia brasileiro à medida que recrutava a massa de trabalhadoresindígenas indispensável para ampliar a produção de drogas damata, quePortugalnegociavaemtodaaEuropa.Taiseramocacau,aindaselvagem,ocravo,acanela,ourucueabaunilha,alémdoaçafrão,dasalsaparrilha,daquina,dopuxuriegrandenúmerodesementes,cascas,tubérculos,óleoseresinas.

Os aldeamentosmissionários, sobretudo jesuíticos, concentrando grandenúmerode índios,exerceramumaaçãoaculturativa intensa,quepermitiudifundiralgumastécnicasartesanais,comoatecelagemeaedificaçãocompedraecal;novasespéciesdecultivo, comooarroz,acana‐de‐açúcareoanil;introduziracriaçãodeanimaisdomésticos,comooporcoeagalinhae,em certas áreas, iniciar a criação de gadomaior. Todavia, tiveram poucarelevâncianacriaçãodeumafórmuladeadaptaçãoàflorestatropical,quepermaneceu presa às soluções indígenas originais, pela inadequação dasnovas técnicas a ummeio ecológico tão diferente do europeu. Mesmo astécnicasartesanaisrepresentaramumpapelsocialpoucorelevante,porqueos tecidos de qualidade, as casas de pedra e cal, as comidas européiassempre sedestinaramàestreita camadadominante,não chegando jamaisaostrabalhadores.Suainfluênciamaiorterásidoodesenvolvimento

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de uma religiosidade folclórica e pouco ortodoxa, que resultou numacrençapopulardecolchaderetalhos,fundadanosincretismodapajelançaindígena com um vago culto de santos e datas do calendário religiosocatólico.

Vivendo nas comunidades que cresciam em torno dos centros deautoridaderealedocomércio,contando,embora,comsuaprópriaindiadacativaoudependente,oscolonizadoresviamlimitadassuasperspectivasderiquezapelo crescimentodosistemade reduções,queaglutinavaamassamaior de índios. Conflitos semelhantes aos de outras áreas irrompiam,periodicamente, entre essas duas faces da civilização, apesar do modusvivendiquehaviamalcançado.Por longotempocresceram, ladoa lado,asduas forças comomecanismos diferentes de sujigação dos índios. Ambasreduzindo progressivamente as populações tribais autônomas, pelaincorporação no sistema de contágio que as dizimava, vitimadas porenfermidades antes desconhecidas, pela guerra e pelo engajamento edesgastenotrabalho.

Através desse processo foi surgindo uma população nova, herdeira dacultura tribal no que ela tinha de fórmula adaptativa à floresta tropical.Falavaumalínguaindígena,muitoemboraestasedifundissecomoalínguadacivilização,aprendidadebrancosemestiços.Identificavaasplantaseosbichos da mata, as águas e as formas de vida aquática, os duendes e asvisagens, segundo conceitos e termos das culturas originais. Provia suasubsistência através de roçados de mandioca, de milho e de algumasdezenas de outras culturas tropicais, também herdadas dos índios. Domesmomodocomoosíndios,caçava,pescava,coletavapequenosanimais,frutos e tubérculos. Navegava pelos rios com canoas e balsas indígenas,construía suas rancharias e as provia de utensílios segundo as velhastécnicas tribais. Ainda como os índios comia, dormia, vivia, enfim, nomundo de florestas e águas em que se ia instalando. Como os índios,finalmente,localizavaecoletavanamataasespeciariascujovalorcomercial

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tornava viável a ocupação neobrasileira da Amazônia e a vinculara àeconomiainternacional.

Mais do que transmissores de modos tradicionais de sobrevivência naflorestaúmida,desenvolvidosemmilêniosdeesforçoadaptativo,osíndiosforam o saber, o nervo e omúsculo dessa sociedade parasitária. Índios éque fixavam os rumos, remavam as canoas, abriam picadas na mata,descobriameexploravamasconcentraçõesdeespeciarias,lavravamaterrae preparavam o alimento. Nenhum colonizador sobreviveria na mataamazônicasemessesíndiosqueeramseusolhos,suasmãoseseuspés.

A Coroa portuguesa esforçou‐se por estabilizar a sociedade nascente,estimulandoocultivodealgumasplantasindígenas,comootabaco,ocacaueoalgodão.Paraessastarefasprodutivasetambémparaconsolidaroseudomínio da área disputada pelos espanhóis, introduziu na Amazôniacolonos das ilhas atlânticas, principalmente dos Açores. Esse foi o únicocontingente colonizador trazido para a Amazônia para transplantar ummodo europeu de vida. Vinham estruturados em famílias, trazendo, cadahomem,suamulher,seusfilhose,porvezes,umaspoucascabeçasdegado.Formaram inicialmente algunsnúcleos agrícolas,mas esses foramganhosprogressivamente para os modos de vida da região, forçados pelo maiorvalor adaptativo das fórmulas indígenas de trabalho e de alimentação e,sobretudo, pelo atrativo econômico da exploração das drogas da mata.Assiméqueamaioriadessesnúcleosacaboudispersando‐se,engajadosnaeconomia extrativista. Contudo, a existência de mercados urbanos locaispermitiu a alguns desses açorianos e a umas poucas missões religiosasfundarestabelecimentosagrícolasdegado,queenriqueceramaeconomiacom novos tipos de produção alimentar e artesanal nas manchas depastagem nativa de Marajó e do Rio Branco. Surgiram, ali, esdrúxulasformaspastorisde"gaúchos"amazônicosquemontavam,indiferentemente,

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cavalos, bois ou búfalos para cuidar de seus rebanhos,meiometidos naágua.

A população neobrasileira da Amazônia formou‐se também pelamestiçagemdebrancoscomíndias,atravésdeumprocessosecularemquecadahomemnascidonaterraounelaintroduzidocruzava‐secomíndiasemestiças, gerando um tipo racial mais indígena que branco. Incapaz deatenderaosapelosdagenteboadaterra,quepediamulheresportuguesas,a Coroa acabou por dignificar através da lei e por estimular medianteregalias e prêmios o cruzamento com mulheres da terra.Independentemente dessa política oficial, porém, a mestiçagem se vinhafazendo desde os primeiros tempos da colonização. A novidade consistia,paraoportuguês,emtomarumadasíndiassemicativascomoesposaoficial,diferenciando os filhos desta como seus herdeiros em detrimento doconjuntodosquegerava.

Dessemodo, ao ladodavida tribalque feneciaem todoovale, alçava‐seuma sociedade nova de mestiços que constituiria uma variante culturaldiferenciadadasociedadebrasileira:adoscaboclosdaAmazônia.Seumodode vida, essencialmente indígena enquanto adaptação ecológico‐cultural,contrastavaflagrantemente,noplanosocial,comoestilodevidatribal.Emsuascomunidadesoriginais,voltadasexclusivamenteparaopreenchimentodas suas condições de existência, os índios haviam conseguido, com asmesmas técnicas, uma grande fartura alimentar e a manutenção de suaautonomia cultural. Trasladada aos novos núcleos, a adaptação indígenaapenas permitia não morrer de fome, porque as novas comunidades seocupavammaisdetarefasprodutivasdecarátermercantil,requeridaspelomercadoexterno,doquedaprópriasubsistência.Umaeoutraseopunhamtipologicamente como sociedades tribais autônomas de economiacomunitáriaecomonúcleoslocaisdeumasociedadeestratificada,voltadaparaaproduçãomercantilegeridaporinteressesexógenos.

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O pleno amadurecimento da nova estrutura societária só se deu com orompimentodadualidadequeadividiaemreduçõesmissioneirasenúcleoscolonizadores.Talsedeucomaexpulsãodosjesuítas,quetevedoisefeitoscruciais. Primeiro, derrubouasbarreirasopostas à completa sujigaçãodogentioesuaintegraçãocompulsóriananovasociedadecomotrabalhadoresescravos. Segundo, fortaleceu a camada oligárquica da sociedade caboclanascente pela distribuição, entre funcionários e comerciantes, daspropriedades jesuíticas, com suas casas, lavouras e rebanhos de gadovacum, alémda indiaria. Esses sucessores dosmissionários, que assim seapropriaramdesuasfazendas‐sónailhadeMarajóospadrestinhammaisde400milcabeçasdegado‐,vêmsendodesignados,desdeentão,comoos"contemplados".

Nesseperíodo,aCoroaportuguesa,empenhadaemconsolidaraocupaçãoda Amazônia, fez grandes investimentos na área, custeados pelo ouro deMinasGerais, construindouma redede cidadesurbanizadas edotadasdeserviços públicos e igrejas que chegaram a ser suntuosos para a região.Algunsdeles, construídos emcantaria importadadePortugal, ainda estãodepéeconstituemasmelhoresedificaçõesdecertasáreaseoorgulhodesuacivilizaçãourbana.

O caráter distributivo dessa política atendeu inicialmente às aspiraçõesdos colonos, mas criou problemas posteriores pela retração das tribosindígenasinterioranasqueosjesuítasvinhamatraindoparaasreduçõeseintegrandonasociedadecaboclaatravésdadestribalizaçãocompulsória.Asatividades extrativistas decaíram e iniciou‐se uma economia agrícola degêneros tropicais. Durante um breve período de crise no abastecimentomundialdealgodãoedearroz,provocadopelaslutasdeindependênciadosnorte‐americanos e depois pelas guerras napoleônicas, essa economiavicejou,criandoalgunscentrosderiqueza.

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Oprincipaldelesimplantou‐senoMaranhão,foradovaleamazônicomascontíguo a ele, que se desenvolvera paralelamente, através do mesmoprocessode integraçãodos índios,numaeconomiaextrativista florestal.Osucessoeconômicodoempreendimentofoipossibilitadopelaintroduçãodamão‐de‐obra escrava africana, com que se abria grandes lavourascomerciais,chegandoaconstituir,nofimdoséculoXVIII,oprincipalcentroeconômico da colônia. Também o Pará beneficiou‐se desse surto deprosperidade, recebendo uma parcela de negros escravos para suaslavouras de algodão, arroz e cacau. Restabelecidas, porém, as lavourasnorte‐americanas, os dois centros entraram em decadência, voltando aeconomia extrativista a dominar a exportação. Essas condições deexploraçãoprovocaramoextermíniodaspopulaçõesaborígenesecriaramumambientedeextrema tensão interétnica.Masaordemsocialpode sermantidagraçasàimplantaçãoeatuação,aolongodeséculos,domaisvastoaparelhodedestribalizaçãoedeconscriçãoviolentadeíndiosaotrabalho.O padre Antônio Vieira, que foi da Companhia de Jesus, descrevendo noséculo XVII rios que ele visitara uma década antes, se espanta com aquantidade de gente dizimada pelos colonos em nome da civilização. Elefala‐certamentesemexagero‐de2milhõesdeíndiosqueseteriamgastoesecontinuavamgastando.

Mais do que ação repressiva, o que explica a manutenção dessa ordemhediondaé,porum lado,auniãodopatronatoativo,queviviaapavoradoante a possibilidade de uma rebelião geral dos indígenas mas estavaperfeitamenteconscientedequesuaúnicafontederiquezaeraodesgastede levas e levas de índios em condições de trabalho às quais ninguémpoderia sobreviver. É, por outro lado, a servilidade a seus senhores doscaboclos aculturados ao sistema e sua contraface: a atitude de crueldadebrutalparacomosíndiosdequeeramoriundos.Essaposturasó

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é comparável à de seus congêneres, osmamelucos paulistas, igualmenteferozes sujigadores de índios. Representou, também, um papel da maiorimportânciaaprópriasituaçãoindefesados"tapuias"desgarradosdesuastribos, divididos em lotes de gente de várias procedências, que falavamlínguasdiferentes,tinhamcostumesdiversoseeramhostisunsaosoutros.

Aolongodecincoséculossurgiuesemultiplicouumavastapopulaçãodegentesdestribalizadas,deculturadasemestiçadasqueéo frutoeavítimaprincipaldainvasãoeuropéia.Somamhojemaisde3milhõesaquelesqueconservamsuaculturaadaptativaoriginaldepovosdafloresta.Originaram‐seprincipalmentedasmissõesjesuíticas,que,confinandoíndiostiradosdediferentes tribos, inviabilizavam as suas culturas de origem e lhesimpunham uma língua franca, o tupi, tomado dos primeiros gruposindígenas que eles catequizaram um século antes em regiões longínquas.Assim, uma língua indígena foi convertida pelos padres na língua dacivilização,quepassouasera faladamassadecatecúmenos.Nocursodeum processo de transfiguração étnica, eles se converteram em índiosgenéricos, sem língua nem cultura próprias, e sem identidade culturalespecífica. A eles se juntaram, mais tarde, grandes massas de mestiços,gestados por brancos em mulheres indígenas, que também não sendoíndiosnemchegandoaseremeuropeus,efalandootupi,sedissolveramnacondiçãodecaboclos.

Adupla funçãodessamassa cabocla foi a demão‐de‐obrada exploraçãoextrativistadedrogasdamataexportadasparaaEuropa,queviabilizavama pobre economia da região. Foi também instrumento de captura e dedizimação das populações indígenas autônomas, contra as quaisdesenvolveramumaagressividade igualoupiorqueadoseuropeusedosmamelucospaulistas.

Sobre os caboclos vencidos caíram duas ondas de violência. A primeiraveio com a extraordinária valorização da borracha no mercado mundial,queosrecrutoueavassalou,lançando

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simultaneamente sobre eles gentes vindasde todapartepara explorar anova riqueza. Nessa instância, perderam sua língua própria, adotando oportuguês,masmantiveramaconsciênciadesuaidentidadediferenciadaeoseumododevidadepovodafloresta.Asegundaondaocorreemnossosdias com a nova invasão da Amazônia pela sociedade brasileira, em suaexpansão sobre aquela fronteira florestal. Seu efeito maior tem sido odesalojamentodoscaboclosdasterrasqueocupavam,expulsandomaisdemetadedelesparaavidaurbanafamélicadeBelémeManaus.Osíndiosquesobreviveramjáaprenderamaresistiraoavassalamento.Oscaboclos,não.

O processohistórico gerara naAmazônia três classes de gente.Umadasquaismajoritária e preparadapara assumir o conjuntodaquela complexasociedade, mas sem capacidade sociopolítica de fazê‐lo. Essas trêscategoriaseramformadaspelo índiotribal,refugiadonasaltascabeceiras,lutandocontratodosquequisesseminvadirseusnúcleosdesobrevivênciapara roubarmulheres e crianças e condená‐las ao trabalho extrativista.Asegunda,pelapopulaçãourbanizada,muitoheterogênea,masquetinhadecomumjáfalarpredominantementeoportuguêseacapacidadedeoperarcomobasedesustentaçãodaordemcolonial.

O terceiro contingente era formado de índios genéricos, oriundosprincipalmentedasmissões eda expansãodos catecúmenos sobre toda aárea,nagestaçãodeoutrostantosíndiosgenéricos.Tratava‐sedeumnovogênero humano, diferente dos demais, só comparável aos mamelucospaulistas. Como esses, eram extremamente combativos e eram os maiscompetentes para comandar a economia da floresta. Efetivamente,tomaram o poder várias vezes, mas incapazes de retê‐lo se viramderrotados e reescravizados. Os mamelucos paulistas encontraram umafunçãonacaçadahumanadecarátermercantil,destinadaacapturaríndiossilvícolas para vender, e na sua segunda função, que era liquidar com osquilombosquesemultiplicavamprodigiosamente.

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Tais eram tarefas da civilização que os mantiveram atados aoempreendimentocolonialpara,apartirdaí,maisumaveztransfigurar‐se.

Essa ordem repressiva foi rompida no curso de dois movimentosinsurrecionaisque,noséculoXIX,convulsionaramtodaaAmazônia,dandolugar,comonãopodiadeixardeser,porquecontestavamaprópriaunidadenacional, à mais cruel e sanguinária das conflagrações que registra ahistóriabrasileira,comumnúmerosuperiora100milmortos.OprimeirofoiaCabanagem,doParáedoAmazonas(

1834‐40),quesublevouaspopulaçõesruraiseurbanas.Primeiro,comoummovimento anticolonialista e, depois, como uma revolução republicana eseparatista. A Cabanagem punha em causa uma forma alternativa deestruturaçãodopovobrasileirogestadaentreos índiosdestribalizadosdaAmazônia. Foi a única luta que disputou, sem saber, a própria etnianacional, propondo fazer‐se uma outra nação, a dos cabanos, que já nãoeramíndios,nemeramnegros,nemlusitanosetampoucoseidentificavamcomobrasileiros.

A Cabanagem chegou a tomar o poder, dominando toda a província. Ossublevados descem os rios, por onde antes subiam os escravizadores,destruindotudocomquedeparam.Tomam,ocupamesaqueiamascapitaise as principais cidades, e interrompem todo o comércio. As tropas quesaíam embusca dos revoltosos experimentamderrotas fragorosas. A lutadurouváriosanoseprosseguiuoutrostantos,emfocosderesistênciaisola‐os,cujareduçãofoiextremamentedifícil.Masacabousendolograda.

Doisaspectosressaltamnalutadoscabanos.Primeiro,ocaráterdeguerradecastas,conscientementeconduzidacomotalpelocomandantedasforçasrepressivas,queescreveu:

"Todososhomensdecornascidosaquiestãoligadosempactosecreto,adaremcabodetudoquantoforbranco[...]É,pois,indispensávelpôraarmanas mãos de outros: e é indispensável proteger por todos os modos amultiplicaçãodosbrancos(apudMoreiraNeto1971:15)."

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Apercepçãoque índiosecaboclos tinhamdo inimigocomoseuopressorétnicoadquireaquiacruezadeumaoposiçãoracistaqueenglobatodosos"homensdecor"numasócategoriadeinimigosaseremexterminados.

O segundo aspecto a ressaltar é que essa insurreição, praticamentevitoriosa, foi afinal vencida não somente pelas armas, mas, talvez,principalmentepelainviabilidadehistóricadalutadoscabanos.Suarevoltasecularmente acumulada contra a opressão e a discriminação era umarazão suficiente ara desencadear a guerra. Mas não era suficiente parapropor e levar a cabo, depois de cada vitória, um projeto alternativo deordenaçãosocialparaasgentesdísparesqueengajavamnalutalibertária.Tal como os negros dos quilombos, apesar de seu primitivismo, aspopulaçõeslideradaspeloscabanosestavamjácontaminadasdecivilização.A mesma civilização que para eles representava pestes mortíferas,escravidão e opressão representava também o único modo praticável dearticular‐se comercialmente com os provedores dos bens de que já nãopoderiamprescindir,comoasferramentas,osanzóis,osal,apólvora.

Outro levantepopulardaspovoaçõesdoNorte foi aBalaiada.Osbalaioseram,emessência,rebeldesdamassanegraconcentradanoMaranhãoparaproduzir algodão, os quais, igualmente deculturados e desafricanizados,lutavam,talcomoofaziamosquilombos,porumarupturadaordemsocialqueos faziaescravos.Claroqueentreoscabanoshavianegros,aindaqueessesmais vezes lutavam ao lado das tropas oficiais. É também evidenteque entre os balaios haveria índios e ex‐índios e muitos mamelucos doMaranhão.

Demasiado civilizados para voltar às velhas formas tribais de vivênciaautárquicaedemasiadoprimitivosparasepropor

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umareordenação intencionaldasociedadeemnovasbases,oscabanoseos balaios se viramparalisados, esperando a derrota que os destruiria. Oprivilégio de seus dominadores era o de poder experimentar muitasderrotas e sobreviver a elas para refazer a trama constritiva. Para oscabanos,uma sóderrota seria aperdição,porque,umavez submetidos, oinimigo voltaria a impor, revigorada, e ainda mais endurecida, a velhaordenaçãosocialopressora.Defato,amaiorpartedasdezenasdemilharesde mortos cabanos ocorreu depois que eles foram vencidos, nochacinamento

de aldeias indígenas inteiras, supostamente culpadas de haver combatidoos opressores. Essa dizimação premeditada só teve paralelo nas quetiveramlugarnosséculosXVIeXVIInoNordestebrasileiroe,comoaquelas,só pode ser classificada como guerra genocida de extermínio maciço depopulaçõesindígenas.

Só no último quartel do século passado a região amazônica volta aexperimentarumaquadradeprosperidade,motivadaagorapelacrescentevalorizaçãonosmercadosmundiaisdeumdosseusprodutos tradicionaisde coleta: a borracha. O desenvolvimento da indústria européia e norte‐americana de automotores transforma a borracha dos seringaisamazonenses emmatéria prima industrial de enorme procura, dobrando,triplicandoemaisquedecuplicando seupreço.AAmazônia,naqualidadedeúnico,fornecedor,transformatodaasuaeconomianoesforçodeatenderà solicitação maciça. A população, concentrada nas margens dos riosAmazonaseSolimões,dispersa‐sepelovaleinteiro,subindoosaltoscursos,atéentãoinatingidos,àprocuradasconcentraçõesdeseringueirasnativasedasoutrasplantasgomíferasdafloresta.Ascidadescrescem,enriquecemese transformam. Belém, no delta, e Manaus, no curso médio do rioAmazonas, tornam‐se grandes centros metropolitanos, em cujos portosescalamcentenasdenaviosquecarregamborrachaedescarregam

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toda a sorte de artigos industriais. Uma ferrovia é construída em plenamata, à custa de enormes sacrifícios humanos, a Madeira‐Mamoré, queligariaconcentraçõesdeseringueirasdePortoVelhoatéorioMamoré,nafronteiradaBolívia,região longínquadesgarradadaBolíviae incorporadaaoBrasil.

Para esse esforço produtivo fora necessário resolver um problemapreliminar: o recrutamentomaciço damão‐de‐obra de que carecia o valepara atender ao empreendimento e capaz de submeter‐se às durascondições de trabalho dos seringais. Esse requisito foi preenchido comapelo às enormes reservas de mão‐de‐obra acumuladas no Nordestepastoril,assoladoporumasecaprolongada,queocasionaramaisde100milmortes,ecastigadoporumsistemalatifundiárioprimitivoeterrivelmenteespoliativo. Iniciou‐se, assim, uma transladação de populações queconduziria cerca de meio milhão de nordestinos à Amazônia.Desembarcados nos dois portos, Belém e Manaus, os sertanejos eramrepartidosentreospatrõesquejáestavamàsuaespera.Cadalote,supridode armas e munição para caça e defesa contra o índio, de roupas e desingelo instrumental do trabalho extrativo, era conduzido rio acima eflorestaadentro,aoslongínquosseringais.Cadatrabalhadoringressavanoserviço comsua feirae seudébito,queaumentaria cadavezmais comossuprimentos de alimentação, de remédios, de roupas providas pelobarracão. Dificilmente um seringueiro consegue saldar essa conta que,habilmentemanipulada,omantémemregimedeservidãovirtualenquantopossaresistiràsterríveiscondiçõesdevidaaqueésubmetido.

A borracha, como todos os produtos nativos da floresta tropical, sedistribui irregularmente e com baixa concentração em meio a umainfinidade de outras espécies. Mesmo nas zonas de maior densidade, osseringais cobrem enormes extensões, impedindo que a população seorganizeemnúcleosconsideráveis.

Essascondiçõesdeterminaramadispersãodapopulaçãoamazonense

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ao longo dos cursos d'água por todo o imenso vale, resultando umadensidade demográfica de quase deserto e impondo a criação de umsistemadecomunicaçõesbaseadoexclusivamentenanavegaçãofluvial,pormeiodecanoasebalsas.

Nessaeconomia,aterraemsinãotemqualquervaloreamataexuberanteque a cobre só representa obstáculopara alcançar aquelas raras espéciesrealmente úteis. Não se cogita, por isto, de assegurar a posse legal dasterras, como é o caso das regiões de economia agrícola e pastoril. O queimportanaAmazôniaéodomíniodaviadeacessoquelevaaosseringaiseaconscriçãodaforçadetrabalhonecessáriaparaexplorá‐la.Essedomínionão assume, senão acidentalmente, a forma de propriedade fundiária,sendo obtido por concessão governamental, nos raros casos em que setornaindispensável,eimpostoefetivamenteporquemdispõedosmeiosdetransporte. A conscrição da mão‐de‐obra é alcançada pelas formas maisinsidiosas de aliciamento emantidamediante o uso da força, combinadocomumsistemadeendividamentodoqualnenhumconscritopodeescapar.

Assim é que o seringal se implanta como uma empresa desvinculada daterra.Seuelementoéo rio,noqualohomemnãose fixacomopovoador,mas apenas se instala como explorador até o esgotamento dos seringais.Então, vai adiante com seus próprios meios: as canoas, o barracão demercadoriaseo livrodedébitoquemantémpresososseringueirosa seupatrão. Em cada seringal, um grupo de caboclos amazônicos exerce asfunçõesdemestresquedesasnamosrecém‐chegados,os"brabos".Ensinamaidentificaraseringueira,asangrá‐ladiariamentesemafetar‐lheavida,acolher o látex e a defumá‐lo cuidadosamente para formar as bolas deborracha.

Cadaseringueiroassiminstruídorecebesuaestrada,queéocaminhodeárvoreaárvore.Numpercursodedezaquinzequilômetros,raramenteseencontramduzentasdelas,que,quandoligadasporumapicada,constituemaunidadedeexploração.Oina326

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seringal é o conjuntodessas estradas, comumentedispostas ao longodeumrio,distandohorasemesmodiasdeviagemumasdasoutras,conformea região. Na desembocadura, em guarda contra qualquer deserção detrabalhadores ou extravio de mercadoria, fica a residência do patrão ougerente. E o barracão, com seu porto, seu depósito de bolas de borracha,seu armazémprovidode aguardente, tabaco, gêneros alimentícios, panos,munição, água‐de‐cheiro e toda quinquilharia que possa estimular otrabalhadoraendividar‐se.

Oseringueirodevepercorrerduasvezespordiaasuaestrada.Aprimeira,parasangrarasárvoreseajustarastigelasaotroncoparareceberolátex.Asegunda,paravertê‐lasnumgalãoquetrarádevoltaaorancho.Iniciandootrabalho pela madrugada, ao cair da noite pode dedicar‐se à tarefa decoagulaçãodo látex.Acresce, ainda, quealémde coletor eledeve fazer‐setambém caçador e pescador para não depender da comida enlatada que,alémdeenvenená‐lo,oendivida.Edeveestarsempreatentoaoíndio,que,tocaiadoemqualquerpontodaestrada,podeabatê‐locomsuasflechas.Oconflitoentreíndioeseringueiroégeralmentetãoagudoquemataquemvêprimeiro.Atodasessaspenassesoma,ainda,aincidênciadeenfermidadescarenciais, como o beribéri, que alcançou caráter endêmico em toda aAmazônia, e das chamadasmoléstias tropicais, principalmente a malária,que cobram alto preço em vidas e em depauperação física à populaçãoengajadanosseringais.

Apesarde tudo,amisériadosertãonordestino, somadaaosaltospreçosda borracha, que excediam a quinhentas libras esterlinas por tonelada,estimulou esse fluxo humano, provendo a necessária mão‐de‐obra àeconomia da borracha. Uns poucos que se fizeram bons caçadores epescadoresamazônicose,alémdisso,negociantesladinosparaescaparemàexploração, alcançavam saldos que, de volta ao Nordeste, permitiam darnotíciasàterradoseusucesso,provocandonovasmigrações.Os

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demais, que eram a imensamaioria, silenciavam seu fracasso. De fato, oquefaziaosseringaisatrativoseraapropagandaoficialetodaumaredederecrutamento mantida no sertão e nos portos, assim como a própriamiserabilidade sertaneja, que não oferecia outra alternativa senão aaventuraamazônica.Assim,depoisdegastarapopulaçãoindígenadovale,o extrativismo vegetal desgastou também enormes contingentesnordestinos,sobretudosertanejos.

A prosperidade da economia extrativista interrompeu‐se, porém,abruptamente com a PrimeiraGuerraMundial.Não se refaria jamais, porcausadaentradanocomérciomundial,logodepoisdoconflito,daproduçãodosseringaisplantadospelosinglesesnoOriente.Aobaixaropreçoacemlibras,torna‐seinviávelaexploraçãodosseringaisnativos,desmoronandoaeconomiaamazônicadaborracha,quejáabarcava40%dovalortotaldasexportaçõesbrasileiraseocupavacercade1milhãodepessoasdispersaspor toda a região. No auge da expansão extrativista (1872), toda a redeurbanaregionalcresceraapontodetransformarBelém,osegundoportodaAmazônia,emquartacidadebrasileiraempopulação.

A crise sobrevem como uma catástrofe, pela incapacidade de colocar aprodução estocada durante a guerra e as novas safras que continuavamdescendoosrios.Muitosseringaisforamabandonadosporpatrõeslevadosà falência, sendo toda a gente aliciada entregue à sua própria sorte nosermosdafloresta.Aospoucos,apopulaçãovoltaaconcentrar‐seàmargemdosgrandesriosnavegáveis,regredindoaumaeconomiadesubsistênciaea condições demiserabilidademais aguda do que a dos sertões de ondehavia fugido. E mais difícil que a dos índios, em virtude de suasnecessidades de gente "civilizada", que precisava vestir‐se, curar asenfermidadescomremédioscompradosesuprir‐sedeartigoscomerciais.

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Economicamente marginalizados, esses sertanejos acaboclados seintegramnasformasdevidaregional,aprendendoacaçarcomarcoeflechaparaeconomizarmunição;alavraroscamposcomestacasdemadeira,pornãoteremenxadas;apescarcomarpãoesealimentarcomascomidasdaterra,incluindoatartarugaeojacaréemsuadieta.Nasáreasmaisarcaicas,comoorioNegro,ondeaindasefalavaalínguageralcomoidiomabásicodecomunicação popular, passam, eles também, a falar esse dialeto tupi,empobrecido e estropiado. Integram‐se, igualmente, nas práticas dapajelança enos temores aos fantasmasdamitologia indígena.Tornam‐se,porém,arremedosdeíndios,porquenãocontamcomasmotivaçõesdestesnemcomsuacapacidadedeadaptaçãoàflorestatropical.

Anos depois, algumas medidas de amparo à produção da borracha,principalmenteomonopóliodosuprimentodomercadonacionalapreçossubsidiados, foram estatuídas pelo governo federal. Estruturou‐se, então,umanovaeconomiaextrativista,aliciandoaessapopulaçãomiserávelparareconduzi‐laaseringais,aindamaisprecáriosqueosdopassado.

A essa retomada dos seringais se somaria, durante a última guerra, umnovo surto de extrativismo que proporcionaria à Amazônia um breveperíodo de intensa atividade. Isso se deveu ao fornecimento de borrachaaos aliados, que, emvirtudedos ataques japoneses, se viramdesprovidosdaproduçãodasplantaçõesorientais.Ogovernofederalpromoveu,então,como principal contribuição brasileira ao esforço de guerra, uma outratransladaçãodenordestinosàAmazônia.Estima‐sequeessanovamigraçãotenhaenvolvidode30a50miltrabalhadores.

Efetivamente, as perdas brasileiras na chamada "guerra da borracha" ‐tantopelamisériaaqueforamlançadosostrabalhadorescomopelamorteconseqüentedelaedoseuabandononosseringaisapósoconflito ‐ forammuitosuperioresàsbaixassofridaspelastropasbrasileirasnaItália.

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O caráter oficialista das novas ondas de extrativismo permitia aoseringalista sobreviver atravésdeprocedimentosbancáriosde favor,massó aliciava seringueiros pela falta absoluta de outras oportunidades detrabalho e os condenava à perpetuação da penúria. Nesses seringaisempobrecidos, o sertanejo acaboclado assim como o recém‐conscritoprocuramcultivarumaroçadesubsistência ‐emboraa safradeborrachacoincida comaépocadepreparoda terraparaoplantio ‐, caçarepescarsegundoastécnicasindígenastradicionaisparamelhorarsuascondiçõesdeexistência. Mas nas relações econômicas estão sujeitos a patrões, cujapobreza os condiciona a tornar mais escorchante a exploração. Essascondiçõesdemiserabilidadeedependência são agravadasporumacordotácito, que vigorou desde sempre entre os donos dos seringais, de nãoaceitar trabalhadores com dívidas não saldadas. Quem quer que tenhaviajado pelos seringais da Amazônia conhece esses trabalhadores queaguardam anos a fio o papelucho libertador, em que o patrão se dá porsaldadodetodososfornecimentos.

Aoladodospatrõesdosseringais,osnovossurtosdeextrativismofazemreviverumoutropersonagemdessaeconomiaprimitiva.Éoregatão.Estevaiondenãochegaoseringalista.Éotraficantequeconduzsuamercadorianobarcoemqueviveecomoqualsingracadario,cadaigarapéondehajaalguma coisa para trocar por aguardente, sal, fósforos, panos, anzóis,agulhas,linhasdecoser,muniçãoeoutrosartigosdessaordem.

Criadordenecessidadese instrumentosparasuasatisfação,oregatãoéorei do igarapé. Grande parte de seu negócio é o desvio da produção dosseringais,retiradaagolpesdeaudácia.

Nenhuma condição humana é talvez mais miserável que a dessesseringueiros,isoladosnassuascabanasdispersaspelamata,trabalhandodeestrela a estrela, maltrapilhos, subnutridos, enfermos e analfabetos e,sobretudo,desenganadosdavida,quenãolhesoferecequalqueresperançadelibertação.Comparados

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com os índios tribais que os antecederam como ocupantes do mesmoterritório,ouqueaindasobrevivemnaszonasmaisermas,agenteatrasadae miserável é a "civilizada", lançada à pobreza mais vil, brutalizada pelopróprioprocessodeintegraçãocivilizatóriaaquefoisubmetida.

Além dos seringueiros, a indústria extrativista da Amazônia modernaincluiaoutroscoletoresespecializadosemdiversosprodutos.Tais sãoosbalateiros,oscastanheiros,oscoletoresdecopaíba,depau‐rosa,depiaçava,de murumuru, timbó, tucum e os caçadores de jacarés, de pirarucu e detartarugas.Todostãomiseráveisquantoosseringueiros.

Agrandenovidadecomrespeitoaospovosquesobreviveramaosséculosdeextermínio, até agora, équevão sobreviverno futuro.Ao contráriodoque temíamos todos, estabilizaram‐se suas populações e alguns povosindígenasestão crescendoemnúmero. Jamaisalcançarãoomontantequetinham nos primeiros tempos da invasão européia, perto de 5 milhões.Metade deles na Amazônia, cujos rios colossais abrigavam concentraçõesindígenas que pasmaram os primeiros navegantes. Foi realmenteespantosa, até agora, a queda abrupta e contínua de cada populaçãoindígenaquesedeparavacomacivilização.Masveioareversão,osíndiosbrasileirosjásuperarammuitoos150milaquechegaramnospioresdias.Hoje,ultrapassamos300mileessenúmerovaicrescersubstancialmente.

Arrefeceu‐se,comosevê,o ímpetodestruidordaexpansãoeuropéiaeaspopulações indígenas, que decresciam visivelmente, parecendo tendentesao extermínio, entram agora num processo discreto de crescimentodemográfico. De fato, ninguém esperava por essa mudança afortunada.Toda a antropologia brasileira e mundial repetia dados inequívocos quedemonstravam

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como,acadaano,diminuíaonúmerodemembrosdecadatriboconhecida.

Amortepareciaserodestino fataldos índiosbrasileirose,deresto,dosdemais povos chamados primitivos. De repente, começou a se ver areversão desse quadro. Os Nambiquara passaram a crescer altivos edeterminados a permanecer em suas terras a qualquer custo. Os Urubu‐Kaapor, que chegaram a quatrocentos em 1980, hoje são setecentos. OsMundurucu já alcançama casados5mil.OsXavante, que eram2500 em1946,somam8milhoje.

Alguns povos indígenas alcançaram montantes suficientes para seexpandir e reorganizar suas instituições culturais. Os Tikuna, do altoSolimões, no Brasil e no Peru, já ultrapassam os 20 mil; os Makuxi, doscampos de Roraima, alcançam os 18 mil; os Guajajara, que vivem nasfranjasorientaisdaAmazônia,sãohoje9mil;osKayapó,recém‐atraídosàcivilização, são 6 mil. Os Sateré‐Maué, que vivem nos lagos e ilhas dasmargensdoAmazonas,somamhojepertode15mil.

É certo que alguns povos indígenas estão diminuindo e suas chances desobrevivênciasãominúsculas.OsúltimostrezeíndiosdatriboJabutiestãobuscandonoivas,entreoutrosíndiosdefalatupi‐kawahib,paraseusfilhossecasarem.Disso,esperamos, ressurgiráumnovopovo indígena.OsAvá‐Canoeiros,queerammilharesdeíndiosedominavamoaltorioTocantins,não chegam a trinta pessoas. Vivendo em pequenos bandos, sem contatouns com os outros, se especializaram em fugir da invasão branca. Doisíndiosforamencontradosrecentementefalandoumdialetoininteligíveldalínguatupi.Ninguémsabequemsão,nemsaberájamais.

OsYanomami,queconstituemhojeomaiorpovoprístinodafacedaterra,começam a extinguir‐se, vitimados pelas doenças levadas pelos brancos,sobosolhospasmadosdaopiniãopúblicamundial.São16milnoBrasilenaVenezuela.

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Falamquatro variantesdeuma línguaprópria, semqualquerparentescocom outras línguas, vivendo dispersos em centenas de aldeias na mata,ameaçadosporgarimpeirosque,tendodescobertoouroeoutrosmetaisemsuas terras, reclamam dos governos dos dois países o direito decontinuarem minerando através de processos primitivos, baseados nomercúrio,quepoluiasterraseenvenenaaságuasdosYanomami.

