O primado heurístico da noção de formação

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Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação Universidade Federal de Juiz de Fora / UFJF ISSN 1981- 4070 Lumina Vol.2 • nº2 • Dezembro, 2008 • www.ppgcomufjf.bem-vindo.net/lumina 1 O primado heurístico da noção de “formação”: para uma teoria gnóstica do conhecimento 1 Nelma Medeiros 2 Resumo: Apresentação das bases conceituais que integram a teoria do conhecimento proposta pela Nova Psicanálise. Teoria esta, denominada Gnômica, de base gnóstica por pelo menos duas razões: (a) por afirmar haver um conhecimento absoluto para cada Um entendido como experiência de Haver, experiência que é imediata- mente cada Um saber sua solidão e sua condição de estranho ao mundo; (b) pela proposição de que o conhecimento absoluto causa os movimentos de conhecer, o que situa o conhecimento em geral como possibilidades téticas, em qualquer nível de articulação. Donde o primado heurístico da noção de formação como aquela que permite operar esse esgarçamento da realidade, a partir da dinâmica da polarização e a correspondente dispensa das noções de fronteira, sujeito e objeto. Palavras-chave: teorias da comunicação; psicanálise; gnose Abstract: Conceptual basis of the theory of knowledge as proposed by New Psychoanalysis. This theory is called Gnômica and is gnostic- based for at least two reasons: (a) it states that there is an absolute knowledge of each One, knowledge that is an experience of “Haver”, that is, an immediate experience of knowing One’s own solitude and One’s own strangeness in the world; (b) it states that the absolute knowledge causes the search for knowledge, by which in turn knowledge in general is defined as thetical possibilities in every way of its articulation. Thus the chief importance, heuristically speaking, of the notion of formation as one that allows the broadening of 1 Artigo apresentado no 1º. Colóquio “Comunicação e conhecimento”, do Projeto “Crítica Epistemológica: Análise de investigações em curso, com base em critérios epistemológicos, para desenvolvimentos reflexivos e praxiológicos na pesquisa em Comunicação” (Procad / Capes, 2008: PPGCOMs da Unisinos, UFJF e UFG), realizado dia 06 de novembro de 2008, no VI Encontro Regional de Comunicação da UFJF. 2 Professora (PPGHS/UERJ). Doutora em filosofia (IFCS/UFRJ). Pesquisadora do “ETC - Estudos Transitivos do Contemporâneo” (CNPq).

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Nova psicanálise, MD Magno, Nelma Medeiros

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    O primado heurstico da noo de formao:

    para uma teoria gnstica do conhecimento1

    Nelma Medeiros2

    Resumo: Apresentao das bases conceituais que integram a teoria do conhecimento proposta pela Nova Psicanlise. Teoria esta, denominada Gnmica, de base gnstica por pelo menos duas razes: (a) por afirmar haver um conhecimento absoluto para cada Um entendido como experincia de Haver, experincia que imediata-mente cada Um saber sua solido e sua condio de estranho ao mundo; (b) pela proposio de que o conhecimento absoluto causa os movimentos de conhecer, o que situa o conhecimento em geral como possibilidades tticas, em qualquer nvel de articulao. Donde o primado heurstico da noo de formao como aquela que permite operar esse esgaramento da realidade, a partir da dinmica da polarizao e a correspondente dispensa das noes de fronteira, sujeito e objeto. Palavras-chave: teorias da comunicao; psicanlise; gnose

    Abstract: Conceptual basis of the theory of knowledge as proposed by New Psychoanalysis. This theory is called Gnmica and is gnostic-based for at least two reasons: (a) it states that there is an absolute knowledge of each One, knowledge that is an experience of Haver, that is, an immediate experience of knowing Ones own solitude and Ones own strangeness in the world; (b) it states that the absolute knowledge causes the search for knowledge, by which in turn knowledge in general is defined as thetical possibilities in every way of its articulation. Thus the chief importance, heuristically speaking, of the notion of formation as one that allows the broadening of

    1 Artigo apresentado no 1. Colquio Comunicao e conhecimento, do Projeto Crtica Epistemolgica: Anlise de investigaes em curso, com base em critrios epistemolgicos, para desenvolvimentos reflexivos e praxiolgicos na pesquisa em Comunicao (Procad / Capes, 2008: PPGCOMs da Unisinos, UFJF e UFG), realizado dia 06 de novembro de 2008, no VI Encontro Regional de Comunicao da UFJF. 2 Professora (PPGHS/UERJ). Doutora em filosofia (IFCS/UFRJ). Pesquisadora do ETC - Estudos Transitivos do Contemporneo (CNPq).

