O Problema Humaitá na Arqueologia Sul Brasileira

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA VOLUME 23 _ NUMERO 2 _ DEZEMBRO 2010

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Arqueologia

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REVISTA DE ARQUEOLOGIAVOLUME 23 _ NUMERO 2 _ DEZEMBRO 2010

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ARTIGOS

RESEnhAS

TESES E DISSERTAçõES

nOTAS

Editorial

Using 14C dates to track early human dispersalsJames Steele

Cazadores-Recolectores Tempranos, Supervivencia De Fauna Del Pleistoceno (Equus Sp. Y Glyptodon Sp.) Y Tecnología Lítica Durante El Holoceno Temprano En La Frontera Uruguay-BrasilRafael Suárez e Guaciara M. Santos

Indústrias Líticas em Contexto: O Problema Humaitá na Arqueologia Sul BrasileiraAdriana Schmidt Dias e Sirlei Elaine Hoeltz

Análise Intra-Sítio Do Sítio Justino, Baixo São Francisco –As Fases OcupacionaisMarcelo Fagundes

Novas perspectivas sobre a arquitetura ritual doplanalto meridional brasileiro: pesquisas recentes em Pinhal daSerra, RSJonas Gregorio de Souza e Silvia Moehlecke Copé

Levantamento arqueológico na Aldeia Lalima, Miranda/MS: uma contribuição ao estudo da trajetória histórica da ocupação indígena regionalEduardo Bespalez

Da força repressora à coesão sutil: a arqueologia da vila operáriaCláudia Regina Plens

Patrimônio Arqueológico de Caxias do SulFrancisco Silva Noelli

A arte rupestre de Jequitaí/MG entre práticas gráficas padronizadas e suas manifestações locais: Interseções Estilísticas no Sertão MineiroRogério Tobias Junior

Holocene hunter-gatherer plant use and foraging choice: a test from Minas Gerais, BrazilMyrtle Shock

Diálogo com Francisco Noelli a respeito da resenha para o livro “Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul”Rafael Corteletti

Normas Editoriais

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Fotos Capa: Rafael Suarez

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REVISTA DE ARQUEOLOGIAVOLUME 23 _ NUMERO 2 _ dEzEMbRO 2010 _ ISSN 0102-0420

Diretoria da SABSociedade de Arqueologia BrasileiraPresidênciaEduardo G. Neves (Universidade de São Paulo)Vice-PresidênciaSilvia M. Copé (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)SecretariaLuís Cláudio Symanski (Universidade Federal do Paraná)Sibeli Aparecida Viana (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)TesourariaLoredana Ribeiro (Universidade Federal de Pelotas)Jacionira Coelho Silva (Universidade Federal do Piauí)Comissão EditorialGabriela Martin D’Ávila (Universidade Federal de Pernambuco)Arno A. Kern (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul)Lucas M. Reis Bueno (Universidade de São Paulo)Comissão de SeleçãoOndemar Dias Jr. (Instituto de Arqueologia Brasileira)Maria Lúcia F. Pardi (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)Vera Lúcia C. Guapindaia (Museu Paraense Emilio Goeldi)Conselho FiscalPedro Ignácio Schmitz (Instituto Anchietano de Pesquisas)Fernanda B. Tochetto (Prefeitura Municipal de Porto Alegre)Cláudia Alves de Oliveira (Universidade Federal de Pernambuco)

Museu de Arqueologia e EtnologiaUniversidade de São PauloAv. Prof. Almeida Prado, 1466São Paulo - SP - Brasil05508-900

Comissão Editorial: Gabriela Martin, Arno Kern, Lucas BuenoEditor Responsável: Lucas BuenoGestão 2009-2011

Conselho EditorialAbdulay CâmaraAdriana S. DiasAstolfo Gomes de Mello AraujoAlberico Nogueira de QueirozAndré P. ProusAndré O. RosaClaudia Rodrigues Ferreira de CarvalhoDenise P. SchaanEduardo G. NevesFabíola A. SilvaGilson RambelliGislene MonticelliGustavo PolitisJoão Pacheco de Oliveira FilhoJosé Lopez MazzLoredana RibeiroLuiz Cláudio SymanskiLuiz OssterbeekMarco Aurélio Nadal De MasiMichael HeckenbergerSheila Mendonça de SouzaTania Andrade LimaVeronica Wesolovski

A Revista de Arqueologia, fundada em 1983 pela Profª Maria da Conceição M. C. Beltrão e editada originalmente pelo Museu Paraense Emilio Goeldi/CNPq, é uma publicação oficial e semestral da Sociedade de Arqueologia Brasilieira - SAB.

Revista de Arqueologia / Sociedade de Arqueologia Brasileira, 2010. São Paulo: SAB, 2010, V. 23, M.1

Semestral a partir de 2008: 2010.ISSN: 0102-0420

1. Ciências Humanas. 2. Arqueologia. 3. Antropologia.4. Sociedade de Arqueologia Brasileira

Dados Internacionais de Catalogação

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SUMÁRIO

ARTIGOS

RESEnhAS

TESES E DISSERTAçõES

nOTAS

Editorial

Using 14C dates to track early human dispersalsJames Steele

Cazadores-Recolectores Tempranos, Supervivencia De Fauna Del Pleistoceno (Equus Sp. Y Glyptodon Sp.) Y Tecnología Lítica Durante El Holoceno Temprano En La Frontera Uruguay-BrasilRafael Suárez e Guaciara M. Santos

Indústrias Líticas em Contexto: O Problema Humaitá na Arqueologia Sul BrasileiraAdriana Schmidt Dias e Sirlei Elaine Hoeltz

Análise Intra-Sítio Do Sítio Justino, Baixo São Francisco –As Fases OcupacionaisMarcelo Fagundes

Novas perspectivas sobre a arquitetura ritual doplanalto meridional brasileiro: pesquisas recentes em Pinhal daSerra, RSJonas Gregorio de Souza e Silvia Moehlecke Copé

Levantamento arqueológico na Aldeia Lalima, Miranda/MS: uma contribuição ao estudo da trajetória histórica da ocupação indígena regionalEduardo Bespalez

Da força repressora à coesão sutil: a arqueologia da vila operáriaCláudia Regina Plens

Patrimônio Arqueológico de Caxias do SulFrancisco Silva Noelli

A arte rupestre de Jequitaí/MG entre práticas gráficas padronizadas e suas manifestações locais: Interseções Estilísticas no Sertão MineiroRogério Tobias Junior

Holocene hunter-gatherer plant use and foraging choice: a test from Minas Gerais, BrazilMyrtle Shock

Diálogo com Francisco Noelli a respeito da resenha para o livro “Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul”Rafael Corteletti

Normas Editoriais

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Editor Responsável: Lucas Bueno

EDITORIAL

Apresentamos neste número sete artigos, sendo cinco deles escritos por pesquisadores nacionais e dois internacionais. Os temas são variados: questões teórico-metodológi-cas relativas ao estudo da dispersão e diver-sificação cultural de grupos humanos a par-tir de datações radiocarbônicas provenientes de sítios arqueológicos, ocupação antiga da América e relação entre homem e mamífe-ros de grande porte, variabilidade tecnológi-ca das indústrias líticas do sul do Brasil e seus significados, tecnologia lítica e análise intra-sítio, arquitetura ritual e construção do espaço, arqueologia em área indígena e ar-queologia numa vila operária do século XIX.

O artigo de James Steele, do Institute of Archaeology/University College London aborda uma questão crucial para a discussão sobre dispersão e diversificação cultural de grupos humanos em diferentes períodos e regiões. Focando a questão da utilização das datações radiocarbônicas como uma ferra-menta para estimar direção e velocidade de deslocamento, James Steele apresenta de forma suscinta as principais abordagens es-tatísticas e os problemas enfrentados com relação à composição da amostra. Este é um ponto fundamental do artigo, pois sem uma amostra confiável e com boa resolução a di-mensão e significado das lacunas pode se tornar um obstáculo para discussão dessas questões. Esse é comumente o cerne das dis-cussões sobre ocupação da América, por exemplo, uma vez que muitas das datas anti-gas apresentam problemas com relação aos critérios de legitimidade definidos e aceitos por grande parte da comunidade acadêmica. A fim de esclarecer este ponto o autor men-ciona um estudo reallizado em colaboração

com Gustavo Politis, onde ambos procuram re-datar sítios potencialmente antigos no ex-tremo sul do continente.

O artigo de Rafael Suarez traz informa-ções inéditas sobre ocupação antiga no norte do Uruguai, numa região de fronteira com o Brasil. Além de apresentar datas ainda inédi-tas, há uma discussão sobre a relação entre ocupação humana e fauna Pleistocênica de grande porte, com indicações da presença de Equus sp e Glyptodon sp até cerca de 9.500 anos AP na região entre o rio Uruguai e Qua-raí. No entanto, o autor ressalta que com base nas evidências coletadas a subsistência des-ses grupos humanos estaria baseada na caça de mamíferos de pequeno e médio porte, aves e peixes, com apropriação dos mega-mamí-feros como complemento, não de forma fre-quente. A tecnologia lítica associada a estas ocupações envolve a produção de artefatos bifaciais, dentre os quais pontas de projétil . A discussão apresentada pelo autor centra-se nos dados do sítio Pay Paso 1, mas em função das datas e dados apresentados certamente tem repercussão para discussões regional-mente mais abrangentes, envolvendo todo o norte do Uruguai e sul do Brasil, além de con-tribuir para discussões referentes às estraté-gias adaptativas dos primeiros grupos huma-nos a ocuparem a América do Sul na transição Pleistoceno/Holoceno.

Continuando na região sul do Brasil, te-mos o artigo de Adriana Dias e Sirlei Hoeltz que, a partir de uma detalhada revisão bi-bliográfica, discute a variabilidade tecnlógi-ca das Indústrias Líticas do sul do Brasil, principalmente no que diz respeito à Tradi-ção Humaitá. A partir de uma abordagem sistêmica a respeito da variabilidade tecno-

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lógica, as autoras diferenciam entre o que seria o Contexto do Problema e o Problema em Contexto. Neste último segmento, desta-cam três aspecto principais da discussão: o Problema Regional em Contexto, O Proble-ma Cronológico em Contexto e o Problema Tecnológico em Contexto. A junção desses três aspectos, segundo as autoras, permite propor a hipótese de que o que se convencio-nou definir como Tradição Humaitá repre-sentaria conjuntos distintos associados a diferentes estratégias de ocupação relacio-nadas aos grupos humanos que ocuparam a região sul do País ao longo do Holoceno.

No texto de Marcelo Fagundes a temática da variabilidade tecnológica das indústrias líti-cas continua a desempenhar um papel impor-tante, mas está voltada para discutir o processo de ocupação intra-sítio ao longo do Holoceno. O sítio Justino, localizado na região do Baixo São francisco foi intensamente escavado, for-necendo uma rica e diversificada amostra de vestígios materiais. Com datas entre o Holoce-no Inicial, Médio e Recente este sítio é uma referência importante para discussão relacio-nada ao processo de ocupação do Nordetse e aos processos de mudança envolvidos na tran-sição entre economias baseadas na caça e co-leta para aquelas mais centradas em atividades de hortocultura. A análise da composição e distribuição interna dos vestígios materiais identificados neste sítio embasa um modelo a respeito do processo de ocupação da paisagem circundante, conferindo diferentes funções para o sítio Justino ao longo do Holoceno.

Mudando de temática, temos o artigo de Jo-nas de Souza e Silvia Copé que discutem arqui-tetura ritual associada às ocupações Jê do sul do Brasil. A partir de escavações em montícu-los e aterros anelares os autores fazem uma distinção entre pequenos aterros cercando montículos funerários e grandes aterros cer-cando uma praça interna. Análises da compo-sição dos conjuntos de vestígios e da estratigra-

fia dessas estruturas levam os autores a propor não só funções, quanto significados distintos para esses dois conjuntos de estruturas que es-tariam relacionados a agrupamentos sociais de escalas distintas. Enquanto os primeiros se-riam cemitérios de grupos ocupando casas se-mi-subterrâneas vizinhas, os segundos esta-riam relacionados a agregação de diversas comunidades dispersas.

Já o artigo de Eduardo Bespalez enfoca o processo de formação da terra Indígena Lali-ma, confrontando dados etnográficos, etnohis-tóricos e arqueológicos. A partir desse conjunto de dados o autor sugere que a TI Lallima deve ser compreendida como um palimpsesto da história indígena regional, uma vez que oferece evidências para ocupação dos diversos grupos que atualmente ocupam essa TI em diferentes períodos de sua trajetória histórica.

No último artigo deste número, Cláudia Plens discute a relação entre distintas classes sociais entre fins do século XIX e início do século XX, enfatizando a situação da classe trabalhadora em um contexto histórico logo após a abolição da escravidão. O trabalho tem como foco a vila operária de Paranapia-caba, obra elaborada e executada pela com-panhia inglesa The São Paulo Railway Co. Ltd.. A partir da escavação das residências da vila operária construída em 1865, a autora discute a relação entre cultura material e classe social nesse contexto histórico de tran-sição entre escravidão e trabalho assalariado.

Temos ainda neste número a resenha do livro “Patrimonio Arqueológico de Caxias do Sul”, apresentada por Francisco Noelli e, na se-ção Notas, um comentário de Rafael Corteletti, autor do livro, sobre a resenha apresentada.

Espero que aproveitem a leitura e partici-pem da Revista enviando seus trabalhos, re-senhas, resumos e notas.

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Using 14C dates to traCk

early hUman dispersals

James SteeleAHRC Centre for the Evolution of Cultural Diversity, Institute of Archaeology,

University College London, 31-34 Gordon Square, London WC1H 0PY, [email protected]

ARTIGO

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AbStRACtThis paper reviews some methodological

problems in the use of radiocarbon dates to reconstruct episodes of archaeologically-re-corded human dispersal. Much effort has been expended estimating speeds and direc-tions of spatial population expansion in such cases. An appropriate application for these techniques is the first peopling of the Ameri-cas. We discuss regression techniques for es-timating front speeds, and consider some limitations due to incomplete archaeological sampling and imprecise radiocarbon dating. We also summarise results from a recent pro-gramme of dating of previously-excavated late Pleistocene sites in Argentina and Chile.

KEY WoRDS Radiocarbon, calibration, hu-man dispersals, Paleoindian

RESUmoEste artigo apresenta uma revisão de algu-

mas questões metodológicas no uso de datas radiocarbônicas para reconstrução de episó-dios de dispersão humana registrados arqueo-logicamente. Estudos sobre este tema têm in-vestido em estimar ritmos e direções da expansão espacial de populações. Uma aplicação apro-priada para estas técnicas é o povoamento inicial das Américas. Discutimos neste artigo técnicas de regressão para estimar ritmos de frentes de deslocamento e salientamos algu-mas limitações decorrentes de uma amostra-gem arqueologica incompleta e de datações radiocarbônicas imprecisas. Apresentamos também resumidamente resultados de um programa recente de datação de sítios previa-mente escavados na Argentina e no Chile.

PALAvRAS-CHAvE Radiocarbônico, cali-bragem, dispersão humana, paleoíndios

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Us ing 14C dates to t rack ea r ly human d i spe rsa ls James Steele

IntRoDUCtIonThis paper reviews some methodologi-

cal problems in the use of radiocarbon dates to reconstruct episodes of archaeo-logically-recorded spatial population ex-pansion. It draws on material published in previous papers by the author and his col-laborators and brings that work together for the first time (for the previous publica-tions see Glass, Steele and Wheatley 1999; Hazelwood and Steele 2004; Steele 2009; Steele and Politis 2009; and Steele 2010). It is hoped that this review may be useful to archaeologists working on population dis-persal problems in South American archae-ological contexts. For this overview the ex-plicit mathematical and statistical content has been minimised and discussion has been kept to a conceptual level, but inter-ested readers can find more technical de-tails in the papers just cited.

In basic demographic terms, modelling large-scale human dispersals requires us to consider the rate at which the population increases locally, and the rate at which people move across the landscape. In popu-lation ecology, the simplest model of such processes is a reaction-diffusion system defined by Fisher (1937) and Kolmogoroff, Petrovsky, and Piskunov (1937), and applied to population expansion by Skellam (1951). This system predicts a constant spreading rate for an expanding population in a ho-mogeneous habitat; this rate will vary as a function of the average reproductive rate and the average rate of mobility of the population. In recent years an enor-mous amount of work has been done by biologists using this system to model the spread of invasive species, and numerous modifications and extensions have been proposed to improve the match between the modelled dynamics and those observed in the real world (see recent reviews for

biologists by Hastings et al. 2005; for inter-disciplinary physicists by Fort and Pujol 2008; and for archaeologists by Steele 2009).

Much effort has been expended estimat-ing speeds of spatial population expansion for archaeologically-documented dispersal episodes, initially to confirm predictions of front speeds in the Fisher-Skellam model from independently-estimated population growth and migration rates, and more re-cently to assess how far the classic Fisher-Skellam model falls short of reality in its treatment of human mobility patterns in a dispersal phase. In ecology, simulations have shown that regressing distance to the point of origin of the invasion as a function of time of first detection is the most robust way of estimating invasion speeds, particularly where there is only a small sample of obser-vations (Gilbert and Liebhold 2010). Nu-merous archaeologists have suggested that radiocarbon dating can be used for this pur-pose, yielding estimates of the timing of pas-sage of the expanding population front at different spatial locations. For the spread of farming in Europe, Ammerman and Cavalli-Sforza (1971, 1984) fitted a linear regression to dates and distances from Jericho, finding a mean front speed of about 1 km yr-1. Sub-sequently Pinhasi et al. (2005) fitted a linear regression to dates from a set of 735 Neo-lithic sites in Europe and the Near East us-ing various origins and two possible dis-tance measures, and found an average front speed in the range 0.6–1.3 km yr-1. For earlier episodes of hunter-gatherer dispersal, Fort et al. (2004) estimated by regression a mean speed of late glacial recolonization of north-ern Europe of 0.8 yr-1 (0.4–1.1 km yr-1 at the 95% confidence interval).

An appropriate case study for these tech-niques is the first peopling of the Americas. For the last 50 years it has been the preva-lent view that the North American Clovis

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culture represents the earliest successful colonization phase, in which hunter-gath-erers invaded the continent south of the ice sheets from a Beringian source population. However radiocarbon dates have subse-quently constrained the Clovis phase to an increasingly short interval, most recently to between ~11,050 14C yr bp and ~10,800 14C yr bp (Waters and Stafford 2007). Mean-while dates from sites in South American, including the southernmost part of that con-tinent, have been confirmed for the same time range (e.g. Steele and Politis 2009). This has led some scholars to propose a colonization model including multiple dis-persals, perhaps synchronous but geographi-cally separated (Steele and Politis 2009; for congruent arguments from human genetics see Hellenthal, Auton and Falush 2008 and Perego et al. 2009). Accurate reconstruction of the passage times of the expanding popu-lation front is a pre-requisite for resolving such debates and exploring the underlying demographic processes.

REGRESSIon APPRoACHES

A basic requirement of regression analy-sis for determining population front speed is the ability to estimate timing of cultural events at known spatial locations using ra-diocarbon dates. Obtaining archaeological estimates for first arrival times at different locations remains a very imprecise science, because of sampling biases and of uncertain-ties (e.g. of stratigraphy) in the documented archaeological record. However, let us as-sume that we have a set of dated events that we wish to analyse on the basis that they rep-resent a set of first arrival times. We then need to assign each event a point value (a single calendar age) for our regression anal-ysis. It was initially the practice to use the modal value of an uncalibrated radiocarbon measurement as the point value and to con-

trol for variation in precision by excluding any dates that had standard errors of mea-surement greater than 200 radiocarbon years (e.g. Ammerman and Cavalli-Sforza 1971, 1984). Subsequently, partly as an outcome of the extension of consensus calibration curves into the late Pleistocene, it has also become normal to check the front speeds estimated in this way against front speeds estimated using some point approximation of the most likely or mid-range value of the calibrated probability distribution for that radiocarbon measurement (e.g. Pinhasi et al. 2005; Ham-ilton and Buchanan 2007).

Most recently, it has become possible to estimate relationships between dates and distances from an assumed origin using as the date variable a set of single calendar year values for each radiocarbon-dated event, in each case drawn at random from its calibrated probability distribution (Steele 2010). By repeating this regression analysis many times, each time with a fresh draw of a single calendar year for each of the events in the dataset, we can estimate a confidence interval for the regression model parame-ters (slope, intercept, p-value, Pearson’s and Spearman’s correlation coefficients) that takes account of the known uncertain-ty (calibrated date range) in the date of each event. One method of drawing single values from the calibrated distribution is the MCMC routine in the most recent online beta-ver-sion of OxCal (Version 4.1b3; Bronk Ramsey 1995, 2001), which will take a snapshot ev-ery (user-specified) n iterations of all of the parameters of the model obtained by the MCMC analysis, and which will save a us-er-specified number of such snapshots to a file for subsequent analysis (cf. Steele 2010).

The speed of propagation of an expanding front is then estimated in archaeology by fitting a regression line to a set of estimated dates and of values for some measure of the dated sites’

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relative position in space. Most often this is done by bivariate regression using distance as measured from a hypothesised origin point. The appropriate regression model to use when estimating this functional relationship is one which takes account of error and uncertainty in both variables. Reduced major axis regres-sion (RMA), whose slope is the geometric mean of the two ordinary least-squares slopes, is preferable to the principal or major axis re-gression technique used by Ammerman and Cavalli-Sforza (1971, 1984) because RMA is scale-invariant. Simulations (Babu and Feigel-son 1992) have shown that RMA performs well in recovering the true functional relationship between two error-prone variables: the angu-lar bisector of the two ordinary least-squares regression slopes (obtained by regressing x on y and y on x) performed slightly better but given the coarse order of approximation that archaeologists require when interpreting front speeds, and given that the latter method is less widely implemented in statistics and spread-sheet packages, I think that it is satisfactory to use the reduced major axis technique. To il-lustrate the relevance of this choice, Cantrell (2008) has used simulations to assess the abil-ity of ordinary least squares (OLS) regression to estimate a functional relationship between two variables where each contain error, and where the underlying relationship is unity (a slope of value 1): he found that OLS underesti-mated the true slope, with a systematic frac-tional error of underestimation of the order [1-r], where r is Pearson’s correlation coeffi-cient. RMA can easily be implemented in a spreadsheet or other computer program either by inputting the relevant formula for the slope and intercept directly, or by using for example an Excel add-in such as Sawada’s (1999) which returns the full basic set of regression statistics (slope and SD, intercept and SD, r2).

It is perhaps useful to consider here why we might prefer methods of line-fitting that

take account of error in both variables. The presence of sampling error and measure-ment uncertainty in a sample of radiocar-bon dates is obvious to an archaeologist, but the presence of error and uncertainty in the estimation of distance between two locations should be equally obvious to any archaeologist who stops to consider the ef-fects on large-scale dispersal patterns of terrain relief, of soil type and vegetation cover, and of rivers and large bodies of wa-ter. If we try to estimate front propagation speeds using great circle distances from a point origin, then clearly the distance mea-surements will be error-prone and a line-fitting technique such as reduced major axis should therefore be used. In practice it is commonplace for archaeologists to esti-mate front speeds as within the range indi-cated by the two OLS slopes (date on distance, and distance on date) and that is perfectly ac-ceptable provided that this range is of the same order of approximation as the reac-tion-diffusion model’s predictions. Howev-er, this approach yields an excessively wide range of estimates for the values of the true underlying functional relation.

Finally, in some cases, it may make sense to cluster sites into bins of equal distance from the assumed origin of the dispersal, and only take the age of the oldest early site (or the av-erage of all their ages) for each such bin. This is because if a colonizing population expands at a constant rate, the area colonized will tend to increase as the square of time, so that the number of sites will be correlated with time and with distances from the origin. This can bias the regression results.

We should note at this point that calibra-tion of late Pleistocene radiocarbon dates is still an inexact science. In particular, and compared with INTCAL04, the latest con-sensus calibration curve (INTCAL09, Re-imer et al. 2009) substantially changes the

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reached its greatest density on the settled landscape at some distance from the en-try point, we may find it very difficult in-deed to recognize the direction of spread or the location of the entry point using archae-ological data.

Let us consider the process of first detec-tion of an archaeological marker. The Fish-er-Skellam model predicts a travelling pop-ulation density wave that is at carrying capacity behind the front and decreases to an infinitesimally small value ahead of the population front. At what population densi-ty would we expect to detect the arrival of the population? If the population is highly mobile and has a relatively slow reproduc-tive rate, then it may reach local densities sufficient for first archaeological observa-tion at similar times at very different dis-tances from the entry point. The fact that radiocarbon dates have an intrinsic uncer-tainty about the precise date of any event only adds to the problem. We have explored this analytically elsewhere (Hazelwood and Steele 2004). Other things being equal, pop-ulation front profiles (waves of advance) will be broad if the population was highly mobile, and narrow if the population was more restricted in mobility. If mobility is held constant, then the front will travel fast-er if the population reproduces rapidly. In-tuitively, we might expect that narrow and slow waves will be the best for estimating the rate of population advance. By contrast, with broad and fast waves it might be ex-pected to be more difficult to determine whether we are detecting pioneer or estab-lished phase occupation. Our intuition is usually correct in archaeological situations, because the uncertainty in radiocarbon de-terminations makes fast waves hard to track accurately using that method.

An additional complication arises where the population is expanding into regions

picture for dates deriving from approximate-ly the onset of the Younger Dryas, and uses only marine data for periods before 12,550 cal BP (for the implications for dispersal chronology in North America, see e.g. Steele 2010). Meanwhile the Huon Pine (HP-40) tree-ring sequence now anchors the previ-ously floating Late Glacial Pine (LGP) 14C sequence (Hua et al. 2009), and supports the reduction in calendar age of radiocarbon de-terminations (12900-12550 cal BP) obtained with INTCAL09 as compared with IN-TCAL04 (Reimer et al. 2009). However, a plot of the anchored LGP tree-ring 14C sequence (Hua et al. 2009: 2986) also suggests that a Pacific coral-based calibration may overesti-mate both that reduction in age at the young-er end of the range (12700-12550 cal BP), and the associated uncertainty due to trends in atmospheric 14C concentration. Future revi-sions of the calibration curve incorporating the anchored LGP tree ring 14C series are therefore likely to change the picture again. Thus, even if we have a good statistical tech-nique that enables us to make full use of the probabilistic nature of radiocarbon dates, we must remember that for such periods our conclusions remain dependent on the accu-racy of the calibration curves themselves.

PRobLEmS In RECovERInG A CoHEREnt SPAtIAL GRADIEnt In ARRIvAL tImES WItH SPARSE AnD ImPRECISELY-DAtED SAmPLES

Although careful use of regression tech-niques can help us to reliably detect spatial patterns in a sample of radiocarbon-dated events, failure to detect such structure is not always the fault of our statistical technique. Nor need such a failure mean that no dis-persal took place at the time when we had expected to see evidence for one. In fact, for many plausible scenarios where the pop-ulation spread quickly and/or where it

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that are richer in resources, and therefore able to support higher population densities (higher carrying capacities). In such cases, if we assume that the quantity of artefacts that survives is broadly in proportion to the size of the local population at any location, then initially the archaeological record will contain more material near the entry point; but after some time the greatest density of artefacts will be in the locations which sup-port higher population densities, and which may be considerable distance from the en-try point. If we have no typological basis for differentiating artefacts of the initial spread-ing phase from those of the established phase, then we could easily be tricked into think-ing that the population had existed longest at locations where we find the greatest quan-tity of archaeological material. Indeed, if the population was at very low densities in lo-cations close to the entry point during the spreading phase, then we may fail to notice them at all unless we carry out very exten-sive (and also intensive) archaeological sur-veys and excavations. Again, we have ex-plored this problem analytically elsewhere (Hazelwood and Steele 2004).

tHE ConStAnt nEED foR DAtA REfInEmEnt

In parallel with the development of statisti-cal techniques for tracking dispersal trajecto-ries, we must also constantly attempt to im-prove the quality and completeness of our archaeological samples. In our own previous studies, we have tried to reconstruct the pattern of late Pleistocene population expansion in the Americas using the above and related GIS-based techniques (e.g. Glass, Steele and Wheat-ley 1999, Steele 2010), but have been limited by the small size of the sample of dated sites, and by the lack of widespread consensus on which sites (and which radiocarbon dates) can be treated as a reliable record of early human oc-

cupation. Before we can analyse evidence for early human dispersal trajectories in space and time, we have to obtain a large enough sample of securely-dated observations of early human occupation. This remains a work in progress.

The obvious ideal requirements for diag-nosing and dating past human activity at an archaeological location are that there should be undeniable traces of humans (artefacts or skeletons) in undisturbed geological deposits, with indisputable dates. A more detailed re-cent specification stipulates the following standards of validity for early Palaeoindian sites: there should be a consistent series of accurate and statistically precise radiometric dates, based on taxonomically-identified sin-gle objects of carefully cleaned cultural car-bon (which will be considered especially reliable if fruit/seed remains or purified ami-no acid fraction of bones/teeth of prey ani-mals), found in primary stratigraphic asso-ciation with artefacts, and with the results documented by peer-review publication (Roosevelt et al 2002). Some scholars would further modify this to exclude samples with errors of more than ± 1% of the mean age, in radiocarbon years.

Our specific objectives in a recent archae-ological dating project (Steele and Politis 2009) were therefore to reassess the age of the earliest cultural phases of a set of early archaeological sites in southern South Amer-ica (Argentina and Chile), applying such criteria to the extent that this was possible with already-excavated material. In each case, pre-existing radiocarbon dates sug-gested an age contemporary with or earlier than the North American Early Palaeoindi-an record. We wanted, in collaboration with these sites’ investigators, to submit for AMS 14C dating additional previously-excavated specimens from the same stratigraphic units that had previously yielded individual dates

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suggesting a late Pleistocene human pres-ence in the southern cone. Our preference was for single pieces of hearth charcoal and for clearly cut-marked animal bones. Where such specimens were not available we also accepted burnt animal bone, and animal bone which was helically fractured by dy-namic impact (although we were aware that such fracture patterns are not necessarily an-thropogenic [Haynes 1983, 1988] and that the argument for human agency must there-fore be made from other aspects of the archae-ological context). Finally, where no modified bone was available, we accepted specimens of unmodified animal bone; but we were aware that dates on such bone would be less reliable indicators of the age of human activity, be-cause other taphonomic agents could have caused those bones to be present in the de-posits. To control for potential error in in-terpreting 14C measurements on bone and charcoal specimens (for example due to the burning of old wood, or to the diffi-culty of eliminating diagenetic contami-nants from bone samples), a combination of both materials was selected where possible.

The results were very interesting. With one possible exception, we did not obtain new results to confirm earlier observations of pre-Clovis-age cultural activity at any of the sites considered in this study. The exception, Ar-royo Seco 2, is considered in detail elsewhere (Politis and Gutierrez, in press). In the light of the results of this study, which appear to have resolved many of the dating issues surround-ing the Arroyo Seco 2 Pleistocene component, debate must now focus on the taphonomic arguments for humans as the agents of bone accumulation and bone modification. Leav-ing Arroyo Seco 2 aside, our results on the specimens which were the most preferred in-dicators of cultural events (hearth charcoal and cut-marked bone) do however confirm that people were in the southern cone of South

America at or soon after 11,000 BP. This ob-servation is corroborated by the new results obtained from this study for at least three of the six sites in our own sample: Cerro Tres Tetas (11,087±48 BP and 10,886±48 BP, hearth charcoal, both averaged from two replicate determinations); Cueva de Lago Sofia 1 (10,710±70 BP [OxA-8635], bone tool); Piedra Museo (10,675±55 BP [OxA-15870], cut-marked bone). In addition, Tres Arroyos has two secure hearth charcoal dates (10,600±90 BP [Beta 113171] 10,580±50 BP [Beta 113171]) obtained independently of our study but which are consistent with the results we obtained. Finally, independently-obtained hearth charcoal dates from two other sites in our sample (Cueva de Lago Sofia 1, 11,570±60 BP [PITT-0684]; Piedra Museo, 11,000±65 BP [AA-27950]) suggest somewhat earlier dates for first occupation which our own observa-tions did not directly confirm, but which re-main plausible in principle in terms of strati-graphic context (and which should now be revisited by additional determinations on charcoal from the same features).

Similar evidence to that obtained in the study by Steele and Politis (2009) has been reported from other sites in the southern cone of South America. These include - in the Humid Pampas sub region (see refer-ences in Steele and Politis 2009) - Cerro La China 1 (10,706±40 BP, average of five char-coal dates), Cerro La China 2 (with charcoal dates of 10,560±75 BP and 11,150±130 BP), Cerro La China 3 (with a single charcoal date of 10,610±180 BP), and Cerro El Sombrero (with four charcoal dates in the range 10,270±85 BP to 10,725±90 BP). In Uruguay, the site of Urupez 2 has two charcoal dates (10,690±60 BP and 11,690±80 BP; Meneghin 2004, 2006). In southern Patagonia an addi-tional key site is Cueva Casa del Minero (10,983±39 BP, average of two charcoal dates; Paunero 2003). Cueva del Medio

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Us ing 14C dates to t rack ea r ly human d i spe rsa ls James Steele

has four charcoal dates in the range 10,930±230 to 9,595±115 (Nami and Makamura 1995). Finally, we also mention here two sites from lower latitudes in South America which have multiple 14C measurements that appear to be quite consistent and well-controlled, and are of similar age: in the semi-arid Andean Pacific region of Chile, a layer at Quebrada Santa Julia has recently been dated to 11,024±47 BP (average of two charcoal and one wood samples; Jackson et al. 2007); and in addition, the Initial A stratum at Caverna da Pedra Pintada in Brazilian Amazonia has a date for its basal cultural layer of 11,077±106 BP (average of four burned palm seed dates; Roosevelt et al. 2002). However, a full evalu-ation of the early settlement chronology in lower latitudes of South America (and in countries such as Brazil) was outside the scope of our own study.

ConCLUDInG REmARKSThis paper has reviewed some robust

statistical techniques for estimating the rate of expansion of a population front, but has also noted the limitations of an incomplete archaeological sample and im-precise radiocarbon dates. We have also summarised the implications of a recent study of previously-excavated sites in Ar-

gentina and Chile, where the chronology of the earliest settlement phases was re-vised in the light of new dates. Early hu-man dispersals can indeed be reconstruct-ed reliably by these means, and once we have a reliable picture of the chronology of first occupation at a sufficient sample of spatial locations, we can also begin to reconstruct the demographic and cultur-al dynamics of this expansion process. This kind of work is a major scientific undertaking. Modern genetics has revo-lutionised our understanding of modern human origins and of the timing of hu-man dispersals out of Africa, and has contributed to a new understanding of our species’ biological identity. Archaeol-ogy has a fundamental role to play, not only in providing an independent chronol-ogy to calibrate the geneticists’ models, but also in reconstructing the origins of hu-man cultural diversity. The potential sci-entific rewards of large-scale collaboration and data pooling, and of the establishment and application of agreed standards for data screening, will justify the hard work which such integration must inevitably involve when working with models of processes on a continental scale.

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CaZadores-reColeCtores tempranos,

sUperViVenCiade FaUna del pleistoCeno

(equus sp. y glyptodon sp.)y teCnologÍa

lÍtiCa dUranteel holoCeno temprano

en la FronteraUrUgUay-Brasil

Rafael Suárez1 y Guaciara m. Santos21 facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación, Universidad de la República

(montevideo) y museo de Arqueología y Ciencias naturales (Salto). Coronel Raíz 1107. montevideo, Uruguay. [email protected]

2 Earth System Science Dept, University of California Irvine, b321 Croul Hall, Irvine, CA 92697-3100 USA.

ARTIGO

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AbStRACtOn this paper we show records of Pleis-

tocene fauna from the archaeological site of PayPaso 1, located near of the Quarai River. On this site we recovered two extinct spe-cies, Equus sp. (ancient horse) e Glyptodon

sp. (giant armadillo), direct associated with lithic artifacts. Our results indicate that these extinct mammals lived in the begin-ning of the Holocene (9,600 – 9,100 years 14C BP), based on nine 14C age results ob-tained by AMS (Accelerator Mass Spectrom-etry) measurements. In this work, these re-sults are compared with others in South America. Human adaptation, lithic technol-ogy, Pleistocene fauna extinction and cli-mate change at the transition between Pleis-tocene-Holocene are also discussed.

KEY WoRDS Extinction-survival Pleistoce-ne fauna, Paleoindian, high resolution chro-nology, lithic technology, Quaraí river.

RESUmoO trabalho apresenta registros de fauna

do Pleistoceno identificados no sítio arque-ológico Pay Paso 1, localizado no rio Quaraí. A investigação permitiu recuperar duas es-pécies extintas, Equus sp. (cavalo pré-histó-rico) e Glyptodon sp. (gliptodonte), associa-das diretamente in situ com artefatos líticos. Os dados permitem propor a sobrevivência desses mamíferos extintos até o Holoceno Inicial (9.600 – 9.100 anos C14 AP) a partir de 9 datações radiocarbônicas obtidas pela técnica de AMS (Accelerator Mass Spectro-metry). Os dados são comparados com os obtidos em outras regiões da América do Sul. São apresentadas e discutidas questões como a adaptação humana, tecnologlogía lítica, a extinção da fauna do Pleistoceno e as mudanças climáticas durante o final do Pleistoceno-Holoceno Inicial.

PALAvRAS-CHAvE Extinção- sobrevivên-cia fauna do Pleistoceno, Paleoindio, crono-logía de alta resolução, tecnología lítica, río Quaraí.

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Cazadores-Recolectores Tempranos, Superv ivenc ia De Fauna Del P le istoceno. . . Rafael Suárez y Guaciara M. Santos

IntRoDUCCIónLa investigación arqueológica que se

desarrolla en el Norte de Uruguay es un pro-yecto interdisciplinario de largo alcance, iniciado a finales del año 1999. Entre los principales objetivos se busca integrar datos culturales, arqueológicos, paleoam-bientales y paleoecológicos en relación a la ocupación humana del final del Pleis-toceno y el Holoceno temprano. Se ha to-mado geográficamente la cuenca del río Cuareim (o Quaraí) y río Uruguay medio como objeto de estudio. Los trabajos de campo incluyen prospecciones arqueoló-gicas intensivas donde se describen per-files de interés arqueológico (Suárez y Piñeiro, 2002). Adicionalmente, se identi-ficaron nuevos sitios arqueológicos tem-pranos, paleontológicos y de interés pa-leoambiental (Suárez, 2002; Suárez y López, 2003; Suárez y Gillam, 2008).

El Norte de Uruguay presenta registros de fauna del Pleistoceno (Ubilla et al. 2008). Esta fauna formó parte del “Piso Lujanense”, definido en la Pampa (Argen-tina), e incluyó un número cercano a 38 géneros de herbívoros mayores a los 100 kg. de los cuales 20 fueron megaherbívo-ros extinguidos entre aproximadamente 11.000-8.000 años C14 AP (Borrero, 2009; Fariña, 1996; Tonni y Pascuali, 2005).

El presente trabajo tiene tres objetivos principales: a) presentar los primeros re-gistros de fauna del Pleistoceno recupera-dos en un componente cultural datado du-rante el Holoceno temprano en Uruguay; b) avanzar hacia una cronología de alta resolución en sitios tempranos; y c) discu-tir la supervivencia de fauna del Pleistoce-no en el Norte de Uruguay en el contexto regional y su implicancia en las recons-trucciones paleoclimáticas.

AntECEDEntES En EL noRoEStE DE URUGUAY

Los antecedentes conocidos de sitios ar-queológicos tempranos en el Norte de Uru-guay son escasos, comparados a escala regio-nal. Las primeras edades tempranas en Uruguay se conocieron a finales de la década de 1980 (MEC, 1989a; 1989b): son las datacio-nes C14 de 10.420 ± 90 años C14 AP1 (Kn 2531) (sitio K87), 11.200 ± 500 años C14 AP (Gif 4412) (sitio Y58) y 9.320 ± 170 años C14 AP (Dik 1224) (sitio D03). Estas fechas fueron obtenidas en sitios arqueológicos ubicados en la costa del río Uruguay medio en los departamentos de Artigas y Salto en el noroeste del Uruguay. Las fechas de los sitios Y58 y D03 no están directa-mente asociadas a material lítico o arqueoló-gico, sino que fueron tomadas por debajo de niveles culturales o arqueológicos. En el caso del sitio Y58 por ejemplo, la muestra de car-bón utilizada para realizar la datación se obtu-vo de varios carbones dispersos en un nivel de 20 cm entre 5,69 y 5,89 metros de profundidad. Además, fue obtenida por lo menos a 0,32 y 0,36 metros debajo de un conjunto lítico for-mado por desechos de talla identificado a 5,33 y 5,37 metros (MEC, 1989a:459-460). Para el sitio D03 no se especifica a que profundidad respecto al material arqueológico se recolectó la muestra; sí se indica que la muestra provie-ne debajo de un nivel con material cultural. Las edades de los sitios Y58 y D03 deben ser utilizadas con precaución y cautela, debido a como se indicó arriba no están directamente asociadas a material cultural. El sitio Pay Paso 1 fue originalmente investigado entre 1979 a 1989 por A. Austral (1995:213) y presenta una edad de 9.890 años C14 AP (Rt 1445).

Resumiendo, de los cuatro sitios arqueoló-gicos tempranos datados en el Noroeste de Uruguay, solamente en los sitios K87 (Hilbert, 1991) y Pay Paso 1 (Austral, 1995) las mues-

Todas las edades presentadas en el texto están en años C14 sin calibrar, a excepción de las edades calibradas en la Tabla 2.

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tras de carbón utilizadas para realizar las da-taciones estaban asociadas directamente con artefactos líticos de origen cultural. Los inves-tigadores que intervinieron en las excavacio-nes arqueológicas no registraron fauna del Pleistoceno asociada o no, con material lítico en ninguno de los sitios mencionados (K87, Pay Paso, Y58 y D03).

AntECEDEntES En EL SUR DE bRASIL (Río URUGUAY Y CUAREIm o QUARAí)

En la margen derecha del río Cuareim (o río Quaraí) en el lado brasileño son clásicos los trabajos de Miller (1969, 1987), sobre sitios arqueológicos tempranos que se ubican a dis-tancias mínimas de 8 km (sitio RS-Q-2) y máximas de 260 km (sitio RS-IJ-68) del área y sitios que estamos investigando en Uruguay. Por este motivo, se analizan y discuten los an-tecedentes del río Uruguay medio del lado brasileño, porque desde el punto de vista geo-gráfico, paleoambiental, paleoclimático, sedi-mentario y arqueológico el sector sur del área de investigación de Miller puede ser conside-rada la misma región donde nosotros realiza-mos nuestra investigación.

Miller (1987:47-51) presenta una síntesis con datos interesantes de sus investigaciones realizadas a sitios arqueológicos ubicados en las márgenes del río Uruguay y algunos de sus afluentes - Cuareim, Touro Passo, Ibicuí e Ijuí.

Los sitios más tempranos son tres sitios a cielo abierto, dos ubicados sobre el río Uruguay (RS-I-50) y uno sobre el río Cua-reim o Quaraí (RS-Q-2). Miller (1987:41, Tabla 1) fechó por C14 el sitio RS-I- 50 en 12,700 ± 220 años C14 AP (SI-801) y el sitio RS-Q-2 en 12,690 ± 100 años C14 AP (SI-2351). Según Miller (1987:48) la evidencia de esta ocupación que supera los 12.000 años está dada por la presencia de 46 arte-factos líticos y 2 restos óseos de fauna del Pleistoceno con ranuras paralelas, finas y rasas, así como por un cráneo de Glossothe-

rium robustum (Miller, 1987:48). La asociación entre el material lítico y Glos-

sotherium robustum en RS-I-50 no fue realiza-da en una excavación arqueológica, sino que proviene del perfil de la barranca en un aflora-miento natural, como se observa en la fotografía que presenta Miller (1987:45 Figura 4). Varios autores brasileños vienen discutiendo la asocia-ción del material lítico con fauna extinguida para el sitio RS-I-50. Dias (2004:258) argumenta que la fauna del Pleistoceno (megafauna) pro-viene de arrastre fluvial y el material lítico es producto de “lascados y procesos naturales”, por lo que los artefactos serian en realidad geofactos. Algo similar sucedería con el sitio RS-Q-2 (Paso de la Cruz 2) sobre el río Quaraí, don-de una fecha de 12,690 ± 100 años C14 AP (SI-2351) no estaría asociada a material cultural (Dias, 2004; Dias y Jacobus, 2001; Milder 1995).

Por lo tanto, hay cierta confusión al inten-tar, con el fechado de un sitio RS-Q-2B donde no hay asociación con material cultural, datar otro sitio RS-Q-2. La ausencia de excavaciones arqueológicas en los sitios, indican problemas de relaciones contextuales-estratigráficas con-fiables. La baja cantidad de artefactos y escaso número de dataciones C14 generan dudas en relación a la existencia de ocupaciones que su-peren los 12,500 años C14 AP. En este sentido los 46 artefactos líticos recuperados para los tres sitios indican un promedio de 15,3 artefac-tos por sitio; si tenemos en cuenta que existe una sola datación de C14 representada por la muestra SI-801 en el sitio RS-I-70, y que el ma-terial lítico podría ser producto de procesos naturales como señala Dias (2004), es muy di-fícil caracterizar estas ocupaciones tempranas con la escasa evidencia presentada por Miller (1987). Se debería tomar con cautela y precau-ción la edad de estos sitios, como fue sugerido por los colegas brasileños (Dias & Jacobus, 2001; Dias, 2004). Esto no significa que no pue-dan existir sitios y ocupaciones humanas de ~ 12,700 años C14 AP o que superen esa edad en

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Cazadores-Recolectores Tempranos, Superv ivenc ia De Fauna Del P le istoceno. . . Rafael Suárez y Guaciara M. Santos

la región. Solamente señalamos que los datos analizados arriba presentan insuficiencia de evidencia sólida y decisiva para justificar ocu-paciones del orden de los 12,700 años C14 AP en la zona de los ríos Uruguay-Cuareim-Ibicuí.

En la región comprendida entre los ríos Cuareim por el sur, río Uruguay y río Ijuí al norte, Miller (1987:41-48) define la “fase Uru-guai” sobre la base de una serie de 18 datacio-nes C14 ubicadas entre 11.555 ± 230 años C14 AP (SI-3750) y 8,585 ± 115 años C14 AP (SI-2636) efectuadas en 11 sitios arqueológicos. Los artefactos definidos incluyen puntas de proyectil pedunculadas de variadas formas ta-lladas bifacialmente y de tamaño pequeño-mediano, cuchillos bifaciales con retoque a presión, raspadores, láminas, choppers y nú-cleos. Miller (1987:54 Figura 13) presenta una importante variabilidad en el diseño de las puntas de proyectil pedunculadas re-cuperadas en las excavaciones de los sitios RS-I-69 y RS-I-70 para la transición Pleisto-ceno-Holoceno . Miller (1987:57) señala que cinco muestras de C14 datan a las puntas de proyectil pedun-culadas para el pe-riodo comprendi-do entre 11.555 y 9.120 años C14 AP. Hubiera sido un avance trascenden-te para la arqueolo-gía regional americana, conocer exacta-mente la secuencia cronológica y cultural de las puntas de proyectil recuperadas por Miller en el río Uruguay medio. En este sen-tido, es importante la investigación que viene

llevando a cabo A. Dias, quien aporta una nueva visión a partir de estudios sobre tecno-logía lítica y variabilidad artefactual en con-textos arqueológicos de la tradición Umbu y otros contextos tempranos del sur de Brasil (Dias, 1994, 2006, 2007, Dias y Bueno 2010).

EL SItIo PALEoAmERICAno PAY PASo: fAUnA DEL PLEIStoCEno, CRonoLo-GíA DE ALtA RESoLUCIón Y tECono-LoGíA LItICA

El curso inferior del río Cuareim tiene de-bido a diferentes procesos ambientales y geo-morfológicos ocurridos desde el último máxi-mo glacial, una alta tasa de sedimentación, que ha generado albardones y barrancas ex-puestas con perfiles naturales de entre 6 a 8 metros de potencia. Aquí se presentan condi-ciones óptimas que posibilitan la realización

de excavaciones arqueológicas, donde recu-perar evidencia cultural-arqueológica, faunís-tica y paleoambiental desde por lo menos el final del Pleistoceno hasta el presente. A partir del año 2000 se retoman los trabajos de cam-

Figura 1. Mapa de ubicación localidad Pay Paso

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po y excavaciones arqueológicas en el sitio Pay Paso 1 (Suárez, 2003a), ubicado a 15 km de la desembocadura del río Cuareim.

La investigación de campo se centró en la localidad Pay Paso, donde se descubrieron un total de 9 sitios de interés arqueológico, pa-

zaron zarandas con mallas de 1, 0.5 y 0.25 cm para los sedimentos arenosos y zaran-das de agua con mallas de 0.25 cm para los sedimentos areno-limosos.

Los resultados obtenidos indican una in-teresante variabilidad cultural, con tres

componentes ar-queológicos para la transición Pleisto-ceno Holoceno, de-finidos a partir de observaciones y evidencia cultural-arqueológica, cro-nológica y estrati-gráfica (Suárez, 2011). La base cro-nológica para defi-nir los tres compo-nentes culturales se realizó a partir de una serie exten-sa de 32 dataciones C14, 28 realizadas

por el método AMS de alta resolución, va-rias de las cuales fueron replicadas para te-ner certeza de su edad. Las fechas obtenidas para cada uno de estos componentes, indi-can edades sin calibrar entre 10.930-10.500 años C14 AP (unidad estratigráfica 2a), 10.200-10.100 años C14 AP (unidad estrati-gráfica 2c) y 9.600-8.600 años C14 AP (uni-dad estratigráfica 2d)(Suárez, 2011). En este artículo se presentan sintéticamente los da-tos obtenidos para uno de los componentes culturales, el más reciente datado entre 9.600-8.600 años C14 AP y que corresponde al Holoceno Temprano.

Estratigráficamente Pay Paso 1 presenta una secuencia sedimentaria que se apoya so-bre la Formación Arapey (Basalto) (Suárez, 2011). La porción basal de la secuencia está formada por un conglomerado (U1). Sobre éste se apoya una sucesión de estratos ondu-

Figura 2. Sitio Pay Paso 1, vista general del perfil o pared Oeste, excavación 1.

leontológico y paleoecológico. El sitio Pay Paso 1 (30°16´ 08.29´´S - 56°27´38.36´´O) se ubica en la margen uruguaya del río Cuareim (Quaraí) frontera entre Artigas (Uruguay) y Rio Grande do Sul (Brasil)(Figura 1).

Los trabajos de excavación arqueológica se focalizan en el sitio Paleoamericano mul-ticomponente Pay Paso 1, donde en diferen-tes campañas realizadas se excavó una su-perficie de 114 m2 (Figura 2). La excavación se realizó por niveles naturales, realizando el destape de los estratos sedimentarios in-versamente como fueron depositados. El material arqueológico se dejó in situ en pe-destales-testigos, hasta que fue levantado en distintos conjuntos contextuales-estratigrá-ficos-arqueológicos. El carbón se recuperó haciendo referencia al sector y la unidad estratigráfica donde fue recuperado, se eti-quetó y guardó en papel aluminio. Se utili-

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Cazadores-Recolectores Tempranos, Superv ivenc ia De Fauna Del P le istoceno. . . Rafael Suárez y Guaciara M. Santos

lantes de matriz arena arcillo-limo-sa (U2) de edad Pleistoceno final-Holoceno tempra-no. En el interior de la U2 se definieron una serie de sub-unidades U2a, U2b, U2c, U2d, U2e, que en conjunto poseen 1,20 metros de po-tencia y presenta tres componentes arqueológicos en una secuencia cul-tural interestratifi-cada. Sobre la U2 se apoyan otras uni-dades estratigráfi-cas holocénicas con ~ 4 metros de potencia (U3, U4 y U5).

fAUnA DEL SItIo PAY PASo 1

Durante el desa-rrollo de la investi-gación se logró iden-tificar asociación contextual y estrati-gráfica de mamífe-ros extinguidos del Pleistoceno con arte-factos líticos manu-facturados por hu-manos, en dos de los componentes tempranos del sitio Pay Paso 1 (Suárez, 2003b).

La colección ósea en general está frag-mentada lo que hizo que la tarea de identifi-

cación fuera bastante ardua, realizándose por el paleontólogo A. Rinderknecht. Cinco especies de fauna se identificaron en los tres componentes culturales. Las 186 piezas óseas recuperadas en la excavación 1 de Pay Paso,

Figura 3. Fauna del Pleistoceno in situ asociada a material lítico de origen cultural en el componente 3 datado durante el Holoceno temprano (excavación 1, sitio Pay Paso 1). 1) Plaqueta de gliptodonte; 2) fragmento de diente caballo extinguido (Equus sp.); 3) hueso en estado inicial de fosilización (sin identificar); 4) artefactos líticos; 5) carbón

Sector Estrato MNI NISP Taxa Nombre Común

D0 U2d 1 1 Equus sp.Caballo

Americano

C0 U2d 1 2Glyptodon

sp.Gliptodonte

C0 U2d - 4 s/i -

C1 U2d - 1 s/i -

C1 U2d 1 3Myocastor

coipusNutria

B6 U2d 1 8Glyptodon

sp.Gliptodonte

C0 U2d - 2 s/i -

C2 U2d - 1 s/i -

Tabla 1. Fauna recuperada en el componente 3 del Holoceno temprano (9.600–9.100 años C14 AP) sitio Pay Paso 1, exc.12

2 s/i : sin identificar. Otras especies Leporinus sp. (boga) y Rhea americana (Ñandú) se recuperaron en la U2 (componente cultural 2).3 Las fechas UCIAMS 21646 y UCIAMS 21647, así como las fechas UCIAMS 21641 y UCIAMS 21642 son respectivamente 2 replicaciones de dos muestras de carbón.

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entre humanos y Equus y Glyptodon entre 9,600 y 9,100 años C14 AP. Hay que señalar que el carbón utilizado para datar la muestra Uru-248 (Tabla 2), no se encontraba directa-mente asociado con la fauna extinta del Pleis-toceno, aunque sí con material cultural, por eso se tiene precaución de no extender hasta ca. 8,600 años C14 AP la supervivencia de fauna del Pleistoceno. Obsérvese en la Figura 3 la proximidad de un fragmento de plaqueta de gliptodonte, un fragmento de diente de Equus y el carbón utilizado para realizar las dataciones UCIAMS 21646 y UCIAMS 21647 (Tabla 2). Se intentó hacer dataciones direc-tas sobre el material óseo recuperado en la excavación 1 de Pay Paso 1, sin embargo no se pudo extraer colágeno del hueso.

