O Prefácio "quase-esquecido" da Primeira Edição de Le Ciel et l'Enfer (1865)
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O PREFÁCIO ³QUASE-ESQUECIDO´
DA PRIMEIRA EDIÇÃO DE L E C IEL ET L¶E NFER (1865) .
Augusto Araujo.
INTRODUÇÃO
Em 1865, quando Allan Kardec (1804-1869) publicou o livro Le Ciel et l¶Enfer ou la
Justice Divine selon le Spiritisme (³O Céu e o Inferno ou a Justiça Divina segundo o
E
spiritism
o´), o fez preceder de um
Préface no qual, dentre outras coisas, propõe um
arevisão de algumas de suas obras e apresenta o novo livro como continuidade de seu
labor de desenvolvimento da doutrina espírita.1
Curiosamente, no entanto, este Préface parece ter sido esquecido pelos
tradutores brasileiros da obra kardeciana.Esquecimento que só não foi total, visto que o
público brasileiro dispunha de duas traduções parciais deste texto. Am bas, presentes nas
traduções de Salvador Gentile e de Evandro Noleto Bezerra à Revue Spirite. No número
de setem bro de 1865, Kardec publicou um excerto do Prefácio na seção ³Notas
Bibliográficas´.2
Recentemente (2009), no entanto, foi publicada pela Federação Espírita
Brasileira (FEB), uma nova tradução de O Céu e o Inferno (feita por Evandro Noleto
Bezerra), a qual reintegra o Prefácio a seu lugar de direito. Em nota o tradutor explica
que:
1 Ao contrário do que aconteceu com as demais publicações de Allan Kardec, a obra O Céu e o Inferno parece não ter sido um sucesso de vendas. Se com parado com a opus magna de Kardec ± Le Livre des Esprits ± a qual apenas entre 1860 (ano da publicação da 2ª e definitiva edição) e 1863 somou9 edições (10 se contar mos a edição de 1857); ou mesmo com o sucesso de La Génèse, les miracles et le
predictions selon le spiritisme (A Gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo), que obtevetrês edições no mesmo ano de sua publicação (1868), com a diferença de apenas um mês entre elas; o penúltimo dos grandes tratados kardecianos teve desem penho bastante modesto. Segundo FlorentinoBarrera (2003, p. 71-78), a segunda edição de O Céu e o Inferno só veio a lume em 1868, três anos apósseu lançamento, portanto. Ainda segundo Barrera, a 3ª edição data de 1868-1869; e 4ª edição 1869.2 KARDEC, Allan. Revista Espírita, Set/1865. Notas Bibliográficas. Rio de Janeiro: FEB, 2006. p. 377-382. (Trad. Evandro Noleto Bezerra).
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Este ³Prefácio´ não fazia parte da 4ª edição francesa de O Céu e o Inferno ± edição definitiva ± que serviu de base para esta tradução. Apareceu, na 1ªedição, publicada em agosto de 1865. Ao inseri-lo aqui, tivemos em vistaresgatar para as novas gerações estes escritos quase desconhecidos doCodificador do Espiritismo e oferecê-los aos estudiosos da DoutrinaEspírita.3
Desconheço se Kardec teria retirado o Préface apenas nesta última edição por
ele revista (4ª edição de 1869), ou se já o fizera nas edições anteriores. A nota acima
não oferece qualquer indicação a respeito. Igualmente desconheço os motivos pelos
quais Kardec teria feito isso. No entanto, parece-me claro, os tradutores brasileiros se
³esqueceram´ do Préface de 1865 por que basearam suas traduções na edição de 1869.
