O prazer da descoberta -...

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SETEMBRO/OUTUBRO DE 2014 | N O 3 WWW.BAHIACIENCIA.COM.BR O prazer da descoberta Novas experiências de ensino de ciências nas escolas baianas despertam o interesse dos estudantes A CAATINGA ESPERA POR UM PARQUE NO BOQUEIRÃO DA ONÇA EXCLUSIVO LIVRO DE OLIVAL FREIRE ANALISA A SEGUNDA REVOLUÇÃO QUÂNTICA ENTREVISTA JOÃO CARLOS SALLES PLANOS E REFLEXÕES DE UM REITOR FILÓSOFO ENERGIA ESTÁ NA MIRA DE LABORATÓRIO DE NANOTECNOLOGIA

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setembro/outubro de 2014 | no 3 www.bahiaciencia.com.br

O prazer da descoberta

novas experiências de ensino de ciências nas escolas baianas despertam o interesse dos estudantes

A cAAtingA esperA por um pArque no

boqueirão dA onçA

exclusivo

livro de olivAl freire AnAlisA A segundA

revolução quânticA

entrevistAjoão cArlos sAlles

plAnos e reflexões de um reitor filósofo

energiA está nA mirA de lAborAtório de nAnotecnologiA

12 EntrEvista João Carlos sallesNovo reitor da universidade líder da Bahia propõe a realização de um grande congresso para a instituição debater seu futuro

24 CapaNovas experiências pedagógicas buscam despertar o interesse pela ciência nos estudantes de escolas públicas da Bahia

seções

3 Outros olhares

4 Carta da editora

5 Rememória

6 Cartas

8 Poucas e boas

72 Resenhas

74 Charge

3

política

35 DesempenhoEstudante de Feira de Santana vence concurso promovido pela Universidade Harvard

produção do conhecimento

36 FísicaLaboratório baiano de nanotecnologia investe em projetos focados na produção de energia e alternativa de iluminação

40 inédito Olival Freire Junior explora e contextualiza a história de uma revolução complexa com rigor e em termos acessíveis

50 Meio ambiente Pesquisador da Univasf lidera esforço para implantar um parque voltado à preservação da caatinga em área de 800 mil hectares

pesquisa e desenvolvimento

56 BiotecnologiaMoscamed domina criação massiva de mosquitos Aedes transgênicos e torna-se referência para outros países

cultura e humanidades

62 artes cênicasCenário da dança vive momento de retomada, estimulado por oficinas, apostas na educação e um generoso espaço para a pesquisa

58 Ciências sociaisDicionário reúne dilemas contemporâneos do desenvolvimento econômico e social sem perder de vista o contexto histórico que os originou

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BahiaCiênCia | 3

outros olhares

escada e linhaGonçalo M. Tavares

Sempre se pensou a ciência como uma escada: colocado o pé no primeiro degrau, podemos pensar depois em colocá--lo no segundo. Existe uma linha, a que podemos chamar raciocínio ou lógica, e a metodologia é avançar sem tirar os pés da linha. Se não o fizermos, caímos. Ou seja: aban-donamos a metodologia da ciência.

Não são permitidos saltos. Ao argumento 3 deve seguir--se o argumento 4; o argumento 3 deve ter sempre no seu campo de visão as costas do 4 e o 4, por seu turno, nunca deverá perder de vista a parte da frente do argumento 3. No fundo, falamos de carruagens de um comboio, mas de um comboio parado. Para sairmos do sítio onde estamos, pas-samos de uma carruagem para a outra e portanto a viagem apenas termina se as nossas pernas não tiverem comprimento suficiente para passar de uma carruagem para a seguinte.

Nas ciências mais clássicas chamamos prova ao que nos permite passar para a carruagem seguinte e nas ciências que se baseiem mais na linguagem do que nas coisas materiais chamamos a essa tal coisa: argumentação. Na prova, a ma-téria argumenta; na argumentação, a linguagem prova.

O problema, num lado e noutro, é este: onde se começou?

Porque, de fato, para começar a andar é necessário come-çar. Pressupõe-se então que antes do caminhar existiu o não caminhar.

Para uma linha existir (um raciocínio ou uma série de provas) é necessário ocorrer o momento determinado onde se começa a desenhar a linha. Como defendia Kandinsky: a linha nasce sempre de uma força aplicada a um ponto. O ponto existe antes da linha. É, de certo modo, o que a gera. O pai e a mãe da linha são uma única personagem, neste caso, o ponto. Sem ele, a linha é apenas potência.

O problema é então este: se o desenvolvimento de uma linha é lógico, apoiado na razão e na prova (e por isso chamamos ciência a essa linha e cientistas aos que a dese-nham), o início da linha – o ponto – é sempre uma fixação que não tem causa: marca-se um ponto aqui, neste sítio específico do espaço, como se poderia perfeitamente mar-car ali, mais à frente ou mais atrás. A marcação do ponto inicial – da linha de raciocínio ou da linha de montagem de uma prova científica – é, pois, não causal, mas casual.

Começamos a raciocinar a partir daqui como poderíamos perfeitamente começar a raciocinar a partir dali.

Gonçalo M. Tavares é escritor português, autor de Imagens dos Espacialistas, entre outras obrasFotos de Luis Maria Baptista (Os Espacialistas)

4 | setembro/outubro de 2014

MariluCE Moura

Descobertas na bahia

Uma breve conversa com o secretário da Educação, Osvaldo Barreto, no final de julho, deixou-me a im-pressão de que algumas experiências novas no en-

sino de ciências na rede de educação do estado eram bom assunto para uma capa da Bahiaciência. Algumas semanas adiante, as várias exposições que ouvi sobre o programa Ciência na Escola, ao longo de uma agradável manhã no Instituto Anísio Teixeira (IAT) – a começar pelas de Irene Cazorla, diretora da instituição, e de Shirley Costa, coorde-nadora executiva do programa, terminando pelos relatos de experiências realizadas por desenvoltos estudantes –, con-firmaram minha impressão original. Saí do IAT convencida de que era necessário e urgente partilhar com os leitores informações sobre um programa de educação pública com visível potencial para fertilizar certas dimensões da cultura científica de que o Brasil carece tanto e, ao mesmo tempo, ajudar a formar jovens cidadãos intelectualmente autônomos e capacitados para reflexões e raciocínios mais complexos.

A consequência prática dessa minha disposição de espí-rito é a reportagem de capa desta edição, que o leitor pode conferir a partir da página 24. Ela é trabalho primoroso do jornalista Fabrício Marques junto com nosso editor de fo-tografia, Léo Ramos, possibilitado pela estreita e entusias-mada colaboração dos muitos entrevistados que aparecem nesse texto ricamente polifônico e no qual se procura trazer à luz um empreendimento de educação bem coordenado e multicêntrico, que se realiza espalhando-se em múltiplas formas pelo estado da Bahia. Depois de ler muito mate-rial, trocar inúmeros e-mails e telefonemas, Fabrício e Léo despenderam dois dias inteiros no corpo a corpo com pal-cos e protagonistas do Ciência na Escola em Salvador para oferecer uma visão mais vívida do que este programa é. De quebra, a reportagem ainda nos ligou à extraordinária figura que foi Anísio Teixeira, que assim aparece nesta edição nas rememórias do respeitado físico Sérgio Mascarenhas (pá-gina 5) e na resenha sobre o livro Anísio Teixeira: a polêmica da educação, de Luís Viana Filho (página 72). Não dava para desperdiçar a oportunidade de falar do grande baiano, ci-dadão do mundo e revolucionário da educação.

*Quero destacar também a entrevista de João Carlos Sal-les Pires da Silva (página 12), o novo reitor da Universi-dade Federal da Bahia (UFBA). O vigor e a profundidade de suas respostas permitem concluir que na liderança da maior universidade da Bahia está um brilhante intelectual,

carta da editora

professor e pesquisador reconhecidamente produtivo, um gestor testado e com profissão de fé sempre renovada nos métodos republicanos e democráticos de conduzir as ins-tituições. É claro que os destinos da UFBA estão, a rigor, nas mãos da comunidade de mais de 40 mil pessoas que a constituem. Mas, se a qualidade das lideranças faz diferen-ça, certamente essa comunidade, nas proximidades dos 70 anos de sua instituição, pode sonhar com um lugar de mais destaque no sistema universitário brasileiro e nos rankings da produção científica.

*Se qualquer publicação jornalística deve ter energia para se renovar sempre, sem, entretanto, trair seus propósitos originais, aquelas que estão começando desfrutam o espe-cial privilégio de uma grande liberdade de experimentação para ir conformando seu projeto. É assim que a Bahiaciência em seu terceiro número traz, em lugar de alguns artigos de duas páginas de diferentes especialistas, o primeiro capítulo do livro de divulgação científica de um grande especialista em história da ciência, Olival Freire Júnior (página 40). O livro, um trabalho de fôlego, em linguagem acessível, sobre a segunda revolução quântica, será publi-cado em inglês até janeiro de 2015 pela Springer, uma das maiores editoras internacionais no campo da ciência e da divulgação científica. Mas, enquanto isso, Olival, hoje pró--reitor de pesquisa, criação e inovação da UFBA, permitiu que esta revista traduzisse e oferecesse em primeira mão a seus leitores o belo material. Isso honra a revista e cer-tamente constitui um privilégio para seus leitores. A pro-pósito, seria muito interessante se uma editora brasileira de livros lançasse The quantum dissidents em português.

Esta carta não pode se estender muito mais, por isso brevemente destaco e recomendo a reportagem sobre ex-periências relevantes de nanociência no Instituto de Física da UFBA (página 36) e o esforço em defesa do bioma 100% brasileiro, que é a caatinga, partido da Univasf (página 50). Observo, por fim, que é um imenso prazer reencontrar amigos de décadas de Salvador em seu esforço para fazer avançar as ciências sociais. É assim que olho afetivamente para o Dicionário temático desenvolvimento e questão social, obra coordenada por Anete Ivo, objeto de reportagem desta edição a partir da página 68, ou para a revitalização das Oficinas de Dança, depois de uma interrupção de 17 anos, pelas quais Dulce Aquino tanto batalhou (página 62).

Boa leitura!

BahiaCiênCia | 5

Fui aluno de anísio teixeira na Faculdade nacional de Filosofia,

no rio, na antiga universidade do Brasil, hoje universidade

Federal do rio de Janeiro (uFrJ), entre os anos de 1948 e 1952.

Juntamente com lourenço Filho, anísio criara a Coordena-

ção das instituições do Ensino superior (Capes) e o instituto

nacional de Educação e pedagogia (inep) e implantava a revo-

lução da Escola nova, começada na Bahia, agora em nível na-

cional, com Fernando azevedo e outros.

anísio me convidou para trabalhar com ele em educação

para ciência e cheguei a publicar na Revista Brasileira de Edu-

cação análise crítica e dura dos livros didáticos de física e quí-

mica da época. anísio aguentou o “tranco”, pois eu mostrava o

atraso nessas áreas em plena revolução da física e da química

modernas.

Com meu declarado interesse em iniciar esforços para mo-

dernizar a educação pelo caminho das ciências, anísio me

convidou para ir dar um crash course de ensino de ciências

inteiramente experimental para professoras primárias na Bahia,

em salvador.

Fomos eu e minha esposa Yvonne em lua de mel para uma

inesquecível experiência num mosteiro em salvador, cheios de

entusiasmo e com inúmeros experimentos simples em ciências

para as professoras primárias motivarem seus alunos e a elas

próprias e colegas para o ensino que hoje chamaríamos “mão

na massa”.

anísio sabia que o desenvolvimento da sociedade brasileira

teria que trilhar o caminho da educação pela ciência e tecno-

logia e sair da velha trilha do blá-blá-blá com que nos coloni-

zaram. parece incrível que até hoje permaneçamos com esse

imobilismo em pleno séulo XXi. imobilismo no sentido de que,

apesar dos esforços inegáveis trazidos pela criação da Capes,

do Conselho nacional de Desenvolvimento Científico e tecno-

lógico (Cnpq) da Financiadora de Estudos e projetos (Finep),

todos mais recentemente no bojo do Ministério da Ciência,

tecnologia e inovação (MCti), até hoje não houve um decisivo

investimento de recursos com musculatura e longo prazo sufi-

cientes para nos levar a transformar o presente quadro educa-

cional na ciência, tecnologia e inovação. Esta é a grande decisão

política que nos falta, como ocorreu com a Coreia e a China,

por exemplo. E não é somente investimento do Estado, mas da

sociedade brasileira, incluindo empresas e capital privado.

há tempos venho propondo um projeto amplo, não um pi-

loto, mas uma ação nacional estruturante com a criação de uma

rede nacional de difusão, a CtiE (Ciência, tecnologia, inovação

e Educação Multimídia), nas cinco regiões do Brasil, com res-

pectivas centrais de produção regionais, rede esta capaz não

apenas de produzir conteúdos multimídia, mas também de

inserir-se na rede educacional municipal capilarizada com es-

tilo e conteúdos atuais ao século XXi, com as redes sociais,

ensino a distancia , conhecimento e métodos de ensino-apren-

dizagem globalizados e democráticos já disponíveis. seria essa

a nossa via para a ressurreição de anísio no século XXi. Em

tempo: criamos a academia de Ciências em ribeirão preto e,

tendo sido convidado, criei a cadeira anísio teixeira, na espe-

rança de que nessa região pioneira da ciência, onde nasceu a

sociedade Brasileira para o progresso da Ciência (sBpC), pos-

samos perpetuar a sua memória.

a ressurreição De anísio no século XXi

BahiaCiênCia | 5

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rememórias

sérgio MasCarEnhas

O físico-quimíco sérgio

Mascarenhas, 86 anos, é um dos

mais destacados e premiados

cientistas brasileiros, tanto por

suas pesquisas básicas quanto

pela criação de instrumentos

inovadores – entre eles um

sistema de tomografia de solos

pioneiro no mundo e um

equipamento não invasivo da

pressão intracraniana – e, sobretudo, por sua incansável liderança na

implantação de áreas e instituições fundamentais do sistema brasileiro

de ciência e tecnologia e na divulgação científica. Incluem-se entre

as materializações de seus sonhos a área de engenharia de materiais

em São Carlos, a Unidade de Apoio à Pesquisa e Desenvolvimento de

Instrumentação da Embrapa e o Instituto de Estudos Avançados

de São Carlos. Ver sobre ele em

http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/07/15/sob-pressao/

http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/07/01/a-fisica-do-mundo-presente/

http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2009/05/68-71_159.pdf

6 | setembro/outubro de 2014

asma

w A revista está ótima como um todo e o artigo sobre a asma não é exceção.

Álvaro a. cruz

Chair of the National Organizing

Committee GARD General

Meeting 2014

revista

w Parabéns pela iniciativa de vocês, o estado carece não só de ciência, mas também da divulgação dela. É muito importante ter um meio de divulgação para isso.

raphael moura

estudante de engenharia

da Universidade Federal

do Recôncavo da Bahia.

w Parabéns pelo belo trabalho de tocar uma revista de ciência e Inovação no estado.

João marcelo

Innovo Engenharia

w Parabenizo pela edição deste conceituado e grandioso magazine, há muito que estávamos à espera de uma revista desse porte.Destaco a grande entrevista de doutor Roberto Santos, o artigo “Uma grande teoria sobre o Brasil”, espetacular , sobre o nosso saudoso João Ubaldo, a matéria sobre a praga do cacau e o artigo sobre a 3a Bienal, maravilha. Mais uma vez parabéns. Atenciosamente,

Bauer sá

w Olá, pessoal da revista Bahiaciência! Gostaria de parabenizar todos vocês pelo belo trabalho que estão iniciando. Espero que não seja interrompido e que mantenha a riqueza do conteúdo para que a revista ganhe espaço e leve as informações sobre a produção científica de nosso estado para um número cada vez maior de pessoas, principalmente estudantes do ensino médio. Assim, bem informados, serão instigados e incentivados a fazer ciência, a desenvolver a área profissional que seguirem, em lugar de dar continuidade aos estudos visando apenas ao retorno financeiro. Mais uma vez, parabéns pelo trabalho!

augusto luis

estudante de Psciologia

da Universidade Federal da

Bahia.

cartas

editora

Mariluce Moura

editor assistente

Fabrício Marques

editora de arte

Mayumi Okuyama

Maria Cecilia Felli (designer)

editor de fotografia

Léo Ramos

colaboradores

Augusto Calil, Bruno de Pierro,

Celso Mauro Paciornik, Dinorah

Ereno, Eduardo Geraque, Gentil,

Gonçalo M. Tavares, Gustavo

Fioratti, Jussara Fino, Luis Maria

Baptista, Marcelo Garcia, Mauro

de Barros, Neldson Marcolin,

Ricardo Zorzetto, Sérgio

Mascarenhas, Terezinha Martino

tiragem

12.000 exemplares

impressão

Plural Indústria Gráfica

distribuição

Jornal A Tarde

É proibidA A reprodução totAl

ou pArciAl de textos e imAgens

sem prÉviA AutorizAção

contato

[email protected]

T: 55 11 3876-7005 / 3876-7006

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Júlio César Ferreira

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www.bahiaciencia.com.br

bahiaciência é uma revista

bimestral da

Aretê editora e comunicação

Rua Joaquim Antunes, 727, conj. 61

CEP 05415-012

Pinheiros, São Paulo, SP

T: 55 11 3876-7005 / 3876-7006

ISSN 2358-4548

42 | JULHO/AGOSTO DE 2014 BAHIACIÊNCIA | 43

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PARASITAS DE CÃES E GATOS ATENUAM

A ECLOSÃO DA ASMA ALÉRGICA,

CONSTATAM ESTUDIOSOS DA DOENÇA

RAÍZA TOURINHO

UMA PROTEÇÃO INESPERADA

PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

SAÚDE

Uma série de estudos elaborados nos últimos anos por pesquisadores baianos, sob a liderança do pneumologista Álvaro Cruz e do epidemiologis-

ta Maurício Barreto, ambos professores da Universidade Federal da Bahia (UFBA), vem demonstrando que é frá-gil a hipótese que associa a expansão da asma no mundo contemporâneo ao excesso de limpeza dos ambientes em que vivem as crianças nos países mais desenvolvidos. Em outras palavras, a prevalência da asma mostra-se alta também em ambientes marcados por padrões de higiene precários. Mas, ao mesmo tempo, esses estudos, baseados em levantamentos em regiões carentes de Salvador, têm demonstrado que crianças infectadas por alguns vermes são menos propensas às manifestações de asma alérgica do que aquelas não infectadas.

O aparente paradoxo entre essas conclusões só explicita o grau de complexidade dessa doença – síndrome, talvez –, para cujo conhecimento os pesquisadores baianos que

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A única empresa brasileirana lista das 50 mais inovadorasdo mundo não faz computadores, carros ou aviões.Fabrica inovações para todas elas.

braskem.com/inovacao

A Braskem é a única brasileira entre as 50 empresas mais inovadoras, segundo a Fast Company, revista de inovação número 1 do mundoEssa conquista reforça o compromisso da Braskem de investir em pesquisa e inovação para desenvolver a indústria brasileira e a cadeia produtiva do plástico. E chegar a soluções querevolucionem, como o plástico verde, produzido a partir de uma fonte 100% renovável a cana-de-açúcar, cujo processo de produção ainda elimina CO2 do meio ambiente. Essa é uma conquista da Braskem e de toda indústria brasileira que também acredita no poder da inovação

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8 | setembro/outubro de 2014

o nobel e a américa latina

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a safra 2014 do prêmio nobel reco-

nheceu contribuições como a des-

coberta do lED azul, que viabilizou

a fabricação de lâmpadas econômi-

cas, a identificação de um grupo de

células cerebrais que constituem

uma espécie de “gps” do nosso or-

ganismo e o desenvolvimento da

microscopia de super-resolução. o

prêmio de Economia coube ao fran-

cês Jean tirole, por seus estudos

acerca da regulação de setores in-

dustriais. o nobel da paz foi dividi-

do entre a paquistanesa Malala You-

safzay e o Kailash satyarthi, referên-

cias na luta pela educação de

crianças. Já o de literatura surpreen-

deu ao laurear o francês patrick Mo-

diano, fora das bolsas de apostas.

Mais uma vez, a américa latina ficou

fora da premiação, num sinal, ob-

servado por uma reportagem pu-

blicada pela agência France-presse,

das dificuldades da pesquisa e da

educação superior no continente.

a região multiplicou por seis sua

produção científica nos últimos 20

anos, chegando a 4,3% da produção

mundial, mas suas universidades

seguem malcolocadas nos rankings

internacionais. “a má notícia é que

a quantidade não foi necessaria-

mente acompanhada pela qualida-

de”, disse o sociólogo argentino

Jorge Balan, professor da universi-

dade de Columbia, em nova York.

“temos mais cientistas do que nun-

ca, porém a qualidade da pesquisa

não é tão boa de um ponto de vista

internacional.”

poucas e Boas

A inovAção do LEd AzuL

a invenção do lED azul rendeu

o nobel de Física de 2014 a três

pesquisadores do Japão: isamu

akasaki e hiroshi amano, da uni-

versidade de nagoia, no Japão,

e shuji nakamura, da universi-

dade da Califórnia em santa Bár-

bara, nos Estados unidos. lED é

a sigla em inglês de light-emitting

diode, ou díodo emissor de

luz. tais dispositivos eletrônicos

convertem energia elétrica em

luz de forma bastante eficiente,

utilizando materiais semicondu-

tores. o que o trio de pesquisa-

dores fez foi desenvolver, no

início dos anos 1990, um diodo

emissor de luz azul bastante efi-

ciente e ambientalmente susten-

tável. até então, apenas diodos

emissores de luz verde e verme-

lha haviam sido criados. À luz do

modelo de cores rgB, era neces-

sário um terceiro componente

para que fosse possível obter a

luz branca. Em termos práticos,

a criação do grupo contribuiu

para a concepção das lâmpadas

lED de luz branca utilizadas ho-

je, mais eficazes e duradouras

que as convencionais.

Nakamura

(abaixo), Akasaki

e Amano (dir.):

contribuição

para concepção

de lâmpadas

econômicas

REguLAmEntAção dE mERcAdos

o professor francês Jean tirole, de

61 anos, ganhou o nobel de Econo-

mia de 2014, por investigar como

grandes empresas devem ser regu-

ladas de forma a evitar que os con-

sumidores sejam prejudicados. “Ele

tem importantes contribuições teó-

ricas em várias áreas, mas esclareceu,

especialmente, como entender e

regular setores com poucas empre-

sas poderosas”, diz a nota da acade-

mia sueca. tirole mostrou teorica-

mente que algumas regras – como

limitar preços dos monopólios e

proibir a cooperação entre empresas

concorrentes para evitar cartéis –

podem funcionar bem sob certas

condições, mas têm mais efeitos

negativos do que positivos em outras.

para o economista, a política de re-

gulamentação da concorrência de-

ve ser cuidadosamente adaptada às

condições específicas de cada setor

industrial.

BahiaCiênCia | 9

A dEscobERtA do gPs cEREbRAL

a descoberta de uma espécie de

“gps cerebral”, um conjunto de cé-

lulas que dão forma a um sistema

de posicionamento do cérebro per-

mitindo a orientação no espaço,

rendeu o prêmio nobel da Medicina

de 2014 a John o’Keefe, do univer-

sity College de londres (reino uni-

do) e ao casal May-Britt e Edvard

Moser, da universidade noruegue-

sa de Ciência e tecnologia de tron-

dheim. o trio resolveu um problema

que há tempos intrigava os neuro-

cientistas: como o cérebro conseguia

desenvolver um mapa do ambiente

que o rodeia e como conseguimos

nos orientar em espaços tão com-

plexos e distintos com base nesse

mapa? o´Keefe identificou os pri-

meiros componentes celulares des-

ALém do LimitE dA micRoscoPiA

o nobel de Química foi conquistado

por Eric Betzig, do instituto Médico

howard hughes (Estados unidos),

stefan hell, do instituto Max planck

(alemanha), e William Moerner, da

universidade de stanford (Estados

unidos), pelo desenvolvimento da

microscopia de super-resolução por

fluorescência. a tecnologia permite

estudar com mais precisão o que

acontece no universo molecular

dentro de células vivas. Com ela se

tornou possível observar as células

nervosas do cérebro transmitindo

impulsos elétricos ou investigar pro-

teínas relacionadas ao desenvolvi-

mento das doenças de parkinson,

alzheimer e huntington. a micros-

copia óptica convencional apresen-

ta uma limitação física: sua resolução

é sempre inferior a metade do com-

primento de onda da luz utilizada.

por outras palavras, não seria pos-

sível visualizar objetos de dimensões

inferiores a 0,2 mícron (milésimo de

milímetro). Esta barreira teórica foi

superada pelos vencedores do nobel,

por meio da marcação de moléculas

biológicas com uma proteína que

se torna fluorescente. hoje, os cien-

tistas conseguem fazer várias ima-

gens de uma mesma área, permitin-

do que apenas uma molécula brilhe

de cada vez. Em seguida, sobrepon-

do imagens, obtém-se uma imagem

em escala nanométrica.

mAis um PRêmio PARA A FRAnçA

a academia sueca premiou o escri-

tor francês patrick Modiano, 69, com

o prêmio nobel de literatura “pela

arte da memória com a qual evocou

os destinos humanos mais inapreen-

síveis”, conforme o comunicado ofi-

cial. o livro mais famoso de Modia-

no é Uma rua de Roma, que narra a

história de um detetive que perde a

memória. seu primeiro romance, La

place de l’étoile, foi publicado em

1968. ao longo da carreira, também

escreveu roteiros para o cinema. Foi

um dos autores do filme Lacombe

Lucien (1974), dirigido por louis Mal-

le. Modiano é o 11º autor francês a

ganhar o nobel de literatura. Entre

seus livros publicados no Brasil está

Filomena Firmeza, de 1988, editado

pela Cosac naify.

se sistema de posicionamento em

1971. À época, observou que um

grupo de neurônios era sempre ati-

vado quando camundongos eram

colocados em lugares específicos

mais de uma vez. Mais de 30 anos

depois, em 2005, o casal Moser iden-

tificou outro tipo de neurônio, cha-

mados de “células de grade”, ativado

quando os animais estavam em uma

determinada região. Esses neurônios

geravam um sistema de coordena-

das que permitiam o posicionamen-

to preciso.

Betzig, Hell e

Moerner:

marcação de

moléculas com

proteína

fluorescente

EducAção E PRotEção dAs cRiAnçAs

a jovem ativista paquistanesa Malala

Yousafzay, de 17 anos, dividiu o prê-

mio nobel da paz com o engenheiro

indiano, e também ativista, Kailash

satyarthi, 60 anos. ambos são refe-

rência na luta pela proteção de jovens

e crianças e a garantia de seu direito

à educação. a dupla dividirá 8 milhões

de coroas suecas, cerca de r$ 2,64

milhões. Malala foi baleada na cabe-

ça em outubro de 2012, no paquistão,

em represália do talibã à sua campa-

nha pelo direito das meninas à edu-

cação no país. Em 2013, foi eleita uma

das 100 pessoas mais influentes pela

revista Time. Já satyarthi há anos se

dedica à organização de protestos

pacíficos contra a exploração de crian-

ças e contribuiu para a criação de

convenções internacionais voltadas

aos direitos das crianças.

O casal Moser e

John O'Keefe:

grupo de células

que permite

orientação

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10 | setembro/outubro de 2014

os prêmios ig nobel de 2014, que

premiam pesquisas que fazem “rir

primeiro e pensar depois”, foram en-

tregues no dia 18 de setembro numa

cerimônia na universidade de har-

vard, nos Eua. o ig nobel de Física

foi atribuído a um grupo de pesqui-

sadores do Japão, que se dedicou a

investigar por que cascas de banana

são escorregadias. o trabalho mediu

o atrito entre um sapato, uma casca

de banana e o chão. Entre seus acha-

dos, constatou que a banana é mais

escorregadia do que a casca da ma-

çã e da tangerina. Já o prêmio de

neurociência coube a um grupo de

pesquisadores da China e do Cana-

dá que estudou, por meio de resso-

nância magnética, como funcionam

os cérebros de pessoas que veem o

rosto de Jesus Cristo em torradas. o

prêmio de psicologia reconheceu a

contribuição de pesquisadores da

austrália, do reino unido e dos Es-

tados unidos, que, em artigo publi-

cado na revista Personality and In-

dividual Differences, encontraram

uma relação entre o hábito de ficar

acordado até tarde e a probabilidade

de se tornar um psicopata. na cate-

goria saúde pública, a vitória foi de

um conjunto de artigos, feitos por

pesquisadores dos Estados unidos,

Índia, Japão e república Checa, que

avaliaram se viver com um gato é

ou não é perigoso para a saúde men-

tal. o ig nobel de Biologia, conquis-

tado por pesquisadores da alemanha,

república Checa e Zâmbia, docu-

mentou que os cães, quando defecam

e urinam, preferem alinhar o eixo

de seu corpo com o eixo geomag-

nético norte-sul da terra. o artigo

foi publicado na revista Frontiers in

Zoology. na categoria arte, venceu

um trio italiano que comparou o

sofrimento causado por olhar uma

pintura feia, em relação a olhar para

uma pintura bonita e a ser alvejado

na mão por um feixe de raio laser. o

prêmio de Economia foi conferido

ao instituto nacional de Estatística

da itália, por incluir as receitas com

prostituição, comércio de drogas,

contrabando e outras atividades ilí-

citas nos cálculos do tamanho da

economia. o prêmio de Medicina foi

conferido a pesquisadores da Índia

e dos Estados unidos, que demons-

traram a eficiência de usar tiras de

carne de porco para conter hemor-

ragias nasais persistentes. pesquisa-

dores da noruega, Estados unidos,

Canadá e alemanha ganharam o ig

nobel de Ciência sobre o Ártico ao

testarem como as renas reagiam

quando viam humanos fantasiados

de ursos polares. por fim, o prêmio

de nutrição foi dado a pesquisadores

espanhóis que testaram o uso de

bactérias encontradas nas fezes de

bebês na fermentação de linguiças.

a paródia do nobel é promovida to-

dos os anos pela organização im-

probable research, que analisa cen-

tenas de estudos publicados em

revistas científicas sobre assuntos

que estão no limite entre a curiosi-

dade científica e o humor. Em 2008,

dois pesquisadores brasileiros ven-

ceram a categoria arqueologia do ig

nobel. o estudo dos arqueólogos

astolfo Mello araújo e José Carlos

Marcelino demonstrou que os tatus,

hábeis em escavar terrenos, podem

embaralhar a posição de fragmentos

de peças arqueológicas e atrapalhar

o trabalho dos pesquisadores.