Las partes esqueletarias de megafauna del Pleistoceno presentes corresponden a una plaqueta de Glyptodon sp. fracturada en dos partes que ensamblan y 8 osteodermos de Glyptodon sp. (Figura 4). La plaqueta y os-teodermos indican que los huesos pertene-cieron a individuo/s infantiles y/o juveniles (Rinderknecht, comunicación personal 2008).

son hasta el presente la única colección co-nocida de fauna recuperada en un sitio ar-queológico del Pleistoceno final-Holoceno temprano en Uruguay. Dos especies corres-ponden a mamíferos extinguidos del Pleisto-ceno Glyptodon y Equus, tres corresponden a registros fósiles de fauna actual, Leporinus sp. (boga) (Suárez y Rinderknecht, 2007), Rhea

americana (ñandú) y Myocastor (nutria). Los huesos recuperados no presentan marcas de corte realizada por artefactos líticos.

El contexto arqueológico donde se recu-peraron los fragmentos óseos de gliptodonte y caballo americano extinguido fue definido como componente 3, cronológicamente ubi-cado durante el Holoceno temprano. Las pie-zas óseas (NISP = 22) de este componente (tabla 1) se ubicaban muy próximas entre sí (algunas a menos de 10 cm) y están asocia-das con artefactos líticos destacándose pun-tas proyectil, raspadores, raederas, láminas y así como cientos de desechos de talla produc-to de la manufactura y reavivamiento de ar-tefactos ( Figura 3).

Los resultados de las 8 muestras de car-bón y su duplicación3 sugieren la asociación

NúmeroLaboratorioa

FracciónModerna

Edad añosC14 APb

Edad añosCalendario APc

δ13C0/00

UCIAMS 21641d 0,3032 9.585 ± 25 10.960 a >11.000g -23,9

10.850 a 10.860

10.720 a 10.795

UCIAMS 21642d 0,3045 9.555 ± 25 10.980 a 10.990 -32,6

10.695 a 10.790

UCIAMS 21647d 0,3046 9.550 ± 20 10.690 a 10.780 -22,4

UCIAMS 21646d 0,3047 9.545 ± 20 10.690 a 10770 -27,0

UCIAMS 21635d 0,3047 9.545 ± 20 10.690 a 10770 -24,3

UCIAMS 21640d 0,3055 9.525 ± 20 10.670 a 10.750 -27,3

UCIAMS 21638d 0,3054 9.525 ± 20 10.670 a 10.750 -23,6

Uru-246e 0,318 9.280 ± 200 10.200 a 10.680 -21

Beta-156973d Sin dato 9.120 ± 40 10.200 a 10.240 -26,2

Uru-248e,f 0,347 8.570 ± 150 9.370 a 9.680 -21

9.300 a 9.360

Tabla 2. Edades C14 obtenidas para el componente del Holoceno temprano del sitio Pay Paso 1, excavación 1

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Cazadores-Recolectores Tempranos, Superv ivenc ia De Fauna Del P le istoceno. . . Rafael Suárez y Guaciara M. Santos

La asociación estratigráfica y contextual entre Equus sp. (caballo prehistórico ameri-cano extinguido), Glyptodon sp. y material arqueológico en el componente 3 se respalda cronológicamente con nueve edades radio-carbónicas del Holoceno temprano (ver Ta-bla 2), que indican la convivencia de dos es-pecies de fauna pleistocénica con humanos en el Noroeste de Uruguay entre 9.600-9.100 años C14 AP.

CRonoLoGíA DE ALtA RESoLUCIónEn la Tabla 2 las concentraciones de ra-

diocarbono se presentan como fracciones modernas de C, convencional y calibradas en años C14 calendario AP, siguiendo la conven-ción de Stuiver y Polach (1977) y la curva de calibración terrestre del hemisferio sur (Mc-Cormac et al. 2004). Para el cálculo de nor-malización y la medición de la edad C14 de

a Identificación del laboratorio que proceso la muestra: U.CIAMS# de KCCAMS/UCI facility, Beta# de Beta Analytic y Uru# del Laboratorio C14 de Uruguay (Facultad de Química). b Edad radiocarbónica y ±1δ error (Stuiver and Polach, 1977).c Curva y programa de calibración de McCormac et al. 2004 (SHCal04.14C SH terrestrial dataset) y programa CALIB6.0. (1δ range). d Método de datación AMS e Método de datación estándarf Uru-248 no está asociada a con fauna extinguida del Pleistoceno.g La curva SHCal04 termina en 11ka cal AP C 14, por consiguiente el límite máximo de edad que se muestradebe considerarse como edad mínima.

las muestras utilizamos seis grafito de ácido oxálico I (OX-I, prymary es-tándar) de ~ 1mgC. Los resultados de C14 fueron corregidos por fracciona-miento isotópico utilizando valores AMS δ13C on-line. Para la corrección de fondo utilizamos 3 grafitos produ-cidos a partir de carbón muerto (con-siderado como en blanco, ya que el material no poseen partículas de C14) de diferentes tamaños, según los procedimientos y las fórmulas presentadas en Santos et al. (2007a).

Todas las muestras de carbón fue-ron lavadas con agua destilada y se-cadas en horno a 50°C antes de ser enviadas a los respectivos laborato-

rios. Con respecto a las muestras del carbón procesadas en KCCAMS Facility (Keck Car-bon Cycle AMS Facility de University of Cali-fornia Irvine) las muestras se limpiaron físi-camente de impurezas como arena y arcilla, usando un microscopio de 40X y un cepillo. Se efectuó un pre tratamiento químico, con lavados del ácido-base-ácido para eliminar carbonatos y cualquier otro carbono lábil limpiando los carbones de cualquier rastro de carbono extraño que pudiera estar presen-te como el resultado de exposición que pudie-ra haber sufrido el carbón del ambiente cuando estuvo in situ. Las muestras una vez que se limpiaron químicamente fueron seca-das en un horno a 60°C, y posteriormente se quemaron al vacio para producir CO2, fue-ron pre-calentadas a 900°C y cargadas con 60mg de óxido cúprico (para proporcionar oxígeno) y 3 mm × largo 1 mm el alambre de

Figura 4. Fauna del Pleistoceno recuperada en el componente 3 del Holoceno temprano, excavación 1, sitio Pay Paso 1 (9.600-9.100 años C14 AP). 1-6 Osteodermos de Glyptodon sp. 7 Plaqueta de coraza de Glyptodon sp. fracturada en dos partes que ensamblan

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plata espeso (para quitar el azufre así como el cloro). Después, criogénicamente el CO2 pu-rificado se transfirió individualmente a los reactores y fue reducido a grafito, usando el hidrógeno encima del polvo férrico pre-ca-lentado a 550°C (Santos et al. 2004). Los fila-mentos de grafito se apretaron entonces en los poseedores designados, y se cargaron en el ion-fuente junto al AMS (NEC 0.5MV 1.5SDH-2) para la medida. Los blancos indi-viduales se contaban a eventos de aproxima-damente 500,000 C 14 cada uno. Los errores se calculaban en base estadística y se espar-cen en medidas múltiples para cada muestra, junto con las incertidumbres propagadas de la normalización, la substracción de fondo (basado en las medidas de C14 de material libre), y las correcciones del fraccionamiento isotópicas, siguiendo el análisis instrumental descrito por Santos (et al. 2007b).

Durante el traslado de CO2 a los reactores de grafitización se extrajo un alícuota peque-ña de ~30cc y se colocó en 13mm redomas de gas para obtener las determinaciones de la firma isotópicas. Se midieron los valores δδ13C mostrados en Tabla 2 a una precisión de < 0.1‰ relativo a los estándares de VPDB ( Vienna-PeeDee Belemnite), usando Thermo Finnigan Delta Plus Isotope Ratio Mass Spec-trometer (IRMS) con la entrada de Banco de Gas.

A pesar de los problemas que tienen la ca-libración en este hemisferio, en la tabla 2 se presenta la calibración de las edades C14 a edades calendario, usando el programa CA-LIB6.0 radiocarbon calibración terrestre para el hemisferio sur que llega hasta el año 11,000 cal. AP (McCormac et al. 2004). La ca-libración es un intento de aproximarnos a las edades calendario, porque aunque nuestros resultados C14 son muy precisos (± 20 años para la mayoría de las muestras), las curvas de calibración pueden variar significativa-mente de una línea recta a una meseta y vi-

cie-versa. Estas fluctuaciones de la curva a veces pueden hacer la media de las fechas calibradas inciertas, pues se observan va-riantes a veces muy grandes como 400 años para una sola edad C14 sin calibrar. Además, la dendrocronología para el hemisferio sur cubre el período de 0 a 1000 cal BP. Por con-siguiente, la porción restante de esta curva de la calibración hasta 11,000 cal. AP se realiza con un modelo aleatorio (Buck y Blackwell 2004), usando los mismos parámetros terres-tres de NH IntCal04 (hemisferio norte), y una corrección para responder el desplazamiento debido al formulario estructural de la cali-bración de radiocarbono de cada hemisferio (McCormac, et al. 2004). Hay que notar que para las muestras UCIAMS21641, UCIAMS21642 y Uru-248 las edades C14 convencionales se cortaron en rangos múlti-ples en la curva de calibración SHCal04 debi-do a una fluctuación pequeña en esta región para estas edades. Del mismo modo, aunque la precisión de la muestra Beta-156973 tiene una margen de error mayor (±40) que las muestras UCIAMS # unos (±20), esta edad radiocarbónica intercepta una sección lineal de la curva de calibración, lo que produce un rango de edad calibrado muy estrecho. Por consiguiente, es más adecuado para nuestra discusión referirnos a los resultados como C14 sin calibrar, en lugar de las edades C14 calibradas AP, hasta que se extienda y esté disponible una dendrocronología más afina-da para el hemisferio sur.

mAtERIAL LítICo DEL ComPonEntE 3 DEL SItIo PAY PASo 1

El conjunto artefactual lítico recuperado en las excavaciones del sitio Pay Paso 1 inclu-ye 124 artefactos formatizados y 1390 dese-chos de talla para los tres componentes cul-turales. Aquí vamos a centrarnos en el conjunto artefactual del componente 3, se haría demasiado extenso describir todo el

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Cazadores-Recolectores Tempranos, Superv ivenc ia De Fauna Del P le istoceno. . . Rafael Suárez y Guaciara M. Santos

conjunto, además no es este el objetivo del trabajo. A continuación se describen por un lado los desechos de talla y por otro los arte-factos formatizados de forma muy sintética. Una descripción profunda y detallada de la tecnología lítica del sitio se realiza en otra pu-blicación (Suárez 2011).

El total de desechos de talla del compo-nente 3 incluye 917 piezas. La materia prima más utilizada en los desechos de talla es la arenisca silicificada con el 88%, seguida por ágata-calcedonia con el 11,19%, por último el grupo jaspe-ópalo alcanza el 0,55% del total de los desechos de talla. Es interesante seña-lar que la excavación 1 permitió identificar una serie de conjuntos de lascas y desechos de talla pertenecientes a eventos de reduc-ción de un mismo núcleo y/o forma base pre-

forma bifacial o punta de proyectil. Los con-juntos se ubican en sectores acotados y reducidos dentro de la excavación con diá-metros de entre 0,40 y 1,5 metros. Todos ellos fueron reconocidos durante la excavación, a excepción de un conjunto de desechos de ta-lla, recuperados en 7 sectores diferentes, par-cialmente reconocidos en el campo y otros en el laboratorio. Durante la excavación los dife-rentes conjuntos identificados presentaban -no sólo-, idénticas tonalidades en cuanto al color, textura, tamaño de grano, inclusiones y estructura, sino que además formaban agrupamientos de lascas, en sectores conti-guos de la excavación. La Tabla 3 presenta los conjuntos de desechos de talla de la misma materia prima y mismo evento de reducción.

Los conjuntos del componente 3 contie-

2 Are. silicif. = Arenisca silicificada.

Sector/es Unidad estratigráficaComponente cultual

Materia Prima N lascas Forma

BifazCanto

Rodado

A0,A1, B1,B0

C0,D0,z3U2d-C3 Are. silicif. 24 X

B6-C6 U2d-C3 Are. silicif. 64 X

D1-D0 U2d-C3 Are. silicif. 13 X

C1 U2d-C3 Are. silicif. 5 X

D0 U2d-C3 Jaspe 35 X

z2-z3 U2d-C3 Are. silicif. 8 X

A1 U2d-C3 Are. silicif. 3 X

A1 U2d-C3 Are. silicif. 6 X

C1 U2d-C3 Are. silicif. 3 X

B6-B7 U2d-C3 Are. silicif. 3 X

B6-B7 U2d-C3 Are. silicif. 4 X

C0 U2d-C3 Are. silicif. 2 X

D1 U2d-C3 Are. silicif. 2 X

Tabla 3. Conjuntos de materias primas que corresponden a eventos de reducción de un mismo núcleo o preforma, sitio Pay Paso 1, excavación 12

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Andrefsky, 1994) se presenta en de-talle en la tabla 4.

Se recuperaron 5 bifaces fractu-rados en diferentes etapas de manu-factura. El bifaz ilustrado en la Figu-ra 6B es un bifaz con dos fracturas, una presenta retoques escamosos irregulares y retalla que indican que luego de la fractura, la pieza fue uti-lizada como un filo activo, el bisel que forma la superficie de la fractura con la retallada tiene 68°. El borde original de la arista del bifaz tiene abrasión y pulido. La pieza está com-pletamente adelgazada en ambas ca-ras con negativos de entre 22 y 36 mm de largo. El bifaz fue manufactu-rado en una variante de arenisca si-licificada de grano muy fino de color

gris y está en una etapa final de adelgaza-miento bifacial. El bifaz de la Figura 6A pre-

nen entre 2 y 64 desechos de talla (lascas, fragmentos de lascas, esquirlas, etc.). El con-junto de piezas ilustrado en la Figura 5 co-rresponde con 64 desechos de talla. Este con-junto es el resultado de la etapa final de adelgazamiento y/o reducción de un/os biface/s y/o punta/s de proyectil en el sitio. Algunas lascas presentan ángulos obtusos de hasta 160° y plataformas intensivamente abradidas. Este conjunto en particular está acotado estratigráfica y espacialmente a me-nos de dos metros cuadrados, o sea dos sec-tores contiguos –B6 y C6- de 1 x 1 cada uno, en la planta de excavación. Estos conjuntos de desechos de talla indican que el material arqueológico fue sepultado por sedimento en un evento relativamente rápido y de muy baja energía, donde el desplazamiento o arrastre del material arqueológico en el inte-rior del sitio debió ser mínimo, a pesar de estar en un ambiente fluvial. Obsérvese el diminuto tamaño de las esquilas recuperadas –parte superior derecha de la foto- en la Figu-ra 5.

El conjunto de artefactos formales (sensu

Figura 5. Conjunto de desechos de talla de un mismo evento de reducción de una preforma bifacial y/o punta de proyectil recu-perado en el componente 3, sitio Pay Paso 1, excavación 1

Artefacto C3 (n)

Bifaz 5

Punta proyectil 2

Raspador 13

Raedera 2

Cuchillo de filo retocado 2

Cuchillo de filo natural 1

Láminas de arista simple y

rastros complement. 2

Filo natural con rastro

complementario 3

Artefacto con formatización

sumaria 1

Núcleo 1

Chopper 3

Tabla 4. Artefactos formatizados recuperados en el componente 3, sitio Pay Paso 1

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senta una fractura “perversa” que se extiende transversalmente a lo que sería el eje morfo-lógico de la pieza, es un bifaz en etapa de adelgazamiento intermedia.

El componente 3 presenta puntas de pro-yectil con base del pedúnculo cóncava escota-da (Figura 7 y 8). Las principales característi-cas tecnológicas y morfológicas se describen a continuación. La punta ilustrada en la Figu-ra 7A y Figura 8A presenta adelgazamiento bifacial, limbo triangular alargado con lados levemente convexos, y pedúnculo diferencia-do con hombros redondeados. La base del pedúnculo es cóncava profunda (escotada), los lados del pedúnculo son cóncavos expan-didos hacia la base y presentan abrasión en ambos bordes del pedúnculo. La base del pe-dúnculo ha sido adelgazada en ambas caras con negativos triangulares (ver Figura 8A), uno de estos tiene 11,2 x 8,6 mm de largo y ancho máximo respectivamente. Los lados del limbo son levemente convexos, presenta hombro redondeados. La sección transversal en la punta del limbo es bi-triangular (helicoi-dal) y en el centro del limbo es biconvexa si-

métrica. El retoque en ambas caras es parejo, con negativos paralelos cortos irregulares y laminares. La punta fue manufacturada en una variante de arenisca silicificada de grano muy fino de color gris.

La punta ilustrada en la Figura 7B y Figura 8B presenta adelgazamiento bifacial, limbo

Figura 7. Puntas de proyectil recuperadas en el componente 3, excavación 1, sitio Pay Paso 1. A) Arenisca silicificada de grano muy fino. B) Madera silicificada o xilópalo, esta punta presenta daño de impacto en el ápice (punta), fracturas en ambos lados de la base del pedúnculo y en el limbo

Figura 8. Dibujo de puntas de proyectil recuperadas en el componente 3, la línea de puntos en los lados del pedúnculo indica abrasión. Obsérvese las secciones del pedúnculo, que en la pieza A que ha sido adelgazada en ambas caras. Ambas puntas provenientes de la excavación 1, sitio Pay Paso 1

Figura 6. Bifaces del componente 3 recuperados en la excavación 1, sitio Pay Paso 1. A) Base de bifaz fracturado en etapa intermedia de manufactura, obsérvese espesor de la pieza (14,31mm), arenisca silicificada de grano medio-fino. B) Bifaz con doble fracturada, estadio final de adelgazamien-to, arenisca silicificada de grano muy fino

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Las puntas del componente 3 comparten características tecnológicas, morfológicas y métricas similares. La forma y tamaño del pe-dúnculo son las más notorias, los lados con-vexos expandidos hacia la base, la base cón-cava escotada, y el adelgazamiento en la base del pedúnculo son sus principales caracterís-ticas. Hay que señalar que uno de los ejempla-res (Figura 7B y Figura 8B) presenta una serie de fracturas que se indicaron más arriba, am-bas puntas también tienen algunas diferen-cias tanto en el pedúnculo como en el limbo. Otras puntas de similares características téc-nicas y morfológicas fueron reconocidas en las colecciones superficiales de sitios tempra-nos, tanto en el río Uruguay como en el río Negro medio (Suárez y Gillam, 2008), y sur del Brasil (Mentz Ribeiro, et al. 1995), así como el nivel 6 del sitio K87 (MEC, 1989b). Debido a las características tecnológicas-morfológicas y a su distribución regional se define a este diseño como punta Pay Paso (Suárez 2003a), diseño que se expone en la Figura 9 en diferentes etapas de vida útil.

Otros artefactos formales recuperados son láminas de arista simple con rastros comple-mentarios, las piezas ilustradas en la Figura 10 comparten características técnicas en la forma de preparar la plataforma y porcentaje de cortex en la cara dorsal que podrían indi-car la utilización de una tecnología orientada a la producción de láminas en este compo-nente. Una de las raederas corresponde con una raedera parcialmente denticulada (Figu-ra 11), la pieza presenta adelgazamiento bifa-cial (etapa inicial-intermedia) de reducción. El filo fue formatizado por medio de una serie de lascados paralelos cortos en la zona denti-culada del borde. Otra serie de negativos irre-gulares sin patrón diferenciado se observan en una extensión de 95 mm, aquí hay dos sec-tores de 10,23 mm y 24,51 mm del filo que presentan un intenso pulido de la arista.

Figura 9. Diseño de puntas Pay Paso en diferentes etapas de vida útil. A) Proveniente del componente 3, recuperada en estratigrafía y datada entre 9.500-8.500 años C14 AP, sitio Pay Paso 1. B) Proveniente de superficie sitio Pay Paso 7. C) Proveniente de superficie sitio Pay Paso 1. Obsérvese características tecnológicas similares: base escotada, lados del pedúnculo expandido hacia la base, adelgazamiento de la base del pedúnculo por retoques triangulares (A y C); y por retoques paralelos irregulares (B). Los tres ejemplares manufacturados en arenisca silicificada de grano muy fino

triangular aunque el ápice o punta está frac-turado. La base del pedúnculo en ambos la-dos presenta fracturas, sin embargo permiten distinguir que la base de la punta es cóncava profunda (escotada). Los lados del pedúnculo son convexos, la base tiene en un lado un ne-gativo de adelgazamiento (pseudo-acanala-dura) de 10 x 7 mm. Presenta aleta y hombro anguloso. Una de las caras muestra dos nega-tivos de retalla paralelos extendidos que se extienden diagonalmente de lado a lado de la cara. La otra cara tiene un negativo ancho y corto de 9,7 mm de largo x 17,70 de ancho que finaliza abruptamente. El ápice como se seña-ló tiene una fractura de 8,05 mm de ancho que presenta microretoques adyacentes y ras-tros complementarios, el ángulo del bisel es de 52° en la zona de la fractura-microretoque. Ambos lados del pedúnculo presentan abra-sión. La punta fue manufacturada en una va-riante no local de madera silicificada rojiza (xilópalo) con manchas rosadas y blanqueci-nas. Esta punta sufrió diversos daños, uno en la punta del limbo, otro en el borde del limbo y en base del pedúnculo, posiblemente fue re-ciclada.

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Cazadores-Recolectores Tempranos, Superv ivenc ia De Fauna Del P le istoceno. . . Rafael Suárez y Guaciara M. Santos

fUnCIón DEL SItIo PAY PASo 1El sitio se ubica estratégicamente a 180

metros de un paso del río Cuareim, donde hay extensos lechos de cantos rodados que sirvie-ron para manufacturar artefactos. Adicional-mente este es el primer gran desnivel desde la desembocadura del río que presenta el cauce del río Cuareim, lo que provoca que sea “un paso” natural de fauna y humanos, que fácil-mente pueden cruzar de una margen a otra del río, que aquí tiene 142 metros de ancho.

Pay Paso 1 es interpretado como un sitio residencial-logístico a cielo abierto re-ocupa-do en diferentes periodos de tiempo, donde se realizaron actividades múltiples. Las princi-pales actividades incluyeron aprovisiona-

miento de materias primas y talla de artefac-tos. Tecnológicamente la reducción de la mayoría de los artefactos formatizados se ini-ció a partir de cantos rodados (seixos). Los desechos de talla señalan manufactura, re-ducción y adelgazamiento de artefactos unifa-ciales y bifaciales en distintas etapas de pro-ducción. Los conjuntos de desechos de talla que representan eventos únicos de reducción-adelgazamiento de bifaces y/o puntas de pro-yectil (ver Figura 5), aportan interesantes da-tos en relación a la manufactura y tecnología de producción de artefactos bifaciales en el sitio. Las puntas de proyectil recuperadas pre-sentan daños de impacto, evidencias de haber sido altamente reavivadas, y fracturas en di-versas partes tales como el limbo y el pedún-culo. Las puntas de proyectil dañadas y frac-turadas presentes en el sitio, sumados a los eventos de reducción pertenecientes a una misma pieza bifacial, señalan que otra activi-dad que se realizó en el sitio fue la manufac-tura de puntas de proyectil, con el objetivo quizás de reemplazar armamento dañado, que funcionalmente no era operativo su uso en actividades de caza. En el sitio además se descartaron puntas de proyectiles. La presen-cia de láminas con rastros complementerios, así como de cuchillos de filo retocados, cuchi-llos con dorso formatizado, y cuchillos de filo natural; artefactos estos relacionados con ac-tividades de corte (Aschero, 1975, 1983), pue-den indicar que en el sitio se pudo haber pro-cesado o trozado presas producto de las actividades de caza.

DISCUSIón Y ConCLUSIonESLa investigación que se viene realizando

permitió definir un diseño de punta que se denomina Pay Paso (Suárez 2003a) que circu-ló en la región durante el Holoceno temprano. Este diseño se caracteriza por la forma del pedúnculo con lados cóncavos expandidos hacia la base, la base del pedúnculo es cónca-

Figura 10. Láminas recuperadas en el componente 3, excavación 1 sitio Pay Paso 1. A) Lámina de arista simple en arenisca silicificada. B) Lámina de arista simple en ágata traslúcida. Obsérvese que ambos ejemplares tienen preparada la plataforma en la cara dorsal con un negativo en forma de V invertido y presentan sobre la dorsal similar porcentaje de cortex

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va profunda (escotada), presenta abrasión en ambos lados del pedúnculo y adelgazamiento de la base generalmente con un negativo triangular profundo o con retoques paralelos irregulares, los lados del limbo son levemente convexos y presenta hombros redondeados (Figura 9). En general estas puntas han sufri-do un intenso proceso de mantenimiento y/o reavivamiento del limbo, lo que hace que éste tenga variaciones.

El diseño de puntas Pay Paso se recuperó hasta el presente en estratigrafía en dos sitios y contextos arqueológicos tempranos. En el sitio K87 sobre el río Uruguay medio que fue excavado por Peter y Klaus Hilbert en la década de 1970, allí en el ni-vel 6 por encima del nivel 7 que fue datado en 10,420 ± 90 años C14 AP (Kn 2531), se recuperó una punta que presenta reavivamiento y mantenimiento (ver Hilbert 1991 Figura 16-3; MEC 1989b:122, figu-ra 62-2) que presenta las caracte-rísticas tecnológicas y morfológi-cas del diseño Pay Paso (comparar ver Figura 9 C). Por otro lado, en el sitio Pay Paso 1 este diseño fue da-tado a partir de 10 edades radiocarbónicas entre 9,600- 8,500 años C14 AP.

El diseño de puntas Pay Paso aparece fre-cuentemente en contextos arqueológicos re-gionales superficiales del río Uruguay medio y río Negro medio en Uruguay, así como en el Sur de Brasil (ver Mentz Ribeiro et al. 1995:207 Figura 6 f, g, y h), en una superficie de aproxi-madamente 100.000 km2. Esta nueva eviden-cia permite sugerir una alta movilidad y una territorialidad extensa para los grupos socio-culturales que utilizaron el diseño de punta Pay Paso durante el Holoceno temprano en el centro-norte-noroeste de Uruguay y el su-roeste de Rio Grande do Sul. El territorio uti-lizado por estos cazadores-recolectores debió estar ligado e interrelacionado con aspectos

sociales, económicos, ideológicos y/o simbó-licos (Boivin, 2004; Binford, 1978, 1980; In-gold, 1993; Politis, 1996a, 1996b; Morgan, 2009).

Una ocupación del espacio similar que comprende varios territorios fue planteada para la tradición Umbu en el noreste del esta-do de Rio Grande do Sul (Dias, 2006). Esto permite sugerir que por lo menos en dos zo-nas del Sureste de América del Sur, los grupos humanos del Holoceno temprano continua-ron manteniendo patrones de movilidad y territorialidad similar a la utilizada por los grupos del final del Pleistoceno, que podemos

relacionar a los portadores del diseño de pun-tas “cola de pescado” o “rabo de peixe”. Adi-cionalmente, recientemente se ha sugerido desplazamientos de entre 140-170 km desde sitios residenciales del río Uruguay medio hasta canteras de aprovisionamiento de ágata traslúcida ubicadas en la zona de los arroyos Catalanes en el norte de Uruguay (Suárez, 2010).

Los principales registros de fauna del Pleistoceno para la transición Pleistoceno-Holoceno y Holoceno temprano, provienen fundamentalmente en el cono sur de sitios arqueológicos en Pampa y Patagonia. Se ha demostrado que los grupos humanos del final del Pleistoceno estuvieron lejos de depender económicamente de los megaherbívoros que

Figura 11. Raedera denticulada bifacial recuperada en el componente 3, sitio Pay Paso 1

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Cazadores-Recolectores Tempranos, Superv ivenc ia De Fauna Del P le istoceno. . . Rafael Suárez y Guaciara M. Santos

habitaban esas regiones (Borrero, 2009; Mio-tti y Salemme 1999). Si bien, se recuperaron en los conjuntos óseos de sitios tempranos pampeanos y patagónicos evidencia que in-dica depredación humana, fundamental-mente de Glyptodon sp., Equus sp. y Mega-

terium sp. (Alberdi et al. 2001; Messineo y Politis 2009; Miotti y Salemme, 1999; Politis y Gutiérrez, 1998; Politis et al. 1995; Politis y Messineo, 2008), la caza no se focalizó ni se especializó exclusivamente en alguna de las citadas especies.

En el sitio arqueológico La Moderna (Pam-pa) hay datos que sugieren la utilización hu-mana de gliptodontes entre 8.300 y 7.500 años C14 AP. Por otra parte en el sitio Arroyo Seco 2 (Pampa) se recuperó evidencia que señala la presencia de Equus Amerhippus neogeus y Me-

gaterium americanum hacia 8.900-7.300 años C14 AP, aunque recientemente discutida (ver Politis et al. 2003:45-46). Por otra parte, recien-temente se presentan datos de un nuevo sitio Campo Laborde donde registros de Megate-rios datados por AMS fueron fechados entre ca. 9,700 y 7.000 años AP (Messineo y Politis 2009; Politis y Messineo, 2008). Resumiendo, las dos especies recuperadas en Pay Paso 1 Equus sp. y Glyptodon sp., se registraron pre-viamente durante el Holoceno temprano en sitios arqueológicos de Pampa hasta 7.000-8.000 C14 AP (Miotti y Saleme, 1999; Politis et al. 1995; Politis y Gutiérrez, 1998:130). Otro sitio arqueológico temprano importante en el cono sur es Piedra Museo, donde Hippidion

saldiasi (otra especie de caballo prehistórico americano) fue utilizado como recurso ali-menticio por los grupos humanos que ocupa-ron la Mesta Central Patagónica durante la transición Pleistoceno Holoceno (Miotti y Sa-lemme, 2005:211). Por último debemos recor-dar, que en el sur de Patagonia (Chile) la cue-va Fell fue el primer sitio arqueológico de América del Sur, donde se recuperaron hue-sos de Equus sp. y fauna fósil actual en asocia-

ción estratigráfica y contextual con artefactos líticos de origen cultural (Bird, 1938:270).

En otras zonas como el centro Este de Bra-sil, en la región de Lagoa Santa en sitios pa-leontológicos sin evidencia de ocupación hu-mana se han obtenido dos edades de 9,990 y 9260 años C14 AP para perezosos gigantes (Hubble et al. 2007:1643, tabla 1).

Los datos y evidencias obtenidas en el No-roeste de Uruguay no están aislados, son aná-logos al registro de Pampa (Argentina), donde la supervivencia de fauna del Pleistoceno se extendió hasta el Holoceno temprano. Los huesos de fauna extinguida recuperados en Pay Paso 1 no poseen trazas o marcas de corte provocadas por artefactos líticos, que indi-quen procesamiento de presas de caza. La evidencia actual es insuficiente para sugerir que los cazadores-recolectores de Pay Paso 1 hubieran cazado caballos extinguidos y/o gliptodontes. Lo que sí se puede afirmar y está claro, es la coexistencia simultánea entre hu-manos con fauna del Pleistoceno durante el Holoceno temprano hace 9.600-9.100 años C14 AP.

La fauna del Pleistoceno recuperada en el sitio Pay Paso 1 genera una importante impli-cancia en los modelos de reconstrucción pa-leoclimática realizados para el periodo en cuestión, tanto en el Sur de Brasil (Behling et al. 2005; Behling y Pillar, 2008; Bombin, 1975, 1976) como en el Norte del Uruguay (Antón, 1975; Ubilla, 1996; Ubilla y Perea, 1999; Ubilla et al. 2004). Esto permite a su vez, plantear diferentes aspectos sobre la extinción, los cambios climáticos y la adaptación humana ocurrida durante la transición Pleistoceno-Holoceno que se detallan a continuación.

Primero, la extinción de mamíferos del Pleistoceno fue un proceso lento y gradual, donde algunos representantes se extinguen inicialmente al final del Pleistoceno en tanto otros sobreviven hasta el Holoceno temprano como es el caso de Equus sp. y Glyptodon sp.

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Segundo, caballos prehistóricos america-nos (Equus sp.) y gliptodontes (Glyptodon sp.) sobreviven en determinados nichos ecológi-cos en el Noroeste de Uruguay y quizás el sur de Brasil hasta el Holoceno temprano. Uno de estos paleoambientes donde éstos herbívoros del Pleistoceno sobreviven corresponde a la desembocadura del río Cuareim o Quaraí.

Tercero y último, la adaptación humana de los grupos tempranos en la región del río Cuareim o Quaraí y río Uruguay medio, debió incluir la explotación generalizada de recur-sos, donde la estrategia económica se orientó hacia fauna actual como mamíferos de me-diano porte (nutria), peces (boga) y aves (ñan-dú), complementado quizás con caza esporá-dica de algunos ejemplares de mamíferos de gran porte del Pleistoceno -caballos extingui-dos y gliptodontes-, similar a lo registrado previamente en Pampa y Patagonia.

El componente cultural datado durante el Holoceno temprano en Pay Paso 1, indica la coexistencia de dos especies de fauna del Pleistoceno con humanos en el curso inferior del río Cuareim entre ca. 9.600-9.100 años C14 AP. Estos registros son los primeros de su clase realizados en Uruguay, necesitan ser confirmados con nuevos datos provenientes de otros sitios arqueológicos tempranos para evaluar el rol que jugaron tanto caballos como gliptodontes en la economía de los po-bladores tempranos de Uruguay y Sur del Brasil hacia el final del Pleistoceno e inicio del Holoceno. De todas formas la utilización de otros recursos como peces (boga), mamíferos de pequeño porte (nutria) y huevos de ñandú en el registro de Pay Paso 1, indicarían que las poblaciones tempranas se orientaban hacia una economía generalizada donde se utiliza-ron variados recursos y no se dependió eco-nómicamente de los grandes herbívoros del Pleistoceno, como generalmente se había pro-puesto para este período. Algo similar ocurre en el sitio Garivaldino hacia el año 9,400 AP

donde el conjunto faunístico indicaría una es-trategia generalizada de utilización de los re-cursos hacia el inicio del Holoceno (Rosa, 2009). Los datos de Pay Paso 1 deben ser am-pliados con nuevas muestras zooarqueológi-cas para confirmar o descartar la idea de una economía generalizada de recursos como se propone aquí, para los grupos tempranos de la frontera Uruguay-Brasil del río Cuareim (Quaraí).

La evidencia presentada de Pay Paso 1 se integra a la previamente conocida de la re-gión pampeana, que señala la supervivencia de fauna del Pleistoceno hasta el Holoceno temprano. Esto deberá ser considerado parti-cularmente en los modelos de reconstrucción paleoclimáticos y paleoambientales que se generen para la transición Pleistoceno Holo-ceno, abriendo nuevas perspectivas y pregun-tas en las investigaciones arqueológicas, pa-leontológicas, paleoambientales y paleoclimáticas en el Noroeste de Uruguay y Sur de Brasil.

AGRADECImIEntoS La investigación y excavación arqueológi-

ca del sitio Pay Paso 1 se realizó con proyectos financiados por National Geographic Society a través del Committee for Research and Explo-ration (research grant 7892-05), The Wenner-Gren Foundation for Anthropological Re-search (research grant 7864), y CONICYT-Fondo Clemente Estable (proyecto 5093). La comunidad de Bella Unión (Depto. de Artigas) colaboró en diferentes instancias de la investigación de campo. La fauna del si-tio Pay Paso 1 fue identificada por el paleontó-logo Lic. Andrés Rinderknecht. A los revisores o parceristas, uno anónimo y Adriana Schmidt Dias quienes colaboraron con sugerencias y comentarios que ayudaron a mejorar la ver-sión final del manuscrito. Cualquier omisión o error es responsabilidad de los autores.

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hUmaitána arqUeologiasUl Brasileira

Adriana Schmidt Dias1 e Sirlei Elaine Hoeltz2

1. Professora do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(IfCH/UfRGS). Pesquisadora CnPq. [email protected]. Pesquisadora da ARCHAEo: Pesquisas Arqueológicas. [email protected].

ARTIGO

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AbStRACtWhen analysed by a systemic perspective,

the lithic assemblages of Humaita tradition indicate that its variability could be related to different strategies of land use in a region that was occupied by diverse hunter gatherer and horticulturalists societies along the Holocene. A critical analysis of regional, chronological and technological contexts related to these lithic assemblages points to a complex reality that goes beyond a typology. The Tradition concept, as applied in this case, compromise the understanding of the meaning of artefacts variability, requiring a revision of this theme by theoretical and methodological perspec-tives that emphasizes its contextual nature.

KEY WoRDS Humaitá Tradition, lithic in-dustries of Sothern Brazil, settlement syste-ms and technology

RESUmoAo analisar através de uma perspectiva

sistêmica as indústrias líticas aferidas à Tra-dição Humaitá, percebe-se que sua variabi-lidade está relacionada a diferentes estraté-gias de uso de um espaço regional que foi compartilhado ao longo do Holoceno por distintas sociedades caçadoras coletoras e agricultoras. A análise crítica dos contextos regionais, cronológicos e tecnológicos rela-cionados a estes conjuntos líticos, revela uma realidade complexa que transcende a tipologia dos artefatos. O conceito de Tradi-ção tecnológica, tal como empregado neste caso, simplifica o entendimento do signifi-cado da variabilidade artefatual, devendo esta problemática ser revista através de perspectivas teórico-metodológicas de na-tureza contextual.

PALAvRAS-CHAvE Tradição Humaitá, in-dústrias líticas do sul do Brasil, sistemas de assentamento e tecnologia

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IntRoDUçãoEntre 1965 e 1970, Eurico T. Miller realizou

prospecções na região do nordeste do Rio Grande do Sul, enquanto integrante do Progra-ma Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRO-NAPA), tendo levantado na ocasião mais de 300 sítios arqueológicos entre abrigos sob rocha, sítios a céu aberto, casas subterrâneas e samba-quis (Miller, 1967, 1974). Ao sistematizar os achados realizados no vale do rio Maquiné, Miller definiu a fase Humaitá a partir de dois sítios “caracterizados por artefatos líticos lasca-dos por percussão e confeccionados a partir de lascões destacados de grandes blocos de basal-to, conservando grandes porções da crosta na-tural (...). Os sítios localizam-se acima de 700 m de altitude, nos patamares arredondados da encosta do planalto, próximos a sangas e junto a grandes blocos de basalto”. Quanto aos artefa-tos, Miller enfatiza que “estão, em grande parte, trabalhados na face externa de lascões e quase irreconhecíveis pelo efeito da decomposição. Os talhadores (“choppers”) e os lascões discoi-dais unifaciais grandes, representam mais de 50% dos artefatos”, estando também presentes numerosas lascas (Miller, 1967:17-18).

Partindo destes parâmetros estabelecidos por Miller nos anos iniciais do PRONAPA, os sítios líticos identificados no sul do Brasil nas últimas quatro décadas vêm sendo classifica-dos em duas tradições tecnológicas. No entan-to, ao analisar através de uma perspectiva sis-têmica as indústrias líticas aferidas à Tradição Humaitá, percebe-se que sua variabilidade está relacionada a diferentes estratégias de uso de um espaço regional que foi comparti-lhado ao longo do Holoceno por distintas so-ciedades caçadoras coletoras e agricultoras. A análise crítica dos contextos regionais, crono-lógicos e tecnológicos relacionados a estes conjuntos líticos revela uma realidade com-plexa que transcende a tipologia dos artefatos. O conceito de Tradição tecnológica, tal como empregado neste caso, simplifica o entendi-

mento do significado da variabilidade artefa-tual, devendo esta problemática ser revista através de perspectivas teórico-metodológicas de natureza contextual.

o ContExto Do PRobLEmAOs conceitos de Tradição e fase foram as

ferramentas metodológicas utilizadas pelas primeiras gerações de arqueólogos brasilei-ros vinculados ao PRONAPA para propor um esquema preliminar do desenvolvimento histórico-cultural da ocupação pré-colonial brasileira. O PRONAPA consistia em um des-dobramento para o território nacional das pesquisas de Betty Meggers e Clifford Evans quanto às rotas de migração e difusão cultu-ral relacionadas à origem da agricultura e da cerâmica nas Terras Baixas da América do Sul. Seguindo uma perspectiva histórico-cul-tural, sequências seriadas semelhantes para uma mesma região foram reunidas em fases que, por sua vez, formavam Tradições, con-ceitos que expressariam os ritmos da distri-buição espaço-temporal da cultura material de distintos grupos pré-históricos identifica-dos a partir das atividades do Programa.

No entanto, no contexto histórico das pes-quisas arqueológicas brasileiras, a aplicabili-dade dos conceitos de fase e Tradição sofreu com a “tradução”, perdendo as conotações originalmente utilizadas na arqueologia ame-ricana (Willey & Phillips, 1958). De acordo com Dias (2007a), a falta de reflexão teórica na arqueologia brasileira na década de 1960 abriu margem para a consolidação de uma visão míope quanto à amplitude destes con-ceitos, estruturalmente limitada ao nível des-critivo de análise. No Brasil a definição de fa-ses desconsiderou sua premissa subjacente, relacionada à comparação de aspectos crono-lógicos e contextuais do registro arqueológico que deveria orientar sua integração em uma Tradição. Por sua vez, as Tradições passaram a assumir conotações distintas da enfatizada

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pela definição original, limitada a descrever fenômenos de continuidade temporal relacio-nados a aspectos de natureza tipológica. Esta postura anômala da arqueologia brasileira cristaliza-se no pensamento de Meggers e Evans ao sugerirem que “fases definidas em termos de sequências seriadas podem ser cor-relacionadas a comunidades autônomas ou semi-autônomas e que tradições definidas em termos de fases que compartilham um con-junto de elementos (...), provavelmente, repre-sentam entidades tribais ou linguísticas” (Me-ggers & Evans, 1985: 5). Desta forma, as Tradições assumiram no Brasil um papel dis-tinto do proposto por Willey e Phillips (1958), ocupando a posição reservada aos distintos estágios histórico-desenvolvimentais (Lítico, Arcaico, Formativo, Clássico e Pós-clássico) que ofereceriam a coesão necessária aos con-textos culturais identificados nas pesquisas.

Na medida em que as propostas metodoló-gicas do PRONAPA estavam voltadas à análise de contextos arqueológicos que possuíssem cerâmica, os sítios líticos identificados nestas pesquisas foram classificados tendo em vista as similaridades tipológicas de conjuntos de artefatos considerados diagnósticos. Ao desta-car a tipologia formal dos artefatos líticos en-quanto fósseis guia para o estabelecimento de unidades culturalmente significativas em ter-mos de fases e Tradições, os aspectos tecnoló-gicos e contextuais intrínsecos aos conceitos receberam pouca atenção. Por consequência, esta postura justificou a proposta de que a ocupação pré-colonial do território brasileiro fosse dividida em dois estágios de desenvolvi-mento cultural marcados pela diversidade tecnológica: o período pré-cerâmico, que compreenderia sítios líticos associados dire-tamente a sociedades caçadoras coletoras e o período cerâmico, que pressuporia socieda-des que praticavam a agricultura.

Esta perspectiva minimalista quanto à di-versidade cultural do passado, restrita à pre-

sença ou ausência de fósseis guia para aferição de afiliação cultural, parte da premissa que os sítios arqueológicos são entidades homogêneas e repetitivas em termos de conteúdo cultural e, portanto, podem ser percebidos unicamente enquanto índices de diversidade geográfica e temporal na ocupação do espaço regional. As estratégias metodológicas empregadas no PRONAPA refletem esta pré-concepção. As prospecções exploratórias realizadas abrange-ram áreas muito amplas associadas a bacias hidrográficas que, em sua maioria, apresentam contextos arqueológicos e ecológicos extrema-mente diversificados. No entanto, as estratégias de campo empregadas para realizar as compa-rações regionais privilegiaram coletas assiste-máticas de superfícies e sondagens restritas, em níveis artificiais, com o objetivo de estabe-lecer cronologias relativas através de compara-ção estratigráfica e tipológica dos conjuntos artefatuais. Quanto ao estudo das coleções líti-cas geradas pela atuação do PRONAPA, a maio-ria das análises centrou sua atenção na descri-ção tipológica dos artefatos diagnósticos, desprezando os resíduos de lascamento e as sequências tecnológicas associadas a estas ca-tegorias (Kern, 1983, 1991; Dias & Silva, 2001).

é a partir deste contexto histórico que as Tradições pré-cerâmicas do sul do Brasil fo-ram definidas e enquanto conceitos histórico--classificatórios foram empregados na análise de conjuntos líticos identificados nas últimas quatro décadas. Enquanto as pontas de projétil representavam o fóssil guia da Tradição Umbu, a Tradição Humaitá foi definida em função da presença de artefatos bifaciais de grande porte e tipologia variada, caracterizados pela alta di-versidade tipológica em termos regionais, o que justificou a definição de 22 fases arqueoló-gicas (Meggers & Evans, 1977).

A abrangência geográfica da Tradição Humaitá está vinculada ao planalto sul brasileiro e ao domínio ecológico da Mata Atlântica, em associação com as bacias hi-

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drográficas dos rios Paraná, Uruguai e Ja-cuí. A maioria dos sítios arqueológicos as-sociados a esta Tradição são superficiais e a céu aberto, com profundidades em média entre 20 a 30 cm e áreas que variam entre 400 a 10.000 m2. As datações distribuem-se

Figura 1. Dispersão geográfica da Tradição Humaitá (Kern, 1981: 311). Em destaque fases e áreas de pesquisa mencionadas neste artigo (ilustração: Wagner Marin)

entre 310 e 8.640 anos AP, estando as mais recentes associadas aos contextos do Rio Grande do Sul e as mais antigas, aos Esta-dos de Santa Catarina e Paraná (figura 1). A indústria lítica é caracterizada pelo uso de matérias-primas disponíveis nas proxi-

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midades dos assentamentos, como as ro-chas vulcânicas e o arenito silicificado, e os artefatos são produzidos, em geral, a partir de núcleos ou de lascas de grandes dimensões, sendo menos frequente a pro-dução a partir de seixos. A técnica de lasca-mento empregada, na maioria dos casos, é a percussão direta, sendo pouco frequente a técnica de lascamento bipolar e a presen-ça de retoques por percussão direta. Por sua vez, estas indústrias líticas apresentam variações regionais e cronológicas. Um primeiro conjunto apresenta datações mais antigas e abrange os vales do médio rio Paraná e do alto rio Uruguai, onde ocorre uma maior variedade de formas de artefatos bifaciais (longos e retos com uma ponta, com duas extremidades ativas ou curvos em forma de bumerangue). Con-juntos líticos mais recentes estão presentes nos vales dos rios das Antas e Pelotas, no domínio do planalto das araucárias, e no vale do rio Jacuí e principais afluentes, as-sociados à Depressão Central Gaúcha, sen-do caracterizados pela presença predomi-nante de talhadores bifaciais elaborados sobre núcleos ou seixos (Hoeltz, 1997, 2005; Kern, 1981, 1991, 1994; Meggers & Evans, 1977; Noelli, 1999/2000; Prous, 1992; Schmitz 1984, 1987).

A abrangência temporal e a dispersão geo-gráfica identificadas embasaram a hipótese de que a Tradição Humaitá representava indús-trias líticas de caçadores coletores adaptados a contextos de floresta subtropical, em oposição à Tradição Umbu, que estaria associada a so-ciedades caçadoras coletoras especializadas na exploração de áreas de campo. As origens destas populações estariam vinculadas a dis-tintas rotas de colonização do território brasi-leiro. A Tradição Umbu estaria culturalmente relacionada ao povoamento inicial da região pampeana e patagônica argentina, encontran-do-se seus sítios mais antigos no vale do médio

rio Uruguai. A Tradição Humaitá representa-ria populações caçadoras coletoras original-mente vinculadas ao Complexo Alto-parana-ense da região de Missiones, Argentina, que a partir de 8.000 anos AP passariam a ocupar o território brasileiro a partir do vale do alto rio Uruguai, expandindo-se posteriormente para o sul até os limites das escarpas do planalto sul brasileiro, associadas ao vale do rio Jacuí. A coexistência entre estas distintas populações de caçadores coletores em territórios muitas vezes sobrepostos era explicada em termos de adaptação ecológica, opondo os caçadores de zonas de ecótone entre pampa e floresta da Tradição Umbu aos caçadores exclusivamente adaptados às florestas subtropicais da Tradição Humaitá. Por sua vez, a presença de artefatos diagnósticos da tradição Humaitá em associa-ção a sítios cerâmicos embasaram hipóteses que sugeriam a possibilidade de contatos cul-turais com as populações agricultoras a partir do início da era cristã. As hipóteses levantadas supõem que esta relação poderia ter se dado através da aculturação dos caçadores coletores da Tradição Humaitá que se transformariam em ceramistas através do contato com as po-pulações Guarani, explicando assim a origem das Tradições Taquara-Itararé do Planalto Me-ridional, ou ainda através da difusão das técni-cas de lascamento destes caçadores coletores entre os agricultores Guarani, que passaram a ocupar o alto rio Uruguai e o vale do rio Jacuí a partir do início da Era Cristã (Kern, 1981, 1991, 1994; Ribeiro 1979, 1991; Schmitz, 1984, 1987; Schmitz & Brochado, 1981a, 1981b).

o PRobLEmA Em ContExtoNo inicio da década de 1990, as primei-

ras influências das vertentes processuais começam a fazer-se sentir no estudo das Tradições e fases pré-cerâmicas do sul do Brasil, desencadeando um processo de re-flexão crítica quanto aos significados da va-riabilidade das indústrias líticas refletidos

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pelas categorias conceituais utilizadas pelo histórico-culturalismo (Dias, 1994, 1995, 1996; Dias et al., 1997; Dias & Hoeltz, 1997; Hilbert, 1994; Hoeltz, 1995, 1997). Um pri-meiro movimento neste sentido se deu atra-vés da análise comparativa de coleções líti-cas orientadas pela noção de cadeia operatória ou sequência de produção, des-locando a ênfase na tipologia dos artefatos formais para o processo de produção dos conjuntos artefatuais. Os resultados iniciais destes trabalhos revelaram a necessidade de um redirecionamento teórico-metodoló-gico das pesquisas de campo em âmbito re-gional, a fim de oferecer subsídios interpre-tativos quanto à natureza contextual da variabilidade observada nestas indústrias líticas (Dias, 2007b; Hoeltz, 2007).

Na última década, os resultados dos es-tudos levados a cabo em distintos contextos regionais e cronológicos permitiram rever os esquemas histórico-classificatórios que deram origem às Tradições Umbu e Humai-tá (Dias, 2003, 2004a, 2006a, 2006b, 2007a, 2007b; Dias & Hoeltz, 2002; Hilbert, Hoeltz & Costa, 2000; Hoeltz, 2005, 2007; Hoeltz & Brüggemann, 2003, 2010). A partir de uma perspectiva sistêmica, o conceito Tradição Humaitá deixa de ser uma ferramenta ope-racional para descrever a variação espaço--temporal da ocupação pré-colonial de uma dada região, tornando-se um problema de pesquisa relativo aos significados contextu-ais da variabilidade tecnológica de indús-trias líticas integradas a distintas formas de ocupação, utilização e significação do espa-ço regional no passado.

Compreender a problemática Humaitá em contexto demanda avaliar os conjuntos líticos associados a este conceito histórico--classificatório através da integração de três escalas de análise. Em primeiro lugar, uma avaliação crítica dos contextos regionais per-mite concluir que grande parte dos sítios líti-

cos associados à Tradição Humaitá estão inte-grados aos sistemas de assentamento de populações agricultoras. A ênfase nos estudos cerâmicos associada à orientação teórico-me-todológica do PRONAPA abriu margem para uma visão fragmentada do universo da cultu-ra material das populações agricultoras do sul do Brasil associadas às Tradições Guarani e Taquara-Itararé, com reflexos claros na ca-racterização dos conjuntos líticos a estas rela-cionados. Se por um lado, os artefatos polidos associados aos sítios cerâmicos foram classi-ficados como diagnósticos destas Tradições, por outro a presença de artefatos lascados, em muitos casos, foi considerada como represen-tativa de intrusões ou sobreposições a contex-tos da Tradição Humaitá. A ausência de uma perspectiva contextual na interpretação da variabilidade de sítios que podem compor os sistemas de assentamento de agricultores contribuiu, ao longo dos anos, para transfor-mar a Tradição Humaitá em um depositário de conjuntos líticos bifaciais, com ampla va-riabilidade formal, que representam parte do universo da cultura material de populações que também produziam cerâmica (Dias, 2003; Dias & Silva, 2001).

Em segundo lugar, raros são os sítios líticos aferidos à Tradição Humaitá que apresentam datações radiocarbônicas e uma avaliação crí-tica destes contextos cronológicos indica in-consistências de interpretação, destacando-se aqueles relacionados ao Holoceno Inicial e Médio. Em parte, os problemas cronológicos relacionam-se à interpretação das característi-cas deposicionais dos sítios estratificados e a sua relação contextual com sítios superficiais. No entanto, no que diz respeito aos sítios anti-gos, percebe-se também uma compreensão limitada da natureza da variabilidade funcio-nal de sítios líticos integrados a sistemas de assentamento caçador coletor. Embora as pon-tas de projétil estejam ausentes ou pouco re-presentadas nestes conjuntos, a cronologia dos

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sítios e as características das indústrias líticas indicam relação contextual clara com os siste-mas de assentamento da Tradição Umbu.