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    reality, by way of a perspective of polarization and the consequent dismissal of frontiers, subject and object. Key-words: communication theories; psychoanalysis; gnosis

    A Nova Psicanlise prope uma teoria do conhecimento denominada Gnmica, da qual este texto uma breve apresentao, a partir da noo de formao.

    O termo gnmica deriva etimologicamente de gnose, palavra grega que significa conhecimento. A idia de gnose se renova e se atualiza na psicanlise atravs de dois princpios, o segundo decorrendo do primeiro: 1) h conhecimento absoluto; 2) esse conhecimento absoluto causa os demais conhecimentos, que chamaremos de relativos, no sentido de que so relativos a um absoluto que os rege. Ora, por se tratar de uma visada freudiana da gnose, acrescenta-se uma terceira qualificao do conhecimento: todo conhecimento sexual.

    A Gnmica se estatui, portanto, segundo trs teses, a segunda e a terceira dependendo logicamente da primeira:

    1. H conhecimento absoluto;

    2. Esse conhecimento absoluto ao mesmo tempo qualifica e qualificado pela natureza sexual do conhecimento;

    3. Esse conhecimento absoluto causa os movimentos de conhecer.

    Entende-se por conhecimento absoluto a apreenso imediata do Real como experincia de presena, experincia que imediatamente cada Um saber sua solido, saber sua condio de estranho ao mundo, dele separado e sem libi3. Desfaz-se da premissa filosfica da intercambialidade e co-determinao entre real e pensamento (logos). Real, aqui, HAVER, experincia direta de solido e mal-estar, algo que pode ser contado como prprio, no sentido de pertinncia, sem se saber dizer a respeito do qu (Magno [2000-2001]: 214). Trata-se de condenao bruta de Haver, da qual impossvel escapar: impossvel, portanto, no-Haver. Conhecimento absoluto que est dado, sendo a psicanlise uma tcnica de rememorao desse conhecimento: no algo [essa experincia] que algum toma a deciso para saber se o fundamento. Trata-se de que assim na vida: entramos nela na porrada e horrvel estar aqui (Magno [2006]).

    Em outras palavras, a experincia de Haver no-ttica, pois no provm de uma deciso ou posio de si. Parafraseando Samuel Beckett, em Fim de Partida: Voc h; no h cura para isso. Somos acometidos de mal- 3 A tese do conhecimento absoluto como experincia do Real comum Nova Psicanlise, de MD Magno, e No-Filosofia, de Franois Laruelle. Sobre o ltimo cf. (Laurelle, 1992) e (Rannou, 2003 e 2005).

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    estar, sendo dado o saber absoluto de solido, do derrisrio e desamparo sem libi, trauma cru e obsceno de Haver, saber nico, de cada Um, que faz mover o mundo, no sentido de cada Um se virar para conviver e entender (tarefa impossvel) sua condenao. Somos transeuntes carregados pelo mal-estar, que fato, e, enquanto tal, alheio s vontades que lhe so favorveis ou lhe fazem resistncia.

    Ora, essa a tese propriamente freudiana (aqui tomada como gnstica): afirmar o Real da impossibilidade absoluta como experincia fundamental de cada Um, a partir da qual cada Um produzir conhecimentos e modos de estar e ser. Isto , a partir da qual cada Um produzir Mundo. Qualquer compreenso obtida e por obter dessa condenao permanecer precria e insuficiente, sem que seja preciso intermediaes de qualquer ordem ensino, cultura, filosofia, pensamento articulado ou reflexo para cada Um sab-lo (saber o fato da condenao e o fato da inadequao dos saberes-mundo para recobrir e explicar que H). Por fim, a experincia de Real indiferente, no sentido do distanciamento e corte que ela impe em relao aos valores do mundo. E isto nos remete segunda tese.