Ensino dE biociênciAs

Estão abertas até o dia 10 de novem-

bro as inscrições para o Curso de

Especialização em Ensino de Bio-

ciências e saúde. promovido pela

Fiocruz Bahia, o curso é destinado

a professores do ensino básico, téc-

nico ou tecnológico que atuem em

escolas municipais ou estaduais.

serão oferecidas 20 vagas. o curso

e as inscrições são gratuitos. para se

candidatar, os interessados devem

preencher um formulário e enviar

para o e-mail pos.biociencias@bahia.

fiocruz.br. o curso, que tem duração

prevista de um ano, com carga ho-

rária total de 360 horas, busca in-

centivar a inovação na prática do-

cente e a capacitação para o uso de

ferramentas e a produção de mate-

riais educacionais. a previsão é de

que as aulas sejam iniciadas em 1o

de dezembro de 2014. “um diferen-

cial deste curso é a tentativa de as-

sociar informações específicas das

áreas de ciências biológicas e da

saúde com conteúdo relacionado a

metodologia do ensino”, diz o pes-

quisador da Fiocruz Bahia e coor-

denador do curso, ricardo riccio

oliveira.

Em busca de

inovações no

ensino de ciências:

curso tem como

alvo professores

de escolas públicas

PEsquisAs quE FAzEm RiR

BahiaCiênCia | 11

monitoRAmEnto dE EvEntos

uma iniciativa de pesquisadores da

universidade Federal da Bahia (uFBa),

que surgiu para atender a uma de-

manda da organização da Copa do

Mundo, transformou-se em uma

linha regular de pesquisa que busca

oferecer soluções para indústrias e

eventos. trata-se do sQuare (sigla

em inglês para safety, Quality and

mEdALhAs nA oLimPíAdA

o Brasil conquistou uma me-

dalha de ouro, duas de prata

e uma de bronze na olimpía-

da ibero-americana de Bio-

logia (oiab 2014), realizada

entre 7 e 13 de setembro no

México. Foi o melhor resulta-

do da delegação do país na

história da competição. a es-

tudante leticia pereira de

souza, do Ceará, ficou com a

medalha de ouro. gabriel gue-

des, de são paulo, e ana lui-

za smith roche, aluna do Co-

légio Militar, de salvador, con-

quistaram a de prata; e Mario

anderson, também do Ceará,

ficou com a de bronze. De

acordo com a Agência FAPESP,

a equipe participou de um

treinamento intensivo com

professores das universidades

do Estado do rio de Janeiro

(uerj), da Federal Fluminense

(uFF) e da Federal do rio de

Janeiro (uFrJ). tiveram aulas

teóricas e práticas de bioquí-

mica, biotecnologia, micros-

copia, ecologia, genética,

histologia vegetal e dissecção

de vertebrados e invertebra-

dos. Durante a programação

da oiab, os jovens participa-

ram de duas provas teóricas

e de uma prática, seguindo o

modelo da olimpíada inter-

nacional. a próxima oiab se-

rá realizada em 2015 em El

salvador. para participar, o

aluno deve antes competir na

olimpíada Brasileira de Bio-

logia (oBB). podem se inscre-

ver jovens de no máximo 19

anos, que estejam cursando

o ensino médio ou que já con-

cluíram, mas ainda não se

matricularam em uma insti-

tuição de ensino superior.

reliability), conduzida pelo grupo

de pesquisa processos e tecnologia

da uFBa, que é coordenado pelo

professor Marcelo Embiruçu, da Es-

cola politécnica da uFBa. o sQuarE

é composto por ferramentas com-

putacionais que ajudam a registrar,

monitorar e gerenciar ocorrências

de falhas nos sistemas analisados.

seu principal fruto é o arena sQua-

re, dotado de aplicativos que per-

mitem informar rapidamente pro-

blemas relacionados à operação e

aos serviços de arenas multiuso, e

também a interpretar as ocorrências

registradas. ainda está em fase de

desenvolvimento uma ferramenta

de gerenciamento integrado de ocor-

rências, destinada aos responsáveis

pela operação das arenas. os pri-

meiros resultados dessa ferramenta

levam em conta informações cole-

tadas na arena Fonte nova durante

os jogos da Copa do Mundo. segun-

do os membros da equipe sQuare,

o projeto ajuda a manter os padrões

de segurança e qualidade estabele-

cidos como legado dos megaeven-

tos esportivos da Copa do Mundo.

Inauguração da

Arena Fonte

Nova, em 2013:

gerenciamento

de ocorrências

FOT

OS

•r

eP

ro

du

çã

o •

se

co

m/b

a •

se

co

m/b

a

12 | setembro/outubro de 2014

entrevista João carlos salles

Pouco depois de o cortejo ter alcançado seus lugares na mesa solene, o hino nacional cantado vigorosamente por todos daria uma medida da elevada temperatura emocio-nal daquela celebração dentro de uma solenidade político--administrativa, e que, aliás, se manteria inalterada até as últimas palavras do discurso do novo reitor e a sessão de cumprimentos subsequente.

Mas quem é o personagem central deste ato, este reitor escolhido, numa disputa acirrada, por mais de 50% dos votantes, ou seja, professores, estudantes e funcionários técnico-administrativos da universidade? Um filósofo especializado em Wittgenstein, pasmem! – nada menos popular. O filho de uma conservadora e tradicional famí-lia de Cachoeira, criança criada num sobrado do século XVIII que hoje, transformado em espaço cultural, carrega o poético nome de Pouso da Palavra, para alegria de Sal-les, que louva a coincidência. Afinal, a palavra tem peso fundamental, decisivo, em seu trabalho.

Ele é também o adolescente de 13 anos que, no come-ço da década de 1970, chega a Salvador para estudar no Colégio Dois de Julho, presbiteriano, mas liberal como

A cerimônia de transmissão do cargo de reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) a João Car-los Salles Pires da Silva, 53 anos, no fim da tarde

da segunda feira 8 de setembro, foi um acontecimento. À frente do chamado cortejo reitoral, de braços dados com a ex-reitora Eliane Azevedo e acompanhado pelos ex-reitores Dora Leal Rosa, Germano Tabacoff e Roberto Figueira San-tos, Salles atravessou o Salão Nobre do tradicional palácio do Canela, da entrada até o palco ao fundo, sob os aplau-sos prolongados e para lá de entusiasmados da multidão de estudantes, professores, funcionários da universida-de, políticos, autoridades do estado, amigos e familiares.

Das galerias do salão, pendiam faixas da União Nacio-nal dos Estudantes, a velha UNE, e de outras instituições estudantis, a proclamar “Democracia na UFBA. Reitor empossando + 1 aliado”. Se numa galeria acomodava-se o madrigal da universidade, versado em repertório mais erudito, na porta do prédio uma filarmônica já tratara de saudar os convidados que chegavam, e perto do palco con-centravam-se os músicos do Ilé Funfun com os atabaques preparados para a abertura dos trabalhos e dos caminhos.

MariluCE Moura

fotos léo raMos

um FiLósoFo quER sAcudiR A uFbA

novo rEitor Da univErsiDaDE

lÍDEr Da Bahia propõE a rEaliZação

DE uM granDE CongrEsso para a

instituição DEBatEr sEu Futuro

BahiaCiênCia | 13

14 | setembro/outubro de 2014

poucos naquele período pesado, e que descobrirá entre deslumbrado e assustado a cidade grande e novas formas aventurosas de estar no mundo. Experimentará um certo modo de ser hippie, a macrobiótica e uns tantos percursos até a militância estudantil e a participação na Ação Popu-lar Marxista Leninista, a AP, que alguns jovens idealistas buscam reorganizar em 1977, depois de a organização ter sido destroçada em 1973, com a prisão e a morte de seus principais dirigentes. À distância, Salles fala com carinho de Jair Ferreira de Sá, um dos poucos dirigentes sobrevi-ventes do massacre, que ele conheceu naqueles verdes anos.

O jovem militante marxista escolheria naturalmente a economia como carreira a se dedicar, mas a filosofia o atrai-rá sem concessões. E é de dentro de seus domínios que ele trabalhará firmemente para que a filosofia na Bahia rompa um longo isolamento institucional e intelectual e se articule com a comunidade filosófica brasileira e internacional. Nada a estranhar, assim, que João Carlos Salles tenha se torna-do diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA de 2009 a 2014. Ao longo desse trajeto também sua produção acadêmica tornou-se robusta e hoje inclui, entre outros livros, A gramática das cores em Wittgenstein (CLE/Unicamp, 2002), O retrato do vermelho e outros ensaios (2006) e O cético e o enxadrista: significação e experiência em Wittgenstein (2012), publicados pela Editora Quarteto.

Foi em seu gabinete, na ensolarada manhã do sábado 27 de setembro, que João Carlos Salles concedeu à revista Bahiaciência a entrevista cujos principais trechos publi-camos a seguir.

y Comecemos pela incrível cerimônia de sua posse. A que você atribui tamanha torcida por sua condução à reitoria da UFBA?Vou ensaiar algumas possibilidades de resposta. A primeira, acho que tem a ver com a própria situação da universida-de. A UFBA apresentava um cenário de esvaziamento da política e de diminuição da sua tradicional estima elevada, do seu orgulho, da sua alegria. Estava entrando um pouco numa certa pauta negativa de enfrentar problemas que, às vezes, não eram próprios dela, como mobilidade urbana, segurança, violência. Também enfrentava pressões as mais diversas, precarização do trabalho dos docentes, uma tercei-rização bastante acentuada, problemas com relação à assis-tência estudantil, problemas com relação à divulgação e ao reconhecimento de suas pesquisas. Ou seja, a UFBA estava atravessada por um sentimento estranho de que a mais im-portante instituição de ensino superior do estado da Bahia não vivia seus melhores dias, pressionada por um contexto econômico, por novas legislações que burocratizavam des-de a simples licitação a até mesmo o convívio, a liberação, a progressão funcional de professores e coisas desse tipo. Daí uma certa sensação de mal-estar, da qual posso diag-nosticar como um dos elementos a falta de uma política de autorreflexão, de uma identidade da gestão com os senti-mentos mais característicos da universidade. Começamos uma campanha com uma pauta positiva que levou à eleição.

y Vocês começaram a campanha uns seis meses antes da eleição, não? Até dezembro de 2013 eu não estava certo de que ia ser can-didato. Estava com passagem, seguro e visto para viajar aos Estados Unidos. Após um tempo na gestão da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, eu disse: “É hora de fazer um pós-doutorado”. Aliás, não tinha feito isso ainda porque desde que retornei do doutorado tinha sido tragado pela gestão, ao tempo que continuava a trajetória de pesquisador. Era o momento de sair, mas a pressão dos amigos, o cenário que se desenhava, me tocou. Fui tocado pela militância.

y A propósito, por falar em amigos e militância, que forças são as que você representa? Primeiro, não diria que são forças políticas, curiosamente. Acho que é um campo.

y Acadêmico?Um campo acadêmico e político. Como campo acadêmico compreende a universidade como um lugar de trabalho requintado, sofisticado, formador, comprometido com valores científicos, mas, ao mesmo tempo, não um lugar de pesquisa separado do mundo, desvinculado de com-promissos sociais. Esse campo acadêmico compreende a composição da universidade, a necessidade de sua abertura para uma camada mais ampla da população, sem perder a qualidade. Portanto, ele compreende e consegue ligar essas duas coisas. Tenho uma visão de esquerda em rela-ção à universidade, o que tem a ver com minha trajetória política. E, embora meus amigos estejam hoje espalhados em várias agremiações políticas – PC do B, PSOL, várias correntes do PT etc. –, temos um vínculo de confiança conquistado há muito tempo.

y Você foi originalmente da Ação Popular, não? Sim, fui da Ação Popular Marxista Leninista. Essa é minha trajetória de 1977 até 1981, cujo começo coincide mais ou menos com o da a existência do jornal Em Tempo. Saio da condição de militante secundarista (quando criamos a cor-

EssE CaMpo aCaDêMiCo CoMprEEnDE a nECEssiDaDE DE sua aBErtura para uMa CaMaDa Mais aMpla Da população, sEM pErDEr a QualiDaDE

BahiaCiênCia | 15

rente Avante) e passo a fazer a transição para a universidade. E aí se criam laços de confiança muito fortes com pessoas que conheci na militância, até o momento de fundação do PT. Cheguei a assinar a ficha de filiação ao PT, mas essa fi-liação não se confirmou depois e eu me afastei inclusive da política mais organizada, digamos assim, e migrei para a filosofia, que já é outra história. Esses amigos, mais os ami-gos pesquisadores da UFBA, os amigos de São Lázaro, da Filosofia e do Instituto de Psicologia, que viveram comigo uma experiência de gestão que teve como base um diálogo muito intenso, são importantes na continuação do diálogo e do campo que a candidatura veio a representar.

y Foi então com base principalmente em sua trajetória como diretor da Faculdade de Filosofia que se encaminhou sua candidatura à reitoria? Digamos assim, esses amigos e os pesquisadores se orga-nizaram em função de uma experiência recente de gestão muito bem-sucedida que tirou a Faculdade de Filosofia de um sentimento para baixo, um sentimento de que as coisas não estavam dando certo, de que a pesquisa não estava sendo valorizada.

y Durante sua gestão a Faculdade de Filosofia recuperou um sentimento de poder fazer?Sim, mas sobretudo, eu diria, a sociabilidade ficou destrava-da. Os grupos de pesquisa que sempre disputavam espaços e posições sentiram um tratamento republicano, um espaço democrático de diálogo, tanto que eu consegui – talvez essa seja uma chave – que pessoas com posições muito afastadas e em conflito até recentemente, por exemplo, em função de uma greve que tivemos, apoiassem a candidatura.

y Você se tornou aquela liderança capaz de aglutinar dife-rentes visões e polos divergentes.Acho que sim. E talvez a alegria da posse signifique que pessoas que têm e devem continuar tendo divergências, o que é bom, sabem, entretanto, que podem constituir um espaço público de diálogo que não se separa da gestão. Não consigo pensar a gestão como um lado tecnocráti-co separado da política. A gestão tem sua dinâmica, seu ritmo, seu tempo, e a política tem outro tempo, às vezes bem diferente, mas se pode combinar e oxigenar uma pela outra. A experiência de São Lázaro, que não deixa de ser um lugar especial para a reflexão sobre a universidade e sobre o próprio sentido da universidade, lugar de filosofia, história, sociologia, beneficiou o diálogo com as diversas áreas da UFBA. E isso contagiou as pessoas. Então, tivemos apoio e uma votação extremamente expressiva, cerca de 55% dos votos nas três categorias de eleitores (professores, trabalhadores técnicos e administrativos e estudantes). Na alegria da posse tem outra coisa: um modo de construção em torno de um projeto com determinados valores. Fize-mos, de fato, um trabalho conjunto de construção – e esse foi o nome da chapa, Construção Coletiva.

y Você tomou toda a sua experiência de militância e fez es-sa construção.Fizemos juntos. Foi mais a experiência da gestão, porque às vezes a militância é limitada. Se fôssemos apenas pensar nas experiências de militância, poderia ser o contrário. Traría-mos um pacote pronto de projetos, uma carta de propostas, e buscaríamos convencer as pessoas. Em vez disso, lancei um texto-compromisso com uma série de valores, e juntos, num seminário, construímos uma plataforma política. Foi um processo democrático e com ideias não previstas que surpreendem. E isso é bom, a imprevisibilidade da política invadindo a possibilidade de uma gestão mais participativa.

y Olhando já da posição de reitor, quais são os pontos fun-damentais dessa plataforma?Primeiro, uma vontade de integração da gestão. Percebia-se que a gestão estava fragmentada por não haver um espaço político de debate. E não haver esse espaço, curiosamente, acaba fazendo com que mesmo o gestor mais generoso se torne um pouco tirânico involuntariamente. Porque há uma separação, um corte. Da mesma forma, não haver um espaço público faz a gestão se fragmentar, porque ela acaba repre-sentando as diferentes correntes, posições, interesses, e não se tem uma gestão concentrada, oxigenada pelo diálogo com a sociedade. Assim, a primeira questão é um certo procedi-mento democrático de deliberação, de construção da gestão, isso é o que estamos sentindo e tentando hoje. Faltava muito a ideia de equipe que pensa articuladamente a universidade, e insistimos nisso. Por exemplo, a assistência estudantil não se descola de pesquisa, não se pode fazer pesquisa na UFBA desconhecendo a extração social do mundo dos estudantes. Então, tem que se ter uma política de pesquisa articulada, que não gere uma elite de pesquisadores por oposição à massa des-valida. O interessante é possibilitar esse diálogo enriquecedor, no qual se junta um bom pesquisador a um estudante que às vezes tinha um déficit de escolaridade e ao qual se oferecem condições para que se aproxime e aqui se realize plenamente.

y Trata-se então de trazer estudantes que entram na univer-sidade pelo sistema de cotas para as possibilidades plenas de desenvolvimento oferecidas na universidade. Como?Esse é um ponto-chave: não basta acesso, é preciso real inclusão. Então, fizemos uma operação conceitual, na qual a palavra excelência foi uma chave importante. Queríamos mostrar que só tem excelência acadêmica a instituição que possui uma boa assistência estudantil, que combate a ho-mofobia, manifestações de autoritarismo etc. Ou seja, a excelência acadêmica é um conceito mais amplo, não eli-tizante, mas de combate à elitização que os mecanismos da produção de saber naturalmente geram.

y Onde vocês se reuniam para fazer discussões dessa natu-reza durante a campanha?Em várias unidades. Claro que em São Lázaro, nos vários ins-titutos, na Geociências, na Arquitetura... Então, eu diria que

16 | setembro/outubro de 2014

houve, sim, uma construção conceitual, uma compreensão nova de certas noções que estavam isoladas e pareciam ser meras bandeiras. Elas apareceram a todos nós como possíveis sementes, como projetos efetivos de gestão. Conseguir fazer com que uma bandeira política, que geralmente está no cam-po da utopia, se desloque para alterar decisões acerca de que bolsas vão ser concedidas, que orçamento vai ser destinado, como se vai querer equilibrar, decidir certas questões, dá uma energia nova, que é o sentimento de que podemos fazer isso conjuntamente, oxigenando o espaço público, compreendendo a boa energia da UFBA. E se pensamos na posse, vemos que ela congrega talvez alguns elementos interessantes do nosso projeto. Primeiro, essa presença dos políticos, da qual não temos medo porque não estamos subordinados: eles são in-terlocutores, não senhores. Não temos medo do diálogo com o Estado, precisamos dialogar com o Estado e com todas as di-mensões da sociedade. É neste diálogo que mantemos a nossa autonomia, não o contrário, não por isolamento. Ao mesmo tempo, precisamos dialogar com a nossa cultura, com a his-tória. E isso é tanto um madrigal sofisticado ou um virtuose como Mario Ulloa, cujo toque do El Cóndor Pasa foi o tema da campanha, quanto a filarmônica na entrada da reitoria rece-bendo as pessoas, com Fred Dantas, da Oficina de Frevos e Dobrados, e também os atabaques do Ilê Funfun abrindo os caminhos, com um certo tipo de tradução respeitosa em re-lação ao que é a nossa posição no nosso discurso, no próprio ritual. E onde a continuidade não impede a diferença, onde a diferença não significa desrespeito, ao contrário, uma reverên-cia até mais do que justa a toda dedicação da professora Dora, a reitora que me antecedeu. A cerimônia trouxe as marcas de nossa campanha. Não fizemos uma campanha de ruptura, de oposição, de crítica negativa, sobretudo não em relação à reitora, cuja condução sempre foi muito elegante, respeitosa e responsável com a universidade. E depois o nosso discurso representa um pouco esse tipo de tentativa de juntar as coisas.

y O que você destacaria que tem que ser feito em seus anos de reitoria? Primeiro tentei fixar essa ideia do que seria atual. Segun-do, penso que é fundamental recuperar um certo cuidado

com o patrimônio público, numa correção dos procedi-mentos que nos levam a um tratamento burocrático, por exemplo, na condução das obras. Hoje somos obrigados a entrar num jogo pesado das licitações em que é muito difícil garantir qualidade, preço, bom emprego dos recur-sos, boa fiscalização. E como a universidade foi sacudida por um grande investimento em obras, esse é um ponto fundamental do nosso compromisso. Temos muitos pré-dios em obras, muitas obras paradas, obras com qualidade bem longe do desejável, tanto que abri uma sindicância geral do conjunto das obras da universidade nesta semana [final de setembro].

y Isso compromete o orçamento da universidade?A destinação de verbas para essas obras já vem rubricada [pelo governo federal]. Assim, mesmo que sejam insu-ficientes e precisem ser complementadas, eu diria que se compromete mais a vida da universidade. Há setores parados às vezes por anos a fio, várias escolas na imi-nência de mudar e sem conseguir fazê-lo, laboratórios sem poderem ser usados. Problemas com as empresas são uma luta constante, então, embora eu não goste que seja assim, as obras precisarão ser o centro da atenção. E se conseguirmos dentro dos próximos quatro anos di-zer que não nos preocupamos mais com obras, isso terá sido uma grande vitória. Com a comissão de sindicância criada, vamos responsavelmente ver o que pode ser ace-lerado e o que deve ser corrigido para que nossa comu-nidade possa recuperar e usar esses espaços. Mas o que impacta o orçamento hoje é um crescimento muito grande dos custos com limpeza, vigilância, proteção e portarias. Tudo isso se deslocou para contratos terceirizados que representam gastos de cerca de R$ 40 milhões por ano. Só à vigilância patrimonial são destinados cerca de R$ 25 milhões, um valor bastante pesado.

y E o patrimônio está tão ameaçado de roubo? Não, mas existe um sentimento não justificado de insegu-rança muito forte. Temos na UFBA mais de 500 câmeras, é mais do que o município dispõe. Certamente o número de ocorrências dentro da UFBA é bem menor do que fora. Isso não significa que vamos descuidar da nossa segurança, mas não deixa de ser em parte infundada essa sensação.

y Aconteceu algo que tenha levantado essa paranoia?Episódios isolados. Houve recentemente uma ocorrência, absolutamente aleatória, que escapa a toda previsibilida-de, que foi um disparo feito por um vigilante contra um aluno que estava pichando um muro. Nada justifica o que o vigilante fez, mas isso também não tem a ver com uma política. E só para registrar: um ou outro furto, um que outro episódio numa festa, tudo isso pode criar um sen-timento de insegurança não estatisticamente justificado ou relevante. Mas temos que dizer: há, sim, ocorrências de furto, isso deve ser combatido e a vigilância é necessária.

a EXCElênCia aCaDêMiCa é uM ConCEito Mais aMplo, DE

CoMBatE À ElitiZação QuE os MECanisMos Da

proDução DE saBEr naturalMEntE gEraM

BahiaCiênCia | 17

y Então o esquema de vigilância está passando por um re-dimensionamento?Vamos estudar isso para exatamente ordenar e mobilizar a comunidade a enfrentar o que seria uma política de segu-rança. Mas, ao mesmo tempo, mobilizá-la para o que seria uma política de pesquisa, ensino etc., correspondente à nossa situação de hoje, de necessidade de internacionalização do conhecimento e de incremento da produção científica. E, para isso, vamos fazer um grande congresso na UFBA. Este foi um dos pontos na nossa proposta que mais entusiasmaram as pessoas: a possibilidade de fazer a UFBA parar e pensar so-bre si mesma, pensar quais são seus projetos de longo prazo.

y Esse congresso coincide com os 70 anos da universidade?Não, vamos fazê-lo no segundo semestre de 2015, e os 70 anos serão comemorados em 2016.

y E como você o vislumbra?A ideia é fazer um congresso numericamente expressivo e cuidadosamente preparado. Vamos tentar fazer com que a nossa comunidade, um conjunto de mais de 40 mil pessoas, tenha a oportunidade de participar. As aulas es-tarão suspensas, vamos usar nossos pavilhões de aulas e transformar a UFBA, por pelo menos uma semana, num grande centro de convenções. É claro que será antecedido por uma grande preparação, vamos definir alguns eixos de força para os quais vamos mobilizar nossa comunidade acadêmica, as pesquisas, o debate, e trazer convidados. É sempre importante que a universidade não dialogue so-zinha, não se feche. Até para pensar sobre si mesmo você tem que dialogar com outras experiências.

y Qual é o fulcro do congresso?Pensar a UFBA é pensar seus marcos regulatórios, o esta-tuto, o regimento. Será que esses documentos que regem a vida universitária estão em conformidade com o que se deseja? Há pontos do regimento que são questionados pela comunidade, por exemplo, uma exigência de carga horária superior ao que a Lei de Diretrizes e Bases obriga. É ne-cessário refletir sobre como estão funcionando os nossos conselhos, os fóruns rotineiros de deliberação. Há questões muito objetivas do ponto de vista da legislação da UFBA a serem pensadas. Mas há sobretudo questões acerca de polí-tica: como a UFBA lida com as avaliações do conhecimento que produz? Qual é a política que tem em relação à gradua-ção e em relação à pós-graduação? Compreende diferenças, vai aplastrá-las? Vai investir mais na internacionalização? Como? Pelo intercâmbio, pela publicação de papers? Talvez este seja o grande desafio acerca da produção sobre o que a UFBA tem que refletir: o que torna a produção acadêmica relevante? São indicadores de impacto? Vamos ter medidas distintas para as diversas áreas, dado que realizam a compe-tência acadêmica de formas muito diversas? Vamos valori-zar o livro? E quanto ao ensino? Ele pode se beneficiar das experiências de ensino a distância, de novas tecnologias? A

política de cotas, tão fundamental, deve ser aprofundada? Quais são seus resultados depois de 10 anos? A expansão foi suficiente? E outra coisa que é a vocação (ou vocações), a marca distintiva, da UFBA. Como ficam as artes? Acho que a nossa posse recupera um pouco a ideia de que a univer-sidade envolve ciência, arte, filosofia. A UFBA nasce como universidade nesse sentido mais generoso de não ser técni-ca, de não ser unilateral. A possibilidade de recuperar esse diálogo, essa energia, é própria de um congresso. Trata-se de confrontar medidas, confrontar ciências duras com outros modos de articular o conhecimento, e tudo isso pode nos permitir a elaboração de medidas conjuntamente.

y Exercendo-se filósofo, em seu discurso você transitou da indagação “o que é a UFBA?” para “quem é a UFBA?”. Man-tenho as duas perguntas: o que é a UFBA e quem é a UFBA?Objetivamente eu poderia definir o que é a UFBA, segundo vários marcos legais, como uma instituição de ensino supe-rior que cumpre tais e quais métricas, que forma tantas pes-soas, que contrata tantas pessoas, que tem um orçamento bem definido, tem obrigações em relação à expansão, sendo tutora de outras universidades, que tem uma história. Tudo isso é a UFBA, mas assim descrita ela aparece flagrada numa rotina massacrada pela previsibilidade, podendo ser fotogra-fada por relatórios de gestão e balancetes contábeis. Mas, se deslocarmos o olhar para perceber quem é a UFBA, começa-mos a vê-la como um lugar de investimento pessoal muito grande, onde as pessoas realizam – não sempre e não todas, mas boa parte das que definem esse ser –, onde associam profissão e vocação. São pessoas que vivem a universidade integralmente sem saber quantas horas estão gastando aqui, sem se preocupar com frequência, porque a estão pensando sempre, estão inovando, realizando pesquisas as mais sofis-ticadas. E estão se realizando como cidadãos, fazendo aqui sua militância, defendendo os interesses dos trabalhadores, os interesses da ciência, defendendo as artes, procurando ar-ticular saberes, procurando estar na vanguarda. Essa energia de pessoas que não privatizam o espaço da universidade, que se dedicam a ela completamente, é o que aparece quando respondo “quem é a UFBA?” ou, ao menos, “quem nós que-

é sEMprE iMportantE QuE a univErsiDaDE não DialoguE soZinha, não sE FEChE. até para pEnsar soBrE si MEsMo voCê tEM QuE Dialogar CoM outras EXpEriênCias

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remos que seja a UFBA”. É claro que nossa universidade tem também – e sempre houve no serviço público – aqueles que veem o serviço público como uma prebenda da qual vão se beneficiar pelo resto da vida, trabalhando o menos possível, se desgastando o menos possível, não se comprometendo com gestão, não se comprometendo com qualquer coisa a mais do que sua carga horária ou fazendo daqui um lugar de carreira. Tem pessoas que pensam o lugar da universida-de como um espaço de sua realização a mais isolada. São as pessoas que, dizíamos durante a campanha, acreditam que o “Homo Lattes” é superior ao Homo sapiens, aquelas que começam a se medir por índices. E não se preocupam se a palestra que vão dar é relevante ou se mantêm uma troca, preocupam-se mais com certificados, assim como não é o conteúdo do artigo publicado que é relevante, mas onde foi publicado. E se o foi em inglês, é mais importante do que as ideias que foram comunicadas. Só podemos resistir a esse tipo de distorção que afeta e pressiona o melhor do que te-mos em termos de capacidade acadêmica se tivermos força acadêmica instalada. Eu diria o seguinte: não é absurdo, não é criminoso que as pessoas procurem os índices. Elas precisam se defender e, se para se afirmar academicamente é preci-so ser reconhecido como intelectual de destaque, como um cientista de prestígio inclusive lá fora, se precisam produzir papers, se há, enfim, uma cadeia dessa ordem, é compreen-sível que até sacrifiquem o tempo da maturação, da reflexão, do diálogo, da formação, para cumprir essas tarefas. Entre-tanto, se elas encontram na universidade um ambiente que protege e cobra o bom pensamento, vão viver de verdadeira riqueza intelectual e menos dessas manifestações exteriores de riqueza. Esse é um desafio que vem sendo colocado pa-ra a universidade, ou seja, como reagir a esses indicadores externos, a essa pressão produtivista. Sou absolutamente favorável à cobrança da produtividade e da avaliação, mas isso não pode apenas alimentar carreiras isoladamente – isso tem a ver com a produção real do conhecimento.