Outro fato curioso envolvendo a obra em questão é que esta 4ª edição, assumida como
definitiva, só veio a lume a 1º de Julho de 1869. Três meses, portanto, após a morte de
Allan Kardec. Florentino Barrera, em seu livro Resumo Analítico das Obras de Allan
Kardec 4, afir ma que esta edição estabelece o texto definitivo da obra uma vez que teria
sido revista pelo próprio Kardec. Infor mação corroborada pela Revue Spirite (Jul/1969)
que a anunciou, seguida da observação:
A parte doutrinária desta nova edição, inteiramente revista e corrigida por Allan Kardec, sofreu im portantes modificações. Alguns capítulos foram inteiramente refundidos e consideravelmente aumentados.5
Instigado pelo que acreditava fosse uma lacuna histórica, e, portanto, sem
conhecimento do trabalho de Evandro Noleto Bezerra, em preendi minha própria
tradução do texto. Em preitada assumida com o apoio do amigo Vital Cruvinel (um dos
editores do blog Decodificando O Livro dos Espíritos e de quem é a revisão da
tradução). Nossa ideia original era a de enviar a tradução para publicação em algum
periódico interessado. No entanto, diante da realidade desta outra iniciativa, desistimos
tem porariamente da ideia.
3 BEZERRA, Evandro Noleto. Nota do Tradutor. In: KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Ou a justiçadivina segundo o espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 2009. p.11.4 BARR ERA, Florentino. Resumo Analítico das Obras de Allan Kardec. São Paulo: USE/Madras, 2003.5 KARDEC, Allan. Revista Espírita. Jul/1869. À Venda em 1º de Junho de 1869. Rio de Janeiro: FEB,2005. p. 309-310. A rigor o artigo deve ter sido escrito por A. DESLIE NS que, após a morte de AllanKardec, tornou-se o secretário-gerente da Revista Espírita, cargo, na prática, equivalente ao de redator.Contudo, sigo aqui, ao fazer essa referência bibliográfica, o padrão indicado pelos dados fornecidos pelaeditora na ficha catalográfica do volume correspondente ao número XII da coleção da Revista Espírita.
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Como tradutor, meu em penho foi de evitar tanto o literalismo sim plista, que
ignora as distâncias linguísticas e tem porais entre o texto original e o esforço de
tradução; quanto uma abordagem mais livre que pudesse desvirtuar o sentido original
que o autor quis im pingir a sua obra, ou que pudesse abrir espaço para interpretações
dúbias de sua mensagem.Depois de concluída a tradução e sua revisão, e tão logo tomamos conhecimento
do trabalho realizado por Evandro Noleto Bezerra, tivemos o cuidado de cotejar as
traduções em busca de possíveis equívocos de com preensão de nossa parte. E, de minha
parte, fiquei satisfeito em constatar a proximidade bem como a distância pelas opções
linguísticas e estilísticas assumidas. O que poderá ser facilmente percebido pelo leitor
num breve exercício com parativo. Visando possibilitar tal com paração, bem como
contribuir com o avanço dos estudos da obra kardeciana no Brasil, decidi, com a
anuência de Vital Cruvinel, tornar público este modesto em preendimento conjunto.
A TRADUÇÃO:
PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO DE L E C IEL ET L¶E NFER (1865).6
O título desta obra indica claramente o seu objeto. Aqui reunimos todos os elementos
próprios para esclarecer o homem acerca de seu destino. Como em nossos escritos
anteriores sobre a doutrina espírita, não se parte aqui de um sistema preconcebido ou de
uma concepção pessoal, a qual não gozaria de qualquer autoridade. Tudo foi deduzido a
partir da observação e da concordância dos fatos.
O Livro dos Espíritos contém as bases fundamentais do espiritismo; é a pedra
angular do edifício. Todos os princípios da doutrina nele se encontram colocados, até
aqueles que devem constituir o seu coroamento. Mas, era necessário dar-lhes
desenvolvimentos, deduzir-lhes todas as consequências e todas as aplicações, à medida
que se desenvolviam por meio do ensino com plementar dos Espíritos, e de novas
observações. Foi o que fizemos no Livro dos Médiuns e no Evangelho segundo o
6 Referência: KARDEC, Allan. Préface. In: ______. Le Ciel et l¶Enfer ou la Justice Divine selon le
Spiritisme. Paris : Ledoyen, Dentu, Fréd. Henri, 1865. p. I-VIII. Tradução: Augusto César Dias deAraujo. Revisão: Vital Cruvinel.
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espiritismo a partir de pontos de vista específicos. É o que fazemos nesta obra, segundo
outra perspectiva, e é o que faremos sucessivamente naquelas obras que ainda
publicaremos e que virão a seu tem po.
Ideias novas não frutificam senão quando a terra está preparada para recebê-las.