Asobrevivênciadospovosindígenasseexplica,emgrandeparte,porumaadaptação biótica às pestes do homem branco ‐ a varíola, o sarampo, asdoenças pulmonares, as doenças venéreas e outras. Cada uma delasliquidava metade das populações logo ao primeiro contato com asfronteiras da civilização. A varíola desapareceu, mas várias outrasenfermidadescontinuamfazendodanos,aindaquemuitomenoresquenopassado,mesmoporqueaprópriamedicinaprogrediubastante.

Explica‐se também pormudanças ocorridas nas frentes de expansão dasociedade nacional que se lançam sobre os povos indígenas. Apesar demuito agressivas e destrutivas, elas já não podem exterminar,impunemente, tribos inteiras, como sucedeu no passado. Aindarecentemente, o trucidamento de uma aldeia Yanomami converteu‐se, derepente,numescândalomundialqueparalisouaondaassassina.

As formas de contato e de coexistência sofreram, também, importantesalterações. A evangelização, cruamente cristianizadora e imperialmenteeuropeizadora,perdeuofuroretnocida.Jánãohátantasmissõesreligiosasroubando crianças indígenas de diferentes tribos para juntá‐las em suasescolas, que eram os mais terríveis instrumentos de deculturação e dedespersonalização. Muitos dos poucos sobreviventes dessas escolasevangélicas,nãotendolugarnasociedadetribalnemnasociedadenacional,caíamnamarginalidadeenaprostituição.OpaternalismodaproteçãoofcialdoEstado,brutalmenteassimilacionista,por

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doutrinaouporignorância,deulugaraumaatitudemaisrespeitosadiantedosíndios.

Amudançademaiorespantoocorreucomosprópriosíndios,cujaatitudegeral de submissão e humildade, que se seguia ao estabelecimento derelaçõespacíficas,estádandolugar,muitasvezes,aumaposturaorgulhosae afirmativa. Antigamente, quando os índios recém‐contatados seapercebiam da magnitude da sociedade nacional, com sua populaçãoinumerável dominando áreas imensas, percebendo sua própriainsignificânciaquantitativa,caíamemdepressão,àsvezesfatal.Hoje,vêemosbrancoscomogentequepodeserenfrentada.

Nessas condições é que começa a surgir um novo tipo de liderançaindígena, sem nenhuma submissão diante dos missionários, de seusprotetores oficiais ou de quaisquer agentes da civilização. Sabem que aimensamaioriadasociedadenacionalécompostadegentemiserávelqueviveemcondiçõespioresqueadelespróprios.Percebemoususpeitamqueseu lugar na sociedade nacional, se nela quisessem incorporar‐se, seriamais miserável ainda. Tudo isso aprofunda seu pendor natural apermaneceremíndios.

Em certas circunstâncias, a alternidade entre os índios e o contextonacional com que eles convivem chega a ser tão agressiva que se tornaassassina. É ela que leva jovens índios ao suicídio, como ocorre com osGuarani,pornãosuportaremotratamentohostilquelhesdãoosinvasoresdesuasterras.Alémdetransformaremtodoomeioambiente,derrubandoasmatas, poluindoos rios, inviabilizando a caça e apesca, esses vizinhoscivilizados lançam sobre os índios toda a brutalidade de um consensounânimesobre sua inferioridade insanável,queacabasendo interiorizadaporeles,dandolugaràsondasdesuicídios.

Nessascondições,asprópriastradições indígenasseredefinem,àsvezes,jánãoparalhesdarsustentaçãomoraleconfiançaemsimesmos,masparainduzi‐losaodesengano.

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Esseéocasodosmitosheróicosguaranisreferentesàcriaçãodomundo,que se converteramemmitosmacabros, emque aprópria terra apela aocriador que ponha um fim à vida porque está cansada demais de comercadáveres.

A decadência da economia da borracha matou também as cidades quefloresciam pela Amazônia inteira, provocando o completo abandono dealgumaseadeterioraçãodasoutras.Asduascapitaisregionaisperderamoluxo e o viço que as enchera de palácios suntuosos, de teatros e obrasurbanísticasnostemposprósperosdeborrachaalta.Semproduçãobásicapara exportar, o comércio decaía, sobrevivendo apenas com apelo àespeculação e ao contrabando. A população urbana, porém, continuoucrescendo por inchaço com o afluxo dos contingentes extrativistas paraseus subúrbios, ainda mais miseráveis que as mais pobres favelas oumocambos do país. Aí vegeta uma multidão subempregada, refletindocondições de vida tão precárias que seus índices de mortalidade geral einfantil, demorbidade e subnutrição vêm a sermais graves que osmaisbaixosdomundo.

Desde o fim da Segunda GuerraMundial, começou uma reordenação daeconomia amazônica que está permitindo engajar uma parcela dapopulação em novos tipos de produção, como os cultivos de juta e depimenta‐do‐reino,introduzidospelosjaponeses,easlavourasdearrozdasgrandesvárzeas.Nascidades,umcomeçodeindustrializaçãoestáprovendotambém algumas oportunidades de trabalho. E, em algumas áreas,atividades de extraçãomineral propiciam novos modos de existência. AsmaisimportantesdelasaglutinamnoterritóriodoAmapáalgumasdezenasde milhares de pessoas na exploração do manganês e diversos gruposmenoresdemineradoresdecassiteritaemRondôniaenoAmazonas.

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Repete‐se aí a aventura dos seringais prósperos do princípio do século,porque se estão transladando para a América do Norte, através de umaempresamonopolística,aBethlehemSteel,essasimensasjazidas,aocustodesuaextraçãoetransporte.Findaaexploraçãonãorestaráqualquernovafontedetrabalhocapazdeocuparapopulaçãonemqualquerriquezalocal.Suaconseqüênciaprovávelserá,portanto,adeprovocarumacriseidênticaà da borracha para que os Estados Unidos cumpram seu desígnio depotência, que é se fazerem os detentores exclusivos de manganês nohemisfério. Então, o Brasil terá de importar ominério que agora cede aopreçodesuaextraçãoeterá,ainda,dehaver‐secomumavastapopulaçãodesgastadaemiserabilizada.

Odesequilíbriodaeconomia regional, suasdificuldadesde integraçãonavida do país e as precárias condições de existência de suas populaçõeslevaramosconstituintesde1946adestinarumaparcelade3%dasrendasfederaisaumprogramadevalorizaçãoeconômicadaAmazônia.Em1950,uma comissão concluiuoprimeiroplanoqüinqüenaldedesenvolvimento,que, desde então, percorre as comissões do Congresso sem alcançaraprovação. As verbas são aplicadas na região e representam o principalfator de equilíbrio entre o valor de suas exportações e o vulto dasimportações. O abandono da planificação, porém, transformou essasdotaçõesnaprincipalfontederendadequesevalemasclassesdominantespara enriquecer mediante fornecimentos e financiamentos de favor,controladospelospolíticosda regiãocomomaisdesabusadoclientelismoeleitoral.TalcomoapobrezadoNordesteáridofezdoamparofederaluma"indústria da seca", a penúria dos caboclos da Amazônia fez do"desenvolvimento regional" um rico negócio e um mecanismo deconsolidaçãopolíticadaoligarquialocal.

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Entretanto,vitalizaraeconomiadaAmazônia,promovendooregressodaregiãoesuaincorporaçãoàvidanacionalcomoumapopulaçãopróspera,é,certamente,umdosmaisgravesdesafioscomquesedefrontaoBrasil.Maisdeumavezaexistênciadessamanchaflorestal‐amaioreamenospovoadado mundo ‐ suscitou cobiças internacionais. Foi recomendada, em certaocasião,aHitlercomooLebensraumadequadoparaaexpansãogermânica.Maistarde,foiobjetodeumverdadeiroprojetodeexpropriação,camufladocomo um instituto de pesquisas tropicais, no qual os norte‐americanosenvolveram as Nações Unidas. Uma terceira tentativa de espoliaçãoassumiu a forma de uma proposta, apresentada à ditadura pelo governonorte‐americano, de arrendamento da área por 99 anos com o fim de"estudá‐la e comprovar experimentalmente as técnicas adequadas parapromover o seu desenvolvimento". O governo brasileiro, engajado nosprincípios de limitação da soberania para a integração do Brasil comosatélite privilegiado do sistema hegemônico norte‐americano, se permitiudiscutir a matéria. Alertado, porém, pela reação da opinião pública, umaparcela da oficialidade advertiu a ditadura que não admitiria aluguel ouempréstimoouqualquersortedenegociaçãodoterritórionacional.

Uma outra tentativa teve a linguagem de um plano mirabolante dosfuturólogosdoInstitutoHudsonpararepresarorioAmazonas,inundandomilhares de quilômetros quadrados de mata para constituir usinashidrelétricas que produziriam dez vezes mais energia do que o Brasilconsome.Atrásdesseplanoestavaoprojetomaisrealistadecriarparaosnorte‐americanos uma área propícia à instalação de uma civilizaçãoindustrialparaocasodeumaguerranuclear.

MasaAmazôniaé,defato,omaiordesafioqueoBrasil jáenfrentou.Suaocupação se vem fazendo com uma dinâmica de vigor incomparável.EstadosmaioresqueaFrança,comoRondônia,surgemabruptamenteesevão povoando a ritmo acelera do. Projetos ambiciosos de estradas queatravessamtodaaflorestasãopostosemexecuçãodeformatãoineptaquedepoisde

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investimentosastronômicoscaemnoabandono.Sonhosviáveisdenovasestradas que liguem a Amazônia ao Pacífico, para dar aos chineses ejaponeses não só as madeiras nativas que todo já consomemas o que ograndevalevenhaaproduzir,seesboçamevêmseviabilizando.Umanovaclassepolíticaeatéumanovageraçãodemilitares,empolgadoscomoqueaexploração econômica daAmazônia pode render, se exacerbam contra oscaboclos e contra os índios, que ocupam parte ínfima da florestamas seafiguram,aosseusolhos,comoobstáculosaoprogresso.

Foipossívelnopassado liquidaramaispungente florestabrasileira,adovaledorioDoce,convertidaemralaspastagensdebaixodasquaisaterraéuma ferida exposta à erosão. Não é impossível que alguma coisa assimocorraàAmazônia,aindaquesuasdimensõesgigantescasesuasenormesvariaçõesregionaisapontemparaum futuromaisdinâmico.Porseusriostransitahojemeiomilhãodegarimpeirosmiseráveisqueexplorandoouro,cassiteritaouoquequerque sejanãoalcançamumarendaequivalenteaum salário mínimo. Sua única eficácia se deve ao mercúrio com queenvenenam as águas, os peixes e a população ribeirinha. No seu encalço,grandes empresas se preparam para explorar as jazidas minerais dasregiões, que são as maiores de que se tem notícia. Abrirá isso umaperspectiva de se criar uma nova Minas Gerais, onde de uma grandeexploração secular de minérios só resultaram uma população pobre eburacos,expondooutravezosinterioresdaterraàerosão?

As perspectivas de retomar velhos seringais e revitalizá‐los para abrirmelhores condições de vida aos trabalhadores da floresta resultaram emconflitos, como aquele mundialmente escandaloso que vitimou ChicoMendes. Entretanto, ele e seus companheiros foram os únicos queapontaramconcretamenteparacomofazeraAmazôniahabitávelerendosa,oqueéperfeitamentepossíveldesdequeseencontremformasdemanterassentamentos

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humanosquepossamsersubsidiadosatéamadureceremseusplantiosdeseringueiras e também de bosques onde floresçam as fruteiras daAmazônia, que se oferecerão ao mundo como uma promessa de gosto edoçura. Isso é totalmente impraticável através do sistema empresarialprivado,dadoseuinevitável imediatismo.É impraticável, também,atravésdoscaboclos,quetãobemsaberiamfazê‐lo,porqueestestrabalhamdamãoparaaboca,taléasuapenúria.

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4.OBRASILSERTANEJO

"Decouroeraaportadascabanas,orudeleito

aplicadoaochãoduro,emaistarde,acama

paraospartos:decouro,todasascordas,a

borrachaparacarregarágua,omocóou

alforjeparalevarcomida,amalapara

guardarroupa,amochilaparamilharcavalo,

apeiaparaprendê‐loemviagem,asbainhas

defaca,asbroacasesurrões,aroupade

entrarnomato,osbanguêsparacurtumeou

paraapurarsal;paraosaçudes,omaterialde

aterroeralevadoemcourospuxadospor

pontasdeboisquecalcavamaterracomseu

peso;emcouropisava‐setabacoparaonariz.

CapistranodeAbreu,1954"

Paraalémdafaixanordestinadasterrasfrescaseférteisdomassapé,comrica cobertura florestal, onde se implantaram os engenhos de açúcar,desdobram‐se as terras de uma outra área ecológica. Começam pela orladescontínua ainda úmida do agreste e prosseguem com as enormesextensões semi‐áridas das caatingas. Mais além, penetrando já o BrasilCentral,seelevamemplanaltocomocamposcerradosqueseestendempormilharesdeléguasquadradas.

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Todaessaáreaconformaumvastíssimomediterrâneodevegetaçãorala,confinado,deumlado,pelaflorestadacostaatlântica,dooutropelaflorestaamazônicaefechadoaosulporzonasdematasecampinasnaturais.Faixasde florestasemgaleriacortamessemediterrâneo,acompanhandoocursodos rios principais, adensando‐se em capões de mata ou palmeirais decarnaúba,buritioubabaçu,ondeencontraterrenomaisúmido.Avegetaçãocomum, porém, é pobre, formada de pastos naturais ralos e secos e dearbustosenfezadosqueexprimememseustroncoseramostortuosos,emseuenfolhamentomaciçoeduro,apobrezadasterraseairregularidadedoregime de chuvas. Nos cerrados e, sobretudo, nas caatingas, a vegetaçãoalcança já uma plena adaptação à secura do clima, predominando ascactáceas,osespinhoseasxerófilas,organizadasparacondensaraumidadeatmosféricadasmadrugadasfrescaseparaconservarnasfolhasfibrosasenostubérculosaságuasdaestaçãochuvosa.

No agreste, depois nas caatingas e, por fm, nos cerrados, desenvolveu‐seuma economia pastoril associada originalmente à produção açucareiracomofornecedoradecarne,decourosedeboisdeserviço.Foisempreumaeconomiapobre e dependente. Contando, porém, coma segurançadeumcrescente mercado interno para sua produção, além da exportação decouro, pôde expandir‐se continuamente através de séculos. Acabouincorporandoaopastoreioumaparcelaponderáveldapopulaçãonacional,cobrindo e ocupando áreas territoriaismais extensas que qualquer outraatividadeprodutiva.

Conformou,também,umtipoparticulardepopulaçãocomumasubculturaprópria,asertaneja,marcadaporsuaespecializaçãoaopastoreio,porsuadispersão espacial e por traços característicos identificáveis no modo devida, na organização da família, na estruturação do poder, na vestimentatípica,nosfolguedosestacionais,nadieta,naculinária,navisãodemundoenumareligiosidadepropensaaomessianismo.

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O gado trazido pelos portugueses das ilhas de Cabo Verde vinha já,provavelmente, aclimatado para a criação extensiva, sem estabulação, emque os próprios animais procuram suas aguadas e seu alimento. Osprimeiros lotes instalaram‐se no agreste pernambucano e na orla dorecôncavo baiano, suficientemente distanciados dos engenhos para nãoestragar os canaviais. Daí semultiplicaram e dispersaram em currais, aolongodosriospermanentes,formandoasribeiraspastoris.AofimdoséculoXVI,oscriadoresbaianosepernambucanosseencontravamjánossertõesdorioSãoFrancisco,prosseguindoaolongodele,rumoaosuleparaalém,rumo às terras do Piauí e do Maranhão. Seus rebanhos somariam entãocercade700milcabeças,quedobrariamnoséculoseguinte.

A expansão desse pastoreio se fazia pela multiplicação e dispersão doscurrais, dependendo da posse do rebanho e do domínio das terras decriação. O gado devia ser comprado, mas as terras, pertencendonominalmente à Coroa, eram concedidas gratuitamente em sesmarias aosque se fizessem merecedores do favor real. Nos primeiros tempos, ospróprios senhores de engenho da costa se faziam sesmeiros da orla dosertão, criando ali o gado que consumiam. Depois, esta se tornou umaatividadeespecializadadecriadores,queformaramosmaioresdetentoresde latifúndios no Brasil. Omais célebre deles foi um baiano tão rico quedeixouemtestemunho,afavordosjesuítas,recursospararezaremmissasporsuaalmaatéofimdomundo.

Atravésdessesistema,antesqueogadoatingissequalquer terra,eraelaacaparadalegalmentepelaapropriaçãoemsesmaria.Comooscurraissósepodiaminstalarjuntoàsrarasaguadaspermanentesenãomuitolongedosbarreirosnaturaisondeogadosatisfaziasua fomedesaleemvirtudedaqualidade paupérrima dos pastos naturais, essas sesmarias se fizeramimensas.Cadaumadelascomseuscurrais,porvezesdistanciadosdiasdeviagemunsdosoutros,entreguesaosvaqueiros.

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Estesdavamcontadorebanhoperiodicamente,separandoumarês,comopagamento, para cada três marcadas para o dono. Assim, o vaqueiro iajuntando as peças do seu próprio rebanho, que levaria para zonas maisermas,aindanãoconhecidasnemalcançadaspelassesmarias.Oregimedetrabalhodopastoreionãose funda,pois,naescravidão,masnumsistemapeculiar em que o soldo se pagava em fornecimento de gêneros demanutenção,sobretudodesal,eemcriasdorebanho.

Em cada curral viviam as famílias do vaqueiro e dos seus ajudantes,geralmenteaprendizes,àesperadeumdiareceberemtambémumapontado gado para criar e zelar. Periodicamente, passavam os boiadeiros quearrebanhavamogadoparaconduzi‐lo,sertãoafora,atéacostaondeseriavendido. Traziam o sal e poucas coisas mais do que necessitavam osvaqueiros,afeitosàvidanoermo,moldadospelaatividadepastoril,tirandodogadoquasetudodoquecareciam.

Osnúcleos formadosnos currais plantavam roçados e amansavamumasquantasvacaspara terem leite, coalhadaequeijos.Carneavam,porvezes,umarês,garantindo‐seassimumasubsistênciamaisfartaeseguradoqueade qualquer outro núcleo rural brasileiro. As relações. com o dono dasterrasedorebanhotendiamaassumira formadeumaordenaçãomenosdesigualitária que a do engenho, embora rigidamente hierarquizada. Osenhor, quando presente, se fazia compadre e padrinho, respeitado porseus homens, mas também respeitador das qualidades funcionais destes,aindaquenãodesuadignidadepessoal.Entretanto,talcomoocorrecomospovos pastoris, a própria atividade especializada destacava o brio e aqualificação dos melhores vaqueiros na dura lida diária do campo.Ensejavam‐se, assim, comparações de perícia e valor pessoal, fazendo‐osmaisaltivosqueo lavradorouoempregadoserviçal.Osistemaresultanteaproxima‐semais à tipologia das relaçõespastoris em todoomundoquedasrelaçõesdetrabalhodeplantaçãoescravocrata,emboraseaproximassedela pelo caráter mercantil do pastoreio e pela dependência do regimelatifundiário.

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O criador e seus vaqueiros se relacionavam como um amo e seusservidores. Enquanto dono e senhor, o proprietário tinha autoridadeindiscutidasobreosbense,àsvezes,pretendiatê‐latambémsobreasvidase, freqüentemente, sobre as mulheres que lhe apetecessem. Assim, oconvíviomais intenso e até a apreciaçãodasqualidadesde seus serviçaisnão aproximavam socialmente as duas classes, prevalecendo umdistanciamento hierárquico e permitindo arbitrariedades, embora estasestivessem longe de assemelhar‐se à brutalidade das relaçõesprevalecentesnasáreasdaculturacrioula.

O contraste dessa condição com a vida dos engenhos açucareiros deviafazer a criação de gado mais atrativa para os brancos pobres e para osmestiçosdosnúcleoslitorâneos.Acrescequeonegócioaçucareiro,alémdeexigircapitaisenormes,queexcediamàspossibilidadesdagentecomum,sóadmitiaunspoucostrabalhadoresespecializadosentreaclassedesenhoreseamassaescrava.Aprópriarigidezdadisciplinadetrabalhonoengenhodevia torná‐lo insuportável para o trabalhador livre e, mais ainda, paragente afeita à vida aventurosa e vadia dos vilarejos litorâneos. Por tudoisso,muitosmestiçosdevemter‐sedirigidoaopastoreio,comovaqueiroseajudantes, na esperança de um dia se fazerem criadores. Desse modoproviam uma oferta constante de mão‐de‐obra, tornando dispensável acompradeescravos.

Só assim se explica, de resto, o próprio fenótipo predominantementebrancóidedebase indígenadovaqueironordestino,baianoegoiano.Taiscaracterísticas têm sido interpretadas, por vezes, como resultado de umamiscigenaçãocontinuadacomosgrupos indígenasdossertões.Ahipóteseparece historicamente insustentável em face da hostilidade que sedesenvolveu sempre entre vaqueiros e índios, onde quer que sedefrontassem.

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Disputandoodomíniodos territórios tribais de caçadasparadestiná‐losao pastoreio e lutando contra o índio para impedi‐lo de substituir a caçaque se tornara rara e arredia nos campos povoados pela nova e enormecaça que era o gado, os conflitos se tornavam inevitáveis. Acresce que asuposiçãoédesnecessária,porquepartindodeunspoucosmestiçostiradosdas povoações da costa ‐ e aos quais não se acrescentou nenhumcontingente imigratório branco ou negro ‐ teríamos, natural enecessariamente,pelo imperativogenéticodapermanênciadoscaracteresraciais,aperpetuaçãodofenótipooriginal.Tudoissopareceserverdade.Aantropologia,porém,negaahistória,mostrandoa cabeça chataenterradanosombros,quenãopodevirdonada.Éinevitáveladmitirque,roubandomulheres ou acolhendo índios nos criatórios, o fenótipo típico dos povosindígenas originais daqueles sertões se imprimiram na vaquejada e nosnordestinosemgeral.

Apesardas enormesdistâncias entre osnúcleoshumanosdesses curraisdispersos pelo sertão deserto, certas formas de sociabilidade se foramdesenvolvendo entre os moradores dos currais da mesma ribeira. Anecessidade de recuperar e apartar o gado alçado nos campos ensejavaformas de cooperação como as vaquejadas, que se tornaram prélios dehabilidade entreos vaqueiros, acabando, às vezes, por transformar‐se emfestas regionais. O culto dos santos padroeiros e as festividades docalendário religioso ‐ centralizado nas capelas com os respectivoscemitérios, dispersos pelo sertão, cada qual com seu círculo de devotosrepresentados por todos os moradores das terras circundantes ‐proporcionavam ocasiões regulares de convívio entre as famílias devaqueiros de que resultavam festas, bailes e casamentos. Afora essaconvivênciavicinalequesecircunscreviaaosvaqueirosdamesmaárea,oque prevalecia era o isolamento dos núcleos sertanejos, cada qualestruturadoautarquicamenteevoltadosobresimesmo,naimensidadedossertões.

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As atividades pastoris, nas condições climáticas dos sertões cobertos depastos pobres e com extensas áreas sujeitas a secas periódicas,conformaramnãosóavidamasaprópriafiguradohomemedogado.Umeoutro diminuíram de estatura, tornaram‐se ossudos e secos de carnes.Assim associados, multiplicando‐se juntos, o gado e os homens forampenetrandoterraadentro,atéocupar,aofimdetrêsséculos,quasetodoosertão interior.Comoumamercadoriaque se conduza simesma,ogado,apesar de cada vez mais distanciado do mercado consumidor, ia sendodesbastadopelosabates.

Nocursodessemovimentodeexpansão,todoosertãofoisendoocupadoecortadoporestradasabertaspelabatidadasboiadas.Estasmarchavamdepousoempouso,assentadostodoselesnoslocaisdeáguapermanenteedeboapastagem,capazdepropiciararecuperaçãodorebanho.Muitosdessespousossetransformariamemvilasecidades,célebrescomofeirasdegado,vindode imensas regiões circundantes.Mais tarde, as terrasmais pobresdoscarrascais,ondeogadonãopodiacrescer,foramdedicadasàcriaçãodebodes, cujos couros encontraram amplo mercado. Esses bodesmultiplicaram‐seprodigiosamenteportodooNordeste.Crescendojuntoaogado,transformam‐semaistardenaúnicacarneaoalcancedovaqueiro.

Comogadoe comosbodes crescia avaqueirada,multiplicando‐seà toapelasfazendas,incapazdeabsorverlucrativamenteatantagentenaslidespastoris,poucoexigentedemão‐de‐obra.Assiméqueoscurraissefizeramcriatóriosdegado,debodeedegente:osboisparavender,osbodesparaconsumir,oshomensparaemigrar.

Contando com essa força de trabalho excedente, as fazendas deixaram,primeiro,depagaraosvaqueirosemreses,estabelecendo

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sistemas de salários em dinheiro, que, computando o rancho e aalimentação, pouco saldo asseguravam ao trabalhador. Depois, todo oNordeste pastoril começou a dedicar‐se a atividades ancilares. A maisimportantedelas foi o cultivodeumalgodão arbóreo, nativona região, omocó,cujocaráterxerófilolhepermitiasobrevivereproduzir,mesmonasáreasmaissecasdosertão,umcasulodefibraslongascomamplaaceitaçãonomercadomundial. Esse cultivo associou‐se bem com o pastoreio peloprovimento ao gado de torta de sementes, que constitui uma ração ideal,bemcomopelovaloralimentíciodapalhadosroçadosdesubsistênciadoslavradores,nosquaisofazendeirosoltaogadodepoisdacolheita.

Cada criador procurou, então, fazer‐se também lavrador de mocó,ocupando nessa tarefa as famílias de seus vaqueiros e, depois, genteespecialmente atraída para os novos cultivos, povoando ainda mais ossertões semi‐áridos. Os cultivadores de algodão ingressam no latifúndiopastoril como meeiros, vale dizer, recebendo uma quadra de terra paracultivaroalimentoquecomeriameoutrasparaproduzircolheitasdemocó,dequedeveriamentregarmetadeaoproprietário.Assim,emcadafazenda,alémdacasadetelhasdocriador,avarandadaeprovidadeportasejanelas,edasranchariassingelasdeseusvaqueiros,seacrescentavamaspalhoçasmiseráveisqueabrigavamoslavradoresdemocó.

EmoutrasáreasdoNordesteinterior,populaçõesexcedentesdopastoreiodedicavam‐seaatividadesextrativistas,comoaexploraçãodospalmaisdecarnaúba, para a produção de cera e de artefatos de palha, sempre pelomesmoregimedemeaçãocomoproprietário.Essasatividadessópuderamaliciarcentenasdemilharesdetrabalhadoresemvirtudedamiserabilidadedaspopulaçõesnordestinas,porque,mesmocombinadas com lavourasdesubsistência,provêmumarendamínimaqueapenaspermitesobreviver.

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Em algumas manchas de terras úmidas salpicadas pelo mediterrâneosertanejo ‐ os brejos, as serras e as várzeas ‐ desenvolveu‐se, ao lado dacriação,algumalavouracomercial.Éocasodazonadoagrestenordestino,mais fresca e mais próxima de centros urbanos consumidores, onde opastoreio mesclou‐se com uma lavoura de gêneros alimentícios, semcontudo se associarem. Onde prevalece a agricultura, confina‐se o gado,onde prepondera o pastoreio, cercam‐se os roçados. Essa economiamaisintensiva ensejou uma concentração demográfica maior, aglutinando apopulação em vilas das quais saíam para cultivar terras arrendadas peloregimedemeaçãoeparatrabalharnosengenhos,nasquadrasdecortedecana.

Mais tarde, com o aumento da população, as zonas de pastoreiotransformaram‐se,principalmente,emcriatóriosdegente,dosquaissaemos contingentes demão‐de‐obra requeridospelas demais regiões dopaís.Assim, formaram‐se os grupos pioneiros que penetraram na florestaamazônica a fim de explorar a seringueira nativa e outras espéciesgomíferas.AssimocorreuparaaaberturadenovasfrentesagrícolasnoSul.Assim, também, para engrossar as populações urbanas, sempre que umsurtode construção civil oude industrializaçãoexigiamassasdemão‐de‐obranãoqualificada.

Os sertões se fizeram, desse modo, um vasto reservatório de força detrabalho barata, passando a viver, em parte, das contribuições remetidaspelossertanejosemigradosparasustentodesuasfamílias.Ograve,porém,é que emigram precisamente aqueles poucos sertanejos que conseguemalcançar a idademadura, commaior vigor físico, tendendo a fixar‐se naszonas mais ricas do Sul aqueles nos quais a paupérrima sociedade deorigem investiu o suficiente para alfabetizar e capacitar para o trabalho.Desse modo, o elemento humano mais vigoroso, mais eficiente e maiscombativo é roubado à região, no momento preciso em que deveriaressarciroseucustosocial.

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Apesardessassangriasemsuapopulação,osertãoregurgitadegenteemrelaçãoaobaixonívelda tecnologiacompatível comaexploraçãopastorillatifundiária; à precariedade das lavouras de mocó, aliás em plenadecadência;àsmiseráveisatividadesextrativasqueensejae,sobretudo,àsdifíceis condições de provimento da subsistência. É de temer que essaimensa oferta de mão‐de‐obra ávida por empregos contribua para acompressão dos salários no Brasil, que para trabalho não qualificado sãodosmenoresdomundo.Apresençadessesexcedenteshumanosrevela‐sede forma dramática por ocasião das secas que assolam periodicamente aregião.Então,levasdeflageladosemergemdosertãoesturricadopelasecae pelo sol causticante, enchendo, primeiro, as estradas, depois as vilas ecidadessertanejascomapresençasombriadesuamiséria.

Desde a segunda metade do século passado, as secas nordestinastransformaram‐senumproblemanacionalaexigirdogovernomedidasdesocorroedeamparo.Entreopoder federal e amassa flageladapela secamedeia, porém, a poderosa cama da senhorial dos coronéis, que controlatoda a vida do sertão, monopolizando não só as terras e o gado, mas asposiçõesdemandoe asoportunidadesde trabalhoque enseja amáquinagovernamental. São os grandes eleitores dos deputados, senadores egovernadores; os manipuladores das autoridades municipais e estaduais,sempre solícitas em atendê‐los e dispostas a tudo fazer para emprestarcongruênciaeamplitudeàautoridadefazendeira,estendendo‐asobretodaa região. Esses donos da vida, das terras e dos rebanhos agem sempreduranteassecas,maiscomovidospelaperdadeseugadodoquepelopesodo flagelo que recai sobre seus trabalhadores sertanejos, e semprepredispostos a se apropriaremdas ajudas governamentaisdestinadas aosflagelados.

Assim,aordemoligárquica,quemonopolizaraaterrapelaoutorgaoficialdassesmariasduranteaépocacolonial,continuaconduzindo,segundoseusinteresses,asrelaçõescomopoderpúblico,conseguindo,por fim,colocaratémesmoassecasaseuserviçoefazerdelasumnegócio.

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Cadaseca,eporvezesasimplesameaçadeumaestiagem,transforma‐senuma operação política que, em nome do socorro aos flagelados, carreiavultosasverbasparaaaberturadeestradase, sobretudo,aconstruçãodeaçudes nos criatórios. Nas últimas décadas, enormes somas federaisconcedidasparaoatendimentodaspopulaçõesnordestinasatingidaspelassecascustearamaconstruçãodemilharesdeaçudes,grandesepequenos,enriquecendoaindamaisos latifundiários,assegurandoaseugadoaáguasalvadoranasquadrasdeestiagemeamplasestradasparamovimentarosrebanhosembuscadepastosfrescos.Essesmesmosmecanismosretiveramossertanejossoboguantedospatrões.

Chegou‐se mesmo a implantar uma "indústria da seca", facilmentesimulável numa enorme área de baixa pluviosidade natural, quando paraissoseassociamospolíticos,que,dessaforma,encontrammodosdeservirsuaclientela,osnegocianteseempreiteirosdeobrasquepassamavivereaenriquecer da aplicação de fundos públicos de socorro e os grandescriadorespleiteantesdenovosaçudes, valorizadoresde suas terras equenadalhescustam.Apesardosplanosgovernamentaisconsignaremsemprea destinação dos açudes à irrigação das terras para os cultivos desubsistência, na forma de pequenas propriedades familiais, jamais umpalmodasterrasbeneficiadasfoidesapropriadacomesseobjetivo,ficandoas áreas irrigáveis sob o domínio dos fazendeiros, para os usos quemaislhes convinham. Assim, todos os programas de socorro aos flageladosresultaram em iniciativas consolidadoras do latifúndio pastoril,salvaguardandoogadobovinodosfazendeiros,masmantendoosertanejonasmesmascondiçõesprecárias,cadavezmais indefesosemfacedeumaexploraçãoeconômicamaisdanosadoqueassecas.

Um primeiro órgão federal permanente ‐ o Departamento Nacional deObras Contra Seca (DNOCS) ‐ criado para atender ao problema das secastransformou‐se numa agência de clientelismo descarado a serviço dosgrandescriadoresedopatriciadopolíticodaregião.

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Maistarde,foinecessáriocriarumsegundoórgão,aSuperintendênciadoDesenvolvimento do Nordeste (SUDENE), planejado em bases modernas,relativamenteliberadodoclientelismo(quecontinuariasendoprovidopelaprimeirainstituição),paradevotar‐seàimplantaçãodeumainfra‐estruturamais capaz de dinamizar a economia regional. Como era previsível, oprogramaencontrouamaioroposiçãodascamadassenhoriaisnordestinasesópôdeserpostoemexecuçãodepoisdedemonstrarquenãoafetariaaestruturasocial,especialmenteoregimedepropriedade.

Dessemodo,imensosrecursosaplicadoscomaltopadrãotécnicoemoralbeneficiaram ao Nordeste, produzindo, porém, efeitos sociais muitomenores do que uma parcela dos mesmos investimentos permitiriaalcançar,sesepudessereordenaroregimedepropriedadedaterra.Todosos fatores institucionais decisivos permaneceram, assim, sob a guarda depoderosas forças políticas, cujos interesses são opostos aos da populaçãosertaneja,mascujodomíniosobreaestruturadopoderéhegemônico.

Sob essas condições de domínio despótico, as relações do sertanejo comseu patronato se revestem domaior respeito e deferência, esforçando‐secadavaqueirooulavradorpordemonstrarsuaprestimosidadedeservidore sua lealdade pessoal e política. Temerosos de que qualquer atitude ostornemalvistos, submetem‐se à proibiçãode receber visitantes de outrasfazendase,aindamais,detratarcomestranhos,alémdetodaumasériederestriçõesàsuacondutapessoalefamiliar.Seutemorsupremoéverem‐sedesgarrados,sempatrãoesenhorqueosprotejadoarbítriodopolicial,dojuiz,docobradorde impostos,doagentede recrutamentomilitar. Ilhadosnomardo latifúndiopastorildominadopordonostodo‐poderosos,únicosagentesdopoderpúblico,têmverdadeiropavordeseveremexcluídosdonicho em que vivem, porque isso equivaleria a mergulhar na terra deninguém,nacondiçãodosfora‐da‐lei.

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Paradoxalmenteessasaídadesesperadaéaúnicaqueensejaaosertanejolibertar‐sedaopressãoemquevive,sejaemigrandoparaoutrasterras,sejacaindonobanditismo.

Comefeito,umaparcelaenormedesertanejosécompelidaaengrossarasfrentes pioneiras lançadas à abertura de novas áreas de exploração, paraalémdasfronteirasdosterritóriosdeantigaocupação.Porseusesforçoséquesetornaramconhecidasaszonasermasqueelespenetram,cultivameligam por estradas precaríssimas ao mercado. Mas seu destino é o deeternos itinerantes, criadoresdenichosquedevem fatalmenteabandonarquando chega o "dono legítimo" das terras que desbravam. A amargaexperiência de sucessivas expulsões os impede de,mesmo nesses ermos,tentarqualquercultivoquenãosejadocicloanual,agravandoassim,aindamais,suamiserabilidade.Emboraexistaumalegislaçãodeamparoaessesdesbravadores, que lhes assegura a posse da terra após uma década deocupação continuada, sua execução depende do acesso a um aparatocartoriallongínquoeinatingívelaosertanejocomum.

O sistema prevalecente é, pois, essencialmente o mesmo das sesmariasreaisdoperíodocolonial,sóqueagoraasconcessõesdeglebasdependemda prodigalidade de políticos estaduais. Em todos os desvãos do MatoGrossoeGoiás,doMaranhão,doParáedoAmazonas,milhõesdehectaresde terras virgens foram concedidos, nas últimas décadas, a "donos" quenunca as viram, mas um dia se apresentam para desalojar os pioneirossertanejos como invasores que, tangidos por um movimento secular deexpansão da ocupação humana dos desertos interiores, as alcançaram,almejandonelasseinstalarempermanentemente.

Navastidãodomediterrâneointeriorconfiguram‐sediversasvariantesdemodos de vida que são adaptações locais e funcionais dessa expansãosertaneja.

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Assim,naorladamataamazônica,umafrentehumanasedefrontacomamata virgem, sem capacidade de penetrá‐la por falta de modelossocioempresariais e técnicasde fixação.Desenvolve‐seaí a coletade cocobabaçuededrogasdamata,abrindo‐sepequenosroçadosdesubsistência.

Essa é uma frente pioneira ainda em fase formativa, acossada pelosneoproprietários que, obtendo por outorga ou grilagem as terras recém‐devassadas,saemnoencalçodosertanejo,expulsando‐osempreparamaislonge.