y E essas métricas contribuem para certas fraudes reais ou disfarçadas, como se ficar reproduzindo o mesmo artigo com diferentes palavras mil vezes, não?Exatamente, requentando textos, vivendo do turismo aca-dêmico, tendo essas pequenas retribuições que, em vez de transformá-los em pesquisadores ou elevarem seu talento de pesquisadores, a longo prazo o diminui.

y Como você vê a UFBA vis-à-vis a outras universidades brasi-leiras? Por um recente ranking do jornal Folha de S. Paulo, ela ocupa o 14o lugar, atrás da Federal do Ceará e da Federal de Pernambuco, para citar duas universidades na região Nordeste. Estar nessa posição significa que talvez haja certa falta de coordenação da gestão para atingir os índices adequados. Não sei exatamente quais são todos os índices que a Folha utiliza para ranquear. Confesso que estranhei muito o ranking quando me detive na classificação dos cursos de filosofia. As escolhas feitas me causaram muita surpresa, porque não ex-

pressam a maneira como a comunidade filosófica compreende a filosofia do país. Há um descompasso profundo entre aquilo que é representativo da boa filosofia, que tem qualidade aca-dêmica e representatividade no país e o que está colocado lá.

y Como aparece a Filosofia da UFBA?Está bem embaixo [15º lugar], e isso não corresponde ao sentimento que temos nem à própria avaliação da Capes. Por exemplo, temos dois cursos nota 7 para a pós-gradua-ção em filosofia no Brasil, o da USP e o da UFMG. Todos sabemos que o da USP é o departamento de filosofia com maior importância no país e ela está em segundo lugar no ranking. Se eu fosse tomar esse exemplo como um critério amostral, diria que tem um problema sério nos resultados da Folha. Mas os rankings devem ser respeitados porque fotografam certos índices e imagino que os resultados da Folha tenham a ver, por exemplo, com a avaliação da gra-duação. Ora, a avaliação da graduação às vezes depende de um esforço concentrado da gestão que é capaz de mobilizar os estudantes a responder bem no Enade, que é capaz de apoiar os coordenadores de curso para que os documentos estejam em dia, as ementas estejam atualizadas, que haja uma boa visibilidade das páginas dos cursos, o acesso etc. E esses elementos devem ser levados em conta.

y Como você vê a UFBA entre as universidades brasileiras produtoras de conhecimento, que oferecem formação supe-rior consistente e com pós-graduação consistente?Temos um quadro desigual em relação à comunidade científica nacional e internacional, temos que diminuir a diferença. Temos centros que fazem pesquisas mais avançadas até que outras universidades, algumas pesquisas de impacto extraordinário...

y Por exemplo?Em Saúde Coletiva, por exemplo, para destacar só pesquisas de grande relevância e impacto, reconhecidas em diversos centros. Vou dar um exemplo que me ocorreu por causa dos 20 anos do Instituto de Saúde Coletiva (ISC), comemorados recentemente. Assinamos um convênio com a Fiocruz para transformar o cadastro do SUS em uma base para um estu-do de coorte que pode ser fantástico. Ou seja, será possível utilizar toda a documentação que veio da implementação de políticas públicas para analisar o efeito dessas próprias políticas (o Bolsa Família em especial), em relação a outros índices de escolaridade, de crescimento etc. Agora, você tam-bém tem cursos cuja inserção na pós-graduação é recente. E temos uma expansão importante cujos melhores frutos ainda precisam ser tirados, por exemplo, na expansão dos bacharelados interdisciplinares, com o desafio de retirar da interdisciplinaridade os melhores frutos.

y Mas isso não é uma certa ilusão, quando o pesquisador sem-pre formula a pergunta que orienta sua pesquisa de dentro do campo estrito de uma disciplina? A interdisciplinaridade não seria mais uma boa intenção do que uma prática efetiva?

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Concordo, mas aí há um desafio. A interdisciplinaridade não se faz por ajuntamento nem por boa intenção, será real se de fato tivermos questões, problemas, que solicitem e desafiem formações disciplinares. A formação interdis-ciplinar não é boa porque dá maior cultura, maior lustro. Fazer com que um engenheiro possa recitar um poema ou um filósofo entender física e tecnologia, não é o que forma um trabalho interdisciplinar consistente. Eu, como recito poemas até em discursos de posse e como não dei-xo de trabalhar com lógica ao fazer filosofia, sei bem que a interatividade real não é aparente, ela resulta de uma costura que é feita institucionalmente por programas de investigação que precisam ser desenvolvidos. Então, tal-vez a UFBA, ao ter enfrentado um processo de expansão, precise agora se beneficiar da riqueza potencial que faz com que professores com formações disciplinares distin-tas sejam chamados a cooperar num projeto de formação interdisciplinar. E isso pode ser um dos vetores de cres-cimento e de destaque da universidade. Mas para isso é preciso integrar a formação interdisciplinar com uma boa disciplinaridade, que é, sim, o primeiro lugar, o primeiro modo, e talvez o mais fundamental, com que você se lo-caliza e se estabelece no discurso cientifico.

y Há críticos segundo os quais o problema central da pesquisa científica, básica ou aplicada, é ser ou não ser relevante, inovadora, transformadora, em vez de mera-mente incremental. Não lhe preocupa que na UFBA haja muita produção que serviria só para cumprir trâmites acadêmicos? Por exemplo?

y Admitamos por hipótese que nas ciências sociais, e espe-cificamente nas pesquisas que há muito tempo investigam pobreza e trabalho informal na Bahia, repitam-se velhos padrões de abordagem e métodos que tornam impossível capturar e oferecer interpretações mais ambiciosas e ino-vadoras que de fato iluminem o fenômeno em suas mani-festações contemporâneas. Veja, não deixa de haver na formação e na prática acadêmi-cas um traço meio partidário. Em que sentido? No da reno-vação do mesmo paradigma, repetição do mesmo. Acaba-se trabalhando no interior de um conjunto de referências e os dados novos são obrigados a se acomodar quando chama-dos a depor. Confessem! Confessem uma verdade que já sabemos, não é? Sem dúvida, isso é próprio da sociologia, da física, de qualquer conhecimento científico bem estabe-lecido. A realidade é que geralmente a ciência normal é mais produtiva do que a ciência nos seus estados de anomalia, de renovação. Certamente há o lado do conforto acadêmico que faz com que o aluno que repete o professor tenha até mais chance de sucesso acadêmico do que aquele que tem ideias inovadoras. No imediato, não deixa de ser uma tentação muito grande fazer um trabalho previsível ou fazer com que o líder de pesquisa tenha seus liderados como subordinados num projeto cujo horizonte já limitou. Isso parece descrever bem o que ocorre toda vez que você estabelece até critérios para decidir que algo esteja em conformidade com a comu-nidade científica. Para que um trabalho seja aceito dentro da comunidade científica, o pesquisador tem que sentir que ele paga o preço de recusar os extremos de inovação e de se deixar surpreender com os dados. Nesse sentido, a univer-sidade não é um laboratório, e ela não pode ser a soma de

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conjunto de relações que a universidade estabelece. E temos relação efetiva com o Ministério da Saúde, com a Secretaria de Saúde, através dos atendimentos feitos no complexo hos-pitalar que são campos de práticas e de ensino fundamentais. Temos intervenções importantes de nossos pesquisadores na baía de Todos os Santos e na formulação de políticas públi-cas. Há várias relações, algumas mais delicadas, envolvendo empresas, que têm a ver com projetos que precisam dessa energia de diálogo com a Federação das Indústrias. Temos ações financiadas pelos ministérios da Ciência e Tecnologia, da Saúde e da Educação, não somos uma estrita e separada unidade de ensino que apenas oferece diplomas. Nossa prin-cipal retribuição à sociedade não é apenas fornecer diplomas, que são fundamentais, e o são também porque vêm na esteira de relações boas de pesquisas, de qualidade de ensino, de um trabalho bem articulado com a sociedade.

y Os recursos que a UFBA recebe do governo federal para sua manutenção são suficientes para ela continuar se de-senvolvendo como universidade líder deste estado?São insuficientes. Temos um orçamento da ordem de R$ 1,2 bilhão, fortemente comprometido quase todo com pa-gamento de pessoal.

y Mas o pessoal não chega a representar 105% da receita orçamentária...Não, por isso estou dizendo que é mais fácil hoje adminis-trar a UFBA do que a USP. Mas a USP tem um fundo de reserva que eu gostaria muito de ter à disposição agora. É pouco o que nos sobra para investir efetivamente. Dos cerca de R$ 200 milhões que seriam a parte que podemos manejar, grande parcela já está comprometida, por exem-plo, com a terceirização. Nossa margem para um investi-mento real é muito restrita.

y Além de dobrar a população estudantil em 10 anos, com a política de cotas cresceu muito na UFBA o ingresso de es-tudantes de baixa renda que, segundo vozes importantes ligadas à UFBA, demandaria um reforço nos instrumentos de formação oferecidos. Parece-lhe que é assim? Isso nos falta. Embora tenhamos a verba específica do Pnaes [Plano Nacional de Assistência Estudantil] para assistência estudantil, não se pode pensá-la como uma coisa isolada, apenas um auxílio permanência ou o restaurante universitá-rio. Quando se faz o investimento para acolher pessoas que teriam déficit em sua formação, há que se ter ações também acadêmicas. Por exemplo, vamos ter de investir para equipar nossas bibliotecas, fazê-las funcionar nos fins de semana e torná-las um espaço de pesquisa efetiva. Essa é uma manei-ra de começar, uma forma de acolher e garantir a inclusão social. A rubrica específica para a assistência estudantil mi-nimiza o tamanho da tarefa e acaba transformando a ideia de assistência estudantil numa espécie de favor. Ela é uma obrigação, mas é também estrategicamente necessária para garantir a qualidade da instituição.

laboratórios isolados. Eu gosto da ideia de departamentos plurais, exercícios de tolerância epistemológica constante, porque esse confronto pode fazer com que os pesquisadores se tornem mais permeáveis à ideia de que os seus receituá-rios não se aplicam. Então, nesse sentido, sim, eu acho que os dados podem surpreender. Entretanto, não podemos esquecer que, normalmente, a própria recolha dos dados já está comprometida com os seus princípios iniciais e então é muito difícil que o dado surpreenda porque ele já é selecio-nado em função de hipóteses prévias que o limitam.

y É claro que esta pergunta em relação à UFBA vale para qualquer universidade. Sim, e eu não vejo que a UFBA seja especialmente marcada por essa limitação. Nesse sentido, por exemplo, na socio-logia do trabalho, o fenômeno da precarização do traba-lho redesenha o modo como o trabalho foi compreendido ao longo do tempo por nossos pesquisadores. Há estudos clássicos sobre o trabalho informal na Bahia, sobre relações precárias, mas digamos que as recentes condições de preca-rização, a partir da terceirização constante e tão incremen-tada, remodelaram nossa reflexão sociológica com frutos muito interessantes. Percebo em alguns estudos atuais de relações de precarização uma sofisticação conceitual que não faz simplesmente subordinar o fenômeno a uma de-terminada matriz estrita marxista, como se ele estivesse todo previamente contido nessa reflexão.

y Em sua visão, quais seriam as melhores e mais eficientes formas de articulação de uma universidade como a UFBA com a Bahia, com sua realidade rica e pobre, desafiadora, culturalmente multifacetada?São tantas! A UFBA se relaciona com a Bahia das maneiras mais diversas, e eu queria aproveitar essa pergunta para falar da questão da visibilidade da universidade. Temos nos divul-gado mal, nossa página institucional é fria, as notícias mais importantes não têm destaque, e o público acaba não tendo ciência de que eventos os mais diversos, abertos à comunida-de, estão acontecendo todo o tempo em nossa universidade [a nova gestão mudou bastante a página institucional 15 dias após esta entrevista]. A UFBA tem nisso, historicamente, uma importante forma de operação. Eu tenho um sonho de que possamos fazer em breve um investimento forte em nossa orquestra para nos orgulharmos dela, queremos que a orquestra da UFBA tenha um lugar destacado e com todas as condições para fazer o belo trabalho que já faz. Parafraseando Érico Veríssimo, como me foi contado por meu amigo José Maurício, maestro, que disse: “Ah, eu venho de uma cidade que tinha uma orquestra!”, seria muito bom podermos dizer: “Ah, eu sou de uma universidade que tem uma bela orques-tra!”. Isso modifica nossas relações, organiza nosso espaço de possibilidades de refinamento de uma forma extraordinária. Mas, ficando na questão da visibilidade, a UFBA vai ter que cuidar disso, até mesmo porque essa é uma forma de presta-ção de contas e de interação, é preciso mostrar à sociedade o

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y Há setores, campos do conhecimento, que deverão ser mais fortemente apoiados que outros em sua gestão? Há necessariamente um apoio desigual aos cursos porque há aqueles que solicitam mais investimentos e outros que solicitam menos. Por exemplo, se vamos dar um aporte de assistência estudantil ao curso de odontologia, o custo efetivo do aluno para ser apoiado com os equipamentos necessários chega a R$ 27 mil por ano.

y Já a física teórica não solicita quase nada.Talvez uma rede, lembrando uma anedota de Einstein... Essa não é uma conta que um contador possa fazer, ela tem de ser pensada academicamente. Um exemplo: um aluno de fi-losofia, que aparentemente não custa nada, na verdade cus-taria muito para ter uma formação de boa qualidade, porque uma verdadeira biblioteca de filosofia é muito cara. Estamos longe de ter verdadeiras bibliotecas, com as obras clássicas das melhores edições, acesso aos melhores comentadores, renovada com investimentos mensais, mesmo semanais, em livros. Quando viajamos para outros centros, descobrimos verdadeiras bibliotecas. É claro que hoje, com a internet, diminuiu o impacto dessa diferença. O portal de periódicos da Capes, os livros em pdf, devemos admitir, facilitaram extremamente o acesso e nivelaram mais as condições de estudo. De qualquer modo, estamos longe de ter autênticas bibliotecas que comportem investimentos que superariam até os do curso de odontologia. Mas vamos a sua pergunta: avançaremos mais em algum centro? Eu vou resistir a essa ideia, embora eu ache que é verdade que a UFBA pode ter uma vocação maior para certas áreas.

y Era justamente nisso que eu estava pensando. Mas vou dizer que acho que a gestão deve equilibradamente resistir a jogar todas as fichas naquele centro para o qual a universidade teria mais vocação, por exemplo, as artes na UFBA. Então agora vamos descuidar das ciências básicas? Eu tenho a impressão de que a melhor maneira de fazer um investimento nas artes é não descuidar das ciências básicas.

y E por quê? Como se dá a relação entre uma coisa e outra?Simplesmente porque toda universidade é esse lugar estra-nho, singular, onde você guarda até os conhecimentos que parecem inúteis. Ela precisa preservar certo tipo de saber que não tem impacto imediato, que não tem aplicação ime-diata, por isso o gestor deve ter uma visão universitária ao lidar com essas diferenças. É claro que, se certas áreas se destacam, merecem apoio. Os sucessos devem ser apoiados institucionalmente, mas esses grupos mais destacados de pesquisa vão ter mais facilidade para captar recursos por si só em editais etc., eles sobrevivem melhor. Então, por vezes é até mais importante compensar deficiências do que ape-nas reforçar sucessos, a universidade não pode fazer com que o rio só corra para o mar, ela tem de ter a capacidade de ver os diversos setores e até mesmo de estimular setores que não estão tendo as melhores condições de competição

e dar a eles apoio específico. Diferença sempre vai haver, mas o gestor precisa trabalhar com a ideia da universidade como um conjunto de saberes que dialogam.

y A universidade é um tema inesgotável, mas eu gostaria que você falasse também um pouco sobre o que significa fazer filosofia e buscar ser efetivamente alguém que atua no campo da filosofia num lugar como a Bahia.É uma boa questão. Veja bem, acho que, se eu tivesse feito medicina ou engenharia, talvez não tivesse a percepção que tenho hoje acerca do que é a universidade. O desafio de fazer filosofia na Bahia me obrigou a algumas medidas – e um con-junto de pessoas participou desse processo – de interlocução com outras universidades, o que foi interessante. A filosofia é local, mas ela tem de ser universal, essa é a dificuldade básica. Pensando nessa trajetória, eu começo num departamento de filosofia que tinha pessoas muito talentosas, mas não diplo-madas. Graduadas em filosofia, mas sem mestrado ou dou-torado. Era um departamento que acabava favorecendo um certo beletrismo, o filósofo acabava sendo um pouco literato, pessoas com o dom do dito espirituoso, da observação críti-ca, com uma certa visão às vezes ácida, mas sem um trabalho denso reconhecido. Esse trabalho não estava em diálogo, não estava em linha de conta, não participava da comunidade fi-losófica nacional. Essa é a minha percepção inicial.

y Em que ano você entrou na universidade?Em 1979, como estudante de economia porque, como mar-xista, eu achava que a Faculdade de Economia era o lugar natural para mim. Eu vinha da militância secundarista, tinha passado todo o ensino secundário como militante, então tinha essa visão. Logo percebi que meu lugar de fa-to era a Faculdade de Filosofia, com pessoas importantes como Ubirajara Rebouças e Fernando Rego.

y Ubirajara foi seu orientador no mestrado, não?Sim. Ubirajara foi um grande amigo. Comunista, marxista, generoso, com uma leitura sempre um pouco mais ampla dada sua riqueza intelectual, era uma figura exemplar do que era o profissional de filosofia nos anos 1970. E vamos

a assistênCia EstuDantil é uMa oBrigação, Mas é taMBéM EstratEgiCaMEntE nECEssÁria para garantir a QualiDaDE Da instituição

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esquecer neste caso o beletrismo. Era um militante, partici-pou de várias lutas políticas, e era dono de uma grande bi-blioteca pessoal, traço próprio do nosso modo de viver. Ou seja, se você não tem boas bibliotecas públicas de filosofia, faz as suas bibliotecas privadas. Falava bastante e muito bem, escrevia pouco e não tinha os títulos devidos para se tornar o que seria hoje um típico cidadão universitário, isto é, com mestrado, doutorado e publicando com uma certa constân-cia, senão está fora do sistema. Ele foi meu professor já na graduação, quando na economia fui pegando matérias na filosofia, isso era fácil antigamente. Fiz uma transferência de curso, me graduei em filosofia e imediatamente passei a ensinar lógica, em setembro de 1985. Em certo momen-to percebi que minha formação deixava a desejar, faltava o diálogo com o que se produz efetivamente, esse diálogo que faz a comunidade filosófica interagir e ter medidas comuns, que faz com que ela se desafie. Em outras palavras, o filósofo na Bahia tendia ao isolamento. Como quem tende ao isola-mento pode sempre parecer alguém que fala javanês, que se especializa num tema exótico que só ele domina, isso acaba criando uma couraça protetora.

y E talvez gerando uma certa arrogância?Sem dúvida. O isolamento transforma o filósofo em alguém cujas idiossincrasias se avolumam e podem gerar trejeitos, violências verbais, atos explosivos que se autoexplicavam e não explicavam nada. Isso acontecia com o famoso “gênio de palestra”, a figura de pessoas muito geniais que gostavam de fazer as perguntas mais difíceis a um palestrante para vê-lo tropeçar. Você o via numa palestra, muito inteligen-te, mas ele nunca saía da repetição, na próxima palestra estava lá para desafiar, mas ele mesmo não era capaz de fazer a palestra que criticava. Essa assimetria é a do iso-lamento. Percebi claramente os problemas da formação ao fazer uma dissertação de mestrado sobre a filosofia de Durkheim. Percebi a inanição bibliográfica local e a minha necessidade de saber, de ter acesso. Fiz investimentos em livros para poder ter acesso às fontes clássicas, aos bons comentadores, para conseguir superar essa inanição. Per-cebi então que eu tinha de fazer o doutorado e foi uma experiência muito legal.

y Por que no doutorado na Unicamp, você, com seu passado de reflexões marxistas, escolhe Wittgenstein como tema de pesquisa?Foi uma paixão oriunda do fato de eu ter passado a ensinar lógica. E tenho que registrar que, se minha graduação foi marcada por figuras muito fortes, extremamente talento-sas, mas que não estavam no cenário filosófico nacional, como os já citados Ubirajara e Fernando Rego, e mais Del-mar Schneider, por outro lado, algumas figuras de fora da Bahia, que vieram dar cursos na UFBA, foram importantes para eu ter contato com um modo distinto de fazer filosofia. Destaco dois cursos (além de algumas palestras), dos quais o de José Arthur Giannotti, na medicina preventiva, onde apareceu um Wittgenstein muito giannottiano, como tudo, aliás, que emerge das reflexões de Giannotti. Marx, Kant, Skinner e o próprio Durkheim, tratados por ele, tornam-se giannottianos. Naquele curso destinado à pós-graduação, do qual participei, embora estivesse ainda na graduação, creio que Giannotti viu em mim algum potencial, tanto que me convidou para ir para o Cebrap, ofereceu bolsa... Mas eu não podia por razões familiares, tive que recusar. O segundo, um belo curso sobre Husserl, que foi dado por Carlos Alberto Ribeiro de Moura, trazido por José Crisós-tomo. Carlos Alberto me aproximou também de Merleau--Ponty, e eu diria que isso favoreceu o que já estava latente em minha formação, para a qual tiveram importância, devo destacar, as belas aulas de Carlos Costa, um professor bas-tante marcado pela fenomenologia. Então, o meu marxismo foi batizado um pouco pela fenomenologia, pela sociologia (com o mestrado orientado por Bira), sendo depois desafiado fundamente por Wittgenstein. Pois bem, por esses conta-tos, por essas referências, procurei uma leitura constante do que se produzia, lia muitas teses que foram importantes para mim, como “O espírito e a letra”, de Rubens Rodrigues Torres Filho. Com esses exemplos, sempre tinha uma coisa bem focada numa certa dicção e direção do que eu queria fa-zer em filosofia, e sempre um cuidado com o texto era uma questão fundamental. Uma certa veleidade literária sempre me acompanhou, ou seja, eu sempre tive um cuidado muito grande com a palavra. Mesmo quando me aproximo da ló-gica, mesmo quando me inicio nesse processo pela visão de Wittgenstein, que me ajuda nos trabalhos de lógica, o que tenho é uma aproximação marcada por um cuidado intenso com a palavra. Recentemente, soube que meu orientador de doutorado, Arley Moreno, em um colóquio, mencionou esse contato entre poesia e argumentação em meus textos. Esse contato é característico e estranho, e muito contente e grato com a menção de Arley, devo admitir que, para o bem e para o mal, ele tem razão.

y Uma marca de escritor.Acho que é isso que me faz agora membro da Academia de Letras da Bahia. Mas o fato é que o meu modo de aproxi-mação à filosofia é marcado pelo que, na linha do estru-turalismo francês, chamaríamos o cuidado com o texto,

o FilósoFo na Bahia tEnDia ao isolaMEnto. CoMo QuEM tEnDE ao isolaMEnto poDE

parECEr alguéM QuE Fala Javanês, isso aCaBa CrianDo

uMa Couraça protEtora

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a procura da estrutura. Então, eu mantive um horizonte: “Tenho que fazer a formação fora”. Caso contrário, julga-va, não conseguiria realizar um trabalho profissional em filosofia. Aí Wittgenstein se afirmou como um projeto possível e desafiador. E desenhei um projeto de doutorado sobre A gramática das cores.

y O que lhe encantava em Wittgenstein?Olha, a densidade de seu pensamento é algo extraordiná-rio. Primeiro, o Tractatus é por si só uma das obras mais belas da filosofia, e Luiz Henrique [Lopes dos Santos] tem toda razão ao dizer, provocativamente, que é a segunda obra mais importante do século passado, sendo a mais importante as Investigações filosóficas, também de Witt-genstein. Talvez porque a obra de Wittgenstein exija uma imersão no pensamento, ou seja, você tem que pensar com ele, fazer nascer o texto com ele.

y Mas isso você poderia dizer também de Kant, de Heideg-ger, de Nietzsche...Poderia, mas a diferença é que a densidade do aforismo lhe obriga talvez a mais. Heidegger facilmente gera um patuá, por excelente que seja. Ele lhe guia pela mão e você vai pensar com ele, mas ele vai apontando o modo de pensar dele. Ele se explicita mais do que Wittgenstein.

y Com quem você tem que ficar colhendo pistas.Pistas, sim, e você vai entender o aforismo apenas se con-seguiu ver todo o campo de pensamento. Ou seja, é como se você tivesse que, aí sim, de fato, ser capaz de adivinhar a forma do prédio pela ruína. Acho que essa é a imagem. Wittgenstein tem esse lado de força de escritor. Talvez seja a herança do aforismo, que é um convite singular ao pensamen-to, o que mais me encanta. Não quer dizer que eu concorde com todas as posições dele, mas considero que ele tem uma profundidade formadora extraordinária, uma capacidade de pensar questões essenciais para a filosofia, e que é mais bem lido se tivermos essa adesão a um tipo de leitura, como leríamos um fragmento pré-socrático, mais do que a leitura que os analíticos fazem – aí começa uma diferença. Eu não gosto e me afasto da leitura de Wittgenstein que canibaliza argumentos isoladamente e que, lamento, caracteriza mui-to um certo tipo de via mestra hoje da filosofia, a filosofia analítica, que está se impondo de uma maneira muito forte. Isso cria um constrangimento no âmbito do pensamento de Wittgenstein, a quem repugna o pensar segundo os proce-dimentos do paper.

y Como você lida com essa questão da linguagem em Witt-genstein versus, digamos, uma abordagem materialista da realidade? É claro que pergunto isso considerando seu percurso pelas leituras marxistas.Não quero sugerir um ecletismo, não acho que seja verda-deiro. É evidente que eu não pretendo que Wittgenstein vá tratar das agruras do capitalismo contemporâneo, não

é? Não pretendo que com Wittgenstein eu vá dar conta da gestão da universidade em certos aspectos, mas acho que, se eu consigo pensar “aquilo que dá sentido a essa ação”, Wittgenstein vai me ajudar bastante.

y Então, é no campo da criação do sentido que ele se mos-tra mais rico?Na verdade, se a filosofia não é simplesmente a busca da verdade, mas uma reflexão sobre as condições da produ-ção do sentido, poucos, ou talvez ninguém, tenham ido tão longe quando Wittgenstein nisso, ao interrogar exa-tamente o que faz a linguagem se produzir, o que é neces-sário a essa produção da linguagem, como pela linguagem inventamos a necessidade e o acaso. Então, nesse sentido desse lado mais fundo, Wittgenstein nos lembraria, quem sabe, pensadores que podem continuar sendo atuais como Leibniz, por exemplo. Ou seja, seria tolo pensar numa apli-cação imediata ou imaginar que eles suplantariam aqueles que estão colhendo os dados mais diretos. Nesse sentido é que um Wittgenstein talvez possa, sim, se aproximar de um Marx. Não na vertente que talvez Giannotti preten-deu explorar, como se fosse uma coisa óbvia, mas, e nisso Giannotti tem razão, o que para mim subsiste em Marx não é a análise específica de uma realidade específica do capitalismo, mas um modo de articular os conceitos, um modo de procurar a construção categorial que lembraria em muitos momentos um modo wittgensteiniano de trabalhar.

y Você formou um grupo de “wittgensteinianos” na UFBA? Eu gostaria também de saber como está sua linha de pes-quisa “Conhecimento e Ação”.Temos um grupo de cerca 30 pessoas que se reúnem aos sábados – ou melhor, se reuniam, já que minhas atividades de gestor fizeram com que em alguns meses só fizéssemos uma ou outra das reuniões de trabalho, o que é ruim porque filosofia exige constância, dedicação. Nesse grupo tenho conseguido acompanhar não só trabalhos sobre Wittgens-tein, mas também sobre outro filósofo de eleição, David Hume, além de fenomenólogos e pensadores do campo do empirismo. Integram o grupo desde alunos de inicia-ção científica até doutorandos e doutores que continuam apresentando seus trabalhos, suas inquietações. Em torno disso e também no espaço em que vou apresentando o que continuo produzindo, temos formado um bom número de professores, alguns já na UFBA, UEFS, UFRB, UNEB, UESC, UFG e IFBA. E, em meio a tudo isso, tenho conti-nuado minha pesquisa, que agora se volta para a filosofia da psicologia em Wittgenstein, mas que acolhe e dialoga com essas outras pesquisas, desde as levadas a cabo pelo aluno novo de iniciação científica que, por exemplo, está se debatendo com a causalidade em Hume (tema mais téc-nico e previsível, digamos assim), até as de doutorandos que estão se aventurando em textos ainda pouco explora-dos como os trabalhos sobre um dos livros mais difíceis e sutis de Wittgenstein, Da certeza. w

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cApA

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Um grupo de 12 alunos dos ensinos fundamental e médio do Colégio Polivalente de Amaralina, em Salvador, envolveu-se numa atividade proposta

por professores de ciências que produziu uma experiên-cia transformadora. No âmbito de um programa chamado Ciência na Escola, que busca promover a educação cientí-fica na rede de escolas estaduais da Bahia, os estudantes foram desafiados a construir um projeto capaz de repro-duzir as etapas de uma pesquisa científica, da formulação de uma pergunta envolvendo um tema relevante à busca de evidências para sustentar uma resposta – com todos os dados e reflexões registrados numa espécie de diário de bordo. “Os alunos levaram o desafio muito a sério e alguns propuseram questões que atingem o seu cotidiano, como a solução do problema da criminalidade. Sugeri que eles concentrassem o foco em algo mais ao alcance deles”, lem-bra o professor Denilson Alcântara, que articulou a expe-riência com as colegas Dinalva Mesquita e Dolores Bastos.

