O Princípio da legalidade aplicado às normas da abnt

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O Princípio da Legalidade Aplicado às Normas da ABNT Rinaldo Maciel de Freitas 1 As normas da ABNT são leis? Antes de responder a pergunta, cabe esclarecer que a ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas, fundada em 28 de setembro de 1940, portanto, há mais de setenta anos presta relevantes serviços públicos ao país, no entanto, a supremacia do interesse público caracterizada no Princípio da Legalidade, afasta a aplicação das normas técnicas como leis vinculantes, pelo Princípio da Indisponibilidade, como ensina Bandeira de Mello: “A indisponibilidade dos interesses públicos significa que, sendo interesses qualificados como próprios da coletividade internos ao setor público , não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los o que é também um dever na estrita conformidade do que predispuser a intentio legis” (Mello, Celso Antônio Bandeira Curso de Direito Administrativo 25ª Edição São Paulo Malheiros 2008). A Associação Brasileira de Normas Técnicas não é um órgão público ou equivalente a este, não sendo tampouco considerada uma Autarquia Especial, mas, associação civil reconhecida de utilidade pública pela Lei 4.150, de 21 de novembro de 1962: Art. 5º A “ABNT” é considerada como órgão de utilidade pública e, enquanto não visar lucros, aplicando integralmente na manutenção de sua administração, instalações, laboratórios e serviços, as rendas que auferir, em seu favor se manterá, no Orçamento Geral da República, dotação não inferior a dez milhões de cruzeiros (Cr$10.000.000,00). Cabe esclarecer que houve iniciativa, através do Projeto de Lei do Senado, nº 62, de 29 de novembro de 1972, para dar competência à ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas para elaboração de normas no território nacional, mas, fôra rejeitado em 08 de outubro de 1974 e, finalmente o Projeto de Lei do Senado, nº 376, de 04 de dezembro de 1985, sobre referência obrigatória às normas da ABNT nos rótulos dos produtos industrializados teve o mesmo destino. 1 Rinaldo Maciel de Freitas Graduado em Filosofia pelo Instituto Agostiniano de Filosofia membro da Sociedade Brasileira de Filosofia Analítica. Graduado em Direito pela FADOM Faculdades Integradas do Oeste de Minas membro da Associação Paulista de Estudos Tributários APET. Pós-Graduando em Direito Público. Formação Extra Curricular: Ética/UEMG Arbitragem/UFMG Psicologia Jurídica/UEMG Classificação Fiscal de Produtos/Aduaneiras.

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Estudo técnico com ênfase no princípio da legalidade do art. 37 da Constituição Federal de 1988 aplicado às normas da ABNT considerando a Capture Theory (Teoria da Captura) face á ordem econômica

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O Princípio da Legalidade Aplicado às Normas da ABNT Rinaldo Maciel de Freitas

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As normas da ABNT são leis? Antes de responder a pergunta, cabe

esclarecer que a ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas, fundada em

28 de setembro de 1940, portanto, há mais de setenta anos presta relevantes serviços

públicos ao país, no entanto, a supremacia do interesse público caracterizada no

Princípio da Legalidade, afasta a aplicação das normas técnicas como leis

vinculantes, pelo Princípio da Indisponibilidade, como ensina Bandeira de Mello:

“A indisponibilidade dos interesses públicos significa que, sendo interesses

qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público –, não se

encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio

órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no

sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever – na

estrita conformidade do que predispuser a intentio legis” (Mello, Celso Antônio

Bandeira – Curso de Direito Administrativo – 25ª Edição – São Paulo – Malheiros – 2008).

A Associação Brasileira de Normas Técnicas não é um órgão público

ou equivalente a este, não sendo tampouco considerada uma Autarquia Especial, mas,

associação civil reconhecida de utilidade pública pela Lei 4.150, de 21 de novembro

de 1962:

Art. 5º A “ABNT” é considerada como órgão de utilidade pública e,

enquanto não visar lucros, aplicando integralmente na manutenção de sua

administração, instalações, laboratórios e serviços, as rendas que auferir, em seu

favor se manterá, no Orçamento Geral da República, dotação não inferior a dez

milhões de cruzeiros (Cr$10.000.000,00).