Maisparaosul,nasmatasdeMinasGerais,deMatoGrossoedeGoiás,oprocesso já se estabilizou.O fazendeiro contrata com famílias pioneiras aderrubadadetrechosdamata,sobacondiçãode,apósaterceiracolheitadegêneros,semearcapim.

Assim,cedendogratuitamenteaterraparalavrarumaspoucascolheitas,ofazendeiro obtém a execução gratuita da tarefa mais onerosa, que é aderrubada da floresta para estender seus campos e criação. Além daexploração brutal da massa camponesa, esse sistema importa numalimitaçãoprogressivadaáreacultivávelpeloconfinamentodaslavourasdegênerosdeconsumoexclusivamenteàsáreasnovasaindaindevassadas.

Desse modo, em lugar de ampliarem‐se as áreas de cultivo de produtosalimentícios, recuperando para isso os campos naturais, estes é queavassalam a mata, alargando o pastoreio. Aqui se manifesta outra açãodeformadora dos privilegiados do sistema, que, fruindo a propriedade daterra a , seu talante, chegam mesmo a negá‐la ao cumprimento de suafunçãoprecípua,queédardecomeràpopulaçãobrasileira.

NoscamposdoCentro‐Oeste,ondeopastoreioencontraboaspastagenseum regime pluvial regular, a vida sertaneja assume outra feição. Asfazendas são cercadas por aramados, a exploração pastoril se torna umnegócioracionalizado,ovaqueirosetransformanumassalariado,quedevecomprarseusmantimentos,inclusiveacarne.

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O gado, mercê da qualidade dos pastos e do cruzamento com estirpesindianas,crescemaisprecocemente,alcançaumaossaturamaisamplaeseprovê mais fartamente de carne. Nesse sistema pastoril mais avançado,torna‐semaisvantajosoparaoscriadoresexcluiracarnevacumdadietadovaqueiro. O homem, por isso, não cresce nem ganha vigor como o gado,permanecendo seco e mirrado como nas áreas mais pobres. Continuapreterido em relação ao rebanho, como a espécie mais reles e menosvaliosa. Isto sepode verdemilmodos,mais expressivamente, talvez, noscuidados sanitários onerosos que se difundem na defesa do gado contraepizootias,nummundoemquenadasefazparacombaterasendemiasqueassolamapopulação.

Qualquer vaqueiro sabe, de experiência própria, quanto contrastam asfacilidades disponíveis para socorrer a um touro empestado com asdificuldades que encontra para medicar um filho enfermo. Nas baciasleiteiras,ondeogadoéestabulado, ressaltamescandalosamentea farturadaraçãoasseguradaàsvacaseasovinicedemantimentoscomquecontaopeão.Dessaforma,mesmonasáreaspastorismaisricas,aordenaçãosocialdegrada ao homem, confirmando o primado empresarial do gado‐mercadoriasobreacomunidadehumana.

Todavia, a situação do peão assalariado a um patrão chega a ser deprivilégio em relação às condições da massa sertaneja sobrante,concentrada nos terrenos baldios ou vagante pelos campos, em busca detrabalhoeventualoudeterraparalavraremqualquercondição.Apequenacapacidadedeabsorçãodemão‐de‐obrapelopastoreio, combinadacomaapropriação das terras pelos criadores e com o movimento contínuo deexpansãodopastoreiosobreáreasflorestais,conduz,assim,aspopulaçõessertanejasaumasituaçãodeindizívelpenúria.

Em vastas áreas do mediterrâneo interior, grandes contingentes desertanejos se dedicam ao garimpo de cristal‐de‐rocha, de pedrassemipreciosas,deouroedemineraisraros.

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Juntam‐se,para isso,emcorrutelassempreprovisóriase itinerantes,quecrescemesedesfazemsegundooritmodeexploraçãodecadagarimpo,sódeixandoparatrásaburacariadasexplorações.

Ogarimpeiroostentaumcorpodecaracterísticaspeculiaresdecorrentestanto de sua proveniência sertaneja como de sua especialização noextrativismomineral, bem comodas vicissitudes históricas da exploraçãoclandestina de diamantes, quando esta constituía monopólio da Coroaportuguesa. Como resposta a esses condicionamentos, desenvolveram‐sedoistraçospeculiares:otratoausteroquenãoadmitequebradedisciplinaequecombateo rouboda formamaisdrástica;eoespíritoaventureiroenômade de quem trabalha ao sabor da sorte. Cada homem se empenhaduramente no serviço, movido sempre pela esperança de enriquecerrapidamentecomograndeachadodesuavida.Osganhosreaissão,porém,apoucados e dispendidos prontamente em gastos suntuários, para nãoestragar a sorte que o deverá contemplar, amanhã, ainda maisgenerosamente.

Paraisso,emtodasascorrutelasdegarimposestãopresentesosmascates,com suas mercadorias chamativas de artigos supérfluos, e osatravessadores,queàsvezesfinanciamotrabalho,massão,essencialmente,oscompradoreslocaisdaprodução.

As populações sertanejas, desenvolvendo‐se isoladas da costa, dispersasem pequenos núcleos através do deserto humano que é o mediterrâneopastoril,conservarammuitostraçosarcaicos.Aelesacrescentaramdiversaspeculiaridadesadaptativas aomeioe à funçãoprodutivaqueexercem,oudecorrentes dos tipos de sociedade que desenvolveram. Contrastamflagrantemente em sua postura e em sua mentalidade fatalista econservadoracomaspopulaçõeslitorâneas,quegozamdeintensoconvíviosocial e se mantêm em comunicação com o mundo. Emmuitas ocasiões,essedistanciamentoculturalrevelou‐semaisprofundo

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queasdiferençashabituaisentreoscitadinoseoscamponesesdetodasassociedades, fazendo explodir as incompreensões recíprocas em conflitossangrentos.Naverdade,asociedadesertanejadointeriordistanciou‐senãosó espacial mas também social e culturalmente da gente litorânea,estabelecendo‐se uma defasagem que as opõe como se fossem povosdistintos.

O sertanejo arcaico caracteriza‐se por sua religiosidade singela tendenteao messianismo fanático, por seu carrancismo de hábitos, por seulaconismoerusticidade,porsuapredisposiçãoaosacrifícioeàviolência.E,ainda, pelas qualidades morais características das formações pastoris domundointeiro,comoocultodahonrapessoal,obrioeafidelidadeasuaschefaturas.

Esses traços peculiares ensejaram muitas vezes o desenvolvimento deformasanômicasdecondutaqueenvolveramenormesmultidões, criandoproblemas sociais da maior gravidade. Suas duas formas principais deexpressão foramocangaçoeo fanatismoreligioso,desencadeadosambospelascondiçõesdepenúriaquesuportaosertanejo,masconformadaspelassingularidadesdoseumundocultural.

Até meados da década de 1930, quando se acelerou a construção deestradas através do mediterrâneo sertanejo, operava, como forma derevoltatípicadaregião,ocangaço.Foiumaformadebanditismotípicadosertão pastoril, estruturando‐se em bandos de jagunços vestidos comovaqueiros, bem‐armados, que percorreram as estradas do sertão emcavalgadas, como ondas de violência justiceira. Cada integrante do bandotinha sua própria justificativamoral para aliciar‐se no cangaço. Um, paravingarumaofensaàsuahonrapessoaloufamiliar;outro,parafazerjustiçacomasprópriasmãos,emrazãodeagravossofridosdeumpotentadolocal;todosfazendodobanditismoumaexpressãoderevoltasertanejacontraasinjustiças do mundo. Resultaram, por vezes, na eclosão de um tipoparticulardeheroísmoselvagemqueconduziuaextremosdeferocidade.

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Tais foram os cangaceiros célebres que, se por um lado ressarciam aospobresdesuapobrezacomosbensquedistribuíamdepoisdecadaassalto,poroutro,matavam,estropiavam,violentavam,empurasexibiçõesdefúria.É de assinalar que o cangaço surgiu, no enquadramento social do sertão,frutodoprópriosistemasenhorialdolatifúndiopastoril,queincentivavaobanditismo, pelo aliciamento de jagunços pelos coronéis como seuscapangas (guarda de corpo) e, também, como seus vingadores.Freqüentemente,osfazendeirosaliciavamgrandesbandos,concentrando‐os nas fazendas, quando duas parentelas de coronéis se afrontavam nasfreqüentesdisputasdeterra.Essescapangas,estimadospela lealdadequedesenvolviam para com seus amos, pela coragem pessoal e até pelaferocidade que os tornava capazes de executar qualquer mandado,destacavam‐sedamassa sertaneja, recebendoum tratamentoprivilegiadode seus senhores. Acresce que cada bando de cangaceiros tinha seuscoronéiscoiteiros,queosescondiameprotegiamemsuasterras,emtrocadasegurançacontraoprópriobando,mastambémparaservirem‐sedelescontrainimigos.Nessascondições,sãocondicionamentossociaisdoprópriosistemaquealentarameincentivaramaviolênciacangaceira.

Mais relevante, ainda, é o fato de que toda a população sertaneja,renegando emboraos jagunçospelopavorque lhe infundiam, tinhanelespadrõesideaisdehonorabilidadeedevalor,cantadosnosversospopulares,e via, nos seus feitos mais violentos, modelos de justiça realçados elouvados.Portudoisso,ocangaçoeseusjagunços,sanguináriosmaspiosetementes a Deus e aos santos de sua devoção, temidos mas admirados,condenados mas também louvados, constituíram um produto típico nasociedadesertaneja.

Umaoutraexpressãocaracterísticadomundosocioculturalsertanejoéofanatismoreligioso,quetemmuitasraízescomunscomocangaço.Ambossão expressões da penúria e do atraso, que, incapaz demanifestar‐se emformas mais altas de consciência e de luta, conduziram massasdesesperadasaodescaminhodaviolênciainfreneedomisticismomilitante.

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O fanatismo baseia‐se em crençasmessiânicas vividas no sertão inteiro,queesperaversurgirumdiaosalvadordapobreza.Virácomseuséquitoreal para subverter a ordemnomundo, reintegrando os humildes na suadignidadeofendidaeospobresnosseusdireitosespoliados:"[...]osertãovaivirarmar,omarvaivirarsertão[...]".Trata‐sedaressonâncianosertãobrasileirodomessianismoportuguêsreferenteaoreid.Sebastião.

Periodicamente surgem anunciadores da chegada do messias,conclamandoopovoajejuar,arezareaflagelar‐seafimde,purificando‐se,desimpediroscaminhosdareencarnaçãodevelhosheróismíticos.

Umdesses taumaturgos, emPedraBonita,Pernambuco,pedia sanguedecrianças inocentesparaverternumapedreirae,assim,despertaraoreid.Sebastiãoeseuscavaleiros,quealiestariamencantadoscomseusexércitos,tombados nas cruzadas contra os mouros. Outro, José Lourenço doCaldeirão, no Ceará, dirigia o culto a um boi milagreiro, cuja urina erarecolhida, com veneração, como medicina eficientíssima contra qualquerenfermidade. Outros conduziam atrás de si, emmarchas infindáveis pelosertão afora, multidões famélicas de peregrinos que se exorcizavam e seflagelavam na esperança de milagres. Outros, ainda, atraíam enormesromarias a seusparadeiros, onde rezavam, confessavam, aconselhavame,sobretudo, curavam os enfermos incuráveis e infundiam esperanças aosdesenganados.

Por vezes, resulta dessas concentrações ‐ como ocorreu no Juazeiro dopadre Cícero ‐ o aliciamento de sertanejos para trabalhar anos a fio,gratuitamente, nas fazendas de parentes do milagreiro. Freqüentemente,porém,assumiamfeiçõesmaistrágicas,comonosepisódiosprovocadosporAntônioConselheiroemfinsdoséculopassado.

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Em tornodesse taumaturgo,quecombinavaàpaixãodeprofeta talentosde reformador social, concentrara‐se em Canudos, no alto sertão são‐franciscano, uma vasta população sertaneja incandescida pelo seumisticismo. Os fazendeiros vizinhos viram imediatamente o caráterintrinsicamentesubversivodaquelesrezadores.Oqueestavaatrásdaquelesurto de religiosidade bíblica era o abandono das fazendas pelamão‐de‐obraqueas servia eque resultaria, fatalmente,nadivisãodas terras seomalnãofosseerradicado.

Fracassaram,porém,diantedopoderdeliderançadeAntônioConselheiro,fundado em sua capacidade de infundir esperança de salvação e de umavidamelhornaprópriaterra,asmassassertanejas.Estas,umavezativadas,setransfiguramesaltamdesuaresignaçãoehumildadetradicionalaumacombatividade extrema. Cada sertanejo que se acerca do taumaturgoincandesce,transformando‐senumjustiçadordivino,sódispostoadevotar‐seàsrezaseàreconstruçãodaordemsocialemnovasbases. Canudos,ocentrodoarraialsagrado,aliciandooshomensdasterrascircunvizinhas,jáexcediademilcasasquandoosfazendeirosreclamaramaintervençãodastropas estaduais. Estas foram batidas. As autoridades do estado da BahiaapelamentãoparaoExército,queenviadoisgrandescontingentes,tambémvencidos pelos fanáticos, que, assim, se armam e municiam para umaresistência maior. Surge, então, nos centros urbanos, despertados para oproblema pelo escândalo das vitórias militares daqueles sertanejos‐jagunços,a interpretaçãodequese tratavadeumcoutodemonarquistas,em rebelião contra o regime republicano, orientados, talvez, por agenteslusitanos.

Arma‐se,em1897,umexércitointeirocontraoarraialdeCanudos,dotadode todo apetrecho de guerra, inclusive artilharia pesada. Mesmo esseexército profissional moderno, só depois de lutar arduamente, conseguevenceraresistênciaobstinadadosfanáticos.Massóopodefazeraopreçodadizimaçãodetodaapopulação.

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O episódio celebrizou‐se por seu próprio vulto sinistro e, também, peloretrato candente desse desencontro entre as duas faces da sociedadebrasileira,deixadoemOs sertões,deEuclidesdaCunha, escrito comoumlibeloterrívelcontraogenocídioquealisecometera.

"Repugnava aquele triunfo. Envergonhava. Era, com efeito,contraproducente compensação a tão luxuosos gastos de combates, derevezesedemilharesdevidas,oapresamentodaquelacaqueiradahumana,domesmopassoangulhentaesinistra,entretrágicaeimunda,passando‐lhespelos olhos, num longo enxurro de carcassas e mulambos (Cunha1945:606)."

A memória de Canudos perpetuou‐se, também, na tradição oral daspopulações sertanejas, que recolheram os poucos sobreviventes domorticínio e deles ouviram e guardaram os episódios heróicos deresistênciaede luta.E, sobretudo,a liçãodeesperançadosensinamentosdoConselheirosobreapossibilidadedecriarumaordemsocialnova,semfazendeiros,nemautoridades.

Nos últimos anos vem se quebrando o isolamento dos sertões, cujosfazendeiros todo poderosos do passado foram desarmados pelo governocentral e cujas fazendas se viram cortadas por estradas percorridas pormilharesdecaminhõesqueconduzemgente,mercadoriasenovasidéias,aomesmo tempo em que eram atingidos pela difusão radiofônica e peloscinemasdasvilas,quevãofamiliarizandoosertanejocomograndemundoexterno.

Nessesertãodevassado,ondeumaautoridadepolíticacentral jáse tornacapaz de impor as leis e a justiça, embora só o possa fazer ainda emcambalacho com o coronelato local, não há mais lugar para jagunços efanáticos. As tensões sociais tendem a estruturar‐se emnovas formas. Asprópriasdisputaspolíticasjánãoseconfiguramexclusivamentecomolutasdefamíliasoucontendasdeprestígioentrecoronéisaexigiremalealdadede seus homens; mas se afirmam como oposições entre liderançasnacionais, que aliciam os afazendados e seus dependentes em partidospolíticos opostos em tudo, exceto na sustentaçãoda ordem fazendeira dequetodos,afinal,tiramseusvotoseamaioriadeseusquadrosdirigentes.

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Mais recentemente, se configurou uma nova polarização de forças queopunha,deumlado,ospartidostradicionais,sustentadoresdavelhaordemoligárquica, e, de outro, movimentos reformistas assentados no votoindependentedasmassasurbanas.Enquantoprevaleceuessapolarização,ossertanejosforamchamadosaumaalternativapornovasvozespolíticasque, saltando os cercados das fazendas ou chegando até eles através daradiodifusão,osaliciavaparalutarporsuaprópriacausa.

Chamadoatomarposiçãonessanovapolarizaçãodeforças,osertanejovaiadquirindo, gradativamente, consciência social. Para isso contribuemtambémosimigrantessertanejosqueregressamàterra,trazendodosulaimagemderegiõesprogressistas,ondeprevaleceumtratomaishumanoemais justo,costumesmais livresemaisabertos, sobretudo,umpadrãodevidamais alto. Todos esses ingredientes estão atuando ativamente comoalargadores dos horizontes mentais dos sertanejos e como aliciadores ereorientadoresdasenergiasantesvoltadasparaocangaçoeomisticismo.

Édeassinalar,porém,queodespertardaconsciênciasertanejaparasuaprópriacausanãoassume,ainda,umaatitudederebeldiageneralizada.Masalcança jáumaposturade inconformismoquecontrastacomaresignaçãotradicional. Não chega a explicar a vida social em termos realistas deinteresse em choque e, raramente, põe em dúvida as representaçõessagradasdomundoqueexplicampela sorteepelaajudadivinaa riquezados ricos e a pobreza dos pobres. Sua inconformidade revela‐se,principalmente, por atitudesde fuga: a idealizaçãodopassado comoumaidademiríficaemqueovaqueiroerapagoemreseseemqueasterraseramlivresparaquemasquisesseocupare trabalhar;a idealizaçãodavidaemoutrasregiõesdopaís,ondeavidaéfácileumhomem,compoucoesforço,podecomerfartamenteevivercomdignidade.

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E a esperança de ver surgir um novo paternalismo governamental, queseja mais sensível à sua causa do que aos interesses fazendeiros. Essasatitudes, porém, antes conduzem ao abandono do sertão por outraspaisagensruraisepelascidadeseaumredentorismopolíticodoqueaumapressãoativapelareordenaçãodasociedadesertaneja.

Paraoconjuntodossertõespastorisprevalece,ainda,esseinconformismoprimário e inativo que se explica pelomonopólio secular da terra e pelocrescimento excessivo da população dentro de um enquadramentosocioeconômico que não possibilita uma renovação tecnológica capaz depromover a fartura e o progresso. Esses condicionamentos geram umaestreita dependência do sertanejo em relação ao latifundiário, operandocomoummecanismodeconsolidaçãodosistema.

Apesar da penúria em que vivem, tanto o sertanejo engajado comovaqueiro, quanto o agregado ou o parceiro que cultiva terras alheias emregime de meação sentem‐se permanentemente ameaçados de se veremenxotadoscomsuasfamíliasedecaíremnacondiçãoaindamaismiseráveldos deslocados rurais. Abaixo de cada pessoa que consegue situar‐se nosistema produtivo existe toda uma massa marginalizada, ainda maismiserável,ondequalquerumpodemergulhar.

Essas condições dificultam ao extremo a organização política daspopulações sertanejas, perdidas no deserto de terras devolutas ouengolfadas no latifúndio. Elas nascem, vivem e morrem confinadas emterras alheias, cuidandodogado, de casas, de cercados ede lavourasquetêm donos ciosos. O próprio rancho miserável em que vivem com suasfamílias, construídoporelespróprioscombarrosepalhasdocampo,nãolhes pertence. Nada os estimula a melhorá‐lo e o proprietário não osautoriza a enriquecê‐lo com o plantio de fruteiras ou com a criação deanimais de terreiro, paraquenão faça jus à indenizaçãonomomento emquedevamserdespedidos.

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Essasituaçãocontrastaolavradoreovaqueirosertanejocomocamponêsaldeão da Europa feudal que vivia numa comunidade onde nasceram emorreram seus pais e avós, lavrando sempre a mesma terra, todosdevotadosaumesforçocontinuadoparaproversuasubsistência,pagandoosforosdevidosaosenhorio,masmelhorandosempreascondiçõesdevidae de trabalho no nicho em que se situavam, para torná‐lo cada vezmaishabitável. Por mais anos ou gerações que permaneça numa terra, osertanejo é sempre um agregado transitório, sujeito a ser desalojado aqualquerhora,semexplicaçõesoudireitos.Porisso,suacasaéoranchoemqueestáapenasarranchado;sualavouraéumaroçaprecária,sócapazdeassegurar‐lheummínimovitalparanãomorrerdefome,esuaatitudeéade reserva e desconfiança, que corresponde a quem vive num mundoalheio, pedindo desculpas por existir. Quando, apesar de todos os seuscuidadosparaviverdesapercebido, torna‐seobjetodeatenção,éparaverdesencadearem‐sesobresinovasiniqüidades,quesópodeenfrentarcomaviolência,agravandoaindamaissuasdesgraças.

Assim,somenteolavradorlivre,quetrabalhacomoarrendatáriodeterrasalheiasouseinstalaemterrenosbaldiosouemarraiais,alcançacondiçõesmínimas de interação social que lhe permitem desenvolver‐sepoliticamente e assumir uma conduta cidadã. Somente esses manifestamsuarevoltacontraosistemafundiárioleiteandoclaramenteapropriedadeda terra. Exemplificamessa situação os sertanejos das comunidadesmaislivresdoagrestenordestinoquemantêmumavidasocialmaisintensaeumcerto convívio com populações urbanas. Ali se multiplicaram as ligascamponesas de Francisco Julião, com sede pública; primeiro, para imporaos senhores de terra condições explícitas e menos espoliativas noscontratos anuais de arrendamento; depois, para pleitear a própria possedasterras,atravésdeumareformaagrária.

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Esse movimento experimentou uma rápida expansão, tanto através dasligas, como dos sindicatos rurais ‐ estes principalmente nas usinasaçucareiras,ondeseconcentramgrandesmassasdeassalariadosagrícolas‐organizados por lideranças urbanas de diversas orientações políticas queincluíamdesde sacerdotes católicos atémilitantes comunistas.Assentava‐se,porém,naprecáriabasedeumaconjunturapolíticatransitória.

Quandoestafoiderrubadapelogolpemilitar,voltouosertãoamergulharnodespotismolatifundiário.

Nos últimos trinta anos, uma descoberta tecnológica abriu novasperspectivasdevidaeconômicaparaoscerrados.Verificou‐sequeaquelasimensidadesdeplaníciesofereceriamcondiçõesperfeitasparaocultivodesojaoudotrigo,àcondiçãodequefossecorrigidasuaacidez.Assiméqueos cerrados estão sendo invadidos por grupos de fazendeiros sulinos, àfrente de imensa maquinária, para o cultivo de cereais de exportação.Alguns poucos sertanejos estão aprendendo a ser tratoristas outrabalhadoresespecializadosdasgrandesplantações.Paraamassahumanadosertãoéqueessariquezanovanãoofereceesperançaalguma.

Tenho em mente a imagem de uma fieira de nordestinos, adultos ecrianças, maltrapilhos, cabeça coberta com seus chapéus de palha e decouro,agachados,olhandopasmosasimensasmáquinasrevolvendoavelhaterradocerrado.

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5.OBRASILCAIPIRA

"[...]Metidopelosmatos,àcaçadeíndioseíndias,estasparaosexercíciosdesuastorpezaseaquelesparaosgranjeiosdeseusinteresses[...]nemsabefalar[oportuguês]

[...]nemsediferenciadornaisbárbarotapuia

maisdoqueemdizerqueécristãoenão

obstanteohaversecasadodepoucolheas‐sistemseteíndiasconcubinas[...]

Bispo deOlinda sobreDomingos Jorge Velho, o capitão bandeirante queliquidouoquilombodePalmares,1694"

Enquanto os núcleos açucareiros da costa nordestina cresciam eenriqueciam,apopulaçãopaulistarevolvia‐senumaeconomiadepobreza.Não tendo grandes engenhos de açúcar, que eram a riqueza do tempo,tampouco tinham escravaria negra, e raramente um navio descia até oancoradourodeSãoVicente.Aofimdeumséculoemeiodeimplantação,osnúcleospaulistasmais importantes eramarraiaisde casebresde taipaouadobe,cobertosdepalha.

Os homens bons que integravam a Câmara e dirigiam as bandeiras dedevassamentodossertõesinterioresviviamcom

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suasfamíliasemsítiosnointerior,emcondiçõesigualmentepobres.Cadaumdelesservidopelaindiadacativaquecultivavamandioca,feijão,milho,abóboraetubérculos,paracomercomcarnedecaçaoucompescado;alémdo tabacoparaopito,dourucuedapimentaparacondimentoealgumasoutrasplantasindígenas.

Em família e também nas relações entre paulistas, só se falava a línguageral, que era uma variante do idioma dos índios Tupi de toda a costa.Também indígenas eram as técnicas da lavoura de coivara, bem comodecaça, de pesca e de coleta de frutos silvestres de que se sustentavam. Atralha doméstica, de redes de dormir, gamelas, porongos, peneiras etc.,poucodiferiadadisponívelnumaaldeiaindígena.

Seusluxosemrelaçãoàvidatribalestavamnousoderoupassimples,dosal, do toucinho de porco e numa culináriamais fina; na posse de algunsinstrumentosdemetaledearmasdefogo;nacandeiadeóleoparaalumiar,nalguma guloseima, como a rapadura, e na pinga de cana que sempre sedestilou; além da atitude sempre arrogante. Cada família fiava e tecia dealgodão grosseiro as redes de dormir e as roupas de uso diário – amplasceroulas cobertas de um camisolão para os homens, blusas metidas emsaias largas e compridas, para asmulheres. Todos andavamdescalços ouusando simples chinelas ou alpercatas. Apenas cobriam o corpo que osíndios antes deixavam à mostra, sem pudor mas com a faceirice daspinturasdeurucumejenipapo.

Essapobreza,queestánabasetantodasmotivaçõesquantodoshábitosedocaráterdopaulistaantigo,éque faziadelesumbandodeaventureirossempre disponível para qualquer tarefa desesperada, sempre maispredispostos ao saqueio que à produção. Cada caudilho paulista deexpressãopodia levantarcentenaseatémilharesdehomensemarmas;éverdadequeaimensamaioriadelesformadaporíndiosflecheiros.

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Nãonecessitavammais,porém,umavezqueosinimigosaenfrentareramíndios tribais arredios, índios missioneiros desvirilizados e negrosquilombolas quase desarmados. Sua economia de subsistência de basetribal e tupi prestava‐se admiravelmente amanter esses centos de índioscombatentes,quesóprecisavamdeumranchoqueelesmesmosfaziam,deumpedaçodeterradesmatadapararoçados,queelesprópriosabriam,dacaça e da pesca que também eles mesmos agenciavam. As contribuiçõesfundamentaisdopaulistaaessesnúcleoseramumdisciplinamentomilitarsuperioraotribaleasmotivaçõesmercantistambémmaisbemajustadasàscircunstâncias.

Éprovávelqueoíndioaliciadonessesbandos,depoisdesuficientementeafastadodesuatriboparadissuadi‐loderetornar,nelesseintegrassesemdificuldadesemvirtudedesuasingelezaquasetribal.Nãoerasubmetidoaumadisciplinarígidadetrabalho,comonoengenho,masàsalternânciasdeesforços e de lazer a que estava habituado. Sua condição seriaprovavelmente muito próxima da que enfrentaria, por exemplo, o índiocativodetribosguerreirascomoosGuaikuru,paraservircomoservodeumcacicato. Nos dois casos, encontrava umpapel social bemdefinido e umapossibilidadedeintegraçãonumnovomundocultural,que,emboramenosdesejável que o tribal, seria suportável. O inconveniente maior era aimpossibilidade de ter mulher (porque estas seriammuito disputadas) etambémvidadefamília.

Essemododevida,rudeepobre,eraoresultadodasregressõessociaisdoprocesso deculturativo. Do tronco português, o paulista perdera a vidacomunitária da vila, a disciplina patriarcal das sociedades agráriastradicionais, o arado e a dieta baseada no trigo, no azeite e no vinho. Dotronco indígena, perdera a autonomia da aldeia igualitária, toda voltadaparaoprovimentodaprópria subsistência, a igualdadedo trato social desociedadesnãoestratificadasemclasses,asolidariedadedafamíliaextensa,ovirtuosismodeartesãos,cujoobjetivoeraviveraoritmoemqueosseusantepassadossempreviveram.

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Os núcleos paulistas, vinculados a uma economia mercantil externa emotivados por ambições de enriquecimento, não queriam apenas existircomoosíndioscomosquaisquaseseconfundiam.Integradosnaestruturaestamentaldacolônia,aspiravamaparticipardacamadadominante,dar‐seluxos de consumo e poder de influenciar e demandar. Armados de umatecnologia rudimentar, mas muito superior à tribal, amalgamada deelementoseuropeuseindígenas,seudestinoeralançar‐sesobreasgentesesobre as coisas da terra, apresando e saqueando o que estivesse a seualcance,paraassimafirmar‐sesocialmente.

Portudoissoéqueosmamelucospaulistassetornaram‐comomateirosesertanistas ainda melhores que os próprios índios ‐ o terror dos grupostribais livres e dos índios catequisados pelos jesuítas, nesse processodesestimulados para a luta, e, mais tarde, dos negros fugidos econcentrados em quilombos. Durante um século e meio, os paulistas sefizeramcativadoresde índios,primeiro,paraseremosbraçoseaspernasdotrabalhodesuasvilaseseussítios;depois,comomercadoriaparavendaaos engenhos de açúcar.Dessemododespovoaram as aldeias dos gruposindígenaslavradoresemimensasáreas,indobuscá‐los,porfim,amilharesdequilômetrosterraadentro,ondequerqueserefugiassem.

Adestradosnessaspráticas, ospaulistas se lançam,no começodo séculoXVII, contraasprósperasmissões jesuíticasdoParaguai,ondedezenasdemilhares de índios sedentarizados e disciplinados no trabalho agrícola,pastoril e artesanal se ofereciam como o saque mais tentador. Oscatecúmenos eram, então, especialmente valiosospela carênciadenegrosescravos em que viviam os engenhos baianos, em virtude do domínioholandêssobreasfontessupridorasdaÁfrica.Mas,alémdeíndiosacativar,os paulistas encontravam nas missões jesuíticas preciosos adornos deigrejas,ferramentaseoutrasprendasdevalor,ademaisdemuitogado.

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Missões inteiras, das mais ricas e populosas, como Guaíra (oesteparanaense), Itatim (sul do Mato Grosso) e Tapes (Rio Grande do Sul),foramassimdestruídaspelosbandeirantespaulistas,quesaquearamseusbenseescravizaramseusíndios.Édesuporquepaulistastenhamvendidomais de 300 mil índios, principalmente missioneiros, aos senhores deengenhodoNordeste.

Cada uma dessas empresas de assalto àsmissões jesuíticas do Paraguaiexigia, por vezes, amobilização de todos os paulistas prestantes com suaindiada de confiança. Asmaiores delas compreendiam cerca de 2 a 3milpessoas,umaterçapartedasquaiseraconstituídade"brancos"queseriamquase todosmamelucos. Iamhomens,mulheres,velhosqueaindapodiamandarecombaterecrianças,divididosporfamílias,comoumavastacidademóvel, arranchando‐se pelo caminho, fazendo roça, caçando e pescandoparacomer,masseguindosempreemfrenteparaacossaraosmissioneirosem seus redutos, vencê‐los e apresá‐los. Além do núcleo guerreiro decombatentes, com sua hierarquia militar e seu incipiente aparato legal ereligioso,abandeiratransitavapelosertãotodaumacortedeserviçaisquecarregavamascargasdemantimentoseutensílios,deíndiosquecaçavam,pescavam e coletavam alimentos, de sertanistas que abriam picadas eestabeleciamrumos.

Assim, num tempo em que as nações deserdadas na divisão do mundoapelavamparaapiratariamarítimadoscorsários,ospaulistas,queeramosdeserdadosdoBrasil,lançavam‐se,também,aosaquecomigualviolênciaecobiça. Marginalizados do processo econômico da colônia, em que quasetodosestavamvoltadosparaaslucrativastarefaspacíficasdosengenhosedos currais de gado, os paulistas acabaram por se especializar comohomensdeguerra.Cadavezquenaaberturadeumanovazona

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os índios apresentavam resistência maior, requeria‐se a mão sujigadoradospaulistas.Igualmente,quandoestalavaumarebeliãoescravaouquandoum grupo negro se alçava implantando solidamente um quilomboresistenteàsforçaslocais,paraospaulistaséqueseapelava.

Desse modo, troços de guerra de chefes paulistas com sua indiada decombate andaram além dos sertões indevassados, que eram seu campohabitualde trabalho,por todasas regiõesprósperasdopaís, empreitadospara desalojar índios ou destruir quilombos. Alguns desses sinistrosbandeirantesdecontratotraziamdevoltadessasbatalhas,comoprovadetarefa cumprida, milhares de pares de orelhas dos negros decapitados.Nessas andanças, muitos paulistas acabaram por se fixar em regiõesdistintas, fazendo‐se criadores de gado ou lavradores. A maioria, porém,voltava ao couto, reintegrando‐se na vida penosa e rude de sua gente.Formavam uma sociedade que, por ser mais pobre, era também maisigualitária, na qual senhores e índios cativos se entendiam antes comochefeseseussoldados,doquecomoamoseseusescravos.

Amiscigenaçãoeralivreporquequaseninguémhaveria,dentreoshomensbons,quenãofossemestiço.Nessascircunstâncias,ofilhodaíndiaescravacomosenhorcrescialivreemmeioaseusiguais,quenãoeramagentedaidentidade tribal de sua mãe, nem muito menos os mazombos, mas oschamados mamelucos, frutos de cruzamentos anteriores de portuguesescomíndias,orgulhososdesuaautonomiaedeseuvalordeguerreiros.

Afamíliaseestruturapatricêntricaepoligínica,dominadapelochefecomoumgrupodomésticocompessoasdeváriasgerações;essencialmente,opai,suas mulheres com as respectivas proles e os parentes delas. As índiasatreladasaogrupocomocativaseramcomborçasdopaiedosfilhosdestes.Só aos poucos o casamento religioso se impõe como sacralização damãedosfilhoslegítimos,entreasmulheresdecadahomem.Muitopaulista

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velhoconsignavaemseutestamentoaparceladosparcosbensquecaberiaaosfilhoslegítimoseomontanteadistribuirentreosoutros,esclarecendobizarramente que tinha, por filhos seus, todos aqueles que as mãesapontassemcomotais.

Oregimedetrabalho,voltadoparaosustentoenãoparaocomércio,eraquaseomesmodaaldeiatribal.Atribuíaàsmulheresascansativastarefasrotineirasdelimpezadacasa,doplantio,dacolheitaedasroças,dopreparode alimentos, do cuidado das crianças, da lavagem das roupas e dotransportedecargas.E,aoshomens,ostrabalhosesporádicosqueexigiamgrandesdispêndiosdeenergia,comooroçado,acaçaeaguerra,masquepermitiam depois de cada façanha largos períodos de repouso e Essaposição histórico‐evolutiva é que lhe impunha, por um lazer. Nas longasquadrasdeespera inativaentreasentradasdosertão,oshomensficavamem casa, insofridos, como guerreiros em vígilia. Nesse ambienteestouravam,comfreqüência,conflitossangrentos.Esseshábitosderamaosantigospaulistasareputaçãodegentebirrentaepreguiçosa.

Apesar desse primitivismo, São Paulo quinhentista era também umimplante da civilização européia ocidental, um entreposto mercantilmundial, um enclave colonial‐escravista da formação mercantil‐salvacionista ibérica. Por todas essas qualidades, contrastavaflagrantemente com as organizações tribais das aldeias agrícolasindiferenciadas, com as quais interagia, sem com elas confundir‐se. Aocontrário, lhes impunhasuadominaçãoeasconduziaaoextermínio físicoparafazersurgirumoutropovonoterritórioatéentãoocupadoporelas.

Enquanto civilização, era um transplante tardio de uma romanidaderefeita por sucessivas transfigurações na península Ibérica, que, a certaaltura, adquire forma e vigor para expandir‐se como uma macroetniaconquistadora.Nessesentido,repetiam‐seemSãoVicente‐comoderestoem todo o Brasil – as situações em que conquistadores cartagineses eromanos impuseram sua língua, religião e cultura aos povos celtiberos,transfigurando‐osetnicamenteemlusos.

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Nosdoiscasosestamosdiantedeumamesmamodalidadedetrânsitodeumaetapaevolutivaaoutra,aquelaquesedápela incorporaçãohistóricade um povo numa macroetnia conquistadora com perda de sua própriaautonomiacultural.

IstosignificaqueemSãoPaulonãoseverificavaumascensodatribalidadeàcivilização,massimaedificação,comgentedesgarradadastribos,deumaentidade étnica emergente que nasce umbilicalmente ligada a umasociedadeeaumaculturaexógenaporelaconformadaedeladependente.SãoPaulosurge,porisso,comumaconfiguraçãohistórico‐culturaldepovonovo, plasmada pelo cruzamento de gente dematrizes raciais díspares epelaintegraçãodeseuspatrimôniosculturaissobaregênciadodominadorque, a longo termo, imporia a preponderância de suas característicasgenéticasedesuacultura.

Enquanto entreposto mercantil, São Paulo era um módulo da tramaeconômica transatlânticadeproduçãoe comércio, comunicadaatravésdenausoceânicas.SuaprincipalmercadoriaeramíndioscaçadosparavendercomoescravosaosnúcleosaçucareirosdoNordesteetambémparaoutroslugares.CapistranodeAbreu, referindo‐sea SãoPaulo,diziaqueoBrasil,antes de importador, fora exportador de escravos. Mas, ainda queproduzisseparaomercadointerno,interagiaemumcircuitomercantilquelhe permitia prover‐se de produtos importados, principalmente armas eferramentas.Opróprionegóciodevender índioscomoescravoserapartedotráficomundialescravistaetinhaseuritmoeêxitodeterminadospelosazaresdapreiaeexportaçãodeafricanos.