NOVAS ExPERIêNCIAS PEDAGóGICAS

BUSCAM DESPERtAR O INtERESSE PELA

CIêNCIA NOS EStUDANtES DE ESCOLAS

PúBLICAS DA BAHIA

FaBrÍCio MarQuEs | fotos léo raMos

PARA EntEndERo mundo Ao REdoR

educAção científicA

alunos do colégio Polivalente de amaralina, em salvador: investigação sobre obesidade levou a reflexões sobre a qualidade da merenda

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O tema surgiu de modo difuso. Alguns alunos sugeriram alguma temática relacionada ao bulliyng sofrido pelos co-legas que estão acima do peso. Depois de discutirem com o professor, chegaram ao ponto: por que não investigar a incidência de obesidade entre eles. O passo seguinte, mediado pelos professores, foi levantar a bibliografia so-bre o assunto – experiência útil também para que apren-dessem a não acreditar em tudo o que leem na internet e buscassem dados em artigos científicos e fontes oficiais. Em seguida, foram pesados e medidos 153 alunos, a fim de levantar o índice de massa corpórea (IMC) de cada um deles. Constatou-se que 16,3% da amostra, o equivalente a 25 alunos, estava acima do peso – sendo 11 classificados com obesidade mórbida, 5 com obesidade severa e 9 mode-rada. Tamiris Gomes Menezes, de 16 anos, sensibilizou-se e foi procurar ajuda: uma psicóloga sugeriu que ela come demais porque é ansiosa, e agora uma nutricionista vai ajudá-la a criar um novo cardápio. Mais impressionante, para alguns alunos, foi descobrir que tinham problemas de saúde. Os alunos também mediram a pressão arterial e alguns estavam hipertensos. “Não sabia que tinha hiper-tensão”, diz Danilo Souza Luciano, 15 anos, cuja pressão

arterial chegou a 15 por 9 – o ideal, como se sabe, é que não ultrapasse 13 por 8. “Uma vez tinha tido um desmaio, mas não sabia que tinha um problema”, diz Jaine Borges, 15 anos, com pressão arterial de 16 por 9 registrada na escola.

Mas o denominador comum do trabalho foi uma investigação sobre os hábitos alimentares dos alunos, tanto em casa quanto na própria escola.

A conclusão foi que muitos deles consomem mais alimen-tos industrializados do que deveriam, na forma de sucos e biscoitos, e que raramente uma alimentação mais saudável lhes é oferecida. Agora, querem discutir o que pode ser modificado na merenda para transformar esse panorama. “A intenção é incorporar as reflexões ao planejamento da escola no ano que vem e pensar em novas soluções para a merenda”, diz o professor Denilson.

O Ciência na Escola é uma das novas experiências que buscam melhorar o aproveitamento dos alunos do ensino público da Bahia no campo da educação científica. “Parti-mos do diagnóstico de que a educação científica na Bahia tinha indicadores ruins, como acontece em outros lugares, e precisava mudar para melhorar”, diz o secretário esta-

dual de Educação, Osvaldo Barreto. Em 2012, a Bahia ficou em 14º lugar entre os estados brasileiros na prova do Pro-grama Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), com média de 390 pon-tos em Ciências. A média nacional foi de 405 e, entre países desenvolvidos, superior a 500. A campeã mundial foi a China, com 580 pontos. Segundo Bar-reto, o projeto tem ajudado a valorizar o ambiente escolar, tornando-o mais atrativo. “Já constatamos um crescente envolvimento dos estudantes em seu processo de aprendizagem”. Segundo Irene Cazorla, diretora do Instituto Anísio Teixeira (IAT), órgão vinculado à Secretaria de Educação que há três décadas é responsável pela formação dos professores da rede estadual da Bahia, o ponto de partida foi garantir

a Bahia ficou em 14º lugar entre os estados

Brasileiros na prova do programa internacional

de avaliação de alunos (pisa), com 390 pontos

em ciências. a média nacional foi de 405 pontos

BahiaCiênCia | 27

que os estudantes pudessem ter letramento científico, além do letramento em matemática e língua portuguesa. “A ideia do Ciência na Escola é formar os professores, dar a eles materiais que permitam trabalhar dentro da escola a questão da iniciação científica para além do conteúdo disciplinar e estimular a sensibilidade para que desper-tem no estudante o espírito científico e uma compreensão sobre o mundo que o rodeia, trabalhando fenômenos da natureza de uma forma interdisciplinar e transversal”, diz a professora Irene.

A organização do programa mobilizou o ambiente aca-dêmico. “Dialogamos com vários grupos de pesquisa da Bahia, com a Sociedade Brasileira para o Progresso

da Ciência (SBPC), com a Academia de Ciências da Bahia, com a Fundação Oswaldo Cruz e com os coordenadores dos cursos de licenciatura em química, física, biologia e ciências de todo o estado”, diz Irene. A formação dos professores foi discutida no âmbito do Fórum Permanence de Apoio à Formação Docente do Estado da Bahia, presidido pelo secretário Barreto. “Fizemos cinco workshops sobre edu-cação científica com as instituições de ensino superior e diversas instituições científicas da Bahia”, diz Irene.

O Ciência na Escola teve início em 2012. Foi implantado no ensino fundamental II (do 6º ao 9º ano) e no ensino

simulador de voo no centro juvenil de ciência e cultura (esquerda) e os estudantes denise lima, edmilson barreto, isaac silva e roberta fraguas

(acima), da oficina embaixadores da ciência

28 | setembro/outubro de 2014

Uma metodologia de origem alemã que promove a

aprendizagem a partir da solução de um problema real está

mudando o modo como são formados os alunos dos ensinos

técnico e universitário do Senai-Cimatec, sigla para Centro

Integrado de Manufatura e tecnologia do Serviço Nacional de

Aprendizagem Industrial, em Salvador. Conhecida como

theoPrax, a metodologia consiste em mobilizar grupos de

estudantes em torno do problema apresentado por uma

empresa, fazendo com que mostrem uma solução concreta e

a executem. “Os estudantes têm de formular uma proposta de

solução, cumprir prazos e negociar diretamente com a

empresa a implementação do projeto”, explica Augusto César

Almeida Araújo, coordenador do núcleo theoPrax do

Senai-Cimatec. três professores acompanham a elaboração e

execução de cada projeto. “A intenção é desenvolver

autonomia dos futuros profissionais, que também aprendem a

trabalhar em equipe e a gerenciar conflitos”, diz Araújo.

Frequentemente, os problemas exigem abordagens

multidisciplinares e envolvem estudantes de diferentes cursos,

o que também gera um impacto na aprendizagem. “Os

projetos exigem a integração de conhecimentos fragmentados

de diversas disciplinas. O resultado é a integração desses

conhecimentos.” Só no segundo semestre de 2014, foram

iniciados 93 projetos em cinco unidades do Senai-Cimatec: 74

com estudantes do ensino técnico e 19 projetos de alunos de

graduação. Ao todo, já são 300 projetos em andamento, e

serão 750 em 2015, uma vez que a metodologia foi

incorporada ao currículo dos cursos.

Um dos projetos em andamento busca automatizar a

fabricação de blocos de concreto em uma empresa do litoral

norte baiano. Um grupo de cinco alunos do curso técnico em

mecatrônica do Senai-Cimatec desenvolveu um sistema que,

ao toque de um único botão, controla por acionamento

pneumático as comportas que liberam quantidades precisas

de matéria-prima para produzir pavimentos. Um controlador

lógico programável (CLP), equipamento eletrônico que utiliza

uma memória programável para armazenar instruções e

implementar funções específicas, organiza o processo de

pesagem e liberação dos ingredientes. “Hoje, o acionamento

das comportas é feito manualmente por um funcionário”, diz o

estudante Meuris da Rocha Guimarães Neto, 24 anos, gestor

do projeto e líder do grupo que reúne os alunos Edvam Sales

Pires, 25 anos, Iuri Nascimento Brito,

22, Uoston Santana Dantas, 29, e

Arnaldo Borges dos Santos Jr., 25. “É

desafiador, pois envolve a parte

técnica, que é o que a gente gosta,

mas também uma série de outras

habilidades, como produzir documentos sobre o trabalho, cumprir

prazos e avaliar custos”, afirma Meuris. A implementação do

projeto está avaliada em cerca de R$ 15 mil. “É um valor

competitivo, porque envolve o principal processo dessa empresa.

O impacto vai ser grande”, afirma Meuris.

No mesmo laboratório do Senai-Cimatec, o estudante de

graduação Raony Santana, de 23 anos, monta um protótipo de

Comando Numérico Computadorizado (CNC), sistema que

permite o controle de máquinas, utilizado principalmente em

tornos e centros de usinagem. No caso, o objetivo é produzir

desenhos geométricos em placas de madeira ou acrílico por meio

de uma fresa. Um computador gera o código e o equipamento

executa as funções, reproduzindo desenhos programados. Raony,

que está no terceiro ano do curso de engenharia mecânica, criou

o protótipo orientado pelo professor Guilherme Oliveira. Alguns

projetos buscam soluções para processos internos. Os estudantes

do curso de eletrotécnica Flavio Oliveira Carvalho Filho, 24 anos, e

Antônio Gomes Rabelo Neto, 24, criaram um plano de

manutenção elétrica para as guaritas de uma empresa capaz

de reduzir custos e facilitar o trabalho dos funcionários de

manutenção – cada item ou equipamento utilizado nas guaritas

foi classificado e pode ser facilmente identificado quando a troca é

necessária. “Nosso plano melhora a segurança e acaba com o

improviso”, diz Carvalho. Para os alunos do ensino técnico, a

atividade no núcleo theoPrax equivale a um estágio. Já para os

estudantes de graduação, é o trabalho de conclusão de curso.

no senai-cimatec, a integração de conhecimentos fragmentados

entre os projetos do theoPrax, estudantes criam sistema para automatizar produção de concreto (ao lado) e protótipo que controla máquina (à direita)

BahiaCiênCia | 29

médio. “Toda a concepção e criação foi feita por profissio-nais baianos. Ele se materializou através dos professores, trabalhando sobre a realidade local”, diz Shirley Costa, coordenadora executiva do programa.

O programa baseou-se, na esfera do ensino médio, na formação de professores, através de cursos e oficinas sobre procedimentos de pesquisa estudantil e docente. No ano passado, a iniciativa vinculada à formação continuada de professores e coordenadores de ensino médio foi incorporada a outro programa, que envolve várias disciplinas, o Pacto pelo Fortalecimento do Ensino Médio, do Ministério da Educação. Já no ensino fundamental, o Ciência na Escola tem como foco os livros Bahia, Brasil: espaço, ambiente e cultura e Bahia, Brasil, vida, ambiente e saúde, distribuídos para mais de 120 mil estudantes do ensino fundamental. A formação dos professores buscou garantir o uso produ-tivo do material didático e de apoio. O conteúdo é vincu-lado à realidade da Bahia e apresenta conhecimentos das diversas áreas, como biologia, geografia, química e história. “É um material georreferenciado, que valoriza a região onde a escola está integrada”, diz Irene Cazorla, do IAT.

Os trabalhos produzidos pelos estudantes são apresen-tados em feiras nas escolas e reunidos na Feira de Ciências e Matemática da Bahia (Feciba), cuja quarta edição acontece nesta semana, entre os dias 28 e 30 de outubro no Estádio da Fonte Nova, em Salvador. Um exemplo do impacto do programa Ciência na Escola pode ser visto no Colégio Es-tadual São Daniel Comboni, que atende cerca de mil alu-nos do 6º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio na região de Sussuarana, um bairro formado por loteamentos e conjuntos habitacionais a 15 quilômetros

do centro histórico de Salvador. O desafio de levar, pela primeira vez, um projeto da escola à Feira de Ciências da Bahia mobilizou o professor de física, Fabrício Santos Viei-ra Oliveira, de 31 anos, e três alunos do 3º ano do ensino médio. “A ideia inicial era reaproveitar lixo eletrônico para fazer um aquecedor solar”, lembra Oliveira.

O projeto evoluiu e culminou num chuveiro portátil, com água aquecida por placas de acrílico reapro-veitadas de TVs de LCD e que circula numa estru-

tura de canos de PVC. Os estudantes tiveram de integrar conhecimentos em matemática e geografia (para adaptar a inclinação da placa à incidência do sol em Salvador) e em física (a água esquenta dentro da placa e, ao se tornar mais leve, sobe para um reservatório, empurrando a água arma-zenada para baixo e realimentando o sistema). “A placa é o maior componente da TV de LCD e o benefício, em ter-mos de reciclagem, é grande”, diz Oliveira. “Vimos vários aquecedores que usaram outros materiais, como garrafas PET, mas o uso da tela de LCD foi original.”

O processo durou dois meses e foi adiante em meio a tentativas e erros, todos eles anotados num diário de bordo. A água, aquecida ao ficar represada entre duas placas de acrílico expostas ao sol, vazou pelas bordas na primeira tentativa. Na segunda, a vedação funcionou, mas a concentração de água abaulou as placas, que trincaram. Só na terceira tentativa, agora usando a placa mais resistente entre as que compõem uma TV de LCD, é que o chuveiro funcionou.

O esforço do grupo não foi trivial. O professor, que dá 18 horas de aulas por semana naquele colégio e leciona em outras duas instituições, aproveitou as poucas horas vagas

30 | setembro/outubro de 2014

para se reunir com os alunos. A ausência de um laboratório na escola também não ajudava – os trabalhos práticos fo-ram improvisados numa sala sem estrutura. Mas, ao final, funcionou. “A ideia de levar à feira deixou a gente entusias-mado”, diz o estudante Ronald de Jesus Castro, 18 anos, que cogita estudar medicina ou segurança no trabalho. “Foi uma forma de aprendizagem nova para a gente, pois tivemos pouco tempo para planejar e fazer tudo”, afirma Amado Rodrigues Pinto, de 17 anos, que planeja ser enge-nheiro mecânico. “Outros alunos da escola também ficaram motivados e querem participar de projetos nas próximas feiras”, diz Lucas Gonçalves Correia de Jesus, de 19 anos, que quer ser dentista. Para o professor Oliveira, é preciso criatividade para motivar os alunos. “O ensino é estrutu-rado em torno das aulas e das provas. Quando o aluno tem alguma atividade que fuja disso, acha sensacional”, diz o professor, que experimenta outras inovações. Ele propôs que suas turmas preparassem seminários sobre temas da física. Com uma peculiaridade: os seminários têm de ser apresentados na forma de vídeos de cinco minutos cada um. “Eles se motivam muito mais do que se fosse um seminário

comum. Têm de estudar os temas e pensar no desempenho diante da câmera”, diz o professor. “Esse tipo de estratégia mobiliza habilidades e competências que os estudantes não costumam usar”, diz Lázaro de Jesus Lima, 48 anos, coordenador dos projetos do Ciência na Escola no Colégio São Daniel Comboni e em outras escolas.

Uma outra experiência está mudando a perspectiva do ensino de ciências na Bahia. Os Centros Juvenis de Ciência e Cultura (CJCC), que começaram a ser

implantados no ano passado, acolhem estudantes do ensi-no médio interessados em oficinas que oferecem atividades duas vezes por semana. Os alunos são atraídos para ativida-des de fotografia, ciências, leitura e cursos de inglês, entre outras, organizadas em ambientes lúdicos e interativos. Já há dois centros funcionando, um em Salvador, no Colégio Estadual da Bahia, e outro em Senhor do Bonfim. “Mas a intenção é disseminar a experiência em outras cidades já a partir do ano que vem”, diz Iuri Rubim, coordenador do projeto. Um dos destaques do CJCC de Salvador é a oficina Embaixadores da Ciência, que mobiliza um grupo de 12 es-tudantes, desafiando-os a fazer projetos de cunho científico. No evento SBPC Jovem e Mirim, realizado paralelamente à última reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progres-so da Ciência (SBPC), em Rio Branco, no Acre, três projetos feitos por alunos da oficina ficaram entre as 20 melhores colocações nas seletivas nacionais, disputadas por mais de mil projetos. Roberta Andrade Fraguas, 16 anos, ficou em

fonte nova, que vai abrigar a feira de ciências (alto à direita), e o chuveiro criado pelo professor fabrício e os alunos ronald, amado e lucas (abaixo)

BahiaCiênCia | 31

segundo lugar, com o projeto Sustentabilidade Z. Ela criou uma embalagem plástica, biodegradável e orgânica, para polpa de frutas, cuja matéria-prima é o amido de mandio-ca. “É comestível. A pessoa tanto pode bater a polpa junto com a embalagem no liquidificador, como pode descartá-la, pois o período de decomposição desse plástico é de 10 a 20 dias”, explica Roberta, aluna da Escola Técnica Casa Pia. O nome do projeto é uma referência à chamada Geração Z, a geração de jovens nascidos entre 1990 e 2000. “É uma ge-ração que consome muitos alimentos industrializados, mas se preocupa em buscar novos hábitos, mais sustentáveis.” As estudantes Denise dos Santos Lima, 16 anos, e Ingrid Lima Nascimento Santos, 15, ambas do Colégio Estadual Governador Lomanto Júnior, e Isaac Matheus de Jesus Silva, de 16 anos, do Colégio Modelo Luis Eduardo Maga-lhães, criaram o projeto “Simulando tornados: a parceria

da física com o meio ambiente”. Para simular o tornado, os estudantes reproduziram o choque do ar quente com o ar frio numa caixa e utilizaram glicerina, que passa do estado líquido para o gasoso, para visualizar o fenômeno. “Já vi simuladores que usam gelo seco. O nosso é mais sustentá-vel, pois usa glicerina”, diz Isaac. Outro projeto selecionado para a SBPC Jovem e Mirim foi “O clique sustentável sob a ótica de uma pinhole”, liderado pelos estudantes Edmil-son Barreto Júnior, 17 anos, e Felipe Fontes Carvalho, 18 anos. A dupla criou uma câmera fotográfica feita de bam-bu. “Queríamos criar uma câmera artesanal feita de um material sustentável e chegamos ao bambu”, diz Edmilson.

Apesar do entusiasmo com que se dedicam às atividades da oficina, a maioria dos alunos não chegou ali por algum interesse específico em assuntos científicos.

De modo geral, procuraram o CJCC atraídos pelo curso de inglês gratuito e lá conheceram a oficina, coordenada pela professora de biologia Suely Ribeiro dos Santos. “Come-çamos a trabalhar neste ano e a ideia era fazer trabalhos acadêmicos com os alunos e criar um espaço onde eles pos-sam desenvolver projetos, o que eles não conseguem fazer com frequência na sala de aula”, diz Suely. “Eles trazem as ideias e nós os ajudamos. O objetivo é mostrar que ciência não é um bicho de sete cabeças, que tudo ao nosso redor tem uma ligação com a ciência e que o desafio é deixar o aprendizado interessante”, diz a professora.

As novas experiências no ensino de ciências da Bahia têm vínculo com iniciati-vas oriundas do ambien-te acadêmico. O trabalho coordenado há mais duas décadas por Rejane Maria Lira da Silva, professora do Instituto de Biologia da Universidade Fede-ral da Bahia (UFBA), ajudou a formar vários profissionais envolvidos

nos programas recentes. Coordenadora do Laboratório de Animais Peçonhentos da UFBA e do Núcleo Regional de Ofiologia e Animais Peçonhentos da Bahia, vinculado ao Ministério da Saúde, Rejane engajou-se no início dos anos 1990 num trabalho de divulgação científica em escolas sobre cobras, aranhas e escorpiões. Seu grupo foi um dos artífices do programa nacional Não Existem Vilões na Natureza, que, de maneira lúdica, levou a escolas e comunidades conheci-mentos sobre animais peçonhentos. Em 2004, a iniciativa evoluiu, no âmbito de um projeto financiado pela Finep, para o programa Ciência, Arte, Magia. O objetivo foi criar centros de ciências nas escolas para trabalhar com os alunos no turno oposto ao que frequentavam, além de formar redes de cola-boração com as universidades, articulando-se, por exemplo, com pesquisadores da área de jornalismo científico – a pro-fessora Simone Bortoliero, da Faculdade de Comunicação da

“o oBJetivo é mostrar que a ciência não é um

Bicho de sete caBeças, que tudo ao redor tem

ligação com a ciência e que é possível deixar o

aprendizado interessante”, diz a professora suely

32 | setembro/outubro de 2014

UFBA, foi parceira da iniciativa. Em 2006, o trabalho de cerca de uma centena de estudantes de educação básica envolvidos nesses centros de ciências foi compilado num livro e começou a ser apresentado em even-tos da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Outro fruto foi o advento do Encontro de Jovens Cientistas, que ganhou abrangência nacional e chegou à quinta edição. No evento, os estudantes apresentam seus trabalhos, na forma de experi-mentos, textos de divulgação cien-tífica, vídeos e games, e participam de conferências com pesquisadores. “É um evento em que os estudantes tomam contato com diversos aspec-tos do trabalho científico. Não é uma feira de ciências”, diz Rejane.

O Ciência, Arte, Magia, que chegou a envolver dez cen-tros de ciências em escolas

públicas da Bahia, hoje continua em dois colégios estaduais e um mu-nicipal, e passou a se chamar Pro-grama Social de Educação, Vocação e Divulgação Científica da Bahia. Busca envolver o aluno de educa-ção básica e média num ambien-te genuíno de iniciação científica, em que o papel do professor é o de mediador e quem se articula para fazer o projeto se realizar é o estudante. “Os professores têm um trabalho enorme ao orientar e apoiar os alunos, mas quem defen-de o projeto e se empodera de seus resultados são sempre os alunos.” Há atualmente 30 alunos partici-

pando do programa, sendo 10 deles bolsistas de inicia-ção científica. Rejane comemora as novas experiências em educação científica na Bahia, mas adverte que elas podem ter um resultado limitado. “Não se pode esperar que um projeto desenvolvido em três meses, que envolva uma turma grande de alunos ou tenha o professor como agente principal resulte em construção de novos conheci-mentos”, diz Rejane. “Aprendemos com nossa experiência que esse processo é bastante demorado. Ficamos de dois a três anos trabalhando com um aluno”.

Outra iniciativa acadêmica que se tornou referência na Bahia é desenvolvida em colaboração com professores da educação básica pelos grupos de pesquisa liderados por Charbel Niño El-Hani, Claudia Sepulveda e Rosileia Oliveira

laboratório de animais Peçonhentos da ufba, pioneiro em divulgação científica (acima), e o professor charbel el-hani (à direita)

BahiaCiênCia | 33

de Almeida. Charbel é professor também do Instituto de Biologia da UFBA, onde coordena o Laboratório de Ensi-no, Filosofia e História da Biologia (LEFHBio). Em 2009, um edital de projetos de pesquisa lançado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb) e pela Secretaria de Educação da Bahia permitiu ao grupo cola-borativo investir na construção e investigação de inova-ções educacionais em escolas do estado da Bahia. Setenta por cento dos recursos obtidos pelo edital, de cerca de R$ 75 mil, foram canalizados para o pagamento de bolsas aos professores e o mesmo montante de recursos, destinados às escolas pela Secretaria de Educação, à implantação de

Núcleos de Pesquisa em Ensino de Ciências em três esco-las públicas, uma em Salvador, uma em Feira de Santana e outra em Lauro de Freitas. A grande vantagem dos núcleos, diz Charbel, é a visibilidade institucional da pesquisa, que deixa de ser vista nas escolas como atividade da universi-dade apenas. A iniciativa hoje envolve professores de no-ve escolas, que atuam de modo presencial. As inovações aplicadas numa escola são compartilhadas em reuniões mensais gerais com os professores e pesquisadores e ou-tras reuniões, de acordo com cronogramas próprios. “En-tendemos como inovação educacional qualquer mudança que tenha um caráter emancipatório para os professores. E, se não envolve o professor na construção e investiga-ção sobre o processo de mudança, não consideramos ino-vação”, diz Charbel, resumindo um conceito essencial do projeto, o de que o professor deve ser o protagonista das mudanças implementadas na escola.

O conceito que norteou a criação da rede começou a ser construído alguns anos antes, quando o Labo-ratório de Ensino, Filosofia e História da Biologia

buscava soluções para um problema crítico: a distância en-tre a pesquisa sobre educação feita nas universidades e sua aplicação nas escolas. “A lacuna entre a pesquisa e a prática existe em vários campos do conhecimento. No caso da edu-cação, havia diagnósticos equivocados que geravam soluções equivocadas”, diz Charbel. Segundo ele, a distância tem três razões importantes. Uma é o da relevância: a pergunta que o pesquisador julga relevante não é a mesma do professor, e vice-versa. Outra é o fato de a pesquisa depender do domí-nio de um referencial teórico e metodológico que demora muito tempo para ser consolidado e não é absorvido com facilidade pelos professores, a não ser que passem por um extenso processo de formação para a pesquisa pelo qual os pesquisadores educacionais passaram. A terceira é que o conhecimento científico generaliza as experiências, en-quanto o professor vive uma realidade particular que não necessariamente se encaixa na generalização acadêmica. O caminho trilhado pelo grupo recorreu a um conceito pro-posto pelos antropólogos Jean Lave, norte-americana, e Ettiene Wenger, suíço, o da “comunidade de prática” (CoP), formada por um grupo de indivíduos com habilidades e

Porrovit laut pligendusa cores dis

acipsunt pera dolupta volupta simust,

sendund usandam, aut dempedi sit

maiossequam fugias ditia voloriorepra

“entendo como inovação qualquer mudança de

caråter emancipatório para os professores”, diz

charBel el-hani, que defende o protagonismo dos

docentes na transformação da escola

34 | setembro/outubro de 2014

experiências distintas, mas que participam de modo ati-vo em processos de colaboração, compartilhando conhe-cimentos, interesses e práticas. “Esse tipo de comunidade foi capaz de promover inovações e mudanças de repertório nos grupos mesmo sem a intermediação de um líder. Al-gumas das experiências de sucesso envolviam professores, principalmente nos Estados Unidos”, diz Charbel. Partindo de um grupo de três professores de escolas públicas que já eram interlocutores do grupo da UFBA, a rede começou a crescer e, em 2009, já envolvia 140 participantes, entre pesquisadores de universidades, professores de biologia e estudantes de graduação em vários estados. Em 2013, Charbel participou, a convite do Instituto Anísio Teixeira e juntamente com Rosileia Oliveira de Almeida e Amanda Amantes, da organização do programa Ciência na Escola, ajudando a formar 36 professores articuladores, encarre-gados de formar outros professores – o total de docentes atingidos foi de mais de mil. Segundo Charbel, a adesão foi significativa. O grupo, no entanto, ficou por volta de 700 professores de 277 escolas – alguns desistiram depois que seus projetos foram analisados e pedidas revisões. “Mas os

“partimos do diagnóstico de que os indicadores

da Bahia em educacão científica eram ruins.

agora, vemos um crescente envolvimento dos

alunos no processo de aprendizagem”, diz Barreto

que ficaram se mostraram muito engajados. O programa estimulou o protagonismo dos professores e abriu espaço para a produção do conhecimento”, diz Charbel, que se desvinculou do programa neste ano.

É cedo para avaliar os frutos que as novas iniciativas em educação científica na Bahia irão render. O reco-nhecimento às vezes demora para vir, como se vê no

projeto Ciência na Estrada, lançado há dez anos pelo Cen-tro de Pesquisas Gonçalo Moniz, em Salvador, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que no mês passado foi agraciado com o Prêmio Sergio Arouca de Saúde e Cidadania, concedido pelo Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz. Desenvolvido por uma equipe de pesquisadores do Laboratório de Biolo-gia Parasitária da Fiocruz, dirigido por Marcos Vannier dos Santos, o projeto se baseia num ônibus transformado em laboratório que faz expedições por cidades do interior do país – principalmente na Bahia – para promover ativida-des de divulgação científica monitoradas por especialistas. Busca disseminar conhecimentos entre estudantes sobre microorganimos causadores de doenças e envolve atividades lúdicas, como jogos eletrônicos, animações e publicações. O laboratório faz também testes parasitológicos para a po-pulação. “Como muitas escolas não têm infraestrutura de laboratórios, o ônibus acaba suprindo uma lacuna impor-tante”, diz Marcos Vannier dos Santos, que conduz a inicia-tiva com a ajuda de seus alunos de pós-graduação. “É uma forma de comprometer socialmente aquele estudante que está fazendo mestrado e doutorado”, diz Vannier. Uma recente aquisição do projeto foi a de um projetor capaz de transformar praças em cinemas, por meio do Instituto Na-cional de Ciências e Tecnologia em Pesquisa Translacional em Saúde e Meio Ambiente na Região Amazônica, do qual Vannier participa. “Visitamos com o ônibus recentemente quatro cidades do interior da Bahia, todas elas sem cine-ma, e juntou gente para ver filmes sobre temas de ciência e saúde”, diz Vannier. w

o secretário de educação, osvaldo barreto: iniciativa para garantir letramento dos alunos

BahiaCiênCia | 35

EStUDANtE DE FEIRA DE SANtANA

VENCE CONCURSO PROMOVIDO PELA

UNIVERSIDADE HARVARD

EmPREEndEdoRA sociAL

políticA

Geórgia Gabriela da Silva Sampaio, estudante de 18 anos, foi uma das cinco vencedoras do concurso Village to Raise a Child, promovido pela Universi-

dade Harvard, dos EUA, com patrocínio da Coca-Cola, que reconhece o trabalho de cinco estudantes do ensino médio de vários países em projetos nas áreas de saúde, educação ou inovação, que contribuem para o desenvolvimento de sua região e procuram soluções para problemas comunitários. Nascida em Feira de Santana, Geórgia propôs a criação de um kit para diagnosticar com baixo custo e rapidez, e de for-ma não invasiva, a endometriose, doença que atinge entre 10% e 15% das mulheres em idade reprodutiva. No Brasil, 6 milhões de mulheres sofrem com a moléstia, caracteriza-da pela presença de células do endométrio fora do útero e pode provocar dor, sangramento e infertilidade. “Comecei a pesquisar e notei que a falta de um diagnóstico precoce é que aumenta o risco da doença e de outros estágios dela. Como o sintoma principal é a dor durante a menstruação, as mulheres passam muito tempo sem procurar tratamen-to”, disse Geórgia ao jornal A Tarde. “A média de atraso na busca de tratamento é sete anos. Enquanto isso, a endome-triose avança e pode atingir outros órgãos. O tratamento e o diagnóstico são muito caros”, explicou.

geórgia: em busca de um kit para diagnosticar a endometriose

Além de Geórgia, também foram premiados um grupo de alunos das Filipinas, com um projeto na área de com-putação; a jovem Kavindya Thennakoon, do Sri Lanka, e o estudante Rastraraj Bhandari, do Nepal, com projetos educacionais; e a brasileira Raissa Muller, gaúcha de No-vo Hamburgo, aluna de uma escola técnica de química, que desenvolveu um material que funciona como uma esponja e facilita a contenção de vazamentos de óleo. O anúncio dos cinco vencedores foi feito no dia 5 de outu-bro. Eles foram escolhidos entre um grupo de 15 finalistas selecionados numa votação pela internet – cada um teve de enviar um vídeo de 4 minutos em inglês explicando o seu projeto. Todos estarão em Harvard, no início de no-vembro, para participar da Igniting Innovation Summit — a maior conferência de empreendedorismo social entre universidades norte-americanas. Também ganharão um ano de mentoria com estudantes e professores da Har-vard Social Innovation Collaborative (SIC), organização responsável pelo concurso.