Por fim, a ênfase dada à caracterização ti-pológica dos fosseis guia da Tradição Humai-tá priorizou categorias funcionais inferidas a partir da morfologia dos artefatos. No entanto, a análise diacrítica dos conjuntos artefatuais genericamente definidos como talhadores bi-faciais revela variações significativas relacio-nadas às suas sequências de produção e estra-tégias de usos, resultantes de escolhas culturalmente determinadas. Desta forma, é na análise dos contextos tecnológicos que en-contramos o suporte metodológico para inter-pretar o significado dos sítios líticos em asso-ciação a distintos sistemas de assentamento em âmbito regional e temporal.

o PRobLEmA REGIonAL Em ContExtoA Tradição Humaitá revela-se uma ferra-

menta conceitual inoperante quando enfoca-mos os contextos pré-coloniais do sul do Bra-sil através de uma perspectiva sistêmica. Um sistema de assentamento pressupõe que “cada sítio representa uma visão parcial e li-mitada do comportamento regional (...). Em cada sítio, o uso do espaço e a tecnologia de-senvolvida (...) são uma resposta específica a circunstâncias concretas. Em outras palavras, vislumbram um sistema cultural no qual tive-ram lugar diferentes atividades, em espaços distintos” (Binford, [1983] 1994: 117). Nesta perspectiva, os conceitos de complexo situa-cional de sítios (Binford, [1983] 1994) e de sí-tios de atividade limitada (Plog & Hill, 1971) consistem em ferramentas analíticas que per-mitem compreender a relação diferencial do uso do espaço em contextos intra/inter sítios e como esta se relaciona com a variabilidade dos conjuntos líticos. O conceito de complexo situacional de sítios traduz a idéia de conjun-tos de sítios contemporâneos, onde ocorrem diferentes etapas de um processo produtivo

que são sequenciais, destacando a percepção de que existem sítios especializados em dife-rentes atividades (Binford, [1983] 1994: 125-126). Por sua vez, sítios de atividade limitada corresponderiam a locais onde uma ou algu-mas atividades foram realizadas por popula-ções, cujo domicílio situa-se em outro local, sendo sua distribuição determinada pela lo-calização do sítio-base ou de conjuntos de re-cursos a serem explorados (Plog & Hill, 1971: 13). Quando relacionamos os conjuntos líti-cos comumente aferidos à Tradição Humaitá aos modelos de sistema de assentamento para as sociedades de agricultores do sul do Brasil representadas pelas Tradições Guarani e Ta-quara-Itararé, percebemos que sua variabili-dade apresenta relação com distintos níveis de utilização do espaço regional, associados a complexos situacionais de sítios que opõe áre-as domésticas e sítios de atividades limitadas.

A partir de 2.000 anos AP, a Tradição Gua-rani está associada à transposição para o Bra-sil meridional dos modelos amazônicos de exploração e manejo de longa duração dos contextos de várzea de grandes cursos flu-viais, abrangendo as bacias dos rios Paraná, Uruguai e Jacuí e litoral sul atlântico (Brocha-do, 1984; Noelli, 1993, Soares, 1995). Baseado em uma extensa revisão da bibliografia dos cronistas do século XVI a XIX, com ênfase no Tesoro de la Lengua Guarani, escrito por Montoya entre 1612 e 1617, Noelli (1993) pro-põe que as categorias que classificam os do-mínios territoriais entre os Guarani pré-colo-niais refletiam os laços de parentesco e reciprocidade em três níveis espaciais inclu-sivos: Guará, tekohá e teii. O Guará é um con-ceito sócio-político que diz respeito a extensos trechos das bacias hidrográficas, sendo com-posto por unidades sócio-econômicas aliadas, denominadas tekohá, que possuíam uma área definida, delimitada por arroios ou rios e utilizada de forma comunal e exclusiva pelo grupo local. Os tekohá eram formados por teii

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isolados ou agrupados, em função das condi-ções locais e políticas. O teii corresponde à parcialidade ou família extensa, sendo desig-nada de teii oga a casa onde vivia a linhagem e de amundá o local da aldeia ou sede do tekohá. O tekohá, por sua vez, comporta um jogo entre três espaços distintos: a aldeia (amundá), as roças (cog) e a vegetação cir-cundante (caa). As roças (cog) iniciavam-se fora do perímetro da aldeia, localizando-se a diferentes distâncias, de acordo com a sua an-tiguidade. Além das roças, inicia-se o espaço das matas (caa), no qual se situava as áreas de pesca, coleta e caça e as jazidas litológicas e de argila. Nestas também estavam outras áre-as de manejo que podiam refletir antigas ocu-pações ou a preparação de futuros assenta-mentos, levando a crer que o raio de ação do ambiente humanizado estendia-se por mui-tos quilômetros a partir da sede do tekohá.

Em termos arqueológicos, a variabilidade dos sítios da Tradição Guarani é baixa, sendo caracterizada por sítios cerâmicos e lito-cerâ-micos a céu-aberto, associados às várzeas de rios, com altitudes inferiores a 400 m. A data-ção dos sítios indica períodos de permanência relativamente curtos nas aldeias, sugerindo--se episódios de abandono frequentes. No en-tanto, o modelo de manejo e a densidade de sítios sugerem que as sedes das aldeias circu-lavam no ambiente manejado do tekohá, ga-rantindo a manutenção dos assentamentos por longos períodos de tempo.

Por sua vez, a Tradição Taquara-Itararé estaria relacionada às migrações e transfor-mações de longa duração das populações Macro-Jê que passam a ocupar o Planalto brasileiro a partir de 3.500 anos atrás (Bro-chado, 1983; De Mais, 2006; Noelli, 1999/2000). Embora apresentem diferenças regionais marcantes quanto aos estilos cerâmicos, ob-serva-se entre os Jê do Sul um padrão similar de estruturação dos territórios de domínio que integravam distintos contextos ecológi-

cos, explorados de forma sazonal: as cotas mais elevadas do planalto relacionadas às flo-restas mistas de araucárias, os vales fluviais das áreas de encosta e a região litorânea (Sch-mitz & Becker, 1991). As fontes etno-históri-cas e etnográficas para os Jê do Sul demons-tram uma adaptação integrada aos variados ecótonos do Brasil meridional indicando es-tratégias de circulação no território de domí-nio, em diferentes áreas satélites da aldeia principal, onde predominavam certos tipos de ofertas de alimentos (Noelli, 1999/2000). O início do ciclo anual parece ter sido regido pelo cultivo das roças, havendo a dispersão dos grupos afins após a colheita para áreas com concentração de diversas plantas de co-leta como o pinhão, que, provavelmente, cor-respondem a antigos locais de manejo agro-florestal. Estas florestas antropogênicas, por sua vez, também atraíam determinadas espé-cies animais, como o porco do mato, consti-tuindo-se igualmente em reservas de caça. O mesmo tipo de comportamento extrativo sa-zonal estaria associado às atividades de pesca litorânea e estas atividades extrativas intensi-vas, concentradas em um determinado perío-do do ano, garantiriam o abastecimento anual através de diversas técnicas de preservação de alimentos. As carnes, tanto provenientes da caça e da pesca, quanto da coleta de molus-cos, poderiam ser desidratadas no moquém ou sob o sol e o pinhão, coletado no inverno, podia ser hidratado e depositado em silos subterrâneos e cestas em locais úmidos, per-mitindo seu consumo por vários meses.

Em termos arqueológicos, a variabilidade de sítios relacionados ao modelo de mobilida-de associado à Tradição Taquara-Itararé é amplo: nas cotas elevadas do planalto predo-minam as aldeias de casas subterrâneas, nas encostas os sítios cerâmicos e lito-cerâmicos a céu aberto e no litoral os concheiros (Sch-mitz & Becker, 1991). Todos os casos, no en-tanto, indicam estratégias de domínio e ma-

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nejo territorial de longa duração, atestados por sucessivos episódios de reocupação dos contextos de casas subterrâneas e concheiros e pela presença de sítios cerimoniais relacio-nados a práticas funerárias associados aos distintos contextos ecológicos explorados.

Embora estejam integrados a noções dis-tintas de estruturação e utilização dos territó-rios regionais, os sítios líticos relacionados aos sistemas de assentamento das Tradições Guarani e Taquara-Itararé podem ser enten-didos enquanto integrantes de um complexo situacional de sítios. Sua variabilidade, por-tanto, está relacionada ao papel que desempe-nham no conjunto de atividades levadas a cabo nos territórios de domínio das aldeias. Desta forma, podem estar associados ao con-texto doméstico, caracterizando os sítios lito--cerâmicos, ou a áreas de atividades específi-cas situadas além do perímetro das aldeias relacionadas às práticas de cultivo ou à explo-ração dos afloramentos rochosos, caracteri-zando sítios onde apenas os vestígios líticos estão presentes. Em contexto doméstico pre-domina a relação entre artefatos líticos e ati-vidades de preparo e consumo de alimentos e às práticas artesanais. De acordo com as dis-ponibilidades de matérias-primas em termos locais, para estes conjuntos líticos destacam--se três categorias gerais de artefatos: resídu-os de lascamento bipolar e unipolar (núcleos, lascas e fragmentos de lascamento), conjun-tos de artefatos brutos ativos e passivos e con-juntos de artefatos polidos relacionados ao processamento de alimentos e às práticas simbólicas do grupo, como os acompanha-mentos funerários.

Por sua vez, as atividades desenvolvidas fora do perímetro da aldeia demandam um instrumental lítico específico e de maior porte associado às práticas de cultivo, à extração e processamento de material construtivo utili-zado na sede da aldeia, à confecção de estru-turas habitacionais e, no caso Guarani, à pro-

dução de canoas monóxilas. Os locais de produção destes tipos de artefatos estariam associados às áreas de concentração de maté-rias-primas, como os locais com acúmulo de seixos associados a cursos de água e os aflo-ramentos rochosos. As atividades especificas desempenhadas nestes locais geram concen-tração de resíduos de lascamento e de artefa-tos em distintas fases de confecção que podem situar-se a distâncias variadas da sede da al-deia, de acordo com as disponibilidades locais de matérias-primas. Os artefatos acabados, por sua vez, poderiam ser transportados para as sedes das aldeias ou abandonados inten-cionalmente em função de acidentes nos lo-cais de produção ou por desgaste nas áreas de extração e processamento de matérias-pri-mas vegetais. Igualmente poderiam ser acu-mulados ou estocados junto às roças para uso posterior, justificando, neste caso, a presença de conjuntos de artefatos achados de forma isolada na paisagem.

Partindo deste modelo, sugerimos que a va-riabilidade dos conjuntos líticos da Tradição Guarani reflete, em última instância, variações de áreas de atividade entre zona doméstica e locais de atividade específica, distribuídos dife-rencialmente na área pertencente ao tekohá. Sendo a aldeia (amundá) o epicentro da área de domínio (tekohá), os conjuntos líticos rela-cionados às unidades domésticas ou casas ex-tensas (teii ogas) que a compõem estariam as-sociados principalmente a atividades de preparo e consumo de alimentos e à confecção de artefatos. Estes, por sua vez, podem estar distribuídos diferencialmente no interior das casas e no perímetro da aldeia em função de atribuições de gênero ou categorias de idade.

São raras as publicações relativas à análise de coleções líticas derivadas de escavações contextuais de unidades habitacionais Guara-ni para o sul do Brasil, destacando-se os dados relativos à aldeia de Candelária, situada no vale do rio Pardo, Rio Grande do Sul (Schmitz

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et al., 1990). A partir das escavações de três unidades habitacionais que abrangeram uma área de aproximadamente 400 m2, foi resgata-da uma coleção de 4.099 peças líticas. Os ma-teriais mais abundantes são as pedras de fogão e seixos acondicionados enquanto reservas de matéria prima, seguidos dos alisadores em ca-naleta, dos polidores, dos percutores e das las-cas. Todas estas categorias de artefatos estão relacionadas a atividades domésticas, ligadas às ações de corte, abrasão, perfuração, percus-são, preparo e consumo de alimentos e à con-fecção e utilização de cerâmica (Noelli & Dias, 1995). Outros estudos mais gerais de coleções líticas Guarani para o Estado do Rio Grande do Sul apontam para um predomínio nas amostras analisadas das categorias de artefa-tos acima descritos em associação contextual com unidades habitacionais, predominando quantitativamente os resíduos de lascamento associados a matérias-primas de origem local (Carle, 2002, De Masi & Schmitz, 1987; Sch-mitz et al., 2000). No entanto, há também evi-dências arqueológicas de utilização de maté-rias-primas não disponíveis localmente, como se observa no sítio Arroio do Conde, no baixo rio Jacuí (RS), estando as fontes exploradas distantes entre 13 e 60 km do seu local de im-plantação, o que remete à noção de área de domínio (tekohá) no qual esta aldeia estaria inserida (Noelli, 1993, 1997). Caso similar tam-bém é observado no sítio PS-03-Totó, situado na porção sul da Lagoa dos Patos (RS), onde a presença de calcedônias indicaria explora-ção de matérias-primas cujas fontes estão distantes até 200 km do sítio, indicando re-des de intercâmbio entre distintos tekohá pertencentes ao mesmo Guará (Milheira, 2008; Milheira & Alves, 2009).

Além do perímetro da aldeia Guarani, as atividades nas roças, nas florestas manejadas e nas jazidas de exploração de matéria prima produziram conjuntos líticos distintos. As ne-cessidades dos trabalhos em madeira pode-

riam ser atendidas por dois tipos de artefatos líticos da Tradição Guarani: os machados poli-dos, associados ao abate de árvores, e os arte-fatos bifaciais de grande porte de caráter mul-tifuncional. Esta categoria de artefatos estaria relacionada a atividades de entalhe (talhado-res), bem como a atividades de sulcar, cavar, lavrar ou desbastar a madeira com uma per-cussão arremessada perpendicularmente, ação associada à produção de canoas monóxi-las e ao processamento do material construtivo utilizado na confecção das casas e paliçadas da aldeia (Noelli & Dias, 1995). Os locais de pro-dução destes tipos de artefatos estariam asso-ciados às fontes de matérias-primas, gerando concentração de resíduos de lascamento e de artefatos em distintas fases de confecção.

Exemplos deste tipo de variabilidade lítica relacionada a áreas de atividades fora da aldeia Guarani podem ser encontrados em distintos contextos arqueológicos do Estado do Rio Grande do Sul em associação aos vales dos rios Jacuí, Taquari, Caí e dos Sinos (De Masi & Sch-mitz, 1987; Dias, 2003, 2006a, 2007a; Fiegen-baum, 2009; Schmitz et al., 2000). Situação se-melhante observa-se em estudos realizados no alto vale do rio Uruguai por Hilbert, Hoeltz e Costa (1999, 2000; ver também Costa, 2000; Monticelli & Bertolletti 2000), na área de im-plantação da Usina Hidrelétrica de Machadi-nho no Rio Grande do Sul e por Hoeltz e Brüg-gemann (2010) na área de implantação da Usina Hidrelétrica da Foz do Chapecó em San-ta Catarina. O mesmo contexto é apontado por Angrizani (2009) para a análise da variabilida-de lítica dos sítios identificados nas atividades de resgate associadas à construção da linha de transmissão de energia elétrica Santa Rosa--Santo Cristo, no noroeste do Rio Grande do Sul. Neste caso, Angrizani enfatiza a relação contextual entre sítios líticos e lito-cerâmicos Guarani que se apresentam distribuídos dife-rencialmente na paisagem, predominando nas cotas mais elevadas as áreas de atividade limi-

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tada associadas à exploração de afloramentos rochosos e próximo ao vale do rio a presença das aldeias Guarani. A variabilidade artefatual entre as áreas é compreendida pelo autor em função de um modelo de integração entre áre-as de atividade distintas associadas a um mes-mo tekohá, circulando os artefatos líticos entre as casas, as roças e as florestas manejadas.

No caso da Tradição Taquara-Itararé as mesmas causas da variabilidade lítica podem ser observadas, estando relacionadas às dis-tintas atividades que tomaram lugar nas áre-as domésticas e nos contextos de atividades específicas. Independente do estrato ecológi-co com o qual se relacionam, nas áreas do-mésticas associadas ao sistema de assenta-mento da Tradição Taquara-Itararé predominam conjuntos líticos relacionados ao processamento de alimentos e às práticas artesanais, correspondendo a resíduos de las-camento e artefatos brutos, bem como artefa-tos polidos como as mãos de pilão. Sítios líti-cos de atividade específica relacionados à extração de matérias-primas e ao manejo agrícola também estão associados a este com-plexo situacional de sítios, com desdobra-mentos similares ao observado no caso da Tradição Guarani. Junto às fontes de matéria prima predominam resíduos de lascamento e artefatos descartados em diferentes etapas de produção e no que consistiria as áreas de roça e manejo agroflorestal predomina a presença de concentrações de artefatos bifaciais, asso-ciadas à derrubada da mata e as práticas agrí-colas. No caso das ocupações do Planalto, no entanto, a presença de concentrações de grandes talhadores bifaciais também estaria integrada às atividades construtivas, associa-das à produção e manutenção das estruturas subterrâneas e das construções monticulares de função cerimonial.

Estudos arqueológicos que suportem esta proposta são mais raros, se comparados aos contextos Guarani. Em boa parte, isto se deve

a interpretação histórico-cultural relativa à presença de sítios lito-cerâmicos nas áreas tradicionalmente ocupadas pelas Tradições Taquara-Itararé. Ao seguir uma lógica de ra-ciocínio avessa a comparações entre contextos arqueológicos e etnográficos, cristalizou-se a idéia de que estes sítios líticos representariam uma evolução local do horizonte caçador cole-tor representado pela Tradição Humaitá para o horticultor representado pela Tradição Ta-quara-Itararé (Schmitz, 1988; Schmitz & Be-cker, 1991; Ribeiro, 1979; entre outros). Noelli (1999, 1999/2000) imputa este modelo inter-pretativo quanto à origem das populações hor-ticultoras do planalto sul brasileiro à assimila-ção acrítica, por parte dos pesquisadores brasileiros, de uma noção evolucionista sim-plificada que Oswaldo Menghin, na década de 1950, defendeu para o nordeste da Argentina, postulando esta improvável continuidade cul-tural. O argumento central de Menghin, base-ado em dados empíricos insuficientes, centra--se na hipótese de que o Alto-paranaense, com datações no nordeste da Argentina a partir de 8.000 anos AP, passou por um processo de ne-olitização a partir de 2.000 anos AP, adotando, por difusão, a tecnologia de polimento, a agri-cultura e a cerâmica. Embora os dados lin-guísticos, etno-históricos e genéticos demons-trem a improbabilidade desta origem meridional dos grupos ceramistas do planalto, nas palavras de Noelli: “a hipótese de Men-ghin continua sendo aceita até o presente pela maioria dos pesquisadores que estuda o sul do Brasil” (Noelli, 1999: 289-290).

Uma exceção a este quadro é oferecida pe-los resultados das pesquisas arqueológicas realizadas no canteiro de obras da UHE de Barra Grande, realizadas entre 2001 e 2003. A área abrangida pelo empreendimento com-preendeu uma região de 528 km2 associada ao vale do rio Pelotas, distribuída entre os mu-nicípios de Anita Garibaldi (sul de Santa Cata-rina) e Pinhal da Serra e Esmeralda (norte do

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Rio Grande do Sul). A área apresentou uma grande diversidade de sítios, tendo sido resga-tados 10 sítios arqueológicos no lado gaúcho do empreendimento e 21 sítios no lado catari-nense destacando-se uma grande quantidade e sítios líticos e lito-cerâmicos que apresenta-vam associação com artefatos bifaciais de grande porte, cuja tipologia remete aos fósseis guia da Tradição Humaitá, bem como um conjunto de estruturas subterrâneas e quatro sítios com estruturas anelares envolvendo montículos e sepultamentos em seu interior. Foram obtidas datações radiocarbônicas para dois destes sítios, ambos na margem direita do rio Pelotas, de 180 ± 50 anos AP, para um sítio a céu aberto lito-cerâmico, e de 560 ± 50 anos AP, para um sepultamento cremado em uma estrutura circular em relevo (Saldanha, 2005; Scientia, 2003).

Nos trabalhos realizados na margem di-reita do rio Pelotas, no município de Anita Garibaldi, cinco sítios apresentaram maior densidade de materiais líticos, com conjun-tos variando entre 374 e 2.523 peças, estan-do situados a distâncias entre 500 e 1.500 m entre si (Herbert, 2003; Hoeltz, 2007; Hoeltz & Brüggemann, 2003). Embora não haja da-tações para todos os contextos, a análise das coleções líticas destes sítios evidencia estra-tégias tecnológicas que apontam para uma variação das formas de ocupação do espaço regional. Um primeiro conjunto de sítios está associado à presença caçadora coletora na área relacionada à Tradição Umbu em função das características de suas indús-trias líticas. Compreende um sítio em abrigo sob rocha, SC-AG-24, e um sítio a céu aber-to, SC-AG-97B, que distam 600 m entre si. Ambos apresentam uma indústria formada predominantemente por pequenas lascas residuais unipolares e detritos, embora na primeira indústria predomine o basalto fino e na segunda os meta-lamitos disponíveis in situ. Os instrumentos são raros em ambos

os casos, destacando-se uma ponta de pro-jétil pedunculada presente no sítio SC--AG-24 e uma pequena peça bifacial sobre lasca no sítio AG-97B.

Os demais sítios da área estão associados ao sistema de assentamento da Tradição Ta-quara-Itararé e apresentam altos índices de variabilidade em suas indústrias em razão das distintas atividades aos quais estavam as-sociados. O sítio lito-cerâmico SC-AG-40 apresenta uma indústria lítica representativa de uma área de atividade doméstica, onde predominam as lascas bipolares de calcedô-nia, em detrimento dos detritos e das peças bifaciais de grande porte de basalto, estando também presentes percutores de basalto e alisadores de cerâmica, caracterizando uma associação a atividades relacionadas ao pre-paro e consumo de alimentos e à confecção de artefatos. O mesmo padrão pôde ser iden-tificado nas escavações de três estruturas subterrâneas associadas ao sítio Leopoldo 5, situado na margem esquerda do rio Pelotas, no município de Pinhal da Serra, onde obser-va-se a concentração de resíduos de lasca-mento unipolar e bipolar, além da presença de artefatos brutos e instrumentos bifaciais em menor densidade, dispersos em torno das fogueiras que ocupam uma posição mais central nas estruturas (Saldanha, 2005; ver também Copé & Saldanha, 2002).

Nos demais sítios líticos, predominam os artefatos bifaciais, destacando-se o sítio lítico SC-AG-97A, cuja alta densidade e diversidade de peças indicam tratar-se de um local de pro-dução e de utilização dos artefatos. Sua indús-tria é formada principalmente por lascas resi-duais de basalto de baixa qualidade de lascamento e um alto percentual de núcleos e artefatos unifaciais e bifaciais com dimensões entre 5 e 11 cm de comprimento. Peças maio-res do que estas (entre 22 e 26 cm), de técnica e de matéria prima idênticas, foram identifi-cadas em outros 16 sítios líticos da região com

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menor densidade de materiais e no sítio lito-cerâmico SC-AG-47. Estas peças bifaciais foram produzidas, na maioria dos casos, sobre blocos, apresentam resíduo cortical, retira-das periféricas bifaciais em todo o contorno (ou apenas em uma lateral) e uma terminação em ponta. As fon-tes de matéria prima foram identifi-cadas em afloramentos localizados em torno de 500 m ou a 1 km dos as-sentamentos e frequentemente apre-sentam lascas e peças bifaciais dis-postas isoladamente sobre ou nos seus arredores. Estes sítios constituí-am-se em locais para além do perí-metro das aldeias, como as represen-tadas pelos sítios SC-AG-40 e Leopoldo 5, e estariam associados a atividades específicas, como o culti-vo, o manejo agroflorestal e a extra-ção de matérias primas minerais e vegetais (figura 2).

o PRobLEmA CRonoLóGICo Em ContExto

Os estudos paleoambientais recentes indi-cam que as florestas subtropicais já se encon-travam em formação na região sudeste do Bra-sil desde 12.000 AP e em franca expansão e processo de fixação em direção ao sul do país em torno 9.000 anos AP. Estas características paleoecológicas têm sido atualmente conside-radas como um dos fatores de atração e fixação populacional no Brasil meridional de popula-ções caçadoras coletores originariamente as-sociadas à colonização do Pampa argentino na transição Pleistoceno Holoceno. Estas estariam enquadradas na definição clássica da Tradição Umbu e os dados zooarqueológicos referentes a diferentes contextos no Rio Grande do Sul apontam que a exploração dos recursos da flo-resta correspondeu a uma estratégia adaptati-va de longa duração para estas populações,

Figura 2. Peças bifaciais de grande porte da Usina Hidrelétrica de Barra Grande (Ilustrações: Adelson Brüggemann)

remontando o Holoceno Inicial (Araujo et al.,, 2005; Dias, 2003, 2004b, 2007b; Dias & Bueno, 2010; Dias & Jacobus, 2003; Rosa, 2009; Rosa & Jacobus, 2010). Se por um lado, a ocupação caçadora coletora da região sul brasileira apre-senta-se claramente definidas na Tradição Umbu a partir de 10.000 anos AP, por outro, a análise dos contextos deposicionais de sítios líticos contemporâneos aferidos à Tradição Humaitá apontam para uma série de inconsis-tências de interpretação relacionadas ao con-texto deposicional dos sítios e à compreensão limitada dos significados da variabilidade de sítios líticos em contextos regionais.

Um dos argumentos que sustentam a hipótese da Tradição Humaitá referir-se às estratégias tecnológicas de caçadores coletores baseia-se nas datações do Holo-

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ceno Inicial e Médio para sítios onde as pon-tas de projétil estão ausentes, encontrados em distintos contextos arqueológicos do Brasil meridional. No entanto, a revisão da literatura

de referência indica que apenas 19 sítios ar-queológicos afiliados culturalmente à Tradi-ção Humaitá apresentam datações radiocar-bonicas (tabela 1). Como conseqüência,

Sítios Vale de Rio Estado Datação (AP) Fase Sigla

1. Brito Paranapanema SP 7020+70 GIF 6250

5080+60 GIF 6253

4260+60 GIF 6251

3920+60 GIF 6254

2. Almeida Paranapanema SP 3600+160 GIF ?

3. Camargo 1030+85 Monaco

2060+230 Monaco

Paranapanema 4650+170 Monaco

4. PR-JA-5 Paranapanema PR 310+50 Timburi SI 139

5. PR-FI-21 Iguaçu PR 6910+75 Pirajuí SI 4994

6505+105 SI 5993

6265+80 SI 4992

Pirajuí Pirajuí Pirajuí 2850+60 Pirajuí SI 4995

2035+70 SI 4991

6. PR-FI-49 Iguaçu PR 4065+75 Tatuí SI 5045

7. José Vieira Ivaí PR 6683+355 Ivaí GIF 78

5241+300 GIF 80

3435+175 GIF 82

8. PR-QN-01 Ivaí PR 5380+110 Ivaí SI 1014

9. SC-U-6 Alto Uruguai SC 8640+95 Alto-paranaense SI 995

8095+90 SI 994

7260+100 SI 440

7145+120 SI 993

10. SC-VP-38 Alto Uruguai SC 5930+140 Tamanduá SI 827

11. SC-U-13 SC 3000+120 SI 441

12. RS-Vz-52 Várzea RS 675+60 Caaguaçu SI 799

13. RS-A-12:

BarreiroAntas RS 6620+175 Antas SI 933

14. ? Pelotas RS 1920+50 Cará SI 811

15. RS-MJ-14 Jacuí RS 2945+85 Canhemborá SI 1001

1165+35 SI 1000

16. RS-SM-07 Jacuí RS 2795+55 Canhemborá SI 1004

17. RS-452:

IvoráJacuí RS 2190+80 Canhemborá Beta 129549

18. RS-RP-81 Pardo RS 380+80 SI4166

19. RS-RP-86 Pardo RS 2920+120 SI4167

1425+115 SI4168

Tabela 1 – Sítios datados por radiocarbono associados à Tradição Humaitá

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apenas 10 das suas 22 fases foram definidas tendo por base cronologias absolutas, sendo a posição das demais fases nas sequências de desenvolvimento regional inferidas em fun-ção da tipologia dos artefatos bifaciais ou por sua profundidade estratigráfica (Kern, 1981; Hoeltz, 1997; Noelli, 1999/2000; Schmitz, 1984, 1987).

Dentre os contextos mais antigos da Tra-dição Humaitá destacam-se os sítios relacio-nados ao Complexo Alto-paranaense de Ita-piranga e da fase Tamanduá, associados ao alto vale do rio Uruguai (sudoeste de Santa Catarina), bem como os da fase Antas, asso-ciada ao vale do rio das Antas (noroeste do Rio Grande do Sul). A análise crítica destes contextos deposicionais, no entanto, indica que as datações entre 8.000 e 6.000 anos AP aferidas a estas fases referem-se a uma rela-ção questionável, entre sítios estratificados sem pontas de projétil e conjuntos líticos de superfície que apresentam peças bifaciais(Dias & Jacobus, 2003). No caso do complexo Alto Parananense de Itapiranga, as datações entre 8.640 e 7.145 anos AP estão re-lacionadas a um único sítio, SC-U-6, associa-do a uma barranca do rio Uruguai que foi localizado através da extração de argila pelas indústrias de ladrilhos e telhas da região. As escavações ocorridas em 1966 e 1968 atingi-ram uma profundidade de 8,3 m, tendo sido identificada a presença de cerâmica da Tradi-ção Guarani até 2 m de profundidade e a pre-sença de lascas em associação com concen-trações de carvão entre 5 e 7,3 m de profundidade com datações na faixa de 8.000 anos AP (Rohr, 1966, 1968, 1973, 1984; ver também Schmitz & Becker, 1968). Por sua vez, as prospecções na área revelaram 53 sí-tios arqueológicos, em sua maioria superfi-cial, dos quais apenas um apresentava ape-nas evidências líticas, 30 continham somente cerâmica da Tradição Guarani (com cronolo-gia estimada em torno de 2.000 anos AP) e 22

possuíam associação entre cerâmica Guara-ni e artefatos líticos lascados de forma bifa-cial (Rohr, 1966). O material lítico dos sítios de superfície foi classificado por Rohr como associado ao Complexo Alto-paranaense, de-finido por Menghin para a região de Missio-nes, no nordeste da Argentina. Embora Rohr deixe claro que “encontramos a cultura Alto--paranaense também em outros sítios, de mistura com a cultura Guarani e que a área também apresente conjuntos líticos com as-sociação de pontas de projétil bifaciais” (Rohr, 1966: 27), o autor defende a ideia de que as datações obtidas no sítio SC-U-6 esta-riam relacionadas às indústrias líticas dos sítios de superfície em função da tipologia dos artefatos bifaciais de grande porte. Esta hipótese foi seguida por Schmitz e Becker na interpretação de coleções líticas prove-nientes de coletas superficiais em cinco sítios da região de Itapiranga e de material superficial sem procedência (Rohr, 1968; Schmitz & Becker, 1968, ver também Sch-mitz & Brochado, 1981b [1974]; Schmitz, [1978]1981; Kern, 1981).

Esta hipótese de Rohr também foi reforça-da por Walter Piazza, que definiu a fase Ta-manduá a partir de um único sítio, SC-VP-38, situado na confluência entre o rio do Peixe e o rio Uruguai, com uma datação de 5.930 ± 140 anos AP (SI-827) (Piazza, 1971). No entanto, este sítio igualmente corresponde a uma bar-ranca de rio, no qual foi coletado carvão para a datação a 3,5 m de profundidade. Embora o autor não faça referência à quantidade de ma-terial associado ao sítio, nem apresente sua descrição, afirma que “encontrou-se material lítico característico Alto-paranaense” (Piazza, 1971: 73). A descrição do contexto de deposição deste sítio, também um barreiro, a semelhança do sítio SC-U-6, indica perturbação de contex-to, e este igualmente apresenta cerâmica da Tradição Guarani nas camadas superficiais. Os artefatos referendados à fase Tamanduá,

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ilustrados na publicação e identificados como raspadores, parecem indicar lascas afetadas por arraste fluvial. Também se ressalta que, à semelhança do Alto-paranaense de Itapiranga, este sítio está associado a um contexto de im-plantação caracterizado pela presença de dois sítios líticos, relacionados à Tradição Umbu (fase Suruvi), e a 46 sítios cerâmicos, em sua maioria da Tradição Guarani.

Caso similar está relacionado à datação mais antiga da Tradição Humaitá no Rio Gran-de do Sul associada à fase Antas. O sítio a céu aberto RS-A-12: Barreiro, associado às barran-cas do rio das Antas, possui uma datação de 6.620 anos AP a 700 cm de profundidade e sua indústria é caracterizada por Miller como re-presentada por “toscos artefatos líticos (...) con-feccionados a partir de seixos rolados (...) las-cões e lascas de basalto” (Miller, 1971:40). O autor destaca que em “todas as peças observa--se o arredondamento e o polimento natural nas áreas lascadas e cristas interlascadas. Esse desbaste natural, ocasionado pelos detritos transportados pelas águas (...) muito dificil-mente são distinguíveis de seixos naturais e possivelmente chegam a se confundir. (...) Como o número de peças é mínimo e maiores conhecimentos acerca do contexto integral dos sítios implicariam em extensas escavações, consideramos estas caracterizações mais como um ensaio preliminar” (Miller, 1971: 41). Apesar das ressalvas do autor, este sítio foi con-siderado nas sínteses posteriores como a evi-dência mais antiga relacionada à Tradição Hu-maitá no Rio Grande do Sul (Kern, 1981; Simões, 1972; Schmitz, [1978]1981, 1984; Sch-mitz & Brochado, [1972]1981a, [1974]1981b).

Os casos acima analisados apontam para a associação entre material lítico e carvão depositados em barrancas de rio em função de eventos naturais de arraste fluvial. Este aspecto é reforçado pela profundidade dos depósitos e por suas datações do Holoceno Médio que indicam eventos de alto fluxo de-

posicional relacionados ao aumento de plu-viosidade do Ótimo Climático. No caso dos contextos do oeste de Santa Catarina, a au-sência de pontas de projétil, fosseis guia da Tradição Umbu, e a antiguidade das data-ções nos depósitos fluviais foram os critérios utilizados para aferir antiguidade aos sítios líticos de superfície em função da tipologia dos artefatos bifaciais, embora houvesse cla-ras evidências de associação contextual das evidências líticas com os sistemas de assen-tamento da Tradição Guarani da região.

A possibilidade de revisão crítica da inter-pretação tradicional de contextos deposicio-nais como os acima descritos é oferecida pelos resultados dos trabalhos arqueológicos de obras de engenharia realizados no canteiro de obras da UHE de Foz do Chapecó, entre os anos de 2006 e 2010 (Scientia, 2010). O empre-endimento localiza-se a cerca de 6,5 km a montante da confluência entre o rio Chapecó com o rio Uruguai, na divisa entre os municí-pios de Águas de Chapecó, em Santa Catarina, e Alpestre, no Rio Grande do Sul. Nessa pesqui-sa foram resgatados 14 sítios arqueológicos marcados por uma alta variabilidade de indús-trias líticas associada a diferenças cronológicas significativas. Dentre estes, têm-se sete sítios lito-cerâmicos, três sítios líticos e um sítio cerâ-mico, com profundidades que não ultrapas-sam 50 cm e datações entre 650 ± 90 anos AP e 320 ± 70 anos AP. Outros três sítios estão as-sociados exclusivamente a indústrias líticas e apresentam sobreposição de ocupações. As mais antigas estão entre 20 a 170 cm de pro-fundidade e foram datadas entre 8270 +70 anos AP (Beta 236423) e 8370 + 60 anos AP (Beta 236422) para o sítio ACH-LP1 e entre 7260 + 60 anos AP (Beta 236420) e 6990 + 70 anos AP (Beta 236421) para o sítio ACH-LP3.

A análise das indústrias líticas dos três sí-tios com sobreposição de ocupações demons-trou claramente que estratégias tecnológicas distintas estavam sendo empregadas por dois

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diferentes grupos culturais que ocuparam aqueles locais em diferentes períodos. As in-dústrias dos conjuntos exclusivamente líticos, datados entre 8.300 e 6.900 anos AP, foram re-lacionadas aos caçadores coletores da Tradi-ção Umbu por apresentarem estratégias de produção direcionadas predominantemente à obtenção de pequenos artefatos de tecnologia bifacial através da técnica unipolar. Tais pro-duções, ocorridas principalmente sobre areni-to silicificado, resultaram em pontas de projétil de tipologias variadas, um conjunto de lâmi-nas de gumes finamente retocados, peças bifa-ciais de tecnotipos variados, sendo as formas foliáceas e lanceoladas de pequeno porte (en-tre 5 e 10 cm de comprimento) as mais nume-rosas, e uma variedade de resíduos de lasca-mento unipolar. As indústrias dos conjuntos lito-cerâmicos, associadas às camadas estrati-gráficas mais recentes e com datações estima-das entre 650 e 320 anos AP, estão associadas ao sistema de assentamento da Tradição Gua-rani. Neste caso, as estratégias de produção lí-tica foram guiadas principalmente à obtenção de lascas retocadas bipolares de rochas cripto-cristalinas e à produção de peças bifaciais de portes avantajados de arenito silicificado e ba-salto (entre 8 e 20 cm). Dentre estes artefatos bifaciais tem destaque a presença dos talhado-res bifaciais bumerangoides, características do Complexo Alto-paranaense. Nesses conjuntos ocorrem também afiadores de arenito, percu-tores, perfuradores, lâminas de machado poli-das e tembetás. As características destas indús-trias permitiram aferir à Tradição Guarani o restante dos sítios líticos de superfície pesqui-sados, partindo da idéia de que estes integram o complexo situacional de sítios associados ao modelo de sistema de assentamento Guarani. Assim, os sítios lito-cerâmicos maiores (AA3, LP1 e LP3), localizados na beira do rio Uru-guai, com indústrias formadas por conjuntos adequados a atividades domésticas, como as lascas retocadas de calcedônia e as peças bifa-

ciais de pequeno porte, foram relacionados às aldeias Guarani (amundá). Os sítios lito-cerâ-micos menores e os exclusivamente líticos, pouco mais distantes da margem do rio, com indústrias formadas sobretudo por núcleos, lascas residuais e retocadas unipolares e peças bifaciais de porte avantajados, estariam rela-cionados às áreas de cultivo, de manejo agro-florestal e de extração de matérias primas mi-nerais e vegetais, correspondendo a locais de atividade específica distribuídos diferencial-mente na área de domínio do tekohá.

Situação similar ao identificado no contex-to arqueológico da Foz do Chapecó também justificaria os sítios líticos estratificados e com datações antigas associados ao médio vale do rio Paraná, que também foram afiliados nas sínteses regionais à Tradição Humaitá (Kern, 1981; Schmitz, 1984, 1987; Noelli, 1999/2000). Este é o caso dos sítios líticos Brito, Almeida e Camargo, no vale do rio Paranapanema (São Paulo), dos sítios José Vieira e PR-QN-01, no vale do rio Ivaí (Paraná) e PR-FI-21 e PR-FI-49, na Foz do Iguaçu (Paraná) que apresentam se-quências de datações entre 7000 e 2000 anos AP (Chmyz, 1983; Laming-Emperaire, 1968; Moraes, 1979; Pallestrini, 1980; Pallestrini & Chiara, 1978; Vilhena de Moraes, 1977; Vilhe-na-Vialou, 1980, 1983/1984).

Os sítios do vale do rio Paranapanema e o sítio José Vieira foram escavados entre as déca-das de 1950 e 1970 por metodologias distintas à tradicionalmente utilizada pelo PRONAPA, enfatizando áreas amplas e o registro contex-tual das evidências, seguindo as orientações da Escola Francesa. Todos correspondem a sítios que apresentam sobreposição de ocupações, sendo as mais antigas datadas entre 7.000 e 2.600 anos AP e associadas unicamente a con-juntos líticos, e as mais recentes datadas entre 1.200 e 400 anos AP, com associação a conjun-tos lito-cerâmicos da Tradição Guarani. No caso do vale do Paranapanema, as sequências de datações radicarbônicas e as análises dos

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planos de escavação demonstram tratar-se de claros contextos de sobreposição de ocupa-ções, separados por camadas aluviais estéreis, associadas a marcos específicos na paisagem: os afloramentos rochosos de basalto ou arenito silicificado. Esta situação é mais evidente no caso dos sítios Camargo e Almeida cujas in-dústrias líticas caracterizam-se pela utilização preferencial dos afloramentos de arenito silici-ficado situados nas proximidades. Nos níveis líticos do sítio Almeida, os extensos estudos tecno-tipológicos desenvolvidos indicam o pre-domínio de áreas de lascamento e produção de artefatos elaborados sobre lascas retocadas as-sociadas aos níveis ocupacionais antigos data-dos em 3.600 anos AP, estando os bifaces de grande porte associados preferencialmente aos níveis lito-cerâmicos mais recentes vinculados à ocupação Guarani (Vilhena-Vialou, 1980: 155). No caso do sítio Camargo, as zonas de lascamento também estão presentes nos níveis ocupacionais mais antigos, porém somente neste sítio foi encontrado um conjunto de pon-tas de projétil datadas de 4.250 anos AP (Palles-trini, 1980; Pallestrini & Chiara, 1978). As pecu-liaridades destas indústrias bifaciais associadas à ausência ou pequena representatividade de pontas de projétil nas amostras regionais é que determinou sua afiliação cultural à Tradição Humaitá nas sínteses histórico-culturais ela-boradas na década de 1980 (Kern, 1981; Sch-mitz, 1984, 1987).

Analisando-se o contexto regional do Para-napanema, à luz das pesquisas atuais relativas às ocupações caçadoras coletoras das Terras baixas americanas, sugere-se que este repre-senta uma zona de transição/tensão entre dois blocos culturais distintos: os caçadores coleto-res do cerrado associados à Tradição Itaparica e os caçadores coletores da floresta Atlântica associados à Tradição Umbu, o que justificaria a variabilidade regional de suas indústrias se comparadas ao do Brasil meridional (Dias & Bueno, 2010; ver também Caldarelli, 1983, Vi-

lhena-Vialou, 2009). Porém, as diferenças in-ter-sítios, tanto em termos sincrônicos como diacrônicos, podem estar refletindo diferentes aspectos de um complexo situacional de sítios, representando os sítios líticos áreas de ativida-de limitada associados à exploração dos aflo-ramentos rochosos, tanto por grupos caçado-res coletores, quanto pelos grupos agricultores que em cronologia mais recente ocuparam as mesmas regiões.

Situação similar também explicaria as in-dústrias bifaciais sem pontas de projétil asso-ciadas aos sítios líticos estratificados com da-tações do Holoceno Médio nos vales dos rios Ivaí, Guaíra e Foz do Iguaçu, abrangendo as fases Ivaí, Pirajuí, Timburi e Tatuí. Para estes, contudo, dispomos de informações mais limi-tadas quanto às características deposicionais, tendo em vista os enfoques metodológicos das pesquisas (Chmyz, 1983). Porém, para contex-tos regionais cujas indústrias líticas foram es-tudadas em maior detalhe, a ausência de pon-tas de projétil não justifica a inexistência de relação contextual com os sistemas de assen-tamento da Tradição Umbu. Este é o caso dos sítios em abrigo sob rocha que apresentam petroglifos da fase Canhemborá, associados ao vale do rio Jacuí, no Estado do Rio Grande do Sul. Embora as pontas de projétil sejam pouco significativas em termos quantitativos nas coleções líticas destes sítios, a análise comparativa da organização tecnológica e dos estilos rupestres com contextos contemporâ-neos permite a percepção de que se trata de locais de atividade específica e de natureza simbólica associados ao complexo situacional de sítios que compõem os modelos de sistema de assentamento da Tradição Umbu (Dias, 2003, 2004a; Castelhano, 2003).

o PRobLEmA tECnoLóGICo Em ContExto

Se por um lado o problema Humaitá reflete questões de natureza interpretativa quanto ao

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contexto regional e cronológico das indústrias líticas do sul do Brasil, por outro igualmente revela possibilidades de análise quanto aos sig-nificados culturais da variabilidade tecnológi-ca relacionada à produção de artefatos bifa-ciais. Compreender a tecnologia lítica em contexto significa integrá-la aos sistemas tec-nológicos de uma dada sociedade, permitindo situar a variabilidade observada como uma construção social resultante de escolhas cultu-ralmente determinadas. Para Lemmonier, a tecnologia é um produto social, sendo as esco-lhas tecnológicas estratégias dinâmicas, rela-cionadas frequentemente com diferenciação e identidade social. As técnicas são produções sociais que expressam e definem identidades, auxiliando a reafirmar, representar e dar sen-tido a um mundo socialmente construído de possibilidades e limites (Lemmonier, 1986). De acordo com esta lógica, grupos vizinhos, em geral, têm plena consciência das suas esco-lhas técnicas mútuas e a ausência de um dado traço tecnológico em um dos sistemas pode representar uma estratégia consciente de de-marcação de diferenciação social (Dobres & Hoffman, 1994). Portanto, os sistemas tecnoló-gicos são um recurso e um produto de criação e manutenção de um ambiente natural e so-cial, simbolicamente constituído, estando a sua investigação voltada para o entendimento de sua relação com os demais sistemas de repre-sentação social (Dias & Silva, 2001).

Sob esta perspectiva, cronologias e tipolo-gias não bastam para distinguir coleções líti-cas, tampouco defini-las. As definições, assim sustentadas, somente correspondem a uma realidade tipológica que mascara realidades técnicas que podem ser muito distintas (Boëda, 1997). Este é o caso da Tradição Humaitá cuja caracterização tecnológica sustentou-se ao longo dos anos como um paradigma aparen-temente imutável, sem a percepção de que os conjuntos líticos a ela relacionados têm signi-ficados que vão além da forma dos artefatos.

Na busca dessa realidade subentendida os ob-jetos técnicos devem ser definidos pela sua gênese e não como meramente utensílios. Esta maneira de apreender a realidade nos permite disponibilizar de um gradiente suple-mentar para a análise da variabilidade que busca investigar as razões de uma dada con-vergência tipológica.

As análises tecnológicas sugeridas por Boëda (1997) permitem, teoricamente, com-preender um sistema técnico de produção segundo dois eixos. O primeiro diz respeito à cadeia operatória, que traduz a sucessão ló-gica dos eventos técnicos. O segundo refere--se ao esquema operatório que traduz os as-pectos cognitivos desta cadeia operatória. é consenso entre os tecnólogos reconhecer que um ato técnico isolado é raro e que este se organiza em séries de operações que so-mente têm sentido como elos, indispensáveis e independentes, de uma sequencia nomea-da de cadeia operatória (Desrosiers, 1991). De acordo com Perlès (1992), através da se-quência operacional que leva ao descarte do artefato lítico, o artesão dispõe de uma série de opções técnicas, econômicas, sociais e simbólicas, e a combinação destas pode ex-pressar-se em termos de estratégias. Para muitos autores, a cadeia operatória, na práti-ca, divide-se em três estágios que repousam sobre bases conceituais diferentes e ocorrem em sucessão temporal: aquisição de matéria prima, produção de instrumentos e agencia-mento do conjunto de instrumentos (Boëda, 1986, 1997; Boëda et al., 1990; Geneste, 1991; Pelegrin, 1995; Perlès, 1992; entre outros). Numa compreensão cognitiva das produ-ções, Boëda (1997) afirma que a realização de um ato ou de uma sucessão lógica de atos só é possível pela aplicação de conhecimen-tos técnicos e de saber-fazer, sendo estes co-nhecimentos adquiridos desde muito cedo e quotidianamente pelos artesãos. Dependen-do da estrutura interna das sociedades e da

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complexidade das técnicas em uso, a aquisi-ção precoce faz com que os conhecimentos sejam aprendidos sem necessariamente se-rem pensados ou discutidos. O autor acres-centa que estes conhecimentos e saber-fa-zer técnicos são considerados rígidos e não serão renegociados na vida adulta, ainda que uma flexibilidade de adaptação seja sempre possível. Para Boëda é em função desta rigidez, sinônimo de estabilidade, que se pode reconhecer, individualizar e dife-renciar os saberes técnicos de uma determi-nada sociedade.

Para operacionalizar, na prática, a análi-se das sequências gestuais empreendidas pelos artesãos, recorremos à leitura diacrí-tica dos instrumentos. Neste tipo de análise se busca revelar os diferentes agenciamen-tos que conduziram o artesão à produção do objeto planejado, que nada mais é senão procurar dispor em ordem cronológica as retiradas determinadas pelo artesão ao cur-so de uma caminhada refletida (Pele-grin,1995; Boëda, 1997). Parte-se da pers-pectiva que na produção de um dado instrumento, o artesão, após a obtenção do suporte, efetua retiradas numa ordem cro-nológica a partir das quais organiza super-fícies a fim de impor ao objeto uma deter-minada estrutura e, neste processo, ele cria superfícies adequadas para compor unida-des ativas e/ou passivas. Assim formado, o instrumento decompõem-se em três par-tes: 1) uma parte receptiva de energia que coloca o instrumento em funcionamento; 2) uma parte preensiva que permite ao ins-trumento funcionar, podendo, em certos casos se sobrepor à primeira; e 3) uma par-te transformativa. Cada uma destas partes constitui-se de uma ou várias Unidades Tecno-Funcionais (UTFs). Portanto, a dife-renciação das sequências ou etapas de las-camento traduz-se pela interpretação do objetivo de cada retirada, individualmente,

para em seguida relacioná-las a uma ou mais unidades tecno-funcionais. Este pro-cedimento resulta na identificação técnica de cada uma das etapas, podendo tratar-se de uma Unidade Tecno-Funcional Trans-formativa (parte ativa do instrumento) ou de uma Unidade Tecno-Funcional Preensi-va (parte passiva do instrumento).

Para o reconhecimento específico das UTFs transformativas de peças bifaciais, Boëda observa que há várias combinações entre as duas superfícies que as compõem (entre superfícies planas e convexas). Explica que a assimetria existente entre estas duas superfícies faz com que os planos de seção das bordas (planos de corte) sejam também assimétricos e que modificações podem ocor-rer às custas destes planos de corte. Se tais modificações corresponderem a uma afiação (ou retoque) tem-se um novo plano de seção e a este denomina-se plano de bico. Obser-vando o modo como estas afiações foram efe-tuadas, o autor identificou sempre o mesmo procedimento, isto é, modificações às custas da superfície superior, convexa ou irregular, a partir da superfície inferior, sempre plana. Frente a essas observações, Boëda afirma que não há outra maneira de modificação para as peças bifaciais (Boëda, 1997). Mediante tais procedimentos, ao término da leitura das pe-ças bifaciais ter-se-á definido os elementos e caracteres técnicos que as constituem e, num processo de encadeamento desses atributos, a sua gênese. A interpretação dessas infor-mações torna possível definir como e por que os instrumentos foram produzidos e, ao com-pará-los, definir quem os produziu (para a leitura de outras categorias de objetos líticos ver Hoeltz, 2005).

As indústrias líticas bifaciais englobadas pelo conceito de Tradição Humaitá represen-tam realidades complexas e sua variabilidade espacial indica escolhas culturais e identida-des sociais que estão refletidas nas cadeias

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ção de núcleos e produção de bifaces junto aos afloramentos de basalto. Os bifaces são elabo-rados sobre blocos de afloramento e a quanti-dade de córtex é significativa, sendo o investi-mento tecnológico de formatação relacionado à elaboração de gume ativo bifacial, apenas em uma ou em ambas extremidades. Destaca-se que de acordo com a definição formal do PRO-NAPA, estes conjuntos líticos da Tradição Ta-quara se enquadrariam na definição original da fase Humaitá realizada por Miller (1967). Para ambos contextos culturais, no entanto, os artefatos bifaciais serviam a atividades simila-res podendo ser transportados e utilizados em distintas atividades nas áreas domésticas, de cultivo e de manejo agroflorestal.

Outro exemplo pode ser atestado através da pesquisa efetuada na área de implantação da Linha de Transmissão Garabi-Itá, localizada na região noroeste do Rio Grande do Sul (Ho-eltz, 2005). Neste trabalho, foram selecionadas para análise as indústrias de três sítios líticos localizados no vale do rio Ijuí situados em uma área que também apresenta contextos arqueo-lógicos relacionados à ocupação Guarani. To-das as coleções são formadas por núcleos, las-cas, detritos e artefatos brutos e por peças bifaciais diversas, especialmente as de grande porte. A análise da cadeia operatória demons-trou que essas indústrias foram produzidas, desde as etapas iniciais, com a seleção e a aqui-sição das matérias primas, até as etapas finais de produção, com o agenciamento dos instru-mentos, através de semelhantes estratégias. Os artesãos optaram preferencialmente por uma variedade de rochas metamórficas, ao invés das rochas basálticas altamente disponíveis na região. Os aspectos que os levaram a essas es-colhas seriam a alta qualidade do lascamento, a necessidade técnica e a restrição funcional. Selecionadas, as rochas foram transportadas ao local de assentamento e as produções se de-ram a partir de dois esquemas operatórios: de-bitagem e façonnage. Todas as peças foram

operatórias de produção. Um exemplo dessa variabilidade de natureza cultural das esco-lhas tecnológicas pode ser visto no contexto de ocupação do alto vale do rio dos Sinos, região nordeste do rio grande do Sul (Dias, 2003, 2006a, 2007b). A análise comparativa das ca-deias operatórias relacionadas à produção de artefatos bifaciais de grande porte associados a sistemas de assentamento distintos indicou va-riações culturais significativas. Nos conjuntos líticos da Tradição Guarani, os seixos de mor-fologia alongada foram selecionados como su-porte preferencial para a produção de artefatos unifaciais e bifaciais, sendo mais frequentes nas coleções as categorias relacionadas às pri-meiras etapas da cadeia operatória que seriam descartados em maior frequência junto aos locais de produção de artefatos (tradicional-mente definidos como choppers e chopping tools). As características deste conjunto artefa-tual indicam que as faces planas originais do seixo selecionado para a produção do artefato serviram como plataforma inicial para o lasca-mento. O lascamento primário inicia-se, em geral, por duas retiradas em uma das faces, para teste da matéria prima, centrando-se em apenas uma das extremidades da peça. Esta etapa de produção gera um gume funcional, podendo o artefato ser utilizado, abandonado em função da presença de irregularidades na matéria prima ou sofrer de dois a três lasca-mentos na face oposta, produzindo um gume bifacial, com terminação em ponta. Intensifi-cando-se a redução primária em uma das fa-ces do artefato pode-se ampliar o gume bifacial até a metade da peça ou optar-se por estender a redução primária por todo o contorno da peça, formando um gume periférico. Chama a atenção que os tipos formais de artefatos destas coleções líticas da tradição Guarani poderiam ser relacionados à definição original da fase Camboatá da tradição Humaitá definida por Miller (1967). Por sua vez, os conjuntos líticos da tradição Taquara estão associados à redu-

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produzidas mediante a técnica de percussão unipolar com o emprego do percutor duro. A partir da análise diacrítica dos núcleos e dos instrumentos, constatou-se que determinados caracteres técnicos tornavam as peças distintas uma das outras, mas que essas diferenças eram comuns às três indústrias. Assim, segun-do suas estruturas, os núcleos e os instrumen-

tos foram agrupados em diferentes categorias e, estes últimos, segundo a construção volumé-trica, a organização das UTFs transformativas e o tipo de suporte, em diferentes tecnotipos. Quanto à produção dos instrumentos, ficou evidente que inúmeros caracteres técnicos eram comuns a peças pertencentes não so-mente a tecnotipos, mas também a categorias

Figura 3. Peças bifaciais multifuncionais da área de implantação da Linha de Transmissão Garabi-Itá (ilustrações: Sirlei E. Hoeltz)

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e, não raramente, a sítios diferentes. Tal cons-tatação sugeriu que soluções técnicas idênticas estavam sendo reproduzidas em peças criadas a partir de métodos operacionais distintos. Dentre essas concordâncias técnicas encontra--se o modo de produção das grandes peças bi-faciais, onde: a) o lascamento inicial se proces-sava a partir de blocos elipsóides; b) os blocos correspondiam aos suportes dos instrumentos; c) os planos de corte eram sempre criados a partir de superfícies planas; a extremidade dis-tal era sempre pontiaguda; e e) a superfície cortical, quando mantida, relacionava-se sem-pre à UTF preensiva. Outras características técnicas comuns dizem respeito à multifuncio-nalidade da maior parte dos instrumentos, à criação de UTF opostas e invertidas, à adequa-ção e organização de zonas preensivas, à pro-dução de peças trifaciais e à correlação exis-tente entre a organização de UTFs(t) e de determinados tipos técnicos (figura 3). Frente a esses resultados, ficou evidente que as três indústrias eram muito semelhantes entre si e que estas correspondiam a escolhas técnicas de um mesmo grupo cultural, representando áreas de extração de matérias primas e produ-ção de bifaces associadas ao complexo situa-cional de sítios da Tradição Guarani.