    O conhecimento sexual. Entende-se sexual como seco, corte, no-relao dada na impossibilidade de Haver passar a no-Haver. Cada Um h, portanto, em separao, em corte, em no-relao com o mundo, no empuxo libidinal de no-Haver, no desejo de relao, de transa, de gozo, com o impossvel absoluto. O sexual, por excelncia, o teso pelo impossvel. Nesse sentido, o sexual o prprio movimento do teso enquanto transcendental, isto , enquanto requerente de tudo, exigindo tudo, cada vez mais, inclusive o que no h. Portanto, qualquer moo de conhecimento sexual, medida que se qualifica e se explica pelo teso em seu movimento para um mais-alm do dito, do conhecido, do articulado. O conhecimento absoluto qualificado como sexual se expressa como condio (causa) dos movimentos de conhecer. Isso nos leva terceira tese da Gnmica.

    O conhecimento absoluto causa os movimentos de conhecer. A posio gnstica da Nova Psicanlise se prolonga nessa afirmao, situando o conhecimento em geral como possibilidades tticas, em qualquer nvel de construo, apresentao, articulao ou proposio. Para refinar a distino entre esses dois nveis de conhecimento, prope-se a hierarquia entre Haver e Ser, com o que se quer indicar a dependncia de todos os modos de conhecer (Ser) em relao ao Real, como respostas possveis, precrias e provisrias perplexidade de Haver, condenao a no gozar como se deseja (no-Haver). Donde, os conhecimentos possveis serem j a ordem articulatria das coisas. H discreo a, ou seja, no-passagem entre Haver e Ser acompanhvel enquanto saber, articulao, discursividade. De um lado, experincia direta do Um, de outro, movimentos de conhecer.

    Isso libera o sentido do possvel, radicalizando sua extenso, razo pela qual a Gnmica caracteriza como compreensivo todo e qualquer conhecimento, a includo o conhecimento cientfico. Trata-se de considerar em abrangncia,

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    extenso e incluso os conhecimentos, donde a proposio o que quer que se diga ou se articule da ordem do conhecimento. Enfatizamos que a experincia de Haver, ao destituir os modos filosficos e religiosos de se buscar uma provenincia sapiente acerca da presena de cada Um, inflaciona justamente a afirmatividade da tarefa do conhecimento.

    A noo de formao

    A Nova Psicanlise insiste, repete exausto, que o que quer que haja comparece como formao. Esse princpio parte integrante da Gnmica, sem o qual perde-se o escopo dessa teoria do conhecimento. Por formao entende-se toda e qualquer forma, ordenao, articulao ou estrutura que h, das partculas e anti-partculas a uma ordenao simblica (humana) qualquer, do cdigo gentico e dos ecossistemas vivos a todo tipo de tcnica, lngua, conhecimento ou arte. Ou ainda, toda e qualquer forma comparecente como matria, vida ou artefato, para usar os termos das teorias da complexidade e da auto-organizao (Dumouchel e Dupuy: 13).

    Chamamos a ateno para a reduo conceitual operada na noo de formao que, de um s golpe, dispensa qualquer distino de natureza organizadora das coisas em sua emergncia, dispensando igualmente qualquer Artfice nomeado como sde atribuvel dessa produo, seja uma instncia religiosa ou filosfica transcendente, seja sua expresso imanente (ainda que dividida e dispersa). Quem diz formao diz artifcio, ou seja, anonimato, srie infinita, diferena de grau, homogeneidade, teso, sexualidade, transcrio, criao, tecnologia, produtividade (ao invs de reprodutividade), disperso e fractalidade. Quem diz artifcio dispensa porque deslocou o modo de considerao do problema o hbito ocidental do dualismo natureza / cultura e seus sucedneos epistemolgicos (natureza / conveno; natureza / costume; natureza / sociedade, natureza / histria, cosmos / nomos; cincias da natureza / cincias do esprito, todos de alguma maneira derivados da fratura grega entre physis e thesis (Milner [2002]: 181-185). O princpio operativo da Gnmica, portanto, : o que quer que comparea, se forme ou se parciarize na fractalidade do Haver, formao do Haver.