Apaixonada por ciência, línguas, música e causas so-ciais, Geórgia se formou no ensino médio em 2013, mas adiou sua entrada na universidade, embora tenha passado em quatro vestibulares no Brasil – seu interesse é estu-dar no exterior. Já tentou ingressar em duas instituições norte-americanas, mas ainda não conseguiu. Torce para que a vitória no concurso de Harvard viabilize seu proje-to. Filha de um comerciante e uma cabeleireira, trabalha como voluntária em Feira de Santana desde o segundo ciclo do ensino fundamental – participou de campanhas de arrecadação de doações e colaborou com um projeto de entretenimento para crianças carentes. Atualmente, é coordenadora local da organização não governamental Estudantes pela Liberdade, que promove projetos sociais a partir do ambiente acadêmico. w

desempenho

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36 | setembro/outubro de 2014

LABORAtóRIO BAIANO DE

NANOtECNOLOGIA INVEStE EM

PROJEtOS FOCADOS NA PRODUçãO

DE ENERGIA E ALtERNAtIVA

DE ILUMINAçãO

MarCElo garCia

As estruturas são minúsculas, nanométricas, visíveis e manipuláveis apenas com os mais potentes mi-croscópios e equipamentos. Porém suas utilizações

podem ser vislumbradas sem esforço e suas potenciali-dades, capazes de transformações gigantescas em nosso mundo. Esta é a nanotecnologia, uma das áreas mais pro-missoras deste século. O Brasil, para não perder o bonde nanotecnológico, tem investido na área, com a criação de laboratórios, desenvolvimento de infraestrutura e estí-mulo à formação de redes.

Um belo exemplo de dedicação ao estudo do mundo do muito pequeno é o trabalho realizado no Laboratório do Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que há cerca de quinze anos desenvolve pesquisa na área, sob a liderança do físico Antônio Ferreira. Atual-mente, os estudos realizados no instituto vão do desen-volvimento de novos tipos de painéis solares ultrafinos e de processos alternativos de geração de energia limpa a partir da produção de gás hidrogênio (H2) até a investi-gação das propriedades luminosas do silício poroso e até a fabricação de nanotubos de ouro a partir de fungos de algas da lagoa do Abaeté, em destaque na edição passada.

Ferreira destaca a necessidade de investimentos cada vez maiores na área, sob o risco de ficarmos para trás nes-se campo, que considera central para o próximo século. “É um desafio grande, pois envolve um investimento enorme,

mas essa tecnologia vai impactar todas as áreas no futuro – medicina, engenharia, física, química, em tudo”, pondera. “Os nanomateriais podem ter uma gama impressionante e muito variada de efeitos. Trata-se de uma área fantástica, na qual o Brasil não pode ficar para trás.”

ultrafinos e alternativos

Justamente com o objetivo de inovar com o uso da nano-tecnologia, um dos projetos de maior destaque do labora-tório da UFBA é o desenvolvimento de novos modelos de painéis solares de pequena espessura. As células solares desenvolvidas possuem uma base de vidro, superposta por camadas ultrafinas de nanopartículas: uma, formada por óxido de estanho com flúor, funciona como um excelente condutor de eletricidade. A outra, que em geral utiliza ma-teriais como disseleneto de cobre índio (CIS) e o seleneto de cobre-índio-gálio (CIGS), é a responsável efetivamente pela absorção da radiação solar.

Juntas, elas compõem um dispositivo multicamadas fotovoltaico que capta a energia luminosa, transforma-a em energia elétrica e a transmite até uma bateria, um re-servatório ou um aparelho elétrico. O CIS e o CIGS foram escolhidos por apresentarem as particularidades de serem estáveis quando sujeitos à incidência luminosa e de terem grande potencial fotovoltaico, ou seja, boa capacidade de absorção da luz.

nAnoEstRutuRAs, mEgAPossibiLidAdEsfísicA

produção do conhecimento

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Os painéis de CIS e CIGS apresentam uma série de vantagens sobre os equipamentos mais comumente usados, feitos de silício. Pri-meiro por representarem outra possibilidade de matéria-prima, já que o silício com pureza necessária para a utilização em painéis é caro e quase totalmente importado pelo Brasil, o que impacta o custo do equipamento. Vale destacar, no entanto, que a utilização do índio é um com-plicador, pois o elemento é relativamente raro e utilizado em indústrias como a de smartpho-nes. As placas ultrafinas também são muito mais compac-tas, requerem menos matéria-prima e são potencialmente eficientes. “Além disso, o uso de silício gera resíduos, por exemplo, no corte das placas, e não se sabe ao certo qual o destino desse material, que é tóxico”, destaca Ferreira. “Já a produção de painéis fotovoltaicos de CIS e CIGS não gera resíduo, não há desperdício.”

O processo e as condições de produção dos filmes ul-trafinos, aliás, são fundamentais para as propriedades do composto final. Nos estudos realizados na UFBA, o pro-cesso utilizado é o da eletrodeposição, que provoca a pre-cipitação do material sobre a base de vidro, depois tratada para se tornar mais homogênea. “São os muitos fatores envolvidos nesse processo que interferem na eficiência do filme ultrafino final: é preciso monitorar, por exemplo, a

uniformidade das camadas e o tamanho dos grãos de cada um dos componentes. São muitos detalhes”, explica o físico. “Isso serve tanto para a camada de CIS/CISG quanto para a de óxido de estanho, e nosso objetivo é buscar uma com-posição e arranjo certos de cada nanomaterial para gerar a maior eficiência possível.”

Apesar dos avanços, ainda é bem complicado pensar em produzir esse tipo de equipamento em escala comercial. Por exemplo, os resul-tados dos filmes ultrafinos de Ferreira ainda

estão abaixo dos 10% de eficiência, enquanto os muitos tipos de placa de silício chegam, em média, a cerca de 20% de eficiência. Porém o físico destaca que o estudo das propriedades quânticas desses materiais abre muitas possibilidades de pesquisa. Por exemplo, seu grupo tem buscado a criação de outros compostos alternativos, com a adição de novos elementos aos filmes, como o estanho.

O desenvolvimento de alternativas em relação às pla-cas de silício vem sendo pesquisado em diversas partes do mundo. Em outros centros de pesquisa, por exemplo, já foram desenvolvidos filmes finos parecidos com os da UFBA, mas que utilizam polímeros, e não vidro, co-mo substrato. Com isso, obtiveram células fotoelétricas igualmente finas, mas flexíveis, que poderão ter novas aplicações no futuro.

imagens obtidas por microscopia eletrônica de varredura de tantalato de bismuto (bitao4) dopado com cromo a 2% (esquerda) e de niobato de bismuto (binbo4) dopado com cromo a 3%,

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nAnoEstRutuRAs, mEgAPossibiLidAdEs

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Outra linha de pesquisas do Instituto de Física da UFBA também demonstra a potencialidade da nanotecnologia na produção de energia. A equipe de Ferreira tem anali-sado nanomateriais para serem empregados no processo de geração fotocatalítica de hidrogênio a partir de água e luz solar – ou seja, para produção de energia limpa alter-nativa na forma de hidrogênio.

tendo em vista a crescente busca por fontes de energia renovável, o gás aparece como uma opção muito atra-tiva, que vem sendo pesquisada por grupos de todo o

mundo. Entre seus benefícios estão o fato de não prejudicar o meio ambiente, já que sua combustão gera apenas vapor d’água como subproduto, e o de ser um recurso ilimitado, que pode ser obtido a partir da água. “A Islândia lidera essa pesquisa em nível mundial, mas ainda há gargalos que pre-cisam ser resolvidos”, diz Ferreira. “Por exemplo, ele não é encontrado em sua forma pura na natureza, ocupa grandes volumes, e ainda não foram desenvolvidas técnicas para sua produção e armazenamento em escala comercial”, destaca.

De forma simplificada, a fotocatálise trata da conversão direta da energia solar em energia química, tendo a água como principal matéria-prima para a geração do gás hidro-gênio (H2), assim como do gás oxigênio (O2), um subpro-duto da reação. O proces-so ocorre na presença de materiais dissolvidos em água, que têm a capacida-de de absorver a luz solar para gerar a energia re-querida para a quebra da molécula H2O. Os estudos realizados pelo grupo de Ferreira concentram-se no desempenho de diversos compostos, como o niobato de bismuto (BiNbO4), o tantalato de bismuto (BiTaO4) e o dióxido de titânio (TiO2).

“Nosso objetivo é descobrir quais materiais se saem me-lhor nesse trabalho, qual a melhor composição e nanoes-trutura, o que depende muito da espessura dos grãos, do seu tamanho, da sua quantidade”, explica o pesquisador. “E não basta apenas constatar a capacidade desses materiais de gerar o hidrogênio que queremos, mas principalmente tentar entender o processo de geração do gás.”

Ferreira lembra, no entanto, que é preciso estudar não apenas a fotocatálise em si, mas também todo o processo de formação desses nanomateriais, no qual cada detalhe pode interferir no desempenho. “O óxido de titânio, por exemplo, pode assumir formato de tubinhos ou de aresta (quando observado pelo microscópio), dependendo do processo em-pregado na sua produção em escala nanométrica”, explica.

silício poroso – e luminoso

Se nos exemplos anteriores temos nanomateriais que ab-sorvem a luz para gerar energia, outro projeto do labora-

tório se propõe a fazer mais ou menos o oposto: utilizar a nanociência para gerar luz. Naturalmente, o silício é um material semicondutor que conduz corrente elétrica, mas não emite luz. Porém, ao ser submetido a um processo de eletrólise em presença de um ácido, as camadas superficiais de uma placa de silício se transformam em silício poroso, um novo material com propriedades inteiramente distin-tas – e capaz de emitir luz. Na eletrólise, a superfície do silício mergulhada numa solução ácida (ácido fluorídrico, no caso) é desgastada quimicamente com a passagem de uma corrente elétrica pelo sistema.

O silício poroso recebe este nome não é à toa: quando olhado em microscópio de alta resolução, a superfície da placa – que antes era lisa e cristalina – está rugosa, porosa, repleta de reentrâncias, de tamanho nanométrico. O processo faz com que o silício deixe de ser um semicondutor para for-mar um novo material híbrido semicondutor-molecular, que contém os elementos hidrogênio, oxigênio e até carbono. “O ataque químico gera a porosidade e a formação de moléculas poliatômicas na superfície, combinações de átomos de silício com esses elementos”, conta Ferreira. “Elas se encontram confinadas em nanocristais de diversos tamanhos e com formações as mais diversas possíveis, que são influenciadas pelas características nanométricas da superfície.”

O silício poroso, segundo Ferreira, pode ser parte impor-tante de futuras revoluções em muitas áreas, como a medi-cina. Ao contrário do silício normal, que é tóxico, o material se adapta ao tecido humano e possibilita, por exemplo, o desenvolvimento de culturas de células em sua superfície. “Ele poderá ser usado, por exemplo, em aplicações como implantes, com a camada externa de silício poroso funcio-nando como uma superfície que permite cultivo de tecido e uma fácil adaptação ao corpo humano”, diz o pesquisador.

Ele também pode ter importância no futuro da tecnologia e da computação quântica, já que consegue conduzir energia e emitir luz, que é fundamental na produção de equipamen-tos óptico-eletrônicos. A estrutura diferenciada do material é a responsável por suas propriedades específicas: nos poros ou poços nanométricos ocorre um fenômeno denominado confinamento quântico, que leva à emissão de luz a partir de vibrações provocadas pela excitação gerada pela passagem de corrente elétrica. “Essa rugosidade em escala nanométrica favorece a formação de agrupamentos maiores ou menores, com diferentes larguras e profundidades, o que favorece a emissão de luz com intensidades diferentes”, explica o físico.

o processo faz com que o silício deixe de ser

um semicondutor para formar um novo material

híBrido semicondutor-molecular

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A partir dessa propriedade, Ferreira desenvolveu o princípio para a criação de uma luz LED com base no material. Para isso, novamente utiliza o silício poroso como substrato recoberto com uma camada fina de óxido de estanho com flúor, por sua capacidade de transmitir corrente elétrica. “A passagem da corrente elétrica gera vibrações moleculares nanométricas e, por fim, a emissão de luz no espectro visível – e, com isso, possibilita a criação de LEDs e lasers”, avalia Ferreira.

Ele explica que é possível alterar o tamanho dos fossos criados no silício poroso por meio da regulação de diversos fatores no momento de sua produção, como a concentração de ácido em que é submerso e a corrente utilizada no pro-cesso. “Dependendo da estrutura porosa, suas característi-cas morfológicas, eletrônicas e ópticas serão modificadas”, afirma. “A intensidade da luz vai depender da estrutura e de quão fundo são os poços presentes no material utilizado; de forma geral, quanto mais fundo, mais energia necessá-ria para ultrapassar o confinamento quântico”, esclarece.

soBre a nanotecnologia

Por estes poucos exemplos, fica claro como são vastas as pos-sibilidades da nanotecnologia. Por isso, são cada vez mais os centros brasileiros que se dedicam ao desenvolvimento tecnológico na área. E o próprio Ministério da Ciência, Tec-nologia e Inovação (MCTI) tem demonstrado a preocupação de estimular estas iniciativas, na avaliação de Ferreira. Ele cita, por exemplo, a criação do Sistema Nacional de Labo-ratórios em Nanotecnologias (SisNANO), uma rede de pes-quisadores e laboratórios de alta qualidade em nanociências e nanotecnologias, coordenada pelo MCTI, como exemplo de política que visa garantir acesso à infraestrutura neces-sária e à formação de recursos humanos qualificados. No

Nordeste, também se destaca a ação do Centro de Tecno-logias Estratégicoas do Nordeste (Cetene), em Recife, com seu Laboratório Multiusuário de Nanotecnologia, do qual Ferreira é vice-coordenador.

“Investir em nanotecnologia tem sido uma preocupação do MCTI, que tem procurado integrar os laboratórios de nanotecnologia do país”, afirma Ferreira. “A preocupação com a área é crescente, tivemos recentemente encontros entre representantes da China e da União Europeia para discutir a realização de projetos conjuntos e o desenvolvi-mento da área de regulamentação, fundamental para dar suporte à atividade, por exemplo, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), estabelecendo parâmetros para avaliação de produtos nanotecnológicos.”

Ele destaca a necessidade de aproximar o investidor pri-vado da atividade de pesquisa no campo, para estimular a inovação – seu grupo na UFBA já desenvolve, por exemplo, projetos com empresas como a Petrobras e a Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba). O físico também aponta como fundamental a atuação de entidades como a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para o desenvol-vimento da infraestrutura necessária. “Só um microscópio de transmissão como o que adquirimos custa R$ 4 milhões”, diz. “Por isso, acredito que uma boa solução é a construção de laboratórios multifuncionais ou multiusuários, que po-dem atender a muitas áreas ao mesmo tempo e ser apro-veitados em sua íntegra, como temos tentado concretizar na UFBA e no Cetene.”

Os desafios do muito pequeno ainda são enormes, mas se o Brasil tiver pretensões de ser gigante, o investimento na nanotecnologia associada a diversas outras áreas do conhecimento parece ser, de fato, fundamental. w

1 composto de bismuto, nióbio e oxigênio dopado com molibdênio

2, 3 e 4 Óxido de zinco aumentado 6 mil, 10 mil e 15 mil vezes

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OLIVAL FREIRE JUNIOR

ExPLORA E CONtExtUALIzA A

HIStóRIA DE UMA REVOLUçãO

COMPLExA COM RIGOR E

EM tERMOS ACESSíVEIS

Em LinguAgEm cLARA

As controvérsias em torno da física quântica come-çaram a ocupar o professor Olival Freire Junior, do Instituto de Física da Universidade Federal da

Bahia (UFBA) ainda em seu mestrado na Universidade de São Paulo (USP), quando ele decidiu desenvolver um estu-do sobre as interpretações da teoria no período de 1927 a 1949. A época era fim dos anos 1980, começo dos 1990. No doutorado que fez imediatamente a seguir, também na USP, dedicou-se a “David Bohm e a controvérsia dos quanta”. O tema o apaixonara a tal ponto que com ele seguiu para os vários pós-docs na Universidade Paris VII, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e nas universidades Harvard e de Maryland. A rigor, contudo, foi nos últimos 12 anos que decifrar a dinâmica da controvérsia envolven-do a interpretação e os fundamentos da física quântica transformou-se no grande empreendimento de pesquisa de Olival – e efetivamente multidisciplinar.

A ideia de um livro para dar conta dos resultados dessa vasta investigação começou a tomar corpo em 2009, com o incentivo inclusive do respeitado historiador da ciência norte-americano Silvan Schweber. E nos últimos dois anos, tendo incluído alguns meses de estada nos Estados Unidos, Olival dedicou-se firme e sistematicamente a elaborar a obra cuja publicação acertara em 2010 com a editora Springer. Seu contrato previa entregar os originais em maio deste

ano e ele cumpriu o compromisso, resistindo inclusive a fortes apelos político-afetivos para deixar de lado a tem-porada norte-americana e voltar a Salvador para participar da campanha de João Carlos Salles à reitoria da UFBA.

Fruto de tamanho esforço, o livro The quantum dissidents: rebuilding the foundations of quantum mechanics (1950-1990), do qual Bahiaciência publica em primeira mão, nas páginas seguintes, o primeiro capítulo, tem lançamento no mercado editorial previsto para janeiro de 2015. Escrito diretamente em inglês “para ser lido e criticado por um número maior de pessoas”, por sugestão inclusive do historiador baiano João José Reis, o volume com capa dura tem preço sugerido de US$ 80. É claro que Olival sonha em ver o livro também em português, cotado em reais e bancado por alguma editora atuante no país, mas não há ainda propostas neste sentido.

No prefácio de The quantum dissidents, Silvan Schweber observa que as pesquisas sobre os fundamentos da mecâ-nica quântica atraíram a atenção da comunidade científica depois dos experimentos de Alain Aspect. Os posteriores refinamentos desses experimentos “tornaram-nos cri-ticamente relevantes para as ciências da computação e ajudaram a estabelecer o campo da informação quântica, que tem entre seus objetivos transformar a computação e tornar a transmissão de informações absolutamente se-gura, revolucionando a criptografia”, ele explica, para em seguida afirmar que “todos esses desenvolvimentos são belamente explicados por Freire”. Mais adiante ele dirá que impressionante é como Olival explica toda a física que apresenta “de maneira acessível, acurada, clara e sucinta”.

Na apreciação do trabalho, Schweber diz ainda que Olival “queria compreender por que investigar as questões funda-mentais da mecânica quântica era algo altamente desenco-rajado até os anos 1960”. Define que “uma das conquistas mais impressionantes do livro é cerzir os contextos profis-sional, cultural e político com o pessoal e o individual”. E finaliza definindo o livro como um exemplo do que “a sín-tese bem-sucedida da história, da sociologia e da filosofia da ciência podem alcançar” para completar que o mais alto elogio que pode fazer é reconhecer que “qualquer pessoa que aspire a se tornar um físico pode se tornar um físico melhor depois de ler The quantum dissidentes – Rebuilding the foundations of quantum mechanics 1950-1990.

inédito

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olival FrEirE Junior

a pesquisa envolvendo estes funda-mentos se estabeleceu como um tópico promissor no âmbito da pesquisa no campo da física. À medida que a “in-formação quântica” se transformou em um novo campo de pesquisa em meados da década de 1990, este his-tórico se encerra quando a informa-ção quântica começa a se tornar uma área de pesquisa em pleno desenvol-vimento. Este livro pode ser visto, portanto, como uma pré-história da informação quântica.

A teoria quântica é um caso exem-plar na história da física em que o sucesso de suas predições e explica-ções coexiste com profundas dúvidas quanto à solidez dos seus fundamen-tos. Mas dúvidas análogas também surgiram com relação a importantes teorias da física, como a mecânica newtoniana e a termodinâmica. In-

venções como os lasers e os transístores, que mudaram ra-dicalmente a ciência, a tecnologia e a sociedade na segunda metade do século xx, foram baseadas na teoria quântica. Por mais estranho que pareça, o número de cientistas que previram a necessidade de examinar mais a fundo seus fundamentos aumentou no mesmo período. O que nos faz recordar a opinião pascaliana de que um horizonte amplo de conhecimentos leva a uma certeza restrita quanto aos seus fundamentos. Assim, é legítimo formular questões, como: “A sua eficácia instrumental repousa na rocha dos conceitos seguros ou na areia dos princípios fundamentais não conclusivos?” (Briggs et al, 2013).

Os físicos se preocuparam com a existência de diferen-tes interpretações do formalismo matemático da teoria. Com efeito, para alguns deles, os fundamentos da teoria não estavam suficientemente estabelecidos para a pró-xima etapa no desenvolvimento da física. John Bell, um dos mais eminentes físicos a trabalhar nessas questões, costumava afirmar que a mecânica quântica estava “po-dre”, usando a famosa frase de Hamlet, numa referência

A segunda revolução quântica, que pode provocar um impor-tante avanço tecnológico na

ciência e na tecnologia com a criação dos computadores quânticos, foi um termo cunhado pelo físico francês Alain Aspect para descrever as mu-danças na física que tiveram início na década de 1960. Para elaborar o novo termo, Aspect aglutinou duas diferentes linhas de pensamento. A primeira abarcava o surgimento da consciência da importância de um novo efeito físico, o emaranhamen-to, referindo-se à descrição quântica de um sistema composto que não é redutível à soma de suas partes. Isto deu início a uma revolução conceitual, incluindo a perspectiva de criar com-putadores quânticos com um poder de cálculo exponencialmente maior que o dos melhores computadores dos dias atuais. A segunda linha derivou da capacidade dos físicos de isolar, controlar e observar sistemas quân-ticos simples, como elétrons, fótons, nêutrons e átomos. Finalmente as duas correntes se fundiram, criando um novo campo de pesquisa intitulado informação quântica. Na formulação de Aspect, o pressuposto é de que duas re-voluções quânticas ocorreram no século xx. A primeira, na primeira metade do século, deu origem à teoria científica que descreve o comportamento dos átomos, a radiação e suas interações. A segunda ocorreu na segunda metade e ainda vem evoluindo, uma vez que a promessa dos com-putadores quânticos ainda não se concretizou. Este livro trata das origens desta alegada segunda revolução – do início dos anos 1950 até meados dos 1990 – e é um histó-rico dos aspectos intelectuais e contextuais resultantes da renovação da pesquisa sobre os fundamentos da física quântica. Ele abrange aproximadamente o período que vai da década de 1950, quando a pesquisa ganhou ímpeto com o surgimento de novas interpretações do formalismo matemático desta teoria física, até os anos 1990, quando

capítulo 1

dissidentes e a segunda revolução quântica

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indireta ao pai da interpretação padrão desta teoria, o físico dinamarquês Niels Bohr. As dúvidas sobre os fun-damentos da teoria quântica se transformaram em uma das mais fascinantes controvérsias na história da ciência, comparável às que levaram os newtonianos a confrontar os cartesianos no início da física moderna, ou os defensores do energeticismo contra os que defendiam o atomismo no século xix. Uma vez que grande parte da pesquisa sobre os fundamentos da física quântica na segunda metade do século xx se interconectava com as controvérsias sobre esses mesmos fundamentos, nosso estudo concentra-se em ambos os aspectos, que podemos chamar de “a con-trovérsia quântica”.

A controvérsia quântica, portanto, traçou uma linha di-visória entre aqueles que acreditavam que não havia nada mais para ser pesquisado no tocante aos fundamentos da teoria depois de estabelecida pelos seus fundadores, co-mo Niels Bohr, Werner Heisenberg, Wolfgang Pauli, Max Born, Pascual Jordan, Paul Dirac e John von Neumann, e os que, muitos deles integrantes de uma geração mais jovem, empenharam suas carreiras profissionais na in-vestigação desses temas. De fato, até o fim dos anos 1970 a pesquisa sobre interpretações alternativas da mecânica quântica não era considerada “física real” por muitos; mes-mo a existência de uma tal controvérsia já era uma posição controvertida. Por isso Léon Rosenfeld, por exemplo, fez objeção ao uso do termo “interpretação de Copenhague” porque poderia significar a legitimação de uma diversidade de interpretações. Permita-nos ilustrar esta opinião com dois depoimentos recentes. O físico francês Franck Laloë publicou em 2001 um estudo provocativamente intitulado “Entendemos realmente a mecânica quântica? Estranhas correlações, paradoxos e teoremas”. A boa recepção de seu estudo levou-o a ampliá-lo e transformá-lo num copioso livro. Ele expõe o seguinte (2001, p. 656):

“Até cerca de 20 anos atrás, provavelmente como resultado das famosas discussões entre Bohr, Einstein, Schrödinger, Heisenberg, Pauli, de Broglie e outros (...) muitos físicos consideravam que ‘Bohr estava certo e provou que seus opo-nentes estavam errados’, mesmo que isto tenha sido expres-sado com mais nuance. Em outras palavras, para a maioria dos físicos, a chamada ‘Interpretação de Copenhague’, nos primeiros estágios da mecânica quântica era claramente a única atitude sensata para os bons cientistas”.

A colocação “muitos físicos”, aqui, exige um esclareci-mento. A questão não era a existência de uma maioria de físicos aceitando conscientemente o conceito de comple-mentaridade ou a proposição de Von Neumann. Na verdade, a própria complementaridade nunca foi parte da formação dos físicos, ausente que estava de muitos livros de estudo. Entretanto, a opinião geralmente aceita pelos físicos era de que as dúvidas sobre os fundamentos já haviam sido resolvidas pelos fundadores da física quântica e era des-

necessário perder tempo lendo os trabalhos de fundamen-tos quando tais problemas já haviam sido solucionados. Referências a esse conhecimento tácito surgirão muitas vezes no decorrer deste livro. O segundo testemunho pa-ra ilustrar esta posição é fornecido por Christopher Gerry e Kimberley Bruno, que escreveram The Quantum Divide, dirigido a um público mais amplo que o dos físicos profis-sionais, e onde narram a seguinte história (2013, p. 172):

“Há alguns anos o autor sênior deste livro (CCG) deu uma palestra sobre as desigualdades de Bell. No público encontra-va-se um professor aposentado que realizara uma pesquisa de pós-doutorado no instituto de Bohr. Após a palestra ele declarou à plateia que não havia nada de importante nas desigualdades de Bell e que Bohr já havia solucionado todos os problemas da física quântica”.

Este enfoque segundo o qual “todos os problemas funda-mentais estão solucionados” no tocante aos fundamentos da física quântica foi contestado por outros físicos, para os quais era valioso persistir nestas questões como parte de uma carreira profissional em física. Assim sendo, eles questionaram a própria definição do que era a boa física e contestaram a distribuição estabelecida do capital científico, para usar a noção de áreas científicas de Pierre Bourdieu. Nesse sentido, eu os chamo de “dissidentes quânticos”, expressão tomada emprestada do conceito de dissidência no campo da política e da religião. Esse grupo inclui Da-vid Bohm, Jean-Pierre Vigier, Hugh Everett, John Bell, John Clauser, Abner Shimony, Heinz Dieter Zeh, Bernard d´Espagnat, Anthony Legget, Franco Selleri, GianCarlos Ghirardi, Anton Zeilinger e Alain Aspect, juntamente com alguns físicos da velha guarda da mecânica quântica, como Louis de Broglie e Eugene Wigner.