Tomando por referência os estudos acima apresentados é possível perceber que a avalia-ção da procedência dos conceitos de Tradição e fase só é possível a partir de estudos específi-cos, de caráter regional, que respeitem a con-textualização espacial dos sítios em suas carac-terísticas internas e externas. No entanto, estes aspectos contextuais devem necessariamente estar associados a estudos de coleções que compreendam os artefatos enquanto resulta-dos de escolhas tecnológicas e, portanto, pro-duto de uma tradição cultural que sinalizam, em última instância, fronteiras e identidades sociais no registro arqueológico. No caso espe-cífico da arqueologia do sul do Brasil, análises desta natureza, conduzidas nos últimos anos,

indicam uma clara distinção nas estratégias de organização tecnológica entre caçadores cole-tores, representados pela Tradição Umbu, e os diferentes grupos agricultores, representados pelas Tradições Guarani e Taquara-Itararé. Para estes dois últimos casos, as distinções tec-nológicas identificadas nas cadeias produtivas da cerâmica também encontram reflexos no sistema tecnológico relacionado aos conjuntos líticos. Estas diferenças, porém, não se refle-tem apenas na morfologia dos artefatos bifa-ciais de grande porte (talhadores), tradicional-mente identificados como fósseis guia da tradição Humaitá, mas estão demarcadas por diferenças claras nas cadeias operatórias aos quais estes estão relacionados, indicando esco-lhas tecnológicas sinalizadoras de identidades sociais distintas (Dias, 2007a).

ConSIDERAçõES fInAISA análise do problema Humaitá na arque-

ologia sul brasileira revela as implicações in-terpretativas de duas perspectivas analíticas opostas. De um lado, os conjuntos artefatuais aferidos à Tradição Humaitá são entendidos pela perspectiva histórico-cultural como assi-naturas que representam a variação espaço--temporal de uma suposta ocupação caçadora coletora. De outro, pela perspectiva sistêmica, a variabilidade tecnológica destas indústrias líticas é entendida enquanto carregada de sig-nificados contextuais relativos a distintas for-mas de ocupação e utilização do espaço regio-nal no passado pré-colonial.

A avaliação do problema Humaitá em rela-ção aos contextos regionais permite perceber que a variabilidade destas indústrias bifaciais está associada a complexos situacionais de sí-tios pertencentes a diferentes sistemas de as-sentamento. Os estudos de caso aqui analisa-dos permitem concluir que os sítios líticos que se relacionam aos sistemas de assentamento de agricultores da região sul brasileira apre-sentam distinções relacionadas aos contextos

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funcionais aos quais estão associados. Nos contextos domésticos das aldeias, predomi-nam conjuntos líticos vinculados a atividades de preparo e consumo de alimentos e às práti-cas artesanais e simbólicas, destacando-se os resíduos de lascamento, os artefatos brutos e os artefatos polidos. Conjuntos líticos distintos estão associados a atividades especificas de-sempenhadas fora do perímetro da aldeia, como a extração de matérias primas litológi-cas, às práticas de cultivo, à extração e ao pro-cessamento de material construtivo utilizado na sede da aldeia e à confecção de estruturas habitacionais e cerimoniais. As atividades es-pecíficas desempenhadas em cada um destes locais geram concentração de resíduos de las-camento e de artefatos em distintas fases de confecção que podem situar-se a distâncias variadas da sede da aldeia, de acordo com as disponibilidades de matérias primas em ter-mos locais. Nos locais de extração de matéria prima, predominam resíduos de lascamento e artefatos bifaciais que podem ter sido abando-nados nos locais de produção em função de acidentes de lascamento ou imperfeições da matéria prima. Nos locais de cultivo e manejo agroflorestal encontram-se conjuntos de arte-fatos bifaciais de grande porte e de caracterís-ticas multifuncionais, genericamente deno-minados talhadores, que podem ter sido intencionalmente estocados ou abandona-dos em função do desgaste, justificando nes-

te caso a presença de conjuntos de artefatos achados de forma isolada na paisagem.

A avaliação do problema Humaitá em rela-ção aos contextos cronológicos do sul da Brasil igualmente revela inconsistências de interpre-tação quanto às características deposicionais de conjuntos líticos datados do Holoceno Ini-cial e Médio onde as pontas de projétil estão ausentes ou são pouco frequentes. Os casos aqui analisados indicam que estes sítios líticos estratificados também se relacionam a locais de atividades específicas associados ao com-plexo situacional de sítios que compõe os siste-mas de assentamento da Tradição Umbu.

Contudo, os problemas de natureza inter-pretativa associados ao conceito Tradição Humaitá igualmente revelam possibilidades de análise quanto aos significados culturais da variabilidade tecnológica relacionada à produção de artefatos bifaciais. As indústrias líticas englobadas pelo conceito de Tradição Humaitá representam realidades complexas e sua variabilidade espacial e temporal indi-cam escolhas culturais que estão refletidas nas cadeias operatórias de produção e estra-tégias de usos. Desta forma, é na análise dos sistemas tecnológicos que encontramos o suporte metodológico para interpretar o sig-nificado dos sítios líticos em associação con-textual a distintos sistemas de assentamento em âmbito regional e temporal.

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análiseintra-sÍtio

do sÍtio JUstino, Baixo sÃo FranCisCo

– as Fases oCUpaCionais

marcelo fagundesCoordenador do Laboratório de Arqueologia e Estudo da Paisagem da

Universidade federal dos vales do Jequitinhonha e mucuri (UfvJm)[email protected]/ [email protected]

ARTIGO

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2 :68-97 - 2010

AbStRACtThis paper is part of the thesis named

“Settlement Systems and Lithic Technology: technological organization and variability in archaeological record in Xingó Area, São Francisco low valley, Brazil, that aimed to present the final results of a long-term study after systematic research in field, laboratory and in office that interconnected unify data which gives an assertive understanding of the life and cultural dynamic of prehistoric societies who occupied the Archaeological zone of Xingó during eight thousand years. This paper aims to comprehend how the pre-historic groups established their regional settlement system on the fluvial benches. I used as a guide hypothesis the fact that all contemporaneous sites were connected among them in a situational complex of sites. So, I used the intrasite analyze basing my data in Justino archaeological site, my gravi-tational model, to elucidate the regional set-tlement system. I used multiples concepts and approaches that worked together to un-derstand the landscape while a social con-struction immersed in social means and val-ues which have been understood as a loci of continuous occupation or persistent places

KEY WoRDS Intrasite analyses, Settlement Systems, Xingó

RESUmoO presente artigo é fruto da tese de douto-

ramento intitulada Sistema de assentamento e tecnologia lítica: organização tecnológica e va-riabilidade no registro arqueológico em Xingó, Baixo São Francisco, Brasil, a qual teve como objetivo apresentar os resultados alcançados por meio de pesquisas sistemáticas de campo, laboratório e gabinete, que, interligadas, coligi-ram dados responsáveis por uma compreen-são mais assertiva sobre o modo de vida e di-nâmica cultural dos grupos pré-históricos que ocuparam a Área Arqueológica de Xingó du-rante quase oito milênios. Esse artigo, por sua vez, tem como objeto a compreensão de como as populações pré-históricas que ocuparam a região estabeleceram seu sistema regional de assentamento em terraço, tendo como hipóte-se norteadora que todos os sítios contemporâ-neos estariam conectados entre si no chamado complexo situacional de sítios. Para tanto foi utilizada a análise intra-sítio tendo como mo-delo gravitacional o sítio Justino, de forma a elucidar o sistema de assentamento regional. Em relação ao referencial teórico, foram utili-zados múltiplos conceitos e abordagens que convergiram para a compreensão da paisagem enquanto construção social que, dotada de va-lores e significados, pode ser compreendida como o loci de ocupação continuada, ou luga-res persistentes.

PALAvRAS-CHAvE Análise intra-sítio, Sis-tema de Assentamento, Xingó

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ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes

IntRoDUçãoO artigo aqui apresentado tem como obje-

tivo apresentar os resultados da análise intra-sítio do sítio Justino (Fagundes, 2007), o que denominamos de Fases de Ocupação, de modo que pudéssemos compreender a variabilidade tecnológica observada na análise dos conjun-tos líticos que foram evidenciados durante as campanhas de escavação do referido assenta-mento (Fagundes, 2010a; 2010b).

O sítio Justino foi o assentamento com maior intervenção na Área Arqueológica de Xingó, já que o terraço onde estava localizado foi completamente escavado em relação ao es-paço/profundidade, atingindo o embasamento rochoso, utilizando o método etnográfico de superfícies amplas (Leroi-Gourhan, 1950, 1972). Tal procedimento efetivou-se após a evi-denciação de uma série de esqueletos huma-nos geralmente associados a um rico enxoval funerário que, no final da escavação, totalizou 167 sepultamentos com presença de 185 es-queletos (Vergne, 2004).

Este sítio localiza-se na fazenda Cabeça de Nego, município de Canindé de São Fran-cisco, na margem direita do São Francisco, na confluência de um riacho, com coordena-das UTM 8.938.881/ 627.561. Sua área total é de aproximadamente 1.500 m2, com altitude média de 37 metros em relação ao nível do mar, sendo escavada uma área total de 1.265 m2 (23 x 55 m).

Conforme Dominguez & Britcha (1997), a formação geológica deste terraço estava associada à descida de sedimentos dos alti-planos semi-áridos, sobretudo através do riacho Curituba, formando deposições sed-imentares de características deltaicas, com ocorrência de camadas aluvionares que apresentavam espessuras variáveis, consti-tuídas por areia fina ou grossa, seixos, siltes e argilas. Além disso, deve-se citar o papel das cheias do São Francisco para a deposição de sedimentos neste terraço.

A vegetação circundante era a caatinga hiperxerófita, constituída por cantigueiras (caesalpinia bracteosa), juazeiros (ziziphus joazeiro), pau-ferro (Caesalpinia ferrea), en-tre outras. Além disso, o terraço foi utilizado para plantações de subsistência de feijão (Vi-gna unguiculata) e milho (zea mays). Sendo assim, devido à intervenção antrópica em função das atividades agrícolas, foram evi-denciados na superfície deste sítio muitos fragmentos cerâmicos. Além disso, as bor-das do terraço, por questões de ordem natu-ral, encontravam-se bastante erodidas em toda sua extensão, fator responsável pela perda de valiosas informações arqueológicas (Vergne, 2004).

REfEREnCIAL tEóRICoO interesse de compreendermos a re-

lação entre os diversos sítios contem-porâneos distribuídos em uma paisagem centra-se na assertiva de que estes man-têm relações intrínsecas entre si, cada um ocupando um papel no sistema produ-tivo/ de subsistência, na mobilidade e na própria organização social e cultural dos grupos pré-históricos.

Neste caso, esses sítios não podem ser com-preendidos separadamente “(...) como enti-dades estáticas e isoladas” (Dias, 2003: 40), já que cada um assume uma função fundamen-tal dentro das estratégias/ escolhas do grupo.

Cada sítio compreende, assim, uma cé-lula dentro de um sistema sócio-cultural abrangente e de fundamental importância, mas que por si só não é capaz de esgotar a compreensão da organização tecnológi-ca1, da mobilidade, das estratégias, capta-ção de recursos, enfim da dinâmica cul-tural na pré-história.

Além do mais, partindo do princípio de to-talidade em Mauss (1974), a unidade se dá pela complementaridade entre as partes con-stitutivas de um domínio cultural (abrangen-

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1 Kelly define organização tecnológica como: “(...) the spatial and temporal juxtaposition of the manufacture of different tools within a cultural system, their use, reuse and discard, and their relation not only to tool function and raw material type, but also to behavioral variables which mediate the spatial and temporal relations among activity, manufacture, and raw material loci” (Kelly, 1988: 717). 2 “Elementos do meio físico-biótico dotados de alguma expressão locacional para os sistemas regionais de povoamento, indicando locais de assentamentos antigos (...). Assim, os geoindicadores arqueológicos sustentam um eficiente modelo locacional de caráter preditivo, muito útil no reconhecimento e levantamento arqueológico” (MORAIS, 2006).3 “(...) places that were repeatedly used during long-term occupations of regions. They are neither strictly sites (that is, concentrations of cultural materials) nor simply features of a landscape. Instead, they represent the conjunction of particular human behaviors on a particular landscape” (Schlanger, 1992: 97).

do tanto o contexto social como natural), que, sob nosso ponto de vista, na Arqueologia se visualiza pela identificação e correlação dos geoindicadores2 (Morais, 2006).

Logo, esse reconhecimento das caracter-ísticas regionais, que nos serviram de mod-elo locacional de caráter preditivo, acaba por permitir à constituição dos lugares per-sistentes3, inclusive como meio de estabel-ecer padrões à compreensão dos sistemas regionais de assentamento.

Com base nesses pressupostos só poder-emos realizar inferências sobre o sistema regional de assentamento quando estabelec-emos correlações e conexões entre os diver-sos sítios e lugares persistentes de uma área (Schlanger, 1992), relacionando-os impret-erivelmente à paisagem, utilizando exem-plos advindos da etnologia, da organização tecnológica, das estruturas evidenciadas, das possíveis escolhas, por meio do uso intensivo das geotecnologias, ou seja, por meio de in-ferências e dados estatístico-comparativos que mapeiem as possibilidades (e restrições) para as hipóteses levantadas (Fagundes, 2009; Fagundes & Mucida, 2010).

Portanto, a dinâmica cultural resultante dos processos de continuidade e mudança deve ser ‘garimpada’ em meio aos remanes-centes culturais nas escavações compreen-dendo a estrutura de cada sítio, visto que a Arqueologia aqui é definida como a discip-lina responsável em obter conhecimento (ou conhecimentos) válido sobre o passado. Isto é, buscar no estático representado pelo registro arqueológico o dinamismo dos pro-cessos e das conexões culturais, de modo a encontrar no contexto arqueológico o con-

texto sistêmico (Schiffer, 1972, 1983, 1987).Nesse artigo ao privilegiarmos as

análises intra-sítios – os diferentes tipos de uso de um dado assentamento em lon-ga duração –, estávamos preocupados (no caso específico do sítio Justino), com a distribuição espacial e relacional, além da densidade e diversidade dos remanes-centes culturais bem como suas sequên-cias operacionais de produção (Fagundes, 2010a, 2010b, 2010c), de modo que pu-déssemos inferir seus “papéis” dentro da organização social do grupo (ou grupos) em estudo.

Ou seja, o que pretendemos frisar é que os estudos sistemáticos intra-sítio da distribuição e associação artefatual em termos espaço-tem-porais têm sido considerados inerentes à pes-quisa arqueológica que pretende compreender a dinâmica cultural nas ocupações pré-históri-cas, tendo em vista a integração dos processos naturais e culturais de formação dos sítios ar-queológicos (Panja, 2003).

Aliás, para Bamforth et al (2005: 577) a pri-meira questão que se deve ter em mente antes de empreendermos a pesquisa arqueológica é estabelecer critérios de compreensão de como forças naturais e antrópicas interagi-ram para ‘criar’ um sítio arqueológico.

Os trabalhos de André Leroi-Gourhan durante as décadas de 1950 e 1960 sobre a estrutura de sítios a céu aberto do paleolíti-co europeu, sobretudo Pincevent, podem ser apontados como precursores de análises que pretendem reconstruir (e interpretar) integralmente os solos de ocupação pré-his-tóricos, coligindo técnicas, métodos e refle-xões teóricas acerca da reconstrução dos

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solos paleoetnográficos. Suas pesquisas, deste modo, foram de fundamental impor-tância para a compreensão das estruturas in loco, que seria sob o nosso olhar o passo inicial para a elaboração de inferências à busca da compreensão do modo de vida e dinâmica cultural de grupos pré-históricos (Leroi-Gourhan, 1950, 1972).

Em suas reflexões Bamforth et al (2005), também destacam que as análises intra-sí-tio têm focado a distribuição dos artefatos no solo arqueológico, utilizando diversas técnicas para tal intento, de forma a eviden-ciar o modo que o sítio arqueológico foi uti-lizado em longa duração, isto é:

• Compreensão das estruturas internas dos sítios e suas distribuições espaço-tempo-rais;• Demarcação meticulosa dos remanescen-tes culturais, de acordo com os locais exatos em que foram evidenciados durante as es-cavações, assim como suas associações, possibilitando a construção de mapas tridi-mensionais para posterior comparação en-tre os diferentes períodos de ocupação dos sítios arqueológicos;• Estratificação e análises estatísticas da di-versidade e freqüência vertical (e horizon-tal) dos remanescentes culturais;• Evidenciação de características que apon-tem para ocupação, abandono e reocupação dos assentamentos;• Distribuição das estruturas de combustão e materiais associados, sobretudo em ocu-pações de caçadores coletores;• Inspeções visuais de mapas de distribui-ção de vestígios (fato que exige o uso de fer-ramentas apropriadas advindas da ciência da informática).

Os autores destacam que em toda análi-se arqueológica escolhas são realizadas principalmente em relação aos métodos analíticos utilizados pela pesquisa, incluin-

do as questões que serão abordadas, o tipo de material que terá maior enfoque, além do nível de detalhes espaciais disponíveis nos dados a serem examinados. De forma geral, as pesquisas se direcionam para as respos-tas que são esperadas pelo arqueólogo (Ba-mforth et al, 2005).

Já para Munday as análises intra-sítios são extremamente relevantes na medida em que cooperam para a elaboração de hipóte-ses e interpretações que podem ser conclu-sivas à compreensão inter sítios, sendo, por-tanto, “(...) uma ferramenta para testar suposições implícitas que direcionam mui-tas comparações contemporâneas tanto in-ter sítio quanto inter níveis” (Munday, 1984: 32).

Trabalhando com sítios musterienses, a autora enfatiza a importância da análise intra-sítios para uma compreensão efetiva das dimensões temporais e espaciais de um assentamento como facilitador de uma aná-lise regional, ou seja, de um sistema de as-sentamento.

Por outro lado, nos pressupostos de Fer-ring (1984), as atividades que são vistas como o principal aporte para as análises es-paciais, sendo definidas como tarefas que, após sofrerem as ações do processo deposi-cional, acabam por se transformarem em remanescentes culturais alvos das interven-ções e diagnósticos arqueológicos. Portan-to, o foco central de uma análise intra-sítio é a identificação das áreas de atividades em um sítio passando para a estruturação dos grupos e subgrupos que constituem os re-manescentes destas. Na sua letra:

A principal função das análises intra-sítio é per-

mitir uma visão explícita de como as atividades

foram conduzidas em um sítio. As atividades

podem ter sido estruturadas pela composição

sócio-econômica/ étnica de uma unidade de as-

sentamento; pelas relações de procura/ tarefas

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de processamento que constituem o sistema de

subsistência; a periodicidade/ intensidade da

ocupação, etc. (Ferring, 1984:117).

Entretanto, acreditamos que para que haja um real entendimento do passado é fundamental estabelecermos o caráter sistêmico às pesquisas arqueológicas, ou como salientado por Panja (2003: 107), por meio de modelos diacrônicos empre-endermos uma visão holística da nature-za, contexto e processos formativos do registro arqueológico.

Para tanto, deve-se fazer uso de ferramen-tas teórico-metodológicas que cooperem para compreensão do contexto regional sob a égide de abordagens paleoambientais, organização tecnológica, organização cultural-produtiva e, numa amplitude maior, a interpretação inter sítios ou do sistema de assentamento4.

Além do mais, alguns autores apontam que a mudança de um modo de vida nôma-de para um mais sedentário pode estar vin-culada a um número infinito de causas, mo-dificadas de região para região, de grupo para grupo, visto que isso envolve novas relações sociais (e de poder) intra-grupo, novas estratégias de mobilidade e apropria-ção de recursos, e mesmo uma maneira de perceber a paisagem que interfere no pa-drão de assentamento, nos rearranjos espa-ciais, em investimentos nas estruturas in-tra-sítio, etc5.

Não há um consenso na literatura so-bre os motivos reais para a sedentariza-ção, os quais são comumente vinculados aos seguintes itens:

• Crescimento populacional e pressão de-mográfica; • Indícios de complexidade social;

4 Discussões sob esses assuntos em Xingó são encontradas em Fagundes (2007:429-499).5 Segundo análises de Vergne (2004), o sítio Justino é marcado pela permanência cultural, sendo que as mudanças observadas nas cadeias operatórias ou nas estruturas internas do assentamento são vistas como um “rearranjo” na organização interna do grupo, em um processo de maior sedentarização nos terraços.

• Maior desenvolvimento tecnológico ou da arte;• Ou mesmo questões sócio-ambientais que interferem nos processos culturais do grupo (restrições, por exemplo).

A sedentarização, todavia, é responsá-vel por acarretar no aumento do número da diversidade de sítios componentes de um sistema regional de assentamento em função das especificidades inerentes às necessidades do novo sistema de subsis-tência/produtivo no tocante às estratégias de obtenção de recursos (exploração, pro-dução e apropriação). Com isso surgem novos sítios mais especializados para de-terminada atividade social (Hitchcock, 1987; Kelly, 1992).

Mediante este aparato teórico devemos ter em mente uma série de condições que afetam a estrutura de um sítio em relação à densidade e freqüência artefatual, varia-bilidade espaço-temporal da distribuição de vestígios e associações, e na própria tecnologia; que, de certo modo, permitem inferências acerca da emergência da com-plexidade social, padrões de mobilidade e sedentarização para compreensão do sis-tema regional de assentamento, a saber:

• Os processos naturais de formação de um sítio arqueológico;• Que a “função” de um sítio, associada ao tempo de permanência do grupo no assen-tamento, também são variáveis que alteram a estrutura e a formação do sítio arqueoló-gico;• Padrão de utilização e reutilização dos sí-tios arqueológicos;• Que não há necessariamente uma associa-ção entre o contexto de uso de um artefato e

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o seu contexto de descarte (noção de refugo primário, secundário e refugo de facto. Schiffer, 1972);• Flutuações climáticas e sazonalidade de recursos (ou abundância de recursos obte-níveis na paisagem);• Crescimento populacional e pressão de-mográfica;• Diferenças organizacionais nas estratégias de mobilidade (residencial e logística);• Manejo de informações e manutenção de território (disputas e competições intra e in-ter grupos);• Questões acerca da integração social, rela-ções familiares/ parentesco, relações de po-der, gênero e prestígios, assim como dife-renciação social;• A organização e os tipos de atividade que são levadas a cabo em um sítio, sejam bases residenciais ou locações de atividades espe-cíficas, estando vinculados aos preceitos culturais do grupo, além disso, dependendo do tipo de matéria-prima a ser manufatura-da, longevidade da atividade, aspectos sim-bólicos associados ao trabalho, podem alte-rar significantemente a cadeia operatória e o processo de descarte;• Cada grupo apresenta padrões próprios de manutenção dos sítios e atividades de des-carte, isto é, noções de higiene que alteram a formação do registro arqueológico;• Cada grupo tem percepções particulares sobre as atividades que desempenha, assim como noções próprias de como os objetos são usados e quando e porque devem ser descartados.

AS fASES DE oCUPAçãoCom base no referencial descrito, nos-

sas análises levaram a compreensão de cinco fases distintas de ocupação do sítio, obtidas por meio da distribuição espaço-

-temporal dos remanescentes culturais e aliadas às associações e estruturas no solo ocupacional do referido sítio arque-ológico. Além disso, pudemos perceber que a análise dos processos formativos vai de encontro com as conjecturas de Dominguez & Britcha (1997, p. 06), com concentração destes remanescentes em faixas entre 40 e 70/80 cm de espessura.

Logo, tendo como suporte os traba-lhos realizados em Xingó sobre paleoam-biente, sobretudo de Ab’Saber (2002) e Dominguez & Britcha (1997); acerca da ritualidade (Vergne, 2004); da bioantro-pologia (Carvalho, 2006), da análise da cultura material cerâmica (Luna, 2001), dos resultados laboratoriais das cadeias operatórias líticas (Fagundes, 2010a, 2010b, 2010c; Mello, 2005; Silva, 2005); formação e uso de sítios arqueológicos (Schiffer, 1983, 1987), entre outros; traça-mos um modelo sobre a ocupação espa-ço-temporal (análise intra-sítio) do sítio Justino e, a partir daí, inferirmos sobre a variabilidade espacial e relacional (aná-lise inter sítios), para compreensão do dos sítios em terraço do sistema regional de assentamento (Fagundes, 2007).

Logo, os episódios ocupacionais do sí-tio Justino foram pensados (e guiados) não exclusivamente pelas decapagens6 realizadas em campo, mas pela somató-ria de resultados das pesquisas científi-cas realizadas em Xingó, sobretudo após da sistematização dos dados pela equipe de geoprocessamento do MAX/UFS.

Entre as Fases 01 a 03 do Justino, sobre-tudo em torno das decapagens 59 até 25 – a análise dos remanescentes culturais permi-tiu a inferência de que neste terraço ocorre-ram flutuações em termos ocupacionais, sendo que na Fase 02 (decapagens 42 a 35),

6 O uso desse termo, para se referir às técnicas de escavação em Xingó, foi instituído por Vergne (2004).

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a freqüência artefatual demonstrou que a área foi mais procurada que nos demais pe-ríodos de ocupação (Fases 01 e 03), não ha-vendo no registro arqueológico, com base na distribuição e freqüência artefatual, evi-dências de abandono por longo período para a Fase 02.

Na Fase 01 observou-se que os solos de ocupação estavam abaixo do nível atu-al do rio no momento da escavação, ou seja, houve alterações em seu curso e/ ou volume ao longo do tempo. Tal fato pode ser a explicação pela quantidade menor de vestígios e, principalmente, a inexis-tência em algumas camadas de estrutu-ras de combustão (foram evidenciadas apenas manchas).

A fase seguinte (Fase 02) é um momen-to de presença de estruturas de combustão com material lítico e restos faunísticos as-

sociados, além de muitas manchas de dife-rentes colorações, algumas das quais com presença de restos faunísticos, ferramentas líticas e muito pouco carvão. Por meio do carvão extraído da fogueira 25 (decapagem 40) nos forneceu a datação mais antiga da área: 8950 ± 70 A.P. (Tabela 01).

Como veremos, esta fixação próxima ao rio adquiriu características peculiares de forma que podemos indicar o papel base do Justino neste momento, inclusive desta-cando que é a partir deste período que o sítio passa a ser utilizado como cemitério.

Além disso, como apontado nas análi-ses acerca da ritualidade funerária em Xingó realizada por Vergne (2004), se tra-ta do intervalo onde houve, segundo a autora, a menor distinção social entre os indivíduos, fato que nos permitiu inferir que não houve nenhum tipo de diferen-

Tabela 01. Datações do sítio Justino. Legenda: C14 (Carbono 14); TL (termoluminescência); AD (Dose aditiva); PD (pré-dose). Fontes: Vergne, 2004; MAX, 2006b; Santos & Munita, 2007

DecapagemProfundidade

(base da estrutura)

Método Laboratório Cronologia

03 40 cm C14 Inst. Radiocarbônico da Univ. de Lyon – França 1280±45 AP

06 60 cm C14 Inst. Radiocarbônico da Univ. de Lyon – França 1780±60 AP

08 90 cm C14 Instituto de Geociências da UFBA 2530±70 AP

10 1,10 m C14 Instituto de Geociências da UFBA 2650±150 AP

13 1,40 m C14 Inst. Radiocarbônico da Univ. de Lyon – França 3270±135AP

20 2,10 m C14 Beta Analytic – USA 4790±80 AP

30 3,10 m C14 Beta Analytic – USA 5570±70 AP

40 4,10 m C14 Beta Analytic – USA 8950±70 AP

04 0,50 m TL LabDat / UFS 2191±276 AP

08 0,90 m TL Instituto de Geociências da UFS 1800±150 AP

08 0,90 m AD LabDat / UFS 2010±430AP

10 1,10 m AD LabDat / UFS 2700±620 AP

10 1,10 m TL Instituto de Geociências da UFS 2050±140 AP

13 1,40 m PD LabDat / UFS 4310±800 AP

15 1,60 m TL LabDat / UFS 3865 ± 398 AP

20 2,10 m TL Instituto de Geociências da UFS 4496±225 AP

20 2,10 m AD LabDat / UFS 5500±980 AP

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ciação social e que a maior “fixação” nes-te período não esteja vinculada ao cresci-mento populacional ou questões acerca de prestígio, poder, cooperação ou mes-mo competição.

Nossa hipótese diz respeito às flutua-ções paleoclimáticas que podem ter ocor-rido (Ab’Saber, 2002; Cavalcanti, 2005), e que tiveram como conseqüência uma va-riabilidade significativa nos padrões eco-nômicos/ produtivos e de subsistência do grupo (grupos), obrigando-o a permane-cer mais tempo no canyon e próximo ao rio, local com maiores possibilidades e com menor propensão às flutuações pa-leoambientais do período, ou seja, com probabilidade menor de ocorrência de sa-zonalidade de recursos (Ab’Saber, 2002).

A Fase 03 (equivalente ao cemitério C entre as decapagens 34 e 16, em um in-tervalo de 2,10 m)7, foi datada entre 5570 e 3270 AP. Esta foi subdividida em três ocupações distintas: a primeira entre as decapagens 34 e 29 (um intervalo de 0,50 m), a segunda entre a 28 e 22 (um inter-valo de 0,60 m) e a terceira entre a 21 e 16 (um intervalo de 0,50 m).

No início são claras as evidências de ocupação e re-ocupação do sítio, que pas-sa por processos contínuos de abandono somados às curtas permanências dos gru-pos na área, fator verificável pela baixa densidade e diversidade de remanescen-tes culturais, evidenciando o uso do local enquanto acampamento temporário (en-tre as decapagens 34 e 24, um intervalo de 1,00 m aproximadamente).

A partir da decapagem 21 (entre 2,15 e 2,20 m de profundidade) há uma maior permanência no terraço, com incidência da explosão dos vestígios cerâmicos da de-

7 Lembrando que os sepultamentos ocorrem entre as decapagens 28 e 15.8 Decapagem 21 = 28 fragmentos; decapagem 20 = 41 fragmentos; decapagem 19 = 69 fragmentos.9 Para tecnologia cerâmica vide Luna (2001).

capagem 19 (entre 1,90 e 2,00 m de pro-fundidade) em diante.

A cerâmica surge no registro arqueo-lógico a partir da decapagem 32 (01 frag-mento de bojo evidenciado a 3,29 m de profundidade), entretanto só se torna re-presentativa entre as decapagens 21 e 19 (um intervalo entre 2,20 m e 2,00 m de profundidade)8, com significativo au-mento de elementos a partir da decapa-gem 17 (137 fragmentos evidenciados a 1,80 m de profundidade).

A Fase 04 é o período de mais intensa ocupação do Justino, visto que se observa maior quantidade e diversidade de rema-nescentes culturais. Todo o arranjo das estruturas, distribuição espacial, concen-trações e associações demonstram que o grupo tenha mudado sua morfologia so-cial, tornando-se, pelo menos hipotetica-mente, mais complexo. Em relação à tec-nologia lítica, não há mudanças extremas, exceto que o quartzo passa a ser mais uti-lizado para a confecção de instrumentos expeditos (ou de ocasião). Assim, há uma grande freqüência e diversidade dos con-juntos líticos e cerâmicos evidenciados (tanto no solo de ocupação quanto em as-sociação com os sepultamentos consti-tuindo o mobiliário funerário9.

A Fase 05, último período de ocupação do sítio entre as decapagens 08 e 01 (um interva-lo de 0,70 m), é datada em torno de 1300 A.P. é o momento que apresentou maior diferença tecnológica quando comparado aos demais, com a presença de artefatos líticos mais expe-ditos e vestígios cerâmicos pouco requintados no tocante à decoração plástica.

De modo geral, uma das características mais interessantes deste sítio diz respeito à diversidade e quantidade de cultura material,

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10 Cabe destacar que, entretanto, acreditamos que a tecnologia cerâmica deve ter ocorrido a partir da decapagens 21/20, em torno de 4790±80 AP. Vide Fagundes (2007), em especial capítulo 06.

tanto associada aos sepultamentos (enquanto ‘bens funerários’), quanto associada às estru-turas com contextos domésticos. A cerâmica, por exemplo, conta com 14743 fragmentos distribuídos a partir da decapagem 32 (3,29 m de profundidade), datada de 5570 ± 70 anos AP (datação para a decapagem 3010. O mate-rial lítico ocorre em todas as decapagens, sen-do que o polimento da pedra já é evidenciado na decapagem 40 datada de 8950 anos AP. a 4,10 m de profundidade.

Referente às estruturas de combustão, fo-ram evidenciadas trinta fogueiras, todas com carvão e outros remanescentes associados (ce-râmica, lítico, restos faunísticos, etc.), sendo que algumas relacionadas aos sepultamentos. Destas estruturas, um total de oito forneceu as datações absolutas em C14 (Tabelas 01 e 02). Além das fogueiras estruturadas foram eviden-ciadas 355 manchas escuras, muitas das quais com pequenos fragmentos de carvão associa-dos (além de restos faunísticos e cultura mate-rial), indicando que eram antigas estruturas de combustão, e outras que por prováveis ações naturais, permaneceram exclusivamente as manchas no solo. Ainda foram localizadas e demarcadas 11 manchas de tonalidade clara,

22 manchas vermelhas e 10 cinzas.Feitas as primeiras indicações, cabe des-

crições pormenorizadas das Fases e possí-veis ocupações para o Justino.

SoLoS PALEoEtnoGRáfICoS DA fASE 01 Do JUStIno

Na Fase 01 o sítio tem características cla-ras de acampamento temporário com dois momentos distintos de ocupação: o primeiro entre as decapagens 59 a 51 (6,00 e 5,20 m de profundidade), onde a freqüência artefatual é baixa, denotando que os grupos permane-ceram pouco tempo no sítio. Os remanescen-tes estão representados por sete manchas no solo e dezoito peças líticas. Foram evidencia-dos dois sepultamentos: sepultamento 159, decapagem 52; sepultamento 161, decapa-gem 51 (Vergne, 2004).

O segundo momento ocorre entre as deca-pagens de número 50 e 43 (5,20 e 4,40 m). Na Fase 01 não foram evidenciadas fogueiras, apenas manchas no solo, sendo que do total de manchas desta fase 75,0% concentra-se neste segundo momento ocupacional, indicando que o sítio (por algum motivo), passa a ser mais “visitado” ou que, perante as condições

Tabela 02. Fases de ocupação do sítio Justino

fasesnúmero das ocupações

decapagens profundidades datações

cem a

cem b

cem c

cem d

02

Fase 02

Fase 03

Fase 04

Fase 05

Fase 01

03

02

01

01

02

01

01

01

03–01 Intervalo de 0,20m entre 0,50 e 0,20 m

Intervalo de 0,40 m entre 1,00 e 0,50 m

Intervalo de 0,60 m entre 1,70 e 1,00 m

Intervalo de 0,50m entre 2,30 e 1,70 m

Intervalo de 0,60m entre 3,00 e 2,30 m

Intervalo de 0,50m entre 3,60 e 3,00 m

Intervalo de 0,70m entre 4,40 e 3,60 m

Intervalo de 0,70m entre 5,20 e 4,40 m

Intervalo de 0,80m entre 6,00 e 5,20 m

1280 ± 45 AP (decapagem 03)

1780 ± 60 AP (decapagem 06)

3270 ± 135AP (decapagem 13)

2650 ± 150 AP (decapagem 10)

2530 ± 70 AP (decapagem 08)

4790 ± 80 AP (decapagem 20)

Sem datação

5570 ± 70 AP (decapagem 30)

8950 ± 70 AP (decapagem 40)

Sem datação

Sem datação

08–04

21–16

28–22

34–29

42–35

50–43

64–51

15–09

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78

ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes

naturais, parte dos remanescentes da ocupa-ção anterior se perdeu com o tempo (?).

Sobre os vestígios líticos, que permitiu a identificação desta Fase de ocupação, o con-junto artefatual é marcado pela presença es-paçada de material, ou seja, distribuído irre-gularmente ao longo dos solos de ocupação.

Percebe-se que grande parte está consti-tuída por instrumentos (37,25%) representa-dos, sobretudo, por raspadores unifaciais sobre seixos e lascas corticais, obtidas por meio da técnica de redução unipolar, tendo como núcleo seixos de diversas morfologias, mas com preferência para aqueles mais achatados com planos de percussão natural, isto é, seixos que apresentavam determinada morfologia (pré-concebida) apta a receber golpes para a obtenção de suportes sem que necessitasse de transformações prévias em suas estruturas (Fagundes, 2010b).

Outro predicado importante é que o ma-terial não foi exclusivamente manufaturado neste sítio, ou seja, parte das ferramentas deve ter sido debitada em outros locais, sen-do levadas ao Justino como parte do estojo pessoal, fato que explicaria, inclusive, a pre-sença de núcleos no registro, totalizando 15,68% do conjunto.

Acreditamos que neste momento o sítio não era utilizado como cemitério, nem mes-mo esta ocupação teria caráter simbólico-ritu-alístico, sendo que os sepultamentos eviden-ciados nestas decapagens diriam respeito à Fase 02. De qualquer forma, é possível que os sepultamentos 159 e 161 sejam decorrentes do último momento de ocupação da Fase 01, fato que cooperaria para a explicação do aumento significativo de remanescentes culturais. Con-tudo, a análise das plantas baixas do sítio, o estudo dos conjuntos artefatuais, a freqüência de remanescentes culturais e a própria posi-ção estratigráfica dos sepultamentos eviden-ciados na Fase 01, sugerem que sejam intrusi-vos decorrentes da fase posterior.

Entre as decapagens de número 59 e 54 pudemos observar a escassez dos vestígios arqueológicos irregularmente distribuídos pela área escavada do sítio, com maior con-centração nas quadrículas FL 37/39, sobre-tudo no intervalo da decapagem 55 (aproxi-madamente 5,60 m e profundidade). Na AM 21/25 foi evidenciada uma mancha escura de 0,78 m2 de área com material lítico e res-tos faunísticos associados, seguindo entre as 58 e 57. Tudo indica que se tratava de uma fogueira, sendo a ausência de carvão causada pela ação de agentes naturais. Na FL 20/30, decapagem 58, foi evidenciado um percutor, isolado dos demais vestígios.

Entre as decapagens de número 53 e 51 (5,40 a 5,20 m de profundidade), ocorrem os primeiros esqueletos do sítio Justino. O en-terramento 159 tem sua base na decapagem 52, quadrículas FL 45/50, com muito mate-rial lítico no entorno o que indica a associa-ção como mobiliário funerário.

Sabendo que os sepultamentos são ‘intru-sivos’ tivemos o cuidado de analisar o entor-no das decapagens superiores (51 a 40) para observar indícios de remoção de material arqueológico dos níveis inferiores para os superiores devido ao ato de cavar o terreno para a execução da cova. Não há indícios desse tipo de remoção (o mesmo foi feito com o próximo enterramento).

Já o enterramento 161 tem sua base na decapagem 51 (5,20 m de profundidade), lo-calizado espacialmente nas quadrículas LM 44/45, ocorrendo o mesmo comportamento observado no enterramento anterior.

O que podemos extrapolar por meio da análise da distribuição espacial dos vestígios são as concentrações e associações com man-chas escuras que possivelmente eram foguei-ras e, desse modo, possibilitando a inferência do uso do sítio como acampamento temporá-rio. Na FL 10/15 foi evidenciada, por exemplo, uma mancha escura com 0,47 m2, com mate-

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2 :68-97 - 2010

rial lítico associado, além de outra pequena concentração de líticos nas quadrículas FL 15/20, indicando a associação com a mancha.

Entre as decapagens de números 50 e 43 (5,20 a 4,40 m de profundidade), ou seja, na segunda ocupação da Fase 01, foi possível ob-servar a maior concentração de enterramentos representados pelos de número 160, 163 e 161.

Realizando-se o exercício de sobreposi-ção dos planos de plotação dos vestígios das oito decapagens, observaram-se as se-guintes realidades:

• Muita concentração de vestígios no entorno dos enterramentos, o que sugere: (a) Mobili-ário funerário associado aos sepultamentos, supondo possível deslocamento vertical de alguns vestígios; (b) Mistura entre enterra-mentos e vestígios arqueológicos de ocupa-ções anteriores.• Concentração de vestígios arqueológi-cos associados às manchas no solo (de diferentes colorações), fora do contexto dos enterramentos.

Os dados apontam para a hipótese de que realmente os sepultamentos pertençam a Fase 02, destacando o fato de que eles ocorrem na face norte do terraço (exceto o de número 160), ambos concentrados entre as quadrícu-las AM 40/55, sendo que os indícios inequívo-cos do uso do assentamento como acampa-mento, referem-se aos vestígios e associações evidenciados nas faces leste/ nordeste. A ob-servação das planimetrias indica que os vestí-gios materiais associados às manchas estão dispostos ao redor e em semicírculo, caracte-rística que permite a inferência de que real-mente se tratavam de fogueiras.

Fato a ser destacado é a existência de manchas escuras com vestígios líticos de di-ferentes morfologias associados, localizadas nas quadrículas FL 45/50, a partir da deca-pagem 44 com ápice na decapagem 41, entre

0,80 – 1,10 m acima do sepultamento 159 (base na decapagem 52). A disposição e con-centração de vestígios associados às man-chas sugerem algum tipo de ritual que pode ter sido executado no ato do enterramento.

Em relação às demais manchas escuras evidenciadas nessa fase, podemos observar claramente que há prosseguimento de algu-mas entre as distintas decapagens, sugerin-do que eram fogueiras que, devido aos pro-cessos naturais, não foi evidenciado carvão. Na decapagem 49 foi evidenciar três man-chas entre as quadrículas FL 11/16, a primei-ra com 0,23 m2, a segunda com 0,36 m2 e a terceira com 0,42 m2.

Na decapagem 48 foram evidenciadas qua-tro pequenas manchas (todas inferiores a 0,20 m2), três escuras e uma avermelhada (FM 15/20), com material lítico associado. Perante as dimensões pode-se inferir que seriam pe-quenas estruturas de combustão para fins bem específicos. Nas decapagem 47/46 outra peque-na mancha avermelhada, quadrículas FM 25/30 (sem associações).

Na decapagem 45 ocorre uma mancha de 1,30 m2 nas quadrículas FL 50/55, com ma-terial lítico associado e outras duas na FL 45/50, porém sem associações; a primeira com 0,27 m2 e a segunda com 0,93 m2. Na decapagem 44 foi evidenciada uma mancha vermelha alongada com 0,42 m2, porém sem vestígios associados.

Enfim, o conjunto das decapagens, a dis-posição dos remanescentes culturais aliados à cadeia de produção dos conjuntos artefatu-ais líticos sugerem o uso temporário do sítio como acampamento nesse período.

A ausência de estruturas de combustão e de restos faunísticos em quantidade pode ser explicada pela ação de agentes naturais nos processos formativos do sítio, entretanto a seqüência dessas manchas, somada a dispo-sição dos vestígios líticos colaboram com nossas hipóteses.

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ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes

SoLoS PALEoEtnoGRáfICoS DA fASE 02 Do JUStIno

Na Fase 02 há mudanças significativas sobre o uso, orientação e permanência dos grupos no sítio, incidindo na própria tecno-logias (lítica em específico. Fagundes, 2010b). Foi datado pelo método C14 em 8950 ± 70 A.P. (Fogueira 25, decapagens 40/41. Beta Analytic), equivalente a um es-paço de 0,70 cm entre as decapagens 42 e 35 (entre aproximadamente 4,30 a 3,60 m de profundidade).

Há indícios que cooperam para a hipó-tese de que as ferramentas líticas passam a ser produzidas no Justino, visto que nas análises das seqüências operacionais e dos produtos gerados do processo de manufa-tura, 75,0% do conjunto está constituído por resíduos de lascamento, além da pre-sença significativa de núcleos (27 peças) e percutores (16 peças). Os instrumentos ainda aparecem em número elevado (17,51% do total), além disso, grande parte dos implementos foi manufaturada em arenito silicificado que ocorre em 30,43% das peças desta fase, índice significativo quando comparado com as demais fases ou sítios da Área 03.

Há cinco estruturas de combustão organi-zadas, com presença de carvão, além de qua-renta manchas escuras, todas com quantidade significativa de restos faunísticos. Outra carac-terística de suma importância é que não há sepultamentos nestes solos ocupacionais.

Nossa hipótese é que a partir deste perío-do o sítio Justino passa a ser concebido pelo grupo como um lugar persistente (Schlan-ger, 1992; Fagundes, 2009), dadas as caracte-rísticas de ambientação do local; sua impor-tância regional em termos de disponibilidade de recursos; acesso ao pediplano sertanejo pelo riacho Curituba, um dos maiores da re-gião; estabilidade micro-climática oferecida pelo canyon (Ab’Saber, 2002); e, quiçá, dada

sua utilização em longa duração, passou a integrar os sistemas de significação do grupo (Hitchcock & Bartram, 1998).

A base empírica para tais afirmações par-te da assertiva que é neste momento que no Justino passa a ocorrer os rituais funerários, e por acreditarmos que nenhum grupo en-terra seus mortos em um local aleatório, so-bretudo quando este local serviu de “cemité-rio” em um período que segue de 8950 A.P. até aproximadamente 1200 A.P.

Em suma, como todo enterramento é intru-sivo nos pacotes sedimentares, ou seja, se en-terra o indivíduo em covas rasas ou profundas; acreditamos que os sepultamentos evidencia-dos no cemitério D (entre as decapagens 44 e 52) são provenientes dessa ocupação, onde foi possível observar uma concentração maior de estruturas e associações. Assim, o terraço do Justino neste período passa a ser reconhecido pelos grupos como um signo.

Com base nos apontamentos de Schlan-ger (1992), acreditamos que a área onde foi evidenciado o sítio Justino, bem como todo o seu entorno, passa a constituir um lugar per-sistente, inicialmente relacionado às suas características funcionais, mas que, ao longo do tempo, seu uso foi redirecionado até ser incorporado aos sistemas cognitivo e de sig-nificação do grupo (ou grupos), assumindo um caráter ora residencial ora ritualístico, ou ambos; sobretudo relacionado ao apego sentimental como local dos ancestrais (Hi-tchcock & Bartram, 1998).

Assim sendo, neste período o local perpassa de entidade física e assume um caráter duplo. Um enquanto sua inerente materialidade e outro enquanto constitu-ído por aspectos cognitivos e comporta-mentais, visto que como lugar persistente pode ser concebido como um sistema de signos e símbolos apropriados e transmi-tidos por sociedades humanas (Mauss, 1974; Fagundes, 2009).

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Na análise da distribuição espaço-tempo-ral dos remanescentes culturais (687 no to-tal), percebe-se que a maior concentração de vestígios situa-se na face leste do sítio, espa-ço marcado pela existência de muitas man-chas no solo, com associação de cultura ma-terial lítica e restos faunísticos.

A estrutura de combustão 25, localizada entre as decapagens 41/40 e medindo 1,22 m2, apresentou material lítico associado e restos faunísticos. Fato a ser destacado en-quanto recorrência é que tanto nessa foguei-ra quanto em duas manchas escuras com material lítico associado, destaca-se a pre-sença de um percutor e de resíduos.

Ainda nas mesmas decapagens, na man-cha evidenciada entre as quadrículas AL 21/25 (mancha A), medindo 0,90 m2, há muito material lítico concentrado, constitu-ído por resíduos com presença de uma las-ca bruta, em sua maior parte; além de restos alimentares. Já a evidenciada entre as qua-drículas FM 10/15 (mancha B) trata-se de uma grande mancha medindo 2,15 m2, com blocos e vestígios líticos associados (resídu-os e um percutor). Conjectura principal diz respeito ao processo de reparo de instru-mentos durante o preparo de alimentos nas fogueiras (?), uma vez que não há indícios de lascamento ‘stricto-sensu’ ou de lasca-mento térmico que justificasse a presença de resíduos e percutores associados às fo-gueiras.

A primeira associação ocorre próximo ao local do sepultamento 158 associada a uma mancha escura de 1,80 m2, com pre-sença de muito material lítico (inclusive ar-tefatos) e restos alimentares carbonizados. A segunda concentração está localizada na FM 40/45, próxima de uma mancha 1,33 m2, com muito material lítico e restos fau-nísticos associados; a terceira na FM 50/55 outra mancha esta com 0,70 m2, com lítico associado; a quarta na FM 45/50, uma gran-

de mancha com 2,15 m2 de extensão; e a última na AE 50/55 de pequena dimensão 0,64 m2, mas com muito lítico associado.

Entre as decapagens 39 e 35 percebe-se que o comportamento da distribuição espa-cial continua o mesmo. Entre as decapa-gens 39/38 foram evidenciadas cinco man-chas escuras e três concentrações de material lítico (duas isoladas e uma asso-ciada à área de sepultamento).

Nas decapagens 36/37 a porção do sítio com maior concentração de vestígios está entre as quadrículas AM 10/25 (não relacio-nadas aos sepultamentos) e AM 30/45, rela-cionadas aos sepultamentos do cemitério D, mas é notório o uso mais freqüente do eixo AS 01/35, ou seja, área sem sepultamentos. Foi possível identificar as seguintes estrutu-ras e concentrações:

• Entre a decapagem 37/36, quadrículas FL 35/40, concentração circular de vestígios (líticos, vértebras de peixes e conchas calci-nadas), porém sem estarem associados às fogueiras ou manchas.• Duas manchas escuras na área de sepulta-mento, entre as quadrículas AE 40/45, a pri-meira (M01), associada a vestígios líticos, medindo 0,93 m2; a segunda sem associa-ções, medindo 0,48 m2.• Duas estruturas de combustão localizadas na face leste do sítio, com material lítico e restos faunísticos circundando ambas.

a) Fogueira 22, localizada na quadrícula AE21/25, medindo 0,36 m2.b) Fogueira 21, também localizada na quadrícula AE 21/25, medindo 0,25 m2.

• Logo atrás dessas fogueiras observa-se a presença de quatro manchas escuras, todas com material lítico e restos faunísticos asso-ciados, a saber:

a) Mancha escura 01, localizada na FL 25/20, medindo 0,61 m2, com muito líti-co associado.

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ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes

b) Mancha escura 02, ao lado da mancha 01, localizada na quadrícula FL 16/20 medindo aproximadamente 2,00 m2, sem material associado.c) Mancha escura 03 na mesma quadrí-cula da mancha 02, porém bem peque-na, aproximadamente 0,10 m2, sem ma-terial associado.d) Mancha escura 04, na FL 11/15, me-dindo 2,80 m2, com material lítico e fau-nístico associado.

O que se percebe é que este espaço do sítio foi utilizado constantemente. A título de especulação podemos considerar: (1º) Área habitacional; (2º) Área onde ocupa-ções seqüenciais ocorreram em um curto espaço de tempo, dada a quantidade de es-truturas de combustão e manchas que, es-tariam associadas às antigas fogueiras.

De qualquer forma podemos inferir que nesse espaço entre as quadrículas AM (S) 1/35, foi uma área com indícios de acampa-mento com o registro arqueológico apon-tando para o desenvolvimento de ativida-des relacionadas ao preparo de alimento, proteção e lascamento.

No tocante a tecnologia lítica, foi possí-vel perceber uma quantidade significativa de peças líticas (principalmente resíduos de

lascamento e núcleos), aparecendo geral-mente associados às fogueiras ou manchas no solo, indicativo de que pelo menos parte do processo de debitagem estava ocorren-do no local, tanto relacionado à produção de artefatos mais expeditos, sobretudo de quartzo, como também no processo de ma-nutenção/ reparo, este último processo in-dicado pela quantidade de estilhas de sílex.

SoLoS PALEoEtnoGRáfICoS DA fASE 03 Do JUStIno

A Fase 03 (entre as decapagens de nú-mero 34 e 16 – 3,50 a 1,70 m de profundida-de), coincidente com o cemitério C, é mar-cada por períodos de curtas ocupações, que podem estar associadas ao uso do sítio como acampamento temporário ou de in-cursões para visitação aos mortos, ou am-bas as situações.

Entretanto, a questão é: por que nesse pe-ríodo de quase 800 anos o terraço é suposta-mente ‘abandonado’ pelos grupos (entre 5570 A.P. a aproximadamente 4790 A.P. com base nas datações das decapagens 30 e 20)?

A Fase 03 foi dividida em três períodos de ocupação distintos, sobretudo relacionados às indicações de Dominguez & Britcha (1997). To-davia, antes de iniciarmos a descrição dos so-los evidenciados pelas escavações, acredita-

Tabela 03. Remanescentes culturais da Fase 02 do Justino. Legenda: EC= estruturas de combustão; ME=Mancha escura; RA=restos faunísticos; C=conchas.

decap. residuoslascas brutas

nucleos perutores artefatosliticos

totalec me ra c

total

vestigios

42 61 06 01 03 02 73 – 06 02 03 84

41 58 04 05 02 – 69 – 06 04 03 82

40 45 07 04 01 05 62 01 – 07 – 70

39 43 05 05 – 01 54 – 05 – – 59

38 52 05 03 02 01 63 01 07 – 05 76

37 66 12 02 03 03 86 02 06 – – 94

36 56 15 03 01 08 83 – 03 – – 86

35 85 26 04 05 08 128 01 07 – – 136

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2 :68-97 - 2010

mos ser interessante à realização de um exercício especulativo comparando a Fase 03 com as demais, em função da série de hipóte-ses que têm sido formuladas, pensadas e re-pensadas sobre esse sítio.