Cabe esclarecer que houve iniciativa, através do Projeto de Lei do

Senado, nº 62, de 29 de novembro de 1972, para dar competência à ABNT –

Associação Brasileira de Normas Técnicas para elaboração de normas no território

nacional, mas, fôra rejeitado em 08 de outubro de 1974 e, finalmente o Projeto de

Lei do Senado, nº 376, de 04 de dezembro de 1985, sobre referência obrigatória às

normas da ABNT nos rótulos dos produtos industrializados teve o mesmo destino.

1 Rinaldo Maciel de Freitas – Graduado em Filosofia pelo Instituto Agostiniano de Filosofia – membro da Sociedade Brasileira de

Filosofia Analítica. Graduado em Direito pela FADOM – Faculdades Integradas do Oeste de Minas – membro da Associação Paulista de

Estudos Tributários – APET. Pós-Graduando em Direito Público. Formação Extra Curricular: Ética/UEMG – Arbitragem/UFMG –

Psicologia Jurídica/UEMG – Classificação Fiscal de Produtos/Aduaneiras.

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Em 28 de abril de 1989 o Projeto de Lei foi reenviado à CCJ –

Comissão de Constituição e Justiça do Senado ao argumento de que o “envio da

matéria a CCJ, face às novas disposições constitucionais”, uma vez que o artigo 37

da nova ordem constitucional tem a previsão do Princípio da Legalidade e

indisponibilidade do interesse público, como ensina Bandeira de Melo:

“O princípio da legalidade explicita a subordinação da atividade administrativa à

lei e surge como decorrência natural da indisponibilidade do interesse público,

noção, esta, que, conforme foi visto, informa o caráter da relação de

administração. No Brasil, o art. 5º, inciso II, da Constituição Federal dispõe:

‘Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude

de lei’” (Mello, Celso Antônio Bandeira – Curso de Direito Administrativo – 25ª Edição – São

Paulo – Malheiros – 2008).

Assim explicitado, as normas técnicas da Associação Brasileira de

Normas Técnicas não são normas jurídicas ou legais e por seu turno, não possui

poder vinculante, sendo que cabe, exclusivamente, interpretação e aplicação técnica

pelos técnicos qualificados, enquanto que à norma legal vincula a todos os

administrados:

“Cumpre também esclarecer que as normas da Associação Brasileira de Normas

Técnicas (ABNT) não têm poder vinculante, sendo meras balizadoras do labor

pericial” (parte de voto no STJ – Superior Tribunal de Justiça – AgRg – Agravo Regimental em Recurso

Especial nº 92.834/PR – Processo 2011/0212492-5 – Relator: Ministro Massami Uyeda – 17/04/2012).

Posteriormente, a referência obrigatória na rotulagem das embalagens de

produtos pré-medidos foi incluída pela Portaria Inmetro nº 157, de 19 de agosto de

2002 do Inmetro – Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia,

uma Autarquia Federal. A ABNT, sociedade civil, entidade reconhecida como de

utilidade pública, não tem competência legal, muito embora suas normas técnicas

tenham referência e exigência Código de Defesa do Consumidor:

Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços:

VIII Colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em

desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se

normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de normas técnicas

ou outra entidade credenciada pelo Conselho Nacional de Metrologia,

Normalização e Qualidade Industrial - Conmetro”.

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No entanto, o bem jurídico que a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de

1990 resguarda é a necessidade do consumidor, assim entendido como a sua proteção

em razão da saúde, segurança, qualidade de vida, dignidade e interesse econômico,

porque, as vedações de que trata o artigo 39, interpreta-se concomitantemente

levando-se em consideração, o artigo 6º da mesma lei:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados

por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou

nocivos;

III a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e

serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição,

qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

Isso porque a proteção ao consumidor é norma jurídica mediata, ou seja,

ao fornecedor é defeso colocar no mercado produto impróprio ao consumo e, ilícitos,

assim entendidos os que, de alguma forma possam trazer risco à vida, saúde e,

segurança do consumidor.