Enquanto formação, São Paulo não era uma reencarnação de etapaspregressas da evolução humana. Era uma formação colonial‐escravista,estruturadacomoumacontrapartecontemporâneaecoetâneadaformaçãomercantil‐salvacionista ibérica. Essa posição histórico‐evolutiva é que lheimpunha,porumlado,

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suacaracterísticabásicadesociedadeestratificadaemclassesantagônicasebipartidaemcomponentesrurícolasecitadinos,essesúltimos liberadosdas tarefasdesubsistênciaparaocupar‐sedeoutras funções,e,poroutrolado, seu papel de agência difusora da civilização ibérica e impositora desuadominaçãosobreoterritóriobrasileiro.

Agrandeesperançadospaulistasemsuasentradasnosertãosempre foidepararcomminasdeouro,prataoupedraspreciosas.Atantoosapicaçavatambém a Coroa portuguesa, empenhada em que seu naco das AméricasproduzisseasriquezasqueosespanhóisarrancavamdoMéxicoedoPeru.Assim é que puderam alcançar apoio e até alguma ajuda oficial para asentradasquevisavamadescobertademetaispreciosos.

OouroacabouaparecendonossertõesdeTaubaté,primeiroemgarimpospobres,quesóestimulavamasbuscas;depoisemaluviõesprodigiosamentericosdasmorrariasdeMinasGerais,cujaexploraçãotransfiguraria todaasociedade colonial brasileira e, levado para a Europa, alteraria o padrãomonetário. Pandiá Calógeras avalia em 1400 toneladas de ouro e em 3milhõesdequilatesdediamantesariquezacarreadadoBrasilnoperíodocolonial(Calógeras1938:60‐1).

Tais foram as zonas de mineração descobertas pelos bandeirantespaulistasnasserrariasdointeriordopaísaoalvorecerdoséculoXVIII,emMinasGerais(1698),depoisemMatoGrosso(1719)e,maistarde,emGoiás(1725). Desde as primeiras notícias dos descobrimentos auríferos,multidões acorreram às áreas de mineração, vindas de todo o Brasil e,posteriormente, também de Portugal. Em poucos anos, aquelas regiõesdesertas transformaram‐se na área mais densamente povoada dasAméricas,concentrandocercade300milhabitantesporvoltade1750.

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Os ricos vinham com toda sua escravaria, pleiteando grandes lavras; osremediados, comoque tinham,eospobres, comunspoucosnegros, comapenasum,oucomnenhum,mastambémtentandoasorte.AtransladaçãohumanaalcançoutalvultoqueaCoroaviu‐senacontingênciadesofreá‐la,baixandosucessivamenteatosparaevitaroêxododosengenhosedasvilasdaszonasdeantigaocupação.

Aexploraçãocomeçoupeloourodealuvião,queseapresentavamisturadoàsareiaseaocascalhodoleitodosrios(ourodemedra)edassuamargens(ourode tabuleiro).Aí tratava‐seapenasde lavrarebatearasareiasparacataraspepitaseapuraroouroempó.Maistarde,passou‐seaexploraroourodegrupiara,queseencontravanasserranias.Então,fez‐senecessárioum processo mais complicado, que envolvia a canalização da água delavagemeodesmontedapiçarra,efreqüentementeatrituraçãodaspedrasemqueseengastavaoouro.Porfim,explorava‐setambémoourodeminas,cujosfilõestinhamqueserseguidosterraadentro,exigindomaistrabalhoetécnicasmaisaprimoradas.

Inicialmente,porém,eraenormeaquantidadedeouroqueseencontravaàflordaterraparasersimplesmentecatadocombateias.Essafacilidadedeexploração conduziu ao pronto esgotamento dos aluviões, obrigando osarraiais de mineradores a deslocar‐se para novas áreas. Alguns dosprimeiros núcleos de exploração eram tão ricos que as ranchariasassentavam sobre o próprio terreno aurífero, tendo de ser derrubadas,mais tarde, para prosseguir na lavagem do cascalho. Assim se formaramarraiais que se tornariam vilas e, depois, cidades assentadas literalmentesobreoouro,comoVilaRica,Cuiabá,VilaBelaeGoiás,entremuitasoutras.Construídascomobarrorico,aindahojesepodever,nessascidades,gentebateando as terras de um velhomuro de adobe em ruínas, à procura depepitas.

O afluxo de gente para as áreas demineração e a sofreguidão com quetodossededicavamàcatadeourogeraramgraves

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problemas sociais, fome e conflitos. Toda uma copiosa documentaçãohistórica mostra como se podia morrer de fome ou apenas sobrevivercomendoraízessilvestreseosbichosmaisimundos,comasmãoscheiasdeouro. Registra, também, as contendas entre mineradores, travadasprincipalmente entre os paulistas e adventícios. Aqueles, considerando‐secom maiores direitos, enquanto descobridores de toda a nova riqueza,lutavamcontraainvasãodosbaianos,pernambucanosedemaisbrasileiros,bemcomocontraosreinóisatraídosparaasminas.AchamadaGuerradosEmboabas(1710)foiomaisgravedosenfrentamentosdessetipo.

Somente uma década depois da descoberta, as autoridades coloniaisfixaram‐se com um poder efetivo sobre as novas regiões, tornando‐secapazes de compelir o cultivode gênerospara garantir a subsistência, deestancarosconflitos,dedirimiraslutaspelodomíniodaságuasdelavagemepelapossedasmatasmaisricas.

Começa,então,umalutaferozentreosempresáriosdaterraeopatriciadolusitano,esforçando‐seosprimeirosporretereaumentarseusbenscontraa sanha taxadora da Coroa. O escamoteio de ouro e dos diamantes e asonegaçãodosimpostosprevalecem,desdeentão,comoosentimentomaisprofundodoscoraçõesmineirosecomosuaformaparticularderebeldia.ACoroa reage com as derramas, as exações punitivas, os confiscos e arepressão,masjamaisconseguepôrcobroàposseilícitaeaocontrabando,que era a defesa dos brasileiros contra a espoliação. A população revidacommotins,porvezesprontamenteaplastados,masexigindooutrasvezesamobilização demilhares de soldados para sufocá‐los. O principal deles,eclodidoem1720,terminacomoesquartejamentodeFelipedosSantoseaqueimadascasasdosrevoltosos.

AindanaprimeirametadedoséculoXVIII,adescobertadeumariquíssimaregiãodiamantíferapromovenovatransladaçãohumana.

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Era,porém,aosolhosdaCoroa,umariquezademasiadograndeparaficaremmãosdebrasileiros.Sobreelafoidecretadoomonopólioreal.Assiméque os diamantes seriam explorados, primeiro, por contratantes reais;depois,diretamenteporagentesdametrópole.Oestanco(monopólioreal),apesar de decretado e imposto através do maior aparelho de repressãomontado no período colonial, não impediu a exploração clandestina dediamantes.Estacontinuousendofeita,acabandoporplasmarumtiposocialcaracterístico, o garimpeiro, que ainda hoje conserva traços deindependência,reservaerebeldia,explicáveisporessaorigemclandestina.

Os primeiros povoadores levantavam e abandonavam continuamenterancharias,àmedidaqueas lavraseramdescobertaseseesgotavam.Masprontamentesenuclearam,emprincípionospousosmaispróximos,ondese instalava uma venda que depois se tornava estalagem e armazém. Alitodos compravam ferramentas e utensílios, sal, pólvora, panos,mantimentos e pinga, pagando tudo em onças de ouro em pó, que era amoedadaterra.Essariquezaatraiunegociantesimportadores;comboieirosquetangiamescravosdesdeacosta,acorrentadosunsaosoutros;tropeirosquetransportavamalombodeburro,atravésdecentenasdeléguas,todaasortedemercadoria.Algunsdaquelespousosseestabilizaram,tornando‐searraiais e vilas capazes de prover, além das mercadorias, também asnecessidadesdareligiãoedajustiçadapopulação.Assimseconstitui,comextraordináriarapidez,abasedoqueviriaaserumavastaeprósperaredeurbana.

Os escravos das lavras viviam acumulados em choças levantadas nasvizinhanças, trabalhandosobestritavigilânciade fiscaise feitoresatentoscontraoextravioeatéadeglutiçãodaspepitasmaiorese, sobretudo,dosdiamantes.Gozavam,porém,

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de certas regalias em relação ao eito açucareiro, tendo condições decultivar seus roçados e, por vezes, de comprar a própria liberdade sealcançassem uma produção inusitada. Nesse mundo que requeria asaptidões técnicasmais variadas, muito negro habilidoso se fez artífice. Aeles se devem as primeiras fundições de ferro, indispensáveis nasminasparaofabricodoinstrumentaldetrabalho,paraferrarasmulasdastropaseasrodasdoscarros.

Naszonasdemineração,asociedadebrasileiraadquirefeiçõespeculiarescomoumdesdobramentodotroncopaulista,porinfluênciadosbrasileirosvindos de outras áreas e de novos contingentes europeus neleincorporados, e da presença de uma grande massa de escravos, tantoafricanos quanto nativos, trazidos das antigas zonas açucareiras. Oprincipal conformador dessa variante cultural foi a atividade econômicainicialdemineraçãoeariquezalocalqueelagerou,criandocondiçõesparaumavidaurbanamaiscomplexaeostentosaqueemqualqueroutraregiãodopaís.

Aaberturadasregiõesmineradorastevealgumasconseqüênciasexternasde importância capital, além das transladações de população. Ensejou atransferênciadacapitalcolonialdaBahiaparaoportodoRiode Janeiro ‐que era um arraial paupérrimo, como o velho São Vicente ‐, criando asbasespara a implantaçãode grande centro administrativo e comercial nacosta sul, em cujas imediações se desenvolveria um novo núcleo deeconomia agrária. Estimulou a expansão do pastoreio nordestino peloscampos são‐franciscanos e do Centro‐Oeste, assegurando‐lhe um novomercadoconsumidor,nomomentoemquedecaíaonordestino.Finalmente,possibilitouaocupaçãodaregiãosulina,conquistadapelospaulistascomadestruiçãodasmissõesjesuíticas‐,paraopastoreiodegadovacum,quesedispersara pelos campos, e, sobretudo, para a criação dos muares queabasteceriamos tropeiros, osquais faziam todoo transporte terrestredoBrasilcolonial.

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Dessemodo,amineração,ademaisderepresentarumanovaatividadedemaior rentabilidadeeconômicaqueasanteriores, ensejoua integraçãonasociedadecolonial,assegurando,assim,orequisitofundamentaldaunidadenacionalbrasileirasobreavastidãodoterritóriojádevassado.

Meio século depois da sua descoberta, a região dasMinas já era amaispopulosaeamais ricadacolônia, contandocomumaamplaredeurbana.Nas décadas seguintes, se ativaria comuma vida social brilhante, servidapormajestososedifíciospúblicos,igrejasamplasdeprimorosaarquiteturabarroca, casas senhoriais assobradadas e ruas pedradas engalanadas compontesechafarizesdepedraesculpida.

Desenvolveu‐se simultaneamente uma classe senhorial de autoridadesreaiseeclesiásticas,dericoscomerciantesemineradores,tantobrasileiroscomo reinóis, acolitada por um amplo círculo de militares de ofício,burocratas,ouvidores,contadores,fiscaiseescrivães.Dentrodessecírculo,todossedavamumtratocordialde"urbanidadesemafetação",segundoumtestemunhoeuropeu.OshomenslevavamjaquetasecalçasdeflanelapretadeManchester.Asmulheresdavam‐seao luxodeseguirmodas francesas.Faziamarquiteturaepinturadamaisaltaqualidade,criandoumavariantebrasileira do barroco; literatura lírica e até política libertária; liampensadoresrevolucionáriosecompunhammúsicaerudita,primorosamenteorquestrada.

A atividade mineradora, que mantinha esse fausto urbano, propicioutambémacriaçãodeumaamplacamadaintermediáriaentrecidadãosricoseospobrestrabalhadoresdaslavras.Eramartíficesemúsicos,muitosdelesmulatos e mesmo pretos, que conseguiam alcançar um padrão de vidarazoável e desligar‐se das tarefas de subsistência para só se dedicarem asuas especialidades. Para atender a esse grupo, fundam‐se suas própriascorporações de ofício, de molde português, que se tornam poderososnúcleosdedefesadosinteressesprofissionais,associando

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separadamenteosourives,ospedreiros,oscarpinteiros,osentalhadores,osferreiros,osartistas,escultores,pintoreseoutrosartífices.

Aatividadereligiosaregiaocalendáriodavidasocial,comandandotodaainteraçãoentreosdiversosestratossociais.Issosefaziaatravésdediversasirmandades organizadas por castas, que reuniam os pretos forros, osmulatos, os brancos, separando‐os em distintas agrupações mas tambémintegrando a todos na vida social da colônia. Cada umadelas tinha igrejaprópria, que era seu orgulho, cemitério privativo e direito a pompasfunerárias com a participação de seus clérigos e de seus músicosprofissionalizados.Os pretos também, inclusive os escravos, criaram suasprópriascorporações,devotadas,comoasoutras,aalgumsanto.ÉocasodosuntuosoSantuáriodoRosáriodosPretos,deOuroPreto.

Osustentodessapopulaçãourbanacrioucondiçõesparaosurgimentodeuma agricultura comercial diversificada, provedora de mantimentos, decarne, de rapadura, de queijos, de toucinho e muitos outros produtos.Pequena parcela da escravaria foi destinada a essesmisteres, dado o seuengajamentomaciçonamineração.Delesocupavam‐se,principalmente,osnegrosemulatos forroseosbrancosmaispobres, incapazesdeentrarnonegóciodaslavras,quejánãoeradesimplesbateação,masdemineraçãoedesmontedegrupiaras,exigindo,porisso,grandescapitais.

Lavrandoprincipalmente terraalheia,por forçadomonopólioque sobreelaexerciaagentefidalga,esseschacareirostrabalhavam,certamente,sobalgumregimedeparceria,comoosroceirosdaregiãoaçucareiradedicadosao provimento alimentar das vilas e cidades nordestinas. Abaixo dessesestratosintermediários,estavaacamadadosmulatosenegrosforrosmaishumildes, representados nas irmandades mais pobres mas, ao menos, aíintegrados.Eramosserviçaisdomésticosoutrabalhadores

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braçais, sobre cujos ombros recaíam as tarefas pesadas. Na base daestratificação,comoacamadamaisexplorada,semqualquerrepresentaçãooudireito, ficavaagrandemassaescravadetrabalhadoresdasminas,daslavouras e dos transportes. Todo um aparato ostensivo de repressãovigiava,emcadavila,aessesmiseráveis,paraprevenirasfugasdeescravos,a vadiagem dos forros que pudesse resultar em assaltos e, sobretudo, asrebeliões.

Asediçãosurge,porém,naprópriaclassealta,dequesedestacaumaeliteletradaquesepropõe formularepôremexecuçãoumprojetoalternativoaocolonialdereordenaçãodesuasociedade.Trata‐sedomaisousadodosprojetos libertários da história colonial brasileira, uma vez que previaestruturar uma república de molde norte‐americano que aboliria aescravidão, decretaria a liberdade de comércio e promoveria aindustrialização. A eclosão insurrecional deveria ter lugar em 1789,aproveitando a revolta dos "mineiros" contra a espoliação colonial,aumentadapornovastaxaçõesjáanunciadassobreumariquezaminguante.Foi a malchamada Inconfidência Mineira, que, apesar de fracassada porumadelação,nosrevelaovigordosentimentonativistanascenteetambémoamadurecimentodeumaideologiarepublicanacapacitadaparareordenarasociedadeemnovasbases.

Tiradentes, a figura principal da conspiração, ummilitar de ofício, tinhasempre em mãos um exemplar da constituição norte‐americana paramostrar como se devia e se podia reorganizar a vida social e econômicadepois da emancipação do jugo português. Presos por denúncia, todos osinconfidentes foram desterrados para a África, ondemorreram. Exceto opróprio Tiradentes, enforcado após três anos de cárcere e, depois,esquartejadoeexpostonoslugaresondeantesconspirara,paraescarmentodapopulação.

Depois de algumas décadas de exploração intensiva e desordenada,começamaesgotar‐seosaluviõesdeMinasGeraise,

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maistarde,osdeGoiásedeMatoGrosso.Osmineradoresvoltamàsvelhasparagens, relavando cascalho já trabalhado ou tentando lavrasabandonadas, por sáfaras. Tudo em vão; o ouro minguava e com ele asociedadefundadanadissipaçãodariquezafácil.Osmineradoresinsistiam,porém,labutandocomosescravosenvelhecidosquenãopodiamrenovareendividando‐se,maspersistindosemprepela incapacidadedesevoltarempara outra atividade. Seu problema era determinar que mercadoria sepodia produzir naqueles ermos montanhosos, como transportá‐la até acostadistanteeaquemvendê‐la,seoúnicomercadoricoforaodasminas,agoraempobrecidas.

Ao fim do século XVIII, a vida urbana ainda parecia ter viço pelo brilhoartístico que alcançara, pelo requinte que adquirira, pelos hábitosmundanosquecultivava.Masjáeramexpressõesdadecadência,quepoucodepois desapareceriam também, mergulhando a todos na pobrezaenvergonhada em que ainda vegetam osmineiros das antigas cidades doouroedodiamante.

NemPortugalconseguirareterariquezaportentosaquecarreara,criandocom ela novas fontes de produção. Um pacto de complementaridadeeconômicacomaInglaterra–TratadodeMethuen‐,queasseguravataxasmínimas ao vinho do Porto e ao azeite português em troca do livrecomércio dasmanufaturas inglesas, transferia quase todo o ouro para osbanqueiros londrinos.Oâmbitodessa transferênciapode ser avaliadoemdocumentação da época, que indica terem alcançado até 50 mil librassemanais os pagamentos portugueses em ouro pelas importações que oreinoeoBrasilfaziamaosindustriaisingleses.EsseourocontribuiriaparacustearasguerrascontraNapoleãoe,sobretudo,parafinanciaraexpansãodainfra‐estruturaindustrialdaInglaterra.

Comadecadênciadamineração,todaaáreasubmergenumaeconomiadepobreza, com a regressão cultural resultante. Os mineradores se fazemsitiantes,escondendonafazendaasuapenúria.

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O artesanato local de roupas rústicas e de utensílios volta a ganharterreno,ecomeleumaeconomiaautárquicaparasubsistência.Todavia,apresença de contingentes europeus e africanos integrados na sociedademineira permite explorar algumas técnicas, como a fundição de ferro, aedificação,acarpintariafina,aindústriadepanos,bemcomocertograudeerudição livresca que impediriam a sociedade mineira decadente deregrediràrusticidadedotroncopaulista.

Suavocaçãohistóricaseriaaindustrialização,paraaqualestavaquiçátãohabilitada como a colônia norte‐americana. Com efeito, somente aindustrializaçãopoderiaabrirnovoshorizontesdeocupaçãoprodutivaaoscapitais acumulados e, sobretudo, à massa antes engajada na mineração,queestiolavaagoranas cidadesdecadentesenos campospaupérrimos.Écertoqueaindustrializaçãoqueseprocessava,então,noscentrosreitoresda economiamundial envolvia conhecimentos técnicos que nemPortugaldominara,alémdeexigircontatosinternacionaiserecursosfinanceirosquetalvez excedessem as possibilidades de uma província colonial encravadano coração do continente. O obstáculo fundamental à realização dessedesígnio residia, porém, numa proibição expressa. Efetivamente, astentativas mineiras de instalar fábricas toscas pareceram à Coroa tãoatentatórias aos seus interesses que todas elas foram destruídas pelastropascoloniaisesedispôsem1785quejamaissetornassemalevantar.

Entrou,assim,emdesagregaçãoprogressivaaeconomiaeasociedadequeedificara nas regiõesmineiras seus arraiais e cidades, formando omaiorconglomerado demográfico e a maior rede urbana da colônia. Antigosmineradores e negociantes se transformam em fazendeiros; artesãos eempregadosse fazemposseirosdeglebasdevolutas.Citadinosruralizadosespalham‐se pelos matos, selecionando as terras já não pela riquezaaurífera,masporsuasqualidadesparamoradiaecultivo.Fazem‐se

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roceiros de lavouras de subsistência, criadores de gado, de cavalos, deburrosedeporcos,espraiando‐sepelasvastidõesdosvalesquedescemeseabremdasserraniasondeseexploravaoouro.

Buscando manter sua procedência social, muitas parentelas antes ricas,mas de bens minguantes, emigraram com sua escravaria para sesmariasconseguidas em territórios ermos. Aí reconstituem núcleos de vidaautárquica, novamente orgulhosos de só depender do comércio para oprovimentodosal,malescondendo,atrásdessavaidade,a suapenúria.Onúcleo fidalgo destas parentelas continuava cultuando certa erudição. Ospais ensinavam a ler e a escrever aos seus filhos varões, iniciando‐os àsvezesemrudimentosde latimede literaturaclássica.Mesmoascamadaspopulares mantêm, por algumas décadas, nesses núcleos de citadinosruralizados, certos traços culturais de extração urbana européia, como amúsica erudita. Ainda no século XIX, músicos afeiçoados a quartetos decorda surpreendem o sábio alemão Karl von Martius, que atravessava aregião, comconvitespara tertúliasdepurogosto fidalgo,emplenosertãomineiro.

Avidacitadinasedeteriora,conformandocidadesmortas,cujascasassãovendidas por preços muito inferiores ao que custaria edificá‐las; cujocomércio,instaladoemlojasenormes,temasprateleirasvazias;cujagentecadavezmaissovinavivedecréditosecalotes, só luzindooantigobrilhonasprocissõesreligiosas,organizadasaogostoantigo,emquetodostrajamaúnica surrada roupadomingueira. Esta é aMinasGerais dadecadência:conservadora,reservada,desconfiada,taciturnaeamarga.Aatividademaisrendosa, porque a única paga em dinheiro, virá a ser a burocraciasobreviventedeunspoucoscargospúblicos,disputadospelamelhorgente.

Esgotado o impulso criador dos bandeirantes que se fizeram mineiros,todaaeconomiadavastapopulaçãodoCentroSulentraemestagnação.

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Mergulhanumaculturadepobreza,reencarnandoformasdevidaarcaicadosvelhospaulistasquesemantinhamemlatência,prontasaressurgircomumacrisedosistemaprodutivo.Apopulaçãosedispersaesesedentariza,esforçando‐se por atingir níveis mínimos de satisfação de suasnecessidades.

Oequilíbrioéalcançadonumavariantedaculturabrasileirarústica,quesecristaliza como área cultural caipira. É um novo modo de vida que sedifunde paulatinamente a partir das antigas áreas de mineração e dosnúcleosancilaresdeproduçãoartesanaledemantimentosquea supriamde manufaturas, de animais de serviço e outros bens. Acaba poresparramar‐se,falandoafinalalínguaportuguesa,portodaaáreaflorestalecamposnaturaisdoCentro‐Suldopaís,desdeSãoPaulo,EspíritoSantoeestado do Rio de Janeiro, na costa, até Minas Gerais e Mato Grosso,estendendo‐seaindasobreáreasvizinhasdoParaná.Dessemodo,aantigaáreadecorreriasdospaulistasvelhosnapreiadeíndiosenabuscadeourose transforma numa vasta região de cultura caipira, ocupada por umapopulaçãoextremamentedispersaedesarticulada.Emessência,exauridoosurto minerador e rompida a trama mercantil que ele dinamizava, apaulistâniase"feudaliza",abandonadaaodesleixodaexistênciacaipira.

Oúnicorecursocomquecontaessaeconomiadecadentesãoasenormesdisponibilidades de mão‐de‐obra desocupada e de terras virgensdespovoadasedesprovidasdequalquervalor,queosmaisabonadosobtêmpor concessão em enormes sesmarias e os mais pobres e imprevidentesapenas ocupam como posseiros. Com essa base se instala uma economianatural de subsistência, dado que sua produção não podia sercomercializada senão em limites mínimos. Difunde‐se, desse modo, umaagriculturaitinerante,aderrubarequeimarnovasglebasdemataparacadaroçadoanual,combinadacomumaexploraçãocomplementar

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dasterras,dasaguadas,dasmatas,atravésdacaça,dapescaedacoletadefrutos e tubérculos. Sem nada vender, nada podiam comprar, voltando àvidaautárquicadeeconomiaartesanaldomésticaquesatisfazia,nosníveispossíveis,àsnecessidadescomprimidasalimitesextremos.

Essasnovas formasdevida importaramnumadispersãodopovoamentopor grandes áreas, com o distanciamento dos núcleos familiais. Nãoimpuseram, porém, uma segregação, porque novas formas de convíviointermitenteforamestruturandoasvi‐zinhasemunidadessolidárias.Assimse formaram os bairros rurais, definidos por um informante de Melo eSouza(1964)comonaçãozinhasougruposdeconvíviounificadospelabaseterritorial em que se assentarti, pelo sentimento de localidade que osidentifica e os opõe a outros bairros, e pela participação em formascoletivasdetrabalhoedelazer.

Para essas populações rarefeitas, que, via de regra, só contavam para oconvíviodiário comosmembrosda família, assumem importância crucialcertas instituições solidárias que permitem dar e obter a colaboração deoutros núcleos nos empreendimentos que exigemmaior concentração deesforços.Aprincipaldelaséomutirão,queinstitucionalizaoauxíliomútuoe a ação conjugada pela reunião dos moradores de toda uma vizinhançaparaaexecuçãodastarefasmaispesadas,queexcediamdaspossibilidadesdosgruposfamiliares.Assim,osmoradoresdeumbairrosucessivamentesejuntamparaajudaracadaumdelesnaderrubadadamataparaoroçado,para o plantio e a limpeza dos cultivos, bem como para a bateação dassafras de arroz e de feijão e, eventualmente, para construir ou consertarumacasa,refazerumaponteoumanterumaestrada.Semprequeatarefainteressava imediatamente a um dos moradores, cumpria a este proveralimentaçãoe,aofimdostrabalhos,oferecerumafestacommúsicaepinga.Assim,omutirãosefaznãosóuma

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formadeassociaçãoparao trabalho,mas tambémumaoportunidadedelazerfestivo,ensejandoumaconvivênciaamena.

Asvizinhançasmaissolidáriasorganizam‐se,ainda,emformassuperioresde convívio, como o culto a um santo poderoso, cuja capela pode serorgulho local pela freqüência com que promove missas, festas, leilões,sempreseguidosdebailes.Cadanúcleo,alémdaproduçãodesubsistência,que absorve quase todo o trabalho, produz uns poucos artigos para omercado incipiente, como queijos, requeijões e rapaduras, farinha demandioca, toucinho, lingüiça, cereais, galinha e porcos. A eles seacrescentam os panos de algodão grosseiro, de fabrico doméstico, quechegamaservircomounidadedetrocanessaeconomianãomonetária.

A população caipira, integrada em bairros, preenche desse modo suascondiçõesmínimasdesobrevivência.Osquesedesgarramdesseconvívio,penetrando sós nos sertõesmais ermos, estão sempre ameaçados de cairemanomia,sendoolhadosportodoscomogenterara,suspeitadeincestoedetodasasformasdealienaçãocultural.

Avidaruralcaipira,assimordenada,equilibrasatisfatoriamentequadrasdetrabalhocontinuadoedelazer,permitindoatenderàscarênciasfrugaiseaté manter os enfermos, débeis, insanos e dependentes improdutivos.Condiciona, também, o caipira a um horizonte culturalmente limitado deaspirações,queofazparecerdesambiciosoeimprevidente,ociosoevadio.Na verdade, exprime sua integração numa economia mais autárquica doque mercantil que, além de garantir sua independência, atende à suamentalidade, que valoriza mais as alternâncias de trabalho intenso e delazer,naformatradicional,doqueumpadrãodevidamaisaltoatravésdoengajamentoemsistemasdetrabalhorigidamentedisciplinado.

Só nessas condições de recessão econômica é que a população branca emestiçapobreeosmulatoslivrestêmacessoàterra.

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Não por uma renovação institucional que garanta a propriedade dosposseiros,massimplesmenteporque,quebradososvínculosmercantispelainexistência de ummercado comprador, deixaria temporariamente de tersentidoomonopóliodaterracomomecanismoadicionaldeconscriçãodaforçadetrabalhoparaaslavourascomerciais.

A liberdade incidentaldessaexistênciaautárquicadurariapouco,porquelogo surgiria outra forma de viabilização da economia de exportaçãoatravésdagrandelavourae,comela,aproscriçãolegal(1850)doacessoàpropriedade da terra pela simples ocupação e cultivo, através daobrigatoriedadedacompraoudeformasdelegitimaçãocartorialdaposse,queeraminacessíveisaocaipira.

Comefeito,passadasasdécadasdemaiorrecesso(1790a1840),surgemese expandem novas formas de produção agroexportadora, dando início aum lento processo de reaglutinação das populações caipiras em baseseconômicas mercantis. Tal se dá com o surgimento de novos cultivoscomerciaisdeexportação, comooalgodãoeo tabacoemais tardeo café,quereativariamasregiõescaipiras.Asestradasmelhorameserefazemossistemas de transporte por tropas. Simultaneamente, uma reordenaçãoinstitucional se vai implantando no nível civil e no eclesiástico: asvizinhançasse transformamemdistritos,osarraiaisemcidades,providasjá de certo aparato administrativo que entra a examinar a legalidade dasocupações de terras. A religiosidade espontânea se institucionaliza com aereçãodefreguesiase,depois,deparóquiascomvigáriospermanentes.Porfim,umpoderestatalseinstala,comserviçosdepolícia,quesecapacitamaacabar com o banditismo espontâneo e a soldo, que se generalizara,aliciandoaventureirosevadios.

Essapenetraçãodopoderpúbliconãosefaz,porém,comoumaextensãodajustiçaoucomoumagarantiadebemcomum.

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OEstadopenetraomundocaipiracomoagentedacamadaproprietáriaerepresentaparaele,essencialmente,umanovasujeição.Desdeentão,torna‐se imperativo para cada pessoa colocar‐se sob o amparo de um senhorioquetenhavozfrenteaonovopoderparaescaparàsarbitrariedadesdeque,doravante, está ameaçada. Para isso se fará compadre, ou foreiro, ousequaz,oueleitor ‐geralmentetudo isto ‐,dequemlhepossaasseguraraproteçãoindispensável.

Assim, o domínio oligárquico que remonopolizava a terra e promovia odesenraizamento do posseiro caipira, com a ajuda do aparelho legaladministrativoepolíticodogoverno,ganhaforçaecongruência,passandoaexigir também as lealdades do caipira. Tal como ocorre ao sertanejo, seupavormaior será doravante ver‐se desgarrado, sem um senhor poderosoque se interponha, se necessário, entre ele e essa ordem impessoal,antipopular,todo‐poderosa,queavançasobreoseumundo.

O fator básico dessa reordenação social e econômica era orestabelecimento do sistema mercantil e com ele a valorização daspropriedades.Desencadeia‐se adisputapelas terrasdemelhorqualidade,próximasdas redesde transporte,utilizáveisparaas lavourascomerciais,cadavezmaisamplas,dealgodãoedetabacoeparaasnovaslavourasdecafé, que começam a difundir‐se. Nesse processo os cartórios se ativampara avalizar títulos de velhas sesmarias, verdadeiros ou falsificados,promovendoodesalojamentodeantigosposseiros.

Todoumaparatojurídicocitadinosecolocaaserviçodessaconcentraçãode propriedade. Propriedades pulverizadas por efeito de herançassucessivasdefamíliasextensassereconstituemporcompradasparcelasdeexploração inviável. Entram em ação os demarcadores de glebas a sefazerem pagar em terras pelos que não têm dinheiro. Multiplicam‐se osgrileiros,subornando juízeserecrutandoas forçaspoliciaisdasvilasparadesalojar famílias caipiras,declaradas invasorasde terrasemque sempreviveram.Postasforadaleiesubmetidasàperseguição

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policial, elas são, finalmente, escorraçadas das terras à medida que suaexploraçãocomercialsetornaviável.

Comocrescimentoprodigiosamenterápidodasculturasdecafé,seaceleraesseprocessodereordenaçãosocial.Ocaipiraécompelidoaengajar‐senocolonato,comoassalariadorural,ouarefugiar‐senacondiçãodeparceiro,transferindo‐se para as áreas mais remotas ou para as terras cujosproprietáriosnão têm recursospara explorarosnovos cultivos.O caipiraapega‐se a essa saída com todas as suas forças, procurando tornar‐separceiro,comomeeiro,financiadopeloproprietárioaquementregametadeda produção; ou como terceiro, trabalhando por conta própria, maspagandopelodireitoaousodaterraumterçodascolheitas.

Essacondiçãolhepermitepreservaraautonomianamarcaçãodoritmodetrabalhoelhedácondiçõesdemantersuasformasglobaisdeadaptaçãoedevida.Assegura‐lhe,ainda,umstatusdequaseproprietário,assimtratadopelosvendeiros,medianteagarantiadecrédito,decolheitaacolheita,quenãoédadoaotrabalhadorassalariado.

A implantação do novo sistema produtivo se processa gradativamente,admitindo,poralgumtempo,acoexistênciadaslavourascomerciaiscomaparceriatradicional.Istoporqueocarátermercantildaproduçãosóafetavainicialmente a atividade produtiva central do proprietário, que nãoabsorvia todas as terras, e até se conciliava bem com a presença de umareserva demão‐de‐obra na própria fazenda, aliciável para as tarefas queexigiammaiornúmerodetrabalhadores.

Aospoucos,porém,onovosistemaganhaforçaecongruência,indobuscaredesalojarocaipiraemqualquerermoemqueseembrenhe,pelaexpansãocontínua das áreas ocupadas pela economia de fazenda, obrigando‐o arenovar sua opção entre o engajamento como assalariado rural ou novosdeslocamentos,àprocuradeáreasmaisatrasadas,aindacompatíveiscomaparceria.Aprópriaparceriasevaitornandomenossatisfatória,confinada

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às terras mais pobres e mais distanciadas do mercado e onerada comnovas exigências. Dentre elas o cambão, forma de corvéia que obriga ocaipiraesua famíliaadardiasde trabalhogratuitoaoproprietárioediassuplementaresporcadaanimaldemontariaquepossua.

Apesarde todosessesóbices,ocaipiraespoliadodesuaspropriedadesesucessivamenteexpulsadodesuaspossescontinuaresistindoasubmeter‐seaoregimedefazenda.Todaasuaexperiênciaofazidentificarotrabalhode ritmo dirigido como uma derrogação de sua liberdade pessoal, que oconfundiriacomoescravo.Mesmodepoisdeabolidaaescravidão(1888),permanece esse critério valorativo, que considera humilhante o trabalhocom horário marcado por toque de sino e dirigido por um capatazautoritário. O caipira se marginaliza, apegando‐se a uma condição eindependência inviável sem a posse da terra. Assim é que, apesar daexistênciademilhõesdecaipirassubocupados,osistemadefazendastevedepromover,primeiro,umaintensificaçãodotráficodenegrosescravosedeapelar,depois,paraaimigraçãoeuropéiamaciça,quecolocamilhõesdetrabalhadoresàdisposiçãodagrandelavouracomercial.

Confinadonasterrasmaissáfaras,enterradonasuapobreza,ocaipiravê,impassível, chegarem e se instalarem, como colonos das fazendas,multidões de italianos, de espanhóis, alemães ou poloneses parasubstituíremonegronoeito,aceitandoumacondiçãoqueelerejeita.Essanovamassavinha,porém,develhassociedades,rigidamenteestratificadas,queadisciplinaraparaotrabalhoassalariado,evianacondiçãodecolonoum caminho de ascensão que faria dela talvez, um dia, pequenosproprietários. O caipira, despreparado para o trabalho dirigido,culturalmente predisposto contra ele, desenganado, desde há muito, detornar‐seproprietário,resistenoseuredutodeparceiro,queé

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paraeleacondiçãomaispróximadoidealinatingíveldegranjeiroemterraprópria.

AspáginasdeMonteiroLobatoquerevelaramàscamadascultasdopaísafigurado JecaTatu, apesar de sua riquezade observações, divulgamumaimagem verdadeira do caipira dentro de uma interpretação falsa. Nosprimeirosretratos,Lobatoovêcomoumpiolhodaterra,espéciedepragaincendiáriaqueatiçavafogoàmata,destruindoenormesriquezasflorestaispara plantar seus pobres roçados. A caricatura só ressalta a preguiça, averminoseeodesalentoqueofaziamrespondercomum"nãopagaapena"aqualquerpropostadetrabalho.Descreve‐oemsuaposturacaracterística,acocoradodesajeitadamentesobreoscalcanhares,apuxarfumaçadopito,atirando cusparadas para os lados. Quem assim descrevia o caipira era ointelectual‐fazendeiro da Buquira, que amargava sua própria experiênciafracassadadeencaixaroscaipirasemseusplanosmirabolantes.

O que Lobato não viu, então, foi o traumatismo cultural em que vivia ocaipira, marginalizado pelo despojo de suas terras, resistente aoengajamento no colonato e ao abandono compulsório de seu modotradicional de vida. É certo que, mais tarde, Lobato compreendeu que ocaipira era o produto residual natural e necessário do latifúndioagroexportador.Jáentãopropugnando,eletambém,umareformaagrária.