A equipe de escavação privilegiou datar o sítio em intervalos de 1,00 m de profundidade entre as decapagens 10 e 40, exceto que dadas às particularidades dos cemitérios B e A outras decapagens foram datadas. Com base exclusi-vamente nesses resultados das datações abso-lutas em C14, observou-se que durante a Fase 03, entre as decapagens 30 e 20, o processo de formação do terraço foi mais rápido que nos demais períodos, ou seja, em aproximadamen-te 800 anos fora acrescido mais um metro de sedimento, conforme tabela 02.

Os dados de paleoambiente que temos para a área de pesquisa (Ab’Saber, 1989, 2002, 2003; Cavalcanti, 2005), apontam para uma estabilidade climática no Nordeste a partir da passagem do pleistoceno para o holoceno, com a presença do clima semi--árido e da caatinga, sendo que, inclusive, a região passou por um período ainda mais árido do que atualmente, com estações se-cas mais prolongadas. Entretanto, é notório que o regime de cheias do São Francisco in-depende, até hoje, do clima semi-árido.

Assim, supondo que no período entre 5500 e 4500 A.P. as cheias e vazão do rio fossem mais intensas (e por isso que o processo depo-sicional foi mais rápido que nos demais – le-vando em conta os processos deposicionais coluviares e os erosivos), seria uma entre as possíveis explicações da causa do terraço ter sido ‘abandonado’? Seria em função desta condição que os demais sítios arqueológicos da Área 03, com base nas datações de alguns deles por termoluminescência, passam a sur-gir apenas após esse período?

Dessa forma, somando-se essas hipóteses com a nossa realidade empírica de que os grupos não permaneceram muito tempo no

terraço do Justino (além dos demais sítios surgirem após esse período), pode-se inferir sobre as causas desta quebra de estabilidade ocupacional entre a Fase 02 e Fases 04 e 05, representada pelas curtas permanências na primeira e segunda ocupações da Fase 03.

De qualquer forma, todos os dados apre-sentados são pouco conclusivos e, por isso, o caráter especulativo.

Mesmo com as indicações de Domin-guez & Britcha (1997) sobre as cheias do São Francisco e a intensidade das mesmas, não podemos afirmar com certeza até que ponto elas influenciaram na organização social desses grupos, sobretudo a partir da decapagem 20 onde a quantidade de rema-nescentes culturais, concentrações e asso-ciações são imensas, não havendo espaços sem presença de cultura material, enterra-mentos intactos (exceto na Fase 05, onde há muitas concentrações de ossos que podem ter sido enterramentos bioturbados, porém em função de diferentes causas), etc.

Logo é extremamente importante des-tacar que se trata de um exercício repleto de limitações, sobretudo do ponto de vista geomorfológico, uma vez que não está in-cluso em uma teoria interpretativa dos so-los, com dados acerca de índices erosivos e de sedimentação aliados à situação to-poambiental da área de estudo, destacando as qualidades de vazão e dinâmica alu-viais nos terraços.

Neste caso as informações aqui apresen-tadas não podem ser consideradas como conceitos chaves/interpretativos para ava-liação da Fase 03, mas indicam a necessida-de de estudos da relação deposição/erosão e formação do pacote arqueológico e sedi-mentar no holoceno médio em Xingó.

Em meio a estas extrapolações pode-se indicar que entre as causas da inexistência de remanescentes culturais em densidade no Justino decorre das suposições, a saber:

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ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes

• Que o processo de cheias (e vazão) do São Francisco impediu a ocorrência de ocupa-ções mais fixas ou prolongadas no terraço do Justino no período indicado.• Que em função desse provável período de ins-tabilidade ambiental, associado a uma maior e presumível vazão do São Francisco, transforma-do o terraço do Justino em um patamar antigo

de inundação; pode-se imaginar que tal ação deve ter interferido significantemente na com-posição de estruturas existentes e mesmo des-truído parte de um pacote cultural preexistente.

Ou seja, poderiam ter ocorrido duas situações:

• Os grupos estavam ali, porém as ações natu-rais foram responsáveis em desmantelar o re-gistro arqueológico; • Os grupos não permaneceram no local, vi-sitando-o com certa freqüência, mas em pe-quenas ocupações.

Sob o nosso ponto de vista, sobretudo após a avaliação dos mapas de plotação de vestígios, características da cadeia operató-ria lítica e a inexistência de pacotes arqueo-lógicos com sepultamentos provindos desse período; acreditamos que a realidade para

Decapa-gem Datação Método Profundi-

dade (M)Intervalo

(M)Formação

(Anos)

40 8950 ± 70 AP C14 4,10 1,00 –

30 5570 ± 70 AP C14 3,10 1,00 3400

20 4790 ± 80 AP C14 2,10 1,00 780

13 3270 ± 35AP C14 1,40 0,70 1520

10 2650 ± 150 AP C14 1,10 0,30 620

08 2530 ± 70 AP C14 0,90 0,20 120

06 1780 ± 60 AP C14 0,70 0,60 490

03 1280 ± 45 AP C14 0,40 0,30 1280

as primeiras ocupações da Fase 03 diz res-peito ao uso do sítio enquanto acampamen-to temporário, podendo estar relacionado ao desempenho das atividades cotidianas do grupo (grupos), bem como aquelas de caráter mais ‘ritualístico’ (visita aos ances-trais). Não acreditamos que se trata de solos de ocupação intactos, principalmente em função da complexidade que envolve a estrati-

ficação desse sítio.Se pensarmos o

sítio em sua totali-dade esse período não registra a pre-sença de estruturas de combustão or-ganizadas, apenas manchas (entre as decapagens de nú-mero 34 e 21 – de 3,50 a aproximada-mente 2,20/2,10 m de profundidade –

foram evidenciadas 62 manchas escuras no solo), e a própria distribuição dos vestígios nos solos de ocupação; pode-se inferir que ocorreram bioturbações significativas, mui-to embora a maior parte desses vestígios esteja associada às manchas de prováveis antigas fogueiras, nesse caso, pode-se infe-rir que os materiais mais leves (carvão, es-tilhas, restos faunísticos, etc.), possam ter sido mais facilmente carreados.

Feito nosso exercício, cabe a descrição das diferentes ocupações da Fase 03. A pri-meira ocupação ocorre em um intervalo de 0,60 m, entre as decapagens 34 e 29. é mar-cada pela presença de poucos remanescen-tes culturais, evidenciando o uso do sítio, sobretudo no eixo AS 1/35, fora da área de sepultamentos, dado que corrobora com nossa hipótese de seu uso como acampa-mento temporário, datado de 5570 ± 70 A.P. (Decapagem 30. Beta Analytic).

Tabela 04. Dados comparativos de formação do terraço Justino(partindo da sedimentação – sem índices erosivos)

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2 :68-97 - 2010

Os vestígios líticos estão representados por trinta e seis peças e, nesse período, ocorrem os primeiros elementos cerâmicos representados por seis fragmentos. Além disso, nota-se o número elevado de man-chas escuras no solo (32 no total).

Observa-se que na área dos sepultamen-tos relacionados ao cemitério D (AS 35/55) quase não há remanescentes culturais, sen-do que a maior parte dos evidenciados nes-se solo de ocupação diz respeito à parte oposta do sítio.

Na decapagem 34, quadrículas AE 20/25, foi evidenciada uma grande mancha escura de 2,80 m2, com bastante material lítico e restos alimentares associados, inclusive é a maior concentração de peças líticas dessa ocupação, visto que nas decapagens subse-qüentes o número de elementos é bem re-duzido, geralmente sem associações. As de-mais manchas desse período são numericamente significativas, porém muito pequenas, geralmente não passando de 0,20 m2, exceto por uma grande mancha escura evidenciada na decapagem 30, de 1,80 m2, localizada na área de sepultamento, quadrí-culas FL 50/55, podendo estar relacionada à ritualidade (?).

A segunda ocupação ocorre entre as de-capagens 28 a 22, em um intervalo de 0,70 m, não havendo datações absolutas para esse período entre 5570 e 4790 A.P., aproxi-madamente. Há uma diminuição dos rema-nescentes culturais no sítio, evidenciando o seu uso esporádico (sazonal), estando rela-cionado aos acampamentos temporários, como associado à ritualidade funerária, muito embora possa se alegar à ação de agentes naturais nos processos formativos do registro arqueológico.

Nesse período começam novamente a ocorrer enterramentos. Todavia, lembrando que todo o sepultamento é intrusivo, além disso, que há padrões regulares na confec-

ção das covas para os sepultamentos e que no Justino as camadas de ocupação apre-sentavam muito pouca inclinação (Vergne, 2004); é justo creditar que os indivíduos exumados entre as decapagens 28 e 22 (aproximadamente), sejam provenientes de um novo momento nos terraços em Xin-gó, representado pelo advento da tecnolo-gia cerâmica que deve ter ocorrido em tor-no 4790 ± 80 AP (datação para a decapagem 20), sendo que os elementos anteriores a esta decapagem devem ter origem também intrusiva em função da própria intervenção humana, pré-histórica, no solo; fato que de-ver ser somado às características acerca da freqüência e morfologia dos elementos evi-denciados.

Neste caso, recuamos o advento da ce-râmica em Xingó aproximadamente 1000 anos. Todavia, esta conjectura necessita de uma análise mais bem detalhada. Logo, o que queremos afirmar é que esses ‘mortos’ são provenientes das ocupações entre as decapagens 15 e 20/22, ou seja, do último período de ocupação da Fase 03.

Nessa segunda ocupação, há um redire-cionamento do uso do espaço, uma vez que o eixo de utilização se confirma no corre-dor AS 01/35 (aproximadamente 700 m2), como salientado, com o surgimento de se-pultamentos (decapagens 28 e 27). Diferen-te dos demais cemitérios estudados por Vergne (2004), não há concentrações espe-cíficas, estando os enterramentos distribu-ídos sob forma de conjuntos em semicírcu-lo tanto nas faces norte como face sul do sítio.

Para Vergne (2004), esses enterramen-tos estariam ‘arrumados’ em semicírculos acompanhando o que seriam as antigas ha-bitações dos primeiros ceramistas na área.

A partir decapagem 26 até a 23/22 ob-servam-se poucos vestígios materiais no solo de ocupação, contudo os vestígios

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ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes

líticos só aparecem associados às man-chas no solo, salvo raras exceções. Essas concentrações estão distribuídas irregu-larmente, sobretudo nesse espaço do sítio supracitado. De qualquer forma cabe uma pequena descrição dos remanescentes culturais por decapagem:

• Decapagem 28 – Entre as quadrículas FL 45/50 há um número significativo de cultura material lítica, entretanto associada aos se-pultamentos. Na quadrícula EF 49/51 foi evi-denciada uma mancha avermelhada no solo de 0,90 m2, com uma lasca bruta associada.• Decapagem 27 – ocorre a base do esquele-to 168 na quadrícula AE 26/30, com muito lítico associado como enxoval funerário. Na quadrícula FL 50/55 ocorre uma mancha escura de 0,30 m2 sem material arqueológi-co associado.• Decapagens 26 e 25 – quase não há vestígios materiais que ocorrem distribuídos pelo espa-ço do sítio, são quatro líticos e dois fragmentos cerâmicos. Há uma pequena mancha escura na área de sepultamentos, FL 45/50.• Decapagem 24 – ocorre o mesmo que nas anteriores, sendo evidenciados apenas dois fragmentos cerâmicos, associados a uma pe-quena mancha na quadrícula AF 15/20. Entre as quadrículas AM 10/20 há concentração de manchas escuras no solo, todas muito peque-nas e sem vestígios arqueológicos associados. Na quadrícula FL 49/52 uma mancha cinza de 0,73 m2, com um fragmento de resto faunístico.

Entre as decapagens 21 a 16 é o momento marcado pelo aumento significativo dos rema-nescentes culturais, sobretudo a cerâmica, sendo datado em 4790 ± 80 A.P. (Decapagem 20. Beta Analytic). Acreditamos que aqui é o momento de transição indicado por Vergne (2004), onde o grupo passa a se fixar por maior tempo no terraço do Justino, por todos os fato-res que temos discutido ao longo deste texto, ou

seja, um novo cenário que obrigou a popula-ção a traçar estratégias adaptativas ao meio natural e social; tal fato é observado empirica-mente pelos itens, a saber:

• O aumento significativo dos remanescentes culturais evidenciados na escavação, sobretu-do referente aos itens que são descartados na área habitacional (espaço ‘doméstico’).• Pela mudança na tecnologia lítica e pelo advento da cultura material cerâmica.• Pela diminuição paulatina na diversidade do uso de recursos líticos.• Diminuição dos implementos de curado-ria nos solos de ocupação do Justino que, inversamente, passam a existir nos sítios de atividade específica.• Surgimento de novos sítios de terraço.• Diminuição na mobilidade residencial e aumento na logística.

A partir da decapagem 21 observa-se o aumento de cultura material lítica e cerâ-mica, bem como o número de sepultamen-to que, supostamente, sejam decorrentes das ocupações anteriores. Há também uma nova realidade no uso do espaço no tocan-te aos locais onde os sepultamentos estão sendo levados a cabo, passando a se con-centrar na FL 10/35 e na PR 35/39. O que se pode observar por meio da disposição dos sepultamentos tanto vertical como ho-rizontalmente é uma ‘mescla’ entre os pa-drões do cemitério D e B. Novamente con-firmando a hipótese de Vergne (2004), de um período transitório.

A partir da decapagem 18/16, há uma ‘explosão’ de cultura material, associada ou não aos sepultamentos. é a partir des-se momento, com ápice no cemitério B, que acreditamos que o sítio passa a ser mais usado pelo grupo (ou grupos), tanto para execução de suas práticas cotidia-nas (enquanto espaço doméstico), quanto

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para as culturais-simbólicas relaciona-das às práticas mortuárias, como discuti-remos a frente.

Em resumo, a Fase 03 é marcada por diferentes níveis e tipos de ocupação do es-paço do Justino. Não sabemos as causas diretas do abandono do sítio durante a pri-meira e segunda ocupações, do mesmo modo, quais os motivos que levaram o gru-po (grupos) a utilizá-lo novamente como habitação após um longo período. De qual-quer forma o estudo dessa Fase foi de suma importância uma vez que foi possível ma-pear características para a compreensão do assentamento em sua totalidade.

SoLoS PALEoEtnoGRáfICoS DA fASE 04 Do JUStIno

A Fase 04, entre as decapagens 15 a 09, é o momento de explosão no tocante ao uso do espaço no Justino. Há um aumento sig-nificativo na quantidade, diversidade e con-centração dos remanescentes culturais, in-clusive com presença de diferentes estruturas no solo de ocupação, datado en-tre 3270 ± 135 AP (decapagem 13) e 2650 ± 150 AP (decapagem 10).

Com base na distribuição estratigráfica dos remanescentes culturais, nos estudos sedimentológicos (Dominguez & Britcha, 1997) e da ritualidade funerária (Vergne,

Gráfico 01. distribuição espaço-temporal dos remanescentes culturais evidenciados na fase 03 do sítio justino. eixo y – quantidade de vestígios eixo x – decapagens: 01 = decapagem 36 e 19= decapagem 16

2004), pode-se observar que não há interva-los de abandono do sítio neste período, ca-racterística observada pela distribuição dos remanescentes culturais na estratificação, marcada pela presença expressiva de estru-turas em todas as decapagens.

Estes remanescentes estão distribuídos por toda a área do sítio, porém estando con-centrados na parte leste, mais próxima à encosta do canyon (entre as quadras AS 35/55); geralmente associados às diferentes estruturas, não apenas aos sepultamentos. Cabe ressaltar que neste período é que se encontra o maior número de enterramentos do Justino. Indiscutivelmente é na Fase 04, cemitério B, que o sítio estava sendo ocupa-do como habitação semipermanente.

A respeito dos sepultamentos exumados nessa Fase, pode-se concentrá-los em três momentos distintos, a saber:

• Entre as decapagens 14 e 13 (entre 1,50 m e 1,30 m de profundidade) – em que foram evidenciadas nove sepulturas e três agrupa-mentos de ossos, concentrados entre as quadrículas Mz 21/35; período datado em 3270 ± 135 A.P., com base no carvão da fo-gueira 09 evidenciada na decapagem 13.• Entre as decapagens 12 e 11 (entre 1,30 m a 1,10 m de profundidade) – em que foram evidenciados treze sepultamentos e três

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ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes

concentrações de ossos, entre as quadrícu-las Fz 21/32;• Entre as decapagens 10 e 09 (entre 1,10 m a 0,90 m de profundidade) – onde foi exu-mado o maior número de indivíduos, totali-zando trinta e nove sepultamentos e cinco concentrações de ossos, datados em 2650 ± 160 A.P., com base no carvão da fogueira 19; ambos localizados entre as quadrículas Fz 21/35.

Ainda segundo Vergne (2004) a distri-buição dos enterramentos nesse momen-to segue uma ordem lógica, estando divi-didos em diferentes conjuntos: um principal e quatro secundários, além do sepultamento n°165 que se encontrava completamente isolado dos demais.

é importante frisar que os conjuntos secundários trazem especificidades tais como vasilhames completos sobre o indi-víduo sepultado (conjunto 03, constituído pelos sepultamentos de número 118, 116 e 10), ou dentro de vasilhames cerâmicos (conjunto 04, sepultamento 167 e 166). Além disso, a distribuição espacial das sepulturas do cemitério B (em forma cir-cular e extremamente agrupados) sugere que os enterramentos tenham sido reali-zados seguindo o contorno da habitação (conforme Vergne, 2004).

Ou seja, com base nos dados empíricos da autora, percebe-se que os enterramen-tos distinguem-se até mesmo no espaço do sítio arqueológico, além disso, foi notória a hierarquia social entre os indivíduos, ob-servada em sua pesquisa por meio da aná-lise dos remanescentes culturais associa-dos aos sepultamentos como mobiliário funerário (Vergne, 2004).

Assim, diferente que se observou no Ce-mitério C, os sepultamentos aqui estão concentrados (salvo raras exceções) na face sul do terraço, entre as quadrículas Fz

21-35, perfazendo 225 m2, também abran-gendo o setor II do Justino (Vergne, 2004).

No que se refere aos conjuntos artefa-tuais líticos, a expediência é notória nes-se desse período, mas também encontra-mos artefatos mais bem manufaturados, sobretudo em sílex. Aqui o uso do quartzo torna-se realmente majoritário entre os conjuntos líticos (cerca de 73,00%). Nos-sa hipótese, como anteriormente se dis-cutira, vincula-se à maior sedentarização do grupo (grupos) nesse período, instau-rando decididamente o uso do assenta-mento como base (habitação).

Segundo nossas inferências, obtidas em meios aos dados estatístico-comparati-vos (Fagundes, 2007; 2010b), os núcleos es-gotados encontram-se nas decapagens fi-nais desta Fase (11 a 09), período que também ocorre a maior quantidade de resí-duos de lascamento (52,28% do total) e maior freqüência de percutores (52,38% do total). Tais recorrências indicam que em torno de 2500 A. P. a atividades redutivas para a produção de ferramentas líticas eram mais freqüentes, sobretudo para a manufa-tura de ferramentas expeditas para uso mo-mentâneo, com pouca preocupação com a morfologia ou questões relativas à durabili-dade ou ‘estética’, ou seja, a ferramenta de-veria ser útil para uma atividade imediata e certamente pouco especializada.

Na decapagem 11, por exemplo, a maior parte dos artefatos stricto-sensu estava constituída por ferramentas sobre seixo ou bloco, que receberam poucos golpes para a criação de um bordo ativo. São pouco espe-cializados e pela análise macroscópica per-cebeu-se que foram peças utilizadas e des-cartadas.

O conjunto artefatual depositado como mobiliário funerário, entretanto, há modifi-cações sensíveis. São peças mais bem elabo-radas, com marcas claras de manutenção/

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reparos em muitas, sendo que as ações transformativas pós-debitagem ocorrem com maior freqüência, denotando uma maior preocupação com a durabilidade do instrumento, características que afastam a possibilidade desse material ter sido manu-faturado exclusivamente para fazer parte do mobiliário funerário.

Em relação à tecnologia cerâmica obser-vamos uma maior diversidade de tipos de-corativos em relação à Fase posterior (Luna, 2001; Vergne, 2004).

No tocante ao estudo dos solos de ocupa-ção dada a quantidade imensa de material é quase impossível indicar concentrações e associações. São 61 manchas escuras, todas com remanescentes associados; 08 man-chas claras, 03 manchas vermelhas e 01 mancha cinza. No que diz respeito às estru-turas de combustão pode-se evidenciar 05 nessa fase do Justino, sendo que 02 que es-tavam associadas aos conjuntos de estrutu-ras funerárias foram datadas: as fogueiras 09 e 19.

Para essa fase, dada a quantidade de re-manescentes culturais nos solos de ocupa-ção, tornou-se difícil a visualização de con-centrações ou associações dos remanescentes culturais, exceto em casos específicos. Assim, julgamos não ser neces-sária a descrição minuciosa de cada uma das decapagens, exceto para algumas parti-cularidades, a saber:

• Na decapagem 09 a maior concentração de remanescentes culturais está na área de se-pultamentos. Na fogueira 09 (AF 15/20 com 0,18 m2 de dimensão) havia uma concen-tração de vestígios materiais, sobretudo ce-râmica, na face sul dessa estrutura, em for-ma de semicírculo. Na fogueira 08 (AE 16/20 com 0,80 m2), apesar de maior que a anterior não houve nenhum tipo de vestígio material associado.

• Na decapagem 10, quadrícula AE 35/40, foi evidenciada uma imensa mancha escura de aproximadamente 6,00 m2, retangular, com uma significativa quantidade de fragmentos cerâmicos e restos faunísticos associados. Na quadrícula ao lado, AE 40/45, foram evi-denciadas seis manchas escuras, todas de pequenas dimensões, porém também com muito material faunístico e fragmentos ce-râmicos associados (mancha 01 = 0,42 m2; mancha 02 = 0,40 m2; mancha 03 = 0,37 m2; mancha 04 = 0,17 m2; mancha 05 = 0,55 m2 e mancha 06 = 0,43 m2). Na qua-drícula FL 51/55 foi evidenciada a fogueira 19 (0,60 m2), com muitos remanescentes associados na face norte dessa estrutura, so-bretudo cerâmica, peças líticas e restos fau-nísticos.• Na decapagem 12 o maior destaque diz respeito à fogueira 15 (quadrícula AE 36/40 com 0,71 m2 de dimensão), onde havia grande concentração de remanescentes cul-turais, dispostos ao redor da estrutura (em círculo).

SoLoS PALEoEtnoGRáfICoS DA fASE 05 Do JUStIno

A última fase de ocupação do sítio está lo-calizada entre as decapagens 08 e 01 (um in-tervalo de 80 cm, entre 0,10 e 0,90 m de pro-fundidade), ocorrendo duas datações para o período: para a primeira ocupação 1780 ± 60 AP (decapagem 06); e 1280 ± 45 AP (decapa-gem 03), para a segunda ocupação.

A Fase 05 (equivalente ao cemitério A) foi subdividida por nós em duas ocupações, uti-lizando como critério a presença de sepulta-mento (que ocorrem entre as decapagens 08 e 04) ou ausência deles (entre 03 e 01). Entre-tanto, o estudo das cadeias operatórias líticas demonstrou uma similaridade extrema entre os conjuntos provenientes dessa divisão, no-toriamente arbitrária.

Como dito anteriormente, esse pode ser

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Decap. total

15 958

14 741

13 805

12 1010

11 943

10 913

09 1558

Total 6929

Tabela 05. Remanescentes culturais da Fase 04, Justino. Legenda: RES = resíduo; LB = lasca bruta; N = núcleo; PER = percutor; ART = artefato; CER = fragmentos cerâmicos; EC = estruturas de combustão; ME = mancha escura; MC = mancha clara; MV = mancha vermelha; MCZ = mancha cinza; RA = resto alimentar.

res

118

49

106

124

151

111

173

832

lb

06

15

08

07

10

12

14

72

cer

504

721

525

668

545

546

1054

4563

ec

03

01

01

05

me

08

10

03

15

08

12

05

61

mc

01

03

02

02

08

mv

01

01

01

03

mcz

01

01

ra

91

151

146

183

211

213

302

1297

n

03

02

04

02

04

03

03

21

per

02

03

05

03

02

06

21

art

07

07

04

04

08

07

08

45

total

136

76

127

140

175

139

198

991

vestÍgios lÍticos outros remanescentes

considerado o período com maior diferença entre os demais em relação à tecnologia lítica, com a presença de artefatos mais expeditos e vestígios cerâmicos apenas alisados (diferente das outras fases). Logo, a característica mais marcante desta fase é a expediência dos dife-rentes conjuntos artefatuais.

Também é o período com maior número de remanescentes culturais evidenciados em solo de ocupação. São tantas as estruturas e concentrações que em nossos exercícios de so-breposição de camadas o que conseguíamos ver era literalmente uma imensa mancha es-cura em toda a área (!). Nesse caso, nos atere-mos a citar a quantidade de remanescentes que, certamente, é assombrosa; as principais características tecnológicas dos conjuntos ar-tefatuais; e a disposição do cemitério e sua re-lação com os solos ocupacionais.

Assim foram evidenciados entre as decapa-gens 08 e 01 (apenas solo de ocupação, excetu-ando mobiliário funerário), 12821 remanes-centes culturais, a saber: 8667 fragmentos cerâmicos; 2513 elementos líticos; 17 estrutu-ras de combustão; 122 manchas escuras, com carvão associado; 01 mancha clara; 18 man-chas vermelhas; 05 manchas cinzas; 1972 res-tos fragmentos de restos faunísticos; 10 con-chas carbonizadas (Fagundes, 2007).

Em relação ao uso do espaço como cemi-

tério, percebemos um novo direcionamento dos enterramentos. Segundo análises de Verg-ne (2004), há dois subconjuntos principais nesse cemitério, ambos situados no quadran-te leste, entre as quadrículas AE /FL /R – 06/30. São sepulturas mais dispersas se com-paradas ao cemitério anterior, além de estarem distribuídas de forma alongada e não circular. Entretanto, percebe-se que os sepul-tamentos tanto o cemitério A quanto o B, não ocorrem na face sudeste/ sul do sítio, onde há muitas estruturas em meio a espaços vazios que podem indicar o local das habitações.

A indústria lítica é marcada pelo caráter expedito, com instrumentos sobre lascas de quartzo muito mal retocadas, mas na maioria sendo manufaturados sobre pequenos blocos de quartzo (11 peças), onde eram executadas pequenas retiradas para criação de bordo ati-vo, do mesmo modo ocorrendo em raspado-res sobre seixo todos unifaciais (12 exempla-res). O restante dos artefatos está representado por quatro raspadores sobre lasca quadran-gular e vinte e duas lascas retocadas. Desse total, vinte e nove são de quartzo, dez de sílex, dez de arenito silicificado e três de quartzito.

Foi nessa Fase de ocupação do sítio que te-mos os dados sobre zooarqueologia mais bem trabalhados sobre o Justino, análises executa-das por Silva (1994) e Palmeira (1997).

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Decap. total

08 958

07 741

06 805

05 1010

04 943

03 913

02 1558

01 6929

Total 12821

Tabela 06. Remanescentes culturais da Fase 05

res

462

568

190

225

222

218

200

202

2287

lb

11

14

12

15

13

12

13

20

110

cer

716

942

752

834

772

792

1944

1915

8667

ec

01

02

03

02

05

03

01

17

me

16

08

12

23

04

28

18

13

122

mc

01

01

mv

01

03

01

11

02

18

mcz

01

03

01

11

02

05

ra

293

238

197

218

64

366

314

282

1972

n

07

05

02

02

01

05

12

34

per

06

05

03

06

04

02

03

05

34

art

08

07

07

06

05

09

06

48

total

494

599

214

252

246

242

221

245

2513

vestÍgios lÍticos outros remanescentes

ConSIDERAçõES fInAISA redação da tese que deu origem a esse

artigo foi um desafio em todas suas etapas, principalmente se pensarmos na complexi-dade que envolve todas as questões arqueo-lógicas para a Área Arqueológica de Xingó, dentre as quais:• Seus conjuntos artefatuais não apresen-tam similaridades com as áreas circunvizi-nhas, sobretudo as ferramentas líticas e a tecnologia cerâmica;• O sítio Justino, nosso modelo gravitacional,

apresentou datações antigas em torno de 9000 anos A.P.; surgimento da tecnologia cerâmica no holoceno médio, por volta de 4500 anos A.P.; além dos 185 esqueletos evidenciados.

Em função dessas e outras tantas caracte-rísticas, discussões arqueográficas, metodoló-gicas e conceituais surgiram (e surgem) rela-cionadas ao Justino. Obviamente o modelo aqui apresentado para o Justino poderá não vir a ser consenso entre os pesquisadores que efe-tuaram trabalhos em Xingó, uma vez que as diversas interpretações que têm sido dadas ao sítio Justino, principalmente porque grande parte desses estudos teve como foco as análises intra-sítio deste assentamento.

Por ser um sítio em terraço fluvial, área

sujeita à dinâmica de um grande rio, o São Francisco – que tem cooperado efetivamen-te para as mudanças na paisagem ao longo dos anos; esperava-se encontrar um assen-tamento com estratificação no mínimo complicada, além de desarranjos estrutu-rais que, a priori, não possibilitariam (ou permitiriam) uma sistematização coerente dos dados empíricos em função dos prová-veis movimentos verticais das peças, mistu-ras entre camadas arqueológicas, impossi-bilitando uma compreensão dos solos

paleoetnográficos de ocupação (Leroi-Gou-rhan, 1950, 1972).

Precisávamos entender o rio, a caatinga, os diferentes compartimentos componentes da paisagem e, sobretudo, elucidar o contexto sis-têmico em um exercício reflexivo de como se-ria o modo de vida e dinâmica cultural em nossa área de pesquisa, buscando possibilida-des e limitações para questões acerca da mobi-lidade, da realização das atividades cotidianas, das seqüências operacionais e, conseqüente, organização tecnológica, da função de sítios e do sistema regional de assentamento.

Foi nesse momento que passamos a nos interessar pela paisagem (‘arqueológica’) e que descobrimos o conceito de persistent pla-ces (Schlanger, 1992). Derivado/ extraído da

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ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes

abordagem de lugar, assim como outros tan-tos ramificados do artigo de Lewis R. Binford (1982 11) em que o autor amplia noção de sítio arqueológico, sem desmerecê-lo, mas apon-tando para a necessidade de compreensão dos não-sítios e, principalmente, da importância em entender as inter-relações entre sítios con-temporâneos de uma área.

Assim, discorrer sobre lugares persistentes é diferente de falar em multicomponencialida-de, isto é, o uso do primeiro pressupõe que houve (ou há) no local sob intervenção, condi-ções tais que permitiram sua ocupação e reo-cupação em longa duração, diferente de um único sítio (ou conjunto de sítios) com níveis líticos e lito-cerâmicos.

Vale destacar que um sítio (ou sítios) multicomponencial pode ser integrante de um lugar persistente, mas a abordagem implica na ampliação da noção de sítio ar-queológico, compreendendo os espaços so-ciais, os não-sítios, as ocorrências arqueo-lógicas, etc.

Tal perspectiva está muito próxima ao que Mauss definiu como domínio em sua no-ção de estabelecimento (1974), todavia sendo aqui compreendida em um sentido mais es-pecífico para o uso em Arqueologia, uma vez que sob a ótica dos lugares persistentes pres-supõe-se a paisagem em sua totalidade.

Nesse caso, o Locus de ocupação ultra-passa o sítio arqueológico, estando consti-tuído por elementos bem demarcados no sistema sócio-cultural por meio de frontei-ras estabelecidas enquanto elemento de significação (mesmo que fluídas), e forma-dos por todos os locais de uso continuado, tanto em uma perspectiva sincrônica, quanto diacrônica (Silva-Mendes, 2007).

A intenção do conceito, dessa forma, é mapear a utilização em longa duração dos

Loci, refletindo sobre as condições que per-mitiram certas escolhas/ estratégias e as in-ter-relações entre sociedade versus meio que, ao final de nossa pesquisa, nos apareceu de maneira distinta do que concebíamos.

Constantemente nos reportamos ao con-texto enquanto uma unidade básica inter-pretativa. O artefato nos diz pouco (ou nada quando fora de seu ‘contexto’), as estruturas devem estar devidamente mapeadas em suas dimensões horizontal e vertical; sítios isolados nos respondem sobre uma realida-de fracionada. O contexto pressupõe totali-dade, partindo do estratigráfico (diacrôni-co); da distribuição espacial dos vestígios (sincrônico); do domínio de Mauss (1974) que supõe a interlocução entre as partes constitutivas de um lugar; ou do complexo situacional de sítios à moda binfordiana; se-guindo pela distribuição de diferentes sítios em diferentes compartimentos que consti-tuem uma paisagem; além das distintas as-sociações entre trabalho, organização tec-nológica e estratégias/ escolhas.

Assim, acreditamos que o Justino, nosso modelo gravitacional, foi ocupado em longa duração em distintos momentos da paisa-gem regional, sendo-lhe atribuídas pelo grupo (ou grupos) funções diversas ao lon-go do tempo, até que, em um período que coincide com o aparecimento da tecnologia cerâmica no registro arqueológico, houve uma maior fixação dos grupos no terraço, fato que não implica na não-existência de outros sítios habitacionais em outros com-partimentos da paisagem12.

O modelo criado teve como base os sítios de terraço e é nesse espaço que é aplicado (e aplicável), fato que não nos impediu de es-pecular sobre a mobilidade e dispersão es-pacial de sítios e ocorrências, tendo como

11 Ver também os textos de 1992, 2001.12 Não é insensato destacar que com isso não estamos relacionando cerâmica e sedentarização (ou semi), mesmo porque há grupos detentores dessa tecnologia aliada à horticultura que são extremamente ‘móveis’. Além disso, se pensarmos em uma morfologia social baseada na dinâmica do rio, nossas respostas ficam mais claras.

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2 :68-97 - 2010

aporte os geoindicadores para aplicação do conceito de lugares persistentes.

Os demais sítios (evidenciados nas cam-panhas de salvamento) surgem a partir des-se período, enquanto complementares às prováveis novas necessidades do grupo (grupos), mais complexo em sua organiza-ção social, obviamente, com base no estudo da ritualidade funerária de Vergne (2004).

Esse artigo encerra-se com um modelo de ocupação para Xingó, em suas particula-ridades atestadas no início dessas conside-rações, apresentando dados fundamentais para inserção dos grupos pré-históricos na paisagem constituída e remodelada ao lon-go de quase oito mil anos de ocupação, a saber:

• Na paisagem do pleistoceno para o holoce-no inicial (cerca de 12 a 9000 anos A.P. – Fa-ses 05 e 04) – bandos de caçadores coletores percorriam os diferentes compartimentos da paisagem, dentro dos aportes de mobili-dade apresentados por Binford (1982), per-mitindo a formação de sítios arqueológicos dispersos. Tal fato se fundamenta no núme-ro baixo de sítios em terraços com ocupa-ções de caçadores coletores (Justino e São José II). A indústria lítica, expedita, apre-senta artefatos mais bem elaborados que nas fases ocupacionais seguintes, sobretudo manufaturados em matérias-primas silico-sas. Em torno de 9000 e 8000 mil anos A.P., o terraço onde estava assentado o Justino passa a ser mais utilizado pelo grupo. O solo de ocupação registra uma maior densidade de remanescentes culturais, geralmente as-sociados às estruturas de combustão. Nesse momento que acreditamos que o grupo pas-sa a enterrar seus mortos no terraço. Entre-tanto, a imensa quantidade desses vestígios materiais estaria além de questões ritualís-ticas, uma vez que há estruturas com ferra-mentas líticas e restos alimentícios relativa-

mente distantes das áreas de sepultamento e todo o comportamento observável pelas plantas do sítio indicam uma setorização de atividades.• No holoceno médio (cerca de 5000 a 4000 mil anos A.P. – Fase 03) – o terraço passa a ser pouco freqüentado pelo grupo (ou gru-pos), que, pelo menos hipoteticamente, pode ter algum tipo de relação com o regi-me de cheias do rio. Os remanescentes con-centram-se em torno de possíveis estrutu-ras de combustão, ou melhor, manchas indicativas das mesmas. Não há presença de materiais leves, tais como estilhas ou carvão. No final desse período surge a tec-nologia cerâmica, sobretudo a partir da de-capagem 21/20.• No holoceno tardio (3000 a 1000 anos A.P. – Fases 02 e 01) – marcado pelo surgimento dos demais sítios na área arqueológica 03 que, segundo nosso modelo, estariam liga-dos ao sítio base enquanto locais de desen-volvimento de atividades especializadas, no chamado complexo situacional de sítios. No Justino há uma explosão de remanescentes culturais associados às estruturas ou em concentrações. A tecnologia lítica adquire um caráter ainda mais expedito, com predo-minância de lascas corticais ou semicorti-cais de quarto e raspadores sobre bloco e seixo, ambos com poucas ações transforma-tivas pós-debitagem.

Quando comparamos os conjuntos arte-fatuais de sítios contemporâneos compo-nentes de uma mesma área, percebemos que são complementares e, portanto, a aná-lise isolada não responderia às diversas in-terrogações que surgem ao longo da pesqui-sa. Tal fato foi observado nas análises dos conjuntos líticos em Xingó (Fagundes, 2010a).

Como já comentado, os pesquisadores responsáveis pelas análises paleoambien-

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ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes

tais em Xingó indicaram que mesmo me-diante ao regime de cheias do rio São Fran-cisco (que existiram), as denominadas “excepcionais” não eram tão freqüentes po-dendo ocorrer em intervalos de dezenas ou centenas de anos. Em suas palavras:

O principal risco geológico ao qual estas popu-

lações primitivas estavam sujeitas era sem dúvi-

da as cheias do rio São Francisco. As cheias ex-

cepcionais (com tempo de recorrência de

algumas dezenas ou até mesmo uma centena

de anos) podiam alcançar cerca de 25 metros

acima do nível normal do rio. Estas poderiam

resultar em grande destruição, até mesmo com

mortes, uma vez que se tratam de fenômenos re-

lativamente rápidos e de grande capacidade

destruidora (Landim Dominguez e Brichta,

1997:07) [grifo nosso].

Além disso, uma visão mais minuciosa sobre os espaços topográficos próximos ao terraço demonstra que há condições reais de formação de acampamento e/ou aldeias, distante cerca de 50 a 200m das margens do rio 13.

Durante as duas primeiras ocupações da Fase 03, atestamos que o sítio Justino passa a ser menos utilizado pelo grupo quando comparado as estruturas e remanescentes culturais com a Fase 02.

Uma das causas poderia ser estas cheias excepcionais entre 5500 e 4500 A.P., mas, novamente, não há dados concretos. No en-tanto, o emaranhado de dados elencados (Fagundes, 2007; 2010a, 2010b, 2010c) aca-bou por nos permitir inferir que os sítios da Área 03 em Xingó realmente seriam com-plementares em meio a um amplo sistema de assentamento regional: do sítio base, onde as atividades sociais cotidianas eram

levadas a cabo, aos sítios mais especializa-dos.

Esses dados partiram principalmente da análise das cadeias operatórias dos conjun-tos líticos. De modo geral podemos caracte-rizá-los (Fagundes, 2010b):

• Pelo uso de seixos com pré-disposição à retirada dos suportes desejados, representa-dos por lascas quadrangulares e trapezoi-dais, unifaciais, sendo que em alguns foram realizadas ações transformativas pós-debi-tagem, representadas por golpes de adelga-çamento e retoques (curtos e em escama), executados na face interna para atingir a externa (retoques diretos). O tipo de técnica mais freqüente é a unipolar, com uso de percutor duro. Em suma, a escolha pelo su-porte pressupõe uma economia nos gestos técnicos: seixos com certa morfologia para obtenção de lascas corticais ou semi para produção dos implementos líticos.• Pela produção de raspadores sobre seixos, novamente suportes previamente escolhi-dos por sua morfologia, onde foram realiza-dos golpes abruptos e perpendiculares ao eixo morfológico da peça para a obtenção de gume ativo, sendo este último muito pouco trabalhado e, quando há retoques, é evidente que foram realizados com a inten-ção de ativação do bordo.• Uso preferencial do sílex, mas o quartzo é extremamente utilizado, sobretudo para a obtenção de lascas corticais para uso oca-sional.• Utilização de pequenos blocos de quartzo, geralmente quadrangulares, como raspado-res, onde foram realizadas pouquíssimas transformações para adelgaçamento do bordo à ativação de um gume cortante.

Enfim, é uma indústria expedita, mas

13 Nesse caso, áreas inundadas pelo lago da UHE-Xingó. 14 Aliada a toda discussão em torno da dinâmica ambiental da área, não havia unidades crono-estratigráficas que orientassem de maneira inequívoca a escavação.

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2 :68-97 - 2010

que traz consigo traços fundamentais para a compreensão da pré-história de Xingó.

Uma das grandes discussões sobre o sí-tio Justino diz respeito a sua estratigrafia. Acreditamos que é uma estratificação com-plexa e de difícil leitura14 . Além havia a pos-sibilidade real de movimentação vertical das peças e mistura dos solos de ocupação. Justamente por isso preferimos seguir as orientações paleoambientais de Landim Dominguez & Britcha (1997).

Assim, não se pode negar que ocorrem movimentos verticais ou que processos ero-sivos foram responsáveis por perdas de par-celas significativas dos solos de ocupação, todavia estamos falando de uma área de 1265 m2 escavadas. Com a orientação des-

ses autores, guiamos nosso olhar para o sí-tio Justino. Com exceção das Fases 04 e 05, pudemos realizar exercícios com as plantas de plotação de vestígios e pudemos verificar que vestígios nessas camadas entre 40 e 70 cm se relacionavam em diferentes estrutu-ras ou concentrações (apresentado nesse texto).

De qualquer forma, o sítio Justino é um importante assentamento no vale do São Francisco e novos estudos são necessários para se discutir lacunas existentes, princi-palmente em sua estratificação. Para tanto, como apresentado em nosso doutoramento (2007), dados paleoambientais seriam fun-damentais para a compreensão do contexto arqueológico regional.

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ANÁLISE INTRA-SÍTIO DO SÍTIO JUSTINO, BAIXO SÃO FRANCISCO – AS FASES OCUPACIONAIS Marcelo Fagundes

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98ARTIGO

noVas perspeCtiVas soBre a arqUitetUra ritUal do planalto

meridional Brasileiro:

pesqUisas reCentes em pinhal da serra,

rs1.Jonas Gregorio de Souza e 2.Silvia moehlecke Copé

1.mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do mAE-USP, bolsista CAPES e pesquisador associado ao nuPArq-UfRGS. núcleo de Pesquisa

Arqueológica – nuPArq – Departamento de História – IfCH. Universidade federal do Rio Grande do Sul – UfRGS. Avenida bento Gonçalves, 9500. Porto Alegre – RS.

[email protected]. 2. Professora do Departamento de História e coordenadora do nuPArq-UfRGS. núcleo de Pesquisa Arqueológica – nuPArq – Departamento de História – IfCH.

Universidade federal do Rio Grande do Sul – UfRGS. Avenida bento Gonçalves, 9500.Porto Alegre – RS.

[email protected].

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AbStRACtIn this article we present the results of ex-

cavations in southern Jê mounds and earth-works located in Pinhal da Serra, Rio Grande do Sul. We make a distinction between small earthworks around burial mounds and large earthworks around a central plaza. In one of the mounds, we found two cremated burials, one primary and the other secondary. A large earthwork exhibited stratigraphical evidence that the earth for its construction was possi-bly brought from a long distance. We con-clude that the mounds and small earthworks were cemeteries for groups inhabiting pit houses nearby, while the large earthworks would demand, for their construction, the ag-gregation of many dispersed communities, which would also gather for rituals in the wide internal space of these structures.

KEY WoRDS southern Jê, funerary ritual, earthworks and mounds

RESUmoNeste artigo apresentamos o resultado

de escavações em montículos e aterros anelares Jê do Sul no município de Pinhal da Serra, RS. Fazemos uma distinção en-tre pequenos aterros cercando montícu-los funerários e grandes aterros cercando uma praça interna. Em um montículo fu-nerário encontramos dois sepultamentos cremados, um primário e o outro secun-dário. Um grande aterro apresentou, em sua estratigrafia, evidências de que a ter-ra usada em sua construção possivelmen-te foi trazida de longa distância. Concluí-mos que os montículos e pequenos aterros seriam cemitérios de grupos habitando casas semi-subterrâneas vizinhas, en-quanto os grandes aterros anelares de-mandariam, para sua construção, a agre-gação de diversas comunidades dispersas, que também participariam de rituais no amplo espaço interno dessas estruturas.

PALAvRAS-CHAvE Jê do Sul, rito funerá-rio, aterros anelares e montículos.

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Novas perspectivas sobre a arquitetura ritual do planalto meridiona l... Jonas Gregorio de Souza e Silvia Moehlecke Copé

IntRoDUçãoEste artigo é decorrente de uma comu-

nicação por nós apresentada no simpósio “Más allá de los Andes: monumentalidad y espacios públicos en las tierras bajas suda-mericanas”, ocorrido em 2009 durante o XV Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira. O objetivo do simpósio era com-parar diferentes casos de emergência de sociedades de nível médio de complexidade nas terras baixas da América do Sul, sendo uma de suas características arqueologica-mente reconhecíveis o investimento em construções monumentais e espaços públi-cos. O caso que apresentamos refere-se aos montículos funerários e grandes aterros anelares de função ritual dos grupos Jê do Sul, tradição arqueológica Taquara, em pe-ríodo pré-colonial. Acreditamos que esses sítios devem ser compreendidos como um dos muitos elementos no sistema de assen-tamento desses grupos, que incluía tam-bém conjuntos de casas semi-subterrâneas, sítios líticos e sítios lito-cerâmicos a céu aberto. A fim de compreender esse sistema de assentamento, examinamos inicialmen-te os diferentes tipos de sítios registrados e escavados pela equipe do Núcleo de Pesqui-sa Arqueológica (NuPArq) da UFRGS no município de Pinhal da Serra, RS. Para a análise específica dos aterros anelares e montículos, selecionamos para apresenta-ção os resultados das escavações de duas estruturas do sítio RS-PE-29: um montículo funerário cercado por um pequeno aterro anelar de 20 m de diâmetro, e um grande aterro anelar de 80 m de diâmetro cercando um amplo espaço vazio. Os dados prove-nientes dessas escavações nos permitiram levantar hipóteses relativas à articulação entre esses “centros cerimoniais” e os de-mais sítios da região, assim como questões relacionadas à escala da população que os construiu e utilizou.

o PRoJEto DE ESCAvAçõES Em PI-nHAL DA SERRA

Desde 2001 a equipe do Núcleo de Pes-quisa Arqueológica (NuPArq) da UFRGS está envolvida com o projeto de escavação dos sítios arqueológicos no entorno da Usi-na Hidrelétrica de Barra Grande, rio Pelo-tas, município de Pinhal da Serra, Rio Gran-de do Sul, na divisa com Santa Catarina. Em termos geomorfológicos, essa área faz parte do Planalto das Araucárias, cuja cobertura vegetal se destaca pela presença de floresta ombrófila mista (caracterizada pela predo-minância da Araucaria angustifolia) inter-calada com campos (IBGE, 1992).

Um levantamento inicial da área havia sido realizado na década de 1980 pelo ar-queólogo P. A. Mentz Ribeiro, que locali-zou sítios da tradição Taquara, incluindo casas semi-subterrâneas e sítios com ater-ros anelares e montículos. As datas de C14 obtidas em duas casas do sítio RS-PE-10, uma casa do sítio RS-PE-26 e outra casa do sítio RS-PE-28 se situaram entre cal AD 1.300 e 1.560 (Ribeiro & Ribeiro, 1985:79-80). Os sítios líticos da área foram remetidos por Ribeiro a um período pré--cerâmico. Além da localização e escava-ção de novos sítios, os trabalhos da equipe da UFRGS trouxeram novas hipóteses de pesquisa: a partir de uma perspectiva sis-têmica, a variabilidade de sítios na área foi entendida como representando não pe-ríodos distintos, mas diferenças funcio-nais dentro de um mesmo sistema de as-sentamento (Copé et al., 2002) (Figura 1).

Entre os diferentes tipos de sítios, pode-mos contar 1) as estruturas semi-subterrâ-neas; 2) os sítios lito-cerâmicos superficiais; 3) os sítios líticos superficiais; 4) os conjun-tos de aterros anelares e montículos. As es-truturas ou casas semi-subterrâneas são encontradas predominantemente em cotas altas, acima dos 800 m de altitude, em zonas

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:98-111 - 2010

de transição entre os campos e a floresta ombrófila mista que, nessas altitudes, é composta principalmente por matas de araucária. A maioria dos sítios é composta de 1 ou 5 estruturas, embora existam con-juntos de 6, 15, 19 e até 23 estruturas semi--subterrâneas. Nesses conjuntos, há uma predominância de estruturas pequenas e médias, entre 2 e 8 m de diâmetro (Salda-nha, 2005; Copé, 2007).

Os sítios lito-cerâmicos são variados em termos de dimensões: os sítios maiores, com concentrações densas de artefatos, grande di-versidade artefatual, e micro-estruturas de fo-gueira parecem corresponder a habitações, com a dispersão do material sugerindo descar-te primário de unidades domésticas, enquanto os sítios menores, muito variados (alguns com, outros sem micro-estruturas de fogueira e ne-

Figura 1 – Sítios arqueológicos identificados em Pinhal da Serra, RS

gativos de postes) mas com menor di-versidade de artefa-tos, poderiam cor-responder a lugares de atividades especí-ficas de diferentes tipos, como acampa-mentos ou habita-ções temporárias de famílias nucleares (Saldanha, 2005; Copé, 2007).

Os sítios lí-ticos superficiais apresentam concen-trações esparsas de grandes artefatos bi-faciais, sem micro--estruturas como fo-gueiras ou bolsões de lascamento. Con-centram-se em cotas altimétricas baixas, nas encostas pró-ximas à calha do

rio Pelotas, em zona de floresta ombrófila mista. Ao contrário do que supunha Ribei-ro, atualmente é possível interpretar esses sítios como áreas de atividades específicas dos ceramistas, provavelmente ligadas à abertura de roças e ao cultivo (Saldanha, 2005; Copé, 2007). Tal associação é de-monstrada pela presença, nesses sítios, dos mesmos tecno-tipos identificados nos sítios considerados de habitação – lito-ce-râmicos ou de estruturas semi-subterrâne-as – somado ao fato de que, nos sítios de habitação, encontra-se grande quantidade de debitagem e de lascas de façonagem, o que sugere que os instrumentos eram fa-bricados nas áreas domésticas e então transportados às áreas onde eram utiliza-dos (Copé et al., 2002; Saldanha, 2005).

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Novas perspectivas sobre a arquitetura ritual do planalto meridiona l... Jonas Gregorio de Souza e Silvia Moehlecke Copé

oS AtERRoS AnELARES E montíCULoSNosso foco neste artigo é um outro tipo de

sítio: os aterros anelares e montículos. Estru-turas construídas em terra com diferentes funções existem em todo o território Jê do Sul, o que causa uma profusão de termos para descrevê-los. Em conformidade com a pro-posta de Copé (2006:380) reservamos o termo montículo para as estruturas de caráter fune-rário. Estas não devem ser confundidas com os depósitos resultantes da construção de ca-sas semi-subterrâneas que, quando possuem a função de nivelar o terreno circundante à casa, podem ser chamados de aterros. Em Pi-nhal da Serra e em outras regiões do planalto, os montículos aparecem cercados por aterros anelares, termo que adotaremos para desig-nar “muros” de terra formando um contorno circular ou, mais raramente, retangular. Esse tipo de sítio foi inicialmente estudado na pro-víncia argentina de Misiones, cidade de Eldo-rado, onde, no topo de um morro com boa vista dos arredores, um aterro anelar de 180 m de diâmetro cercando um montículo em associação com cerâmica Taquara (chamada então de Eldoradense) e unido a outros qua-tro aterros anelares foi descrito pelo arqueó-logo Oswald Menghin, que interpretou essa estrutura como remanescente de uma antiga paliçada cercando um túmulo, representado pelo montículo, à semelhança das atuais al-deias circulares Jê (Menghin, 1957). Recente-mente, os trabalhos nesse sítio foram retoma-dos por Iriarte et al. (2008, 2010) com novas questões e resultados, como comentaremos mais adiante.

Após as descobertas de Menghin, sítios similares foram identificados no Paraná e em Santa Catarina. No Paraná, Chmyz (1968) encontrou, no médio vale do rio Igua-çu, conjuntos de montículos alongados em topos de morros. Em um dos casos, os mon-tículos estavam cercados por um aterro ane-lar. Não foi possível identificar vestígios di-

retos de sepultamentos nessas estruturas, embora o autor descreva que na base de um dos montículos escavados havia uma fina camada de cor escura contendo muitos car-vões (Chmyz, 1968:46).

No planalto leste de Santa Catarina, nos arredores de Urubici, o arqueólogo João Al-fredo Rohr (1971) identificou aterros anela-res com dimensões que variavam de 15 a 70 m de diâmetro, localizados sempre em to-pos de morros com vista panorâmica dos arredores. Dos sítios visitados por Rohr, os aterros menores, de 15 e 20 m de diâmetro, cercavam montículos, ao passo que os de maiores dimensões, entre 30 e 70 m de diâ-metro, não apresentavam montículo em seu centro. Apesar da denominação popular de “danceiros” ou “terreiros de dança dos bu-gres”, Rohr conclui a partir de suas escava-ções que tais sítios seriam remanescentes de antigas aldeias fortificadas, uma inter-pretação similar à de Menghin.

Os aterros anelares e montículos de Pi-nhal da Serra foram primeiro descritos por Ribeiro (Ribeiro & Ribeiro, 1985). Levando em conta a possibilidade de os montículos encerrarem sepultamentos, o arqueólogo re-colheu amostras do solo para testes de Ph, que não apontaram qualquer diferença entre o solo dos montículos e o do terreno circun-dante. Somando isso ao fato de que nas estru-turas por ele escavadas foram encontrados fogões e cerâmica, Ribeiro segue Rohr e Menghin em suas conclusões e interpreta as estruturas de Pinhal da Serra como vestígios de aldeias cercadas por paliçadas, embora reconheça que algumas pudessem ter fun-ções distintas (Ribeiro & Ribeiro, 1985:90-91). Na verdade, a possibilidade de que os montículos poderiam ser de caráter funerá-rio sempre foi sugerida, mas nenhuma esca-vação pôde comprová-la, de modo que a hi-pótese das “aldeias fortificadas” foi mantida.