A partir do momento em que a livre concorrência é defendida, tutela-se o

consumidor, considerando que trata-se a Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011,

de norma jurídica de aplicação imediata, porque independe de qualquer outro evento,

ou seja, a constituição de qualquer impeditivo à livre concorrência já desencadeia a

aplicação das normas antitruste2:

“Ademais, nas decisões antitruste em que se tem a preocupação (imediata) da

tutela da livre concorrência, a proteção (mediata) ao interesse do consumidor,

quando existente, é não raro utilizada como elemento argumentativo”.

Não sendo normas legais, mas técnicas, as normas passam por distintos

objetivos e campos de incidência. A ABNT é uma associação civil sem fins

lucrativos, reconhecida como de utilidade pública pela Lei 4.150, de 21 de

novembro de 1962, onde o Projeto de Lei da Câmara Federal de nº 2, de 31 de

janeiro de 2006 alterou o inciso XIII do caput do art. 7º da Lei nº 9.610, de 19 de

fevereiro de 1998, reconhecendo as “normas técnicas” como obras intelectuais

protegidas pela Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, com direitos autorais:

2 Forgioni, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste – 5ª Edição – Revista dos Tribunais – São Paulo – 2012.

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XIII as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários,

bases de dados, normas técnicas e outras obras que, por sua seleção, organização ou

disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.

Não sendo públicas e considerando a competitividade como um fator

dinâmico, ou seja, relacionado ao padrão de concorrência vigente em cada mercado,

dentro do estudo da competitividade há que ser considerado, com a devida

importância, os fatores internos e externos, como ensina Oliveira3, dentre os fatores

que alteram a competitividade das empresas:

Fatores estruturais (referentes à indústria/complexo industrial): apresentam um

caráter setor-específico, ou seja, se relacionam com os padrões de concorrência

em cada ramo produtivo ou em grupos de setores similares. Dependem do

ambiente competitivo que a indústria está competindo, não só sob a análise das

características da demanda e da oferta, mas também, a influência das

instituições extra-mercado, públicas e não-públicas, que definem o regime de

incentivos e regulação da concorrência atual;

Há a possibilidade de normas técnicas serem manipuladas por grupos

detentores de poder econômico, no sentido de estabelecer “barreiras técnicas às

importações”, ferindo a livre concorrência, de aplicação imediata pela Lei nº 12.529,

de 30 de novembro de 2011, pelos motivos expostos, uma vez confundidos os

campos de incidência de diplomas legais, posto que a Lei nº 8.078, de 11 de setembro

de 1.990, passaria a ser empecilho à livre concorrência no mercado brasileiro.

Neste ínterim, o que se vem observando é que a elaboração de normas

técnicas, por delegação a comitês da indústria organizada vem se transformando em

verdadeiras barreiras técnicas à entrada de produtos importados no Brasil4, gerando

verdadeira afronta às normas legais antitrustes:

“Nessa linha, mesmo o estabelecimento ou a criação de padrões para o mercado

podem, em alguns casos, funcionar como aumento injustificado dos custos de

rivais, principalmente nas hipóteses de associações profissionais e

certificadores em que a entrada pode vir a se tornar essencial para a concorrência

efetiva no mercado” (grifei).

3 Oliveira, Thaís Regina Spanazzi – Estratégias Empresariais Comparadas – O Caso de Três Mineradoras Latino-Americanas –

Projeto de Mestrado – Universidade Federal de Uberlândia – Orientador: Germano Mendes de Paula – 2004. 4 Junior, Ivo Teixeira Gico - Cartel - Teoria Unificada da Colisão - Lex Editora - 2007.

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É neste sentido a brilhantemente lição tratada por Eizirik5 na Folha de

São Paulo sobre a Capture Theory (Teoria da Captura), onde diante da supremacia do

interesse público, o administrador – através de suas agências reguladoras – deve

evitar a aproximação com as empresas controladas, evitando, assim, a diminuição da

credibilidade do controle administrativo, face a possibilidade do setor econômico

regulado “capturar” o poder regulatório e assim agir com interesse próprio em

prejuízo à supremacia do interesse público:

“Embora a maioria dos assuntos regulados seja de interesse do grande público,

este não tem as mesmas condições de organizar-se que a indústria regulada. Os

custos para a mobilização de grandes e díspares setores da população são

reconhecidamente elevados. Assim, as empresas reguladas, dispondo de maiores

recursos e maior organização, tendem a ‘capturar’ as agências reguladoras”.