    A simplicidade e fora heurstica desse conceito vm da perspectiva de considerar o Haver, isto , o campo do possvel ou das formaes possveis, como homogneo. Quer-se dizer com isso que se conjetura que o que h constitudo do Mesmo, da mesma substncia, do mesmo elemento ou estrutura mnima, ainda que provisoriamente desconhecido. A hiptese da homogeneidade do Haver, exigida pela idia de formao e que lhe d inteligibilidade, significa que operamos a partir de um mnimo construtural possvel e provisrio, ainda que no saibamos determinar ou definir essa homogeneidade (Magno [2003]: 26). Ou como afirmou Paul Feyerabend: a abundncia do mundo que habitamos excede nossa imaginao mais ousada (2006: 26). A presso para que se concebam as coisas como heterogneas e irredutivelmente diferenciadas advm tanto do fato de as formaes

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    comparecerem limitadas quanto da impossibilidade modal de se atravessar e reverter essas limitaes. O entendimento e operatividade das diferenas e excluses dependem, portanto, da referncia conjetura do Haver como absolutamente homogneo em sua constituio de ltima instncia.

    Essa reverso lgica fundamental para a Gnmica e tornam prximos da Nova Psicanlise alguns investimentos tericos contemporneos que tm insistido na busca de princpios de equivalncias entre as coisas, seja pela via computacional, informacional, ciberntica ou comunicacional. O que dissemos acima sobre a base gnstica da Nova Psicanlise inflacionar a afirmatividade da tarefa do conhecimento ganha aqui mais um argumento a favor, pois deparar-se com a limitao tendo em mos um princpio de homogeneidade enfrentar uma dificuldade com a conjetura de sua resoluo inscrita como possvel, pois ela j est l, bastando acompanhar as formaes em seu infinito processo de acoplamento e transformao, uma vez que se parte da conjetura da constituio homognea de sua ltima instncia.

    Essa postura afirmativa aposta na unicidade, simplicidade e profundidade, na mo contrria do sabor ps-estruturalista da superfcie rizomtica e mltipla. So princpios simples e nicos que fazem emergir e movimentar o complexo e o extenso. Ao invs de partir da diversidade e multiplicidade dos elementos do mundo, que se impem com suas diferenas modalmente irredutveis, parte-se de elementos mnimos formadores para acompanhar a produo e complexificao do mximo (Magno [2003]: 193-194). Uma das tarefas da Gnmica mostrar que a reduo ao mnimo facilitadora de mais articulaes, provendo travessias por dentro de situaes tidas como incomunicveis. Todos os impasses, recrudescncias e acirramentos de posio, so resistncias mais ou menos intensas sua dissoluo a um mnimo homogneo e desconfigurador que, luz dos interesses de conservao das formaes, tende a ser rechaado e afastado como ameaador das articulaes j tidas.

    a) Linhagens conceituais da noo de formao

    Desde Freud a matria psquica tratada em termos de formaes psquicas, formaes do (sistema) inconsciente, formaes substitutivas, formaes reativas, sem aparente privilgio para seu modo de apresentao ou estruturao (sonho, ato falho, chiste, sintomas das mais variadas ordens, com extenses fisiolgicas, neuronais, culturais, estticas), mais ou menos abordveis na lngua, mas extrapolando a prpria configurao desta. Jean-Claude Milner considera, por exemplo, que Freud demonstrou grande interesse por eventuais propriedades da linguagem, como o testemunhariam suas idias sobre o sentido antittico das palavras primitivas, que esclareceriam propriedades dos processos inconscientes (Milner, 2000).

    O interesse de Jacques Lacan pela lingstica desde a dcada de 1950 (abandonado paulatinamente no final da obra a partir da dcada de 1970) traria

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    inflexes fundamentais idia freudiana de formaes do inconsciente. O comprometimento epistemolgico a estabelecido com a lingstica estruturalista compareceu em dois nveis: (i) a reformulao das teses freudianas do inconsciente luz da lingstica estruturalista, cujo primeiro efeito postular o inconsciente como tendo as mesmas propriedades de estrutura que uma linguagem; (ii) a postulao do inconsciente assim concebido (e do campo psicanaltico que se reconfigura a partir da) luz da tradio epistemolgica ocidental, caracterizada, desde os gregos, pelo divrcio e tenso dialtica entre physis e thesis (segundo a natureza ou segundo a conveno), renovada em diferentes pocas histricas (natureza / costume; natureza / sociedade; natureza / cultura; natureza / histria).