O sistema de fazendas, que se foi implantando e expandindoinexoravelmentepara a produçãode artigosde exportação, cria umnovomundonoqualnãohámaislugarparaasformasdevidanãomercantisdocaipira, nem para a manutenção de suas crenças tradicionais, de seushábitos arcaicos ede suaeconomia familiar. Comadifusãodesse sistemanovo,ocaipiravêdesaparecerem,porinviáveis,asformasdesolidariedadevicinaledecompadrio,substituídasporrelaçõescomerciais.Vêdefinharas

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artesartesanais,pelasubstituiçãodospanoscaseirosportecidosfabris,e,comelas,osabão,apólvora,osutensíliosdemetal,quejáninguémproduzemcasaedevemsercomprados.

A ocupação agrícola das terras, o cercamento dos latifúndios comaramados, a expansão dos pastos e a presença do gado, mudando ascondiçõesecológicas,tornamimpraticáveisacaçaeapesca.Assim,perdeocaipiraumcomplementoalimentarbásicoquepermitiamelhorarsuadietafrugalecarente.Aofimdoprocessodeimplantaçãodosistemadefazendas,mesmonosermosondeseacoitara,fugindoaoengajamentocompulsório,ocaipiratentamanterumacondiçãotornadaobsoletaeinviável.

O golpe derradeiro na vida do caipira tradicional, que acaba pormarginalizá‐lodefinitivamente,sedácomaampliaçãodomercadourbanodecarne,quetornaviávelaexploraçãodasáreasmaisremotasedeterraspobres ou ricas para a criaçãodo gado.Apartir de então, a cada roçadecaipiraaindaconsentidaparaderrubaramataouparadesbastarcapoeirasse segue o plantio de capim e a desincorporação automática da área dosistema antes prevalecente, para devotá‐la ao pastoreio. As antigaspropriedades latifundiárias,que se faziamautárquicas como concursodeaglomeradosdecaipirasestruturadosembairros,vãosendodespovoadasdegenteparaencher‐sedegado.Nessas fazendasdecriação,umaparcelaínfima de trabalhadores substitui, como vaqueiros, a antiga populaçãoresidente que se vê, assim, expulsa. O novo procedimento, estando aoalcanceatémesmodos latifundiáriosmenosprovidosderecursos,porqueutiliza o próprio caipira e até a parceria para liquidar com ele, importanumalimitaçãoprogressivadasterrasdisponíveisparaotrabalhoagrícola.

Massasdecaipirassão,assim,obrigadasanovasopções.Agora jánãoseoferecenemmesmoaoportunidadedeengajar‐senocolonato.Trata‐sedeescolher entre permanecer naprópria parceria, tornadaprecaríssima, emqueaindasubsiste;mergulhar

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no mundo dos posseiros invasores de terras alheias; concentrar se nosterrenos baldios como reserva de mão‐de‐obra para servir às fazendasdespovoadas,nasquadrasdetrabalhointenso;ou, finalmente, incorporar‐seàsmassasmarginaisurbanascomoaspiranteàproletarização.

Asinstituiçõesbásicasdaculturacaipiradesintegraram‐seaoimpactodaondarenovadorarepresentadapelasnovasformasdeproduçãoagrícolaepastoril de caráter mercantil. Foram destruídas, porém, sem que seensejasseaosagregadosruraisformascompensatóriasdeacomodaçãoquelhesgarantissemum lugareumpapelnanovaestrutura.Essepapel teriasidosuaintegraçãonacategoriadepequenosproprietáriosque,talvez,lhespermitisse incorporar as inovações tecnológicas, alargando as suasaspirações à medida que se integrassem na economia nacional. Omonopólioda terra, fundadonodomíniodocentrodopoderpolíticopelaoligarquiaagrícola,obliterouessecaminho.

Uma comunidade caipira que conserva as formas tradicionais desociabilidade é, hoje, uma sobrevivência rara, confinada às áreas maisremotas emenos integradas no sistemaprodutivo. Todavia, o número detrabalhadores autônomos rurais, em sua enorme maioria parceiros epequenos arrendatários, supera 5milhões. Já não são aqueles caipiras demodosde existência arcaica e pobremas satisfatória, a seupróprio juízo.Constituemumavastacamadamarginalàestruturaequesuportaasmaispenosas condições de vida, ainda inferiores aos mínimos quaseincomprimíveisdaeconomiacaipira.Emuitopiores,porquesubsistemfaceafacecomcondiçõessuperioresdevida,dequetêmnotíciaouquepodemapreciarequeatuamcomoideaisconformadoresdesuasaspirações.É‐lhesimpossível, todavia, integrar‐se nesses novos estilos de consumo, pelaestreiteza da própria estrutura social emque estão inseridos, fundadanapropriedade latifundiária, incapaz de melhorar as condições de vida damassadeparceirose,também,deincorporá‐losnotrabalhoassalariado.

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Caem,assim,nacondiçãodetrabalhadoreseventuais,osbóias‐frias.

Arapidezcomque,emdiversasregiões,nosúltimosanos,osparceirosseinteressaram pelomovimento de sindicalização rural, antecipando‐se aosnúcleos de assalariados agrícolas, indica, de um lado, sua independênciamaior e sua capacidade de conduta autônoma e, de outro, o grau deconscientizaçãodesuaprópriamisériaederevoltacontraaordemsocialque a sustenta. Essamole demilhões de caipiras, que são os verdadeiroscamponesesdoBrasil,porquereivindicantessecularesdapossedasterrasque trabalham,estácomoqueàesperadosurgimentodas formasde lutaque,exprimindosuainconformidade,desencadeiemarebeliãorural.

Osistemadefazendasalcançou,comaimplantaçãodasgrandeslavourasde café, umnovo auge só comparável ao êxito dos engenhos açucareiros.SeuefeitocrucialfoireviabilizaroBrasilcomounidadeagroexportadoradomercado mundial e como um próspero mercado importador de bensindustriais. Outro efeito da cafeicultura foi modelar uma nova forma deespecializaçãoprodutivaeconfigurarumoutromododeserdasociedadebrasileira. Culturalmente, a nova feição é basicamente caipira.Mas a essamatriz se acrescentam outras dimensões pela incorporação, na primeirafase, de uma grande massa escrava e, mais tarde, da contribuição deimigrantes europeus, integrados maciçamente no colonato. A essasmatrizes se somariam, ainda, elementos tomados de outras variantesculturaisbrasileiraspelaconvergênciaparaasfazendasdegentevindadasdiversasregiõesdopaís.

O cultivo do café, que se praticava um pouco por todo o Brasil, comoraridade e para consumo local, ganha significação econômica com asprimeirasgrandeslavourasplantadasnazona

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montanhosa próxima ao porto do Rio de Janeiro. O sucesso dasexportações ‐ que crescem de 3178 sacas, na década de 1820, a 51631sacas,nadécadade1880‐promoverapidamenteonovocultivoàliderançaem que se manterá, daí em diante, como a atividade econômicafundamental do Brasil, passando de 18, 4 por cento do valor dasexportações,naprimeiradascitadasdécadas,a61,5porcento,naúltima.Para implantar o empreendimento cafeeiro contava‐se com abundantedisponibilidade de terras apropriadas e de mão‐de‐obra escravasubutilizada desde a decadência da mineração e, ainda, com um sistemaadequadodetransporteedecomercialização.

O modelo empresarial que primeiro se impõe é a fazenda escravocrata,que tem de comum com o sistema de plantação açucareira a grandeextensão territorial, o alto grau de especialização e de racionalização dasatividades produtivas, o caráter mercantil do produto que exporta e anecessidadede concentrarnas fazendasgrandes contingentesdemão‐de‐obraservil,rigidamentedisciplinada.Exigetambémenormesinvestimentosfinanceiros, sobretudo para a aquisição de terras que se valorizamrapidamenteeparaacompradaescravariaesuareposição,umavezqueassingelas instalações de beneficiamento são construídas nas própriasfazendas. O cafezal, como um plantio permanente, demanda grandeconcentração de mão‐de‐obra na etapa preparatória da derrubada dasmatasedecuidadosespeciaisnosprimeirosquatroanos.Daíemdiante,sóreclamagrandequantidadedemão‐de‐obraporocasiãodacolheita.

Nessas circunstâncias, a fazenda escravocrata conta sempre com umexcedente de trabalhadores utilizado nas tarefas de subsistência e noartesanato.Estrutura‐seassim,comograndeunidadeautárquica,emqueaatividade agrícola‐mercantil é cercada por uma série de atividadesancilares,cujopessoalsemobilizatodoparaacolheita.

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As fazendas escravocratas de café da área montanhosa fluminensealcançaramlogoovaledoParaíbae,daí,seirradiaram,progressivamente,para as matas de Minas Gerais, do Espírito Santo e de São Paulo,principalmente. Asmaiores delas eram comunidades de quinhentas até 2mil pessoas, sobretudo escravos, que produziam quase tudo queconsumiam,desdearoupadaescravaria,ascasas,osmantimentos,atéasinstalações e o mobiliário da própria fazenda. Mas também adquiremmuitosbensindustriais,tantoparaoconsumodosfazendeiroscomoparaotrabalho.

O recrutamento da força de trabalho servil para a cafeicultura se fez,primeiro,regionalmente,comaaquisiçãodosnegrosexcedentesdaszonasde mineração. O sucesso do empreendimento permitiu, a seguir, apromoção de uma verdadeira drenagem de escravos de outras áreasdecadentes,comoosalgodoaismaranhenseseosengenhosaçucareiros.Atudo isso se acrescenta, depois, a importação direta de cerca de meiomilhãodeafricanos.Apesardessessuprimentos,asfazendasdecaféviviamemcarênciapermanentedemão‐de‐obra,emvirtudedeseuritmointensodeexpansãoededesgastedaescravarianoeito,expressivodascondiçõesmiseráveis de vida e de trabalho a que eram submetidos.Nos cinco anosimediatamente anteriores à proibição do tráfico (1850), entramoficialmente nos portos brasileiros cerca de 250 mil escravos africanos,cujopreçoseriaaproximadamentede15milhõesde librasesterlinas,queequivaliamamaisde36porcentodovalordasexportações.

Nessa fase,oproprietárioresidena fazenda,compondoomesmoquadrocontrastante do Nordeste açucareiro, representado pela oposição entre avivenda senhorial e a senzala. Faz‐se servir, também, de numerosacriadagem doméstica a que acrescenta, por vezes, preceptores europeusparaaeducaçãodosfilhosnaprópriafazendaepadresresidentesparaosserviçosreligiosos.

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Apartirdasegundametadedoséculopassado,quandoocaféjádominaaeconomia brasileira, os cafeicultores se constituem numa oligarquianacional cada vez mais poderosa. Faz‐se mais autêntica e forte que aaçucareira, porque domina todo o complexo econômico do café, desde oplantio à exportação, enquanto aquela sempre permaneceu submetida aocontroledopatronatoparasitáriodeexportadorese,sobretudo,porquesecapacita, prontamente, a utilizar o poder político na defesa de seusinteresseseconômicos.

A proximidade da Corte imperial facilitava, também, o exercício dessainfluência,queacabasetornandohegemônica.

Nessacamadasenhorialhegemônicaéqueo impériobrasileiroprocuroufundar a nobreza que o sustentaria, distribuindo títulos nobiliárquicos erecrutando nela os chefes de gabinete e ministros de Estado. Oscafeicultores tornam‐se, assim, os barões, viscondes, condes emarquesesdoImpério,contrapartefidalgadosistemaescravocrata,conscientedequenão sobreviveria à abolição, como efetivamente ocorreu quando esta setornouinevitávelpelapressãodaopiniãopúblicacitadina.

Aabolição,representandoemboraasimplesdevoluçãodoescravoàpossede si mesmo, importava em dois efeitos econômicos cruciais e nas maisprofundasconseqüênciassociais.Noplanoeconômico,expropriaaparcelamaiordecapitaldaprincipalclasseproprietária,arruinando‐a,eacompeleaumamaisamplaredistribuiçãodarendacomaremuneraçãodotrabalhoatravés do salário. A ruína financeira dos barões do café provoca umaabrupta substituição de proprietários dos cafezais com conseqüênciaspositivas para o sistema econômico global, dadas as característicasmodernasdonovoempresariadoeavantagemquerepresentariaparaelenãoterqueinvestirrecursosnacompradeescravos.Osegundoefeitoteveconseqüências sociais mais profundas, pela elevação que propiciaria doníveldevidadaspopulações,

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principalmente nos setores emque havia disputa demão‐de‐obra, comoera o caso da cafeicultura. Para o escravo, a abolição representou aoportunidade de exercer opções sobre o seu destino e de reconquistar adignidadehumanaeoauto‐respeitodequeforadespojado.Essaliberdadeseria,porém,limitadapelomonopóliodaterra,queoobrigariaaengajar‐seno serviço de algum proprietário e ater‐se ao subconsumo a que sempreestiverasubmetido.

Comefeito,onegroescravoforacondicionado,portodaasuaexperiênciaanterior, a lutar contra o seu desgaste no trabalho, do qual procurou sepoupar de todos osmodos, comomedida elementar de autopreservação.Fora igualmente habituado a uma dieta frugalíssima e a possesmínimas,quesereduziamaostraposquetraziasobreocorpo.Efora,ainda,reduzidoa si mesmo, como indivíduo, pela impossibilidade de manter vínculosfamiliares, jáquesuasmulhereseramtambémcoisasalheiaseseus filhosigualmentepropriedadedoamo.

Com as motivações elementares decorrentes desse condicionamento onegroforroiniciasuaintegraçãonopapeldetrabalhadorlivre.Suareaçãoinevitável é reduzir as obrigações de trabalho disciplinado ao mínimoindispensável para prover suas elementaríssimas necessidades. Nessascondições, nenhum estímulo representado pela elevação do ganho oatingirá.Ovalorfundamentalquecultuaéoócioearecreação.Seuníveldeaspirações fora entorpecido pela inculcação de valores que limitavam aoextremoonúmerode coisasdesejáveiseapropriadasà condiçãohumanaque ele se atribuía. A construção de uma outra auto‐imagem só seriaalcançada nas gerações seguintes, que, crescendo livres, se fariamprogressivamente mais enérgicas e ambiciosas. Assim, o negro retoma otrabalho no eito como assalariado livre para exercê‐lo com eficácia aindamenordoqueaquealcançaracomoescravo.Equandoseencontrapróximoaáreasdeterrasdesocupadaspreferecaipirizar‐se,integrandoum

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núcleo de economia de subsistência, a engajar‐se na condição deassalariadoruralpermanente.

Alarga‐se, por esse processo, com a abolição, a camada marginalabsenteísta que refuga o trabalho nas fazendas. Aos caipiras originais,brancos e mulatos, por vezes ex‐proprietários ou posseiros, pleiteanteseternamenteinsatisfeitosdasterrasemquetrabalham,sesomaessanovacamada de marginalizados. Esses, em condições ainda mais precáriasporque, em lugar de reivindicar a posse da terra e uma condição dedignidadesuperioràdocolono,oquedesejamésimplesmentesobreviver,atendendo a seu horizonte limitadíssimo de aspirações. Nessascircunstâncias, ao engrossarem a massa marginal, esses contingentesnegros alforriados se constituemnum subproletariado que, além demaismiserável, se veria segregado da primeira, predominantemente branca emestiça,pelopreconceitoracialquedificultaráatomadadeconsciênciadetodoselessobreaexploraçãodequeunseoutroseramobjeto.

Aabolição,seguidadoregimerepublicanoqueliquidacomaescravidãoecom a fidalguia, não abala, porém, o reinado do café, que se faz cada vezmaispoderoso.Éregido,agora,porcafeicultoresquese fazemosgrandespróceres republicanos e por um novo sistema de trabalho que se iráaproximando paulatinamente do assalariado. É a cafeicultura do colonatoqueseencaminhaparaamonoculturaesefundanumadivisãodetrabalhonaqualoscuidadosagrícolasnaplantaçãosãoentreguesprincipalmenteaimigrantes.europeuseasoutrastarefasatrabalhadoreseventuais,deforada fazenda. A derrubada damata para o plantio de novos cafezais fica acargo de grupos móveis especializados que trabalham, geralmente, porempreitada com mão‐de‐obra ex‐escrava ou de antigos parceiros. Acolheita, exigindo maior concentração de trabalhadores faz‐se, também,com a ajuda de estranhos aliciados nas mesmas fontes, que acabam porestabelecer‐se nas vizinhanças das fazendas como reservas de mão‐de‐obra.

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AsnovasfazendasjáseabremnazonadematasdointeriordeSãoPaulo,sendo por vezes antecipadas pelos trilhos das estradas de ferro que lhesabrem caminho rumo a oeste. A introdução do trabalhador europeu nasfazendas de café foi um processo lento, alcançado pela pertinácia decafeicultores empenhados na solução de seu maior problema: a falta demão‐de‐obra, agravada primeiro pela proibição do tráfico e depois pelaabolição.Asprimeirastentativasqueprocuravamsujigaroimigranteaumsistemarenovadodavelhaparceriaprovocaramreclamaçõesconsulareseescândalos na imprensa européia, a que os brasileiros são especialmentesensíveis. Eram prematuras, porque, apesar das condições de penúriaprevalecente na Europa, o imigrante não aceitava a coexistência com oescravo. Somente após a abolição, estabeleceu‐se uma onda regular eponderáveldeprovimentodemão‐de‐obraeuropéia,que,emfinsdoséculopassado, atingia a 803mil trabalhadores, sendo 577mil provenientes daItália.

Essadisponibilidadedemão‐de‐obraeuropéiacorrespondiaàmarchadocapitalismo‐industrial que ia desenraizando dos campos e lançando àscidadesmais gente do que as fábricas podiamocupar. Cada país europeuatingido pelo processo exportava milhões de pessoas. Primeiro emigramdasIlhasBritânicas;depoisdaFrança,maistardedaAlemanha,edaItália;por fim da Polônia, da Rússia e de países balcânicos. Dá‐se, assim, umaofertade trabalhadoreseuropeusmaisbarataqueosescravosafricanosetambémmaiseficazesporsuaadaptaçãoaosnovosregimesprodutivos.

Seu ingresso no mercado de trabalho brasileiro além de representar asoluçãosalvadoradosproblemasdacafeiculturateveváriosoutrosefeitos.Entreeles,odefatordissuasóriodalutasilenciosaeincruentaquecaipirasenegrosforrostravavam

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pelaconquistadacondiçãodegranjeiros.Odedesvalorizarotrabalhadornacional, que, em face da disponibilidade dessa força de trabalho maisqualificada, perde na competição e se vê impedido de galgar aos poucospostos mais bem remunerados que o sistema criaria. Finalmente, o deorientar para os seringais da Amazônia o translado de sertanejosnordestinos,porquesuarotanatural,queseriaamarchaparaosul, sevêobstruídapelasaturaçãoporimigranteseuropeusdabuscadebraçosparaa grande lavoura. Outro resultado dessa incorporação maciça detrabalhadoresestrangeirosfoiaderetardaraproletarizaçãoeconseqüentepolitização como operários fabris dos antigos caipiras e dos ex‐escravos,que só teriam oportunidade de ascender aos setores mais dinâmicos daeconomiamodernizada depois de esgotada a disponibilidade de mão‐de‐obraeuropéia.

Os colonos eram contratados na Europa mediante o fornecimento depassagensparaafamília,agarantiadeajudademanutençãon,oprimeiroano e o recebimento de um trato de terras para suas lavouras desubsistência. A essas condições foi necessário acrescentar‐se, mais tarde,um salário anual fixo e um ganho variável segundo a produção. Como asdespesasdepassagemeramcobertaspelogoverno,sóasoutrascondiçõespesavamdiretamentesobreo fazendeiro.Essasregalias,muitosuperioresàsoferecidasaocaipira,explicam‐sepelacapacidadedocolono‐assistidopelos corpos consulares e apoiado pela imprensa de seus países ‐ paraexigirmelhorescondiçõesdetrabalho.Efetivamente,éocolonatoimigranteque, por esse sistema, implanta o regime assalariado na vida ruralbrasileira, aceitando uma rigorosa disciplina de trabalho mas, emcompensação,fazendo‐sepagarefetivamenteepagarmais.Movidoporumhorizonte mais amplo de aspirações e contando com um melhorajustamentoao trabalhoassalariado,o imigranteproduziamaisemelhor.Alguns conseguiam depois de alguns anos, mercê de sua capacidade depoupança,libertar‐sedacondiçãode

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Alguns conseguiam depois de alguns anos, mercê de sua capacidade depoupança, libertar‐se da condição de colono para se fazerem pequenosempresários. Seus filhos já brasileiros seriam operários dos centrosnacionaisindustriaisnascentes.

Asnovas fazendas estruturadasde acordo como sistemade colonato sefazem progressivamente monocultoras e, simultaneamente, acrescentam à plantação um elemento a mais, que é o barracão. Aí, o fazendeiro se faz comerciante para prover aos colonos de tudo que necessitam, mas também para recuperar o máximo dos salários pagos. Assim, os contratos mais vantajosos e já monetários passam a deteriorar-se para o trabalhador rural, sujeitos a duas reduções. Primeiro, a inflação que diminui substancialmente o valor dos contratos de plantio de café, geralmente de quatro anos. Segundo, a exploração nosfornecimentos feitos pelo barracão. Nessas circunstâncias, o colono sóconseguiria poupar à custa de uma compressão violenta de seus gastos,permanecendoamaioriadelesjungidaaosistemapordívidasinsaldáveisevendoesvair‐sesempreasuspiradaoportunidadedesefazeremgranjeiros.

Nosistemadecolonato,ofazendeirojáéumabsenteísta.Residenacidadeedirigesuapropriedadeatravésdeadministradores.Mantém,contudo,noregime republicano, a posição hegemônica conquistada no Império,perpetuando‐se no poder um patriciado oligárquico, que coloca a serviço do patronato cafeicultor toda a máquina governamental. A própria autonomia dos estados, de que a primeira República se fez tão zelosa, explica-se por esse esforço continuado do cafeicultor de tudo submeter aos seus interesses. Entre eles, a transferência ao Estado dos controles e da faculdade de dispor das terras devolutas, que assumiram enorme importância nas áreas da cafeicultura.

Além do controle e do comando político que faziam sair de suas hostes, quase todos os presidentes civis e a maioria dos ministros, os fazendeiros de café não só mantiveram mas aprimoraram seus velhos mecanismos de defesa como classe.

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O principal deles era, talvez, o controle da taxa de câmbio ‐ que variavacada vez que caíam os preços internacionais do café ‐, para continuar apagar‐lhes a mesma importância em moeda local. A essa degradação damoeda, seguem‐se empréstimos externos, destinados a defendê‐la, o queaumentava continuamente a dívi da externa do país, mas permitiatransferir os prejuízos do setor exportador para a vasta camadaimportadora,constituídaportodaapopulação,numpaíssemindústria,quedependiadocomérciointernacionalparaquasetudo.

Maistarde,essesprocedimentosseriamlevadosaextremoscomapolíticade "valorização", que consistia na compra das safras para estocar comrecursos obtidos pelos governos estaduais, mediante empréstimos noexterior.Quandosobreveioacrisede1929,novasmedidasse impuseramemfacedaimpossibilidadedeobterempréstimosinternacionais.

O governo federal foi induzido, então, a assumir o papel de comprador.Quando os estoques alcançavam quantidades fabulosas, notoriamenteinvendáveis,eralevadoacomprarocaféparaqueimá‐loafimdemanterospreços internacionais. Os principais efeitos dessa política ‐ além dasocializaçãodosprejuízospelatransferênciaparaacoletividadedasperdasdecorrentes do subsídio à cafeicultura ‐ foram a expansão constante dasplantaçõese,comelas,daoferta,agravando‐secadavezmaisoproblema.Outraconseqüência foi seuefeitode subvenção indiretaà implantaçãodacafeiculturaemoutrospaísespelamanutençãodepreçosatrativos,comoqueoBrasilacabouporperdersuaposiçãoquasemonopolística.

Esses mecanismos, conduzindo à retração das rendas públicas e àsemissõesparacustearacompradassafraseparadarcoberturaaosdéficitsorçamentários decorrentes, provocaram enorme pressão inflacionária,mantendo o país em permanente crise financeira, de que só osexportadoresconseguiamsafar‐se.

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Nenhumaforçapôde,entretanto,opor‐seaessesinteresseshegemônicos,cujo desatendimento conduziria a crises aindamais graves pela recessão,que resultaria do abandono das plantações, principal fonte de trabalhoremuneradoequaseúnicosetordeaplicaçãodecapitais.

A oligarquia cafeeira, como detentora dos maiores poderes políticos noperíodo imperial e no republicano, é responsável por algumas dasdeformações mais profundas da sociedade brasileira. A principal delasdecorre de sua permanente disputa com o Estado pela apropriação darendanacional,da suaarraigadadiscriminação contraosnegrosescravosouforrosecontraosnúcleoscaipirasque lheresistiam,bemcomocontraas massas pobres que cresciam nas cidades. Nessa disputa e nessadiscriminaçãosenhorialéquedevemserprocuradasasrazõespelasquaisoBrasil se atrasou tão gritantemente em relação aos demais países latino‐americanoseaqualqueroutropovodomesmoníveldedesenvolvimento,tantonaaboliçãodaescravaturacomonaimposiçãoaoEstadodaobrigaçãode assegurar educa ção primária à população e na extensão aostrabalhadoresruraisdosdireitosdesindicalizaçãoedegreve.

AIndependênciaeaRepública,queemquasetodaaAméricaderamlugara umprofundo esforço nacional por elevar o nível cultural da população,capacitando‐a para o exercício da cidadania, não ensejaram um esforçoequivalentenoBrasil.Essedescasoparacomaeducaçãopopularbemcomoopouco interessepelosproblemasdebem‐estaredesaúdedapopulaçãoexplicam‐se pelo senhorialismo fazendeiro e pela sucessão tranqüila,presidida pela mesma classe dirigente, da Colônia à Independência e doImpério à República. Não ensejando uma renovação de liderança, massimples alternância no mesmo grupo patricial oligárquico, se perpetuatambémavelhaordenaçãosocial.

Nessascondições,todaparticipaçãodemocráticanavidapolíticasereduzaosgruposdepressãooligárquicosemdisputapelocontroledasmatériasqueafetavamseusinteresses.

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Nessarepúblicade fazendeiros,osproblemasdobempúblico,da justiça,do acesso à terra, da educação, dos direitos dos trabalhadores eramdebatidos tal como a democracia, a liberdade e a igualdade. Isto é, comomeros temas de retórica parlamentar. A máquina só funcionavasubstancialmenteparamaisconsolidaropodereariquezadosricos.ComooresultadosocialdessapolíticaeraumatrasovexatóriocomrespeitoaosEstados Unidos, por exemplo, se desenvolve nas classes dominantes umaatitude de franco descontentamento para com o próprio povo, cujacondiçãomestiçaounegraexplicariaoatrasonacional.

Em conseqüência, aos motivos econômicos se somam incentivosideológicosparaa realizaçãodeenormes investimentospúblicosa fimdeatrair ao país colonizadores brancos, na qualidade de reprodutoresdestinadosa"melhorararaça".Enãosequeriamlusitanosporquetambémcontra seus avós portugueses se rebelava a alienação oligárquica,convencidadesuaprópria inferioridaderacialequeexplicavaseusêxitospessoaiscomoexceções.

Examinando a expansão da economia cafeeira verifica‐se queespacialmenteelaconstituiuumafronteiramóvelque,envolvendomilhõesde pessoas, progrediu da costa fluminense para o oeste. Nessa marchaatingiu, primeiro, as matas do estado do Rio de Janeiro, depois as doEspíritoSanto,mais tardeasdazonadamatadosuldeMinasGerais,porfim, as de São Paulo. Essa marcha prosseguiu pelo noroeste do Paraná,penetrandoem territórioparaguaio, e subiu,depois, peloMatoGrossodoSuleRondônia.

Essa onda móvel difundiu‐se envolvendo bolsões ocupados por índioshostisatéentãoinatingidospelacivilização,nasmatasdeMinasGeraisedoEspíritoSanto(1910)edeSãoPaulo(1911),bemcomoformasantigasdeocupaçãoeconômicacomoosnúcleoscaipiras,atudolevandoderoldão.

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Avançouinstrumentadaporestradasdeferroerodoviasquealigavamaosportos, conduzindo, floresta adentro, um sistema comercial articuladointernacionalmente, semeando vilas e cidades onde se instalava.Representou, por isso, um papel modernizador e integrador que acaboucriandoaáreaeconômicamaisamplaedemaiordensidadedopaís.

Ocafénãosealastra,porém,sobrenovasterrasdemata,mantendoas jáconquistadas.Suaretaguardaésempreodesertoenestefatoseencontraomotorrealdoseuimpulsoitinerante.

Sendoa terrao fatormaisabundantee relativamentemenosonerosodaproduçãocafeeira,sobreelaéquerecai,semprequepossível,apoupançaempresarial.Derruba‐seaflorestavirgemeplantam‐senovoscafezaissemquaisquercuidadosculturaisqueimportassememônusparaoempresário,usando e desgastando a terra num primitivismo tecnológico que quasetransformavaaagriculturanumextrativismo.Assiméquesóemzonasdeexcepcional fertilidade do solo, os cafezais se fixam realmente como umaculturapermanente.Oprocedimentocomumfoi sempreabriras lavourasesperando obter safras por uma década ou menos, até que uma geadadestruísseaplantaçãoouqueocafezalenvelhecessepordesgastedosolo.

Operandoatravésdesseprocessoextrativista,acafeiculturaseestruturavacomoumafronteiravivaquesemoviasempreàfrente,conduzindoconsigoos capitais, os trabalhadores e a riqueza; e deixando para trás enormesáreasdevastadaseerodidas.

Aíse instalaopastoreio,geralmenteemmãosdeoutroproprietário,queprocurafazervicejarcapimondeoutroracresciaocafezal.Anovaeconomianãopodemanter,porém,omesmoníveldecaptaçãodemão‐de‐obra;nemdeutilizaçãodaestradadeferroqueatravessaraamataaduraspenaseacustos sociais altíssimos; nem a rede urbana que se implantara. Toda aregião entra, assim, em decadência, configurando a paisagem típica dascidadesmortaseestabelecendooutrasociedadeeculturadapobreza.

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Eventualmente,emalgumasáreassereativaumanovaproduçãoagrícola,como ocorre em algumas áreas que se tornam principais produtoras deaçúcar e álcool. No Paraná, a opção pelo trigo e pela soja foi a solução,porque as melhores terras estavam sujeitas a geadas. O preço dessareversãofoiadecadênciadeumazonaruraldeprosperidadegeneralizada,paraumaoutrapaisagemmonocultora, que atiroumais deummilhãodelavradoresàprocuradenovasáreastãodistantescomoRondônia.

Para avaliar o preço social desse desgate de terras basta comparar onúmero de trabalhadores que podem ser empregados numamesma áreapara as tarefas de derrubada da mata e do plantio dos cafezais; suaposterior redução, quando cumpre apenas cuidar da plantação e fazer ascolheitasanuais;e, finalmente,quandodesgastadaéentregueàcriaçãodegado. A proporção ‐ que é de cem trabalhadores na primeira etapa paratrinta na segunda e um, apenas, na última ‐ explica como e por que afronteira móvel do café, integrada por milhões de trabalhadores, seguesempreà frente,deixandoatrásde siumquasedesertohumano.E, comoconseqüência, amorte das cidades, os déficits das ferrovias, a falência docomércio.

Em certas áreas de terrasmais pobres, como o nordeste de São Paulo ealgumaszonasparanaenses,ascidadesnascentesdaépocadaderrubadaedo plantio mal chegam a amadurecer pela rapidez com que o surto asatravessa.Morrem antes de crescer, com suas igrejas incompletas, com ocasario que jamais se conclui, o comércio decadente, e todos os que seagarramaessesbenslançadosàmiséria.

No Paraná, o café encontrou uma terra de promissão na região deLondrina,pelaqualidadeextraordináriadossolose,sobretudo,porquealiaocupaçãonãosefezatravésdolatifúndio.

A zona foi colonizadaporumacompanhia inglesana formadepequenaspropriedades, ensejando a instalação, como proprietária, de milhares defamíliasempenhadasemdefenderumsoloqueéseu.

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A sociedade resultante contrasta vivamente com as zonas cafeeiras dolatifúndio, revelando suas singularidades no nível de vida do povo, naprosperidadecrescentedascidadesedoseucomércio,enacondutapolíticaautônoma,opostaàsvelhasoligarquiasparanaensesepaulistas.Paraalémda zona de Londrina, todavia, a fronteira móvel do café prosseguiu porterras já impraticáveis e, geralmente, pela expansão dos latifúndios. Nosúltimos anos, essaonda, que só temdiantede si o rioParaná, começouapenetrarnoParaguai.

O que não aconteceu com o Brasil aconteceu em São Paulo, que se viuavassalado pela massa desproporcional de gringos que caiu sobre ospaulistanos. Em 1950, os estrangeiros, principalmente italianos e seusdescendentes, eram mais numerosos do que os paulistas antigos. A essesoterramentodemográficocorrespondeumaeuropeizaçãodamentalidadeedoshábitos.

A própria Semana de Arte Moderna, que foi uma reação a esseavassalamento, foi também por seu estilo a formamais expressiva desseeurocentrismo. Tudo bem, porque essa gente quase toda acabou seabrasileirando belamente. Restam, porém, aqui e ali, alguns alunadosapátridasqueaindanãosaíramdofundodonavioemqueseusavósvieram.Perderam sua pátria de origem e estão soltos à busca de um pouso. Seuúnico compromisso é consigo mesmos e com as vantagens que possamganhar. Não têm nenhuma noção emuitomenos orgulho da façanha querepresentouconstruire levarà independênciaessepaísãoquejáacharamfeito. Em conseqüência, tal como os argentinos fazem com seus cabecitasnegras,chegamaolharostrabalhadoresnordestinoseinclusiveoscaipiraspaulistas,aquechamambaianos,comdesprezo.

OuviumpoliticãopaulistadizerqueoqueSãoPaulotemdeanalfabetismoeatrasoéculpadessapresençabaiana,eproporquesepagasseaviagemdevoltadelesparasuasterras.Afortunadamenteessaéumaminoria.

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6BRASISSULINOS:GAÚCHOS,MATUTOSEGRINGOS

"Essaindiadaétodagaúcha.

Ditogauchesco"

AexpansãodosantigospaulistasatingiueocupoutambémaregiãosulinadepréviadominaçãoespanholaeaincorporouaoBrasil.Eminteraçãocomoutrasinfluências,porém,deulugaraliaumaáreaculturaltãocomplexaesingular que não pode ser tida como um componente da paulistânia. Aocontrário das outras áreas conformadas pelos paulistas, como a demineração,adeeconomianaturalcaipiraeadeexpansãodacafeicultura,que, apesar de suas diferenciações econômico‐sociais, apresentam umabase cultural comum, na região sulina surgiram modos de vida tãodiferenciados e divergentes que não se pode incluí‐los naquelaconfiguraçãoenemmesmotratá‐loscomoumaáreaculturalhomogênea.

A característica básica do Brasil sulino, em comparação com as outrasáreas culturais brasileiras, é sua heterogeneidade cultural. Os modos deexistência e de participação na vida nacional dos seus três componentesprincipaisnãosódivergemlargamenteentresicomotambémcomrespeitoàsoutrasáreasdopaís.

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Tais são os lavradores matutos de origem principalmente açoriana, queocupamafaixalitorâneadoParanáparaosul;osrepresentantesatuaisdosantigosgaúchosdazonadecamposdafronteirario‐platenseedosbolsõespastoris de Santa Catarina e do Paraná, e, finalmente, a formação gringo‐brasileiradosdescendentesdeimigranteseuropeus,queformamumailhanazonacentral,avançandosobreasduasoutrasáreas.

A coexistência e a interação desses três complexos opera ativamente nosentidodehomogeneizá‐los,difundindotraçosecostumesdeumaooutro.A distância que medeia entre os respectivos patrimônios culturais e,sobretudo,entreseussistemasdeproduçãoagrícola‐alavourademodeloarcaico dos matutos, o pastoreio gaúcho e a pequena propriedadeexplorada intensivamente dos colonos gringos ‐ funciona, porém, comofixadoradesuasdiferenças.Mesmoemfacedosefeitoshomogeneizadoresda modernização decorrentes da industrialização e da urbanização, cadaumdesses complexos tendea reagirdemodopróprio, integrando‐se comritmos e modos diferenciados nas novas formas de produção e de vida,dandolugaraestilosdistintosdeparticipaçãonacomunidadenacional.

O Brasil sulino surge à civilização pela mão dos jesuítas espanhóis, quefazemflorescernoatualterritóriogaúchodemissõesaprincipalexpressãode sua república cristã‐guaranítica. É certo que eles visavam objetivospróprios, claramente alternativos à civilização portuguesa e à espanhola.Mas,atuandoaseupesarcomoagentesdacivilização,porseuêxitoeporseumalogro,contribuíramparaqueaquelasalternativasseconsolidassem.

Os jesuítas criaram um desses rarosmodelos utópicos de reorganizaçãointencional da vida social que efetivamente viabilizaramnovas formas deexistênciahumana.

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Apesar de sua inspiração antigentílica, omodelo de estrutura social quecriaramsecaracterizavapeloaltosentidoderesponsabilidadesocialdiantedaspopulaçõesindígenasquealiciavam.Aocontráriodaformaçãocolonial‐escravista, que tratava o índio como um fator energético para serdesgastadona produçãomercantil, omodelo jesuítico buscava assegurar‐lheumaexistênciaprópriadentrodeumacomunidadequeexistiaparasi,isto é, que se ocupava fundamentalmente de sua própria subsistência edesenvolvimento.