Nos estágios iniciais desta controvérsia o debate se res-tringiu a argumentos teóricos. Bohm, Everett e de Broglie, no início dos anos 1950, como também Wigner e Shimony no início dos anos 1960, podem não ter imaginado como transferir o debate para o laboratório. A inexistência de ex-perimentos levou o físico Albert Messiah a afirmar no seu importante manual que “a controvérsia finalmente chegou a um ponto em que não pode ser decidida por quaisquer observações experimentais; daqui para frente ela pertence à filosofia da ciência, e não ao domínio da própria ciência física” (1961, p. 48). Tal conclusão teve implicações profis-sionais inequívocas, significou que a controvérsia não era uma questão profissional para os físicos, particularmente para aqueles novos na profissão. A percepção de que em seus primórdios a controvérsia era de natureza filosófica sobreviveu em estudos mais recentes realizados por novos protagonistas desta pesquisa. Em 1974, o historiador Max Jammer escreveu um livro muito abrangente sobre a histó-ria das interpretações da mecânica quântica intitulado The Philosophy of Quantum Mechanics. Em 1999, o físico Anton Zeillinger relembrou que “a maior parte do trabalho sobre

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os fundamentos da física quântica foi de início motivada pela curiosidade e até por considerações filosóficas”.

Em fins da década de 1960 o cenário mudou radicalmente. Além das amplas tendências culturais que influenciaram a controvérsia, um trio composto por Bell, Clauser e Shi-mony ligou esta controvérsia e suas conotações filosóficas às bancadas dos laboratórios. Um teorema formulado por Bell e desenvolvido por Clauser, Shimony, Michael Home e Richard Holt foi submetido a testes experimentais. Esse teorema comparava a mecânica quântica pura com qualquer teoria física com variáveis ocultas que tivessem a “locali-dade” como hipótese. As variáveis ocultas eram variáveis adicionais àquelas utilizadas pela física quântica padrão que foram introduzidas para asseverar que os sistemas quânticos têm propriedades bem definidas, independen-temente de suas medições. Em resumo, as variáveis ocul-tas eram uma estratégia para preservar o realismo físico neste novo campo. A localidade, premissa amplamente aceita entre os físicos, expressada por Einstein em 1935 num trabalho feito em colaboração com Boris Podolsky e Nathan Rosen, estabelece que a me-dição de um sistema não deve afetar um outro distante. O teorema de Bell podia confrontar então as previsões quânticas ao realismo local.

Mas, mesmo durante os primeiros experimentos do teorema de Bell nos anos 1970, o assunto ainda era visto com suspeita por muitos. Depois dos experimentos de Alain Aspect no início da década de 1980, a pesquisa sobre os fundamentos da mecânica quântica se tornou boa física, pura e simples, quando então Aspect foi amplamente reconhecido por seus trabalhos. No fim dos anos 1980 e início dos anos 1990, esses experimentos foram retomados. Eles confirmaram as previsões da mecânica quântica e os físicos ressuscitaram um antigo termo, cunhado por Erwin Schrödinger, para descrever o novo efeito físico: emaranhamento.

Desde então os sistemas físicos, que primeiramente in-teragem e depois se separam, devem ser considerados um único sistema, descrito como um único estado quântico. Alguns dissidentes quânticos pretenderam invalidar a teoria quântica, mas suas esperanças não se concretizaram. Não obstante a sua frustração, a controvérsia sobre o realis-mo local foi frutífera para a física e hoje compreendemos a teoria quântica melhor do que seus fundadores. Neste sentido, este é um tema interessante para analisarmos os mecanismos das controvérsias científicas, o que tem atraído a atenção dos estudiosos.

No início dos anos 1990, novos eventos trouxeram os fundamentos da mecânica quântica para o campo da física estabelecida. Isso não ocorreu por si só, mas foi combinado com a ciência da computação numa área em expansão então

1 A este respeito, ver The Washington Post, 2 Jan 2014, “NSA seeks to build quantum computer that could crack most types of encryption”, por S. Rich e B. Gellman, em http://www.washingtonpost.com/world/national-security/nsa-seeks-to-build-quantum-computer-that-could--crack-most-types-of-encryption/2014/01/02/8fff297e-7195-11e3-8def--a33011492df2_story.html, acessado em 30 de abril de 2014.

chamada de informação quântica, com a promessa tecno-lógica de uma revolução da computação e da criptografia. Portanto não foi nenhuma surpresa o fato de se tornar uma das áreas mais financiadas por militares, empresas e agências de financiamento interessados em suas possíveis aplicações1. Este campo está baseado em conceitos-chave da pesquisa sobre os fundamentos da mecânica quântica, co-mo emaranhamento, de coerência e criptografia quântica. Há uma interação empolgante entre teoria e experimento, com experimentos envolvendo sistemas mesoscópicos que têm sido comparados ao Gato de Schrödinger, o que será explicado em capítulos posteriores, hoje sendo realizados em laboratórios, ao passo que outros com base no teorema de Bell atingiram novos picos.

Em 2012, uma equipe liderada por Anton Zeilinger anun-ciou ter realizado uma teleportação quântica, a reprodução de um estado quântico a partir de um sistema remoto, a uma distância de 144 quilômetros. Assim, este caso de-monstra como um assunto marginal no campo da física, considerado por alguns um tema apenas para filósofos, se

inseriu na ciência tradicional pelos meios sutis e complexos em que a ciência opera.

A cronologia deste livro vai até meados de 1990, quando o termo informação quântica virou lugar comum e a pesquisa física deste no-vo campo de estudo explodiu. Dois eventos históricos coincidem neste ponto. O primeiro foi o que teve iní-cio como uma pesquisa sem o suporte dos experimentos e tornou-se uma área com a perspectiva tecnológica de mudar o panorama dos compu-tadores. O segundo implicou que os

tempos do predomínio quase total da complementaridade e do conceito segundo o qual “todos os problemas foram solucionados” chegaram ao fim. Foram-se os dias em que físicos como Léon Rosenfeld e Richard Feynman achavam que seus colegas que duvidavam dos fundamentos e das interpretações da mecânica quântica simplesmente não os compreenderam. A partir da década de 1990, os irredutí-veis defensores da complementaridade conviveram e se beneficiaram da controvérsia envolvendo a interpretação quântica. Um dos mais qualificados cientistas dedicados a experiências e defensor do conceito da complementarida-de, Anton Zeilinger defende tanto a complementaridade como os valores da controvérsia.

as dúvidas soBre os

fundamentos da

teoria quântica se

transformaram nas

mais fascinantes

controvérsias

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a dinâmica da mudança em ciência

Em certa medida, portanto, tanto a história da contro-vérsia quântica como a da pesquisa dos fundamentos da teoria quântica na segunda metade do século xx são histórias de sucesso. Um tema que fora considerado de-masiado filosófico e marginal na física acabou se trans-formando num tópico quente para a pesquisa física e até contribuiu para o surgimento do florescente campo da informação quântica. Esta é, pois, uma história cuja dinâmica merece alguma explicação. Quais foram os fatores que moldaram essas mudanças? Já temos uma resposta dada pelos que primeiro exploraram este novo território, os físicos que trabalham em pesquisas relacio-nadas aos fundamentos da física quântica. Eles atribuem a mudança às melhorias nos procedimentos técnicos que permitiram experimentos laboratoriais reais que até en-tão só haviam sido experimentos idealizados (Gedanke-nexperiments). “Graças ao avanço recente da tecnologia, agora se torna factível realizar muitos experimentos que antes só poderiam ser concebidos no cérebro de teóricos” e “[esta conferência] foi organizada [...] com o propósito de revisar con-ceitos fundamentais da mecânica quântica com a ajuda de meios ex-perimentais tornados disponíveis por avanços tecnológicos recentes”. Estas foram as palavras de abertu-ra dos Simpósios Internacionais sobre os Fundamentos da Mecâ-nica Quântica à Luz de Novas Tec-nologias realizados em Tóquio em 1983 e 1986. Ideias similares foram expressas por físicos americanos e europeus que chefiavam pesquisas sobre estes tópicos (Greenberger, 1986), (Haroche, 2004). A historiadora Joan Bromberg foi mais longe na exploração desta resposta. Depois de observar que a historiografia até então vinha se con-centrando em temas como o marxismo e alternativas à interpretação de Copenhague, à interpretação causal de David Bohm e à origem do teorema de Bell, ela en-fatizou “uma pista que os historiadores ainda precisam seguir e é a referência constante que físicos em ativida-de fazem ao papel da nova instrumentação”. Este tipo de explicação tende a ser a visão recebida sobre o tema não só pelo volume de materiais concernentes às desi-gualdades de Bell e experimentos sobre elas nas duas últimas décadas, mas também pelas melhorias técnicas consideráveis, particularmente dos anos 1980 em dian-te, que permitiram a manipulação de sistemas quânticos simples. Ademais, esta visão é análoga à descrição de mudanças nas ciências físicas em que somente teoria e experimentos podem desempenhar um papel. Ela explica as mudanças na controvérsia quântica, sobretudo, como consequência do papel desempenhado por experimentos

na física. Pode ser uma espécie de determinismo experi-mental, herdeiro do determinismo tecnológico. Mas será esta a única explicação, ou mesmo a mais interessante?

Este livro explora uma perspectiva alternativa sobre as mudanças na pesquisa sobre os fundamentos da me-cânica quântica dos anos 1950 em diante. Houve uma mudança em lento desenvolvimento das percepções da física com respeito aos fundamentos da física, seja como um tema controverso ou como um campo de pesqui-sa. Novas oportunidades institucionais e profissionais relacionadas ao tema foram criadas, antes mesmo da realização dos primeiros experimentos sobre o teorema de Bell. Esta mudança ocorreu durante os anos 1950 e 1960 e pode explicar a elaboração e a recepção positiva que os experimentos sobre o teorema de Bell obtiveram. Os experimentos sobre o teorema de Bell certamente aumentaram a velocidade dessa mudança e mais tarde outros fatores jogaram seu papel. Entretanto, e este é nosso ponto crucial, mesmo depois de começarem os primeiros experimentos sobre o teorema de Bell,

o estigma profissional contra os físicos que estavam trabalhando nesses experimentos permane-ceu, como demonstraram o caso de John Clauser e as preocupa-ções de John Bell e Alain Aspect ao longo dos anos 1970. Explicar mudanças na física com base ape-nas em teoria e experimento como fatores motrizes não se harmoni-za com a sobrevivência de estig-ma profissional contra um tópico de pesquisa, apesar da realização de experimentos bem-sucedidos. Isto pede um tipo mais amplo de

explicação. De fato, não basta haver experimentos fun-cionais para ser considerada boa física; é preciso que muitos outros físicos considerem tais experimentos relevantes. É com certeza verdade que a existência de melhorias técnicas e experimentos reais foram influen-tes no surgimento e consolidação da pesquisa sobre os fundamentos da física quântica. Foi uma força motriz efetiva quando se restringe a análise aos anos 1980, mas é uma explicação particularmente limitada quando se considera a transformação toda que teve lugar desde os princípios dos anos 1950. Ademais, como veremos, mesmo nos anos 1980 podem ser encontrados traços de preconceito profissional e cultural contra a pesquisa sobre esses tópicos. Aliás, diversos fatores podem ter desempenhado seus papéis na controvérsia em evolução sobre os fundamentos dessa teoria. Entre esses fatores, convém considerar questões filosóficas e ideológicas, vieses profissionais, mudanças geracionais e culturais e a diversidade de ambientes sociais e profissionais nos quais a física foi praticada ao longo do século. Além dis-

um tema

considerado

marginal acaBou se

transformando num

tópico quente para

a pesquisa física

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so, houve inovações conceituais e teóricas, inovações técnicas, Gedankenexperiments e feitos experimentais, além de expectativas tecnológicas.

Ilustremos a diversidade de fatores que impulsionam a mudança no panorama intelectual e profissional dos fundamentos da teoria quântica após a Segunda Guerra Mundial. Embora a primeira rodada de experimentos te-nha tratado do teorema de Bell no início dos anos 1970, outras questões teóricas pressionavam os físicos tanto antes como durante o surgimento do interesse pelo teore-ma de Bell. Nos anos 1950, interpretações alternativas da física quântica foram formuladas por David Bohm e Hugh Everett. Bohm conjecturou sobre diferentes previsões do que chamou de nível subquântico, mas nenhum deles con-siderou consistentemente na época as implicações experi-mentais de suas propostas. Apesar de a interpretação de Bohm ser influente na motivação de John Bell para seus trabalhos posteriores e suas implicações experimentais, a proposta de Everett nunca teve e possivelmente nunca terá previsões experimentais outras que não aquelas da física quântica usual. E, no entan-to, ela foi influente por suas capa-cidades heurísticas. Ademais, após uma década sem chamar a atenção de especialistas, a abordagem de Everett foi revivida por Bryce De-Witt. Ele foi motivado pelo pro-blema do casamento entre a física quântica e a relatividade geral, um domínio que mesmo hoje está longe de preocupações experimentais ou observacionais, mas tem sido cada vez mais atraente para físicos. Ou-tra questão teórica candente foi a análise dos processos de medição quântica no início dos anos 1960. Quando as discus-sões sobre o problema da medição se tornaram agudas, opondo Wigner a Léon Rosenfeld, não havia nenhuma perspectiva de experimentos para iluminar o debate. Fi-nalmente, quando uma questão relacionada ao problema de medição – a transição do comportamento quântico para o clássico – ganhou força entre físicos no início dos anos 1980, ela não foi imediatamente movida por expe-rimentos possíveis, embora um pouco mais tarde tenha entrado no laboratório. Disso podemos concluir que hou-ve uma agenda de problemas teóricos nos fundamentos da mecânica quântica impulsionando a pesquisa após a Segunda Guerra. Esta agenda não teve relação imediata com os experimentos, porque estes vieram mais tarde. Além disso, havia um desconforto filosófico crescente com as implicações instrumentalistas relacionadas às visões-padrão da mecânica quântica.

A história da controvérsia quântica pode proporcionar numa janela para as relações entre a física e seus contex-tos mais amplos. No início dos anos 1950, por exemplo,

tensões da Guerra Fria inevitavelmente enquadraram este debate tanto no Leste como no Oeste. O macarthismo foi um fator importante na carreira de Bohm e o tornou talvez o cientista americano mais notável a escolher o exílio no século passado. Como havia temas filosóficos como determinismo e realismo em jogo, não foi nenhuma surpresa que tendências ideológicas como o jdanovismo soviético fossem influentes em levantar críticas contra a interpretação padrão da teoria quântica. Assim, já em 1974 o historiador da física Max Jammer sugeriu “a extensão em que este processo [declínio da influência da interpre-tação da complementaridade] foi fomentado e sustentado por movimentos socioculturais e fatores políticos como o interesse crescente na ideologia marxista merece ser investigada”. Como já argumentamos em outro lugar, a crítica marxista contribuiu para o declínio da influência da interpretação da complementaridade, apesar de haver físicos marxistas nos dois lados da disputa, tanto a favor como contra a visão de complementaridade, como se verá ao longo deste livro, particularmente nos capítulos 2, 4 e

5. Esta tensão foi diluída no fim dos anos 1950, mas podemos encontrar vestígios dela no fim dos anos 1960, como se verá nos capítulos 5 e 6. A ressonância entre a prática da física e tendências culturais mais amplas não se limitava às questões ideo-lógicas referentes ao marxismo. O crescente interesse nos fundamen-tos da física quântica por volta de 1970 não surgiu em descompasso com mudanças culturais e políticas mais gerais que marcaram o perío-do. A oposição à Guerra do Vietnã e a agitação cultural e política do

fim dos anos 1960 repercutiram na decisão da Sociedade Física Italiana de dedicar a edição de 1970 de sua tradi-cional Escola de Verão de Varenna aos fundamentos da mecânica quântica e a edição de 1972 à história da física no século xx e suas implicações sociais. A primeira foi a primeira reunião científica inteiramente dedicada aos fundamentos da física quântica após a Segunda Guerra. Ecos daquela agitação também podem ser encontrados na guinada de John Clauser das medições de alta preci-são em astrofísica para os fundamentos e ainda na aber-tura da revista Physics Today a debates sobre as diversas interpretações da física quântica. No mesmo âmbito, o historiador David Kaiser em seu livro How the Hippies Saved Physics argumentou convincentemente que ten-dências culturais inspiradas pela contracultura e basea-das na Costa Oeste dos EUA foram influentes no apoio a algumas pesquisas sobre as questões de fundamentos e provocaram o establishment da física a produzir um dos resultados-chave relacionados à informação quântica, o teorema da não clonagem.

a crítica marxista

contriBuiu

para o declínio

da influência da

interpretação da

complementaridade

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Por último, mas não menos importante, os fios desta história também estão entrelaçados a desenvolvimen-tos técnicos como lasers, fotodetectores, fibras ópticas e computadores; a inovações científicas como a manipu-lação de sistemas quânticos simples, particularmente fótons; ao florescimento de novas disciplinas como a óptica quântica; a inovações teóricas como os conceitos de emaranhamento e de coerência; e ao intercâmbio entre a pesquisa básica e a aplicada. Assim o desafio para historiadores que lidam com a pesquisa sobre os fundamentos quânticos é integrar essa diversida-de de fatores numa narrativa única. Aliás, juntar a diversidade de fatores que moldam a ciência é o objetivo máximo de historiadores da ciên-cia. Entretanto, nem todos os fato-res prevalecem ao mesmo tempo; aliás, em cada recorte diacrônico dessa história, só poderão ser en-contradas as operações de alguns deles. O trabalho do historiador é, portanto, deslindar os papéis desempenhados por cada fator em cada local e contexto temporal. Foi o que tentamos fazer em todo este livro. No capítulo final apresento uma sinopse dos fatores diversos que jogaram um papel em cada contexto.

estratégia e questões historiogrÁficas

Minha estratégia para construir uma narrativa a respei-to da pesquisa envolvendo os fundamentos da mecânica quântica depois de 1950 consistiu em acompanhar pes-soas, temas e seus contextos relevantes. Foi uma esco-lha inspirada na expressão do historiador Marc Bloch: o historiador é como o ogro das fábulas infantis, “ele sabe que, sempre que capta o cheiro de carne humana, é ali que está a sua presa”. Ao fazê-lo, lido com figuras que atraíram a atenção do público além da física, como David Bohm, Hugh Everett e John Bell. Entretanto, essa não é uma história de homens grandiosos. Bohm e Everett não eram considerados assim por seus colegas físicos na época em que viveram; sua reputação veio depois. Ao la-do de grandes físicos, muitos de nossos personagens são físicos comuns que colaboraram com o desenvolvimento da pesquisa dos fundamentos e, em certos casos, tam-bém sofreram preconceito profissional. Alguns desses físicos comuns também podem ser classificados como anti-heróis, tendo suportado o fardo do preconceito da época, como foi o caso de Klaus Tausk. Os personagens incluem filósofos como Karl Popper, Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. Como meu fascínio pelo tema data do fim da década de 1980, quando ele já havia se convertido numa área de pesquisas dentro da física, e a área da informa-ção quântica começava a florescer, foi importante evitar os pecados do anacronismo ou a interpretação “Whig”

da história. A escolha dessa estratégia foi um antídoto contra tais tentações. Outra estratégia foi fazer as mes-mas perguntas a pessoas diferentes para que eu pudes-se construir uma biografia coletiva dos estudiosos que trabalharam num tema que eles consideraram digno de pesquisa. Nisso fui inspirado pelo método historiográfico da prosopografia, embora não tenha seguido esse méto-

do com rigor, já que usei os dados biográficos de maneira qualitativa. O capítulo 9 representa minhas tentativas de sintetizar a biografia coletiva. Assim, fontes de arquivo, histórias orais, estudos publicados, dinâmicas de citações científicas e diálogos com a literatura secundá-ria relevante para o tema foram as ferramentas usadas no decorrer da pesquisa.

O tema do livro também exigiu um diálogo com algumas questões teóricas, além daquelas apresenta-das no parágrafo anterior. Nossa

narrativa é a história da mudança de uma disciplina e da distribuição de poder numa área científica já estabelecida, no caso a física. As questões em jogo incluíram o valor da pesquisa envolvendo fundamentos e até que ponto a me-cânica quântica pode ser aplicada a outras áreas da física. Se essas questões fossem abordadas pela comunidade dos físicos, haveria um rearranjo em termos de reconhecimento profissional. Assim, é quase natural o convite a contribui-ções de Pierre Bourdieu, como já mencionado. Vamos usar duas citações do influente estudo de Bourdieu a respeito do capital científico como forma de capital simbólico. Para o sociólogo francês, “o universo ‘puro’ da ‘mais pura’ das ciências é um campo social como qualquer outro, com sua distribuição de poder e seus monopólios, seus embates e estratégias, interesses e lucros, mas trata-se de uma área na qual todas essas invariáveis assumem formas específi-cas” (1975, p. 19). A maior parte da controvérsia quântica pode ser lida como uma história de lutas pelo poder e mo-nopólios, como ficará evidente em todo o livro. Bourdieu também destacou que “na luta em que cada agente precisa se envolver para forçar o reconhecimento do valor de seus produtos e sua própria autoridade […], o que está em jogo é, na verdade, o poder de impor a definição de ciência (ou seja, a delimitação do campo dos problemas, métodos e teorias que podem ser considerados científicos)” (1975, p. 23). Bohm e Everett lutaram para sustentar que prati-cavam boa física e não metafísica, filosofia ou, de acordo com a visão de certos críticos, meras elucubrações sem sentido. Veremos que alguns físicos americanos duvida-ram se aquilo que Clauser fazia era “física de verdade”. As lentes de Bourdieu rendem bons frutos não apenas nes-ses casos, mas também numa série de outros episódios em nossa narrativa.

a maior parte

da controvérsia pode

ser lida como uma

história de lutas

pelo poder

e monopólios

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A distinção de Bourdieu entre dois tipos de estratégias profissionais, sucessão ou subversão, uma escolha que os jovens cientistas em especial precisam fazer quando começam na profissão, pode ser útil para nossa análise. De acordo com as palavras dele (Bourdieu, 1975, p. 30-31):

“Dependendo da posição ocupada na estrutura da área (e também, sem dúvida, de variáveis secundárias como sua trajetória social, que governa sua avaliação das próprias chances), os ‘novos ingressantes’ podem se ver orientados seja para investimentos livres de risco em estratégias de su-cessão, que trazem a garantia de proporcionar-lhes, ao fim de uma carreira previsível, os benefícios que aguardam aqueles que tornam real a ideia oficial de excelência científica por meio de inovações imitadas dentro de limites autorizados; ou no sentido de estratégias de subversão, investimentos infinitamente mais caros e mais arriscados que não pro-porcionarão a eles os lucros destinados aos detentores do monopólio da legitimidade científica a não ser que possam alcançar uma redefinição completa dos princípios que legi-timam a dominação”.

Muitos dos físicos que aparecem em nossa história es-colheram a estratégia da subversão. O sociólogo Trevor Pinch foi o primeiro a buscar as contribuições de Bour-dieu ao analisar a disputa entre Bohm e Von Neumann em torno da validade da comprovação de Von Neumann contra a possibilidade da existência de variáveis ocultas compatíveis com a mecânica quântica. Explorei a suges-tão de Pinch e fui além. Assim, o caso de Everett, com sua tentativa de oferecer uma nova interpretação da teo-ria quântica que deveria ser a apresentação natural do seu formalismo matemático, deslocando os modelos de Bohr e Von Neumann, se enquadra na estratégia da subversão. Em-bora tivesse capital significativo para bancar seu jogo – uma tese de doutorado em Princeton sob orientação de John Wheeler –, ele não teve sucesso, ao menos no curto prazo, pois não alcançou uma “re-definição completa dos princípios que legitimam” aquela que seria a interpretação correta da física quântica. O curto prazo pode ser tempo demais para uma carreira individual. Everett optou por dei-xar a física e a vida acadêmica para assumir um emprego usando a matemática no sistema americano de defesa.

Minha narrativa também fez uso de uma série de ou-tras contribuições e leituras das áreas da sociologia, his-tória e filosofia. O livro de Timothy Lenoir a respeito da produção cultural das disciplinas científicas foi influente graças à diversidade de fatores mobilizados por ele para

debater como as disciplinas são criadas e como evoluem. Ele também usou a estrutura conceitual de Bourdieu para compreender as dinâmicas do nascimento e mudança das disciplinas. Lenoir (1997, p. 12) argumenta que “um dos objetivos das lutas disciplinares é redefinir as fronteiras da área, legitimar e consagrar novas combinações de bens com prestígio cultural e autoridade, dar novo valor a uma forma de capital antes considerada ‘impura’, e garantir essa avaliação de valor por meio de uma estrutura ins-titucionalizada”. Entre os exemplos usados por Lenoir para ilustrar seu ponto de vista estão os atuais “esforços para legitimar a matemática computacional como equi-valente das disciplinas tradicionais da matemática” e “a consagração da ficção científica como gênero literário admissível dentro dos departamentos acadêmicos de li-teratura”. O movimento dos alicerces da física quântica de uma posição marginal rumo à física mais prestigiada parece-me outra ilustração das mudanças disciplinares estudadas por Lenoir. Mais além, para Lenoir (1997, p. 19), “a ideologia desempenha um papel central neste pro-cesso”. Ela não “recebe valor negativo no relato [dele]”. A controvérsia quântica é um caso em que as disputas científicas ficam carregadas de compromissos filosóficos e ideológicos, e isso não foi um obstáculo para o seu de-senvolvimento cognitivo.

A controvérsia envolvendo a interpretação e os fun-damentos da física quântica é, portanto, um caso exem-plar da ciência como produção cultural, exigindo que “entender a ciência como atividade cultural… significa aprender a identificar e interpretar a complicada cole-ção particular de ações, valores, sinais, crenças e práticas compartilhados pelo grupo de cientistas que dá sentido à própria vida e trabalho cotidiano” (Galison e Warwick,

1998). Embora eu tenha estudado cada caso ou episódio de acordo com suas raízes nos contextos lo-cais e, portanto, atento ao estudo da história da ciência como estudo da ciência como trabalho, como prática, a história apresentada nesse livro teve de lidar com uma diversidade de contextos locais para tornar in-teligível esta narrativa. Alguns dos lugares retratados são Princeton, São Paulo, Copenhague, Londres, Paris, Boston, Berkeley, Heidel-berg, Moscou, Genebra, Varenna, Viena, College Park e Bari, o que

faz desta uma história verdadeiramente internacional. Também tive de recorrer à história, tout court, e não ape-nas à história da ciência para interpretar corretamente contextos como Guerra Fria, macarthismo, jdanovismo, marxismo e a inquietação cultural e política do fim dos anos 1960. Como temas filosóficos vieram à tona de tem-pos em tempos, não pude – nem quis – ser insensível à

trata-se, portanto,

de um caso

exemplar para

entender a ciência

como produção

cultural

literatura da filosofia da ciência. A leitura de Michel Paty, Abner Shimony e Ian Hacking influenciou bastante meu trabalho quando busquei dar conta de toda a dimensão filosófica da controvérsia quântica e, em particular, dos limites que a própria prática da física no século xx impôs ao realismo na ciência.

Por fim, na medida em que essa história é também uma história de controvérsia científica, pude me beneficiar da atenção que os estudiosos da ciência dedicaram às contro-vérsias. Bruno Latour enfatizou esse interesse a ponto de basear nele sua primeira regra metodológica: “Estudamos a ciência em ação, e não a ciência pronta nem a tecnologia; para fazê-lo, precisamos chegar antes dos fatos e das má-quinas se transformarem em caixas pretas, ou seguimos as controvérsias que nos levam a reabri-las” (Latour, 1987, p. 258). Entretanto, devo admitir que fiquei atraído pela controvérsia quântica numa época em que não tinha fami-liaridade com a literatura sobre controvérsias científicas, em particular, nem com os estudos da ciência. Posterior-mente, depois de ler o estudo de Paul Forman a respeito da “Cultura de Weimar, causalidade e teoria quântica, 1918-1927”, fiquei impressionado tanto por seu poder historiográfico quanto pelo fato de tal controvérsia ter sido retomada nos anos 1950, permanecendo viva até então. Um dos prazeres que tive ao trabalhar com este tema foi esta-belecer um elo entre a proposta de Bohm da interpretação causal, no início dos anos 1950, e a motivação de Forman para escrever seu estudo sobre a Cultura de Weimar em 1971. Ainda tratando de controvérsias e história da ciência, a ideia segundo a qual a ciência se desenvolve de forma majoritariamente consensual entre seus praticantes, como sugerida por T. S. Kuhn (1970) com a ideia de paradigmas compartilhados na ciência normal, é questionada pela história da contro-vérsia envolvendo os fundamentos da teoria quântica. De fato, a história dos fundamentos da teoria quântica não foi a história de um paradigma compartilhado; em vez disso, tratou-se de uma disputa permanente entre os praticantes da física.

Este livro não é uma história abrangente da pesquisa envolvendo os fundamentos da teoria quântica na se-gunda metade do século xx. Trata-se de uma tentativa de entender como um tema antes marginal dentro da física avançou até se tornar amplamente aceito. Assim, escolhi conteúdos, pessoas, casos e disputas que, em minha opi-nião, foram mais influentes nesse deslocamento. Por isso, muitas interpretações da gama de interpretações quânti-cas não aparecem, ou aparecem apenas incidentalmente nessa história. O mesmo vale para temas como a lógica ou axiomática quântica. Outros temas como a gravitação

quântica e a óptica quântica foram abordados na medida em que contribuíram diretamente para o reconhecimen-to dos fundamentos da física quântica como tema válido de pesquisa. Esses dois temas revelam histórias fascinan-tes em si mesmos, e seu tratamento historiográfico está apenas começando, como podemos ver nos trabalhos de Joan Bromberg, Indianara Silva, Thiago Hartz e Climério da Silva Neto.