    Ora, em Freud a matria psquica comparece mediante formas e lgicas variadas e subordinadas ordem aberta e epistemologicamente frouxa do Inconsciente. Freud queria saber como o Inconsciente se inscreve, fosse como inscrio neuronal, fsica (no seio da Natureza, do dado), cultural (mal-estar na civilizao), esttica (trabalhos sobre arte e literatura). Mesmo que isso fosse ao custo de dar fcies de normalidade cientfica e mesmo que, com ou sem normalidade cientfica, no houvesse condies de respaldo investigativo e laboratorial mais amplo. Na seqncia, o priplo estrutural da psicanlise com Lacan pretendeu descobrir, a partir do simblico, o ponto original onde se faz a linguagem, supondo que, ao faz-lo, fornecia-se a razo de emergncia do inconsciente e seus corolrios: emergncia da cincia e do sujeito. As formaes do inconsciente ficavam subditas aposta estruturalista de discernir propriedades mnimas da linguagem anlogas s propriedades mnimas do ICS que, de retorno, se formalizaria como linguagem.

    Mas esse golpe de artificializao permaneceu restrito, mesmo em seus esforos de pensar o que seria um discurso psicanaltico propriamente dito, capaz de mostrar o homem como desvinculado de toda e qualquer co-naturalidade com as emergncias dentro do Haver. Donde Lacan encarecer a categoria de real, como que a mostrar a precariedade da articulao simblica frente impossibilidade absoluta da desejada destruio, de modo consentneo com a tese freudiana da pulso de morte. Mas a categoria do real foi encarecida pela reflexo de Lacan em suas ltimas elaboraes de modo consentneo com o pensamento contemporneo, medida que cada vez mais se reconhece a necessidade de abandonar de uma vez por todas os fantasmas de naturalidade e partir para a invaso das prteses e dos artifcios, pois trata-se de Inconsciente puro em movimento e em articulao (Magno [1990]).

    Ao longo da obra de MD Magno, desde a dcada de 1970, a proposio o que quer que haja comparece por formaes foi sendo elaborada por dentro da prpria orientao lacaniana que a conduzia, explorando e esgotando seus conceitos para, a partir da dcada de 1990, emergir como teoria prpria. Mediante a reformulao do conceito de linguagem, a teoria psicanaltica se renovou, tornando-se mais abstrativa, no sentido de mais inclusiva, operacional e prtica. Podemos citar, por exemplo, a intuio de um campo homogneo de

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    formaes pela via conjetural de uma estrutura mnima comum, de que decorrem questes sobre as definies e relaes entre linguagem, simblico, artifcio e cultura; a crtica autonomia do significante e a conseqente desmontagem da distino lacaniana entre analogia e metfora; a reduo esttica e pragmtica da ordem sintomtica e seu ponto de ancoragem na indiferenciao (pelo que responde a proposio de uma esttica e de uma poltica); por fim, a ordem sistmica do sintoma e seu equacionamento mediante uma teoria polar das formaes.

    A psicanlise afasta-se definitivamente do modo filosofante de articulao, aproximando-se mais dos procedimentos reconhecveis nas cincias, sobretudo nas cincias caticas que despontaram nos sculo XX. Assim, desde j podemos adiantar que o paradigma do caos, com a dependncia hipersensvel das condies iniciais, o alto grau de indeterminao, as possibilidades de cair em pontos de bifurcao, a dinmica da organizao como emergncia, mais prximo do modo como funciona a mente no modelo proposto pela Nova Psicanlise. A resultante mais recente desse esforo conceitual a proposio da teoria das formaes, articulada teoria do conhecimento que a Gnmica.

    b) Primado heurstico da noo de formao

    Por primado heurstico da noo de formao queremos dizer que prevalece a considerao de qualquer ordem de comparecimento de coisas como redutvel noo de formao. como se buscssemos um nvel infra-epistemolgico, infra-disciplinarizante, infra-conceitual (entendendo o conceito como operao de recorte e especificao), ao propor questionar e suspender ao mximo limites e fronteiras entre conhecimentos e suas resultantes. Dupla conseqncia: exacerbao do carter provisrio e precrio de qualquer conhecimento e exigncia de um racionalismo hiperblico, que no se deixe hipnotizar pela banalidade das razes conseguidas, no recue diante de novas razes e encarea, ao contrrio, sua investigao.