Duasoutrascaracterísticasdistintivasteriam,porém,efeitosinesperados.Porumlado,suaeficáciadestribalizadora,quepermitiaatrairrapidamentepara os núcleos missioneiros milhares de índios. Pelo outro, sua eficáciaeconômicanaproduçãodeartigosparaosmercadosregionaiseexternos,quepermitiaàsmissõesmanterumativointercâmbiocomercial,medianteoqualseproviamdetudoquenãopodiamproduzir.

A concentração de grandes massas de indígenas deculturados,uniformizadosculturalmenteemotivadosparaotrabalhodisciplinadoteveo efeito de desencadear sobre as missões toda a fúria dos mamelucospaulistasqueasviamcomoenormedepósitodeíndiosfacilmentepreáveis.Assim se liquidaram as primeiras missões pela escravização doscatecúmenosesuavendaaosengenhosaçucareirosdoNordeste.Poroutrolado,oêxitomercantildasnovasmissões,seucaráterdemodeloalternativoà colonização em curso provocou invejas e cobiças locais e também naprópria metrópole, acabando por provocar a expulsão da Companhia deJesus. A conseqüência foi verem‐se os ex‐catecúmenos avassalados pelosfazendeirosqueseapropriaramdasantigasmissões.Nasduasinstâncias,asmissões contribuempara a formação do Brasil sulino. Na primeira, comodepósitodeescravosexportáveisousubjugáveis,comosquaisseconstituiuuma população subalterna local ‐ os primeiros gaúchos ‐ que serviria demão‐de‐obraàexploraçãomercantildasvacarias.

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Na segunda, pela apropriação por brasileiros das terras e gado doterritório dasMissões e pela assimilação compulsória de grandeparte dagentequenelasvivia.

OmotorfundamentaldaformaçãodoBrasilsulinofoi,porém,aempresacolonialportuguesaconduzidadesdemuitocedocomopropósitoexplícitode levar sua hegemonia até o rio da Prata. Esse propósito buscadoinicialmente pela operação bandeirante de conversão dos índios emmercadoria escrava, que estabeleceu o primeiro circuito mercantiltransbrasileiro, corporificou‐se, a seguir, com a instalação da Colônia doSacramentonoriodaPrata.

No século seguinte, o projeto português esteve seriamente ameaçado defracasso por falta de viabilidade econômica, já que a exploração do gadoselvagempara exportação de couro e de sebo, fazendo‐se principalmentesob controle dos colonos das áreas de dominação espanhola, atraía osnúcleos sulinos para sua órbita de influência. A ameaça foi, contudo,superada por uma nova viabilização econômica. Esta surge com aconstituiçãodonovoericomercadodaregiãomineiraparaogadoempé,para bois de carro, para cavalos de montaria e para muares de tração ecarga.

Os índiosescravosdoséculoXVIIeogadodoséculoXVIII, sendoambosmercadoriasquepodiamtransportar‐seasiprópriasaomercado,pormaislongínquoque fossee atravésdequalquer caminhoouvereda,dariamaoextremo sul condições econômicas de vincular‐se com o norte e com ocentrodoBrasil.

OesgotamentodasminasrepresentouumnovoreptoparaoBrasilsulino,queseveriacondenadoaumaregressãopré‐mercantilouabuscarformasextrabrasileiras de viabilização econômica se não aparecessem novosmodos de vinculação com outras regiões do Brasil. Estas surgem com aintrodução pelos cearenses da técnica de fabrico do charque, que nãoapenasvalorizaosrebanhosgaúchoscomotambémosvinculaaomercadonordestinoeaoamazonensee,maistarde,aoantilhano.

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A integração econômicada região Sul doBrasil se alcançou, como se vê,atravésdacriaçãodesucessivosvínculosmercantisqueaatarammaisaorestantedopaísdoqueàsprovínciashispano‐americanasvizinhas.Todosessesvínculosnãoseriam,porém,suficientesparagarantirumaverdadeiraincorporação, se além deles não operassem outras forças de unificação.Entre elas se destaca, como vimos, a política portuguesa de potência,deliberada a levar sua hegemonia ao rio da Prata, tanto através damanutençãodaColôniadoSacramento,quantopelarealizaçãodoenormeesforçorepresentadopelacolonizaçãodaáreacomimigrantesaçorianos;epordécadasdenegociaçõesdiplomáticasparaafixaçãodasfronteiras.

Contribuiu, além disso, a postura "portuguesa" dos luso‐brasileiros doextremosulfrenteàpostura"castelhana"doshispano‐americanosenmquese defrontavam, fixando uma identifcação étnica tanto mais profundaporque permanentemente posta à prova. Esta auto identificação se vêreforçadamais ainda porque, estando associada às disputas hegemônicasdas suas metrópoles, compelia cada estancieiro não só a definir‐seclaramente por uma ou outra como também, definida sua identidade,defenderabandeirarespectiva,fazendodaestânciasuatrincheira.

Apesar dessas forças integrativas,mais de uma vez se teve de apelar aousodasarmasparamanteroBrasil sulinoatadoaoBrasil. Sendooúniconúcleo populacional ponderável na imensa fronteira desabitada,portuguesesecastelhanosalisedefrontaramaolongodeséculos,sobfortestensõesconflitivasqueperiodicamenteexplodiamemcorrerias.Emfunçãodessas tensões e das disputas que elas geravam, o Brasil se viu diversasvezes envolvido nas guerras platinas. Em certas ocasiões, movidas porambiçõesexpansionistaspróprias;emoutras,comopartesqueeramdeumconjuntodenacionalidadesemconfrontonoprocessodeautodiferenciação,unificaçãoefixaçãodesuasfronteiras.

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O poder central teve também de fazer frente e submeter pelas armasmovimentos aspirantes à autonomia da região, muito mais vigorosos einstrumentados que os de outras áreas. Diversos fatores se conjugaramparaativaressastendênciasseparatistas.Entreeles,ofatodeserumavastaelongínquaregiãocominteressesprópriosirrenunciáveiseque,nãosendoadequadamenteatendidos,ensejavamtensõesdisruptivas ‐conducentesàruptura com o poder central. Soma‐se a isso a circunstância de viverapartadadorestodoBrasilesubmetidaainfluênciasintelectuaisepolíticasde centrosurbanos culturalmente avançados, comoMontevidéu eBuenosAires. Nessas condições, não podiam deixar de surgir aspirações deindependência, inspiradas às vezes na concepção de que o Sul melhorrealizaria suaspotencialidades comoumpaís autônomodoque comoumestado federado;motivadas outras vezes por ideários políticos arrojados,comoaslutasanti‐escravistaseacampanharepublicanadosfarrapos.

A condição de fronteira do Brasil sulino, fazendo concentrar ali amaiorpartedastropasdopaís,porumapartedeucontinuidadeefunçãoaoantigoímpetocombativodogaúchodascorrerias;poroutra,conferiuumpoderiomaioraoRioGrandedoSul,noconjuntodanação,doquecorresponderiaàsuaimportânciaeconômica,tornandoinevitávelaimposiçãodecandidatosgaúchos ao poder central quando a escolha exorbitava dos meiosinstitucionaisparaserdecididaporconsideraçõesmilitares.

Paradoxalmente, tambémteráexercidoumpapelnoabrasileiramentodoextremo sul o ingressomaciço de imigrantes centro‐europeus promovidodepois da Independência. Situados nas zonas desabitadas entre asfronteiras sulinas e os principais núcleos do país, eles ativarameconomicamenteaquelasáreas,contribuindoparaviabilizaremodernizaraeconomiasulinaecapacitá‐laparamelhoresformasdeintercâmbiocomorestantedopaís.

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Sem essa presença estrangeira, mas compelida a identificar‐se comobrasileira, sem sua postura de gente mais pacífica e trabalhadora quedesordeiraepredispostaagauchadas, teriasidomaisdifícil incorporaraoconjuntodoBrasilosbrasissulinos.

Incorporá‐los, sobretudo, tal como se logrou: como componente igual aosoutrosepreparadocomoosdemaisaviverumdestinocomumdentrodomesmoquadronacional.

Osgaúchosbrasileiros têmumaformaçãohistóricacomumàdosdemaisgaúchosplatinos.SurgemdatransfiguraçãoétnicadaspopulaçõesmestiçasdevarõesespanhóiselusitanoscommulheresGuarani.Especializam‐senaexploração do gado, alçado e selvagem, que se multiplicavaprodigiosamentenaspradariasnaturaisdasduasmargensdoriodaPrata.OprincipalcontingentefoiformadonaprópriaregiãodeTapesporíndiosmissioneiros Guarani ou guaranizados pelos jesuítas e, posteriormente,mestiçados com espanhóis e portugueses. Outra fonte foi o núcleoneoguaranideparaguaiosdeAssunção,queseexpandiusobreos camposargentinos juntamente com o gado que ocuparia o pampa. Uma terceirafonte foi a prole dos portugueses instalados na Colônia do Sacramento(1680)noriodaPrata.

Osprimeiros,apósosataquesarrasadoresdosbandeirantespaulistasdoséculo XVII e, sobretudo, da expulsão da Companhia de Jesus (1759),entraram em diáspora, procurando escapar aos espanhóis e portuguesesqueosqueriamavassalar,masacabandoporincorporar‐seàsprotocélulasdas sociedades nacionais nascentes através do engajamento compulsórioem sua força de trabalho. Os últimos foram agentes da reaglutinação dosremanescentesdosantigoscatecúmenosedesuaposteriorintegraçãonosquatroquadrosétnico‐nacionaisdabaciadoPrata.

Ogadoquesemultiplicaranabandaoriental foratrazidoprincipalmentepelosjesuítas.

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Era criado com o maior zelo por constituir um dos principaisprocedimentos de sedentarização dos índigenas que, contando com umaprovisãoregulardecarne,podiamdedicar‐seàs lavouraseaoartesanato,independizando‐se da caça e da pesca. Juntamente com o gado de outrasorigens, esse rebanho jesuítico, expandindo‐se enormemente, viria aconstituiromanancialaparentementeinesgotáveldasvacariasdelMaremque tanto índios missioneiros quanto gente da outra ribeira do Prata, aArgentina,emaistardepaulistaseportuguesesviriamrecolhergado.

Os rebanhos prodigiosos passaram a ser acossados por uma populaçãoqueviviadeles,talcomoosíndiosdapradarianorte‐americanaviveramdeseusbúfalos. Inicialmente, todos tratavamogadocomoumacaçamaioremenos arisca. Mas, aos poucos, foram‐se especializando à vida pastoril.Assimosíndiosdaregiãoacabaramporsefazeremcavaleirosecomedoresde carne de rês. Mas continuavam hostilizando‐se uns aos outros efustigando também os missioneiros Guarani, os brancos e seus mestiços.Esses últimos constituíram o primeiro núcleo gaúcho ao passarem decaçadores de gado para alimento a traficantes de couro, devotando‐se apartirdaíadizimarosrebanhosparaaproveitarocourame.

Somam‐se, assim, três fatoresna formaçãodamatrizgaúcha.Primeiro, aexistência do rebanho de ninguém sobre terra de ninguém; segundo, aespecialização mercantil na sua exploração; terceiro, o grau deeuropeizaçãodeumaparcelamestiçadessecontingentequeafaziacarentedeartigosdeimportaçãoecapazdeestabelecerumsistemadeintercâmbioparatrocarcourospormanufaturas(Ribeiro1970).

AtoponímiaguaranidetodooterritóriodasVacariasdelMar(oUruguaide hoje) e a documentação histórica ‐ superficialmente examinada ‐indicam que esses gaúchos falavammelhor o guarani do que o espanhol,sendo,dessemodo,culturalmentepróximosdospaulistasdosséculosXVIeXVII(Holanda1956:108‐18)edosparaguaiosmodernosemsualinguagem,emseumododeadaptaçãoànaturezaparaoprovimentodasubsistência,emsuasformasdeassociaçãoeemsuavisãodomundo.

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Essa matriz guarani é que forjaria a proto‐etnia gaúcha, que,multiplicando‐se vegetativamente e "guaranizando" outros contingentes,povoou a campanha e veio a ser, depois, a matriz étnica básica daspopulaçõessulinas.Posteriormente,sobainfluênciadeforçasconformadasexógenas, essa matriz se dividiu para atrelar‐se às entidades nacionaisemergentes,comoargentinos,uruguaios,paraguaiosebrasileiros.

Originalmente, esses gaúchos não se identificavam como espanhóis nemcomo portugueses, do mesmo modo como já não se consideravamindígenas, constituindo uma etnia nascente, aberta à agregação decontingentes de índios destribalizados pela ação missionária ou pelaescravidão, de novos mestiços de brancos e índios desgarrados pelamarginalidade,edebrancospobressegregadosdesuasmatrizes.

Esses eram os gaúchos originais, uniformizados culturalmente pelasatividades pastoris, bem como pela unidade de língua, costumes e usoscomuns.Taiseram:ochimarrão,o tabaco,aredededormir,avestimentapeculiarcaracterizadapeloxiripáepeloponcho;asboleadeirase laçosdecaça e de rodeio; as candeias de sebo para alumiar e toda a tralha demontariaepastoreiofeitadecourocru;aqueseacrescentaramascarretaspuxadas por bois, os hábitos de consumo do sal como tempero, daaguardenteedosabãoeautilizaçãodeartefatosdemetalprincipalmenteafaca de carnear, as pontas das lanças, as esporas e freios e uns poucosutensíliosparafervereparacozinhar.

A incorporação de uma parcela desses gaúchos à etnia brasileira é umprocesso posterior, decorrente da disputa dos paulistas por participar daexploração do gado sulino, da competição entre portugueses e espanhóispelo domínio da região cisplatina e, sobretudo, da integração do Sul aomercadoprovedordebestasdecargaparaasminasdeouro.

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As primeiras penetrações brasileiras na área ocorreram na primeirametadedoséculoXVIIatravésdaaçãopreadoradosíndiospelospaulistascontraoTapeeoutrosnúcleosjesuíticos.

Elas não ensejavam, porém, qualquer ocupação, apenas permitiamconheceraregião,arrebanharíndiosparaotráficodeescravosedispersaros que lhe escapavam. Entram, a seguir, os portugueses ‐ num esforçooficialdecolonização‐fundando,primeiro,SãoFrancisco(1660)eLaguna(1676) para dominar os campos curitibanos onde crescia gado deixadopelosjesuítase,depois,aColôniadoSacramento(1680),jánasmargensdoriodaPrata.Esseestabelecimentomilitarlongínquo,destinadoaampliarodomínio colonial português, manteve‐se em território inimigo,principalmente através da viabilidade econômica que lhe conferiu aparticipaçãononegóciodecourosdegadoselvagemdasVacariasdelMar.

NocomeçodoséculoXVIIIvoltamospaulistasjuntoaoscuritibanosparase instalarem na região como criadores. Visavam, então, arrebanhar eaquerenciar gado e, mais tarde, criar cavalos e muares para vender aosnovosmercadossurgidosnaszonasdemineraçãodeouro.Aproduçãodemuaresé tãoespecializadae tãoopostaà exploraçãoextrativistadegadoalçadoquenãosepodeconceberquesurgiraespontaneamentenaregião.Omaisprováveléqueaquelesantigosprovedoresgaúchosdasminasfossemmerosintermediáriosdosverdadeiroscriadores.Estesseriamestancieirosde Corrientes e Santa Fé, na Argentina, que se tinham especializado naprodução de animais de tropa para as minas de prata de Potosi. Adecadência da mineração espanhola, antecedendo ao surto da brasileira,criaria uma oferta de muares de exportação que encontraria um novomercadoemMinasGerais. Sómuitomais tardepodemter surgidonoRioGrandedoSulcriaçõesdemulasdeserviço.

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Recrutam por toda a área gente afeita ao trato daquele gado alçado, ouseja, gaúcho, falando um guarani que os mamelucos paulistas podiamentender, fazendo roçados de mandioca, de milho e de abóboras, efabricando farinha, como todos os povos do tronco tupi. Esses gaúchos,incorporados aos núcleos neobrasileiros que se começavam a fundar nacampanha, serviram como campeiros e aquerenciadores do gado,amansadoresdeboisdeserviçoecomocriadoresdecavalosedemuares.

O novo tipo de exploração, que já não visava somente o couro mas osanimaisinteiroseumaproduçãomaistrabalhosa,comoosboisdecarroeosmuaresdemontariaecarga,queeramlevadosjuntocomasboiadasparaasminas, foi que fixou as populações neobrasileiras na campanha sulina,incorporando, progressivamente, um contingente gaúcho à sociedadebrasileira.

Bem sabemos o quanto estão pouco documentadas as hipóteses aquilevantadas.Todavia,elasnosparecemválidascomopistasdeinvestigaçãoenecessárias para explicar a formaçãodo gaúchobrasileiro. Esta nãopodeser atribuídaao simplismodeumamera transladaçãodepaulistas e seusíndiosparaoSul comaagregaçãodealgunsespanhóis.E,menosainda,aum amadurecimento progressivo para a civilização das tribos Charrua eMinuano, antigos ocupantes das campinas. Esses índios, de cultura pré‐agrícola, foram minguando, vitimados por enfermidades e caçados emgrandesbatidaspelobrancoqueocupouseuterritório,atédesaparecerem.Algumas de suas mulheres terão, eventualmente, gerado filhos mestiçosquese integraramàpopulaçãogaúcha.Raroshomens,escravizados, terãoseguido omesmodestino. Eram culturalmente por demais diferentes dosnúcleos guaranizados de missioneiros, paraguaios, proto‐rio‐platenses eprotobrasileiros,paracomelesconviveresefundir.

A integração prosseguiu por um esforço lúcido e persistente da Coroaportuguesa ‐ nisso apicaçada pelos paulistas ‐ para a ocupação eapropriaçãodaárea.

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Estasefazatravésdedoisprocedimentos:aimplantaçãonafaixacosteiradefamíliastransladadasdasilhasportuguesas,principalmentedosAçores,para constituir um núcleo permanente de presença portuguesa, e aconcessão de sesmarias nas zonas de campo onde se instalavam asinvernadas,queseprocedeucomdesusadaprofusão.Aessesaçorianossesomaram militares portugueses ‐ recrutados principalmente no Rio deJaneiro,SãoPauloeMinas–mandadosparaaColôniadoSacramentoeparaoantigoterritóriodosSetePovosdasMissões.

Aapropriaçãolegaldasterrascomeçariaatransformarasinvernadasemestâncias, nelas fixandoo proprietário e sua gauchada.A distribuiçãodassesmarias, que começa nas regiões de Viamão e rio Grande, estende‐sedepoisaoscamposdorioPelotas,atingemaistarde,porumlado,azonadeLagunae,poroutro,aáreadasantigasmissões jesuíticas.Prosseguindoamarcha apropriativa, integra, depois, ao sistema de propriedades acampanhadoIbicuí,aosul,eaCoxilhaGrande,aoeste.

Por longotempo,aatividadedessesestancieiros foraaquerenciarogadoselvagem arrebanhado nos próprios campos ou transladado das antigasvacarias e, depois, criar cavalos e muares. Trabalhavam, sempre, com osolhos postos no horizonte, de atalaia contra ataques castelhanos. A largafaixa de fronteira indiferenciada, movendo‐se conforme a pressão de umlado oudo outro, ameaçavamais à estância e a seu gadodo que à pátriamesmo.Assim,cadaestancieirodeumeoutroladodafronteirasefazumcaudilho,entrincheiradoemseuranchocomseusgaúchos,sempreprontoaengajar‐se nas correrias que punham a salvo o seu rebanho e às vezespermitiamacrescê‐locomoquearrebatassedaoutrabanda.

O manancial de gado que parecia inesgotável, submetido à exploraçãopredatória dos couros para exportação e à perseguição da cachorradaselvagem que também se multiplicara nos campos, alimentando‐se debezerrosedenovilhas,reduzia‐secadavezmais.

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Osestancieiroscomeçaram,então,adisputá‐lodosdoisladosdafronteiraindefinida para fixá‐lo em seus campos. Primeiro, os paulistas queencontravammercadoparagadoem‐pénasminas,centenasdeléguasterraadentro.Depoisportodos,quando,aofimdoséculoXVIII,seiniciaofabricodocharque.Noladoespanhol,onovoprodutotorna‐seoprincipalartigodeexportação como alimento da escravaria das Antilhas. No lado brasileiro,valoriza‐secadavezmaiscomocarneparaaspopulaçõesmineirase,maistarde,paraaslavourascomerciaisqueassucederameparaosengenhosdoNordeste.

O aquerenciamento do gado nas estâncias aquerencia também o gaúchocomocampeiroecomocombatentedoseupatrão,queeraseucaudilho.Nasdécadas seguintes, com os entendimentos diplomáticos para a fixação dafronteira,processa‐seapacificaçãoprogressivadasáreasmaispróximasdalinde, dando nascimento ao Uruguai como um vasto territórito colocadoentreoscontendoresbrasileiroseargentinos.Depoisdoperíodoconvulsode guerras externas e de lutas de unificação nacional que conflagram oscampos rio‐platenses, as estâncias brasileiras entraram numa fase derelativatranqüilidade.

A esse tempo, o crescimento das charqueadas valoriza o gado eindustrializa sua exploração, fazendo do pastoreio cada vez menos umaaventura e cada vez mais um negócio racional. Entretanto a charqueadaintroduz na paisagem pastoril uma atividade nova, caracterizada pelotrabalhoderitmointensoereguladoporhorárioeobrigaçõesrígidas,aquenãoseajustaoantigogaúchocampeiro.Introduz‐se,então,onegroescravo,queeraamão‐de‐obradotempoparatodotrabalhodegastargente.

Essascomunidadesdesaladeiros,comseusempregadosesuaescravaria,contrastando flagrantemente com a estrutura social da campanha,constituíramumenclavepré‐industrialqueseampliaria,nofuturo,atravésde matadouros e frigorificos, como o novo centro reitor da atividadepastoril.

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Desde então, já não é o caudilho‐estancieiro quem comanda a vidaregional,masumsistemamercantil‐industrialmaiscomplexo,suscetíveldeser regulamentado oficialmente, defendido contra o contrabando ecapacitado a introduzir inovações tecnológicas na campanha, como osaramados.

Nesseprocesso,oestancieirovaideixandodeserocaudilhoparasetornaropatrãodeseusgaúchos.Asregaliasdestesdiminueme,comelas,araçãoda carneparao churrasco edemateparao chimarrão.Odistanciamentoentreospapéissociaisdogaúchoantigo‐campeirodogadodeninguémemterrasemdono‐edogaúchonovo‐opeãoempregadodaestânciaacuidardogadodopatrão‐sevaialargandoprogressivamente.Éatenuado,porém,estendendo através de décadas o padrão de relações caudilho‐gaúcho,devido ao estado de convulsão em que vive a zona pastoril, conflagradapelaslutasdeunificaçãonacional.

Oscaudilhossulinos,brasileirosporqueespacialmentenãocastelhanoseopostosaestesporsuasantigasdisputas,masopostostambémaoImpériolongínquo ‐ sem olhos e sensibilidade para seus problemas ‐, configuramumaetniaaindanãointeiramenteidentificadacomumabrasilidaderemotaqueapenasdesabrochava. Seus conflitos fronteiriços e sua independênciafrenteaoImpériomantêmtodaacampanhaempédeguerra,ao longodedécadas. É conflagrada pelas lutas entre os caudilhos, nas célebrescalifórnias, emquedisputavamcampose rebanhos;doscaudilhoscomoslavradores e comerciantes de origem açoriana, assentados no litoral,apegadosàautoridadecentralealmejandoimporordemàcampanha;edeparcelasdeunseoutroscontraodomínio imperial,pelarepúblicaouporqualquerformadegovernoqueatendessemelhoràssuasaspirações.

Enquantopermaneceuesseambientedeguerra,comacampanhadivididaem comandâncias emilícias, chefiados por estancieiros caudilhos sempreprontosasairaocombate,ogaúcho‐porquemenospeãodoquesoldado‐mantevecertosprivilégiosdealimentaçãoedetrato.

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Consolidadaapossedeterraserebanhos,pacificadaacampanhae,depois,cercadas as estâncias com aramados, o novo gaúcho sedentarizado écompelido a assumir seu novo papel de simples peão. Ainda cavaleirocampeia, garboso, o gado do patrão, com orgulho de seu ofício e do seudomíniodamontariaedorebanho.Porém,cadavezmaispobreemaismalpago, comemenos e vivemaismaltrapilho. Os imensos campos livres deoutrora são, agora, retângulos divididos em estâncias e subdivididos empotreiros.Entreasestânciasseestende,comoterrasemdono,tão‐somenteo corredor entre os aramados divisórios, subindo e descendo pelasondulações das coxilhas, para comunicar e para apartar os mundosprivadosdasestâncias.

Ogaúchomontadoemcavalobrioso,dabombachaebotas,desombreirocom barbicacho, de pala vistosa, revólver, adaga e o dinheiro metido naguaiaca, de boleadeiras enroladas na cintura, lenço ao pescoço, faixa nacinturaemcimadosrins,esporaschilenasetc.ouéopatrãofantasiadodecampeirooué integrantedealgumclubeurbanode folcloristas.O ranchodo estancieiro se faz casa confortável; o galpãomesmo, como orgulho daestância, cobre‐se de telhas e se enriquece de ganchos para pendurararreios.Sóapalhoçadogaúchopermanecetalqualerae,dentrodela,avidacadavezmaismiserável.

A introdução de reprodutores de raça, de cuidados zootécnicos e demelhoria das pastagens promove a renovação do gado, que ganha peso,torna‐semaisdócil e se faz leiteiro.Os rebanhosaumentam;aovacumseacrescenta o lanar. Novas áreas são conquistadas para a expansão dopastoreio intensivo, com o gado semi‐estabulado, cujo crescimento écontroladopelascabanhasdeaprimoramentogenético.Adiferençaentreosboiseavaqueiradavaisemodulandocomooposiçãoentreogadodoseudono e um gado de ninguém, cuja eugenia, cuja saúde, cuja raçãoconstituemobjetodaspreocupaçõesmaisdíspares:omaiorzeloparacomagadariavacumeomaiordescasocomrespeitoaocontingentehumano.

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Permanecem, porém, como sobrevivências culturais, certas formas detrato pessoal entre estancieiro e gaúcho que lembram as relações docaudilho com seu combatente.Unidos, ocasionalmente, nas cavalgadas dorodeio,entrandoememulaçãodemaestriacomoboleadoresou laçadoresde reses bravias, apostando carreiras ‐ como ocorre, de resto, nas outraszonas pastoris ‐ mantêm um convívio cordial, porém, remarcadamenterespeitoso e assimétrico, como é devido nas relações entre patrões eempregados. A roda de chimarrão se faz como sempre e é o círculo deconvívio social do gaúcho, freqüentado às vezes pelo patrão para alicontrolar a execução de suas ordens e distribuir novos encargos. Algunshábitos permanecem, como o gosto do patronato gaúcho pelo convíviomasculino e servil que faz cada estancieiro viver cercado de peões‐carrapatos.Sãoosquelhemisturamaerva,esquentamaáguaeprovamochimarrão; os que lhe assam, cortam e servem o churrasco; os que lheconchavamos encontros comas chinasda vizinhança.O gaúcho‐peão‐de‐serviçovêdelongeeolhamalessaúnicaverdadeiraintimidade,intriganteebajuladora.

Todavia, opeãode estância, ainda assim, éumprivilegiadonapaisagemhumanadacampanha.Comogadocresceuapopulação,que,sobrantedassingelas necessidades de mão‐de‐obra das lides pastoris, foi sendodesalojada das estâncias. Amontoase pelos terrenos baldios, ou onde oscorredores se alargam em rancharias, que são malocas campestres.Transformam‐seassimosgaúchosemreservasdemão‐de‐obraemqueoestancieiro recruta os homens de que necessita quando vai bater oscampos,esticarumaramado,ounasépocasdetosquia.Sãotrabalhadoresde changa, biscateiros subocupadosmasprolíficos, cujas famílias crescemna penúria, vitimadas pormoléstias carenciais, por infecções, enfim, portodos os achaques da pobreza, comomais um subproduto do latifúndiopastoril.

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A maior parte dessa população de gaúchos‐a‐pé se faz lavradora deterrenosalheios,aindanãoengolidospelopastoreio,atravésdoregimedaparceria. São os autônomos rurais do sul, contrapostos à peonagem dasestâncias, como o caipira do centro se opõe ao assalariado rural dasgrandesculturascomerciais. IgualmentedependentesdoproprietárioqueIhes cede as terras de cultivo, cobrando por elas a meia ou a terça dascolheitas, além de sua lealdade pessoal e política. Também essesneogaúchos vêem o Estado e o governo como um ente todo‐poderoso earbitráriocomqueseentendeopatronatoequesecolocaefetivamenteaseu serviço como um sistema de milícias, de delegacias e de inspeçõesdestinadoamanteraordemdomundotalqualé.

Ondearededeapropriaçãodasterrasseesgarçapeloabandonoocasionaldeumafazenda,essapopulaçãodesgarradaousaainvasãodaterrabaldia,contando durar no trato conquistado até que venham os policiais e osdoutores cerzir aquela ruptura da teia inconsútil. Nessas circunstâncias,tanto o gaúcho de estância quanto o gaúcho parceiro, imersos ambos nolatifúndiopastoril,nãoalcançamascondiçõesmínimasparaumacondutaautônomadecidadãos.Sãohomensdeseuspatrões, temerososdeperderum vínculo que lhes parece um amparo em face da ameaça de se veremlançados em condições ainda mais difíceis. Nos bolichos dispersos peloscorredores,ouvindoosrádiossempreligadosecomentandoasnovidades,entre voltas de chimarrão e de pinga, vive sua vida cívica essasubumanidademarginaldosarranchamentos.Discutempolíticaepolíticos.Falamdereformaagrária.Sempre

sóbrioseseveros.Aínãosevêaalacridade folgazãdas festasdeestância,ondemais

bailam,riemeseregalamosestancieiroseseusconvidadosqueagauchadapostaa

servir o churrasco, a cantar toadas antigas ao somde gaita, de sanfona eviola.

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Naquelesredutosestradeiroséquesevaiforjandoaconsciênciadonovogaúcho sobre seu destino e fermentando um espírito de rebelião aindadifusoeinconsistente.

TalcomoocorrenossertõespastorisdoNordeste,aestânciadoSuléumcriatóriode gado como seus arraiais são criatóriosde gente.Apopulaçãodessas rancharias se constitui principalmente de velhos desgastados naslides pastoris ou na parceria e de crianças que se iniciam nas mesmaslabutas, todos subnutridos, maltrapilhos e descalços. A maior parte dagentejovemesadiaemigraparaoutrasáreasruraisouparaascidadesembuscadeumdestinomelhor.AssiméqueoRioGrandedoSulexperimentouum profundo processo de urbanização sem industrialização, vendomultiplicar‐se nas grandes e pequenas cidades uma massa enorme desubocupados,demendigoseprostitutas.Pelamesmarazãosefeztambémpovoador das zonas rurais dos estados vizinhos e dos campos do sul deMatoGrosso.Ainfluênciagaúchaemtodaessaimensaáreaévisívelnousodo chimarrão, no gosto pelo churrasco de costelas e no linguajarentreveradodafronteira.

Nos últimos anos, com o surgimento de um amplo mercado nacional, aregião sulina foi se especializando numa produção agrícola não tropical,facilitada por suas condições ecológicas e climáticas. Surge, assim, atriticultura, substitutiva de importações, a rizicultura e o cultivo da sojaparaexportação,exploradastodas,emlargaescala,comtécnicasmodernase certo grau de mecanização nas coxilhas antes devotadas ao pastoreio.Raramente esse desdobramento de atividades é processado pelo própriolatifundiário pastoril. Via de regra, ele apenas arrenda parcelas de suasterrasagriculturáveis, reservando‐seasdemaisparaaexploraçãopastoriltradicionalquecontinuafazendodiretamente.

Para os novos cultivos, em lugar das formas tradicionais de parceria (ameia e a terça) introduziu‐se um sistema de arrenda mento pagável emdinheiropeloempresário.

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Esseé freqüentementeumcitadinocommaiordescortíniomercantilqueoperacombaseemfinanciamentosbancáriosofciaiseprivados.Ocaráterpioneiro dessa atividade e a extração urbana dos arrendatários ensejamcertoaventureirismoresponsávelporgravesdeformações.Sobretudopelaincapacidade dessa camada de contribuir para uma revisão do sistemafundiário,oupelomenosparamodernizarasrelaçõesdetrabalhodemodoaintegrarorganicamenteapopulaçãoruralnumaeconomiamaispróspera.Utilizando maquinaria e técnicas agrícolas mais modernas, elescontribuírammais para amarginalizaçãodo gaúchoquepara suamelhorintegraçãonosetormaisprodutivodaeconomiaagrária.

Oaltopreçodosarrendamentos‐queparececonstituirumdosprincipaisfatores do encarecimento da produção ‐ de‐corre do monopólio da terrapela velha classe latifundiária. Fazendo‐se pagar onerosamente, essesproprietários acompanhamamodernizaçãodapaisagem rural, edificandocasas confortáveis e fazendo melhorias nas estâncias, não comoempresários ativos senão comoumpercalçoque retardaamodernização.Poroutro lado,asenormesdespesasdeimplantaçãodosgrandescultivos,em maquinaria, assistência, irrigação, fertilizantes, tendo de serenfrentadas por simples empresários que operam em terra alheia,constituem um dos principais óbices à expansão ordenada dos trigais earrozais sulinos. Acresce, ainda, que a associação recomendável dessescultivos com outros, ou a sucessão de cultivos segundo as técnicas derotação de culturas, são também obstaculizadas, onerando o custo daproduçãoesacrificandoasterras.

É de assinalar, porém, que mesmo em tais condições, essas atividadesensejam novas oportunidades de trabalho e melhores condições deremuneraçãoaumaparceladasmassasrurais,principalmentenaetapadacolheita,emgeralmenosmecanizada.

Seu efeito social mais importante é, talvez, a diversi icação da sociedadeagrária sulina com a ampliação de um setor intermemento pagável emdinheiropeloempresário.

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Esseé freqüentementeumcitadinocommaiordescortíniomercantilqueoperacombaseemfnanciamentosbancáriosoficiaiseprivados.Ocaráterpioneiro dessa atividade e a extração urbana dos arrendatários ensejamcertoaventureirismoresponsávelporgravesdeformações.Sobretudopelaincapacidade dessa camada de contribuir para uma revisão do sistemafundiário,oupelomenosparamodernizarasrelaçõesdetrabalhodemodoaintegrarorganicamenteapopulaçãoruralnumaeconomiamaispróspera.Utilizando maquinaria e técnicas agrícolas mais modernas, elescontribuírammais para amarginalizaçãodo gaúchoquepara suamelhorintegraçãonosetormaisprodutivodaeconomiaagrária.

Oaltopreçodosarrendamentos‐queparececonstituirumdosprincipaisfatoresdoencarecimentodaprodução ‐de ‐ corredomonopólioda terrapela velha classe latifundiária. Fazendo‐se pagar onerosamente, essesproprietários acompanhamamodernizaçãodapaisagem rural, edificandocasas confortáveis e fazendo melhorias nas estâncias, não comoempresários ativos senão comoumpercalçoque retardaamodernização.Poroutro lado,asenormesdespesasdeimplantaçãodosgrandescultivos,em maquinaria, assistência, irrigação, fertilizantes, tendo de serenfrentadas por simples empresários que operam em terra alheia,constituem um dos principais óbices à expansão ordenada dos trigais earrozais sulinos. Acresce, ainda, que a associação recomendável dessescultivos com outros, ou a sucessão de cultivos segundo as técnicas derotação de culturas, são também obstaculizadas, onerando o custo daproduçãoesacrificandoasterras.

É de assinalar, porém, que mesmo em tais condições, essas atividadesensejam novas oportunidades de trabalho e melhores condições deremuneraçãoaumaparceladasmassasrurais,principalmentenaetapadacolheita,emgeralmenosmecanizada.Seuefeitosocialmais importanteé,talvez,adiversificaçãodasociedadeagráriasulinacomaampliaçãodeumsetorintermediário

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entreosproprietárioseseusgaúchos,atéagoraextremamentereduzido.Taissãoostrabalhadoressemi‐especializadosrecrutadosparaastarefasdamecanização agrícola, do beneficiamento das safras e de suacomercialização. Todavia, o próprio grau de mecanização desses cultivosoperacomoumredutordaspossibilidadesdeemprego,que,emassociaçãocom omonopólio da terra, contribui paramantermarginalizada a maiorparte da população rural que continua sobrante das atividades pastoris etambém excedente das necessidades de mão‐de‐obra da nova economiaagrícola.

Uma outra configuração histórico‐cultural constitui‐se no Brasil sulinoformada por populações transladadas dos Açores, no século XVIII, pelogovernoportuguês.Oobjetivodessacolonizaçãoera implantarumnúcleodeocupaçãolusitanapermanenteparajustificaraapropriaçãodaáreaemfacedogovernoespanholetambémparaoperarcomoumaretaguardafieldaslutasquesetravavamnasfronteiras.EssesaçorianosvieramcomsuasfamíliasparareconstituirnoSuldoBrasilomododevidadasilhas,atraídospor regalias especialíssimasparaa época.Prometiam‐lhesa concessãodeglebasdeterrademarcadascomopropriedadedecadacasal.Aoinstalar‐se,deveriam receber mantimentos, espingarda e munição, instrumentos detrabalho,sementesparacultivo,duasvacaseumaégua,bemcomosustentoalimentar no primeiro ano. Para a gente paupérrima das ilhas, essadadivosidadepareciaassegurarariqueza.Algunsgruposestabeleceram‐sena faixa litorânea,nas terrasmarginaisdorioGuaíba,outrosno litoraldeSantaCatarina.