Ora, entende-se que a terra está preparada não pelo surgimento de algumas inteligências precoces, as quais dariam apenas frutos isolados, mas por certo conjunto na
predisposição geral, a fim de que não somente a ideia produza frutos mais abundantes,
mas que, encontrando numerosos pontos de apoio, encontre igualmente menos
oposição, e seja mais forte para resistir a seus antagonistas. O Evangelho segundo o
espiritismo representou um avanço; o Céu e o Inferno é um avanço ainda maior cujo
alcance será facilmente com preendido, posto que toca o essencial de certas questões,
contudo, não deveria ter aparecido prematuramente.
Considerando-se a época do advento do espiritismo, reconhece-se sem dúvida
alguma que este apareceu no tem po oportuno: nem cedo, nem tarde. Muito cedo, ele
teria abortado, por que as sim patias não seriam muito numerosas. Teria sucum bido sob
os golpes de seus adversários. Muito tarde, teria perdido a ocasião favorável de se
produzir; as ideias poderiam ter tomado outro curso, do qual teria sido difícil desviá-las.
Era, pois, necessário deixar às velhas ideias o tem po de se gastar e de provar sua
insuficiência, antes de apresentar as novas.
As ideias prematuras abortam porque não se está maduro para com preendê-las, e
a necessidade de uma mudança de posição não se fez ainda sentir. Hoje é evidente para
todo o mundo que um imenso movimento se manifesta na opinião geral; uma reação
for midável se opera no sentido progressivo contra o espírito estacionário ou retrógrado
da rotina. Os satisfeitos de ontem são os im pacientes de amanhã. A humanidade se
encontra em trabalho de parto; há no ar qualquer coisa, uma força irresistível que a
arrasta adiante; ela é como um jovem saído da adolescência que entrevê novos
horizontes sem os definir, e lança fora as fraldas da infância. Deseja-se algo melhor,
alimentos mais sólidos para a razão. Contudo, este melhor não está ainda bem definido,
procura-se-o. Todo o mundo nisto trabalha, desde o crente até o incrédulo; desde o
trabalhador até o sábio. O universo é um vasto canteiro de obras no qual uns demolem,
outros reconstroem. Cada um talha uma pedra para o novo edifício do qual apenas o
grande Arquiteto possui o plano definitivo, e do qual não se com preenderá a economia
senão quando suas for mas começarem a se desenhar sobre a face do solo. Tal é o
momento que a soberana sabedoria escolheu para o advento do espiritismo.
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Os Espíritos que presidem ao grande movimento regenerador agem, pois, com
maior sabedoria e previdência do que podem fazê-lo os homens, posto que eles
apreendem a marcha geral dos acontecimentos, enquanto nós não contem plamos senão
o círculo limitado de nosso horizonte. Os tem pos da renovação chegaram, segundo os
decretos divinos. Era preciso que em meio às velhas ruínas do velho edifício, o homem,a fim de não se desencorajar, entrevisse os alicerces da nova ordem de coisas; era
preciso que o marinheiro pudesse perceber a estrela polar que o deve guiar até o porto.
A sabedoria dos Espíritos que se mostrou no advento do espiritismo, revelado
quase instantaneamente por toda a terra, à época mais propícia, não é menos evidente na
ordem e na gradação lógicas das revelações com plementares sucessivas. Não depende
de ninguém constranger sua vontade a este respeito, pois eles não medem seus
ensinamentos pelo grau de im paciência dos homens. Não basta que digamos:
³Queremos ter tal coisa´, para que ela nos seja dada; e é ainda menos conveniente que
digamos a Deus: ³Julgamos que chegou o momento para que nos dê tal coisa; nos
julgamos avançados o suficiente para recebê-la´; isto seria como lhe dizer: ³Sabemos
melhor que você o que é conveniente fazer´. Aos im pacientes, os Espíritos respondem:
³Comecem primeiramente por bem saber, bem com preender, e, sobretudo, por bem
praticar aquilo que vocês sabem, a fim de que Deus os julgue dignos de aprender mais;
depois, quando chegar o momento, saberemos agir e escolheremos nossos
instrumentos´.