    a partir de um entendimento renovado da idia freudiana de resistncia como economia intrnseca ao regime das formaes que a Gnmica concebe a prpria noo de formao como polaridade. O que isso significa? A noo de formao carrega o raciocnio da intensidade reconhecvel pelo vigor da tipicidade daquilo que comparece. Estamos trabalhando em um campo nocional articulado s idias de intensidade, fora de aglomerao e pulverizao, fora dos raciocnios usuais de fronteira e excluso. No so necessrios, portanto, raciocnios de territorialidade para se reconhecer uma formao, pois j h o vigor de sua tipicidade. So formaes com seus poderes e foras que polarizam um campo, sem que seja possvel encontrar o termo de um plo assim constitudo, pois nos perdemos em suas franjas (Magno [2003]: 212). Vejamos melhor essa dinmica a partir do esquema abaixo (Magno [2006]):

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    As formaes so concebidas em termos de uma rede infinitamente grande, com vrios plos (), acompanhveis focal e franjalmente. Ao focalizar um plo, imediatamente emerge sua franja como o espraiamento daquilo que se focalizou, sem que seja possvel operar exclusivamente pelo foco e supor que se dar conta de tudo, pois a franja infinita. A teoria das formaes, ao invocar o comparecimento e funcionalidade das coisas em polaridade, com seus focos e franjas, responde falncia das fronteiras, por sua vez aspecto chave de todas as teorias do conhecimento de vocao epistemolgica, que, em ltima instncia, significam a investigao acerca da validade e justificao do conhecimento assentadas ora no sujeito, ora no objeto. Assim, toda vez que partimos da referncia a um plo temos a impresso de que ele o centro do mundo, determinando e organizando o resto, donde as iluses de sujeito e objeto.

    Consideraes finais

    Em termos do laboratrio psicanaltico, aplicar a reverso lgica proposta pela Gnmica encaminhar a anlise e aquele que a ela se submete para a progressiva operao de indiferenciao dos valores, uma vez que se parte do princpio de que as diferenas so resistncias ou efeitos sistmicos que se formam no nico e mesmo tecido inconstil do Haver. Todas as formaes so limitaes resistentes em suas respectivas sistmicas, no sentido de que se conservam firmes, insistem e persistem em no se deixarem dissolver e desfigurar por outros modos de formao.

    A Nova Psicanlise trilha, no campo aberto por Freud, um caminho solitrio, alheio e indiferente aos diagnsticos da crtica ps-moderna, no apenas porque a deglutiu antes ainda que tal crtica se tornasse palavra de ordem, mas, sobretudo, porque oferece algo novo, ao mesmo tempo cruel e obsceno, lcido e sereno: o conhecimento ou experincia imediata de Cada Um como soberania suprema, intocvel pelo Mundo, solitria e Real. Pulou-se fora do beco sem sada em que a cultura contempornea se viu encurralada, entre a constatao da falncia dos modelos universalizantes e a euforia exaltadora das diferenas como condio irredutvel de qualquer anlise e interveno.

    Temos na Gnmica uma teoria do conhecimento propriamente psicanaltica. psicanaltica pela base pulsional, ampliada ao extremo como sendo uma proposio ttica suposta physis. psicanaltica pela operatividade de seus construtos tericos apoiados na experincia clnica, laboratrio que tm fornecido, desde Freud, elementos que fazem da psicanlise uma cincia no sentido de um conhecimento que resulta em prteses, em intervenes que transformam. So prteses, portanto, os modos encontrados mediante estudo,

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    pesquisa e produo psicanalticas, intervenes que atingem nossos modos de articulao, instalando arquivos de conhecimento capazes de competir com, deslocar e abstrair os arquivos pregressos. , sobretudo, psicanaltica, pois reafirma a experincia de cada Um como conhecimento absoluto de Haver, antes ainda que a vontade filosofante e pedaggica venha autoritariamente pretender definir quem cada um . Pois, antes de ser, cada Um H. E s por Haver que se causam as solues provisrias do Ser.

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