Uma vez que os trabalhos da equipe da

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UFRGS no mesmo município foram guiados por uma perspectiva sistêmica, que considera que os diferentes tipos de sítios representam diferentes atividades realizadas por um grupo humano em seu território, procurou-se, por amostragem, escavar um sítio de cada tipo a fim de se compreender sua função no sistema de assentamento local. O sítio de aterros ane-lares e montículos inicialmente escolhido para escavação foi o sítio RS-PE-21. Este con-siste em dois aterros anelares de 15 e 20 m de diâmetro, ambos cercando montículos. Foi aberta uma trincheira cortando parte do ater-ro da estrutura maior, bem como seu montí-culo central. Neste, aos 45 cm de profundida-de, foi localizada uma micro-estrutura de fogueira com ossos calcinados, cercada por terra queimada (Copé et al., 2002). Isso confir-mou a função funerária dos montículos, e desde então sítios semelhantes foram identifi-cados e escavados no vale do rio Pelotas e do rio Canoas em Santa Catarina, via de regra encontrando-se sepultamentos nos montícu-los (Herberts & Müller, 2007; Müller, 2008; De Masi 2006, 2009).

Este padrão, contudo, não é encontrado em toda a área de dispersão Jê meridional, sendo mais comum, em certos locais, o sepultamento

coletivo em grutas. Saldanha (2008) utili-zou essa diferença para desfazer a ima-gem demasiadamente homogênea que se construiu sobre os grupos Jê meridionais no passado. Para o autor, a diferença nos padrões de sepultamento entre Pinhal da Serra e Bom Jesus, RS, implica distintas concepções de ancestralidade e descen-dência. Em Bom Jesus, onde há sepulta-mentos coletivos em grutas em que os falecidos estão acessíveis à visitação futu-ra e manipulação, os ritos funerários es-tariam voltados para a negociação de ter-ritórios extensos congregando unidades formadas por diversas famílias dispersas, agregadas pelo uso dos abrigos rochosos

para sepultamentos coletivos. Por outro lado, em Pinhal da Serra, os aterros anelares e mon-tículos seriam de propriedade de grupos do-mésticos específicos, que por meio de tais mo-numentos funerários demarcariam seus territórios por referência a uma série de ances-trais identificáveis (Saldanha, 2008).

No entanto, nem todos os sítios de aterros anelares são de caráter funerário. Gostaríamos de ilustrar a variabilidade desses sítios a partir do conjunto abarcado sob a denominação RS--PE-29, que representa a maior concentração de aterros anelares e montículos na região de Pinhal da Serra. Esse conjunto tem sido traba-lhado intensivamente desde 2007 pela equipe da UFRGS. Todas as estruturas foram constru-ídas no topo alongado de um morro, em uma altitude de 900 m, com ampla vista dos arredo-res (Figura 2). A Estrutura 1 possui as maiores dimensões da região: trata-se de um aterro anelar, de forma circular, com 80 m de diâme-tro, porém sem montículo em seu centro (Fi-gura 3). Essa estrutura encontra-se entre as descritas por Ribeiro, tendo sido escavada pelo mesmo (Ribeiro & Ribeiro, 1985). Retornamos ao local com objetivos diferentes, buscando compreender o processo de construção do aterro anelar, que poderia ter se dado de duas

Figura 2. Localização das diferentes estruturas do sítio RS-PE-29, com plantas topográficas em detalhe. Imagem de satélite do Google Earth. Topografias realizadas entre julho de 2007 e fevereiro de 2009 por Rodrigo Torres (Es-trutura 1) e Jonas Souza (Estruturas 2, 3 e 4)

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formas: ou através do uso da terra do próprio local, ou através do transporte de terra recolhi-da em outra fonte. Essa segunda hipótese é sugerida pelo relato de Mabilde (1897:165) a respeito da construção de um montículo sobre a sepultura de um cacique Kaingang, emprei-tada para a qual seus subordinados transpor-tavam terra em cestos desde uma distância considerável, indo buscá-la nos barrancos às margens de algum arroio ou sanga. A fim de resolver a questão, abrimos duas trincheiras, uma cortando o aterro e outra na área interna cercada por ele, além de poços-teste nas áreas externas, fora da estrutura. A comparação da estratigrafia das diferentes áreas é um primei-ro indício de que o aterro anelar foi construí-do com terra vinda de outro local, embora análises de solo ainda estejam para ser reali-zadas, de modo a fundamentar essa hipótese. O que ficou claro durante os trabalhos de campo é que a trincheira escavada cortando o aterro revelou duas camadas inexistentes no espaço interno da estrutura. Após a camada húmica (I) e a camada II, mais argilosa e compacta, o aterro apresentou uma camada (III) bastante argilosa e viscosa, com uma mistura de manchas acinzentadas e escuras. A camada seguinte (IV) apresentava a mesma textura argilosa, coesa e viscosa, embora hou-vesse uma mudança na cor, mais amarelada, permanecendo, contudo, as manchas escu-ras. A coloração acinzentada e escura existen-te nessas duas camadas parece ser decorrente da presença de certa quantidade de matéria orgânica, o que, somado às demais caracterís-ticas, leva a crer que esse sedimento tenha sido transportado da beira de algum lago ou córrego, embora ainda não tenhamos deter-minado sua origem (Figura 3). Essas cama-das não estão presentes nas áreas internas ou externas ao aterro anelar, que apresentaram apenas a transição entre camada húmica e basalto decomposto comum ao latossolo da região, de modo que sugerimos que as cama-

das III e IV representam o evento de constru-ção do aterro anelar. Ao se realizarem análi-ses do solo recolhido nessas distintas áreas será possível testar a possibilidade, levantada pela comparação das estratigrafias, de que o

Figura 4. Planta baixa das Estruturas 3A e 3B, sítio RS-PE-29. Abaixo, planta topográfica da Estru-tura 3A, com indicação da área escavada entre janeiro de 2008 e fevereiro de 2009

Figura 3. Planta topográfica do sítio RS-PE-29, Estrutura 1, com identificação da trincheira esca-vada sobre o aterro anelar. Abaixo, estratigrafia do aterro anelar, com destaque para as camadas III e IV, que representam o evento de construção. Abaixo delas, a camada V já corresponde ao ba-salto decomposto

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aterro foi construído com sedi-mento alóctone – o que assumi-mos, no momento, como uma hipótese de trabalho.

Cerca de 400 m a noroeste, encontra-se a Estrutura 3, com-posta de dois aterros anelares, am-bos de forma circular e com 20 m de diâmetro, denominados A e B, cada um cercando um montículo (Figura 4). Entre 2008 e 2009, es-cavamos o montículo central da Estrutura 3A. Aos 25 cm de pro-fundidade, localizamos duas mi-cro-estruturas, a primeira delas constituída por uma mancha acinzentada, pequenos nó-dulos alaranjados e carvões, e ossos calcina-dos. Após completamente escavada a micro--estrutura, retirados todos os ossos e carvões, foi possível observar que esta se assentava so-bre um aprofundamento da camada, forman-do uma cova. A segunda micro-estrutura, loca-

lizada ao lado da primeira, consistia em diversos carvões de grandes dimensões e ossos calcinados cercados por terra queimada. A dis-posição e alinhamento dos carvões, alguns pa-ralelos, outros perpendiculares, permitem vi-sualizar a forma da pira funerária (Figuras 5 e 6). As datações feitas a partir do carvão asso-ciado aos ossos revelaram que essas duas mi-cro-estruturas não são contemporâneas, sendo a primeira datada de 490 ± 40 BP, cal AD 1410 a 1440 (Beta-242869), e a segunda de 340 ± 40 BP, cal AD 1480 a 1630 (Beta-242860). Essa última parece ser contemporânea ao sepulta-mento no sítio RS-PE-21, o primeiro da região a ser escavado pela equipe da UFRGS, cuja da-tação se situou em 350 ± 40 BP, cal AD 1480 a 1630 (Beta-242868).

Ocorrem, portanto, tanto sepultamentos primários quanto secundários. No primeiro caso, representado pelo segundo sepulta-mento do sítio RS-PE-29 3A e pelo sepulta-mento do sítio RS-PE-21, o montículo é er-guido diretamente sobre os vestígios da pira funerária, como é possível observar pela quantidade e disposição dos carvões, bem como pela presença de terra queimada cer-cando a micro-estrutura. No segundo caso, representado pelo primeiro sepultamento do sítio RS-PE-29 3A, o corpo é cremado em um determinado local, seus ossos desarti-culados são recolhidos e transportados,

Figura 6. Planta final da escavação no montículo da Estrutura 3A, sítio RS-PE-29. À esquerda, nota-se a pira funerária e, à direita, o sepultamento secundário. Abaixo, detalhe da posição estratigrá-fica dos dois sepultamentos sob o montículo

Figura 5. Fotografias da pira funerária (à esquerda) e das con-centrações de ossos calcinados (à direita). Montículo central da Estrutura 3A, sítio RS-PE-29

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possivelmente dentro de um cesto, para um local diferente, onde são depositados em uma cova sobre a qual se ergue o montícu-lo. Esses dois padrões foram também obser-vados em sítios escavados em Santa Catari-na, onde, assim como em Pinhal da Serra, ambos os padrões eram por vezes encontra-dos associados sob o mesmo montículo (Herberts & Müller, 2007; Müller, 2008; De Masi 2006, 2009). Para Müller (2008), a pre-sença única de piras funerárias em alguns dos montículos implica que este é um pa-drão de disposição diferente do sepulta-mento secundário. Por outro lado, os dados obtidos por De Masi (2006, 2009) sugerem que, ao menos no caso do sítio SC-AG-12, onde foram evidenciados 6 sepultamentos secundários e uma pira funerária com pou-cos ossos calcinados na base do montículo, não haveria sepultamentos primários no sentido estrito do termo, uma vez que a pira seria limpa dos ossos recolhidos para serem transportados ao local definitivo de sepulta-mento. No caso do sítio RS-PE-29 3A, a dife-rença nas datas refutou a hipótese inicial de que as duas micro-estruturas localizadas lado a lado representariam duas etapas do mesmo rito, implicando que, no caso em questão, é pertinente a diferenciação entre dois padrões de disposição dos ossos cre-mados, um primário (pira funerária com os ossos sepultada in loco) e outro secundário (ossos transportados em um cesto). Esta é, contudo, uma interpretação preliminar que pode ser alterada por escavações futuras de um número maior de sepultamentos.

DoIS tIPoS DE SítIoS:oS “DAnCEIRoS” E oS túmULoS

As duas estruturas analisadas corres-pondem a dois tipos diferentes de sítios: um, representado pela Estrutura 3, apresenta dois pequenos aterros anelares cercando montículos funerários; o outro, representa-

do pela Estrutura 1, apresenta um grande aterro anelar delimitando um espaço inter-no amplo e limpo, porém sem sepultamen-tos. Esse padrão pode ser encontrado desde as pesquisas de Rohr (1971), pois entre os sítios identificados por esse arqueólogo ape-nas os pequenos (aterros de 15 a 20 m de diâmetro) possuíam montículos, enquanto os maiores (65 e 70 m de diâmetro) cerca-vam um amplo espaço vazio. De Masi (2006) retomou essa distinção para o baixo vale do rio Canoas, Santa Catarina, denomi-nando os círculos menores com montículos de “túmulos” (e seus agrupamentos de “ce-mitérios”) e os círculos maiores sem montí-culos de “danceiros”.

O autor chega a essas conclusões a par-tir de analogia etnográfica com os Xokleng, habitantes da região por ocasião do contato. Os Xokleng praticavam a cremação dos mortos, sepultando-os sob pequenos montí-culos, de 60 cm de altura, ainda no início do século XX (Silva, 2001:152; Métraux, 1946:465). O cadáver, envolvido em um co-bertor, era disposto sobre uma pilha de ma-deira à qual se ateava fogo, retornando os participantes da cerimônia um dia depois para recolher os ossos calcinados em um cesto forrado com folhas de xaxim, que era então transportado ao local definitivo de se-pultamento, sendo depositado em uma pe-quena cova sobre a qual se erguia um mon-tículo cônico (Lavina, 1994:66). A construção de montículos funerários era também uma prática entre os Kaingang do Rio Grande do Sul (Mabilde, 1897), do Para-ná (Borba apud Silva, 2001:151) e de São Paulo (Métraux, 1946), embora sem a cre-mação. O rito funerário Jê do Sul envolven-do o sepultamento secundário após crema-ção e a posterior construção de um montículo sobre a cova pode ser traçado até o século XVII, graças à descrição do Pe. Ruiz de Montoya que, em missão entre os então

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chamados “Gualachos” da província espa-nhola do Guairá (hoje Paraná), testemu-nhou: “queman el cuerpo [...] recojen las cenizas y hacen un hoyo y enterranlas [...] y sus caciques hacen un monton de tierra so-bre la sepultura” (Montoya, 1628 apud D’Angelis e Veiga, 1996:94).

Em relação aos “danceiros”, não há equi-valentes etnográficos da construção dos mo-numentais aterros anelares. Contudo, De Masi (2006, 2009) faz uso de analogia com os locais onde os Xokleng realizavam o rito de iniciação que envolvia a perfuração dos lábios dos meninos. Para esse rito, os Xok-leng reuniam periodicamente todos os ban-dos dispersos e limpavam uma grande área circular, ao redor da qual construíam abri-gos; o rito, realizado na “praça” central, in-cluía o consumo de bebida alcoólica e cul-minava com a perfuração dos lábios dos meninos para introdução dos tembetás (La-vina, 1994:64). De Masi (2006, 2009) identi-ficou, em um dos “danceiros” escavados (sí-tio SC-AG-12), um grande número de estruturas de combustão na praça central, além de estatuetas de argila e um tembetá de quartzo, confirmando o caráter ritual do sí-tio e sua possível conexão com as práticas Xokleng descritas na etnografia. Em Eldora-do, Argentina, novas pesquisas realizadas no sítio originalmente descrito por Menghin (sítio PM01), um aterro anelar de 180 m de diâmetro, ao qual se ligam outros aterros anelares menores, trouxeram informações semelhantes: estruturas de combustão aná-logas a fornos subterrâneos ou de tipo “poli-nésio” – um tipo de estrutura descrita por Métraux (1946:452-453) para os Kaingang do período histórico – associadas a cerâmica contendo fitólitos de milho – sugerindo um evento de consumo de grande quantidade de comida e, possivelmente, de bebida fermen-tada de milho por ocasião da realização de festejos funerários, reforçando os paralelos

etnográficos (Iriarte et al., 2008, 2010). é im-portante ressaltar que, ao passo que no sítio SC-AG-12 os fornos estavam dispostos em semi-círculo ao redor de um montículo cen-tral, ou seja, na praça interna, no caso do sítio PM01 tais fornos se encontram direta-mente sob o aterro anelar, incorporados a ele. Embora a maioria dos grandes aterros anelares ou “danceiros” cerque um espaço vazio, espécie de “praça” interna, deve-se ter em conta que tanto no caso do sítio SC--AG-12 quanto no caso do sítio PM01 o gran-de aterro anelar e as evidências de feasting estão associados a um montículo central de caráter funerário. Para De Masi (2006, 2009), isso implica que os indivíduos sepultados no montículo central, um adulto e uma criança, possuíam um status diferenciado, marcado também pelos acompanhamentos funerá-rios que consistiam em uma fogueira e duas pequenas vasilhas. Em contraste, logo ao lado do grande aterro, foi localizado um aterro anelar de pequenas dimensões cer-cando um montículo com 6 sepultamentos, sem que houvesse quaisquer acompanha-mentos que se pudesse associar a um indiví-duo específico. Iriarte et al. (2008, 2010) também interpretam o sítio PM01 como um local onde um indivíduo de grande impor-tância foi sepultado no montículo central, sendo esse local revisitado periodicamente para a realização de festejos funerários en-volvendo o consumo de uma bebida fermen-tada de milho e grande quantidade de carne. Ao mesmo tempo, durante tais encontros se acrescia mais terra ao grande aterro anelar, aumentando suas dimensões ao longo de gerações, conforme evidenciado pelas datas obtidas em diferentes níveis do aterro (Iriar-te et al., 2008:951-953).

As novas pesquisas no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e em Misiones, Ar-gentina, proporcionaram novos dados que permitem refutar a hipótese de que os sí-

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tios com aterros anelares seriam aldeias fortificadas. Não só esses sítios não são ha-bitações, como também se encontram se-parados das habitações, o que lhes confere o caráter de “centros cerimoniais”, desig-nação já utilizada por De Masi (2009). Cen-tros cerimoniais são lugares onde diferen-tes grupos vindos de assentamentos dispersos se encontram periodicamente para a realização de rituais coletivos (Ber-nardini, 2004:331; Twiss, 2008:423-424). Exemplos freqüentemente citados desse tipo de sítio são os henges construídos du-rante o Neolítico na Inglaterra (Bradley, 1998), os templos em forma de U do perío-do formativo na costa peruana (Dillehay, 2004) e os aterros geométricos, montículos e avenidas do período Woodland médio nos Estados Unidos (Bernardini, 2004). Vimos que, no caso do planalto meridional brasi-leiro, esses sítios de caráter ritual podem ser de dois tipos: montículos encerrando sepultamentos cremados, cercados por pe-quenos aterros anelares, e grandes praças delimitadas por um aterro anelar. Adler e Wilshusen (1990), a partir da comparação entre casos etnográficos de sociedades que constroem estruturas arquitetônicas “pú-blicas”1 (categoria em que podemos incluir os centros cerimoniais), propõem uma dis-tinção entre estruturas de baixo e de alto nível. As estruturas de baixo nível, com pe-quenas dimensões e espaço interno reduzi-do, serviriam para integrar apenas uma porção da comunidade; as estruturas de alto nível, por outro lado, possuiriam espa-ços internos amplos, e serviriam para inte-grar uma comunidade inteira ou várias comunidades separadas.

Muitos dos montículos funerários estão nas proximidades de algum conjunto de casas

O termo “público” não tem aqui o mesmo significado do que quando aplicado às praças mesoamericanas e andinas, mas é utilizado por nós da mesma forma como se costuma chamar de público o espaço da praça central nas aldeias Jê e Xinguanas, por oposição ao espaço “privado” das casas. O espaço público, nestes casos, é onde se dão as relações cerimoniais, formais, que reúnem toda a aldeia (Da Matta, 1976).

semi-subterrâneas, e podem corresponder a cemitérios locais dessas comunidades (Salda-nha 2005, 2008). Celebrações funerárias ela-boradas reforçam os laços comunitários atra-vés da construção de uma memória coletiva representada pelos ancestrais falecidos. Esse é um aspecto que transparece especialmente nos sepultamentos secundários e múltiplos, como encontramos no planalto meridional. A cremação, limpeza, seleção dos ossos e seu transporte para o local definitivo de sepulta-mento, por vezes junto com outros indivíduos, além da construção do montículo e do aterro anelar, revelam grande esforço coletivo. Para-lelos etnográficos revelam que o rito secundá-rio, momento em que o morto é considerado propriamente sepultado, reúne a comunidade por completo, reprimindo a individualidade do morto e incorporando-o ao coletivo dos an-cestrais, enfatizando assim a unidade dos vi-vos após a ruptura causada pela morte (Twiss, 2008:437; Larsson, 2003; Pearson, 1999:22, 50). Propomos, portanto, que os montículos funerários podem ser considerados estruturas integrativas de baixo nível, construídos e visi-tados por moradores de conjuntos de casas semi-subterrâneas nas suas proximidades, que aí participavam de inumações secundá-rias e ritos funerários coletivos, reforçando seus laços comunitários.

Para os aterros anelares de grandes di-mensões, sugerimos uma função distinta. De Masi (2006, 2009) identifica, em um desses sítios, numerosos fornos, duas esta-tuetas de argila, uma plataforma central, dois sepultamentos secundários, e um tembetá, equiparando-os aos locais prepa-rados pelos Xokleng para a iniciação dos meninos, onde ocorria a reunião dos dife-rentes bandos dispersos ao longo do ano. Iriarte et al. (2008) descrevem um contexto

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similar para Misiones, Argentina, onde, além dos fornos que sugerem consumo de grande quantidade de alimentos, foram en-contrados vestígios de consumo de bebida fermentada de milho. Os autores destacam a criação de alianças e solidariedade entre diferentes aldeias através das celebrações no espaço ritual da estrutura anelar, espe-cialmente na situação de fronteira em que esta se encontra (Iriarte et al. 2008:12-13).

O espaço interno delimitado por esses grandes aterros anelares, uma verdadeira praça central, é apropriado para a agrega-ção de um número maior de pessoas do que as que participariam dos ritos funerá-rios nos montículos cercados por pequenos aterros anelares. Na Estrutura 1 do conjun-to RS-PE-29, com 80 m de diâmetro, a es-tratigrafia do aterro, como notamos no iní-cio do artigo, sugere que a terra usada para construí-lo foi trazida de outro local, apon-tando para um esforço muito maior na sua construção em comparação com os sítios de menores dimensões. Acreditamos, por-tanto, que esses grandes aterros anelares ou “danceiros” poderiam corresponder à categoria de estruturas integrativas de alto nível, mobilizando o trabalho de muitas comunidades diferentes, possivelmente provenientes de distintos conjuntos de ca-sas semi-subterrâneas dispersos pela re-gião, e cuja praça interna seria planejada para abrigar o grande número de pessoas provenientes dessas comunidades durante os rituais. Assim, a mesma comunidade poderia participar, com freqüência, de ritu-ais mais restritos em montículos funerá-rios e pequenos aterros anelares próximos às suas habitações, e também poderia, pe-riodicamente, integrar-se com membros de outras comunidades durante a constru-ção e a realização de rituais coletivos nos grandes aterros anelares. Essa é uma inter-pretação que deve ser testada em escava-

ções futuras, com o objetivo de recuperar evidências materiais de tais agregações.

Não se pode esquecer que essa dinâmica de agregações regionais é atestada pela etno-grafia dos grupos Jê do Sul. Já mencionamos o exemplo dos Xokleng, que reuniam os ban-dos dispersos periodicamente para a realiza-ção do rito de iniciação. No caso dos Kain-gang, que estavam tradicionalmente organizados em cacicados, essa dinâmica é ainda mais evidente. Segundo Fernandes (2004), os Kaingang estariam divididos em facções capazes de atingir formas de atuação conjunta. Tais divisões corresponderiam a grupos locais – formados por um conjunto de grupos familiares – com seus domínios político-territoriais autônomos, porém inter-ligadas por redes de aliança e conflito atra-vés das quais se organizavam para formar “blocos” de atuação política. O autor reco-nhece que os Kaingang se enquadrariam na definição clássica de sociedade segmentar, o que significa que seu sistema social é com-posto de grupos locais que podem se articu-lar em unidades maiores (Fernandes, 2004:102). Nesse caso a integração regional era mediada pelos caciques principais, auto-ridade máxima sobre um conjunto de gru-pos locais, havendo também caciques subor-dinados responsáveis por cada grupo. Fernandes (2004:103) destaca o papel das “festas” ou rituais, especialmente os de cará-ter funerário, na integração dos grupos re-gionais Kaingang. Já mencionamos que, conforme Mabilde (1897:165), os subordina-dos de um determinado cacique se reuniam por ocasião de sua morte para a construção de seu montículo funerário. Ainda recente-mente, o rito funerário Kaingang realizado periodicamente para se “rezar” pelos mortos recentes era peça central de sua sociedade, momento em que se integravam diferentes grupos e se fazia referência aos mitos de ori-gem, promovendo-se cantos e danças nos

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cemitérios acompanhados de bebida de mel fermentado (Veiga 2000; Crépeau, 1994). A centralidade dos ritos mortuários, bem como de rituais de outra natureza, para manuten-ção das redes de interação e integração re-gional são aspectos ressaltados pelas etno-grafias que as pesquisas arqueológicas têm demonstrado serem também válidos para o período pré-colonial, de modo que podemos estar tratando de questões estruturais para as sociedades Jê do Sul.

ConCLUSãoAs pesquisas em Pinhal da Serra trouxe-

ram informações adicionais sobre a varia-bilidade dos sítios de aterros anelares e montículos no planalto meridional. O cená-rio que propomos possui paralelos em ou-tros contextos arqueológicos e etnográficos, como mencionamos ao longo do artigo: a agregação periódica de comunidades dis-persas, materializada na construção e uso de monumentos públicos de caráter ceri-monial, é utilizada para explicar desde os barrows e henges da Inglaterra neolítica (Bradley, 1998) até os templos da costa pe-

ruana no período formativo (Dillehay, 2004). A arquitetura padronizada desses monumentos – assim como no caso Jê do Sul – pode ser interpretada como resultante da interação a nível regional dessas popu-lações: cada comunidade constrói e usa múltiplos monumentos, ao mesmo tempo em que diferentes comunidades podem convergir na construção e uso de um único centro cerimonial de maior importância (Bernardini, 2004:336).

Apesar de ser um processo recorrente na trajetória das sociedades humanas, a or-ganização regional e a emergência de mo-numentos e espaços públicos possuem ca-racterísticas próprias em cada época e cada local. Acreditamos que nossas pesquisas nos aterros anelares e montículos do pla-nalto meridional (um contexto ainda pouco conhecido) são uma importante contribui-ção a um cenário que, graças às discussões a respeito de sítios como os geoglifos do Acre, as estruturas megalíticas do Amapá e os sambaquis do litoral, tem demonstrado a originalidade e a complexidade do passado das terras baixas sul-americanas.

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111

REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:98-111 - 2010

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112ARTIGO

leVantamento arqUeológiCo

na aldeia lalima, miranda/ms: Uma

ContriBUiçÃo ao estUdo da traJetória históriCa

da oCUpaçÃo indÍgena regional

Eduardo bespalezDoutorando em Arqueologia no mAE/USP, bolsista CAPES,

[email protected].

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113

REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:112-135 - 2010

AbStRACtIn the Indigenous Territory called Lalima

village were identified 13 sites and 7 archaeo-logical occurrence areas, consisting of Gua-rani materials, of Pantanal Tradition (similar to the Jacadigo Phase and to the of MS-CP-25 site), and materials associated with the his-torical formation of the current ethnographi-cal context. Considering the detected materi-als as correlates of the historical trajectory of indigenous occupation in the village, propose that Lalima can be understood as a palimp-sest of the indigenous regional history and suggest some issues relating to the deepening of archaeological research in the area.

KEY WoRDS Archaeological survey, Indi-genous History, Lalima Indigenous Village/Miranda/Mato Grosso do Sul

RESUmoNo Território Indígena multiétnico de-

nominado Aldeia Lalima foram identifica-dos 13 sítios e 7 áreas de ocorrência arque-ológica, constituídos por materiais Guarani, da Tradição Pantanal (análogos aos da Fase Jacadigo e aos sítio MS-CP-25) e por mate-riais associados à história de formação do contexto etnográfico atual. Considerando os materiais detectados como correlatos da trajetória histórica da ocupação indígena na Aldeia, proponho que Lalima pode ser com-preendida como um palimpsesto da história indígena regional e sugiro algumas ques-tões relativas ao aprofundamento das pes-quisas arqueológicas na área.

PALAvRAS-CHAvE Levantamento Arque-ológico, História Indígena, Aldeia Lalima/Miranda/MS

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114

Levantamento arqueológico na Aldeia Lalima, Miranda/MS: uma contribuição ao estudo da trajetória histórica ... Eduardo Bespalez

de formação do registro arqueológico e os significados da variabilidade artefatual; b) no contexto arqueológico, histórico e et-nográfico da ocupação indígena regional; e c) na detecção de um sítio arqueológico com vestígios Guarani na Aldeia Lalima (Kashimoto & Martins 2008: 153, 155).

As pesquisas sobre os processos de for-mação do registro arqueológico, principal-mente no que se refere aos seus aspectos culturais, levaram ao entendimento dos vestígios arqueológicos como correlatos materiais da dinâmica histórica e cultural de longa duração da ocupação indígena re-gional (Barton, 2004; Binford, 1981, 1983; Cameron & Tomka, 1993; Nelson, 1997; Panja, 2003; Schiffer, 1987; zedeño, 1997). Já os estudos relativos aos significados da variabilidade artefatual, conduziram à com-preensão dos vestígios arqueológicos en-quanto testemunhos dos sistemas tecnoló-gicos desenvolvidos no ínterim dos sistemas culturais das populações indígenas que ocuparam a região, o que significa que os

1 Este artigo sintetiza a Dissertação defendida pelo autor no Programa de Pós-graduação do MAE/USP em março de 2009, sob orientação de Fabíola Andréa Silva. A realização do projeto de pesquisa contou com fomento da FAPESP, através de Bolsa de Mestrado (Processo nº 05/57404-0) e Auxílio Pesquisa (Processo nº 06/60241-8). As autorizações necessárias à realização da pesquisa arqueológica e à entrada na Terra Indígena (TI) Lalima foram respectivamente concedidas pelo IPHAN, com apoio institucional do Museu de Arqueologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (MuArq/UFMS), conforme “Portaria 039/07, Seção I do Diário Oficial da União”, e pela FUNAI, de acordo com “Autorização para o ingresso em TI nº 24/CGEP/07”.

IntRoDUção: A ALDEIA LALImA EnQUAnto PALImPSESto DA HIStóRIA InDíGEnA REGIonAL

Em um trabalho preliminar de levan-tamento arqueológico1, busquei demons-trar que o Território Indígena (TI) mul-tiétnico de maioria Terena denominado Aldeia Lalima, localizado na margem di-reita do médio curso do rio Miranda, Pan-tanal de Mato Grosso do Sul (ver mapas 1 e 2), poderia ser compreendido como pa-limpsesto da trajetória histórica da ocupa-ção indígena regional (Bespalez, 2009). Tendo como objetivo principal contribuir com o estudo da história cultural na re-gião, através de um entendimento de ar-queologia enquanto história indígena de longa duração (Eremites de Oliveira, 2003; Heckenberger, 2005; Hodder, 1987; Neves 2000), esta proposição foi sugerida com base em: a) um arcabouço teórico e metodológico apoiado nas definições con-ceituais e nos modelos teóricos concebi-dos com as pesquisas sobre os processos

Mapa 1. Mapa de localização da terra indígena Lalima

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:112-135 - 2010

sistemas tecnológicos dessas populações apresentavam-se de modo estritamente co-nectado com os outros elementos que com-punham os seus respectivos sistemas cultu-rais (Conkey & Hastorf, 1998; Dias & Silva, 2001; Lemonnier, 1992; Schiffer & Skibo, 1997; Silva, 2000).

As pesquisas arqueológicas realizadas no Pantanal, compreendido como área de mosaico cultural, sugerem que o início da trajetória histórica da ocupação indígena foi protagonizado por grupos caçadores e cole-tores que se estabeleceram nas áreas de re-fúgio ecológico, situadas nas escarpas cir-cun-adjacentes e nos planaltos residuais, na transição Pleistoceno-Holoceno (Ab´Sáber, 2006; Eremites de Oliveira, 1999; Schmitz et al., 1998; Vialou, 2005). No holoceno médio, com a expansão dos stocks florísticos e fau-nísticos por conta do fenômeno de aqueci-mento global denominado optimum clima-ticum, houve um processo de intensificação

da ocupação caçadora-coletora, seja através do crescimento demográfico dos grupos es-tabelecidos desde o holoceno inicial, ou pelo assentamento de outras populações, do modo como correlato nos sítios estudados no Planalto de Maracajú e no rio Paraná, em Mato Grosso do Sul, na Cidade de Pedras, no Mato Grosso, e na propagação dos aterros nas planícies inundáveis do Pantanal (Ere-mites de Oliveira 2003; Kashimoto 1997; Martins 2003; Vialou 2006). Em torno de 3 mil anos atrás, o processo de intensificação da ocupação indígena nas planícies e maci-ços no Pantanal tornou-se ainda mais dinâ-mico, com as transformações culturais ver-ficadas nos conjuntos de materiais cerâmicos classificados nas Fases da Tradi-ção Pantanal (Eremites de Oliveira, 2004; Felicíssimo et al., 2004; Migliacio, 2000; Pei-xoto, 2002; Peixoto & Bezerra, 2004). Por volta do início da era cristã, a configuração etnográfica encontrada pelos europeus co-

Mapa 2. Mapa de localização dos sítios arqueológicos na terra indígena Lalima

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Levantamento arqueológico na Aldeia Lalima, Miranda/MS: uma contribuição ao estudo da trajetória histórica ... Eduardo Bespalez

meçou a tomar forma, com o estabeleci-mento, nas áreas mais férteis da região, de populações agricultoras e ceramistas de matriz cultural Macro-Jê, Tupi e Aruak, sendo as primeiras provenientes do Planal-to Central e as outras da Amazônia (Berra & De Blasis, 2006; Brochado, 1984; Hecken-berger, 2002; Heckenberger, Neves & Pe-terssen, 1998; Kashimoto & Martins, 2008; Migliacio, 2000-2001, 2006; Noelli, 1996; Peixoto, 1998; Pärssinen, 2005; Póvoa, 2007; Wüst, 1990).

Os dados históricos e etnográficos seis-centistas e setecentistas indicam que o rio Miranda era ocupado por populações cultu-ralmente distintas nos primeiros séculos do colonialismo (Costa, 1999; Esselin, 2000; Gadelha, 1980; Nimuendajú, 2002; Souza, 2002). O jesuíta Diego Ferrer, em uma ânua escrita em 1633, dividiu as sociedades indí-genas na Provincia del Itaty, nome dado ao antigo território do Paraguai colonial que incluía parte considerável do que atualmen-te é o Mato Grosso do Sul, em dois grandes grupos: os Guarani-Itatim e os Gualacho (Cortesão, 1952:47). No grupo dos Itatim, fo-ram colocadas todas as sociedades de ori-gem Guarani estabelecidas na área, tais como os Guarambaré, Ñuara, Temiminós e Cutaguá, as quais apresentavam traços cul-turais muito semelhantes entre si. Já no grupo dos Gualacho, foram inseridas popu-lações culturalmente distintas, a exemplo dos Guaná, agricultores de origem Aruak, Guaikurú, caçadores e coletores de origem Mbayá-Guaikurú, e Guaxarapó, pescado-res, caçadores e coletores estabelecidos no baixo curso do Miranda. Apesar do etnôni-mo Gualacho estar relacionado com popu-lações Jê nas regiões sul e sudeste do Brasil (Monteiro, 1994; Prezia 2000), sabe-se que muitos dos grupos assim denominados pelo Padre Ferrer no Itatim apresentavam matri-zes culturais distintas, de modo que o dito

etnônimo pode ter sido usado apenas para expressar alteridade entre os Guarani e as outras populações que ocupavam a área, a exemplo da famosa dicotomia Tupi/Tapuia nas regiões sudeste e nordeste. A maioria dos Itatim e Gualacho abandonaram a re-gião de Miranda no séc. XVII, devido aos transtornos causados com o colonialismo, como as doenças infectocontagiosas trazi-das pelos europeus, as encomiendas dos colonos castelhanos do Paraguai, a redução nas Missões Jesuítas do Itatim, o assalto dos bandeirantes luso-paulistas e o assédio ter-ritorial dos índios chaquenhos (Aguirre, 1948; Azara, 1905; Cabeza de Vaca, 1985; Gandia, 1932, 1935; Guzman, 1835; Hem-ming, 2007; Maeder, 1996; Martins, 2002; Meliá, 1986; Monteiro, 1992; Montoya, 1639; Schmidel, 1986).

Na medida em que o antigo Itatim foi abandonado pelos Guarani e Gualacho, grupos Mbayá-Guaikurú, como os Kadiwéu e Beutuebo, tornados cavaleiros com a apropriação dos rebanhos dos colonizado-res, e Chané-Guaná, como Guaná, Kiniki-nao, Laiana e Terena, populações Aruak aliadas dos Guaikurú, migraram do Chaco paraguaio e se assentaram nas regiões de Corumbá e Miranda, nos pantanais mato--grossenses (Carvalho, 1992; Metraux, 1946; Susnik, 1987). Durante todo o séc. XVIII e a primeira metade do séc. XIX, essas populações fizeram frente à expansão colo-nial das coroas espanhola e portuguesa e, posteriormente, à consolidação do Império do Brasil e da República do Paraguai. Con-tudo, a disseminação das epidemias e das “guerras justas” em represália aos ataques às monções durante o ciclo aurífero e dia-mantífero nas minas de Cuiabá e Mato Grosso, e às fortificações e povoações de origem castelhano-paraguaia e luso-brasi-leira, reduziu a resistência Guaikurú e Gua-ná perante os processos de fragmentação

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:112-135 - 2010

Posto Indígena, fundado pelo SPI em 1907, foi responsável pela constituição das bases multiétnicas do processo de formação do contexto etnográfico atual, haja vista que muitos dentre os remanescentes étnicos li-bertos depois da passagem de Rondon fo-ram convocados a ocupar a área em con-junto com os Guaikurú, ali estabelecidos ao menos desde o final do período imperial.

O órgão indigenista oficial, transforma-do em FUNAI no período da ditadura mili-tar, viu na vocação agrícola, no modo de vida sedentário e na capacidade de articula-ção política dos Terena, o exemplo e o mo-delo de índio assimilado e aculturado. Tão logo, tais traços, característicos das socieda-des Aruak, foram habilmente utilizados pe-los Terena na conquista de posições mais destacadas nas questões indígenas em âm-bito regional e até mesmo nacional, resul-tando na terenização dos remanescentes étnicos em Miranda, inclusive na Aldeia Lalima, e na transfiguração cultural dos ín-dios da região (Azanha, 2004; Cardoso de Oliveira, 1968, 1976, 2002; Ribeiro, 1980).

Assim, partindo das duas premissas teó-ricas sintetizadas mais acima, dos dados arqueológicos, históricos e etnográficos so-bre a ocupação indígena regional, e da pro-vável relação da ocupação Guarani descrita nos documentos seiscentistas e setecentis-tas com o sítio Córrego Lalima, o levanta-mento arqueológico e a coleta etnoarqueo-lógica de dados etnográficos e etno-históricos na Aldeia Lalima foi desenvolvido com o intuito de detectar sítios formados pelos correlatos materiais da trajetória histórica da ocupação indígena regional, seja em re-lação aos Guarani, às ocupações mais anti-gas ou às ocupações históricas associadas com a migração dos Guaikurú e Guaná e à formação do contexto etnográfico atual. é aqui que entra a idéia de demonstrar que Lalima pode ser caracterizada como o pa-

cultural e territorial desencadeados pelo colonialismo, até que os índios foram sujei-tos à influência portuguesa e brasileira em Corumbá e Miranda, através da atuação da Diretoria de Índios da antiga Província do Mato Grosso e das missões religiosas capu-chinhas (Almeida Serra, 1845; Bastos, 1972; Castelnau, 1949; Ferreira, 1971; Holanda, 2000; Moreira Neto, 2005; Prado, 1839; Tau-nay, 1981). Depois dos prejuízos causados com a Guerra do Paraguai (1864-1870), as terras da região foram loteadas e os índios remanescentes foram escravizados nas co-lônias de fazenda, sendo poucos os grupos que lograram manter identidades étnicas, sistemas culturais e territórios tradicionais (Azanha, 2004; Cardoso de Oliveira, 1968, Herberts, 1998; Levi-Strauss, 1986; Ribeiro, 1980; Rivasseau, 1936; Schmidt, 1917; Tau-nay, 1997, 2000; Weber, 2002). Conforme constante em documentos da Diretoria de Índios, o território indígena na Aldeia Lali-ma, um dos mais tradicionais da região, foi reconhecido oficialmente como pertencente aos índios Guaikurú pelas autoridades im-periais brasileiras neste período (Cardoso de Oliveira, 1976: 75-6).

Lembrada na memória Terena como “tempo da escravidão”, a exploração desve-lada da mão de obra indígena nas fazendas da região tomou outras formas a partir do início do séc. XX, com a passagem do então Major Rondon e a conseqüente implantação da política indigenista de inspiração positi-vista do início do período republicano (Al-tenfelder Silva, 1949; Cardoso de Oliveira, 1976; Oberg, 1949; Rondon, 1949). Neste pe-ríodo, muitos remanescentes étnicos Guai-kurú, Guaná, Terena, Laiana e Kinikinao foram libertos dos cativeiros e confinados em reservas indígenas tuteladas pelo Servi-ço de Proteção aos Índios (SPI), sob o pre-texto da assimilação e da aculturação à so-ciedade nacional. Em Lalima, a atuação do

Page 116: O Problema Humaitá na Arqueologia Sul Brasileira

118

Levantamento arqueológico na Aldeia Lalima, Miranda/MS: uma contribuição ao estudo da trajetória histórica ... Eduardo Bespalez

nome sigla coordenadasatividades

realizadas

local de implantação

Área (ha)

data

(ap)tradição

tecnológica

Córrego Lalima

MS-MI-0121K 0574802/

7725523

Registro, topografia, setorização, coletas de

superfície sistemáticas e assistemáticas, escavação de

sondagens e poços-teste, datação

Colina suave rodeada por nascentes tributárias da margem direita do rio

Miranda, onde se situa a Sede, um dos bairros da Aldeia, constituída por

sedimentos arenosos, argilosos e litólicos

40970 +/- 60

Beta (238765)

Guarani e Tradição Pantanal (análogo à

Fase Jacadigo)

José Rondon de

SouzaMS-MI-02

21K 0573816/7726032

Registro, esboço de croqui, coleta assistemática de

superfície

Baixa encosta de colina suave situada na confluência da margem direita de uma

pequena nascente com a margem esquerda do baixo curso do cór. do Lima, constituída

por sedimentos arenosos

0,75Tradição Pantanal

(análogo ao MS-CP-25)

Tapera do Limpão

MS-MI-0321K 0572232/

7724920Registro e coleta

assistemática de superfície

Topo de colina suave não inundável situada próxima da margem direita do médio Miranda, constituída por sedimentos

arenosos e litólicos

0,25Tradição Pantanal

(análogo ao MS-CP-25)

Tapera do Gino

MS-MI-0421K 0572877/

7725744Registro e coleta

assistemática de superfície

Colina suave situada na margem esquerda de uma nascente tributária da margem direita do rio Miranda, constituída por

sedimentos arenosos e litólicos, na divisa entre Lalima e a Faz. Santa Rosa

Etno-histórico,Guarani e Tradição Pantanal (análogo

ao MS-CP-25)

Tapera da Mata do

UrumbevaMS-MI-05

21K 0574739/7724094

Registro, setorização, topografia, coleta sistemática de superfície, escavação de sondagens e de poços-teste

Baixa e média encosta de colina suave, constituída por sedimentos litólicos e arenosos, situada em torno de uma

nascente tributária da margem direita do rio Miranda

1 Etno-histórico

Asa de Pote MS-MI-0621K 0574450

7727296

Registro, setorização, topografia, coleta sistemática de superfície, escavação de

sondagens e poços-teste

Colina suave situada entre a confluência da margem direita de uma nascente com o

médio curso da margem esquerda do cór. Guanandi, constituída por sedimentos

argilosos e arenosos

30

1070 +/- 60Beta

(238768) Guarani e TradiçãoPantanal (análogo à

Fase Jacadigo)6430 +/- 70Beta

(238767)

Campina MS-MI-0721K 0574518/

7726905Registro

Colina suave situada entre a confluência da margem esquerda de uma nascente com o médio curso da margem esquerda do cór.

Guanandi, constituída por sedimentos argilosos e arenosos

Guarani

Manuel de Souza Neto

MS-MI-0821K 0573695/

7725436Registro

Colina suave, constituída por sedimentos arenosos, situada na confluência de ambas as margens de um nascente uma nascente

com a margem direita do rio Miranda

Tradição Pantanal (análogo ao MS-CP-25)

Tapera do Pirizal

MS-MI-0921K 0573508/

7725949Registro e coleta

assistemática de superfície

Área plana não inundável constituída por sedimentos arenosos situada na planície de

inundação da margem direita do rio Miranda

Etno-histórico

Sítio Potrero

MS-MI-1021K 0580296/

7725567

Registro, esboço de croqui e coleta assistemática de

superfície

Colina suave, constituída por sedimentos argilosos e arenosos, situada entre o sopé

do morro do Potrero e o médio curso de um cór. sazonal tributário do médio Miranda, na párea retomada do INCRA e da Faz.

Vargem Grande pelos Terena em Lalima

Tradição Pantanal (análogo à Fase

Jacadigo

Anita Vieira MS-MI-1121K 0575314/

7726195Registro

Colina suave, constituída por sedimentos arenosos e argilosos, situada na margem esquerda do alto curso do cór. do Lima

Guarani

Helio Correia

MS-MI-1221K 0575535/

7727300Registro

Colina suave, constituída por sedimentos argilosos e arenosos, situadas entre o sopé

do morro do Inocêncio e a confluências das nascentes formadoras do cór. Guanandi

Guarani

Tapera do Agápto

MS-MI-1321K 0574477/

7727875Registro

Baixa encosta e colina suave, constituída por sedimentos arenosos e argilosos,

situada na margem direita do médio curso do cór. Guanandi, na Faz. Santa Rosa

Etno-histórico

Tabela 1. Sítios arqueológicos detectados na Aldeia Lalima

Page 117: O Problema Humaitá na Arqueologia Sul Brasileira

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limpsesto da história indígena regional, a partir do entendimento do território da Al-deia como um pergaminho, dos vestígios arqueológicos como os borrões das escritas apagadas e do contexto etnográfico atual como a última das escritas realizadas no pergaminho reaproveitado.

CoRRELAtoS mAtERIAIS DA tRAJEtóRIA HIStóRICA DA oCUPAção InDíGEnA REGIonAL nA ALDEIA LALImA

Como visto acima, a TI Lalima situa-se na margem direita do médio Miranda, um dos principais tributários do curso pantaneiro do rio Paraguai, entre a margem esquerda do cór-rego do Lima e a direita do Barreiro, em meio ao relevo ondulado da depressão interplanál-tica de Miranda, constituída por sedimentos litólicos, argilosos e arenosos, outrora predo-minantemente recobertos por cerrado, no município de Miranda, no centro-oeste do Es-tado de Mato Grosso do Sul (BRASIL, 1982; SEPLAN/IBGE, 1990). O território da Aldeia possui apenas 3 mil ha, os quais são ocupados por cerca de 1300 habitantes, descendentes de remanescentes étnicos Guaikurú, Terena, Ki-nikinao e Laiana.

Os resultados da pesquisa de levantamen-to arqueológico, realizada entre maio e julho de 2007, foram os seguintes: 1) detecção de mais 12 sítios e 7 áreas de ocorrência arqueo-lógica, todos a céu aberto e nas proximidades de nascentes e calhas fluviais e pluviais tribu-tárias da margem direita do rio Miranda, por meio de levantamento arqueológico oportu-nístico e extensivo (ver mapa 2); 2) coleta de aproximadamente 3.360 vestígios arqueológi-cos em superfície, com o estabelecimento de áreas amostrais de coleta, e sub-superfície, através da escavação de sondagens com trado articulado e de poços-teste com 1m² por ní-veis artificiais de 0,10m; 3) análise preliminar

de 754 fragmentos de vasilhas cerâmicas con-siderados diagnósticos da morfologia e do acabamento de superfície das tecnologias ce-râmicas das populações indígenas que ocupa-ram a região; 4) obtenção de 3 datações ar-queológicas em amostras de carvão pelo método radiocarbônico tradicional; e 5) cole-ta etnoarqueológica em áudio-visual de infor-mações etnográficas de caráter etno-histórico em entrevistas realizadas com dezenas de interlocutores (ver Tabela 1).

As observações realizadas em campo, as análises cerâmicas e as informações etno-gráficas de caráter etno-histórico, revelaram a presença de 4 conjuntos de materiais ar-queológicos cerâmicos tecnologicamente distintos, sendo que 3 dentre os sítios detec-tados em Lalima foram caracterizados como multicomponenciais, ou seja, formados por vestígios associados com mais de uma Tra-dição Tecnológica. Os conjuntos observados foram os seguintes: a) Guarani (cf. La Salvia & Brochado, 1989); b) Tradição Pantanal análogo à Fase Jacadigo (cf. Schmitz et al., 1998: 226-228); c) Tradição Pantanal análo-go aos materiais detectados no sítio MS--CP-25, em Corumbá/MS (idem: 228-229)2; e d) materiais detectados em sítios arqueoló-gicos históricos relativos à formação do con-texto etnográfico atual, os quais foram deno-minados como Etno-históricos. Aos conjuntos detectados nos contextos arqueo-lógicos, ainda podem ser somados as poucas vasilhas confeccionadas com a tecnologia atual dos Terena (cf. Cardoso de Oliveira, 2002: 237), utilizadas em alguns domicílios para armazenar água e como souvenir, o que totalizaria 5 conjuntos tecnológicos de materiais cerâmicos associados à dinâmica histórica da ocupação indígena regional, po-rém as vasilhas etnográficas ainda não fo-ram analisadas sistematicamente.

2 Recentemente, Eremites de Oliveira (2009), aludindo Willey (1971), referiu-se ao conjunto em questão como Tradição Chaquenha.

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queológicos constituídos principalmente por fragmentos de vasilhas cerâmicas e vestígios líticos de polimento e lascamento, dispersos pela superfície, em áreas com dezenas de milhares de m², e em sub-superfície, até cerca de 0,30m de profundidade. As exce-ções dizem respeito ao setor 2 do sítio Asa de Pote, onde, apesar das sondagens, não fo-ram achados materiais em sub-superfície, e à área de ocorrência 5, implantada em um contexto paisagístico distinto dos demais, na planície inundável do rio Miranda.

As atividades de pesquisa realizadas no sítio Córrego Lalima, situado no bairro da Sede, o mais populoso da Aldeia, resulta-ram na identificação de quatro concentra-ções de vestígios arqueológicos, dispersos pelo topo e encostas da colina suave onde o sítio está implantado, por uma área com mais de 320.000m². As concentrações fo-

CoRRELAtoS DA oCUPAção GUARAnIOs correlatos materiais da ocupação

Guarani foram detectados nos sítios Córre-go Lalima (MS-MI-01), Tapera do Gino (MS--MI-04), Asa de Pote (MS-MI-06), Campina (MS-MI-07), Anita Vieira (MS-MI-11), Hélio Correia (MS-MI-12) e na área de ocorrência 5 (ver Mapa 2 e Tabela 1). Apesar das exce-ções, os correlatos Guarani apresentam, em termos gerais, características semelhantes entre si, sobretudo no que se refere ao con-texto de implantação dos sítios na paisagem, às dimensões dos depósitos arqueológicos e à diversidade e densidade dos seus elemen-tos. Destarte, os sítios Guarani estão implan-tados em topos e encostas de colinas suaves e/ou no sopé dos morros, em áreas que ofe-recem ampla visibilidade de entorno e proxi-midades de nascentes e cursos d’água, sendo formados por concentrações de vestígios ar-

Figura 1. Sítio Córrego Lalima (MS-MI-01), Setor 1, Poço-teste 1, Coordenadas 1005N/1000E, Perfil Norte

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lhas cerâmicas diagnósticos da morfologia e do acabamento de superfície para a realiza-ção das análises. Assim, no que se refere à morfologia, 83,17% dos fragmentos foram classificados como paredes, 15,65% como bordas e 0,93% como bases. Em se tratando dos fragmentos de parede, 5,89% foram cate-gorizados como paredes infletidas, 4,49% como paredes carenadas, 0,84% como pare-des complexas e 0,56% como segmentos su-periores de vasilhas fechadas com ou sem pescoço. No tocante aos fragmentos de borda, 13,96% foram classificadas como direta-verti-cal, 10,44% como direta-inclinada externa, 10,44% como direta-inclinada interna, 10,44% como côncava, 8,95% como extrovertida, 5,97% como cambada, 1,49% como introverti-da, 1,49% como carenada e 1,49% como in-flectida. Acerca da forma do lábio nos frag-mentos de borda, 44,77% foram tachados como arredondado, 13,43% como aplanado,

ram segmentadas em quatro setores, entre os quais três – correspondentes aos setores 1 e 3, formados principal-mente por materiais Guarani, e o setor 2, constituído mormente por materiais da Tradição Pantanal análogos à Fase Jacadigo – foram abordados através de atividades de coleta em superfície e sub-superfície. O outro setor, corres-pondente ao setor 4, composto por ma-teriais de ambas as tradições, foi ape-nas registrado.

Em se tratando dos setores formados majoritariamente por materiais Guarani, o setor 1 foi abordado com a realização de coleta de superfície em área de 7.000m² e escavações de 13 sondagens e 2 poços--teste. A área do setor foi aferida em 80.000m² e a espessura do pacote arqueo-lógico em 0,30m. Além da superfície, for-mada por sedimento arenoso marrom--claro (pale brown 10YR6/3) e materiais arqueológicos, foram observadas outras 3 camadas em sub-superfície: a camada A, situada entre os níveis 1 e 3, constituída por sedimento areno-argiloso marrom-escuro (dark brown 10YR3/3) e materiais arqueológi-cos; a camada B, entre os níveis 3 e 5, constitu-ído por sedimento areno-argiloso marrom-es-curo (dark brown 7.5YR3/4) e materiais arqueológicos em baixa densidade; e a camada C, a partir do nível 5, composta por sedimento areno-argiloso marrom-avermelhado (dark reddish brown 10YR2/2) e arqueologicamente estéril (ver Figura 1). A estratigrafia apresen-tou-se muito perturbada por fatores pós-depo-sicionais antrópicos, associados à ocupação atual, e biológicos, sobretudo cupins. Ao todo, foram recolhidos mais de 900 materiais arque-ológicos e obtida uma datação a partir de uma amostra de carvão coletada no nível 3 do poço--teste 1, datada em 970 ± 70 AP.

Entre os materiais recolhidos no setor 1, foram selecionados 428 fragmentos de vasi-

Figura 2. Figura 2: a) yapepó; b) ñaetá; c) cambuchi caguâba; d) cambuchi.

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do, 1989; Brochado & Monticelli, 1994; Brochado, Monticelli & Neu-mann, 1990; Noelli & Brochado, 1998), sendo 3,27% dos fragmentos analisados relacionados com os ya-pepó, 2,33% com cambuchi, 1,63% com cambuchi caguâba e 0,23% com ñaetá, os quais foram reconstituídos graficamente (ver Figura 2).