A primeira parte desta obra, intitulada Doutrina, contém o exame com parado das
diversas crenças sobre o céu e o inferno, os anjos e os demônios, as penas e as
recom pensas futuras. O dogma das penas eternas aqui é encarado de uma maneira
especial, e refutado por meio de argumentos tirados das leis da natureza, e que
demonstram, não apenas seu lado ilógico, já assinalado mil vezes, mas sua
im possibilidade material. Naturalmente, com as penas eternas, caem todas as
consequências que se acreditou delas poder tirar.
A segunda parte contém numerosos exem plos que sustentam a teoria, ou antes,
que serviram para estabelecer a teoria. Eles haurem sua autoridade da diversidade de
tem pos e lugares nos quais foram obtidos, posto que se emanassem de fonte única, seria
possível encará-los como o produto de uma mesma influência. Ademais, sua autoridade
advém da concordância com a qual são obtidos todos os dias, onde quer que se ocupe
das manifestações espíritas do ponto de vista sério e filosófico. Tais exem plos poderiam
ser multiplicados ao infinito, pois não há centro espírita que não possa deles fornecer
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um notável contingente. Para evitar repetições fastidiosas, fizemos uma escolha dos
mais instrutivos. Cada um desses exem plos é um estudo, no qual todas as palavras têm
sua im portância para todo aquele que as meditar com atenção, pois cada ponto lança
uma luz sobre a situação da alma após a morte, e a passagem da vida corporal à vida
espiritual até este momento tão obscura e temida. É o guia do viajante antes de entrar em um novo país. A vida do além-túmulo se apresenta sob todos os seus aspectos, como
um vasto panorama; cada um aí encontrará novos motivos de esperança e consolação,
bem como novas bases para reafir mar sua fé no porvir e na justiça de Deus.
Nesses exem plos, tomados em sua maioria de fatos contem porâneos, ocultamos
os nomes próprios todas as vezes que julgamos útil, por motivos de conveniência fáceis
de com preender. Aqueles a quem tais exem plos possam interessar os reconhecerão
facilmente; para o público, nomes mais ou menos conhecidos, e algumas vezes muito
obscuros, não acrescentariam nada às instruções que deles se pode retirar.
As mesmas razões que nos fizeram calar os nomes dos médiuns no Evangelho
segundo o espiritismo levaram a nos abster de nomeá-los na presente obra, escrita mais
para o futuro que para o presente. Tais médiuns não estão nada interessados em atribuir-
se o mérito por uma coisa à qual seu espírito não teve qualquer participação. A
mediunidade, aliás, não se encontra submetida a tal ou tal indivíduo; é uma faculdade
fugidia, subordinada à vontade dos Espíritos que querem se comunicar, a qual se possui
hoje e que pode desaparecer amanhã, e que não é aplicável a todos os Espíritos sem
distinção, e, por isso mesmo, não constitui um mérito pessoal como o seria um talento
adquirido mediante o trabalho e os esforços da inteligência. Os médiuns sinceros,
aqueles que com preendem a gravidade de sua missão, consideram-se como
instrumentos que a vontade de Deus pode quebrar quando quiser, caso não ajam
segundo seus interesses; eles ficam felizes com uma faculdade que lhes per mite se
tornarem úteis, mas não extraem daí qualquer vaidade. De resto, nos confor mamos
sobre este ponto aos conselhos de nossos guias espirituais.
A providência quis que a nova revelação não fosse privilégio de ninguém, mas
que tivesse seus órgãos por toda a terra, em todas as famílias, em casa dos grandes
como dos pequenos, segundo esta palavra da qual os médiuns de nossos dias são a
realização: ³Nos últimos tem pos, diz o Senhor, derramarei meu Espírito sobre toda
carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão; vossos jovens terão visões e vossos
velhos sonharão. Nesses dias derramarei meu Espírito sobre meus servos e minhas
servas, e eles profetizarão´ ( Atos, cap. II, v. 17,18).
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Mas está dito tam bém: ³Haverá falsos Cristos e falsos profetas´ (Ver o
Evangelho segundo o espiritismo, cap. XXI).
Ora, esses últimos tem pos chegaram; não é o fim do mundo material, como se
tem acreditado, mas o fim do mundo moral, ou seja, a era da regeneração.