A jurisprudência, através do brilhante voto do desembargador Francisco

Cavalcanti do Tribunal Regional Federal da Quinta Região, demonstrou com

propriedade o prejuízo do interesse público diante da teoria da captura:

“Ocorre a captura do ente regulador, quando grandes grupos de interesses ou

empresas passam a influenciar as decisões e atuação do regulador, levando assim

a agência a atender mais aos interesses das empresas (de onde vieram seus

membros) do que os dos usuários do serviço, isto é, do que os interesses públicos.

A discricionariedade de atuação das agências reguladoras não pode ser admitida

com força a se converter em abuso de direito” (TRF5ª - Tribunal Regional Federal da 5ª

Região - Agravo Regimental em Suspensão de Liminar - AGRSL3581/01/PE – Processo nº

20050500016439201 – Relator; Desembargador Federal Francisco Cavalcanti - 27/07/2005).

É neste sentido o presente estudo que, diante de visão mais aprimorada

do direito econômico vislumbra-se a impossibilidade de normas técnicas virem a ser

consideradas de aplicação compulsória por ferir a impessoalidade e legalidade6 de

que trata o art. 37 da Constituição Federal de 1988, além de constituírem

verdadeiras barreiras técnicas com base na Capture Theory com ênfase na atuação

dos Comitês Brasileiros na formulação de normas restritivas de direito no âmbito da

ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas.

5 Eizirik, Nelson, 62, mestre em direito pela PUC-RJ, é advogado. Foi Diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM)

na Folha de São Paulo de 13/12/2012 A3 – Tendências e Debates. 6 Constituição Federal de 1988: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à

igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer

alguma coisa senão em virtude de lei;

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Como não poderia deixar de ser, a questão remete à moral administrativa

de que trata também o artigo 37 da Constituição Federal7 que, diante do Princípio da

Legalidade, impede que o particular se aproprie da res publica (impessoalidade), ou,

do ponto de vista do direito constitucional comparado, ensina Trevijano8:

“La primera de las aportaciones doctrinales a la problemática de la naturaleza

jurídica de las convenciones constitucionales, es como no podría ser de otro

modo, la de Dicey. Partirá Dicey de la afirmación de que las normas

convencionales a diferencia de las leyes constitucionales son la expresión de un

conjunto de prácticas y máximas que representan un cuerpo que podríamos

denominar de moral constitucional o política”.

A doutrina adotou a expressão “captura” por indicar a possibilidade das

agências reguladoras se transformarem em via de proteção para os diversos setores da

economia regulados. A capture theory se configura quando a agência perde a

condição de autoridade administrativa com ênfase no interesse público e, passa a

“advogar” na legitimação de interesses privados dos setores regulados.

O Sherman Act, lei antitruste americana se debruçou sobre a questão

quando se defrontou com o problema no sistema regulatório norte-americano e

percebeu o desvirtuamento das finalidades da regulação, diante da ampla liberdade

que havia do setor regulado, diante das autoridades reguladoras que dispunham de

ampla autonomia, não encontrando maiores dificuldades para implantar um

mecanismo de proteção do setor regulado.

A teoria da captura é o fenômeno inerente às agências reguladoras, mas,

pode ser aplicada a qualquer setor que detenha de alguma forma poder regulador,

mesmo fora da administração pública como ocorre com a ABNT - Associação

Brasileira de Normas Técnicas que detém o monopólio da função de normatizar o

modo como devem ser produzidos diversos produtos da economia nacional e, via de

regra, importados produtos similares, concentração de competência autônoma que

representa grande problemática relativa ao risco da captura.

7 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e

dos Municípios obedecerá aos princípios de Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência e, também,

ao seguinte: (As iniciais dos interesses a serem protegidos indicam com propriedade a palavra: LIMPE). 8 Trevijano, Pedro José González - Convenciones Constitucionales y Reglas de Corrección Constitucional - Facultad de

Derecho - Universidad Complutense - Madri - 1988.