Em relação ao acabamento de su-perfície na face externa, 68,22% dos fragmentos analisados foram classifi-cados como corrugado, 6,77% como cromático com engobo branco, 3,97% como cromático com pintura verme-

lha e/ou preta sobre engobo branco, 2,8% como ungulado, 1,4% como inciso, 0,46% como no-dulado, 0,46% como impresso com corda, 0,23% como cromático com engobo vermelho e 0,23% como roletado (ver Prancha 1). Na face interna, 2,8% dos fragmentos foram taxados como cromático com engobo branco, 1,16% como cromático com engobo vermelho e 1,16% como cromático com pintura vermelha sobre engobo branco. Entre os fragmentos de borda, 8,95% foram categorizados como cromático com pintura de faixa vermelha no lábio e 4,47% como plásticos com aplique de filigranas de ar-gila no lábio. Novamente considerando-se to-dos os fragmentos analisados no setor 1, 93,69% foram classificados como Guarani e 3,5% como Tradição Pantanal análogo à Fase Jacadigo, os quais correspondem aos fragmentos com im-pressões de corda e apliques de filigranas de argila.

No setor 3, foram realizadas coletas de superfície em uma área com 12.500m² e fo-ram escavadas 16 sondagens e 1 poço-teste. Além da superfície, constituída por sedi-mento arenoso marrom-claro (pale brown 10YR6/3), e do substrato rochoso, encontra-do no nível 6, foram observadas 3 camadas de sedimentos com características seme-lhantes aos escavados no setor 1, inclusive

Prancha 1: A) corrugado; B) pintura vermelha e preta sobre engobo branco; C) ungulado; D) inciso.

10,44% como reforçado externo, 8,95% como biselado, 2,98% como ondulado e 1,49% como expandido. O diâmetro da boca das vasilhas cerâmicas, aferido em 28,36% dos fragmentos de borda, estende-se entre 4cm e 58cm. Quan-to às bases, 75% foram identificados como circulares e planas e 25% como circular e côncava. Acerca da espessura, 46,26% dos fragmentos analisados foram classificadas como finos (>5 e <10mm), 38,78% como mé-dios (>10 e <15mm), 9,34% como grossos (>15 e <20mm), 4,9% como muito finos (>0 e < 5mm) e 0,46% como muito grossos (>20mm). Em relação às classes simétricas das vasilhas, 2,33% dos fragmentos foram as-sociados com vasilhas fechadas com pescoço, 1,4% com vasilhas fechadas e 1,16% com va-silhas abertas. No que se refere ao contorno, 1,63% dos fragmentos foram relacionados com vasilhas com contorno complexo, 1,16% com contorno simples, 0,46% com contorno inflectido e 0,46% com contorno composto. Quanto à comparação da forma das vasilhas com formas geométricas, 0,7% dos fragmen-tos foram associados com vasilhas esféricas, 0,46% com vasilhas cônicas e 0,23% com va-silha semi-esférica. Ainda foram identificados 4 dentre as 7 classes funcionais estabelecidas por Brochado e colegas (La Salvia & Brocha-

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no que se refere às perturbações causadas pela ocupação atual. A área do setor somou 62.000m² e 0,30m de espessura. Foram cole-tados mais de 650 materiais arqueológicos, com destaque para um tembetá lítico polido esverdeado doado por Sebastião Cabrocha, morador na área, porém não foram selecio-nados fragmentos cerâmicos para a realiza-ção de análises.

Ainda foram realizadas coletas de superfí-cie de materiais Guarani nos sítios Tapera do Gino, também formado por materiais da Tra-dição Pantanal análogos aos do sítio MS--CP-25 e Etno-históricos, e Asa de Pote, igual-mente constituído por materiais da Tradição Pantanal semelhante à Fase Jacadigo. Na Ta-pera do Gino, localizada na divisa entre a Al-deia e a Faz. Santa Rosa, foram coletados 121 fragmentos cerâmicos em um eixo de 300m ao longo do acero da dita propriedade, entre os quais 56 foram selecionados para a realiza-ção das análises. No que se refere à tradição tecnológica, 57,14% foi associado à tecnologia Guarani e 37,5% à Tradição Pantanal análogo à do sítio MS-CP-25. No sítio Asa de Pote, im-plantado em uma colina suave na margem esquerda do cór. Nascente do Guanandi, fo-ram coletados 176 fragmentos cerâmicos Guarani na superfície de uma área com 10.000m², denominada de setor 1. Foram es-cavadas 11 sondagens no local, porém, como sublinhado acima, não foram encontrados materiais arqueológicos em sub-superfície. Com efeito, os materiais recolhidos no setor 1 do MS-MI-06 podem ter sido aglutinados à pouco tempo, talvez não mais que algumas décadas. Os fragmentos coletados no setor 1 do Asa de Pote não foram analisados.

Afora o cadastro – efetuado em todos os sítios detectados – não foram realizadas ativi-dades de pesquisa nos demais sítios com ma-teriais Guarani detectados em Lalima. Contu-do, ainda é importante sublinhar que, nos sítios multicomponenciais, as concentrações

de vestígios Guarani apresentam, em superfí-cie, relações distintas com as concentrações de resquícios análogos aos da Fase Jacadigo, do MS-CP-25 da Tradição Pantanal e Etno--históricos. Com efeito, independente do con-teúdo tecnológico, as concentrações de mate-riais Guarani e semelhantes aos da Fase Jacadigo nos sítios Córrego Lalima e Asa de Pote apenas se sobrepõem nos seus limites, ou seja, nas áreas de menor densidade de vestí-gios arqueológicos. Já no que se refere à Tape-ra do Gino, os materiais comparáveis aos do MS-CP-25 e os Etno-históricos estão disper-sos em meio aos resquícios Guarani, os quais, por sua vez, apresentam maior densidade. Em sub-superfície, apenas foram detectados ma-teriais distintos tecnologicamente no MS--MI-01, no nível 3 do poço-teste 2, escavado no setor 1, onde foi coletada uma borda com fili-granas de argila no lábio em meio aos refugos Guarani. Porém a perturbação do depósito, atestada por uma série de restos industrializa-dos, não permite quaisquer inferências a par-tir da estratigrafia.

Os correlatos apresentados acima indi-cam que o estabelecimento da ocupação Guarani na região se estendeu ao menos por cerca de 500 anos, ou seja, desde o séc. XI depois de Cristo, conforme a datação obtida no sítio Córrego Lalima, até meados do séc. XVII, segundo as fontes históricas e etnográ-ficas. Todavia, não só é provável que os Gua-rani tenham explorado, colonizado e se as-sentado regionalmente em período anterior ao datado, como ainda é possível que os mesmos tenham se relacionado diferente-mente com populações diversas ao longo de toda a sua dinâmica de expansão e consoli-dação na área. Tais populações, ao seu tur-no, poderiam estar estabelecidas adrede à chegada dos Guarani ou ter advindo poste-riormente, de modo que muitas podem ter sido hostilizadas, expulsas, incorporadas ou aliadas. Seja como for, a variação situacio-

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nal, artefatual e cronológica nos correlatos Guarani demonstram alguma estabilidade, talvez até mesmo algum padrão, o qual, ao seu turno, pode indicar, entre outros fatos, que populações portadoras de matriz cultu-ral Tupi-Guarani exerceram a hegemonia territorial no médio Miranda desde períodos pré-históricos indefinidos até o colapso cau-sado nos primeiros séculos do colonialismo.

CoRRELAtoS DA oCUPAção DA tRADIção PAntAnAL AnáLoGoS à fASE JACADIGo

Além do setor 2 do sítio Córrego Lalima e do setor 2 do sítio Asa de Pote, os correlatos materiais da ocupação das populações por-tadoras da Tradição Pantanal análogos à Fase Jacadigo foram detectados no sítio Po-trero (MS-MI-10) e na área de ocorrên-cia 7 (ver Mapa 2 e Tabela 1). Em resu-mo, os sítios com materiais seme-lhantes à Fase Jaca-digo estão implan-tados em áreas que apresentam as mes-mas variáveis am-bientais que os con-textos Guarani, porém enquanto estes apresentam uma variação pe-quena entre si, sen-do muito semelhan-tes, os outros variam muito mais, sobre-tudo em relação aos depósitos e aos ele-mentos. No setor 2 do MS-MI-01, por exemplo, onde fo-ram realizadas ati-

Figura 3: a) vasilha cerâmica aberta, simples, semi-esférica; b) vasilha aberta, simples, semi-elíptica horizontal; c) vasilha fechada, inflectida, semi-oval vertical.

vidades de coleta de superfície e de sub-su-perfície, com a escavação de 14 sondagens e 2 poços-teste, foram coletados 868 materiais arqueológicos em uma área com 20.000m² e espessura de até 0,70m, enquanto que no se-tor 2 do MS-MI-06 foram coletados apenas 151 materiais arqueológicos, através de cole-ta de superfície e escavação de 28 sondagens e 3 poços-teste, em uma área com 90.000m² e 0,50m de profundidade. No MS-MI-10, foi apenas realizado coleta de superfície de 55 materiais arqueológicos em um eixo de 60m no interior de uma voçoroca.

Entre os materiais coletados no setor 2 do sítio Córrego Lalima, foram selecionados 179 fragmentos de vasilhas cerâmicas para a realização das análises. No que se refere à morfologia, 49,72% dos fragmentos foram

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classificados como paredes, 44,69% como bordas, 2,79% como bases e 2,23% como apêndices de suspensão. Em relação às pa-redes, 8,37% foram taxadas como infletidas, 2,24% como segmento superior de vasilha fechada ou fechada com pescoço e 1,12% como ombro. No tocante às bordas, 28,75% foram qualificadas como extrovertida, 25% como direta-vertical, 5% como direta-incli-nada externa, 5% como direta-inclinada in-terna, 3,75% como côncava e 1,25% como inflectida. Em se tratando do lábio, 51,25% foram identificados como reforçado-exter-no, 15% como rebarbado-externo, 11,25% como arredondado, 11,25% como dobrado, 3,75% como apontado, 3,75% como aplanado e 3,75% como biselado. O diâmetro da boca, conferido em 20% das bordas, estende-se entre 10 e 32cm. Todas as bases foram clas-sificadas como circular-convexa, e todos os

apêndices de suspensão como alças. A res-peito da espessura, 67,03% dos fragmentos foram qualificados como finos, 22,34% como muito finos, 9,49% como médios, 0,55% como grosso e 0,55% como muito grosso. So-bre as classes de simetria, 11,17% dos frag-mentos foram associados com vasilhas abertas, 6,14% com vasilhas fechadas e 0,55% com vasilha fechada com pescoço.

Acerca do contorno, 11,73% foram relacio-nados com vasilhas de contorno simples e 3,91% com contornos inflectidos. Quanto à comparação com formas geométricas, 3,91% foram associados com vasilhas semi-esféri-cas, 1,11% com vasilhas esféricas, 0,55% com vasilha semi-elíptica horizontal e 0,55% com vasilha semi-oval vertical. No tocante à funcionalidade, 1 fragmento de borda côn-cava (0,55%) de origem Guarani foi associa-do a um yapepó.

A análise morfológica dos fragmentos análogos à Fase Jacadigo, principalmente no que se refere à qualificação dos fragmentos de borda, resultou na reconstituição gráfica de 3 classes distintas de vasilhas (ver figura 3). Todavia, alguns fragmentos indicam que o vasilhame em questão pode apresentar ou-tras classes, sobretudo um tipo de vasilha fechada com pescoço, semelhante à morin-

ga. Além do mais, cabe sublinhar que apesar das classes identificadas sugerirem usos diversos e diferen-ciados para cada uma das vasilhas, não foram desenvolvidas análises funcionais.

Em relação ao acabamento de superfície na face externa, 12,84% dos fragmentos analisados foram classificados como cromático com pintura vermelha, 11,73% como in-ciso, 7,26% como corrugado, 7,26% como acanalado, 5,58% como cro-mático com engobo vermelho, 3,35% como aplicado com filigranas

de argila, 3,35% como impresso com corda, 1,67% como ponteado, 1,67% como inciso--ponteado, 0,55% como cromático com en-gobo branco, 0,55% como impresso com corda-ponteado e 0,55% como perfurado (ver Prancha 2). é importante salientar que o corrugado na Fase Jacadigo da Tradição Pantanal é distinto do Guarani, sendo carac-terizado mais como um corrugado-roletado

Prancha 2. A) inciso-ponteado; B) corrugado; C) aplicado com filigranas de argila; D) impresso com corda.

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que como um corrugado-digitado. Na face interna, 5,02% foram taxados como cromáti-co com pintura vermelha, 3,91% como cro-mático com engobo vermelho, 1,11% como corrugado, 0,55% como cromático com en-gobo branco e 0,55% como aplicado com fili-granas de argila. Quanto ao acabamento de superfície no lábio, 21,25% dos fragmentos de borda apresentaram apliques de filigra-nas de argila, 2,5% ponteados e 1,25% ungu-lações. Em termos tecnológicos, 88,82% dos fragmentos foram associados à Tradição Pantanal análogo à Fase Jacadigo, 7,26% como Guarani e 3,91% como Terena. No se-tor 2 do Asa de Pote, foram selecionados 42 fragmentos para a realização das análises. Em relação à tradição tecnológica, 83,33% dos fragmentos foram taxados como análo-gos à Fase Jacadigo, 11,9% como Terena e 4,76% como Guarani.

Vale ressaltar que, além dos fragmentos de vasilhas, também foram coletados outros artefatos cerâmicos nos contextos arqueoló-gicos semelhantes à Fase Jacadigo da Tradi-ção Pantanal, como rodelas de fuso, cachim-bos tubulares e fichas cerâmicas polidas, bem como materiais líticos lascados e poli-dos, com destaque para as lâminas de ma-chado, bolas de boleadeira e polidores dis-cóide.

A superfície e a sub-superfície se mostra-ram tão perturbadas nos setores 2 dos sítios Córrego Lalima a Asa de Pote quanto nos ou-tros setores pesquisados em ambos os sítios. Contudo, ao contrário do MS-MI-01, onde os impactos mais destrutivos estão associados com terraplanagens e aterros, no MS-MI-06 a perturbação do sítio está associada com as atividades agrícolas, sobretudo queimadas antrópicas e arado mecanizado. Mesmo as-

Figura 4. Sítio Asa de Pote (MS-MI-06), setor 2, poço-teste 1, coordenadas 1260N/785E, perfil norte

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sim, foram enviadas duas amostras de car-vão para a obtenção de datações arqueológi-cas, respectivamente coletadas nos níveis 3 e 6 do poço-teste 1 no setor 2 do Asa de Pote. Além da camada superficial, constituída por sedimento arenoso marrom-escuro (dark brown 10YR3/3) e materiais arqueológicos, foram observadas mais 4 camadas de sedi-mentos. A camada A, situada entre os níveis 1 e 2, apresentou os mesmos sedimentos que a superfície e materiais arqueológicos; a ca-mada B, entre os níveis 2 e 3, apresentou se-dimento areno-argiloso marrom-escuro (very dark brown 7.5YR2.5/2) e materiais arqueológicos; a camada C, entre os níveis 3 e 4, sedimento variegado argilo-are-noso marrom-avermelhado (dark reddish brown 5YR3/3) e materiais arqueológicos; e a camada D, a par-tir do nível 4, apresentou sedimento argilo-arenoso marrom-avermelha-do (dark reddish brown 2.5YR3/3) e materiais cuja origem arqueológica pode ser contestada (ver Figura 4). A amostra coletada no nível 3 foi data-da em 1.070 ± 60 AP e a do nível 6 em 6.340 ± 70 AP.

Devido à sua antiguidade, a data obtida com a amostra coletada no nível 6 do Poço-teste 1 no sítio Asa de Pote não foi associada aos con-juntos de materiais arqueológicos constitu-ídos majoritariamente por fragmentos de vasilhas cerâmicas classificados como aná-logos à Fase Jacadigo da Tradição Pantanal. Todavia, é importante sublinhar que os criadores da Fase Jacadigo inferiram que os conjuntos arqueológicos a ela relacionados fossem datados do período histórico, asso-ciando-os com os índios Guaikurú e Guaná que migraram para a região a partir do séc. XVII (Schmitz et al., 1998: 228). Com efeito, mesmo considerando que os dados alcança-dos em Lalima não permitem apontamen-

tos mais acurados sobre o sistema cultural das populações portadoras da tradição tec-nológica semelhante à Fase Jacadigo no rio Miranda, a data do nível 3 não só sugere que os vestígios detectados foram deixados em período pré-histórico, como a variação situ-acional e artefatual indica que as ditas po-pulações podem ser caracterizadas como sociedades agricultoras e ceramistas cultu-ralmente distintas do Guarani. Assim, ape-sar da fragilidade das informações sobre cronologia de ocupação e relações sociais e ecológicas entre os Guarani e as populações por trás dos materiais parecidos com os da Fase Jacadigo, não só lança-se a hipótese,

com base na variabilidade situacional, arte-fatual e cronológica entre os conjuntos, de que ambas podem ser caracterizadas como sociedades agricultoras e ceramistas pré--históricas que se estabeleceram no rio Mi-randa ao longo da dinâmica histórica da ocupação indígena regional, como também inferimos que a diversidade cultural encon-trada pelos europeus no curso fluvial retro--citado durante os séculos XVI e XVII, for-mada por vários grupos étnicos distintos, já devia se processar ao menos desde o séc. XI depois de Cristo.

Prancha 3: fragmentos cerâmicos estilizados com impressões de corda: A) sítio José Rondon de Souza; B) Tapera do Limpão;C) Tapera do Gino; D) fragmento perfurado, Tapera do Gino.

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Levantamento arqueológico na Aldeia Lalima, Miranda/MS: uma contribuição ao estudo da trajetória histórica ... Eduardo Bespalez

CoRRELAtoS DA oCUPAção DA tRADIção PAntAnAL AnáLoGoS AoS mAtERIAIS Do SítIo mS-CP-25

Os correlatos da ocupação por grupos indígenas portadores de tecnologia cerâmica análoga àquela detectada no sítio MS-CP-25, na região de Corumbá/MS, foram detectados, na Aldeia Lalima, nos sítios José Rondon de Souza (MS-MI-02), Tapera do Limpão (MS--MI-03), Tapera do Gino (MS-MI-04) – o qual também apresenta materiais Guarani e Etno-históricos – Manuel de Souza Neto (MS-MI-09) e na área de ocorrência 2 (ver Mapa 2 e Tabela 1). Apesar da realização apenas de coletas de superfície e análises ce-râmicas, foi possível observar, em compara-ção aos sítios com materiais Guarani e aná-logos à Fase Jacadigo, que aqueles com materiais semelhantes aos do MS-CP-25 apresentam variações situacionais e artefa-tuais distintas. Com efeito, a maioria dos sí-tios estão implantados nas proximidades da planície de inundação do Miranda, com ex-ceção da Tapera do Gino e da ocorrência 2, localizadas em topos colinares próximos de nascentes fluviais, e são formados por depó-sitos com dispersão, diversidade e densidade menores de elementos, mesmo consideran-do os achados de materiais de origem indus-trializada, estruturas de habitação e ecofatos em alguns sítios.

No José Rondon de Souza, foram coletados 57 materiais arqueológicos em área constituí-da por sedimento arenoso marrom-claro (very pale brown 10YR6/3) com 7.500m². O Sr. José Rondon, morador na área do sítio, ainda nos mostrou duas lâminas líticas polidas de ma-chado recolhidas no local. Entre os fragmen-tos cerâmicos, apenas 19 apresentaram atri-butos diagnósticos da morfologia e do acabamento de superfície. Assim, no tocante à análise da forma das vasilhas, 78,94% dos fragmentos foram classificados como paredes,

15,78% como bordas e 5,6% como base, cate-gorizada como circular-plana. Entre as pare-des, 20% foram associadas com parede inflec-tida de vasilha fechada com ou sem pescoço, 6,66% como segmento superior de vasilha fe-chada com ou sem pescoço e 6,66% como pa-rede carenada. No que se refere às bordas, apenas 6,66% foram identificadas, sendo taxa-das como diretas-verticais. Quanto ao lábio, 33,33% foram categorizadas como reforçado--externo, 33,33% como rebarbado-externo e 33,33% como ondulado. O diâmetro da boca foi aferido em apenas um fragmento, com 14cm. Em relação à espessura, 84,21% dos fragmentos foram caracterizados como finos, 10,52% como médios e 5,26% como grosso. Não foi possível qualificar os fragmentos sele-cionados acerca das classes de simetria, do contorno e da forma geométrica.

Em se tratando do acabamento de super-fície na face externa, 26,31% dos fragmentos foram classificados como cromático com en-gobo vermelho, 21,05% como decorados com motivos estilizados com impressão de corda, 10,52% como cromático com engobo branco e 5,26% como aplicado. é importante ressal-tar que as decorações com motivos feitos com impressões de corda nos sítios com ma-teriais análogos àqueles detectados no MS--CP-25 (ver Prancha 3) são diferentes das impressões de corda analisadas nos sítios semelhantes à Fase Jacadigo, na medida em que estes apresentam apenas alinhamentos paralelos feitos com impressão de corda. Na face interna, 21,05% foram taxados como cromático com engobo vermelho, 10,52% como cromático com engobo branco e 5,26% como cromático com enegrecimento. Este último fragmento, categorizado como borda, também apresentou enegrecimento no lábio. Todos os fragmentos foram tecnologicamen-te associados à Tradição Pantanal análoga ao sítio MS-CP-25.

Na Tapera do Limpão, foram coletados

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117 fragmentos cerâmicos em área com 2.500m² constituída por sedimento litólico. Entre estes, foram selecionados 16 fragmen-tos diagnósticos para a realização das análi-ses, os quais apresentaram as mesmas ca-racterísticas que aqueles analisados no MS-MI-02. No entanto, cabe acrescentar que no MS-MI-03 também foram encontrados líticos lascados, fragmentos de louça, esteio queimado, clareira e plantas alimentícias e medicinais. Os resultados das atividades de coleta em superfície a das análises dos frag-mentos selecionados no MS-MI-04 foi aludi-da acima, enquanto se tratou dos correlatos da ocupação Guarani, cabendo apenas infor-mar que também foram identificadas bordas perfuradas e lábios dentados entre os mate-riais cerâmicos, e que foi coletada uma conta azul de vidro, a qual pode estar relacionada com quaisquer dos contextos tecnológicos observados no sítio. Não foram realizadas atividades de coleta no MS-MI-09. Também é importante sublinhar que, devido ao estado de preservação dos fragmentos, geralmente muito pequenos, não foi possível a reconsti-tuição gráfica do vasilhame cerâmico asso-ciado à tradição tecnológica semelhante àquela do MS-CP-25.

Assim como no que se refere à Fase Jaca-digo, os materiais coletados no sítio MS--CP-25 também foram associados aos Guai-kurú (Schmitz et al., 1998: 229), devido à semelhança latente entre os motivos estiliza-dos com impressões de corda e as técnicas decorativas das ceramistas Kadiwéu, preco-nizadas desde o final do séc. XVIII (cf. Bog-giani, 1975; Ferreira, 1971; Ribeiro, 1980; Si-queira Jr., 1992). Apesar da não obtenção de datações arqueológicas nos sítios com mate-riais análogos aos do MS-CP-25 detectados em Lalima, acredita-se na plausibilidade da hipótese aventada. Contudo, também é pos-sível que tal tecnologia cerâmica tenha sido compartilhada com outras populações desde

períodos pré-históricos, inclusive com aque-las de origem Aruak, tais como os Guaná, Kinikinao, Laiana e Terena, os quais, ao seu turno, migraram para o Pantanal juntamente com os Guaikurú e mantinham relações cul-turais muito próximas com os mesmos. Des-tarte, diante da variação situacional e artefa-tual em tono de si mesmo e da variabilidade em relação aos conjuntos Guarani e análo-gos aos da Fase Jacadigo, é provável que os materiais parecidos com os do MS-CP-25 correspondam aos correlatos dos processos de migração, estabelecimento e fragmenta-ção cultural e territorial dos Guaikurú e Guaná no rio Miranda, decorridos entre os séculos XVII e XIX, ou seja, entre o abandono Guarani e a Guerra do Paraguai, e, por con-seguinte, ao período inicial da história de formação do contexto etnográfico atual, pro-tagonizado pelos Guaikurú no último quartel dos oitocentos. Nesse sentido, a variação nos conjuntos similares aos do MS-CP-25 pode ter se originado a partir de acampamentos, pequenas aldeias ou taperas dos ascendentes dos Guaikurú e Guaná encontrados por Ron-don no início do sec. XX.

CoRRELAtoS DA HIStóRIA DE foR-mAção Do ContExto EtnoGRáfICo AtUAL

Além da Tapera do Gino, os correlatos materiais da história de formação do con-texto etnográfico atual foram observados nos sítios Tapera do Urumbeva (MS--MI-05), Tapera do Pirizal (MS-MI-09) e Tapera do Agápto (MS-MI-13). Afora o MS--MI-04 e o MS-MI-13, localizados em topos de colina nas proximidades de nascentes fluviais, o MS-MI-05 e o MS-MI-09 apre-sentam implantação semelhante aos sítios com materiais análogos aos do MS-CP-25, porém os depósitos dos sítios Etno-históri-cos são constituídos por densidades, diver-sidades e áreas de dispersão relativamente

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maiores que aqueles. Contudo, esta última assertiva não vale para os fragmentos de vasilhas cerâmicas, cujas amostras se mostraram ainda menores, sendo válida apenas para os vestígios de origem indus-trializada, tais como metais, vítre-os e sintéticos; orgânicos, sobretu-do restos fauníst icos de alimentação; e ecofatos, semelhan-tes aos do MS-MI-03.

Além da Tapera do Gino, os cor-relatos materiais da história de for-mação do contexto etnográfico atu-al foram observados nos sítios Tapera do Urumbeva (MS-MI-05), Tapera do Pirizal (MS-MI-09) e Ta-pera do Agápto (MS-MI-13). Afora o MS-MI-04 e o MS-MI-13, locali-zados em topos de colina nas pro-ximidades de nascentes fluviais, o MS-MI-05 e o MS-MI-09 apresen-tam implantação semelhante aos sítios com materiais análogos aos do MS-CP-25, porém os depósitos dos sítios Etno-históri-cos são constituídos por densidades, diver-sidades e áreas de dispersão relativamente maiores que aqueles. Contudo, esta última assertiva não vale para os fragmentos de vasilhas cerâmicas, cujas amostras se mostraram ainda menores, sendo válida apenas para os vestígios de origem indus-trializada, tais como metais, vítreos e sinté-ticos; orgânicos, sobretudo restos faunísti-cos de alimentação; e ecofatos, semelhantes aos do MS-MI-03.

Apesar de nem todos conhecerem as his-tórias associadas aos processos de constitui-ção da configuração etnográfica hodierna de modo tão profundo como Manuel de Souza Neto, o principal auxiliar e interlocutor das pesquisas arqueológicas e etnoarqueológicas na Aldeia Lalima, a maioria dos adultos de ambos os sexos detém alguma informação sobre a origem dos materiais deixados nos

sítios Etno-históricos. A Tapera do Pirizal, por exemplo, seria o local onde Rondon en-controu os Guaikurú em Lalima; já a Tapera do Urumbeva teria se formado após abando-nada pela primeira família de índios Terena

levada para a Aldeia pelo SPI, de sobrenome Cororó, cujos descendentes encontram-se em Lalima até hoje; a Tapera do Agápto, ao seu turno, teria se constituído a partir do do-micílio de um índio empregado na Faz. Santa Rosa; e a Tapera do Gino, por sua vez, teria sido abandonada há apenas 20 anos, com a mudança do Gino para outra área da Aldeia.

Na Tapera do Urumbeva, foram realiza-das coletas de superfície e sub-superfície, com a escavação de 15 sondagens e de uma área de decapagem com 12m² em torno de uma estrutura de combustão. O sítio apre-sentou sedimento litólico, área com 10.000m², 0,10m de espessura e vestígios de materiais industrializados, estruturas de habitação, fragmentos de vasilhas cerâ-micas, restos orgânicos de alimentação, utensílios líticos e ecofatos.

Foram coletados 57 fragmentos cerâmi-cos, entre os quais apenas 14 continham atributos diagnósticos da morfologia e do acabamento de superfície das vasilhas.

Figura 5. a) vasilha aberta, simples, semi-esférica;b) bordas extrovertidas.

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Logo, no tocante à forma, 92,85% dos frag-mentos foram classificados como bordas e 7,14% como parede. Em relação às bordas, 46,15% foram taxadas como direta-vertical e 15,38% como extrovertida. Quanto ao lá-bio desses fragmentos, 69,23% foram cate-gorizados como aplanado, 7,69% como ar-redondado, 7,69% como apontado, 7,69% como biselado e 7,69% como expandido. O diâmetro da boca foi medido em apenas uma borda, em 22cm. No que se refere à espessura, 92,85% dos fragmentos foram qualificados como finos e 7,69% como mé-dio. Em se tratando da classe de simetria, contorno e forma geométrica, 57,14% dos fragmentos foram associados com vasilhas abertas, simples e semi-esféricas. Apenas foi possível a reconstituição gráfica de 1 classe de vasilha cerâmica a partir dos fragmentos coletados na Tapera do Urum-beva (ver Figura 5).

Somente foram observados acabamento de superfície distinto de alisamento e poli-mento na face interna dos fragmentos, com 14,28% classificados como cromático com engobo vermelho e 7,14% como cromático com pintura vermelha. Todos os fragmen-tos foram tecnologicamente associados ao contexto etnográfico atual, porém é impor-tante sublinhar que a tecnologia em ques-tão, atualmente em desuso, é distinta da tecnologia Terena atual, conhecida e even-tualmente operada em alguns domicílios, apesar dos índios alegarem que “o barro da Aldeia não é bom”.

Com efeito, os significados da variabi-lidade e da variação nos correlatos mate-riais de ocupação relativos à história da formação do contexto etnográfico atual podem ser compreendidos através da con-juntura histórica das transformações só-cio-culturais impulsionadas pela política indigenista do séc. XX e da abordagem etnoarqueológica. Como aludido acima,

muitos remanescestes étnicos Guaikurú e Guaná dispersos e escravizados nas fa-zendas da região foram libertados por Rondon e adensados pelo SPI nas reservas indígenas, com o propósito da assimilação e da aculturação. Em Lalima, a atuação do SPI e, posteriormente, da FUNAI, agrupou remanescentes étnicos distintos junta-mente com os Guaikurú, acelerou a trans-figuração da cultura indígena e fomentou a difusão da influência cultural dos Tere-na. Desafortunadamente, os registros au-diovisuais obtidos com os interlocutores ainda não foram analisados sistematica-mente a partir de uma perspectiva etnoar-queológica concernida com a construção de um modelo interpretativo, porém os dados contidos nas gravações, ainda mais se somadas aos dados históricos, etnográ-ficos e arqueológicos, apresentam infor-mações sobre a história e a cultura da ocupação indígena contemporânea que permitem transpor o estabelecimento do fato pelos materiais, incrementar o conhe-cimento sobre o passado, compreender as questões postas pelo presente e refletir so-bre o futuro da comunidade indígena lo-cal e regional.

ConSIDERAçõES fInAIS: A ALDEIA LALImA E A oCUPAção InDíGEnA REGIonAL

Em conformidade com a hipótese conce-bida em relação à pesquisa de levantamento arqueológico em Lalima, bem como com as proposições teóricas, históricas, etnográfi-cas e arqueológicas que a embasam, os cor-relatos ora apresentados, mesmo conside-rando o caráter preliminar dos resultados obtidos até momento, não só estabelecem o fato de que a área estudada pode ser com-preendida enquanto palimpsesto da trajetó-ria histórica da ocupação indígena regional, na medida em que os dados demonstram

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que a Aldeia foi ocupada por populações di-versas ao longo do tempo, como ainda ofe-recem elementos que podem ser utilizados na elaboração de novas inferências.

Até onde se permite generalizar, os corre-latos detectados em Lalima tratam de aproxi-madamente mil anos de história indígena na região do médio curso do rio Miranda. Os fa-tos mais notáveis em tal ínterim são o estabe-lecimento de populações ceramistas distintas e os impactos do colonialismo sobre as mes-mas. Em se tratando do primeiro fato, preva-lece a hipótese de que os conjuntos classifica-dos como Guarani, Tradição Pantanal (análogos à Fase Jacadigo e aos materiais do MS-CP-25) e correlatos da história de forma-ção do contexto etnográfico atual podem ser compreendidos como testemunhos da diver-sidade cultural descrita desde a chegada dos primeiros conquistadores e colonizadores até o presente, cujas origens encontram-se na pré-história. Destarte, apesar do desconheci-mento sobre a cultura das populações porta-doras de tecnologia cerâmica semelhante àquela da Fase Jacadigo e das interações des-tas com os Guarani, bem como da possibilida-de de compartilho dos materiais similares aos do MS-CP-25 entre populações diferentes desde períodos pré-históricos e das limitações da abordagem etnoarqueológica junto à co-munidade, postula-se, no que concerne às re-lações dos conjuntos de correlatos materiais de ocupação detectados na Aldeia e a história indígena regional de longa duração, que: a) tanto os Guarani quanto as populações com cerâmicas parecidas com aquelas da Fase Ja-cadigo podem ser caracterizadas como socie-dades agricultoras, ceramistas, sedentárias e culturalmente distintas que se estabeleceram no médio Miranda em períodos pré-históri-cos; 2) cedo ou tarde, os Guarani se impuse-ram cultural e territorialmente sobre as ou-tras populações que se estabeleceram na região, inclusive em relação aos que porta-

vam cerâmicas análogas aos da Fase Jacadi-go, até o início do colonialismo; 3) os conjun-tos constituídos principalmente por fragmentos cerâmicos semelhantes aos do sítio MS-CP-25 eram portados pelas popula-ções migrantes do Chaco, sobretudo Guaiku-rú e Guaná, os quais se estabeleceram na re-gião a partir dos séculos XVII e XVIII, após o abandono dos Guarani; e 4) os conjuntos atri-buídos pelos interlocutores indígenas ao pro-cesso de constituição da configuração etno-gráfica hodierna foram deixados pelos remanescentes étnicos adensados em Lalima pelos órgãos indigenistas oficiais entre o fim do império e a república do presente.

No que concerne ao segundo fato, ou seja, aos impactos do colonialismo nas populações indígenas no médio Miranda, pode-se asso-ciar o abandono Guarani e a variabilidade entre os conjuntos datados como pré-históri-cos e históricos, ou melhor, entre Guarani e análogo à Fase Jacadigo, de um lado, e similar ao MS-CP-25 e Etno-históricos, de outro, aos constrangimentos e transtornos causados com a chegada e a conquista do continente pelos europeus, mormente no que se refere ao baixio demográfico e à desestruturação dos territórios e das culturas indígenas.

Seja como for, as considerações tecidas acima apenas poderão se confirmar, ou não, com a continuidade e o aprofundamento das pesquisas. Tal intuito, ao seu turno, so-mente poderá ser empreendido com a valo-rização da colaboração e da participação da comunidade indígena em Lalima no pro-cesso de construção do conhecimento, atra-vés de uma perspectiva interdisciplinar, diacrônica, holística, crítica e comunitária, tendo em vista o retorno das informações à sociedade, o combate ao colonialismo e a descolonização da arqueologia e do passado (Layton, 1989, 1994; Shepherd, 2003; Silli-man, 2005; Smith & Wobst, 2005).

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da Força repressora

à CoesÃo sUtil:a arqUeologia

da Vila operáriaCláudia Regina Plens

Profa. Dra. Curso de História Universidade federal de São Paulo - UnIfESP

[email protected]

ARTIGO

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:136-155 - 2010

AbStRACtThe archaeological research at the rail-

way worker village of Paranapiacaba (mu-nicipal district of Santo André, São Paulo State) studies the consequences of the work-ing system change, which was impelled by the construction of the British “The São Paulo Railway Co. Ltd.” in the last quarter of the 19th century. The research focus was the be-havior shift of a particular segment of the Brazilian working class during the transition period from the slavery to the hire system. So far, the project had as research object, the residences of the railway village built since 1865, to lodge the employees of the company, Brazilians and immigrants. The archaeologi-cal surveys in the residential discard areas identified different characteristics. Such re-sults brought into the discussion about the behavior among the social classes between the final slavocrat period and the beginning of the 20th century.

KEY WoRDS Historical Archaeology, Atlantic Rain Forest, labor class, labor villa, railway

RESUmoA pesquisa arqueológica na vila operária

de Paranapiacaba, Santo André, SP, buscou compreender como as modificações no sis-tema de trabalho afetaram o comportamen-to de um segmento da classe trabalhadora brasileira – no segundo quartel do século XIX - impulsionada pela construção da fer-rovia inglesa The São Paulo Railway Co. Ltd. O tema do projeto abordou o assunto da classe trabalhadora paulista no momento de transição do trabalho escravo para o as-salariado. Para tanto, teve como objeto de estudo as residências da vila ferroviária construídas a partir de 1865, para a moradia dos funcionários da companhia inglesa, brasileiros e imigrantes. As intervenções ar-queológicas nas áreas de descarte residen-cial identificaram diferentes características. Tais resultados nos remeteram à discussão a respeito do comportamento entre as clas-ses sociais desde o período escravocrata até o começo do século XX.

PALAvRAS-CHAvE Arqueologia Histórica, Mata Atlântica, classe trabalhadora, vila operária, ferrovia

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Da força repressora à coesão sutil: a arqueologia da vila operária Cláudia Regina Plens

IntRoDUçãoEste trabalho é o resultado da pesquisa

arqueológica desenvolvida como projeto de mestrado no Museu de Arqueologia e Etno-logia da Universidade de São Paulo, nos anos de 1999 a 20021, cujo enfoque foi a vila operária de Paranapiacaba, município de Santo André, Estado de São Paulo, Brasil.

O objetivo geral do projeto foi a busca de parâmetros para a compreensão do processo de transformação da paisagem no cotidiano da comunidade operária oitocentista da Vila de Paranapiacaba, perante o sistema ideológi-co inglês e, ainda, compreender como a classe operária, composta por brasileiros e imigran-tes, sobretudo espanhóis e italianos, se adap-tou a uma postura ordenada de uma vila pré--fabricada que lhes foi imposta. A Arqueologia nos permitiu explicar alguns dos mecanismos dos hábitos de comportamento adotados pe-los trabalhadores (e também moradores desta vila), analisando as informações contidas nos artefatos para a apresentação de um modelo do cotidiano da vila operária, e discutir estra-tégias de ação e reação estabelecidas entre patrões/empregados, brasileiros/imigrantes e mão de obra assalariada/escrava, vivenciadas no século XIX na Vila de Paranapiacaba e ad-jacências, em função da estrada-de-ferro.

A CLASSE tRAbALHADoRA no fIm Do ImPéRIo PARA A REPúbLICA nA vILA DE PARAnAPIACAbA

Em 1807, a Inglaterra suprimiu o seu próprio comércio negreiro transatlântico. A partir de então, iniciou-se uma cruzada para convencer os outros países a seguir o seu exemplo. D. João VI viu-se obrigado a restringir a escravidão às colônias portu-guesas ao sul do equador, e a posicionar-se para que elas também passassem a extin-guir o tráfico negreiro (Dean, 1996: 161). No

Brasil, o pensamento abolicionista foi mani-festado a partir da assinatura dos Tratados de Comércio e Amizade com o governo bri-tânico, em 1810, e intensificou-se no mo-mento do Congresso de Viena. Tal fato tinha caráter efetivamente econômico, mesmo que mascarado por qualquer caráter huma-nitário (Neves, 2000: 375).

D. João, príncipe regente, que defendia arduamente a escravidão, no Congresso de Viena fundamentou as razões e motivos que o prendiam ao comércio do tráfico negreiro, o qual considerava indispensável para a prosperidade das colônias portuguesas. A sua posição foi discutida pelo representante inglês quanto aos motivos humanitários, entre os econômicos, que faziam do aboli-cionismo o melhor caminho para a prospe-ridade desses países e colônias (Neves, 2000: 376). No Brasil, em 1822, dentro de um clima agitado, os debates por meio da imprensa permitiram que ainda aflorassem outras dimensões da questão abolicionista. As idéias abolicionistas tornavam-se uma luta pelo poder (Neves, 2000: 391).

Neste período a condição dos escravos, em São Paulo, estava passando por várias contur-bações. O interior, onde se expandiria a cultu-ra cafeeira, contava com poucos escravos no começo do século XIX. Bacellar (2000: 240) relata que em Sorocaba, no ano de 1810, havia 9.581 habitantes, dos quais apenas 1.938 eram escravos, sendo que estes estariam distribuí-dos em 360 domicílios, representando 20,4% do total, completando a média de 5,4 escravos em cada casa. A distribuição de escravos, no entanto, não se dava sempre nesse número, sendo que muitos dos documentos apontam para a existência de um único escravo em cada residência, muitas vezes crianças, devi-do ao seu baixo valor comercial (Bacellar, 2000:251).

1 A pesquisa arqueológica teve apoio da fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:136-155 - 2010

Com o advento do café, porém, grandes fazendas passaram a ocupar o interior e também a deter um maior número de escra-vos concentrados em um mesmo espaço. As relações entre senhor e escravo se tornaram cada vez mais distantes. O sistema discipli-nar da fazenda exigia ritmo de trabalho mais acelerado que anteriormente e, em contrapartida, reivindicações por melhores condições de sobrevivência por parte dos escravos. Suas reivindicações giravam em torno de folgas semanais, alimentação e vestuário, recebimento pelo trabalho e re-dução de castigos sofridos (Machado, 1994:25). A conseqüência: violência, onde os escravos passavam a agir de maneira or-ganizada, rebelando-se contra seus senho-res (Azevedo, 1987:199). Nos jornais passa-ram a ser comuns denúncias de atos de desobediência às regras disciplinares nas fazendas, como revoltas organizadas e cri-mes sangrentos (Machado,1991:67). Todo este movimento trazia fortes preocupações tanto para os senhores de escravos quanto para a polícia, responsável pela manuten-ção da ordem.

A pressão da polícia sobre os escravos au-mentava e as reivindicações ganhavam novos espaços. Os escravos fugiam das fazendas po-voando cidades, estradas, estações de trens (Machado, 1991: 69). A comunicação do mo-vimento, fundamental para a manutenção do abolicionismo, se realizava através de caixei-ros, tropeiros e ferroviários e assim seguiam para as cidades por onde o transporte passava (Machado, 1991:92). Toda essa movimenta-ção estava ocorrendo às margens das ferro-vias Companhia Ferroviária e Mogiana, im-plantadas na década de 1870 por interesse dos cafeicultores, como prolongamento da São Paulo Railway (Machado, 1991:91).

Os santistas, que se mantinham atentos a estes acontecimentos e viam constante-mente fugas das fazendas e a movimenta-

ção diária por Cubatão e Bertioga, organiza-ram-se em apoio ao movimento. Como o número de fugitivos crescia, tornava-se im-possível colocar a todos nos serviços do por-to e das casas de comércio, ainda mais por-que aderiam a esse movimento também crianças e mulheres, sendo necessária a criação de um novo espaço que acolhesse este contingente.

Foi somente em 1882, numa reunião que contava com a presença de Xavier Pinheiro, Guilherme Souto, Geraldo Leite, Júlio Ba-ckauser, Santos Pereira, conhecido como “Santos Garrafão”, Ricardo Pinto de Olivei-ra, Júlio Maurício, Constantino de Mesqui-ta, Joaquim Fernandes Pacheco, Teófilo de Arruda, José Inácio da Glória, Afonso Veri-diano, Antônio Augusto Bastos entre outros, que foi decidido que deveria ser construído um reduto para os fugitivos do trabalho es-cravo (Moura, 1988:211). Com a morte de Luiz Gama, um líder abolicionista, a ação passou a ser liderada por Antonio Bento, que fez com que o movimento se avantajas-se, tomando proporções antes nunca vistas em São Paulo. Neste ano houve vários rela-tos de incitamento a revoltas de escravos por pessoas de fora das fazendas (Azevedo, 1987: 201).

Primeiramente a estratégia utilizada por Antonio Bento consistia na utilização dos meios jurídicos. Através do jornal intitulado A Redempção, instalado na confraria negra de Nossa Senhora dos Remédios, no centro de São Paulo, eram divulgadas suas idéias abolicionistas. Este jornal destinava-se às pessoas de classe social baixa, mas chegou a alcançar aceitação desde os próprios es-cravos nas senzalas até famílias mais abas-tadas de São Paulo. Na cidade de São Paulo, Bento também possuía alojamentos para os negros que não tinham para onde ir. Indo mais longe, “Bento reuniu uma coleção de instrumentos que, antigamente, haviam

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Da força repressora à coesão sutil: a arqueologia da vila operária Cláudia Regina Plens

sido usados em escravos: chicotes de couro, coleiras, correntes, cangas e gargalhadeiras de ferro”, simbolizando sua luta (Conrad, 1978: 294-5). Com o tempo sua manifesta-ção foi ganhando outros rumos, através do apoio ao abandono das fazendas pelos es-cravos, proteção para fuga, açoitamento e a colocação dos libertos no mercado de tra-balho (Machado, 1991: 96). Para a acolhi-da dos negros fugidos, Antonio Bento, sob o comando de Quintino de Lacerda, um ex--escravo, acompanhado de Julio Mauricio, Wansuit, Santos Garrafão, entre outros mi-litantes abolicionistas, estabeleceu um qui-lombo, que viria a se tornar um dos maio-res de São Paulo.

Este quilombo, localizado na Serra do Mar, pertencente ao município de Santos, contou com cerca de dez mil escravos no século XIX (Reis e Santos, 1989:71-3 e Moura, 1988: 211). A sua formação seria diferente dos demais quilombos brasilei-ros, pois teria surgido de ações sistemati-zadas, com ajuda do branco. O quilombo na Serra do Mar representaria, segundo Queirós (1977:144), o caráter quase único de protesto, devido à ação coordenada por brancos na luta contra a escravização.

O quilombo estava situado em terras altas e férteis, que na época estavam desabitadas. O quilombo Jabaquara situava-se segundo San-tos (citado em Machado, 1991: 169),

“atrás das terras de Matias Costa, ainda em

estado primitivo, coberta de mato e cortadas

de riachos, havia uma extensão de várzea

trançadas apenas de caaqueras, cambarás e

existiam ao lado da Santa Casa, subindo a

lombada do morro, passando pela casa de

Benjamim Fontana, e a seguiu pelo sítio de

Geraldo Leite da Fonseca que ficava ao alto,

caindo então para a várzea do Jabaquara

(...) As terras do Jabaquara, pertencentes a

Benjamim Fontana, foram arrendadas por

Quintino Lacerda, que aí residiu, junto com

antigos ocupantes do Quilombo até 1898,

quando faleceu (...)”

O movimento crescia e mais pessoas de diferentes classes sociais - como ex-es-cravos e antigos donos de escravos e seus filhos, a elite intelectual da província e pessoas de diferentes partidos políticos -, se juntavam à causa (Conrad, 1978:295).

A viagem dos escravos fugitivos era pe-rigosa e ocorria principalmente à noite, tendo por objetivo atingir o alto da serra e descer para o vale, onde se encontrava o quilombo (Santos, 1942: 178-9). Em San-tos, os quilombolas achavam subempre-gos nos cais do porto entre outros bisca-tes. A ação popular era visível durante as muitas excursões de autoridades à procu-ra de fugitivos. Com pedras, madeiras e paus, saíam à rua em favor da abolição.

Em um desses momentos de fuga de escravos a manifestação de operários da São Paulo Railway Co. Ltd. se fez presente:

“Intervieram então o superintendente da S. Pau-

lo Railway, William Speers, e o chefe do trafego,

Antonio Fidelis, e discretamente offerceram uma

solução. A locomotiva que trouxéra a composi-

ção seria desatrelada. Uma outra seria posta á

retaguarda, e a compromettida diligencia, sem

delongas nem altos, bateria simplesmente em

retirada. Já sabemos das bôas disposições da

gente ferroviária para com a ordem libertadora

dos caiphases. A manobra executou-se com in-

crivel rapidez e, a levantar um alto pennacho de

vapor claro, num longo apito victorioso, lá se foi

o trem em direção á serra... A autoridade publi-

ca havia feito, no municipio de Santos, a sua

ultima tentativa no sentido legal da escravidão.

Naquella noite accendeu-se uma immensa fo-

gueira no Jabaquara, e o samba retumbou festi-

vo e exultante até alta madrugada....”(Santos,

1942: 183-4).

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A Vila Nova (antigamente denomina-da Vila Martin Smith), foi uma área pla-nejada, construída devido ao aumento do

número de funcionários e, também ao ace-lerado desenvolvimento da ferrovia. Nes-ta área, as casas teriam sido construídas também de acordo com o estado civil do trabalhador, mas, sobretudo, em relação à função exercida pelo trabalhador na fer-rovia, como engenheiros, manobristas e mecânicos. Todas essas construções foram feitas em madeira sobre alvenaria. As re-sidências nesta área foram construídas em quatro padrões (figura 2):

O planejamento e extensão da vila de Para-napiacaba para a Parte Alta ocorreu de acordo com a necessidade de abrigar a classe de tra-balhadores aposentados pela Rede, pois estes,

Este episódio traz à tona a presença britâ-nica nos movimentos em favor da libertação dos escravos. E embora não haja trabalhos históricos com registros dos trabalhadores da São Paulo Railway Co. Ltd., um levantamento efetuado em 1920 registrou 3.286 moradores na Vila de Parapiacaba, todos imigrantes, por-tugueses, espanhóis e italianos.

Inicialmente o que se tornou a Vila de Para-napiacaba era um acampamento provisório para os 5000 trabalhadores que começaram as obras da construção da ferrovia Estes, depois de concluído o empreendimento, não continua-vam a trabalhar para a empresa. Contudo, mais tarde seriam necessários trabalhadores contra-tados para a manutenção da ferrovia. Desta for-ma foram contratados outros 2000 trabalhado-res, dando, assim, início a ondas migratórias que tinham por finalidade a busca de trabalho.

A ARQUEoLoGIA DA São PAULo oItoCEntIStA

A Vila de Paranapiacaba se divide em três diferentes conjuntos de aspectos urbanísti-cos e arquitetônicos distintos entre si: Vila Velha, Vila Nova e Parte Alta (Malentaqui, 1984:18-9). Na Vila Velha, local onde ocorreu a primeira fase da ocupação inglesa em 1860/62, onde além das residências estão lo-calizados os mais antigos depósitos da em-presa, as características são: construções que seguem os alinhamentos das ruas; distribui-ção pouco ordenada das construções; inexis-tência de calçamento nas ruas; inexistência de um modelo de arruamento, com a exis-tência de apenas um eixo principal (Rua Di-reita) que dá acesso aos depósitos e oficina.

As residências dos trabalhadores na Vila Velha diferenciam-se em relação ao tamanho da família a quem se destinavam, desde os cô-modos que abrigariam os solteiros (Casa tipo D), até para famílias na qual o trabalhador mo-rava com esposa e uma grande quantidade de filhos (Casa tipo C) (Figura 1).

Figura 01. Esquema de residências dos trabalha-dores na Vila Velha. Fonte: Ferreira et. alii, 1990.

Figura 02. Esquema de residências dos trabalha-dores na Vila Nova. Fonte: Ferreira et. alii, 1990.

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devido ao clima, ao costume ou a outro motivo, preferiam ficar morando em Paranapiacaba (Malentaqui,1984:14). A parte baixa, conside-rando o declive do Vale, foi primeiramente for-mada por habitações provisórias (acampa-mento) dos operários da São Paulo Railway. A intenção da companhia era a fixação de pou-cos operários no local, porém, devido às difi-culdades, às obras de conservação e às exigên-cias oficiais, cresceu a necessidade de um maior número de funcionários no local em caráter permanente.

A vila operária, em geral, não permitia uma grande locomoção dos operários e seus fami-liares, com o objetivo de mantê-los o maior tempo possível em função do trabalho. Para as horas de lazer, necessárias para uma vida mi-nimamente confortável, estabeleceram-se cen-tros religiosos, desportivos, de lazer, localiza-dos dentro, também, da visualização do superintendente, com o objetivo de manter uma ordem social para que a força de trabalho não seja despendida em outras atividades.

o mARxISmo E o PEnSAmEnto foU-CALtIAno

Na análise da cultura material da Vila de Paranapiacaba, adotamos o pós-processualis-mo em duas vertentes transdisciplinares: o marxismo e o pensamento foucaltiano. A apli-cação do marxismo pelo pós-processualismo é baseada na idéia de ideologia, não apenas rela-cionada ao dominante, mas, sobretudo ao inte-resse (Hodder 1992). Nesta perspectiva, enten-de-se que diferentes grupos da sociedade são capazes de desenvolver ideologias divergentes. A influência do pensamento foucaltiano, no que se refere à ideologia, baseia-se na relação do poder, conhecimento e verdade. Para Hod-der, o poder manipulado pelos recursos mate-riais deve ser estudado a partir destas três pre-missas supracitadas (seria importante uma citação, de preferência com página).

Na tentativa de argüir a questão do poder

e da ideologia durante o período de indus-trialização na Europa, Foucault (1987:118) explica que, desde a época clássica, o corpo humano era considerado como um objeto submetido à força do poder e, como tal, passa a ser manipulado, modelado e treinado sen-do o fim responder e obedecer às necessida-des da elite. Tais condições de manipulação do corpo não são exclusividade de uma úni-ca sociedade, ao contrário, elas se dão em qualquer sociedade, impondo limitações, proibições ou obrigações através de métodos de controle sobre o indivíduo. Vários proce-dimentos de coerção semelhantes foram muito vigentes nos século XVII e XVIII como uma alternativa aos métodos mais bruscos de coerção ao trabalho: a escravidão.

Apesar de se fazer presente em todas as so-ciedades, a disciplina passou a exercer função mais centralizada na vida individual no século XVIII, devido ao aumento da demografia na Europa associada ao crescimento do aparelho de produção que, com controle sistemático, proporcionava maiores e melhores resultados mas, em contrapartida, requeria maiores custo e esforço. Sobre o indivíduo passou a ser exer-cida a disciplina do corpo e não somente a sua apropriação. Através da disciplina é possível fazer com que os corpos se tornem submissos, aumentando gradativamente sua capacidade de trabalho, em um menor intervalo de tempo. “Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma domina-ção acentuada” (Foucault, 1987: 119).