A colonização açoriana foi um fracasso no plano econômico, como seriainevitável. Ilhados empequenos nichos no litoral deserto, despreparados,eles próprios, para o trabalho agrícola em terras desconhecidas, estavamcondenados a uma lavoura de subsistência, porque não tinhammercadoconsumidorparasuascolheitas.

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Depois de comer o suprimento de manutenção, deviam olhar‐se,perguntandooque fazer. Eram chamados a se tornaremgranjeirosnumaterra em que o branco só admitia o status de senhor para dirigir aescravaria.Entregues,porém,aseuprópriodestino,acabaramaprendendoos usos da terra que estavam a seu alcance, através do convívio com osgrupos já conformados pelas protocélulas brasileiras que se vinhamexpandindoaolongodolitoralcatarinense.

Fizeram‐sematutos, ajustando‐se a ummodode vidamais indígenaqueaçoriano, lavrando a terra pelo sistema de coivara, plantando e comendomandioca,milho, feijões e abóboras.Mesmono artesanato praticado hojenos núcleos de seus descendentes, não se pode distinguir peculiaridadesaçorianas.Éessencialmenteomesmodaspopulaçõescaipiraseassimdeveter sido no passado, para suprir suas necessidades de panos, de tralhadomésticafeitadetrançadosedecerâmicaedeinstrumentosdetrabalho.

Algunsaçorianosempreendedoresescaparam,porém,àcaipirização,sejalevandoadiantecultivosprópriosdecereais,principalmentede trigo, sejafazendo‐secomerciantesdedicadosatraficarmantimentoscomagentedaárea pastoril. Nasceu, assim, um movimento mercantil que deu algumaviabilidade aos vilarejos que surgiam e começou a integrá‐los dentro dosistemaeconômicoincipientedaregião.

Sua contribuição à cultura neobrasileira foi nula porque esta se haviasaturado dos traços do patrimônio português que podia absorver. Suainfluêncianaculturaregionaleseupapelsocialforam,todavia,decisivosnoaportuguesamentolingüísticoenoabrasileiramentoculturaldacampanhae, sobretudo, na constituição do núcleo leal ao poderio português e,maistarde, imperial, que se requeria naquelas fronteiras, por um lado tãoremarcadamente castelhanas e, pelo outro, tão independentes em sualealdadeacaudilhosautônomos.

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Quando a região se convulsionou nos entreveros dos caudilhos quedisputavam terras e gados nas lutas de fronteira e, sobretudo, nas lutasautonomistas de inspiração republicana contra o centralismo imperial, apopulaçãomatutarepresentouumpapelcapital.Opondo‐se,naturalmente,ao gaúcho árdego da campanha pastoril por seu modo de vida agrícola,sedentário e pacíf co, sua aspiração era impor ordem à fronteira.Funcionaram,assim,comoabasedeondeasforçasimperiaispartiamparasubjugar os caudilhos, onde se recolhiam quando acossados para sereabasteceremeonderecrutavampartedesuastropas.

As terrasdoadasaosaçorianos,espoliadasnasáreasemquealcançarammaiorvalorizaçãocomosurgimentodemercadosregionaisoufracionadaspela sucessão das heranças nas demais áreas, configuram, hoje, zonas delatifúndios e minifúndios. Os primeiros, estruturados numa economia defazenda e, os últimos, numa economia de subsistência. Com esssaprogressão, omatuto das fazendas tornou‐se principalmente umparceirorural, de características muito próximas às dos caipiras, passando aconstituirmaisumareservanacionaldemão‐de‐obra,depreciadanaregiãoporseushábitosrudeseporseuapegoàsformasnãosalariaisderelaçãodetrabalho.Osquenãoseengajaramnosistemadefazendas,nemretiverampequenas parcelas, foram obrigados a emigrar para as rancharias doscorredoreseparaascidades,engrossandoamassadaspopulaçõessulinasmarginalizadas.

Alguns contingentes desses matutos especializaram‐se em atividadesprodutivasnovas,surgidascomaampliaçãodomercadonacional.Taissãoosnúcleosdepescadoresdacostaedemineirosdecarvãodointerior.Unseoutrosvivemnasmaisprecáriascondições,constituindo,provavelmente,um dos contingentes brasileiros mais vitimados pela tuberculose e pelamortalidadeinfantil.

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Também as massas matutas e gaúchas marginalizadas caíram numacultura da pobreza que acabou por uniformizá‐las pela singeleza do seuequipamentodevidaedetrabalho.Vivememranchosqueconstróemcomsuasprópriasmãos,comosmateriaismaishumildes,quetantopodemserobarro, apalmaouocapim,naszonas rurais, como tábuasdeembalagens,papelãoerestosdechapasmetálicas,naszonassuburbanas.Emlugardosartefatosdecerâmica,devimes,defibrasedecouro,queantesfabricavam,usam, agora, como vasilhames e utensílios para guardar, usar, comer ebeber,alatariadosmonturos.

Analfabetos, numa sociedade já integrada por metade nos sistemasletrados de comunicação, essas populações marginalizadas perdem atémesmo suas seculares tradições folclóricas, esquecidas e substituídas pornovoscorposelementaresdecompreensõesedevaloresauridosatravésdorádio e da transmissão oral. Nessas condições, uma homogeneizaçãocultural processada pela pobreza ‐ tal como uma deculturaçãouniformizadora se processou, no passado, pela escravidão ‐ unifica osbrasileiros mais díspares pelo denominador comum da penúria, pelacomunidade de hábitos e de costumes reduzidos à sua expressão maissingelaepeladifusãodosmodernosmeiosdecomunicaçãoqueasatingemcommúsicasacessíveisecomapelosaumconsumoinacessível.

Essa homogeneização os está congregando, também, face ao futuro, pelasua comunhão de destino, que é o enfrentamento da ordem socialresponsável por sua proscrição do sistema ocupacional e dos padrões devidadaparcelaintegradanossetoresmodernizadosdasociedadenacional.As formas de expressão dessa destinação insurrecional são aindaelementares,mastendemaacentuar‐se.

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Tal como o campesinato europeu ‐ nas primeiras fases de suamarginalização, pela reordenaçãomercantil‐capitalista ‐ a rebeldia virtualdessasmassasmarginais brasileiras, tanto as do Sul como as das demaisáreas, só encontra em seu patrimônio cultural formas arcaicas deexpressão,revestidasquasesempredeumafeiçãomessiânica.

A principal delas eclodiu de 1910 a 1914, na zona fronteiriça entre osestados do Paraná e de Santa Catarina, em virtude de uma suspensãoeventual da legitimidade das respectivas autoridades reguladoras daapropriaçãodasterrasdevolutas.Aoestabelecer‐seadisputaentreosdoisestados pelo domínio da área contestada, esta ficou juridicamente emsuspenso, ensejando movimentos populares de ocupação das terras deninguém pela população matuta e de alargamento de suas posses, pelosafazendados.

Dadaafomedeterradasmassasruraiscircunvizinhas,aregiãopovoou‐serapidamente através da abertura de inúmeras clareiras na mata, ondefamlias de posseiros procuravam conquistar um nicho e organizar umaeconomia independente de granjeiros. A violenta reação dos dois estadosem disputa diante dessa invasão e, depois, a intervenção armada dogoverno federal lançaram aquelas populações na ilegalidade, criandocondições para o desencadeamento de uma irrupção subversiva de tiposemelhanteàsquesesucederamemoutrasregiõesdopaís.Estudosdessesurto demessianismo se encontram emMaria Isaura Pereira de Queiroz(1957e1965)eMaurícioVinhasdeQueiroz(1966).

Tal comoaquelas, essemovimento sedefinia comomonarquista, porqueera chamada republicana a ordem latifundiária que lhes queria impor aferro e fogo. Tal como aquelas, era também messiânico, porque em seuhorizonte cultural uma reforma da sociedade fundada na propriedadelatifundiária só podia ser concebida como uma reordenação do mundolegitimada em termos sagrados. O messianismo surge, aqui, comoexpressãoculturaldeumareordenaçãosocialemcurso,atravésdainvasãodasterras.

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A ação concreta devolve significação e destino a velhas crenças dareligiosidade popular praticada desde sempre na região, mas que sãochamadas agora a inspirar lideranças novas para uma guerra santadestinadaapromoverumareestruturação

dasociedade.

O caráter subversivo do movimento é imediatamente identificado pelosfazendeiros locais. É, em seguida, definido como tal pelos dois corpos deautoridades regionais, que, embora impedidos de exercer sua função delegitimadores da apropriação de terras devolutas, viam como um abusoinadmissívelosposseirosocuparemasmatasenelasabriremseusroçadose organizarem suas formas de convívio. Por fim, a invasão de terras éinterpretada pela autoridade federal como revolucionária, porqueconvulsionavaumaáreaenorme;porquedefrontavaposseiroscomtropasestaduaisemconflitosnosquaisestasvinhamsendoderrotadas;porquesedefiniacomomovimentorestauradorda monarquiae, sobretudo,porquepunhaemcausaa legitimidadeda formaconstitucionaldeapropriaçãodaterra.

Nessascondiçõeséquesetransfigurameganhamsentidorevolucionárioos antigos cultos oficiados pelos "monges" caminheiros. Eram rezadoresprofissionais, não pertencentes a qualquer congregação religiosa, quereuniamporondepassavamagentesimplespararezarterçosenovenasepara difundir versões populares das crenças católicas e das ti‐adiçõesbíblicasmaisdramáticas.Especialmenteasreferentesaameaçasdecastigoedecataclismos,ouàsesperançasdesalvaçãocoletivaederestauraçãodaidadedoouro.

Uma vez povoadas as matas por posseiros matutos e por gringosacaboclados, criou‐se um ambiente mais propício a essas andanças de"monges".Em todaparteeleseramrecebidoseouvidoscomdevoçãoporuma população cujas crenças exaltavam e que os via como milagreirosaptos a curar doentes incuráveis; sacerdotes habilitados a casar e aencomendar almas, a perdoar pecados e a prescrever os caminhos dasalvação;ecomovidentescapazesdepreverofuturo.

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Esses "monges", tornados conselheiros e guias dos posseiros, tanto emassuntos religiosos como em qualquer outra matéria, foram seus líderesquando os conflitos começaram a eclodir. Sob sua liderança, a luta pelamanutençãodapossecontraumaordemlegalqueosqueriaexpropriarsetransforma numa guerra santa que se desenvolve, simultaneamente, emduas esferas. Primeiro, ados combates contra as tropas estaduais e,maistarde, contra o Exército nacional. Segundo, o esforço de reordenação dasociedade segundo valores hauridos em profundos estratos da tradiçãopopular,respeitosadapropriedadedosfiéisqueapossuíamanteriormente,masafirmatóriadodireitodecadaumaosfrutosdeseutrabalho,tendentea uma economia comunitária regulada por uma organização de trabalhoque prescrevia as atribuições de cada pessoa e por um sistemaredistributivoqueatodosasseguravaosbensessenciais.

Sob a tensão da luta, os matutos liderados pelos "monges" organizamdentro dessas linhas toda a vida social, desde a guerra ao trabalho e aoculto, autodisciplinando‐se através de uma rígida hierarquia guerreiro‐sacerdotal e impregnando todas as atividades de um redentorismo quetudosubmeteao juízodo"monge",únicaautoridadecapazdeestabeleceroscaminhosdasalvaçãocoletiva.

Diversaspessoaspuderamencarnaropapelde"monges"antesedurantearevolta messiânica do Contestado, porque eles eram, na verdade,expressões das velhas tradições populares do "esperado", que viria parareordenar o mundo, acabando com a injustiça, com a pobreza, com aenfermidade e com a tristeza. No curso da luta, os núcleos conflagradosorganizaram‐seem"quadrossantos"queprocuravamser reproduçõesdoparaísoperdidoeantecipaçõesdoparaísoesperado.

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Nesses núcleos, que aglutinavam a população antes dispersa peloslatifúndios ou aglomerada nas rancharias miseráveis, desenvolveu‐se umconvívio social intenso, remarcadamente igualitário, e implantou‐se umaeconomia natural em que o comércio estava proscrito, exceto para aaquisiçãodebensforadosnúcleossublevados.Nelessejuntarammilharesde combatentes (entre5 e12mil), armadosde facões, de espingardasdecaçae,maistarde,defuzisqueconseguiamtomaremcombate.Lutavametrabalhavamcomoelãdequemcuida,aumtemo,dedefenderumavidaterrena que se lhes afigura como o paraíso terrestre e de zelar por suasalvaçãoeterna.

Efetivamente,osmatutostinhamoquedefender;jánãoapenasaterradeque se apossaram, mas o modo de vida que haviam criado ‐ apesar daguerraeemrazãodela ‐que lhesasseguravaoportunidadesparao lazer,para os cultos regidos por comandos de reza e para festas religiosas degosto popular, como as procissões, os casamentos e os batizados que sesucediamquasediariamente.Apesardeproibidososbaileseoconsumodeálcool, e perseguidos o adultério e a prostituição, a vida nesses "quadrossagrados" era alegre e festiva como jamais fora para essa populaçãoemergente do latifúndio, onde vivia isolada, oudas ranchariasmiseráveissuperdependentesdoslatifúndioscircundantes.Seuencantomaiorestava,talvez, nas oportunidades de convívio social intenso, presidido por ideaisigualitáriosenasuaestruturaçãonãomercantil,quepermitiaacadanúcleodevotar‐se coletivamente ao preenchimento de suas condições deexistência.

Em contraste com a sua situação anterior, de camada subalternasubmetidaaoregimedetrabalhonasfazendas,queapenaslhepossibilitavaperpetuar suas condições miseráveis de existência, a nova estrutura,assegurandoa todosoacessoà terra, incentivandoaorganizaçãocoletivado trabalho e regulando‐se por critérios distributivos igualitaristas, lhesgarantia uma fartura alimentar e uma alegria de viver até entãodesconhecidas.

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Por tudo isso, a erradicação dos "quadros santos" integradosprincipalmente por matutos e por alguns imigrantes alemães, poloneses,italianos e seusdescendentesmais empobrecidos foi umadas campanhasmais difíceis do exército brasileiro, que teve de mobilizar milhares dehomens, armá‐los comartilharia pesadapara fazer frente à guerrilha dos"fanáticos".Estessóforamvencidosdepoisdetrêsanosdecombateemquecerca de 3500 pessoas forammortas. A esse custo se restaurou a ordemfazendeira,compelindoosmatutosaaceitarolugareopapelquelhessãoprescritosdentrodela.

Aindahoje,porém,sobrevivenascamadasmaishumildesdaáreamatutaacrençadavoltado"monge",quereimplantaráafarturaeaalegria,faráosvelhos, jovens; os feios, bonitos; e tornaráDeus visível a todos. Em1954,um embrião messiânico ativou‐se na região, reunindo diversas famíliasmatutas em cultos pela volta do "monge" e obrigando as autoridades aintervirmaisumavez,parafazê‐losaceitarseudestino.

Levantes semelhantes se deram onde, outra vez, a terra latifundiária seesgarçou, criando uma rede contestável entreMinas e Espírito Santo. Ali,também,ossem‐terraacorreram,reivindicandoseupé‐de‐chão,masantesque crescesse como novo Contestado, se viram dispersados. EpisódiosemelhantesedácomosMuckernoRioGrandedoSul.

Alutadessesmatutos,comoadeCanudos,aCabanagem,adosMuckers,ecentenas de outras, têm um traço comum que cumpre assinalar. Todasreivindicam a terra em que vivem e de que tiram sua subsistência. Mastodos demonstram que são perfeitamente capazes de, sobre essamesmabase, criar, senão a prosperidade, a fartura e uma vida social alegre esatisfatória. O outro traço a ressaltar é a capacidade da ordem vigente,armada de polícias e exércitos, de calar todos esses clamores parareimplantaratristezadaordemlatifundiáriafamélicaedegradante.

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A terceira configuração histórico‐cultural da região sulina é constituídapelos brasileiros de origem germânica, italiana, polonesa, japonesa,libanesaeváriasoutras, introduzidoscomo imigrantesdoséculopassado,principalmente nas suas últimas décadas. Embora brasileiros como osdemais,porquenãosaberiamvivernaspátriasdeseuspaiseavóseporquesão brasileiras as suas lealdades fundamentais, configuram uma parceladiferenciada da população por sua forma de participação na sociedadenacional. Distingue‐os o bilingüismo, com o emprego de um idiomaestrangeirocomolínguadoméstica,algunshábitosqueaindaosvinculamasuasmatrizes européias e, sobretudo, ummodode vida rural fundadonapequena propriedade policultora, intensivamente explorada, e um níveleducacionalmaisaltodoqueodapopulaçãogeral.

A colonização européia, iniciada no período imperial, respondia a umaatitudecomumdaoligarquiadasnaçõeslatinoamericanas,alçadaaopodercoma independência: suaalienaçãoculturalquea faziavera suaprópriagente com olhos europeus. Como estes, olhavam suspeitosos os negros emestiçosqueformavamamaiorpartedapopulaçãoeexplicavamoatrasoprevalecente no país pela inferioridade racial dos povos de cor. Sob apressão desse complexo de alta identificação "denigrante" puseram‐se acampoparasubstituiraosseusprópriospovos,radicalmentesepraticável,porgenteeugenicamentemelhor.EessaseriaapopulaçãoalvadaEuropaCentral,quesetransladava,então,emgrandescontingentesparaaAméricadoNorte,assegurandooseuprogresso.Oempreendimentocolonizadorfoiumdosobjetivosmaispersistentementeperseguidopelogovernoimperial,queneleinvestiuenormesrecursos,assegurandoaoscolonosopagamentode transporte, facilidades de instalação e demanutenção e concessões deterras.

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Condições semelhantes jamais foram oferecidas a populações caipirasbrasileiras, que, então, formavam grandes massas marginalizadas pelolatifúndio.

A população gringa resultante do empreendimento da colonizaçãobranqueadora ocupa, hoje, uma vasta ilha nos centros dos estados doParaná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que se vai alastrando pelasterrasvizinhas,alémdepequenosenclavesenquistadosemoutrasregiões,comonúcleosdoEspíritoSantoedeSãoPaulo.Nafaixaleste,sedefrontamcom as velhas áreas litorâneas de colonização açoriana. A oeste e ao sul,com as zonas de pastoreio gaúcho. Influenciam e são influenciados pelasduas áreas contíguas, dando e recebendo contribuições culturaisadaptativas, mas raramente seus descendentes se fazem matutos ougaúchos. Exceto aqueles que, vendo‐se marginalizados, participam, comovimos,deumaculturadepobrezacomumatodaaregião‐equaseaoBrasilinteiro ‐ pela uniformidade mesma da sua regressão às formas maisprimitivasesingelasdesubsistênciaedevida.

O bolsão cultural gringo, formadopor imigrantes oriundos de diferentesetniaseuropéiaseasiáticas,exibeumagrandeuniformidadesocialnoseumodo de vida, na paisagem humana que criou. Colorido, embora, pordiferenciaçõesquepermitemdistinguirassubáreasalemãsdasitalianas,ouas polonesas das russas, e todas das japonesas. As uniformidades sociaisdecorrem essencialmente da forma de constituição das colônias, pelaconcessão de terras em pequenas propriedades de exploração familiar epelahabilitaçãoprofssionalquetrouxeramosimigrantesparaapráticadeumaagriculturaintensivadegranjeiros.Asculturaisprovêmdasegregaçãoem que viveram nas primeiras décadas, como quistos implantados numasociedade profundamente diferente, com a qual nãomantinham convívio.Representou, também, um papel saliente na formação da ilha gringa acircunstância de que as colônias sulinas não confinavam com áreas delatifúndio pastoril ou agrário, escapando, assim, do poderio e daarbitrariedadedossenhoresdeterra.

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Cada grupo pode, por isso, organizar autonomamente sua própria vida,instalar suas escolas e igrejas, constituir suas autoridades, formando asprimeirasgeraçõesaindanoespíritoesegundoastradiçõesdospaiseavósimigrados. Vivendo ilhados, o próprio domínio da língua portuguesa sóseria alcançado muito mais tarde, como meio de comunicação com osbrasileiros e entre os próprios colonos de diferentes idiomas. Tensõesherdadas do mundo europeu também opunham essas etnias umas àsoutras,pordiscriminaçõesquecontribuíamparasegregá‐lasaindamais.Osnúcleoscoloniaisjaponeses,instaladosforadaáreasulina,concentrando‐semuitas vezes nas proximidades de grandes centros urbanos comoprodutoresde legumes, tiveramenvolvimentoparalelo,porémaindamaismarcadopelaauto‐segregação.

A primeira geração de imigrantes enfrentou a dura tarefa de subsistirenquanto abriam clareiras na mata selvagem, enfrentando, por vezes,índios hostis, de construir suas casas e estradas, vivendo uma existênciatrabalhosaesevera.Sualutafoiaindamaisdificultadapelainexistênciadeum mercado regular para a sua produção. A grande tarefa inicial quecumpriram foidefinirasatividadesprodutivascomquemelhorpoderiamintegrar‐se na economia nacional. Somente a penúria que enfrentava ocampesinato de seus países de origem, desarraigados do campo pelosefeitosreflexosdaRevoluçãoIndustrialouenvolvidosnascrisesdoperíodode consolidação das nacionalidades européias, explica a persistência comqueenfrentaramtãodifíceiscondições.Aqui,porém,eramproprietários,éverdadequedeterrasvirgensedequasenenhumvalor,masterrasférteisqueelesconfiavamvalorizarpelopróprioesforço.

As gerações seguintes, beneficiárias dos resultados desses sacrifíciospioneiros,encontraramcondiçõesmaispropícias.

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Já eram filhos da terra, afeitos às tarefas que tinham que exercer. Seuproblema começa a ser o da disponibilidade de terras para abrir novasclareirasparaasfamíliasquesemultiplicavam.Emprincípio,porém,todaaárea circundante das colônias, constituídas de terras devolutas ouacessíveisabaixopreço,operavacomumafronteiraabertaàsuaexpansão.

Noperíododetransiçãoentreafasepioneiraeaquadradeprosperidade,algumaspopulaçõesgringasmais isoladasentraramtambémemprocessodeanomiadecarátermessiânico,masdiferentedosmovimentossimilaresocorridos no país por sua inspiração bíblico‐protestante e por seusconteúdosculturaisoriundosde tradiçõespopularesalemãs.Tal foioquesucedeuem1872comaerupçãomessiânicadosMucker(santarrões)doriodos Sinos, a 35 quilômetros de Porto Alegre, a capital provincial do RioGrande do Sul, liderada principalmente por uma mulher‐profeta quetambémorganizouumacomunidadeigualitáriaefanática.Emseuperíodocrítico, esse movimento revivalista ocasionou uma sucessão de crimes eassassinatosesófoierradi‐cadoatravésdachacinadamaioriadoscrentes.

Apesardoisolamento,sabiambemqueaquiteriamdeviver,tantomudarao seu país de origem e tanto haviammudado eles próprios, afastando‐sedospadrõeseuropeus,noshábitos,nalinguagemenasaspirações.Osnovoscontingentesrecém‐chegadosserviamparacontrastaroseusotaqueeasuaignorância do mundo cultural longínqüo de que se desgarraram suasfamílias. Mas o convívio simultâneo com índios, matutos e gaúchosrecordava‐lhes,também,quantosediferenciavamdosantigosocupantesdaterra, por cujos modos de vida miseráveis não podiam sentir qualqueratração. Esses eram, de um lado, seus patrícios e, de outro, os brasileirosque conheciam. Eles mesmos sentiam constituir uma terceira entidade,irredutívelaqualquerdaquelasformas.

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Essa situação de marginalidade étnica dos núcleos de colonização,principalmente dos alemães, japoneses e italianos, foi explorada antes eduranteaúltimaguerramundialpelosgovernosdosseuspaísesdeorigem,criando graves conflitos de lealdade étnico‐social. Com esse objetivo, osmovimentos nazista e fascista bem como o governo japonês montaramaparatosos serviços de propaganda e estimularam o surgimento deorganizações terroristas dedicadas a uma intensa doutrinação ideológica,nacionalistaeracista.

Criou‐se,assim,umasituaçãodetraumaquegerousériosatritosentreosluso‐brasileiros,deumlado,eosgringo‐brasileirosounipo‐brasileiros,deoutro.Ascondiçõesderelativasegregaçãoemquesedesenvolveramessesnúcleos, seu conservadorismo cultural e lingüístico facilitavam essa açãodissociativa.

Para fazer‐Ihes frente foi necessária uma maciça ação oficialnacionalizadoraque‐comosempreocorrenessescasos–agiumuitasvezesdesastradamente,agravandoaindamaisosconflitosdelealdade.Cumpriu,porém, uma função assimiladora decisiva, compelindo o ensino da línguavernácula nas escolas, quebrando o isolamento das comunidades erecrutando os jovens gringos e nipo‐brasileiros para servir nas forçasarmadas. Afastada para grandes centros urbanos, essa juventude alargouseuhorizonte cultural e sua visãodopróprioBrasil, contribuindo, no seuregresso, para facilitar uma identificação nacional que já se tornavaimperativa.

Asdiversasáreasdecolonizaçãoeuropéiaformam,hoje,umaregiãocomfsionomiaprópriaaglutinadaemvilaspelaconcentraçãodemoradoresemtorno do comércio, da igreja e da escola. Delas partem estradasinteiramente novas nas paisagens brasileiras, correndo entre as cabeçasdoslotes,densamentehabitadasdeumedeoutroladoe,porissomesmo,cuidadosamente mantidas. Essas vilas rurais formam redes encabeçadaspor cidades cuja produção se diversificou e se ajustou às condições domercado,somandoatividadesindustriaisdebaseartesanalàsagrícolas.

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Implantou‐se, assim, uma economia regional próspera, numa paisagemcultural europeizada dentro da relativa uniformidade luso‐brasileira dopaís.

Os núcleos gringo‐brasileiros tornaram‐se importantes centros deprodução de vinho, mel, trigo, batatas, cevada, lúpulo, legumes e frutaseuropéias,alémdomilhoparaaengordadeporcos,edamandiocaparaaprodução de fécula. Acrescentaram‐se, assim, à economia nacional oscultivosdaszonastemperadas,aprimoraramvelhaslavourase,sobretudo,demonstraramoaltopadrãodevidaquepodemfruirnúcleosdepequenosproprietários quando habilitados a cultivar intensamente a terra e abeneficiar sua produção antes de comercializá‐la. Consideradas as áreasocupadas,essaeconomiagranjeirapermitemanterumapopulaçãomuitasvezesmaiorqueadaszonaspastorisemesmodaszonasagrícolasfundadasnolatifúndioeassegurar‐lheumpadrãodevidatambémmuitoalto.

Todavia, as colônias, em sua expansão, acabaram esbarrando com omundo do latifúndio, vendo esgotar‐se, dessemodo, sua fronteiramóvel.Não tendo como intensificar a produção, entraram a subdividirantieconomicamenteos lotes,abrigandoduasedepoisquatro familiasemáreasoriginalmentereservadasparaumaapenas.Éominifúndioquehojepersegue a população gringo‐brasileira tanto como o latifúndio quemantémocercoàsuaexpansão.

Emvirtudedesseentravelatifundiário,nosprópriosnúcleoscoloniaisqueerama regiãoagroeconômicamaisprósperadopaís, surgiu tambémumapopulaçãomarginal.Sãooschamados"caboclos"daregiãocolonialsulina.Gringos acaboclados que, não possuindo terras, regridem também a umaculturadapobreza, confundindo‐se comosmatutosdeorigemaçorianaecom os gaúchos das rancharias, na disputa da terra para trabalhar emparceria.

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Seushábitosdetrabalhoedelazer,suadieta,aspalhoçasquelhesservemdemoradia,apenúriaemquevivemconfundidos,ostornamumacamadasó:osmarginaisdaregiãosulina.

A distinção se faz, hoje, tão evidente que colono, na região gringa, épequeno proprietário e caboclo é o sem‐terra. Em cada categoriaconfundem‐sebrasileirosde extração gaúchaou açoriana e brasileirosdeextraçãogringa,distingüíveisessencialmenteporsuaposiçãocomrespeitoàpropriedadedasterrasquecultiva.

Essa camadade gringos acaboclados, assim comoos demais contingentesmarginaisdopaís, constituiumareservademão‐de‐obraqueoperacomoumaclasseinfrabaixa,postanocampoabaixodosassalariadosagrícolase,nas cidades, abaixo dos integrados na força de trabalho com empregospermanentes. A existência desse estrato social, em que todos estãoameaçados demergulhar se perderem sua posição ocupacional, tem doisefeitos sociais gravíssimos. Funciona como redutor da combatividade doscamponeses e operários pelamelhoria de suas condições de vida e comoumindutordoconformismo,pelaverificaçãodequemesmootrabalhadorhumilde tem ainda o que perder, porque pode cair numa condição aindamais degradada. Constituindo, por outro lado, para os marginalizados, opatamarinferiordamiséria,jáincomprimível,operacomoumaincitaçãoàrebeldia revolucionária, jáque somenteuma reordenação socialprofundapodeabrir‐Ihesmelhoresperspectivasdevida.

Nosúltimosanos,surgiunazonacolonialumdesenvolvimentoindustrialintensivo, originado no artesanato familiar, que já alcançou a estatura deuma rede de instalações fabris de nível médio, dedicada à produçãometalúrgica, à tecelagem e à indústria química, de couros, cerâmica evidreira. Algumas das antigas vilas coloniais gringas transformaram‐se,nesseprocesso,emimportantescentrosindustriaisregionais,comoCaxias,São Leopoldo, Novo Hamburgo, Blumenau, Joinville e Itajaí. Os antigoscolonos, transformados em empresários, não se circunscrevem, porém, àsuaáreaoriginal.

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Instalam suas indústrias também nas capitais regionais, fazendo‐se osprincipais empresários modernos do sul do país. Esse desenvolvimentoindustrial ensejou a integração na força de trabalho, como operários, deponderáveis contingentes das populações marginalizadas, tanto gringasquantogaúchasematutas.

Essesaltodaagriculturagranjeiraàindústriaartesanale,depois,àfabril,foi possibilitado pelo conhecimento por parte dos colonos de técnicasprodutivas européias singelas porém mais complexas que as dominadaspelos outros núcleos brasileiros. Mas ele se explica, principalmente, pelobilingüismo,quelhesdavaacessoamelhoresfontesdeinformaçãotécnicaepossibilitavacontatoseuropeusquepermitiramimportarequipamentosepessoalqualificado,quandonecessário,eobterassistêncianaimplantaçãoeexpansão de suas indústrias. É de assinalar que esse surto industrialocorreunomesmoperíodoemqueumgrandeparquetêxtilimportadopararegiões mais atrasadas do país (Minas Gerais) obsolescia à míngua decapacidade de renovação técnica e de falta de espírito empresarialmoderno.

O progresso social e econômico das áreas de colonização gringa e nipo‐brasileira, bem como sua simultânea integração nos mercados nacionaiscomo produtores e consumidores, ensejou novos horizontes de relaçõeshumanasemelhorescondiçõesdeintegraçãocultural. Já,agora,a imagemdobrasileiro, figuradapelogringooupelonissei,nãoseconfundecomaspopulaçõesiziarginalizadas,nemcomaoligarquialatifundiária,mascomaspopulações urbanas de vida moderna e progressista, em que eles seconfundemcomotrabalhadores.Simultaneamente,persuadiram‐sedequejánãopertencemaomundoculturaldeseusantepassados,porquantoestetambém mudou, tornando irreal qualquer identificação étnica nãobrasileira.

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Nessas novas situações de contato e à luz dessa nova compreensão,progrediu a auto‐identificação dos descendentes de colonos comobrasileiros, diferenciados em seumodo de participação na vida nacional,porsuaorigemeporsuaexperiência,masbrasileirostão‐somente.Apenasos japoneses,porconduziremumamarcaracialdiferenciadora, tendiamanão ver reconhecida sua assimilação, mesmo quando completada, comoocorrecomaquelesqueseurbanizaram.Essacaracterística,quefoipenosaenquanto os brasileiros identificaram os japoneses como gentemestiça eatrasada, foi perdendo esse conteúdo em face ao prestígio crescente doJapão e do êxito cultural e econômico dos nisseis brasileiros. Com efeito,eles constituem,provavelmente,ogrupo imigrantequemais rapidamenteascendeu e semodernizou. Não é raro que o neto do camponês nipônicoseja engenheiro, industrial ou executivo das grandes empresas japonesasinstaladasultimamentenopaís,equesuanetasejaprofessoraoudoutora.

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VODESTINONACIONAL

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ASDORESDOPARTO

O Brasil foi regido primeiro como uma feitoria escravista, exoticamentetropical,habitadaporíndiosnativosenegrosimportados.Depois,comoumconsulado, em que um povo sublusitano, mestiçado de sangues afros eíndios,viviaodestinodeumproletariadoexternodentrodeumapossessãoestrangeira.Osinteresseseasaspiraçõesdoseupovojamaisforamlevadosemconta,porquesósetinhaatençãoezelonoatendimentodosrequisitosde prosperidade da feitoria exportadora. O que se estimulava era oaliciamento de mais índios trazidos dos matos ou a importação de maisnegros trazidos da África, para aumentar a força de trabalho, que era afontedeproduçãodoslucrosdametrópole.Nuncahouveaquiumconceitodepovo,englobandotodosostrabalhadoreseatribuindo‐lhesdireitos.Nemmesmoodireitoelementardetrabalharparanutrir‐se,vestir‐seemorar.

Essa primazia do lucro sobre a necessidade gera um sistema econômicoacionadoporumritmoaceleradodeproduçãodoqueomercadoexternodelaexigia,combasenumaforçadetrabalhoafundadanoatraso,famélica,porque nenhuma atenção se dava à produção e reprodução das suascondiçõesdeexistência.

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Emconseqüência,coexistiramsempreumaprosperidadeempresarial,queàsvezeschegavaaseramaiordomundo,eumapenúriageneralizadadapopulaçãolocal.Asociedadeera,defato,ummeroconglomeradodegentesmultiétnicas, oriundas da Europa, da África ou nativos daqui mesmo,ativadas pela mais intensa mestiçagem, pelo genocídio mais brutal nadizimação dos povos tribais e pelo etnocídio radical na descaracterizaçãoculturaldoscontingentesindígenaseafricanos.

Alcançam‐se, assim, paradoxalmente, condições ideais para a transiguração étnica pela desindianização forçada dos índios e peladesafricanização do negro, que, despojados de sua identidade, se vêemcondenados a inventar uma nova etnicidade englobadora de todos eles.Assimé que se foi fundindouma crescentemassahumanaqueperdera acara: eram ex‐índios desindianizados, e sobretudo mestiços, mulheresnegraseíndias,muitíssimas,comunspouquíssimosbrancoseuropeusquenelassemultiplicaramprodigiosamente.

Onúcleoluso,formadopormuitopoucosportuguesesqueaquientraramnoprimeiroséculo,epormulheresmaisrarasainda,queaquivieramter,olhando a todos osmais desde a altura do seupreconceito de reinóis, daforça das suas armas, operacionava sua espoliação econômica, querendoimpor a todos sua fôrma étnica e sua cara civilizatória. Ocorre,surpreendentemente, que esse povonascente, em lugar de umaLusitâniadeultramar,seconfiguracomoumpovoemsi,que lutadesdeentãoparatomarconsciênciadesimesmoerealizarsuaspotencialidades.

Essa massa demulatos e caboclos, lusitanizados pela língua portuguesaque falavam, pela visão domundo, foram plasmando a etnia brasileira epromovendo, simultaneamente, sua integração, na forma de um Estado‐Nação. Estava já maduro quando recebe grandes contingentes deimigrantes europeus e japoneses, o que possibilitou ir assimilando todoselesnacondiçãodebrasileirosgenéricos.

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Alguns, sobretudo japoneses, guardandomarcas físicas indisfarçáveis desuas origens, têm, em conseqüência, certa resistência à plena assimilaçãoou ao reconhecimento dela quando já está plenamente cumprida. Nãodeixamnuncadesernisseis,porquetrazemissonacara.Outrosimigrantes,como os italianos, os alemães, os espanhóis, apesar de brancarrões e deportaremnomesenrolados, forammais facilmenteassimilados, sendosuacondiçãode brasileiros plenamente aceita. Alguns até exacerbam, comoocasodogeneralGeisel,brasileirodeprimeirageração,quenuncaentendeuporqueosíndios,aquihátantosséculos,teimamemnãoserbrasileiros.

Osárabessãoosimigrantesmaisexitosos, integrando‐serapidamentenavida brasileira, participando das instituições políticas e alcançandoposiçõesdegoverno.Atéesquecemdeondevieramedesuavidamiserávelemseuspaísesdeorigem.Cegosparaofatodequeseuêxitoseexplica,emgrande parte, pelo desgarramento que faz com que eles vejam e atuemsobrea sociedade local armadosdepreconceitose incapazesdequalquersolidariedade,desligadosdequalquer lealdade,deobrigações familiaresesociais,parasóseconcentraremnoesforçodeenricar.

A atitude desses imigrantes é freqüentemente de desprezo eincompreensão. Sua tendência é considerar que os brasileiros pobres sãoresponsáveis por sua pobreza e de que o fator racial é que afunda namisériaosdescendentesdosíndiosedosnegros.

Afirmamatéqueareligiãocatólicaealínguaportuguesacontribuíramparao subdesenvolvimento brasileiro. Ignoram que aqui chegaram a partir decrises que os tornaram excedentes, descartáveis, damão‐de‐obra de suaspátrias, e que aqui encontraram um imenso país já aberto, de fronteirasfixadas,regendoautonomamenteseudestino.

Afortunadamentenenhumdessescontingentestemconsistênciasuficientepara se apresentar como uma etnia disputante ao domínio da sociedadeglobal,oupretendentesaumaautonomiadedestino.