Apresento agora um breve esboço do conteúdo de cada capítulo do desenvolvimento de nossa história. Os capítulos 2 e 3 são dedicados aos casos mais notórios de dissidência quântica na década de 1950, David Bohm e Hugh Everett com suas interpretações alternativas da física quântica. No capítulo 4, avançamos para os anos 1960 e a disputa entre Eugene Wigner, Léon Rosenfeld e outros envolven-do a existência de um problema na medição quântica. A disputa levou a um cisma na ortodoxia dominante dentro da mecânica quântica. O capítulo 5 é dedicado ao caso do físico Klaus Tausk, pouco conhecido, que passou a tra-balhar com os fundamentos em meados dos anos 1960 e

cuja carreira foi subsequentemente mutilada. No capítulo 6, exploramos como a agitação política e cultural dos anos 1960 ajudou a reconfigu-rar a pauta da pesquisa na física. O capítulo 7 é dedicado a John Bell, seu influente teorema a respeito do conflito entre teoria quântica e quaisquer teorias realistas locais e os primeiros experimentos com este teorema. Entre as figuras de destaque incluem-se John Clau-ser, Abner Shimony, Edward Fry e Alain Aspect, além do próprio Bell. O capítulo cobre o período que vai

de meados dos anos 1960, quando seu teorema surgiu, até inícios dos anos 1980, quando os resultados experimentais de Aspect foram recebidos favoravelmente entre físicos de todo o mundo. O capítulo 8 resume a aceleração das pes-quisas com os fundamentos nos anos 1980, que levou ao surgimento de uma nova área de pesquisas, a informação quântica. Por fim, enquanto os capítulos anteriores são estudos de caso, com raízes locais, no capítulo 9 construo uma biografia coletiva dos físicos que trabalharam com os fundamentos da física quântica do início dos anos 1950 até o início dos anos 1990. Concluo defendendo que a maioria deles pode ser bem definida como aquilo que chamei de dissidentes quânticos. w

os fundamentos da

teoria quântica

contam uma

história de disputa

entre os praticantes

da física

tradução: AUGUStO CALIL, CELSO MAURO PACIORNIk E

tEREzINHA MARtINO

Observação: AS REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS EStãO NO

tExtO ORIGINAL EM INGLêS

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BahiaCiênCia | 49

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50 | setembro/outubro de 2014

pEsQuisaDor Da univasF liDEra

EsForço para iMplantar uM parQuE

voltaDo À prEsErvação Da Caatinga

EM ÁrEa DE 800 Mil hECtarEs

EDuarDo gEraQuE

no boquEiRão dA onçA

Não é coincidência que Ariano Suassuna, em sua dramaturgia genuinamente nordestina, ligasse sua vida às caatingas e, dentro deste ecossistema

que é o único 100% brasileiro, tivesse a onça como um personagem sempre presente. Esse felino, tão ameaçado em vários dos locais onde vive, tanto na mata atlânti-ca quanto no pantanal, consegue sobreviver com certa tranquilidade no Boqueirão da Onça, perto de Sento Sé, município do noroeste baiano, às margens do lago de Sobradinho.

Se tem onça, tem também tatu-bola, exatamente aque-le que inspirou o Fuleco, mascote da Copa do Mundo do Brasil. Entre as espécies ameaçadas deste grupo, algumas vivem nas caatingas e outras no cerrado brasileiro.

Além da fauna, a flora do Boqueirão, conservada e abun-dante, fato que ajuda a derrubar ainda mais o mito de a caatinga ser um ambiente pobre, sempre seco e sem vida, é outro importante motivo que leva o professor José Alves

meio Ambiente

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umbuzeiros e bodes na caatinga: o conhecido ambiente seco em paralelo à biodiversidade de riqueza insuspeitada

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Siqueira, biólogo da Universidade Federal do Vale do São Franciso (Univasf), em Petrolina (PE), ser enfático na sua luta para, finalmente, transformar a região em um parque nacional. A ideia é discutida faz vários anos, mas a área de proteção ainda não é uma realidade.

“A dimensão prevista para o parque nacional é de 800 mil hectares. É nele que está a caatinga selvagem, com uma população única de onça-pintada, o tatu-bola, o imbuzeiro, outra árvore típica da caatinga. Trata-se de o maior par-que nacional fora da região amazônica”, afirma Siqueira, que, assim como Suassuna, se define como um cientista que decidiu, há mais de 10 anos, estudar algo genuinamente típico do Nor-deste e do Brasil, as caatingas. Ele trocou o litoral, no caso a cidade do Recife (PE), pelo interior do estado, para ficar mais perto do seu objeto de estudo. “Os moradores de Salvador e Recife mui-tas vezes se viram apenas para as ondas do mar, não sabem o que existe no interior do estado”, defende. O Boqueirão tem serras de mais de mil metros de altura, quando a paisagem assume outras cores e formas como os campos rupestres. Vales e rios ajudam a compor o cenário.

O plural que Siqueira usa para o termo caatinga não é um exagero e nem uma questão semântica. As estima-tivas, sempre abaixo da realidade, porque os cientistas nem sempre conseguem esgotar com seus estudos todas as descobertas que podem ser feitas, indicam a existên-cia de 4.470 espécies vegetais na região “caatingueira”. O que revela a existência de várias fisionomias e, portanto, alguns tipos de caatinga, e não apenas uma. Existem pelo

menos sete tipos de fisionomia vegetal identi-ficados pelos pesquisadores dentro da região.

Os números de espécies animais também impressiona aos leigos, que sempre têm em mente aquela imagem típica do sertão nor-destino associado à palavra caatinga. Aquela paisagem árida, sem verde, com o chão sempre rachado, com animais mortos ao fundo. O que,

diga-se passagem, também existe no Nordeste, mas não é a imagem única da região. Em todo o ecossistema semiári-do, que ocupa área de 800 mil quilômetros quadrados, são conhecidos 51 espécies de aves, 143 de mamíferos, 98 de répteis, 61 de anfíbios e 250 de peixes – para ficar apenas entre os principais grupos. Números que nem sempre são atualizados com frequência e, por isso, estão subestimados.

Entre grupos de animais, a diversidade também é gran-de. A composição da ictiofauna das caatingas tem por vol-ta de 250 espécies. Mas os peixes, ao contrário de vários grupos terrestres que estão adaptados ao ambiente seco do sertão, costumam, pelo rios, chegar até outros biomas.

quipea ou palmatória (Tacinga inamoena) e carrapicho de cavalo ou ratanha de nova granada (Krameria tomentosa): flores da caatinga

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Como era a caatinga o ambiente da ararinha--azul, pássaro extinto na natureza, que hoje vive apenas em cativeiro, com projetos para, talvez, ser reintroduzido na natureza, o semiárido também é rico em diversidade de pássaros. Mais de 500 espécies existem no bioma, apesar de nem todas ainda serem totalmente conhecidas.

Os mamíferos não se restringem às onças e tatus. Exis-tem marsupiais, morcegos e roedores, que também vivem na caatinga. Vários grupos são exclusivos dessa região. Na serra da Canastra, outra região importante de biodiversidade perto de onde o Velho Chico começa, vivem exemplares da onça-pintada (Panthera onca), da onça-parda (Puma conco-lor), do tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), do tatu-bola (Tolypeutes tricinctus), da jaguatirica (Leopardus pardalis), do gato-maracajá (Leopardus wiedii) e do gato--do-mato (Leopardus tigrinus).

Em relação aos primatas, descobertas feitas na região de Canudos, na Bahia, na segunda metade da década de 1990, ampliaram a lista de espécies agora conhecidas. Exis-

tem no ecossistema do semiárido do Brasil ao menos dois tipos de macaco-guariba, o já famo-so macaco-prego e, há dez anos, o macaco-sauá foi identificado na região de Canudos também.

Siqueira, para quem o pesquisador de uma área tão frágil como a caatinga não pode deixar de ter uma vi-são holística do problema, também não deixa de citar

outro habitante da região: “São 30 milhões de pessoas que moram na região”. É por isso que o termo desenvolvimen-to sustentável precisa ser realmente implantado na região. É uma área de muitas carências, mas também a de muitas oportunidades”, diz o pesquisador. Entre as lutas de Siqueira está cobrar os órgãos públicos pela implantação de um plano desenhado no início do século com base em levantamentos científicos feitos por vários grupos de pesquisa da região.

“A caatinga hoje tem menos de 2% de sua área protegi-da de forma integral. O ideal, e isso já foi determinado, é que pelo menos 10% da caatinga virassem áreas realmente conservadas”, afirma Siqueira.

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Áreas realmente

conservadas”tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e gato-maracajá (Leopardus wiedii): biodiversidade perto de onde o velho chico começa

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Os levantamentos mais recentes mostram que o ritmo da destruição da caatinga é alarmante. Se há mais de 10 anos os números indicavam que por volta de 30% do ambiente estava alterado, hoje aproximadamente 60% do bioma não existe mais em sua forma original. Apesar de estar muito à frente de outras regiões, como a mata atlântica, que tem menos de 7% da sua formação original de pé, e mesmo assim vários desses trechos são muito pe-quenos, Siqueira não vê com otimismo a situação da região. Mesmo porque por volta de 22% das áreas já alteradas da caatinga estão sofrendo com processos de desertificação em diversos estágios, alguns bastante avançados.

A alteração de um ambiente originalmente exuberante começa a gerar distúrbios ecológicos importantes. O pró-

prio Siqueira e colaboradores identificaram seis espécies invasoras que realmente já colonizaram mais de 800 hec-tares nas margens do rio São Francisco. E novas invasões estão a caminho, o que representa uma ameaça real à bio-diversidade da caatinga.

 Quando o assunto é o Velho Chico, a Onça Caetana de Ariano Suassuna, que o escritor costumava associar à morte, que o levou em julho deste ano mesmo tendo tra-balho, como o autor gostava de dizer, volta ao foco princi-pal. O pesquisador da Universidade Federal do Vale do São Francisco é categórico: “O São Francisco está condenado”.

Segundo Siqueira, apesar de ter sido chamado de “ma-luco” há dois anos, quando disse que o grande rio brasileiro estava morrendo, infelizmente os fatos

apenas têm reforçado ainda mais esta sua tese.“O que ocorreu agora, com as nascentes do rio secando,

com uma boa parte do Parque Nacional da Serra da Ca-nastra queimado, é muito triste. A simbologia que envolve a nascente do rio secando, mesmo que isso ainda possa ser revertido, é muito grande. Chegamos ao fim do poço.” Em Ibotirama (BA), não há navegacão, lembra Siqueira. Fenômeno também causado pela falta de chuvas e por alterações no ecossitema do rio.

Sobre o São Franciso, Siqueira e seus colegas podem falar de carterinha. Entre 2008 e 2012, foram mais de 200 expedições, que totalizaram 344 mil quilômetros, para fazer o livro A Flora das Caatingas do Rio São Francisco: História Natural e Conservação, vencedor do Prêmio Ja-buti de 2013, na categoria Ciências Naturais.

Para o pesquisador, que fez a obra com um grupo de 99 pesquisadores e 40 instituições científicas, o São Franci-so “não é mais um rio com vida exuberante como era no passado. É apenas um canal de água”.

As causas para este processo ter ocorrido, diz ele, não é única, nem de responsabilidade de uma pessoa ou de uma única obra de engenharia. “O mais correto é dizer que houve uma falência múltipla dos órgãos.”

Um exemplo citado por Siqueira é o desma-tamento histórico que ocorreu ao longo dos anos. “Nós temos hoje 2% de mata ciliar no São Franciso. Isso é um dos itens que precisam ser recuperados.” Esta vegetação, que deveria ficar a centenas de metros das duas margens do rio, tem um papel ecológico fundamental na preservação do rio. Ela protege a vida aquá-tica e o próprio rio de substâncias poluidoras e da erosão.

Se em relação ao ambiente da caatinga como um todo, Siqueira se diz um entusiasta por esse “ambiente mágico”, quando o assunto é o principal rio que corta a região, a projeção do futuro é outra. “Não posso deixar de ter uma visão apocalíptica”, afirma o cientista, que, por meio de suas lentes – ele é também fotógrafo –, vem registrando as transformações ruins, segundo ele, da região. w

o licuri ou oricuri (Syagrus coronata), palmeira nativa; frutos comestíveis disputados pelas crianças e sementes ricas em óleo vegetal

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BahiaCiênCia | 55

Na sexta-feira 10 de outubro, o professor Edivaldo Boaventura,

ex-secretário de Educação e vice-presidente da Academia de

Ciências da Bahia, entre diversos outros títulos, orientou seu

artigo na página 2 de A Tarde e toda a sua influência cultural

para uma campanha. “É preciso preservar, pelo menos, um bom

pedaço da caatinga!”, ele escreveu, propondo “a participação de

toda a comunidade baiana, principalmente do governo estadual,

das lideranças do meio ambiente, das universidades e de

organizações outras da sociedade civil” no projeto de criação

do Parque Nacional do Boqueirão da Onça, na região do

Vale do São Francisco, “para a preservação do bioma caatinga”.

O inventário das espécies da área foi feito em 2006 por

solicitação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos

Recursos Naturais Renováveis (Ibama), visando à criação

do parque. “O projeto, no semiárido baiano, envolve os

municípios de Umburana, Sento Sé, Sobradinho, Campo

Formoso e Juazeiro. A caatinga, o semiárido e o rio São

Francisco formam um conjunto. Uma rede só”, ele observou

no artigo, para dizer a seguir que “a região, rica em cavernas e

flora, repleta de flores raras, está ameaçada de extinção”.

E isso inclui as onças-pintadas que dão o nome à região.

O professor Edivaldo Boaventura defende que só com

parques protegidos por lei preservamos a natureza. “Se

quisermos salvar parte da caatinga, é preciso a decretação

da região do Boqueirão da Onça para a criação do parque.

O processo de criação tramita em Brasília há 12 anos.

O governo federal começa a delimitação do polígono cuja

densidade populacional é baixa. todavia, além do decreto

de criação, é preciso que os 800 mil hectares coloquem a

Bahia em um lugar de destaque nacional e internacional.”

Na visão do professor, o Boqueirão da Onça deverá ser “o

maior parque extra-amazônico do país”, coisa que as dimensões

generosas do território baiano permitem. “Anteriormente,

preservamos a serra do Sincorá, na chapada Diamantina, a

partir dos estudos pioneiros de Roy Funch. O Parque Estadual

de Canudos permitiu que preservássemos os antigos campos

de batalha do conflito sangrento. Em outras condições,

o berço do nosso poeta maior, em Cabaceiras do Paraguaçu,

possibilitou o surgimento do Parque Histórico Castro Alves”.

Agora, ele conclama, “é a vez da caatinga ficar de pé”.

uma campanha pelo parque

riacho do navio, afluente do rio Pajeú; abaixo, jacucacas (Penelope jacucaca)

56 | setembro/outubro de 2014

MOSCAMED DOMINA CRIAçãO

MASSIVA DE MOSqUItOS

Aedes tRANSGêNICOS E

tORNA-SE REFERêNCIA PARA

OUtROS PAíSES

Dinorah ErEno

cEntRo dE PontA no sERtão bAiAno

pesquisA e desenvolvimento

biotecnologiA

BahiaCiênCia | 57

toda semana um exército composto por 1 milhão de mosquitos Aedes aegypti geneticamente modi-ficados é liberado em três bairros de Jacobina, ci-

dade com 45 mil habitantes localizada na região noroeste da Bahia, com o objetivo de combater a dengue – doença endêmica no Brasil. Os machos criados em laboratório e soltos para cruzar com fêmeas selvagens, encontradas na natureza, carregam um gene letal, transferido para a sua prole. A soltura dos transgênicos faz parte de um estudo epidemiológico da doença, iniciado em junho do ano pas-sado e com duração prevista de três anos, que se estenderá por todo o município. “Começamos na ponta da cidade e estamos fazendo uma barreira para empurrar o mosquito para o centro”, relata a pesquisadora Margareth Capurro, coordenadora do Projeto Aedes Transgênico, feito por meio de um convênio entre a Universidade de São Paulo (USP) e a biofábrica Moscamed, sediada em Juazeiro, na região do semiárido baiano. Quando os insetos selvagens são suprimidos dos bairros mais externos, outros entram no circuito. “No bairro de Pedra Branca, onde os testes ti-veram início, já conseguimos redução de 85% no número de mosquitos selvagens.”

armadilha usada para monitoramento

das moscas- do-mediterrâneo

Pupas abertas com os machos estéreis das

moscas

soltura de mosquitos transgênicos em

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Assim que toda a cidade estiver participando do es-tudo, o número de transgênicos liberados saltará para 4 milhões semanalmente. Experimentos feitos entre 2011 e 2013 em dois bairros de Juazeiro – Mandacaru e Itabe-raba – tinham como foco avaliar se, após a soltura dos transgênicos, havia ocorrido uma redução no número de mosquitos transmissores da dengue, o que se confirmou. Nesses locais, a liberação de mais de 17 milhões da linha-gem transgênica reduziu em até 93% a quantidade dos Ae-des selvagens. “Em Jacobina, a proposta é investigar, do ponto de vista da saúde, se a redução do vetor resultou em uma diminuição, de fato, da dengue”, diz Jair Fernandes Virginio, presidente da Moscamed, engenheiro florestal de formação, com mestrado em entomologia e doutorando no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, em Piracicaba, no interior de São Paulo. “Esse projeto de pesquisa tem como objetivo a validação por completo da tecnologia.” Se o resultado final se confirmar, a técnica será adotada pelo Ministério da Saúde como um dos mecanis-mos de combate à doença em escala nacional.

O conhecimento angariado durante o processo de-senvolvido pela Moscamed na criação massiva de mosquitos transgênicos já está sendo repassado

para outros países. Em setembro, pesquisadores de dez países, entre os quais China, Paquistão, Cingapura, Malá-sia e Filipinas, participaram de um curso de treinamento em Juazeiro. Além de técnicas de criação do mosquito, eles também conheceram e debateram a experiência no controle do Aedes.

Dos laboratórios da Moscamed, uma organização so-cial sem fins lucrativos criada em 2005 e instalada desde agosto de 2006 em uma área cedida pelo governo da Bahia, sai toda a produção dos mosquitos liberados em Jacobina. Os recursos para a sua construção, da ordem de R$ 3 mi-lhões, foram repassados pelos ministérios da Integração Nacional e da Agricultura. A linhagem transgênica foi cria-da pelo laboratório inglês Oxitec, mas coube à biofábrica baiana desenvolver todas as etapas para a criação massi-va do inseto. A linhagem transgênica é composta apenas por machos – escolhidos porque não picam e, portanto,

não transmitem a doença –, que carregam um gene letal. Quando cruzam com as fêmeas selvagens, eles passam pa-ra a prole um gene que provoca uma desregulação celular. “Esse gene fabrica uma proteína em excesso no corpo do mosquito que mata seus descendentes ainda na fase de larva ou de pupa”, diz a pesquisadora Michelle Pedrosa, que realiza experimentos de otimização na criação mas-siva de mosquitos transgênicos, tema do seu doutorado na USP, e também acompanha as demandas da produção na biofábrica.

Os transgênicos criados em laboratório conseguem chegar à fase adulta porque recebem o antibiótico tetra-ciclina na fase larval, que funciona como um bloquea-dor para o gene modificado. Margareth quer ir além da linhagem criada pela Oxitec e estuda outros métodos de produção de mosquitos transgênicos. Segundo ela, mes-mo com a redução da população de mosquitos selvagens e diminuição de casos da doença, depois de alguns anos a dengue volta a atacar. Por isso seu grupo de pesquisa está trabalhando em uma segunda fase, que consiste em pegar a população residual de mosquitos nos locais em que houve a liberação de transgênicos e inserir neles um novo gene que irá atingir o vírus causador da dengue, e não mais o mosquito. “Ainda estamos na fase de pesquisa básica, mas este é o nosso objetivo para chegar à completa eliminação do vetor.”

A fabricação dos mosquitos envolve seis etapas, ini-ciadas com a produção dos ovos para formação de colô-nias de machos. Isso é feito pelo método tradicional de reprodução entre machos e fêmeas, ambos com o gene da transgenia. Depois é realizado o processo de eclosão do ovo, com o nascimento da larva. Essa larva passa por um processo de criação dentro de bandejas com água, ração de peixe e tetraciclina. No oitavo dia as larvas começam a virar pupas (semelhantes ao casulo da borboleta) e nesta fase é feita a separação de machos e fêmeas em um equipamento que se assemelha a um grande funil com duas placas de vidro e uma abertura em cima. “Como as fêmeas são maiores do que os machos, eles passam pela abertura e elas não”, diz Michelle. Mesmo assim, ainda é feito um controle adicional para certificação de que ape-

a linhagem transgênica foi criada pelo

laBoratório inglês oxitec, mas couBe à BiofÁBrica

Baiana desenvolver todas as etapas para a

criação massiva do inseto

BahiaCiênCia | 59

macho adulto estéril da mosca- do-mediterrâneo pronto para ser solto em pomares para combater pragas

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nas os machos foram efetivamente selecionados. Essas pupas são transportadas então para um laboratório da Moscamed em Jacobina, onde são acondicionadas em dispositivos de liberação durante dois ou três dias. “O ciclo completo do ovo para chegar ao mosquito é de dez dias”, diz Michelle.

Trabalham na produção da biofábrica oito pessoas e ou-tras três ficam em campo em Jacobina cuidando da libera-ção dos insetos, em rotas e em quantidades predefinidas, e da coleta de armadilhas, sob supervisão da bióloga Luiza Garviera. Outras três pessoas na fábrica de Juazeiro são responsáveis pela análise das informações obtidas na coleta em campo. O projeto está baseado em quatro pilares: engaja-mento público – que é o esclarecimento da população sobre o transgênico e se dá antes, durante e depois da liberação –, criação massiva, liberação de insetos e monitoramento, com a instalação de armadilhas de captura do mosquito por

toda a cidade. “Com o monitoramento é possível avaliar a população selvagem antes, durante e depois da liberação”, diz Michelle. Os mosquitos transgênicos têm um marcador genético que per-mite ver, com a ajuda de uma lupa especial, quais

larvas e pupas são ou não transgênicas. O objetivo inicial da Moscamed era produzir machos

estéreis de moscas-do-mediterrâneo (Ceratitis capitata) por irradiação de cobalto. Uma das principais pragas dos pomares, elas são responsáveis por prejuízos da ordem de US$ 120 milhões aos fruticultores brasileiros. Os estragos são feitos pelas fêmeas, ao depositar seus ovos dentro dos frutos. Quando as larvas se desenvolvem, elas se alimen-tam das polpas das frutas, inviabilizando a produção. A escolha do local para instalação do laboratório foi estraté-gica – no centro da maior região produtora e exportadora de frutas tropicais do Brasil, o Vale do São Francisco. Lá,

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os machos estéreis produzidos são soltos para competir com os selvagens pelas fêmeas.

O cobalto foi substituído pela irradiação por raios X, feita em um equipamento desenvolvido por uma empre-sa americana em parceria com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), uma organização das Nações Unidas com sede em Viena, na Áustria. “O equipamento foi doado pela agência e hoje a Moscamed é a única biofábrica no mundo a utilizar esse tipo de radiação para esterilização do macho das moscas-do-mediterrâneo”, diz a pesquisa-dora cubana Maylen Gómez, que desde 2005 começou a trabalhar com a Moscamed, por meio de uma parceria com o Instituto de Investigações em Fruticultura Tropical, de Cuba. Em 2011, ela se mudou para o Brasil e atualmente faz doutorado no Centro de Energia Nuclear na Agricul-tura (Cena) da USP. “A agência de energia atômica apoia com consultoria técnica e capacitação de pessoal todas as biofábricas instaladas em países em desenvolvimento”, explica Maylen sobre a parceria.

Os insetos estéreis produzidos são levados a cam-po em sacos de papelão e soltos nos pomares. “A ideia é que esses machos copulem com fêmeas

selvagens para reduzir a população no campo”, diz May-len. Para que esses machos ganhem a competição com os selvagens, eles são soltos em grande número. “São nove machos estéreis para cada selvagem.” Após ser aplicada no Vale do São Francisco, a técnica será empregada nas culturas de manga, goiaba, acerola e uva de Pernambuco para o controle de pragas na região.

À frente da biofábrica desde a sua implantação até junho deste ano, quando assumiu a diretoria adjunta da AIEA, em Viena, Aldo Malavasi, professor aposentado do Depar-tamento de Genética da USP, foi quem teve a iniciativa de começar a produzir os mosquitos Aedes transgênicos nos laboratórios da Moscamed. “Ele me ofereceu a biofábrica para fazer a produção e em 2009 foi assinado um convê-nio entre a USP e a Moscamed para dar início ao projeto”, relata Margareth Capurro, professora do Instituto de Bio-ciências da USP, que conheceu a tecnologia de mosquitos transgênicos em 1997, quando fazia seu pós-doutorado na

Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. “Em um dos congressos científicos que participei foram apresen-tadas essas linhagens transgênicas pelo cientista britâni-co Luke Alphey, da Universidade de Oxford, fundador da Oxitec”, relata Margareth.

Alphey propôs à pesquisadora brasileira que ela tes-tasse no Brasil os insetos transgênicos que ele havia desenvolvido. Para conseguir importar os insetos,

Margareth solicitou à Comissão Técnica Nacional de Bios-segurança (CTNBio), responsável pela regulamentação de transgênicos no país, autorização para importar os insetos, concedida em 21 de setembro de 2009. Uma semana depois recebeu da empresa britânica em seu laboratório um enve-lope com 5 mil ovos, sem nenhum custo. A partir daí, ela começou a criar o inseto transgênico em laboratório, mas precisava de um local para criação em larga escala, a fim de que eles pudessem ser soltos e testados na natureza. E também de um local adequado para essa soltura, que fosse isolado e tivesse mosquitos Aedes selvagens.

A proposta de Malavasi de produzi-los na biofábrica de Juazeiro e a sua sugestão de que fossem soltos por lá mesmo, em vilas isoladas, foi aceita e selada por meio de um convênio. “Foi um casamento perfeito entre uni-versidade e aplicação”, diz Margareth. Na avaliação de Malavasi, a Moscamed foi pioneira em vários projetos únicos no Brasil, “a exemplo do uso da técnica do inseto estéril, o monitoramento de pragas de forma totalmen-te inédita com acesso on-line e a utilização de mosquitos transgênicos para o controle da população de vetores”. Ele também considera relevante o desafio da biofábrica de prover tanto para o setor privado como para os órgãos de estado soluções eficientes e ao mesmo tempo factíveis tanto do ponto de vista técnico como econômico. Além da produção dos mosquitos transgênicos e dos machos estéreis, a Moscamed também está construindo uma bio-fábrica de mudas de palma forrageira no mesmo local, prevista para entrar em funcionamento em novembro. “É uma demanda do governo da Bahia para atender os caprinos criados na agricultura familiar”, diz o presiden-te da Moscamed. w

a moscamed é a única BiofÁBrica

no mundo a utilizar a irradiação por raios x

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Com o impulso de uma instituição sessentona, a Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), e de outra que entra na maturidade dos 30,

a Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), o cenário da dança no estado experimenta hoje um perfil com três fortes características: vigor, pluralidade e uma leve crise estrutural. O diagnóstico parte da opinião de quatro profissionais: o ensaísta e pesquisador Alexandre Molina; Beth Rangel, que coordena o Centro de Formação em Artes da Funceb; Rose Lima, diretora do Teatro Castro Alves; e a professora da UFBA e curadora Dulce Aquino.

A pluralidade diz respeito a um sistema de relação entre a linguagem, com grupos que estudam o clássico, o contemporâ-neo e o popular não apenas em busca da sofisticação dos gêne-ros, mas também para experimentar fusões. O vigor, por sua

vez, vem com a identidade, as raízes culturais, que se refletem no entusiasmo e na afetividade com que o corpo se expressa. E a crise, enfim, resulta da expansão na última década de um cenário que ainda procura compreender sua mobilidade por novas estruturas físicas e políticas para ter onde se amparar.

Nessa conjuntura, houve a importante retomada da Ofi-cina Nacional de Dança Contemporânea da Bahia. Histórico legado de Dulce Aquino para a pesquisa de dança em todo o país, as oficinas organizadas sob este título aconteceram anualmente entre 1977 e 1994, chamando para a Universi-dade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador, pesquisadores de outros estados brasileiros. Lia Rodrigues, hoje sediada no Rio de Janeiro, por exemplo, fez ali sua primeira incur-são pelo improviso, atestou a coreógrafa certa vez a Dulce Aquino. De outros mares também vieram artistas como o

cena do espetáculo Boi Gira Bumbá, da

companhia infanto-juvenil da escola de

dança da funceb

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japonês Takao, quando então o país pela primeira vez, em 1978, entrou em contato com o butô, criação do pós-guerra conhecida pelo gestual minimalista de grande expressão espiritual. “Acho que as séries foram muito importantes, não como eventos efêmeros, mas como campo de troca entre artistas”, diz Dulce Aquino. Segundo ela, as oficinas foram paralisadas nos anos 1990 por falta de recursos. “As-sim como naquela época, agora a palavra ‘oficina’ volta a resumir um ambiente onde o artista trabalha e também produz”, diz, sobre criações que ocuparam o Teatro Castro Alves e também diversos espaços públicos, com incursões inclusive nos bairros periféricos da capital baiana.

A retomada aconteceu no último mês de agosto, com a promessa de uma continuidade nos próximos anos, e reflete também o interesse de compreender um cenário bastante diferente daquele testemunhado nas décadas anteriores. Dulce Aquino, hoje, vê “muito pouco” diálogo entre o cenário baiano e os de outros estados, o que dá ao projeto a expectativa de funcionar como um novo estímulo.

identidade

A identidade baiana, aquela que por ter ligação com a ances-tralidade não muda muito ou, antes, evolui sempre dentro de um espectro, vai sendo investigada ainda por suportes primos desta iniciativa de Dulce Aquino. “Não quero usar a palavra sensualidade”, diz, ao buscar uma definição, Beth Rangel, que desde 2007 ocupa a direção da Escola de Dança da Fundação Cultural e desde 2011 coordena o Centro de Formação em Artes da Funceb. “Mas há, aqui, um jeito do corpo que reflete uma cultura onde as pessoas se tocam, se abraçam. O corpo revela também um ambiente, que entre os baianos é afetivo e solidário”, analisa.

Com esta visão, as políticas culturais da Funceb, diz, se modelam pela busca de uma identidade que dá cor a um mosaico de conhecimentos “não necessariamente empíri-cos”. Beth Rangel se refere ao fomento público sobre uma série de cursos em comunidades e bairros mais pobres, cursos estes que não são estruturados somente dentro das proposições de estudos de base teórica.