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Aocontráriodoquesucedecomoutrospaíses,queguardamdentrodoseucorpo contingentes claramente opostos à identificação com amacroetnianacional,noBrasil,apesardamultiplicidadedeorigensraciaiseétnicasdapopulação, não se encontram tais contingentes esquivos e separatistasdispostosaseorganizaremquistos.

O que desgarra e separa os brasileiros em componentes opostos é aestratificaçãodeclasses.Maséelaque,doladodebaixo,unificaearticula,como brasileiros, as imensas massas predominantemente escuras, muitomais solidariamente cimentadas como tal, que enquanto negro retinto oubrancodecal,porquenenhumdessesdefeitoséinsanável.Oporta‐vozmaisbrilhantedessavisãodeformadadecertosdescendentesdeimigrantesfoiosábioHermannvonIhering.Nasuapaixãopordefenderseusconterrâneosalemães, que estavam em guerra contra os índios que viveram desdesempre nos terntórios doados para colonizar, emprestou seu prestígiocientífico para duas campanhas. A de pedir ao governo o extermínio dosíndioscomorequisitodoprogressoedacivilização,eadeacusaragentebrasileira, que tinha feito esse país que o abrigava, como incapaz dequalquerempreendimento.

"OsactuaesíndiosdoEstadodeS.Paulonãorepresentamumelementodetrabalhoedeprogresso.ComotambemnosoutrosEstadosdoBrazil,nãosepóde esperar trabalho sério e continuado dos índios civilizados e como osCaingangs selvagens são um impecilio para a colonização das regiões dosertão quehabitam, parece quenãoha outromeio, de que se possa lançarmão,senãooseuexterminio.Aconversãodosindiosnãotemdadoresultadosatisfactorio;aquellesindiosque se uniram aos portuguezes immigrados, só deixaram uma influenciamaleficanoshabitosdapopulaçãorural.Éminhaconvicçãodequeédevidoessencialmenteaessascircunstâncias,queoEstadodeS.Pauloéobrigadoaintroduzirmilharesde immigrantes,poisquenão sepóde contar,demodoefficazeseguro,comosserviçosdessapopulaçãoindigena,paraostrabalhosquealavouraexige(Ihering1907:215)."

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Outros intérpretes de nossas características nacionais vêem os maisvariadosdefeitosequalidadesaosquaisatribuemvalorcausal.Umexemplonos basta. Para SérgioBuarque deHolanda seriam características nossas,herdadas dos iberos, a sobranceria hispânica, o desleixo e a plasticidadelusitanas,bemcomooespíritoaventureiroeoapreçoà lealdadedeunseoutrose,ainda,seugostomaiorpeloóciodoquepelonegócio.Damisturadetodosessesingredientes,resultariaumacertafrouxidãoeanarquismo,afaltade coesão, adesordem, a indisciplina e a indolência.Masderivariamdelas, também, certo pendor para omandonismo, para o autoritarismo eparaatirania.

Como quase tudo isso são defeitos, devemos convir que somos um casofeio, tamanhas seriamas carênciasdequepadecemos. Seriaassim?Temomuitoquenão.Muitopiorparanósteriasido,talvez,eSérgiooreconhece,ocontráriodenossosdefeitos,taiscomo,oservilismo,ahumildade,arigidez,oespíritodeordem,osentidodedever,ogostopelarotina,agravidade,asisudez.Elasbempoderiamnosseraindamaisnefastasporquenosteriamtiradoacriatividadedoaventureiro,aadaptabilidadedequemnãoérígidomas flexível, a vitalidade de quem enfrenta, ousado, azares e fortunas, aoriginalidadedosindisciplinados.

Fala‐se muito, também, da preguiça brasileira, atribuída tanto ao índioindolente,comoaonegro fujãoeatéàsclassesdominantesviciosas.Tudoisto é duvidoso demais frente ao fato do que aqui se fez. E se fezmuito,como a construção de toda uma civilização urbana nos séculos de vidacolonial, incomparavelmentemais pujante emais brilhante doque aquiloqueseverificounaAméricadoNorte,porexemplo.

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A questão que se põe é entender por que eles, tão pobres e atrasados,rezando em suas igrejas de tábua, sem destaque em qualquer área decriatividade cultural, ascenderam plenamente à civilização industrial,enquantonósmergulhávamosnoatraso.

Ascausasdessedescompassodevemserbuscadasemoutrasáreas.Oruimaqui,eefetivofatorcausaldoatraso,éomododeordenaçãodasociedade,estruturadacontraosinteressesdapopulação,desdesempresangradaparaserviradesígniosalheioseopostosaosseus.Nãohá,nuncahouve,aquiumpovolivre,regendoseudestinonabuscadesuaprópriaprosperidade.

O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada,humilhadaeofendidaporumaminoriadominante,espantosamenteeficazna formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade,sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem socialvigente.

CONFRONTOS Que é oBrasil entre os povos contemporâneos?Que são os brasileiros?EnquantopovodasAméricascontrastacomospovostestemunhos,comooMéxicoeoaltiplanoandino,comseuspovosoriundosdealtascivilizaçõesquevivemodramadesuadualidadeculturaleodesafiodesuafusãonumanovacivilização.

Outroblococontrastanteéodospovostransplantados,querepresentanasAméricas tão‐só a reprodução de humanidades e de paisagens européias.OsEstadosUnidosdaAméricaeoCanadásãodefatomaisparecidosemaisaparentadoscomaÁfricadoSulbrancaecomaAustráliadoqueconosco.AArgentinaeoUruguai,invadidosporumaondagringaquelançou4milhõesde europeus sobre ummeromilhão que havia devassado o país e feito aindependência, soterrando a velha formação hispano‐índia, são outrostransplantados.Sóédeperguntarporque,comaeconomiaigualeatémaisrica de produção de cereais, de carnes e de lãs, não conseguem aprosperidade da Austrália e do Canadá, que se enriqueceram commuitomenos?

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Será o velho Cromwell e a institucionalidade por ele criada, que aindaregemonorte,quefazemadiferença?

Os outros latino‐americanos são, como nós mesmos, povos novos, emfazimento. Tarefa infinitamente mais complexa, porque uma coisa éreproduzir no além‐mar o mundo insosso europeu, outra é o drama derefundiraltascivilizações,umterceirodesafio,muitodiferente,éonosso,dereinventarohumano,criandoumnovogênerodegentes,diferentesdequantashaja.

Se olhamos lá para fora, a África contrasta conosco porque vive ainda odrama de sua europeização, prosseguida por sua própria liderançalibertária, que tem mais horror à tribalidade que sobrevive e ameaçaexplodirdoqueàrecolonização.Sãoilusões!SeosíndiossobreviventesdoBrasilresistiramatodaabrutalidadedurantequinhentosanosecontinuamsendoelesmesmos,seusequivalentesdaÁfricaresistirãotambémpararirnacaradeseuslíderesneoeuropeizadores.Mundosmaislongínquos,comoos orientais,maismaduros que a própria Europa, se estruturam na novacivilização, mantendo seu ser, sua cara. Nós, brasileiros, nesse quadro,somosumpovoemser,impedidodesê‐lo.Umpovomestiçonacarneenoespírito, jáqueaquiamestiçagemjamais foicrimeoupecado.Nela fomosfeitoseaindacontinuamosnosfazendo.Essamassadenativosoriundosdamestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada narünguendade. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico‐nacional,adebrasileiros.Umpovo,atéhoje,emser,nadurabuscadeseudestino.Olhando‐os,ouvindo‐os,éfácilperceberquesão,defato,umanovaromanidade,umaromanidadetardiamasmelhor,porquelavadaemsangueíndioesanguenegro.

Comefeito,algunssoldadosromanos,acampadosnapenínsulaIbérica,alilatinizaram os povos pré‐lusitanos. O fizeram tão firmemente que seusfilhosmantiveramalatinidadeeacara,resistindoaséculosdeopressãodeinvasoresnórdicosesarracenos.

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Depoisde2milanosnesseesforço,saltaramomar‐oceanoevieramternoBrasilparaplasmaraneo‐romanidadequenóssomos.

É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tãodiferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneoslingüísticaeculturalmenteetambémumdosmais integradossocialmenteda Terra. Falam uma mesma língua, sem dialetos. Não abrigam nenhumcontingente reivindicativo de autonomia, nem se apegam a nenhumpassado.Estamosabertoséparaofuturo.

NaçõeshánoNovoMundo ‐EstadosUnidos,Canadá,Austrália ‐quesãomeros transplantes da Europa para amplos espaços de além‐mar. Nãoapresentamnovidadealgumanestemundo.SãoexcedentesquenãocabiammaisnoVelhoMundoeaquivieramrepetiraEuropa,reconstituindosuaspaisagensnataisparaviveremcommais folgae liberdade,sentindo‐seemcasa.Écertoqueàsvezessefazemcriativos,reinventandoarepúblicaeaeleiçãogrega.Raramente.São,arigor,oopostodenós.

Nossodestinoénosunificarmoscomtodososlatino‐americanospornossaoposição comum aomesmo antagonista, que é a América anglo‐saxônica,parafundarmos,talcomoocorrenacomunidadeeuropéia,aNaçãoLatino‐AmericanasonhadaporBolívar.Hoje,somos500milhões,amanhãseremos1bilhão.Valedizer,umcontingentehumanocommagnitudesuficienteparaencarnar a latinidade em face dos blocos chineses, eslavos, árabes engobritânicosnahumanidadefutura.

Somospovosnovosaindanalutaparanosfazermosanósmesmoscomoumgênerohumanonovoquenuncaexistiuantes.Tarefamuitomaisdifícilepenosa,mastambémmuitomaisbelaedesafiante.

Na verdadedas coisas, o que somos é a novaRoma.UmaRoma tardia etropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitudepopulacional, e começa a sê‐lo também por sua criatividade artística ecultural.

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Precisaagorasê‐lonodomíniodatecnologiadafuturacivilização,parasefazerumapotênciaeconômica,deprogressoauto‐sustentado.Estamosnosconstruindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização,mestiçaetropical,orgulhosadesimesma.Maisalegre,porquemaissofrida.Melhor,porqueincorporaemsimaishumanidades.Maisgenerosa,porqueaberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porqueassentadanamaisbelaeluminosaprovínciadaTerra.

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ÍNDICEREMISSIVOAbolição,159,173,194,220,228,230,292‐9,301‐2,396‐7,398‐9,403Açores,40,275,427Aculturação,21,145Adorno,AntonioDias,143África,30,39,65,67,73,114‐5,117,152‐3,161,173,176‐8,230,256,270,279,292,367,379,447‐8,453ÁfricadoSul,237,452Agricultura,32,69,130,347,383,405‐6,437,443Alasca,66Albersheim,Úrsula,215Albuquerque,Jerônimode,85,137AldeiasAgrícolasIndiferenciadas,32,273,309,370Aleijadinho,153,223Alemanha,66,88,399Amapá,334‐5Amazônia‐Amazonas,2l,29,33,54,6l,102,122‐3,144,148,158,170,172,197.,200,203,271‐2,307‐11,313,3I5‐7,319‐21,322‐31,334‐8,351‐2,400Anchieta,pe.Joséde,49‐52,55,62,89,93,134,139,149‐50,183Andreoni,JoãoAntonio(AndréJoãoAntonil),274,282‐3Angola,114,135Antilhas,158,276,279,295,297,420Antropofagia,34‐5,50,57,83Antropologia,269,285,330,344Apartheid,69,226Aracaju,199,Araguaia,rio,110ÁreasCulturais,97,115,253‐4,265,271,277,287‐8,291‐2,295‐6,298‐9,300,304,309‐10,408‐9;Caipira,33;Crioula,97,277‐8,291‐2,295‐6,298‐9,300,304,342‐3Argentina,110,122‐3,153,259,414‐5,417,452Ásia,65,67Assimilacionismo,69,266Assis,Machadode,223Assunção,37,82,414AtualizaçãoHistórica,73‐4,193,25l,260,273Austrália,452,454Ávila,pe.FernandoBastosde,241Ávila,Garciad',171Azara,Félixde,35‐6Azevedo,JoãoLúciod',102,172Bahia,51‐2,85,89‐90,92‐5,97‐8,103,110,114,122,134‐6,143,150,153,157,162,164,171,179,182,185‐8,193‐4,199‐200,264,275‐6,282,295‐7,298,300,358‐9,376

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Baião,Antônio,40Balaiada,322‐3Bandeira,92,107‐8,143.245,364‐5,Banditismo,350‐1,355‐6,386Barbosa,Rui,223Barros,Cristovãode,143Belém,171,173,193,195,199,200,308,320,323‐4,327BeloHorizonte,l99‐200BethlehemSteel,335Blasques,Antônio,93‐4Blumenau,442‐3BoaVista,199Bóias‐Frias,209,2l3,2I8,392‐3Bolívar,Simon,456Bolívia,324Borah,Woodrow,141‐2Brandão,AmbrósioF.,98Brasília,199‐200,307Brasilíndio,96‐7,106‐ll,127‐8,131,BuenosAires,110,200,413Buescu,Mircéa,162BulaInterCoetera,40BulaRomanosPontifex,39Burocracia,125,172,178,196,256,Cabanagem,321‐2,435Cabanos,25,167,l72‐3,322‐3CabecitasNegras,110,407Caboclos,21,98,133,167,172,256,265,272,307‐8,316‐20,322,325335,337‐8,441‐2,448CaboFrio,193CaboVerde,40,341Cabral,PedroÁlvares,83Cafeicultura,393‐4,395‐6,398‐9,401‐2,405‐6,408Caipiras,21,256,272,365,383,385‐93,398‐400,403‐4,407,424,428,436Calógeras,J.Pandiá,l6l,372Calvinistas.33,85,91,139Câmara,pe.LuísGonçalvesda,84Campesinato,290,430‐1,438‐9CampinaGrande,197Campinas,212CampoGrande,197,199Canadá,l09‐10,452‐4Candomblé,205,296Cangaço,355‐7,360Canudos,25,168,174‐5,357‐9,435CapristranoDeAbreu,João,85,136,l50.339,371Capitalismo,202,261,399Caramuru,DiogoÁlvares,85,89Cardim,pe.Fernão,179‐89,190‐1Cardoso,Efraim,82Cardoso,FernandoH.,234Caribe,220Carmelitas,60,312Carnaval,205‐6,223Carneiro,J.Fernando,241Carneiro,Nelson,223Cassiterita,334,337Castas,24,61,l07,180,217,299,321151,191,258,270Catalão,215Caxias,197,442Ceará,94,357CentrodeEstudosparaaAméricaLatina(CEPAL),202Cícero,pe.(RomãoBatista),357377,382Classes(Sociais).22‐6,37,73,75,169,195,208‐11,213,218‐9,236,252,273,278‐9,292‐3,309,342‐3,366‐7,371‐2,401,450;Dirigentes,22,68‐9,7l,157,251,255‐6,403;Dominadas,76,209;Dominantes,23,25‐6,70,75‐6,159,174‐5,178‐9,196,208,210,216‐8,221,236,239‐40,247,250‐2,259,262,280,292‐3,299‐300,335,404,426,451;Intermediárias,208‐9;Médias,240;Oprimidas,23,209‐10,255;Políticas,20l,337‐8;Senhorial,216,377;Subordinas,23Coelho,DuartedeA.,86,137Coimbra,136,189

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ColonialismoEscravista,288‐9ColonialismoInterno,260CompanhiaNacionaldeAlcalis,202CompanhiaSiderúrgicaNacional(CSN),201CompanhiaValedoRioDoce,201Comte,Augusto,147ConfederaçãodosTamoios,33Conselheiro,Antônio,357‐9ConselhoUltramarino,38,Contestado,25,433‐4,435,Cook,Sherburne,142Cortes,GeraldodeM.,241Cortesão,Jaime,29,82,84,122Costa,CláudioManoelda,153CostaPINTO,L.A.,234Coutinho,F.Pereira,87CoxilhaGrande,419Crato,197Crioulos,21,97,131,133,158,163‐4,272,275,277‐9,288,291‐2,295‐6,298,300‐1,304‐6,343Crisede1929,402Cromwell,453CruzeSousa,223,Cuiabá,35,37,199,373Cunha,Euclidesda,175,359Cunhadismo,81‐3,85‐6,91,109,247Curiboca,133Curitiba,199Curtin,PhilipD,162Davatz,Thomas,119Deculturação,144,159‐60,205,249,260,281‐2,283,332‐3,430DemocraciaRacial,24,225‐7,235DemocraciaSocial,227,404Demografia,141‐2,162 DepartamentoNacionaldeObrascontraaSeca(DNOCS),349 Depopulação,52,142‐3,149,257 Dias,CarlosA.,33DiéguesJr.,Manuel,241,253Ditadura,25,308,336‐7Ditadura,25,308,336‐7,Dobbyns,Henry,141,Doce,rio,145,337Donatarias,86‐8Dourado,Mecenas,55DrogasdaMata,171,272,311‐13,314‐5,319,351‐2DrummonddeAndrade,Carlos,263Dutra,E.Gaspar,202Ecologia,246.Economia,54,73‐5,83,86,100,l07,112,121,149,l52,158‐61,169173,185,198,200,203,205,213,235,258,261,265,276‐7,279‐80,290‐1,302‐3,315,317‐8,319,323‐5,340,346‐7,380‐4,385‐6,395‐6,400,405‐6,413,425‐6,43l,433‐4,452;Açucareira,149,275‐8,292‐4,296‐7,304;Aguária,376,425‐6;Agrícola,233,317‐8,324‐5,426‐7; Agroindustrial, 276; Amazônia, 326, 334, 335‐6; daBorracha, 326, 334; Cafeeira, 404; Colonial, 86, 112, 177, 256, 297‐8;Comunitária,316,433;deExportação,100,125,386;Extrativista,197,315,3l8,326‐8;Familiar,390;Granjeira441;Intemacional,314‐5;Mercantil,83,123,286,366;Monocultora,288;Mundial,121,159,l77,250,273;Nacional,202,261,392,438,440;Natural,286,409,433;Pastoril,325,340;daPobreza,292,364,380‐1;Primitiva,330;Regional,159,335,350,440‐1;deSubsistência,327,366,383,397‐8,429Educação,224,234,253,403‐4Eletrobrás,202EmpresaAgroindustrial,274,281‐3EmpresaColonial,100,247,276EmpresaEscravista,118,176‐7EmpresaMultinacional,251EmpresaPastoril,283‐4EmpresadeSubsistência,177Encomiendas,283Enfermidades,43,52,55,118,144,224,230,271,314,326,327,332,357,4l8,433

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Engenhos(deAçúcar),50‐1,53,74,92,94‐6,121,123,125,115‐6,150‐2,161,163,163‐4,171,173,185‐6,188,193,216,270,272,274‐7,280,281‐8,289‐97,300,302‐3,310,339‐43,347,364,366‐8,373,393,395,410,419‐20Epidemias,47,.52,92‐3,143,I50,257Ennes,Ernesto,.53Entradas,372Escravidão,24,53‐4,62,92,98,101‐3,115,117,l28,160,172,219,222‐3,232,256‐7,259‐60,300‐2,311‐2,322,342,379,389,398,417‐8,430Espanha,22,38‐40,63,67,149,294EspíritoSanto,33,94‐5,110,181,383,395,404,437EstadodoMaranhãoeGrão‐Pará,56,170EstadoSalvacionista,76EstadosUnidosdaAmérica,194,335,404,452,454Estâncias,419,420‐5,426Estanho,309Etnias,20,22, 30, 32, 39, 68, 112‐6, 121‐2, 132‐4, I45, 167‐9, 242‐3, 251, 270, 273, 295‐6, 320‐1, 370‐2, 415‐6, 421‐2, 437‐41, 448‐50;Brasileira,114,116,133,145;Nacional,19,22;Tribal,20,22,73,112‐3Etnocídio,23,114,448Etnologia,57,130Extrativismo,309,327‐30,353‐4,405FábricaNacionaldeMotores,202FanatismoReligioso,355‐6,357Favelas,26,194,204,206,209,212,222Fazendas,51,87,92,104‐5,125,137,I63,168,174,186,188,195,212,215‐8,221,232‐3,272,279‐81,283‐5,286‐7,291,292,302‐3,310,317,345‐6,350,352‐3,356,358‐60,380‐1,388‐9,393‐5,398‐400,401,424‐5,429,435FeiradeSantana,197Fernandes,Florestan,31,34,234‐5Feudalismo,287‐8,289‐90Figueiredo,AntonioP.de,300‐1Florianópolis,195,199Folclore,263,269Folk‐Culture,272Fortaleza,I99França,66,336,399FrançaAntártica,85,91Franciscanos,59‐62,312Freyre,Gilberto,60,163,193,225,237Friederici,Georg,109Furtado,Celso,150,297Galego,Pero,86Gama,Luís,223Gandhi,148Gandia,Enriquede,126Gaúchos,21,98,122,265,272,315‐6,408‐12,413‐4,415‐27,428‐9,437,439,441‐2Geisel,Ernesto,449Genocídio,23,103,105,144,203,358‐9,448Gillin,John,272Goiânia,199‐200Goiás,152,203,215,351‐2,372‐3,379‐80Gonzaga,TomásAntônio,153Gorender,Jacob,105Gouveia,pe.Cristóvãode,180Granjeiros,66,258,283‐4,292,389‐90,401,427‐8,431,437,441,443Grécia,264Guaíba,427Guaíra,368Guaporé,rio,29Guatemala,22GuedesDeBrito,Antonio,153Guerras,33‐5,37‐8,44,47,49,55,60‐1,71,74,82,84‐5,92‐4,96,98‐9,101,103‐4,108,111‐2,124,136,139,143‐4,147,149‐50,153,167,170,172,180,182,187,200‐1,

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220,243,260,271,275‐6,277‐8,295‐6,311‐2,314,321‐2,327‐9,358‐9,368‐71,374,380,412‐3,421‐2,431‐4,450;GuerrasnaAmazônia, 33; Guerra Bacteriológica, 30; Guerra dos Bárbaros, 33; Guerra Biológica, 47; Guerra da Borracha, 328‐9; Guerra dosCabanos,172;GuerradeCastas,299,32l‐2;GuerrasdeConquista,65;GuerradosEmboabas,374;GuerrasdeExtermínio,47,49‐50,58,144,147,169;GuerraJusta,50,53,99,101,103;GuerradosMouros,71;GuerraMundial,327,334,439‐40;GuerraNapoleônica,317‐8;GuerraNuclear,336;GuerradeParaguaçu,33;GuerradoParaguai,37;GuerradeSecessão,194GuerreiroRamos,223Guerrilha,431Guiné,51,137,185,188Haiti,279,299Harris,Marvin,253Hemming,John,142Hitler,Adolph,335‐6Holanda,38,64,88,279,294Holanda,SérgioBuarquede,35‐7,106,108,122,415,451 Huguenotes,91 Ianni,Octávio,234,241 Ibicuí,419 Ibirama,215Identidade(Étnica),20,23,109‐10,126‐7,130‐3,136,140,189,190,223,226,244,271‐2,302,318‐20,413‐4,448,453IdentidadeTribal,369Ideologia,72,76,110;Assimilacionista,241;Integracionista,238;Republicana,379;Segregacionista,241Iemanjá,223,264‐5Igaraçu,95Ihering,Hermannvon,444‐5Ilhéus,87‐8,94‐5,181Imigração,21,24l,258,389ImpérioMercantilSalvacionista,64‐5InconfidênciaMineira,379Índia,40,148,183,188‐9Indianismo,140Índios,19‐20,24‐5,29‐37,42‐5,47‐62,68‐70,73,76,81‐5,87‐97,99‐113,116,118,120‐1,127‐33,137‐9,141,143‐50,158,168‐72,176‐7,179‐85,187,190‐1,205,219‐20,223,225,228‐9,238‐9,241,245‐7,249,256,259,265,270‐2,276‐8,281‐2,302,308,311‐6, 317‐23, 326, 328, 329‐34, 337, 344, 364‐9, 371, 383, 404, 409‐11, 414‐7, 418‐9, 439‐40, 447‐53; Aimoré, 33, 94‐5, 110;Asteca,257;Avá‐canoeiros,331;Bororo,35,110,146;Botocudo,110;Caeté,85,93‐4,99;Carijó,33,181;Cariri,187;Charrua,418;Goitacá,33;Guaikuru,35‐7,366;Guajajara,331;Guaná,36;Guarani,90,97,111,122‐3,127,143,146,181,220,333‐4,414‐6,417‐8;Jabuti,331;Janduí,143;33,130;Kaingang,35,110,450;Kawahib,331;Kaya‐pó,35,110‐l,331;Kevekuá,110;Makuxi,331;Mbayá‐Guaikuru,36‐7;Minuano,418;Mundurucu,331;Nambiquara,331;Paresi,35;Payaguá‐Guaikuru,36‐7;Potiguara,33,85‐6,180‐1;Sateré‐Maué, 331; Tabajara, 85; Tamoios, 33, 84‐5, 95; Tamuya, 181; Tapuias, 32, 35, 52, 94, 97, 111, 130, 180, 187, 319, 364;Tememinó,181;Tikuna,331;Tupi,29,31‐5,90,97,109,111,114,116,122‐3,127‐30,139,180,182,220,309,319,328,331,366,418;Tupiguai,181;Tupinambá,33,46,84,94‐5,122,182;Tupinaquins,181;Urubu‐Kaapor,331;Viatã,180;Xavante,35,110,331;Xokleng,110;Yanomami,34,168,331‐2

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Indústria,201,203,322,381,402,442‐3;Açucareira,303;Cultural,263;Extrativista,330;daSeca,335,349Industrialização,21,159,194,197‐8,201‐2,234,250,260‐1,265,272,292,334,347,379,381,409,425;Substitutiva,202Inglaterra,38,64,66‐8,252,380InstitutoHudson,336Iperoig,95Itajaí,rio,145,442Itália,66,328,399Itamaracá,88,94Itanhaém,191Itapicuru‐Mirim,197Itatim,143,368Jagunços,355‐7,358‐60Japão,443‐4Jesuítas,33,37,52,54‐6,59‐62,84‐5,489‐91,94‐6,100‐1,104,107‐8,123,170‐2,181,282,312,317,367‐8,409,414,417JoãoPessoa,193,199Joinvile,442Juazeiro,357Julião,Francisco,362JúliodeCastilho,215Koster,Henry,225Kubitschek,Juscelino,202Labrador,JoséSánchez,36‐7Laguna,417,419Latifúndio,I75,200‐1,215,233,300,308,341,346,349‐50,356,361,390‐1,406‐7,424,429,433‐4,436‐7,441Laytano,Dantede,241LeidoVentreLivre,232‐3Leite,pe.Serafim,51,112Leopoldina,215Léry,Jeande,33,46,91Liberalismo,203,247LigasCamponesas,305,362,Lisboa,38,87,89,125,164,188‐9,193,252Londrina,406‐7Lugon,Clovis,142Macapá,199MacedoSoares,JoséCarlos,40Maceió,199Machado,JosédeAlcântara,103Madeira,ilhada,275Madeira,rio,324Madri,189Maíra,42‐3MalheiroDias,Carlos,86Mameluco,35,37,52‐3,85,88‐92,94‐6,106‐11,122,128‐30,132,135,143,146,151,270,272,318‐21,322,368‐9,410,417‐8Mamoré,rio,324Manaus,173,199,308,320,323‐4Mancilla,Justo,102Mangabeira,OctavioeJoão,223Manganês,335Marajó,308‐9,315‐6Maranhão,54,56,85‐6,94,99,122,144,158,170‐l,298,318,322‐3,341,351Marchant,Alexander,87Mariana,193Martins,Wilson,241Martius,CarlF.P.von,382Masseta,Simon,102MatoGrosso,36‐7,110,351‐2,368,372,379‐80,383,425MatoGrossodoSul,404MatosGuerra,Gregório,134‐6Matutos,408‐9,427‐31,432‐7,439,442Mazombo,127,132,369Meação,301,347‐8,361Meggers,Betty,32MeloESouza,AntonioC.de,272,384Mendes,Chico,337Mercado,48,119,210,247,251,286,292,294,303,345,351,380,385,388‐9,411,417,438;Consumidor,

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274‐5,345,376,427‐8;deEscravos,161;Externo,159,281,316,410,447; Internacional,286; Interno,202,261,277,303,340,371;Mundial,19‐20,65,74,159,198‐9,201,204,246,260,290‐1,293,294,297,319‐20,323,345‐6,393;Nacional,328,425,429‐30,443;Regional,410,429;deTrabalho,399;Urbano,315Messianismo,340,355,356‐7,431‐2Mestiçagem,67‐8,70,96,133,225‐6,316,448,453Methuen,Tratadode,380México,49,l59,193,297,372,452Migração,231,326‐7,328MinasGerais,103,110,144,152‐7,163,193,201,215,317,337,352,372,377,379,382‐3,395,404,417‐8,435,443Mineração,74,115,152,156,176,272,297,372‐4,376,378,380‐1,383,394,408,417Minifúndio,307,429,441Miscigenação,21,229,236,344,369MitologiaIndígena,328Mitos,333‐4Moçambique,114Mococa,215MododeProduçãoIndígena,259Monções(Paulistas),36,107Monocultura,I18,198,398MonteiroLobatoJ.Bento,390Montevidéu,243,413Montoya,pe.Ruizde,108MoreiraNeto,CarlosdeA.,321‐2Morus,Tomas,61Muckers,25,435,439Napoleão,157,380Nascimento,Abdiasdo,223Nassau,Mauríciode,143Natal,199,243Negros,19‐20,24‐5,30,37,39,51,54,68,72‐4,87,93,95‐6,98‐101,110,113‐9,123,125,127,131‐5,146,149‐53,157‐8,160‐4,168‐9,172‐4,177,179,187,205,209,219‐41,243,246‐7,249,256,258‐60,264‐5,275‐83,291,295‐6,301‐2,318,321‐3,364‐6,367‐9,372,376,378‐9,389,397‐9,403‐4,420,447‐50,453;Alufá,114;Bantu,114;Dahomey(Gegê),113‐4;Fanti‐Ashanti(Minas),114;Haussa,114;Malé,114;Mandinga,114;Peuhl,114;Yoruba(Nagô),113Negro,rio,123,146,148,328NewenZeytung,42.Nicolauv,papa,39Niemeyer,Oscar,263Nigéria,114.Niemundaju,Curt,130,148NinaRodrigues,Raimundo,113Nóbrega,pe.Manuelda,50‐1,55,58,84,89‐91,100,134NoGueira,Oracy,234,236NovoHamburgo,442Oeiras,193,197Olinda,95,150,188,194,275,297OrganizaçãoInternacionaldoTrabalho(GIT),148Ouro,30,36,44,50,66,68,74,128,152‐3,156‐8,161,176,178,186,188,193,195,246,272,276,284,309,317,332,337,353‐4,372‐5,379‐80,383,417,432Ouro‐Preto,153‐4,193‐4,378Palmares,143,151,167,173,220,275‐6,295,364Pará,56,144,170,200,215,318,321,321‐2Paraguai,29,35,37,55,82,102,122‐3,142,181,367‐8,407Paraíba,85‐6,94,144,180,395Paraná,144,383,404,406‐7,409,431,437Parentesco,75,81,102,169,331‐2Paris,199Pastoreio,98,272,340‐5,347‐8,352‐3,

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376,391,405‐6,409,416,420‐l,423‐4,425‐6Patriciado,178,208,211,255,262,293,349‐50,374,401Patronato,75,208,212,219,251,255,262,289,293,303‐4,318,350,401,423;Açucareiro,304;Seringalista,310PedraBonita,357Pelé,226Pelotas,rio,419Pernambuco,85,87,90‐1,94‐6,122,137‐8,143,163,180‐1,187‐8,275,295,299‐300,357Peru,49,331,372Peruíbe,55Petrobrás,202Piauí,143,193,341Pierson,Donald,234Piratininga,87,94‐5,191Pixinguinha,226PolíticaIndigenista,50,147Polônia,399Pombal,Marquêsde,56Portinari,Cândido,263PortoAlegre,199,439PortoSeguro,95,181,183PortoVelho,199,324Portugal,22,38‐40,63,67‐8,82,103,117,136‐7,149,153,157,186,188‐9,270,294,311.313,317,372,381‐2Positivismo,147Posseiros,391‐2,398,432Potosi,417PovosNovos,19,243,248,273,371PovosTransplantados,126,243,452Prata,rioda,122‐3,142,411,414,417ProcessoCivilizatório,39,64,73,254,273ProjetoAgromercantilExportador,251ProjetoColonial,60‐2,118,245ProjetoJesuítico,53‐4,62,170Proletariado,232,247,251‐2,398;Externo,20,74,159,192,447Queiroz,MariaIsauraPereirade,431Queiroz,MaurícioVinhasde,431Quilombo,220‐1,258,277‐8,295,322‐3,364,367‐9Racismo,225‐7Ramalho,João,83‐4,134Ramos,Arthur,113RaposoTavares,Antonio,143Recife,171,193‐4,199,275,296‐7,298Redfield,Robert,272Reforma,71,84‐5,91ReformaAgrária,159,205,300‐1,362,390,424‐5ReformaUrbana,205Religião,49,115,294‐5,375,451‐2RevoluçãoAgrária,259;Agrícola,31,273;Cubana,227;Econômica,91;Industrial,126,202,250,259,298,302‐3,438;Mercantil,38,273,286;Republicana,321;Social,227,247,297‐8;Tecnológica,64‐5,67,259,262,285‐6Ribeiro,Darcy,19,32,64‐5,113,142,156,215,228‐9,273,286,415RibeiroPires,Simeão,164RioBranco,199,315RiodeJaneiro,33,85,95,114,136,150,153,157,163,171,181,189‐90,193‐5,199,252,264,296,303,376,383,393‐4,404,419RioGrandedoNorte,33,277RioGrandedoSul,146,153,215,368,413,417,425,435‐7,439RochaPombo,JoséF.,161Rodrigues,Antônio,83Rodrigues,JoséHonório,299,301RodroguesDoPadro,Francisco,35Roma,38,58,65,71,125,199,265,454Rondon,CândidoMariano,147‐8Rondônia,334,336,404,406Roraima,331Rosa,Guimarães,263Rússia,399Sá,Memde,49‐51,92,94,99,137Sacramento,Colôniade,149,200,411,414,417,419

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Saint‐Hilaire,Augustede,146Saito,Hiroshi,241SalárioMínimo,213,304‐5,337Salesianos,146Salvador,136,194‐5,199,275Salvador,freiVicentedo,136‐9,156SantaCatarina,144,115,409,427,431,437SantaFé,417Santarém,2l5SantoAndré,84SantoOfício,38Santos,95,191Santos,Felipedos,374SãoFrancisco,rio,341,417SãoLeopoldo,442SãoLuís,99,193‐5,199,296,298SãoPaulo,33,54‐6,84,94‐5,97,105‐6,122,143‐4,170‐191193‐4,198‐9,202,204,233,264,303,370‐1,383,395.399,404,406‐7,419,437,450SãoSebastião,190SãoVicente,87,90,92,94‐5,180‐1,191,364,370‐1,376Sardinha,bispoP.Fernandes,99‐100Schmidel,Ulrich,83‐4Sebastião,dom,99,189,357SemanadeArtesModernas,407Seringal,216,310,323‐30,334,337‐8,400Sertanejos,21,98,111,168,174,256,272,324,326‐9,337‐8,340‐1,344‐5,347‐63,387‐8,400Sertanistas,110,367‐9ServiçodeProteçãoaosÍndios(SPI),148Sesmarias,87,157,284,287‐8,341,348‐9,35I,383,387,418‐9SetePovosdasMissões,61,419Simonsen,Roberto,102,143,161SindicatosRurais,304‐5,363SistemadeCastas,61;deCoivara,428;deColonato,401;Colonial,176;Escravista,290;deFazendas,279‐81,283,296‐7,301,389‐92,393,429;Feudal,290;Fundiário,425‐6;deGranjas,283,287;Mercantil,160,420;deParceria,301;Pastoril,352‐3Socialismo,192Solimões,rio,308,323,331Sorocaba,197Sousa,GabrielSoaresde,282sousa,MartinAfonsode,87‐8,190‐1Souza,PeroLopesde,87Souza,Toméde,51,84,88,137Staden,Hans,34Steward,JulianH.,142,279SuperintendênciadoDesenvolvimentodoNordeste(SUDENE),350Tapajós,rio,29,309Tapes,368,4I4,417Taubaté,372Taunay,AffonsodeE.,161Tavares,MariadaConceição,202Tecnocratas,203,208,247Teresina,199Thompson,Paul,141Tiradentes,140,154‐5,379Tocantins,rio,l00,331Tordesilhas,Tratadode,58,86,106,311Toynbee,ArnoldJ.,251Tráfico(negreiro),75,l02,161,177,220,228,371,389,395,399,417Transfiguração(Étnica),30,74,130,159,248,255,257‐9,261,273,288‐9,319,370,4l4,448Tropeiros,375‐6UNESCO,145UniãoDemocráticaRuralista(UDR),20lUrbanização,21,104,193,198‐9,409‐10,425Uruguai,122‐3,142,259,415,420,452VacariasdelMar,415,417Vargas,Getúlio,201‐2Vassouras,163Velhas,riodas,153Velho,DomingosJorge,52,110,l43,364

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Venezuela,331Viamão,419Vieira,pe.Antônio,56,58,102.307318VilaBela,36‐7,373VilaRica,373Vilhena,LuísdosSantos,282Villa‐Lobos,263Villegaignon,NicolasDurandde,91Vitória,199Vitória,freiFranciscode,58VoltaRedonda,201Wagley,Charles,253Waibel,Leo,241Willems,Emílio,241,272

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Fonte:

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro, 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Ebook.