Hoje com 1.500 alunos, a Escola de Dança da Funceb investe em um resgate da espontaneidade do que vem da rua. “É um olhar sobre um cenário plural”, diz a professora. “Da-mos a chance para que esses alunos comecem a experimentar a possibi-lidade da experiência coreográfica, e depois eles podem seguir o seu ca-minho, inclusive em nível científico. Há quem reclame que essa política cultural, que tem sido comum não só na Bahia, investe em um tipo de arte menor ou com pouca qualidade. Acho isso um erro, porque também é daqui que a nossa identidade vem”, conclui, citando as aproximações com o hip hop e o rap e também apropria-ções que os alunos fazem daquilo a que assistem em vídeos na internet.

Além dos cursos regulares, entre os projetos que articulam esse tipo de ação com olhar também geográfico,

“na dança, temos um Bom número de artistas

interessados em propor que o espectador siga um

acompanhamento da oBra com participação mais

ativa”, diz o pesquisador alexandre molina

BahiaCiênCia | 65

estão os Encontros Setoriais, realizados desde 2007 na capital e no interior da Bahia para es-timular o contato entre a comunidade artística e interessados não só em dança, como também nas áreas de artes visuais, do audiovisual, do circo, da literatura, da música e do teatro.

Também é estimulado o contato com artis-tas experientes, como ocorreu no espetáculo Sertania, de 2012, coreografado por Lia Robatto. Nos 30 anos de ani-versário da versão original da peça, executada pelo Balé Teatro Castro Alves, ela retornou aos palcos com alunos da Escola de Dança da Funceb em cena. A peça tinha mú-sica ao vivo executada pela Orquestra Sinfônica da Bahia.

Trata-se, na verdade, de um processo antigo. Em um texto para BTCA 30 Anos, livro que está sendo lançado agora e que faz um apanhado de três décadas de atividade do Balé Teatro Castro Alves, Lia Robatto relembra que o primeiro elenco da companhia era formado “na sua maio-ria por moças oriundas da classe média, brancas, vindas da academia particular Ebateca, e por bailarinos da clas-se popular, negros, capoeiristas com alguma experiência prévia em grupos folclóricos, notadamente no excelente

Viva Bahia [...], rapazes que adquiriram uma formação em técnica de balé devido a uma lou-vável e desprendida iniciativa de Carlos Moraes [mestre de balé, coreógrafo e diretor], respon-sável pelo ‘amálgama’ desses dois grupos, que aparentemente seriam separados por gênero, origem social e cor”.

No mesmo texto, a coreógrafa também lança um olhar crítico sobre a falta de política de formação de plateias na época. “Considero, no entanto, uma grande falha do BTCA, que perdurou por um longo período de duas décadas, sua equivocada política cultural voltada para um público pri-vilegiado, sonegando ao povo baiano o usufruto de seu processo e seus produtos artísticos, a ausência de proje-tos de articulação com vários segmentos da comunidade.”

pluralidade

Para o ensaísta Alexandre Molina, doutorando em artes cênicas e mestre em dança pela UFBA, os grupos e pro-fissionais que se formam na universidade exercem papel imprescindível como complemento a este panorama. Per-mitiram expansões relacionadas à compreensão do papel

À esquerda, o balé teatro castro alves; e acima, ...Ou Isso, da companhia, com coreografia assinada por jomar mesquita e rodrigo de castro

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do corpo como pulsão do fazer artístico e reviram a relação entre palco e plateia, assim como o exercício coreográfico ou performático em sua relação com o espaço e a arquite-tura. “Penso que, na dança, nós temos um bom número de artistas interessados em propor que o espectador siga um acompanhamento da obra com participação mais ativa. Vejo muitos trabalhos que deslocam o espectador de uma posição mais confortável e identifico que muitos estão li-gados à Escola de Dança da UFBA, pelo próprio interesse da instituição de fomentar esse lugar”, diz.

Uma reforma curricular ocorrida em 2000 e 2001, diz Molina, “estimulou alunos a repensarem formatos”, com alteração da relação ensino-aprendizagem. “A reforma não apenas incluiu ou retirou determinados componentes, mas fez uma intervenção muito direta no formato do currículo, com a criação de eixos temáticos e organização por módulos. Também trouxe trabalhos compartilhados, com mais de um professor em sala de aula simultaneamente, provocan-do tensionamento sobre o ponto de vista das discussões”, conta o pesquisador. “Assim, o aluno pode experimentar

uma situação onde a dúvida é muito bem-vinda, onde a incerteza é muito bem-vinda”, conclui.

Uma das experiências mais im-portantes dentro deste território foi, para Molina, a trajetória do grupo Tran Chan, fundado em 1980 por

Betti Grebler e Leda Muhana, na época alunas no último ano da Escola de Dança da UFBA. “Penso que, desde lá, na própria história da escola, esse sentido de provocação, de instigar o público a sair desse lugar confortável, está na história da escola. E os alunos acabam levando adian-te esse interesse, que não é exatamente algo particular da universidade, mas é uma questão contemporânea.”

Molina cita ainda a formação de parceria entre os diver-sos coletivos artísticos, já não centrados na figura de um diretor ou de um coreógrafo, mas com múltiplas lideran-ças. É o caso da fusão dos grupos Quitanda e Vagapara no trabalho chamado Nó, criado por Giltanei Amorim e Olga Lamas em parceria com outros artistas. Espécie de ins-talação resultante de um processo de criação a distância, teve auxílio de plataforma digital: os artistas estavam em diferentes cidades do Brasil e também da Espanha quan-do se debruçaram sobre a criação. “Depois, eles trouxeram imagens para a cena, em um espaço onde não havia cadeira para se sentar. O público se deslocava entre objetos e artis-tas, aproximando-se segundo seu interesse, e isso provo-ca também alteração do trabalho. Os artistas tinham que negociar o tempo todo com as pessoas”, explica.

Em um texto ensaístico, o pesquisador volta à origem da Escola de Dança da UFBA para explicar essa potência educacional. A escola foi parte de projeto empreendedor do reitor Edgard Santos (1884-1962) para a então denomi-nada Universidade da Bahia. Segundo Molina, a criação

abaixo, trabalho de alunos da escola de dança da funceb; à direita, A quem possa interessar, do balé castro alves

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“com Bailarinos de 50 anos no Balé, surgem

propostas para corpos maduros, e não só para o

nosso repertório tradicional”, diz rose lima,

diretora do teatro castro alves

das Escolas de Teatro e de Dança em 1956 “ampliaria o espaço às artes nesta instituição”, num processo inicia-do com a inauguração da Escola de Belas Artes em 1877, agregada em 1946 à Universidade da Bahia, e com a cria-ção do curso de música em 1954”.

Dulce Aquino, pilar na formulação do pensamento crítico e no fundamento da pesquisa da dança na esfera científica, aponta no texto Dança e universidade: desafio à vista que a Escola de Dança da UFBA vem, desta forma, oferecer um novo ponto de vista dentro de um cenário até então resguardado no Brasil pelas escolas municipais de bailados dos teatros de grandes centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro. “Não havia um espaço para siste-matização do conhecimento em dança na direção de uma reflexão sobre questões pertinentes à área que pudesse ampliar as possibilidades para outros entendimentos que extrapolassem o viés técnico-instrumental próprio das academias de dança”, complementa Molina.

crise

A expansão deste cenário, inevitavelmente, trouxe também alguns problemas, principalmente na esfera das institui-ções e das políticas de incentivo. Beth Rangel alerta para o risco de artistas criarem processos que atendam especi-

ficamente aos modelos exigi-dos pelos editais de cultura, por exemplo, embora não localize este problema dire-tamente no cenário baiano.

No Balé Teatro Castro Al-ves, diz Rose Lima, o maior desafio hoje é trabalhar sob um regime de contratação de funcionários públicos, o que não oferece flexibilida-de. Com um número sem-pre limitado de vagas, para que um bailarino jovem seja contratado, um outro mais experiente deve se aposen-tar e sair do corpo de bai-le. Esta condição resulta na elevação da faixa etária do balé. “Todas as companhias passam por uma crise, por-que quando elas foram cria-das não havia um plano de carreira. E como o bailarino transpõe a idade, se ele não tem um plano de carreira?”, questiona Rose Lima.

Ao mesmo tempo que im-põe um engessamento das relações dentro da compa-nhia, a crise oferece uma

nova condição de criação. “Com bailarinos de 50 anos, sur-gem propostas para corpos maduros, e não só para o nosso repertório tradicional. O bailarino veterano não pode ser demitido, e isso não é justo também. Tem de haver um pla-no, buscar outra qualidade”, afere Rose Lima. “Essa é uma questão central, mas está aliada à condição de o artista ser bailarino e funcionário público.” Henrique Rodovalho, Gil-mar Mesquita e Renata Melo estão entre os coreógrafos que já fizeram trabalhos para grupos mais velhos da companhia.

No próprio livro BTCA 30 anos, o problema é exposto: “O BTCA, como eventualmente ocorre com qualquer compa-nhia, está passando por uma crise, apresentando conflitos de diversas ordens, num processo difícil, porém benéfico e necessário, pois implica enfrentamento de desafios em busca de novos conceitos, reflexão sobre qual deve ser sua função na sociedade, se reinventando e apontando para novos rumos, o que vem gerando um movimento de rees-truturação e ajustes em sintonia fina, pois envolve tam-bém questões de natureza pessoal, visando ou o resgate de suas antigas condições de trabalho ou alterações pontuais que contemplem as atuais demandas, ou ainda a decisão radical de construção de um novo formato”.

Um nó para um novelo que ganha volume? Como dizem os chineses, crise pode ser oportunidade. wFO

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concEitos Em mutAção

O filósofo francês Henri Bergson sustentava a ideia de que o passado prolonga-se no presente. Sem esse prolongamento, que ele chamou de duração, haveria

apenas instantaneidades isoladas, e não um fluxo criador que nos permite ter a visão do todo. Esta noção de continuida-de através do tempo, por mais abstrata que possa parecer, é central no Dicionário temático desenvolvimento e questão social, fruto do trabalho de 85 pesquisadores brasileiros e de países da América Latina e Europa. Isso porque a obra, formada por 81 verbetes, constitui um conjunto indivisível que arti-cula a história e a contemporaneidade de temas ligados ao conceito de desenvolvimento na era capitalista, entre eles precarização do trabalho, pobreza, cooperação internacional e tecnologia. Publicado no final de 2013, o dicionário teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Ba-hia (Fapesb) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e foi finalista do Prêmio Jabuti 2014 na área de economia.

A obra, segundo sua autora principal e coordenado-ra, Anete Brito Leal Ivo, buscou captar as concepções de

desenvolvimento contemporâneo em sua historicidade, observando as relações contraditórias entre economia e sociedade e economia e política. “Dessa perspectiva a ques-tão social e as formas regulatórias do trabalho expressam a contraface crítica do desenvolvimento econômico. Isso explica os critérios de seleção dos verbetes, em múltiplas interfaces combinadas e ressalta o caráter inovador do livro” diz ela.

Os verbetes trazem, a rigor, resultados de pesquisa ou ensaios e guardam certa independência entre si. “O di-cionário permite formular um campo problematizado e amplo, com diálogos interdisciplinares, e um esforço de conceituar noções e processos que nem sempre são obser-vados na construção de uma simples coletânea de textos”, observa Anete Ivo, que é professora do Programa de Pós--Graduação em Ciências Sociais e pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH-UFBA).

A obra também procurou ressaltar um conjunto de as-simetrias implícitas no desenvolvimento contemporâneo e seus efeitos sobre a questão social, além de lançar luz

DICIONáRIO REúNE DILEMAS

CONtEMPORâNEOS DO

DESENVOLVIMENtO ECONôMICO E SOCIAL

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sobre novos desafios. Por exemplo, a relação contraditória entre globalização e construção de democracias em paí-ses da América Latina. Segundo Anete Ivo, a coincidência histórica entre globalização e processos de implantação da democracia em países da América Latina pode levar equivocadamente alguns a associararem acumulação globalizada com democracia. “Ao contrário, alguns es-tudiosos mostram que a acumulação globalizada é um fator limitador da liberdade dos países, especialmente em termos de políticas redistributivas e de bem-estar as-sociadas a sistemas de seguridade de longo prazo e como direitos”, diz Anete.

Para o economista Marcio Pochmann, professor do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo, e autor do verbete sobre pobreza e capitalismo, a capacidade de relacionar os temas é uma das contribuições do dicionário às ciências humanas. “As pesquisas na área carecem de uma visão mais ampla e totalizante, pois o que sempre predominou foi a análise dos temas de forma

fragmentada”, diz ele. No livro, Pochmann mostra como o conceito de pobreza se transformou dentro do capitalismo ao longo do tempo.

Enquanto no século XIX a pobreza era caracterizada pela miséria extrema e pela indigência, diretamente rela-cionadas à fome, a partir do século XX o conceito começa a ser alterado: a pobreza extrema vai cedendo lugar para a ideia de pobreza relativa dos dias atuais. “Hoje a pobreza não está ligada somente à questão da fome e da miséria, mas a padrões ditados pelo capitalismo”, diz o economis-ta. “As pessoas podem ter onde morar e o que comer, mas continuam relativamente pobres quando comparadas suas rendas com as dos mais ricos”, diz ele.

central de telemarketing na índia: o século XXi apresenta

novas versões da precarização do trabalho, marcadas, entre

outras coisas, por instabilidades e pela imposição de metas difíceis de serem atingidas

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Tais transformações conceituais também são observa-das em outras dimensões do desenvolvimento abordadas no dicionário. A distensão entre capital e trabalho, por exemplo, foi inspiração para alguns autores. Uma das con-siderações apresentadas na obra mostra que o mercado de trabalho brasileiro tem dificuldade de criar empregos mais qualificados. “Observa-se uma deterioração das condições de trabalho e a precarização do trabalho, que se manifes-tam na grande rotatividade do emprego, na ampliação dos riscos de acidentes, na intensificação do trabalho e na subtração de direitos trabalhistas”, ressalta Anete Ivo.

O verbete sobre precarização do trabalho ficou a cargo de Graça Druck, socióloga e professora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, que estuda o assunto há 10 anos. A pesquisadora conta que, assim como outros concei-tos abordados no dicionário, o de precarização do trabalho

também sofreu transformações ao longo da história. “A pre-carização é um processo de regressão em conquistas e direitos que os trabalhadores já tiveram, mas que atualmente estão perdendo”, diz Graça. Por conta disso, ela defende a existên-cia, no momento, de uma metamorfose da precarização, que reproduz velhos problemas no presente e cria outros novos.

Segundo Graça Druck, atualmente há uma crise de um padrão de desenvolvimento do capitalismo, chamado de fordista, que se sustentava na produção em massa de bens de consumo duráveis e na distribuição dos ganhos de pro-dutividade para os trabalhadores. Esta fase, diz ela, se es-tabeleceu no pós-guerra até os anos 1970. Hoje, o modelo de desenvolvimento capitalista é o da acumulação flexível, sustentado pelo capital financeiro e especulativo.

“Esse padrão não gera empregos e ainda cria uma insta-bilidade permanente para a economia e para os trabalha-dores”, explica Graça, que no dicionário tratou de destacar essa nova percepção da precarização. Assim, exige-se do trabalhador uma flexibilidade: eles podem ser descartados facilmente, pois é o curto prazo que determina o ritmo de trabalho. É neste contexto que são impostas metas inatin-gíveis, que instauram a insegurança e o assédio moral, e é favorecida a terceirização exacerbada. e

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contradições contemporâneas da pobreza: novos proprietários de jet ski, comprados graças ao aumento de renda e do crédito, invadem praia localizada na periferia da capital baiana

A precarização social do trabalho, conforme explicado no verbete, é social, entre outros motivos, porque ela se generaliza para todas as regiões e para to-

dos os diferentes segmentos de trabalhadores. Por conta disso, essa forma de institucionalização da instabilidade tem implicações que atingem todas as demais dimensões da vida social, como a educação, o lazer, o acesso aos bens públicos e até mesmo a família. Isso fica evidente, por exemplo, no verbete sobre solidariedade familiar, escrito por Guaraci Adeodato, também professora (aposentada) do CRH-UFBA.

“As transformações do capitalismo também vêm alterando a forma como as famílias se organizam e se reproduzem”, afirma Guaraci, cujo objetivo no dicionário foi mostrar co-mo as instituições sociais interferem no âmbito familiar,

por meio de padrões de compor-tamento que influenciam desde as formas de procriação e casa-mento até a maneira de educar os filhos. Segundo a pesquisadora, instituições religiosas, médicas, jurídicas e educacionais, entre outras, promovem o que ela cha-ma de reforma social dos hábitos familiares, buscando transformar práticas antigas tomadas como contradições nos dias de hoje, ou manter padrões.

Lidando com o tema desde 1996, Guaraci Adeodato chega à conclusão de que a lógica capitalis-ta dominante levou à diminuição

das famílias. Assim, com menos membros, a rede de solida-riedade entre parentes foi enfraquecida nas famílias mais pobres e em parte da classe média. Nesses setores, quanto maior a rede familiar, maiores a proteção e o apoio prestados aos membros menos favorecidos economicamente. Com a diminuição das famílias, uma consequência das políticas de controle de natalidade promovidas pelas instituições, o risco de não haver sustentação familiar é grande. “As classes mais altas, no entanto, acabam não sofrendo desse problema”, diz Guaraci. “As classes dominantes continuam ditando os modos de vida familiar, as formas de lidar com a continui-dade da família”, diz ela.

Outro fato destacado pela pesquisadora é que, no coti-diano doméstico, vêm ganhando força os fluxos de apoio e recursos das gerações mais velhas. Paralelamente ao enfraquecimento das redes familiares, o aumento da ex-pectativa de vida, inclusive no Brasil, leva os mais jovens a recorrer à ajuda de avós e mesmo bisavós, por causa do agravamento da vulnerabilidade social e da redução das oportunidades de emprego. “Muitos países, principal-mente na Europa, têm crescimento demográfico zero ou negativo. As gerações não estão se repondo e isso acaba sobrecarregando os mais idosos”, diz Guaraci Adeodato. w

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É surpreendente, para quem só conhece de Luís Viana Filho o trajeto político francamente conservador, o quanto o seu Anísio Teixeira: a polêmica da educação

traz do espírito revolucionário, generoso e profundamente comprometido com a transformação social do grande edu-cador brasileiro nascido na pequena Caetité, na Bahia. Mas Viana (1908-1990), além de ministro-chefe da Casa Civil de Castelo Branco, o primeiro presidente do período da ditadura militar (1964-1967), governador da Bahia (1967-1971) e senador de 1974 até sua morte, era um intelectual produtivo. Vale lembrar que foi professor de direito inter-nacional privado na Faculdade de Direito e de história do Brasil na Faculdade de Filosofia, ambas posteriormente vinculadas à Universidade Federal da Bahia (UFBA). Como escritor, foram as biografias que o notabilizaram, algumas de fôlego, como A vida de Ruy Barbosa e A vida de Joaquim Nabuco, e ambas certamente deram suporte à sua eleição para a Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1954.

O livro que ele dedicou a Anísio Teixeira não é uma bio-grafia em sentido pleno, mas uma memória biográfica focada nas gigantescas lutas que o baiano franzino, visionário, e às vezes melancólico, travou pela implantação de um sistema educacional pujante, público e gratuito, além de universal e em todos os níveis, dentro de uma realidade onde tudo isso soava como heresia. Da Escola Parque em Salvador à Universidade de Brasília (UnB), do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep) e Institutos Regionais de Educa-ção a ele articulados à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Viana faz aparecer todos os sonhos – e realizações – nascidos da mente inquieta de Anísio Teixeira em sua obsessão por mudar o panorama da educação no país e assim transformar o próprio país. Como contraface, deixa emergir também os momentos de desânimo profundo a cada batalha perdida. E elas foram inumeráveis, assim como as perseguições movidas contra o notável empreendedor.

Na origem, o empreendimento de Luís Viana Filho em relação a Anísio Teixeira era modesto, apenas uma resposta positiva à solicitação do professor Benedito Silva para que prefaciasse o livro do próprio Anísio sobre o ensino superior que a Fundação Getulio Vargas ia editar. “Sem ânimo para recusar, entreguei-me às pesquisas que, ampliadas, deram origem a este trabalho”, ele conta no agradecimento que

abre o volume (p. 9-10), datado de janeiro de 1990. “Muitos me ajudaram, trazendo-me suges-tões, cartas, documentos e lem-branças. De fato um mundo de amigos e admiradores de Anísio Teixeira sempre prontos para colaborar com um bom conse-lho ou achega esclarecedora de uma dúvida”, completa.

E é mesmo principalmente sobre fragmentos das cartas, em especial as enviadas por Anísio

a amigos e parceiros de batalha e as respostas dos desti-natários a estas, que o autor constrói uma narrativa ele-gante e consistente, pela qual o leitor consegue entrever tanto a grandeza de um homem em seus conflitos e lutas de extraordinário alcance quanto o ambiente adverso no qual ele se move. O que o país tem de mais mesquinho também é, assim, iluminado na obra que Viana divide em sete capítulos: A religião nova, Columbia University, A grande aventura, A roda da fortuna, O manifesto dos bis-pos, A monotonia da vida e O mito de Sísifo. O percurso que cumpre através desses capítulos vai naturalmente do nascimento de Anísio Teixeira, em 12 de julho de 1900, à sua morte intrigante em 11 de março de 1971, supostamente por uma queda no poço do elevador do prédio onde mo-rava o acadêmico Aurélio Buarque de Holanda, o Edifício Duque de Caxias, na Praia de Botafogo, 48.

Anísio era candidato à ABL e saíra da Fundação Getú-lio Vargas, onde trabalhava, também na mesma Praia de Botafogo, para uma das visitas de praxe que postulantes a uma vaga na ABL devem fazer aos futuros confrades. E desapareceu. Dois dias depois sua família foi avisada de que seu corpo fora encontrado no fosso do elevador. Escreve Luís Viana Filho: “Anísio morrera caído no poço do eleva-dor do edifício para o qual se dirigira. Ninguém vira nada. Era a tragédia sem testemunhas, e sobre ela pairavam to-das as conjecturas e todas as interrogações. Esquecidos de haver ele próprio dito vivemos em um universo de aciden-te e de sorte, onde não havia lei nem justiça, muitos não admitiam haver sido uma simples fatalidade. O advogado Marcelo Cerqueira, criminalista conceituado, acompanhou

MariluCE Moura

e a luz não se apagou

Anisio teixeira: A polêmica da educação luís viana filho editora unesp; edufba 236 páginas - r$ 38,00

resenha

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o inquérito para apurar os pormenores da tragédia que ninguém presenciara, e sobre a qual as dúvidas se alastra-vam. Concluiu-se haver sido um acidente. Uma armadilha do destino”. (p 229).

Estava-se então na pior fase da ditadura brasileira, que tinha então o general Medici na presidência. Registre-se que, com abundância de depoimentos, inclusive os do filho de Anísio Teixeira, Carlos Antonio Teixeira, e de seu bió-grafo, João Augusto de Lima Rocha, a Comissão Nacional da Verdade e a Comissão da Verdade da UnB, passaram a investigar em 2013 as circunstâncias da morte do educador. E até meados de 2015 devem apresentar os resultados de seu trabalho. É possível então que a verdade seja estabelecida sobre esse morte tão suspeita. Viana acata a versão oficial, mas deixa reluzir na última página de seu livro o lamento de um companheiro de batalhas de Anísio. “Do exílio Darcy Ribeiro mandou uma palavra de emoção: ‘Uma luz apagou no Brasil: sua inteligência mais luminosa’. Tudo acabara? Além da tristeza dos amigos, ficava quanto ele fizera pela educação.” (p. 229).

De volta ao começo, o primeiro capítulo do livro de Viana retrata a inclinação religiosa de Anísio Teixeira, a imen-sa influência que sobre ele exerceram os jesuítas, ordem a que pertencia o colégio em que estudara em Caetité, e seu projeto de tornar-se, ele mesmo padre jesuíta, contra o qual lutou bravamente seu pai, o senador e proprietário rural Deocleciano Teixeira, um agnóstico convicto. Foi ao deixar Caetité que ele comunicou seus planos aos pais, numa carta de 25 de março de 1920. “As leituras me ini-ciaram ainda mais na grandeza deste movimento que é a última cruzada branca de paz e de luz e que virá de novo conquistar o mundo aos ensinamentos divinos de Jesus (...). De logo não pude mais compreender a vida como a luta pelas pequenas ambições materiais dos homens. Com-preendia-a como a luta por este ideal superior da Verdade e do Bem”, dizia (p. 17).

Malgrado o trabalho incessante de aliciamento de al-guns jesuítas, a Universidade Columbia abriria depois ho-rizontes muito mais largos e inteiramente diversos para o jovem de sentimentos tão ardentes. Ali começou a nascer o admirável educador brasileiro. Em carta a Fernando de Azevedo, seu parceiro de tantos projetos pela vida afora, ele diria em 1929: “Eu já-lhe disse aí o bem que me fez esse contato com o seu espírito e com sua obra. Saíra da Bahia direto para Nova Iorque. Lá estive dez meses. O exame diá-rio do trabalho gigantesco dos Estados Unidos em matéria de educação, a visão do que ela envolvia de complexidade, de conhecimento especializado e dinheiro, a compreensão mais viva desse exasperante determinismo econômico do progresso moderno, me haviam feito, deixe que lhe diga, meio cético a respeito da possibilidade de uma obra edu-

cativa séria em nosso meio. Mesmo que nos sobrasse di-nheiro, faltava-nos conhecimento técnico e especializado para realizar uma obra de cooperação e de grupo. Cheguei mesmo a pensar que era cedo para um trabalho de reno-vação propriamente da escola”. (p 41).

O capítulo 3, A grande aventura, é o núcleo fundamen-tal e mais denso do livro de Luís Viana Filho sobre Anísio Teixeira. E a epígrafe escolhida é certeira para introduzir o leitor nas batalhas imensas que se levantariam no percurso do educador que está investindo sem pena contra o status quo: “Só existirá uma democracia no Brasil no dia em que se montar no Brasil a máquina que prepara as democra-cias. Essa máquina é a da escola pública”. Essa bandeira , Anísio levará, erguendo-a de diferentes formas, da Bahia ao Rio, a Brasília e a todo o país. Não esquecerá totalmente dela nem mesmo quando abatido pela ditadura de Vargas retira-se para Caetité e torna-se por sete anos, até 1945, um próspero exportador e importador. A certa altura, à beira de tornar-se milionário com a posse de uma mineradora, recebe um convite para juntar-se à Unesco em formação, como conselheiro educacional (p.115). Ele escolhe uma vez mais a educação e desiste dos negócios.

É nos capítulos 5 e 6 que Viana entrega ao leitor uma das mais fortes amostras da perseguição odiosa tantas vezes movida contra Anísio Teixeira. Depois de virulentos ata-ques de Gustavo Corção e de Carlos Lacerda contra o que chamavam “o dono da educação”, o educador mereceria a ira do arcebispo de Porto Alegre, dom Vicente Scherer, que iria levantar contra ele a Igreja em geral, liderando o Me-morial dos Bispos publicado em março de 1958, pedindo sua cabeça da direção do Inep “para evitar-se a revolução preparada nas escolas” (p. 162).

Veja-se uma amostra da pregação dos bispos: “Ainda que inculque não advogar ‘o monopólio da educação pelo Estado’ – o que não admira, porque o socialismo, em suas correntes predominantes, não é estatista – o professor Anísio Teixeira espera da escola pública ou comum, que tão ardentemente preconiza, os mesmos resultados pré--revolucionários, previstos, com ansiosa expectativa, pela doutrina socialista (...). O povo brasileiro na verdade não quer que se transforme, por uma revolução social, a co-meçar da escola, a República Brasileira em uma República Socialista; que o queiram e proclamem esse desejo, servi-dores elevadamente situados no Ministério da Educação e Cultura, é fato, por isso mesmo que deverá merecer es-pecial atenção dos Altos Poderes da República”. E, como o autor, “sem rodeios”, os bispos solicitavam “as providências necessárias e inadiáveis para a cessação desse estado de cousas” (p. 163-164).

A contrareação democrática e liberal salvou Anísio. Pelo menos daquela vez. (p. 1g5-167). w

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engatinhando... Antes mesmo de se pôr de pé – já tinha, sob seus auspícios, o convênio

com a Unesco (Metraux) e o convênio com a Columbia University (Estudo Social de

Comunidades). Mas somos ambiciosos. E no programa para 1951/52, queríamos ver

o que podíamos trazer para a Bahia em certos campos fundamentais de ciência, nos

quais vamos lentamente voltando à Idade Média. Assim é que gostaríamos de examinar

a possibilidade da vinda para a Bahia, digamos, de um naturalista, um físico e um

geólogo. A minha ideia seria contribuir, mediante um contrato longo, para fixar na Bahia

figuras promissoras em cientistas que desejassem viver e estudar a Bahia. Algo como

aqueles primeiros estrangeiros que para aqui vieram e se fizeram cientistas nacionais.

Anísio Teixeira, maio de 1951

As lutas de Anísio TeixeiraA FUnDAção pArA o DESEnvolvIMEnTo DA CIênCIA nA BAhIA

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(Carta de Anísio Teixeira a Paulo Carneiro sobre a Fundação que criou antes de deixar a Secretaria de Educação do Estado da Bahia, no governo de Otávio Mangabeira; citado em Viana Filho, Luís, Anísio Teixeira: a polêmica da Educação, São Paulo, Editora Unesp; Salvador, Edufba, 2008, p. 139)

Anísio Teixeira (à esquerda, com documentos na mão) propõe ao ministro da Educação, Cândido Mota Filho (à direita, de terno escuro) reformas no ensino industrial em 27 de julho de 1955