No século XVIII, Jeremy Bentham, filósofo e jurista inglês, concebeu um sistema de vigi-lância denominado sistema panóptico (pan--óptico), cuja função inicial era o projeto de prisão modelo que posteriormente foi adota-do por instituições educacionais e de trabalho. O sistema panóptico era, portanto, a maneira utilizada para neutralizar a desordem através

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da fixação das populações que pudessem sub-verter a ordem. Na Inglaterra, coube às ins-tituições religiosas a responsabilidade das primeiras ações disciplinares sobre grupos populacionais. A disciplina, reconhecida como técnica para a ordenação das complexidades humanas (Foucault, 1987:173-9), por sua vez, obedece a uma série de regras para que suas condições sejam desenvolvidas.

Ainda segundo Foucault (1987:122), a colo-cação do indivíduo – e, por conseguinte, do grupo - no espaço, é fundamental e pode ser realizada por meio de quatro regras. A primei-ra delas é a escolha do local, sendo este “hete-rogêneo a todos os outros e fechado em si mes-mo”; a segunda é a manutenção de um espaço enclausurado, sem, no entanto, haver a per-cepção disto, separando os grupos em sistemas individuais, a fim de evitar corporações e pro-porcionando a fácil verificação dos presentes e ausentes “procedimento, portanto, para conhe-cer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico”; a terceira trata da deter-minação dos espaços, proibindo comunicação que ponha o sistema em perigo e, ao mesmo tempo, criando um espaço que seja inteira-mente útil. O refinamento na técnica de distri-buição dos indivíduos no espaço, de maneira a articular a distribuição dos indivíduos, ocorreu nas fábricas, nas décadas finais do século XVIII, colocando-os em posição isolada e rapi-damente localizável; a quarta, onde todos os elementos podem ser trocados, pois cada qual ocupa um espaço idêntico aos dos demais, criando espaços complexos que tenham de-sempenho, ao mesmo tempo, arquitetônico, funcional e hierárquico. Tudo isso cria valores e impõe a obediência que leva a uma econo-mia de ações que, por sua vez, leva à melhoria do trabalho e por conseqüência, ao lucro.

No sistema disciplinar do trabalho, cada minuto passa a ser importante no emprego do corpo como instrumento de trabalho. Na Europa, o primeiro passo para acostu-

mar a população camponesa com o ritmo do trabalho industrial foi a congregação para aprenderem, de forma uniforme, os novos procedimentos (1987:122).

Ainda segundo Foucault, ‘”a disciplina ‘fa-bricaria’ indivíduos”. é nesse momento de dis-ciplina dos atos que ocorrem os primeiros pas-sos da individualização. Nesse contexto o indivíduo é, sem dúvida, o átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade, mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se cha-ma a “disciplina” (Foucault, 1987: 143-161).

O lugar, o espaço construído para que a dis-ciplina seja exercida sobre os atores, foi estu-dado pelo plano Panóptico de Bentam através da arquitetura, onde de forma periférica ane-lar, a torre estaria centralizada com janelas para toda sua circunferência. Para tanto, este autor se refere ao poder visível e inverificável, com a finalidade de vigiar sem perturbar o in-divíduo, pois este não se sente vigiado.

Segundo Foucault, estes elementos teriam o poder de automatizar e despersonalizar o po-der. Para ele o plano panóptico de trabalho tem por objetivo otimizar o trabalho através da mo-dificação do comportamento e do treinamento dos indivíduos no serviço. é uma implantação dos corpos no espaço, de distribuição dos indi-víduos em relação mútua, de organização hie-rárquica, de disposição dos centros e dos ca-nais de poder, de definição de seus instrumentos e de modos de intervenção, que se podem utilizar nos hospitais, nas oficinas (...) (Foucault, 1987: 165-70).

Ainda segundo Foucault, o que importa no sistema panóptico é o desenvolvimento da pro-dução, o desenvolvimento da economia, a difu-são da instrução e a elevação do nível da moral pública. Para o autor, tal constituição foi possí-vel através da separação, coordenação e con-trole de tarefas impostas junto ao quadricula-mento do espaço que maneja o tempo, gestos e força dos corpos com a finalidade de submetê-

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Da força repressora à coesão sutil: a arqueologia da vila operária Cláudia Regina Plens

-las aos mecanismos de produção. Este proces-so realiza-se através da coerção, porém, sem violência (Foucault, 1987: 172-82).

mEtoDoLoGIACom a finalidade de compreender as es-

tratégias estabelecidas pelos moradores para a adaptação de suas vidas em um sistema im-posto, analisamos diversos pontos da vila que representariam exemplos de setores públicos e privados e, também, de classes sociais dife-renciadas, tal como o Hospital, a Igreja e ha-bitações de engenheiros e funcionários de baixo escalão, respectivamente.

A partir de pesquisas históricas e arquite-tônicas, foram definidas as áreas para pros-pecções e escavações arqueológicas de possí-veis espaços para descarte de lixo doméstico. Esses foram divididos por duas característi-cas: locais de ordem pública e privada e clas-ses sociais alta e baixa. Os locais de ordem pública foram cinco, o Hospital, a Viela, o Li-xão (depósito de lixo), Igreja (Presbiteriana), e o Hotel dos Engenheiros, enquanto que os locais de ordem privada, de classe alta, o Cas-telinho (como é chamada a casa do engenhei-ro chefe), a Casa de Engenheiro, a Casa do Médico, enquanto que os locais de ordem pri-vada destinadas à classe baixa foram três, duas residências destinadas à famílias e uma à grupo de solteiros.

RESULtADoS

o PICHEA escavação arqueológica demonstra

que na Vila Velha de Paranapiacaba, dife-rente do que se supunha (Ferreira ET. A.l 1990), já havia calçamento de piche, não apenas nas ruas mas, também, nos quin-tais das casas, mostrando a preocupação com a manutenção da higiene além de arruamentos bem transitáveis que facili-tassem, aos trabalhadores, o acesso ao

trabalho. Assim sendo, a função do em-prego do piche foi tanto impermeabili-zante e higiênica quanto ordeira.

Durante as escavações arqueológicas foram encontradas camadas de piche em todas as estruturas escavadas. Algumas vezes, como no caso do Hotel dos Engenhei-ros, foi emcontrada mais do que uma ca-mada, o que nos mostra que, ao longo dos anos, estes quintais e arruamentos passa-vam por reformas. O emprego deste mate-rial para o asfaltamento de ruas e quintais foi, sem dúvida, o fator principal que afe-tou a composição do registro arqueológi-co e formação de áreas de refugo.

Sem exceção, foram encontrados vestí-gios de piche em todos os quintais das re-sidências investigadas e, também, na vie-la. Acreditamos que, nos casos onde as intervenções arqueológicas não localiza-ram vestígios de lixo doméstico, o fator pre-ponderante para a ausência de material, deve-se, sobretudo, ao fato de haver pi-che. A ação impermeabilizante do piche exigia da população a limpeza constante e não possibilitava que os materiais fossem encobertos rapidamente por terra.

Comparando os locais que apresenta-ram vestígios arqueológicos e os que não apresentaram, notamos que o que os dife-rencia é a existência do piche. O fato das residências destinadas às classes mais abastadas, assim como os lugares públi-cos, possuírem maior espaço, que era usa-do como jardim ou, em alguns casos, áre-as perto de encostas (onde a circulação de pessoas não era tão freqüente), não ne-cessitava de uma manutenção exígua, per-mitindo que produtos descartados fossem absorvidos pelo sedimento

oS tIJoLoSDentre os materiais construtivos da Vila

de Paranapiacaba, destacamos os tijolos,

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Tabela 01. Quantidade de fragmentos de azulejo encontrados durante a escavação arqueológica, segundo sua localização. Legenda: 1 = Hospital; 2 = Casa dos Solteiros; 3 = Hotel dos Engenheiros; 4 = Castelinho; 5 = Casa do Engenheiro;6 = D. Lucia; 7 = Casa da Zilda; 8 = Casa do Médico; 9 = Viela; 10 = Lixão; 11 = Igreja

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

2 2 7 11 – – – – – – –

pois, durante as prospecções e escavações arqueológicas, estes revelaram ser de gran-de diversidade, tanto no tamanho e qualida-de, quanto nos códigos de identificação. A partir da análise verificamos que este mate-rial poderia representar muito mais as transformações sociais da região do Grande ABC, concomitantemente ao desenvolvi-mento de Paranapiacaba, do que quaisquer outros materiais recuperados na escavação. Através da diversidade de logotipos dos tijo-los, notamos que as olarias, que já tinham uma dada importância na região – como em São Caetano, cujas olarias edificadas pelos Beneditinos tiveram suas atividades inicia-das em meados do século XVII - passaram a ter um crescimento acelerado com a im-plantação dos trilhos ferroviários no século XIX. Deste modo, as olarias representaram a fonte econômica de maior representativi-dade para a população das adjacências no período de transição entre o trabalho escra-vo e o assalariado. Com base nisso, desen-volvemos uma metodologia que passa des-de a descrição do material até o debate da

sua importância para os moradores ao lon-go da ferrovia S. Paulo Railway Co. Ltd.

é importante notar que, desde os primei-ros séculos de colonização européia, a pro-víncia de São Paulo teve como papel econô-mico a produção de itens cerâmicos, onde os habitantes possuíam apenas alguns instru-mentos de ferro para o seu trabalho, além de poucos outros utensílios como roupas, por exemplo. A ferrovia provocou o aumento de trabalhos em torno da produção de recipien-tes cerâmicos, tais como pratos e potes, entre outros. Houve variações nas técnicas, formas e estilos mais do que encontrados entre os séculos XVII e XVIII (Morales, 2000:146). Destaca-se aí, a importância da região do ABC com o aumento da produção dos itens cerâmicos em São Caetano, São Bernardo, Estação S. Bernardo (atual Santo André), Ipi-ranguinha, Pilar (atual Mauá), Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra (Tabela 2). Aos poucos, a região que produzia utensílios cerâmicos que serviam tão somente aos tropeiros que subiam e desciam a Serra do Mar, e também para o uso doméstico das poucas famílias da região, passou a ter uma forte produção de tijolos, impulsionando, assim, o aumento po-pulacional, principalmente através da imi-gração, que era a base da mão-de-obra.

Para a companhia ferroviária, os tijolos passaram a ganhar cada vez mais espaço como material de construção, enquanto que as casas de pau-a-pique serviriam somente para o abrigo de operários durante a cons-

trução da ferrovia. Depois, com o in-tuito de fazer núcle-os habitacionais mais duradouros e que permitissem a fixação e o desen-volvimento de ati-vidades mais com-plexas, recorreram

Tabela 02 - Olarias na região circunvizinha a Vila de Paranapiacaba no início do século XX. Fonte: Santo André, 1991.

Olarias 1900 1901 1902 1903 1908 1909 1910 1911 Total

Estação São Bernardo 3 2 3 3 7 3 5 – 26

Ipiranguinha – – – – – – – – –

Pilar – – – 1 – 1 3 2 7

Rio Grande da Serra 1 – – – 1 2 5 – 9

São Caetano do Sul – – – – – 1 3 – 4

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à construção de casas, em alguns casos toda em alvenaria, ou em outros, em madeira - neste caso, o tijolo era empregado na cons-trução do alicerce das edificações.

O desenvolvimento da região, em rela-ção às olarias, foi impulsionado pela cons-trução da ferrovia que, além de ter utilizado muito material para a sua ampliação, tam-bém fomentou a movimentação da popula-ção neste mercado.

Não existem trabalhos que aprofundam a questão destas olarias de modo abrangen-te, contudo, um relatório elaborado pela prefeitura de Santo André (1991), que trata do imposto de Indústrias e Profissões, imposto cobrado pela municipalidade sobre as in-dústrias e profissões, aponta para alguns as-pectos das olarias na região circunvizinha à Paranapiacaba ao afirmar “que de acordo com o Novo Código de Posturas Municipaes aprovado pela Lei nº 73 de 19 de julho de 1910, é uma das rubricas da Receita Ordiná-ria do Município”.

Apesar dos números apresentados na ta-bela 2, talvez houvesse olarias que não pa-gassem seus impostos devidamente, ou en-tão, somente a partir deste período o desenvolvimento desta atividade tenha sido tão promissora que, meio século mais tarde as olarias chegavam a ser 800 na região (Wiegratz, 2000).

Segundo Marqueiz (1969), a implanta-ção das olarias na região teve como causa a geografia local, pois costumam estar próxi-mas a terrenos alagadiços que propiciam barro de ótima qualidade para produção de tijolos.

Os tijolos encontrados em Paranapiaca-ba diferem em suas dimensões e peso, cada qual sendo indicado para utilizações distin-tas, dependendo das obras a que se destina-vam. A análise morfológica e das marcas dos tijolos resultaram nas classificações da tabela 03.

Foram analisados 15 tijolos representan-do aqueles que ainda se encontram nas ca-sas que continuam ocupadas por grupos familiares. é importante ressaltar que, por se tratar de uma vila ainda ocupada, onde os tijolos ainda exercem suas funções den-tro da construção, é impossível quantificar o número de tijolos utilizados na Vila ou mesmo em cada residência. Portanto, traba-lhamos somente com uma amostra dos tijo-los mais representativos. Para a conclusão desta pesquisa, contudo, não foi possível estabelecer conexões entre o logotipo dos tijolos com possíveis olarias existentes na região que permitam levantar questões co-merciais entre os produtores e os consumi-dores.

A mADEIRAAlém das diversas madeiras provenien-

tes da Mata Atlântica e do cerrado, utiliza-das como dormentes para a construção da ferrovia, outra madeira de lei muito utiliza-da na arquitetura da Vila de Paranapiacaba, especificamente, foi o Pinho de Riga. No norte da Europa, era prática a utilização desta madeira na marcenaria. Como o pa-drão arquitetônico da Vila de Paranapiaca-ba seguia o modelo europeu de vilas operá-rias, se utilizou o mesmo material para sua pré-fabricação, na Inglaterra, de onde fo-ram importadas.

A importação desta matéria-prima num ambiente de Mata Atlântica é bastante sig-nificativa para a discussão sobre a imposi-ção de uma postura ordenada de uma vila pré-fabricada, pois nos remete a duas hipó-teses, por um lado, estaria ocorrendo à ex-tinção de madeiras de lei nesta vegetação pela devastação ou, por outro, não haveria a preocupação pela substituição desta ma-deira por outra que fosse facilmente adqui-rida no Brasil, no próprio ambiente onde seria implantada a Vila de Paranapiacaba.

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Tabela 03. Relação de tijolos segundo suas inscrições

Baixo Relevo (BR)Alto Relevo (AR) Inscrição Medidas

AR BG ?X13X7,0

BR LM 28X14X7,0

BR A.F 26X12.5X6.5

AR N... ?X13X6

BR JG 28X13X7

BR MPC 20,5X10X5

AR G&F 27X13X7

BR LPI 28X13.5X7,5

AR SPR 23,5X12X7

AR FSE 27,5X12,5X8,0

BR H&B 22X9,5X5

BR S.... –

BR JPP 26X12X6.5

BR GN 24X11,5X6

BR *O* 25X12X6,0

BR A*B 25X12X6,0

AR z.V..... ?X13X6,5

BR ....CM 12,5X7X?

AR PILAR 24X12X7

oS mEtAISEste tipo de material foi empregado tanto

na composição de residências (por exemplo, vaso sanitário), como na ferrovia (por exem-plo, roldanas) sendo, grande parte, de origem inglesa. Apesar da grande importância que o material metálico tem na Vila de Paranapiaca-ba, ainda muito utilizado pelos moradores atu-ais, a sua análise foi superficial, pois, mesmo sendo encontrado em todos os níveis arqueoló-gicos, a coleta deste tipo de material no solo não se mostra conveniente pela rapidez da sua oxidação, o que prejudicou a análise mais aprofundada do material.

o LIxo DoméStICoOs artefatos encontrados em maior quanti-

dade no lixo doméstico são aqueles que com-punham as mesas das residências. O histórico destes artefatos mostra que, no século XIX, em

quase todo o mundo, o sistema mercantil-capi-talista inglês incentivava a aquisição de itens específicos de consumo, em geral, de uso do-méstico, antes restrita às elites. Desta forma, quando as primeiras iniciativas capitalistas passaram a ser introduzidas no Brasil permi-tiu-se que a entrada de novos gêneros refletisse diretamente no padrão de comportamento de consumo em todas as classes sociais. O que possibilitou, materialmente, a aquisição de produtos por toda a sociedade, porém, cada segmento social estava apto a adquirir produ-tos em quantidade e qualidade distintas. As di-ferenças de classes que antes era perceptível rapidamente no ambiente macro, ou seja, na arquitetura, passa também a ser refletido na cultura material de menor porte (Andrade Lima, 1995; Andrade Lima,1997).

A paisagem do Brasil do século XIX passa a ser, cada vez mais, repleta de artefatos de consumo doméstico em todas as classes so-ciais. Se primeiramente a faiança portu-guesa tinha entrada restrita nas classes mais abastadas por razão de seu alto custo, poste-riormente as classes menos privilegiada eco-nomicamente puderam adquirir estes pro-dutos graças aos baixos preços alcançados pela industrialização inglesa (Brancante, 1981:495). Em pouco tempo as novidades do mercado passavam a ser obsoletas e novos produtos eram introduzidos. Com o alto índi-ce de aceitação e consumo destes gêneros, os produtos, que outrora tinham significado pu-ramente utilitário, passam a ser consumidos com o intuito de ascensão social (Andrade Lima, 1995:164-177; 1997:111-117).

A recuperação deste tipo de artefato na Vila de Paranapiacaba nos permitiu com-preender algumas características do com-portamento de consumo deste grupo, não apenas pela quantidade, mas, sobretudo pelos espaços ocupados pelas lixeiras do-mésticas que nos revelaram dados bastante significativos. Através das escavações ar-

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queológicas pudemos detectar que, para a análise da diferenciação das classes so-ciais, a interpretação da existência ou au-sência de lixeiras é o dado mais marcante deste grupo. Devido à ausência destes arte-fatos, do segundo quartel do século XIX, nas residências dos trabalhadores, a pro-posta inicial do projeto de interpretar o comportamento da classe operária através de seu lixo doméstico foi, em parte, invia-bilizada, não permitindo que todas as ques-tões levantadas pudessem ser respondidas.

Antes de abordarmos a análise dos artefa-tos recuperados durante as campanhas ar-queológicas, faz-se importante abordar a questão do padrão de descarte para podermos entender o que ocorreu na Vila de Paranapia-caba, uma vez que, materiais arqueológicos foram encontrados em determinados am-bientes bastante caracterizados.

O fator primordial para determinação do registro arqueológico é o seu processo de formação. Os vestígios materiais, manipula-dos por determinada sociedade, passam por um contexto sistêmico, ou seja, passa por diversas fases durante sua formação, fun-cionalidade e abandono ou descarte, até o momento em que se torna um contexto ar-queológico. Sob a forma de registro arqueo-lógico, os materiais ainda sofrem perturba-ções, seja por intemperismo, erosões, biológicas e as culturais, que derivam das mais variadas formas de (re) utilização do mesmo espaço, vindo a causar, direta ou in-diretamente, impacto sobre o registro ar-queológico (Schiffer, 1972).

O trabalho de lixeiras domésticas refere--se, essencialmente, ao tema de formação de registro arqueológico. Freqüentemente, em sítios arqueológicos históricos (South, 1977; 1988; Andrade Lima, 1995, Symanski, 1998), essas áreas de concentrações de artefatos são delimitadas a partir da organização espacial doméstica, nas quais são demarcadas áreas

próprias para o descarte residencial. Na busca de informações a respeito de áreas de descar-te aplicou-se, como metodologia de campo, a prospecção arqueológica nas áreas residen-ciais da Vila de Paranapiacaba (Vila Velha e Vila Nova), para a localização de maiores in-cidências de artefatos.

O material arqueológico de uso coti-diano, que remonta ao século XIX, na Vila de Paranapiacaba, foi localizado essen-cialmente em dois pontos da Vila: a Casa do Engenheiro Chefe e Hotel dos Enge-nheiros, sendo que nas residências dos operários os materiais recuperados refe-rem-se apenas ao século XX. Os dados ob-tidos pelo material arqueológico, como a louça e o vidro, nos permitem constatar que, apesar do consumo desses materiais não ter sido distribuído entre todas as classes sociais, havia um fluxo constante destes materiais na vila, mesmo sendo um lugar de subúrbio e longe das demais ci-dades. Isto só foi possível pelo acesso pro-porcionado pela ferrovia.

Os vestígios arqueológicos encontrados nos ambientes de maior prestígio são os vi-dros seguidos das porcelanas (salvo telhas e tijolos). Tanto na Casa do Engenheiro Chefe (Castelinho) quanto no Hotel dos Engenhei-ros, as estruturas construtivas revelam uma arquitetura mais sofisticada que, associada à questão da quantidade de lixo doméstico, mostram que o cenário social vivido por esta classe diferenciava-se da classe composta pelos demais trabalhadores, ou seja, o fato do material mais antigo aparecer somente nas áreas residenciais da elite sugere que a quantidade de materiais como vidros e por-celanas concentravam-se nas mãos desta classe, o que não quer dizer que a classe ope-rária também não tivesse acesso a esses gê-neros, mas que a quantidade de material re-ferente a estes segmentos fosse menor, por falta de oportunidade em adquirir novos pro-

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dutos, associado a uma possível utilização de suportes materiais substitutivos, muito mais resistentes e que, portanto, possuíssem uma sobrevida maior.

A LoUçA

Na Vila de Paranapiacaba a pesquisa ar-queológica recuperou 356 vestígios prove-nientes de antigas áreas de descarte de lixo doméstico, dentre eles 115 fragmentos de louça. Entendemos como louça todas as for-mas de cerâmica, ou seja, produtos manu-faturados como a cerâmica, o grés, a faian-ça simples, a faiança fina e, por fim, a porcelana, que são compostas por substân-cias minerais que permitem queimas de caulim e argila, além de feldspato e quartzo (Brancante,1981:155).

A CERâmICAForam identificados 5 fragmentos de

cerâmica provenientes do Castelinho e Hotel dos Engenheiros, produzidas em tornos mecânicos.

o GRéSO grés cerâmico encontrado em Parana-

piacaba durante a campanha arqueológica serviu unicamente como manilha para o escoamento das águas pluviais. Este mate-rial possui uma composição de textura muito mais resistente do que a cerâmica comum. O grés possui espessura grossa, porém de grãos muito finos, cozido a alta temperatura, o que o torna vitrificado e, por conseguinte, impermeável, ideal para pe-ças que requerem utilidade constante. Se-gundo zanettini (1998:121), já foram en-contrados fragmentos desta qualidade cerâmica no nordeste brasileiro, remon-tando ao século XVII. Já em São Paulo, o grés só é conhecido a partir do século XIX, através da importação, trazido pelos ingle-ses e, normalmente, destinava-se a peças

para tubos, manilhas, azulejos ou peças sa-nitárias.

A baixa concentração deste material deve-se ao fato de que muitas peças en-contrarem-se inteiras, talvez em atividade até os dias atuais.

Apesar da alta fragmentação das louças, alguns padrões decorativos puderam ser iden-tificados e, mesmo se tratando de um número muito reduzido de fragmentos, mostra que moradores da Vila de Paranapiacaba, ao me-nos uma parcela deste segmento social, ti-nham algum tipo de acesso a estes produtos. Pôde-se observar que, de acordo com as pastas, a maior parte da louça doméstica dividia-se em faiança simples, faiança fina e porcelana.

fAIAnçA SImPLESUm único fragmento analisado foi classifi-

cado como faiança simples. A faiança, segun-do zanettini (1986:120) e Carle, et. al.(1996:56), é uma cerâmica feita de argila de grande plasticidade, cozida à temperatura re-duzida, apresentando-se numa textura porosa e resistente, recoberta de esmalte opaco à base de chumbo ou estanho, o que a torna mais dura e sonora. O seu histórico mostra que sua utilização começou já no século XV, levada pelos árabes que, por sua vez, toma-ram seu conhecimento técnico da Pérsia. No Brasil apareceram desde a colonização portu-guesa até o século XIX, quando passou a divi-dir espaço com a faiança fina.

fAIAnçA fInAA faiança fina, derivada da faiança simples,

foi uma invenção inglesa, no século XVIII, du-rante a Revolução Industrial, e passou a ser importada pelo Brasil durante a Abertura dos Portos em 1808, ou mesmo anteriormente atra-vés de contrabando (zanettini, 1998: 123 e Car-le et al, 1996:56). Sua produção no Brasil só se deu a partir do século XX, inicialmente no Pa-raná e, posteriormente, em São Paulo, em 1902

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Da força repressora à coesão sutil: a arqueologia da vila operária Cláudia Regina Plens

e 1913, respectivamente. Dentro da classe de faiança fina pôde-se distinguir três padrões, sendo eles o “Blue or Green Edge”, o Policro-mo e o “Borrão Azul”.

Do padrão “Blue or Green Edge” foi re-cuperado apenas um fragmento. Este é o padrão adotado para a faiança fina inglesa, referindo-se a uma faiança estampada em azul na qual a tinta escorre dentro do es-malte. Segundo Lima et. al (1989: 211), é resultante de processo químico, tal como o óxido de cálcio ou cloreto de amônia, dentro do forno de vitrificação. Sua periodização na Inglaterra deu-se entre os anos de 1835 e 1845, tornando-se muito popular na época vitoriana (1837-1901). Ela é caracterizada pela incisão limitada em suas bordas, na qual é aplicada uma pintura, tanto em tona-lidades azul como verde, podendo apresen-tar baixo relevo (Carle et al, 1996: 58). Foi fabricada entre 1780 e 1830. Normalmente é usada em pratos de cozinha, pela sua sim-plicidade decorativa (Andrade Lima, 1989:211). Esta teria sido uma das primei-ras variedades da faiança fina conhecida como pearlware na primeira década da sua existência. Pode haver variações de acordo com o momento de produção. Existem ou-tras variações de cores além do verde e o azul, tal como rosa, castanho e púrpura (Sy-manski, 1998:172). Miller (1980) destaca que entre as variedades decoradas, esta te-ria sido a mais barata durante a primeira metade do século XIX. Diversos trabalhos em sítios brasileiros, desde o nordeste até o sul do país, atestam que o alto consumo des-ta variedade foi constante durante todo o século XIX .

Do padrão Policromo obteve-se um úni-co fragmento. Este padrão de faiança fina tem em sua decoração flores pintadas à mão e foi normalmente vinculado à louça de serviços de chá e café, tendo sido produ-zido entre 1820 e 1840.

Foram identificados dois fragmentos de faiança fina no padrão “Borrão Azul”, consis-tindo sua decoração em um estampado em azul no qual a tinta escorre dentro do esmalte. Sua origem na Inglaterra remonta aos anos 1835 e 1845 (Andrade Lima, et. al 1989:211).

O maior número de louça branca encon-trada (51fragmentos) é lisa ou em relevo. A única marca encontrada foi na parte posterior da base de um prato branco com as inscrições J. & G. Meakin. Além disso, também foram encontrados 5 fragmentos de bordas de faian-ça fina em creamware, 3 no padrão “Royal”, e 2 no padrão “Feather Edge”. O primeiro ca-racteriza-se pelas bordas em relevo tipo folha-gem, enquanto o segundo pelas pinturas de faixas simples executadas à mão nas bordas.

PoRCELAnAQuanto à presença de porcelana podemos

destacar a presença apenas de 10 fragmentos. A porcelana teve sua fabricação iniciada na China por volta de 618 a 906 a. C., durante a Dinastia T’ang. Não se tem certeza quando os europeus tomaram conhecimento da porcela-na, mas sabe-se que, desde o século XVI tenta-vam produzi-la na Europa. Depois de várias tentativas em se produzir o gênero, com a cria-ção da Faiança Fina e a Porcelana Mole (rica em feldspato e óxido de chumbo, temperatura de queima em 1.200°C), a Alemanha foi a pri-meira a conseguir fabricar porcelana dura, se-melhante à chinesa. Esta é queimada entre 1.350º a 1400º, é composta de caulim, quartzo, feldspato ou outros minerais de composição muito parecida (Brancante, 1981:155).

A classificação dos fragmentos de louça permitiu a identificação das peças e, através da tabela 04, podemos observar que as louças es-tavam concentradas em maior quantidade no Castelinho e, sobretudo, que o maior índice de fragmentos brancos também estava nesta mes-ma residência. No total, os resultados da amos-tra revelam que cerca de 75 (65%) fragmentos

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* Para este quadro-resumo considera-se somente como louça apenas os fragmentos de maior representatividade, as porcelanas e as faianças.

são louças brancas, podendo ser conseqüência da quebra e conservação de determinadas par-tes brancas de alguns utensílios que apresenta-vam decorações, ou mesmo por tratar-se de louça realmente branca. Devido à variedade de decorações nos fragmentos encontrados no Hotel dos Engenheiros, não foi possível detec-tar qualquer indício de “louça de hotel”, que começou a ser produzida no final do século XIX para uso em espaços como restaurantes, hotéis, forças armadas, etc.

Para a realização desta pesquisa arqueoló-gica o aprofundamento na questão da produ-ção da louça, preços e processos de importa-ção, não se mostrou conveniente, contudo, faz-se necessário enfatizar que a região circun-vizinha à Paranapiacaba, desde o século XVIII produzia itens cerâmicos e, posteriormente, veio a produzir também itens de louça. Assim sendo, existe a probabilidade de que, além da aquisição de produtos importados, estivessem sendo consumidos produtos de manufatura local, já que através da tabela 02 fica evidente

Tabela 04 : Quadro resumo da função utilitária das louças, em relação ao tipo de louça*. Legenda: 1 = Hospital; 2 = Casa dos Solteiros; 3 = Hotel dos Engenheiros; 4 = Castelinho; 5 = Igreja

Porcelana Branca

Porcelana Colorida

Faiança Fina Branca

Faiança Fina ColoColorida Total

Função

Prato 31

Prato (borda) 28

Prato (base) 14

Xícara 9

Xícara (borda) 5

Xícara (asa) 1

Vasilhame 21

Pires 3

Pires (borda) 3

Outros 1

Total 104

–– – – 1 – - 1 6 1 1 – – 2 -

1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5

– – – – –

– – – – –

– – – –

– – – – –

– – – – –

– – – – –

– – – 1 –

– – – – –

– – – – –

– – – – –

1 4 6 17 –

1 1 4 8 –

– – – 2 –

– – – 1 –

– – – – 1

1 1 1 8 –

2 – – – –

– – – 1 –

– – – – –

– – – 2 –

1 – 9 1 –

– –

– – 2 4 1

– – – 1 3

– – – – –

– – – 4 4

1 – – – –

– – – 2 –

– – – –

– – – 1 –

– 2 – 4 –

– 2 1 5 3

– – – – –

– – – – –

– – – – –

– – – 1 –

– – – – –

– – – – –

– – 1 – –

que o mercado consumidor aumentava pro-gressivamente, talvez na tentativa de suprir as necessidades da população local. é importante lembrar que os locais de fabricação de louças estão concentrados unicamente nos bairros onde estavam situadas as estações ferroviárias da São Paulo Railway Co. Ltd..

oS vIDRoSForam identificados 197 vidros prove-

nientes do Castelinho, Hotel dos Engenhei-ros, Hospital, Casa dos Solteiros e Igreja. Suas cores variam entre transparente, bran-co, tons de verde claro e escuro, marrom e azul. Existem, sobretudo, fragmentos de garrafas como bojo, gargalo e base de garra-fas. Devido a fragmentação da maioria das bases e gargalos, não foi possível fazer uma análise de identificação mais profunda, contudo, pôde-se observar que existem, pelo menos, sete gargalos dentre outros fragmentos vítreos. Apenas foram identifi-cados 3 fragmentos de garrafas fabricadas

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Da força repressora à coesão sutil: a arqueologia da vila operária Cláudia Regina Plens

automaticamente, da cor verde-escura.A quantidade de vidro recuperado no Cas-

telinho é superior às demais sondagens reali-zadas na Vila de Paranapiacaba. A interpreta-ção para esse dado é que, se nos outros ambientes a quantidade de vidro não é tão alta quanto no Castelinho, deve-se ao fato de uma maior incidência na reutilização deste mate-rial, ou a substituição deste produto por outro de maior durabilidade. Ambos os casos mos-tram que, apesar do vidro ter livre circulação na Vila de Paranapiacaba, em diversas qualida-des, o seu acesso era restrito para a maioria das classes, sendo, preponderantemente, ad-quirido pela família do Engenheiro Chefe.

As residências nas quais os materiais arqueológicos foram encontrados em maior número foram o Hotel dos Enge-nheiros e o Castelinho, tal como está con-tabilizado no gráfico 01. A diferença nos resultados da análise quantitativa das louças (tabela 06) e vidros encontrados no Hotel dos Engenheiros e no Casteli-nho, não se deve atribuir às sondagens porque as escavações arqueológicas efe-tuadas no Hotel dos Engenheiros foram em maior quantidade e mais profundas, o que nos indica diferenças no padrão de consumo e/ou de descarte.

disCUssÃoEm consideração aos nossos objetivos

iniciais, não pudemos verificar a relação brasileiro/imigrante, nem por meio de do-cumentos históricos nem pela arqueologia.

Tabela 05. Quantidade de vidros encontrados durante as escavações arqueológicas segundo sua localização. Legenda: 1 = Hospital I; 2 = Casa dos Solteiros; 3 = Hotel dos Engenheiros; 4 = Castelinho; 5 = Casa do Engenheiro; 6 = D. Lúcia; 7 = Casa da Zilda; 8 = Casa do Médico;9 = Viela; 10 = Lixão; 11= Igreja

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

12 1 36 141 – – – – – – 1

Tabela 06. Tabela de comparação dos materiais de maior relevância em dois pontos da Vila de Paranapiacaba

Materiais Hotel dos Eng. Castelinho

Louça 34 66

Azulejo 2 9

Vidro 40 146

Já a arquitetura revelou que as diferenças na relação patrão/empregado eram estrita-mente sociais, na qual o chefe ocupava a melhor residência. Nesse sentido, a regra da moral familiar era bastante importante, pois era ela que determinava a ascensão da residência numa ordem que começava a partir da Casa dos Solteiros até os núcleos familiares mais complexos. Estas determi-nações, como tudo indica, provinham de um pensamento social panóptico, por meio do qual a ordem levaria a um sistema de trabalho intenso (Foucault, 1987).

A arquitetura e urbanização da Vila de Pa-ranapiacaba seguiam dois objetivos: permitia, dentro de seu espaço, o exercício de todas as atividades necessárias para a boa convivência da comunidade e, ao mesmo tempo, exigia novas regras de trabalho para a época. Quan-to melhores as condições do trabalhador, mais afinco ele teria na produção de seu tra-balho, resultando, enfim, em lucro para a em-presa. O trabalhador que convivia neste es-quema de patronato sentia-se mais fiel e responsável às regras de trabalho e, também,

mais seguro quanto ao seu padrão de vida econômico que lhe permitia acesso a inúme-ros gêneros que antes não lhe era permitido. O Hospital e a Igreja, dentro deste contexto, são paliativos, são formas de “domesticação” do corpo e da alma desta classe trabalhadora. As diferenças são flagrantes, pois os espaços se tornam mais hierarquizados e as funções passam a ser desenvolvidas em espaços espe-cíficos. Há vielas para colocação de lixo e há

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Gráfico 01. Gráfico de comparação dos materiais de maior relevância em dois pontos da Vila de Paranapiacaba. Obs.: Separou-se louça de cerâmica para melhor observação dos materiais.

Hotel dos engenheiros Castelinho

piche para propiciar uma melhor qualidade de vida – voltada, exclusivamente, a uma ga-rantia de produção de força de trabalho.

Se por um lado a arquitetura explica a relação patrão/empregado, a Arqueologia, por meio do lixo doméstico, explica como as regras sociais ocorriam na relação classe alta e baixa. Dentre os vários aspectos da investigação arqueológica, destacamos aqui um ponto que acreditamos ser o mais im-portante na relação dicotômica patrão/em-pregado da Vila de Paranapiacaba, marcada pela ausência de material arqueológico em pontos definidos. A ausência de registros arqueológicos nas áreas residenciais dos trabalhadores nos diz muito sobre a estru-turação e hierarquização da vila, pois o fato do material arqueológico de cunho domés-tico estar localizado, exclusivamente, em estruturas destinadas aos engenheiros e completamente ausentes naquelas destina-das aos operários, nos remete à questão da mudança comportamental entre as classes do período escravocrata e assalariada em conseqüência do capitalismo: a individuali-dade (Deetz, 1977:257).

Atribuída às famílias do século XIX, a indi-vidualidade é o modo pelo qual a classe alta separa um grupo que, antes, coeso pela sen-

zala, se corporifica e age cada vez mais em prol de seus ideais – embora ainda haja a dis-tância sócio-econômica -, o operariado. Neste caso, é importante lembrar que não se trata do mesmo grupo que teria passado da escra-vidão para o trabalho assalariado, mas nesta sociedade onde os trabalhadores eram os ne-gros/escravos e passam rapidamente a ser substituídos pelos brancos/operários, onde as relações sociais são da mesma ordem. Neste contexto, deve-se pensar que, se no regime escravista as diferenças entre senhor e escra-vos era declarada, neste novo comportamento social as diferenças são mais sutis. Estas dife-renças passam não apenas pela aquisição de novos bens, mesmo porque os operários tam-bém estão adquirindo bens (mesmo que de menor qualidade), mas pela forma de utiliza-ção destes. Neste contexto entram as regras de etiqueta, que uma determinada parcela da sociedade tem e outra não. A aquisição de produtos de valores diferentes, bem como a sua utilização dentro do padrão aceito pela sociedade da época, separa as classes alta e baixa e, neste caso, as louças de mesa forne-cem subsídios de como a sociedade estava se adaptando a estas possibilidades de etiqueta e comportamento social. Portanto, a individua-lidade “de classe” adquire novos condicionan-tes, incluindo objetos e comportamentos (An-drade Lima, 1995; Andrade Lima, 1997).

Se por um lado existe a diferença de indi-vidualidade entre trabalhadores escravo/as-salariado, por outro, existe uma semelhança quanto ao processo de descarte de lixo do-méstico. A freqüência em que o lixo domés-tico aparece no espaço ocupado pela classe mais abastada e a constatação da ausência de material nas classes menos privilegiadas na Vila de Paranapiacaba, faz-nos associar esta pesquisa com o trabalho de Andrade Lima (et alii, 1989), sobre os sintomas do modo de vida burguês no Vale do Paraíba, no século XIX. Neste estudo da Fazenda São

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Da força repressora à coesão sutil: a arqueologia da vila operária Cláudia Regina Plens

Fernando, em Vassouras, RJ, os resultados obtidos através da investigação da cultura material dos segmentos subalternos (os es-cravos) e dos dominantes (o senhor e sua família) mostram que não foram recupera-dos vestígios arqueológicos na área da sen-zala, além dos materiais construtivos, e a concentração de vestígios na área da casa grande, portanto um padrão similar ao visto nas casas de da Vila de Paranapiacaba.

A análise dos fragmentos recuperados nos locais de maior prestígio na Vila de Parana-piacaba, por sua vez, nos leva a interpretar os dados de maneira mais minuciosa. A freqüên-cia com que o material vítreo aparece no Ho-tel dos Engenheiros pode estar relacionada a uma maior reutilização deste material, prin-cipalmente, as garrafas, o que é lógico para um ambiente onde, devido ao número de pes-soas que freqüentam um hotel ser muito su-perior aos de uma residência, a dinâmica de reposição e reutilização de material, visando o lucro, deve ser mais ampliada.

Quanto à louça do hotel dos Engenheiros, pudemos notar que neste edifício a diversi-dade de fragmentos é maior em relação ao Castelinho. A interpretação neste caso, é que num ambiente onde as pessoas se estabele-cem por apenas um período e não se reúnem todos numa única mesa, não há a necessida-de de um jogo de louça no mesmo padrão de decoração. Não havendo, desta maneira, a necessidade de uma mesa harmônica, como

requeriam as cerimônias do final do século XIX. Fato que não ocorreria numa mesa mais suntuosa, tal como no Castelinho, cujo lixo doméstico apresentou, além de alguns fragmentos com diferentes decorações, lou-ça branca em maior quantidade e em dife-rentes peças, nos levando a pensar na possi-bilidade de representarem jogos de louça branca, como de requinte em determinadas épocas, como bem apontado por Andrade Lima (1997:115).

A leitura da paisagem da Vila de Parana-piacaba, desde os artefatos arquitetônicos até o lixo doméstico, nos permite visualizar um panorama onde a força repressora dá lugar à coesão sutil. Tanto na arquitetura quanto nos produtos domésticos há a legitimação das di-ferenças sociais. Neste contexto, o que contro-lava o indivíduo era o olhar da sociedade. A sua residência, bem como seus objetos, rela-cionada à sua postura em relação a eles, o identificava quanto a sua posição social. Seu mérito dentro da sociedade dependia, direta-mente, da avaliação do seu comportamento por outros indivíduos.

AGRADECImEntoSAgradeço a Professora DrªMargarida Da-

vina Andreata, Ana Cristina de Sousa, Rosana Najjar e Carolina Kesser, Lucas Bueno pelos conselhos, críticas e revisão. E a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, pelo incentivo à pesquisa.

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patrimônio arqUeológiCo de

Caxias do sUlRafael Corteletti.

Porto Alegre: nova Prova Editora, 2008. 199p. ISbn 9788589344456.

Resenha por francisco Silva noelli, Prof. Aposentado da Universidade Estadualde maringá, Paraná.

RESEnhA

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Qual o destino dos sítios arqueológicos quando uma pesquisa é concluída no Bra-sil? Poucos entre milhares passaram efeti-vamente a ser preservados e transforma-dos em tema de amplo (re)conhecimento público e pesquisa continuada. O esqueci-mento e o abandono foi o destino da maio-ria. A destruição, total ou parcial, pelos mais diversos meios, também foi o que aconte-ceu com uma quantidade desconhecida de sítios arqueológicos país afora. Todavia, existe uma parcela da comunidade de ar-queólogos brasileiros – acadêmicos, fun-cionários do IPHAN e de outros órgãos públicos, de ONGs e do setor privado –, bus-cando alternativas para solucionar a des-truição do patrimônio arqueológico no Brasil, uma tarefa gigantesca.

O consenso internacional indica que a principal solução é a publicação dos dados de pesquisa e do sítio arqueológico e a pro-gramação de ações que ativem a atuação da sociedade civil organizada em programas como a AGENDA 21. é o meio mais próxi-mo da transparência e da ética aliadas com a ciência, como ferramenta de trabalho da gestão do patrimônio arqueológico. Junto com elas, a construção de relações simétri-cas em nível local, envolvendo as comuni-dades, os pesquisadores, o IPHAN, o Minis-tério Público e os três níveis de Poder Executivo, para tomar decisões sobre o des-tino dos sítios arqueológicos.

O livro de Rafael Corteletti é um exem-plo relevante, que merece ser seguido quan-do se trata de sítios arqueológicos. Espe-cialmente quando apresenta a localização e o estado de conservação, relatando te-mas científicos com linguagem despida de jargões, cumprindo o objetivo de atrair e informar o público não acadêmico. Sua abordagem mostra o que aconteceu com os sítios ao longo de 40 anos, desde os pri-meiros trabalhos de Fernando La Salvia e

Pedro Inácio Schmitz em 1966, até Corte-letti e seus colegas retornarem em 1999, 2000 e 2006.

Os sítios são apresentados individual-mente, através de um memorial descritivo das evidências arqueológicas, principal-mente das estruturas subterrâneas, dos abrigos sob rocha e dos montículos, da sua quantidade e dimensões, do seu estado de conservação e da distância de outros sítios. A maioria dos cadastros de 1966 finalmente recebeu sua coordenada geográfica. Todos os dados quantitativos aparecem em diver-sas tabelas e gráficos. Várias fotos mostram aspectos dos sítios e das pesquisas em 1966 e 1999-2000, 2006. Diversos mapas contex-tualizam a área piloto da pesquisa, muitos deles vêm acompanhados de tabelas e grá-ficos de diversas informações, desde a rela-ção entre sítio e proprietário atual do terre-no, até a relação entre índices de preservação e destruição. Croquis dos sítios também ilustram o livro e mostram aspectos espa-ciais das estruturas. Desenhos em perspec-tiva e fotos panorâmicas mostram a inser-ção dos sítios. Algumas fotos mostram o estado atual dos sítios, inclusive de um aproveitado como lixeira (foto 27). Tabelas com as datações informam sobre a cronolo-gia da ocupação regional. Também foram realizadas diversas análises comparadas sobre as estruturas subterrâneas.

Corteletti complementa a descrição da inserção dos sítios com várias informações sobre o contexto ambiental da área piloto. Com o objetivo de relatar os processos de transformação da paisagem e dos seus im-pactos sobre os sítios, sobretudo o desmata-mento, apresenta um capítulo sobre o pro-cesso de ocupação européia da região da pesquisa, a partir do século 18, com a distri-buição de sesmarias pelo governo colonial aos “lusitanos” e seus escravos. Depois trata da instalação de imigrantes, principalmen-

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Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul Resenha por Rafael Corteletti

te, italianos. é uma parte importante, pois mostra com clareza como as serrarias, la-vouras e a implantação da malha urbana e das vias públicas, afetaram os sítios arque-ológicos. O autor mostra qual foi a relação dos italianos, dos lusos e descendentes com a preservação/destruição dos sítios, em fun-ção dos tipos de exploração econômica. Nas terras dos italianos 19% estão preservados e 35% alterados, enquanto que os lusos pre-servaram 36% e alteraram 46%, e Corteletti ressalta que seu objetivo não é “condenar ou isentar quem quer que seja”, mas verifi-car os efeitos dos modelos de colonização sobre a degradação dos sítios arqueológi-cos. Com efeito, o balanço geral é alarman-te: 39,5% dos sítios foram destruídos e 37,5% estão seriamente ameaçados. O patrimônio arqueológico registrado da região de Caxias do Sul está por um fio e o livro é um diag-nóstico que precisa ser debatido, para deci-dir qual o destino dos sítios restantes.

Outro aspecto que o livro revela, que de certa forma ocorre desde a pesquisa de 1966, é a relação positiva dos pesquisadores com a comunidade. Por todo o livro, especialmente quando os sítios são descritos, a comunidade aparece representada por diversos persona-gens, a maioria interessada em colaborar com a pesquisa. O autor faz um balanço so-bre o problema da destruição e reflete sobre a necessidade de “vestir a camiseta” da pre-servação e da busca de alternativas.

Por fim, algumas palavras a respeito da in-terpretação dos dados de Caxias do Sul como tradição arqueológica. Trata-se do calcanhar de Aquiles da arqueologia brasileira, que não é exclusivo de Corteletti, que se posicionou as-sim nas conclusões sobre os sítios arqueológi-cos: “O que se sabe, de concreto, é a ligação com o Tronco Jê. Daí em diante, surge uma série de especulações e hipóteses que tentam atrelar os construtores do planalto com as po-pulações Kaingang”. Corteletti sugere de for-

ma acertada, que o estabelecimento de uma relação de continuidade entre os contextos arqueológicos e históricos “deve ser uma ob-sessão”. Porém, como autor de trabalhos dedi-cados a revisar as interpretações dos arqueó-logos sobre o caso dos Jê do sul, publicados antes de 2008, não posso concordar com a afirmação de que o estado da arte esteja ape-nas em nível de “especulação e hipóteses”. Pri-meiro, Corteletti ignora solenemente análises dedicadas “obsessivamente” a examinar os problemas de pesquisa das Tradições Taquara e Itararé, especialmente da minha avaliação detalhada sobre todas as interpretações arque-ológicas que trataram da continuidade entre essas tradições e os Jê do sul. Segundo, ele pre-feriu seguir a linha do PRONAPA, que não teve por objetivo examinar o tema da continuidade e passou os últimos 40 anos sem refletir sobre os processos da longa duração dos Jê do sul, problemática que eu também analisei com cuidado e de modo muito circunstanciado. Terceiro, ao seguir essa linha também deixou de lado uma série de historiadores, antropólo-gos e lingüistas que publicaram estudos que contextualizam de forma cabal a presença dos Jê do sul, especialmente dos Kaingang, em to-dos os territórios onde são encontradas estru-turas subterrâneas. Quarto, quando trata da ocupação do sul do Brasil pelos Jê, Corteletti escreveu que “acredita-se numa possível liga-ção com povos da chamada Tradição Una”. Novamente desconheceu a detalhada análise que publiquei sobre o processo de ocupação do sul do Brasil, comparando estudos de lin-güistas e arqueólogos. Também não citou a tese de José Brochado, autor da mais ampla e detalhada pesquisa sobre as relações entre as cerâmicas da Tradição Una e das Tradições Itararé e Taquara.

Corteletti não é obrigado a citar as mi-nhas publicações ou a tese de Brochado. Todavia, como ele se apresentou a um cam-po científico composto de várias perspecti-

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vas e linhas de pesquisa, deveria no mínimo ter justificado uma razão para não concor-dar ou não considerar nossas abordagens e conclusões. Especialmente a famosa tese de Brochado, um divisor de águas da arqueolo-gia brasileira. Talvez seja por causa da linha de pesquisa da instituição onde Corteletti fez seu mestrado, origem do livro, o Institu-to Anchietano de Pesquisas da UNISINOS, que mantém basicamente a mesma posição desde o final da década de 1960, centrada na catalogação e descrição. A análise e a inter-pretação movida por problemas da teoria arqueológica e antropológica não está pre-sente, na espinha dorsal dos inúmeros e im-portantes projetos conduzidos pelo Anchie-tano. O fato é que a interpretação de dados tão bem coletados perdeu espaço neste rele-vante livro, cujo maior mérito é oferecer informações úteis e decisivas para a gestão do patrimônio arqueológico.

Finalmente, o título do livro destoa dos debates contemporâneos sobre patrimônio cultural. Tem sido cada vez mais freqüente que arqueólogos, no Brasil, intitulem seus livros, pomposamente, como patrimônio arqueológico de tal ou qual região. Contudo, o que notabiliza o debate contemporâneo internacional é a definição de patrimônio como categoria de pensamento e ação polí-tica, e não como um dado em si, a depender

exclusivamente de um cientista – ou de um arqueólogo e sua equipe – para conceituá-lo e protegê-lo. Patrimônio cultural, na acep-ção contemporânea, é uma categoria que envolve, por um lado, o conjunto de repre-sentações culturais dos diversos grupos so-ciais de um contexto dado, considerando-se, inclusive, os próprios arqueólogos, cujas noções e definições nunca estão isentas de políticas e critérios culturais sobre a paisa-gem; de outro, instituições variadas, como as comunidades científicas, ONGs, univer-sidades, comunidades locais e os dispositi-vos da legislação. Os arqueólogos brasilei-ros, no geral, passam, lamentavelmente, ao largo dessa definição mais ampla e infor-mada sobre patrimônio arqueológico. O li-vro de Corteletti não é exceção. Uma coisa é estudar para delinear políticas de proteção aos sítios arqueológicos, função muito bem realizada por Corteletti; outra, muito distin-ta, é, de saída, definir o conjunto de sítios de uma região como patrimônio, desconside-rando-se a riqueza e sofisticação contempo-râneas dos debates sobre patrimônio cultu-ral. Ainda assim, os agentes dos órgãos públicos, os arqueólogos e a sociedade civil organizada, dispõem no livro de Corteletti, de um diagnóstico efetivo para definir suas pautas de trabalho em defesa dos sítios ar-queológicos da região de Caxias do Sul.

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a arte rUpestre de JeqUitaÍ/mg entre prátiCas

gráFiCas padroniZadas

e sUas maniFestações

loCais: interseções

estilÍstiCas no sertÃo mineiro

Rogério tobias Juniormestre em Antropologia pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia da fAfICH/UfmG. Pesquisador colaborador do setor de Arqueologia do museu de

História natural da UfmG.

TESESE

DISSERTAçõES

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REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:160-161 - 2010

A dissertação de mestrado enfoca a arte rupestre de sete sítios pré-históricos localizados no trecho médio-baixo da ba-cia do rio Jequitaí, localizada no norte de Minas Gerais. Ela privilegia uma análise estilística dos conjuntos gráficos em bus-ca da construção de um quadro cronoes-tilístico micro regional e sua comparação com regiões vizinhas, já pesquisadas por outros arqueólogos. O método de classifi-cação adotado procura integrar diferentes variáveis do registro gráfico e da paisa-gem ampliando as possibilidades de asso-ciação estilística para além dos limites impostos pela simples análise formal das figuras e incorporando possibilidades efetivas de identificação dos padrões de escolha envolvidos no ato de grafar. Neste sentido, é de fundamental importância a discussão sobre o conceito de paisagem e o estabelecimento de uma compreensão das relações estabelecidas entre os seres humanos e aquela paisagem específica. Tal abordagem foi escolhida levando em consideração a existência de hipóteses

anteriores para a arte rupestre da região de Jequitaí, que alegam certo “caráter transicional” nos conjuntos gráficos lá observados, determinados por fatores ambientais distintos atuantes nos mes-mos locais: a presença de diferentes lito-logias que levou à caracterização da re-gião como local de transição geoestrutural, o desenvolvimento de diferentes fitofisio-nomias (cerrado e caatinga, principal-mente) e diferentes influências climáti-cas. A conclusão do trabalho busca uma interpretação para a variabilidade dos grafismos e dos padrões de escolha, fun-damentada na possibilidade de intercâm-bio de repertórios gráficos identificáveis na região da pesquisa. A Interseção esti-lística, mais do que a transição, foi efeti-vamente observada entre as Unidades Es-tilísticas descritas regionalmente, que apresentam comportamentos peculiares quando comparados a seus correspon-dentes em outras regiões, destacadamen-te os grafismos atribuíveis à Tradição São Francisco e Planalto.

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holoCenehUnter-gatherer

plant Use and

Foraging ChoiCe:a test From minas

gerais, BraZilmyrtle Shock

University of California, Santa barbara, EUA.

TESESE

DISSERTAçõES

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163

REVISTA DE ARQUEOLOGIA Volume 23 - N.2:162-163 - 2010

A tese de doutorado “Holocene hunter--gatherer plant use and foraging choice: a test from Minas Gerais, Brazil” foi realizada na University of California, Santa Barbara EUA, sob a orientação de Michael Jochim. O foco da tese envolve uma abordagem paleo-etnobotânica sobre o período em que plan-tas domesticadas foram introduzidas no cerrado brasileiro. Além disso a pesquisa complementou os trabalhos sobre outros elementos de cultural material da região, que vem sendo desenvolvidos nas áreas pesquisadas.

Durante a escavação de sítios arqueoló-gicos em abrigos secos do norte de Minas Gerais foram coletados inúmeros vestígios botânicos. A tese apresenta uma analise sis-temática e diacrônica destes vestígios com a finalidade de gerar uma reconstrução da alimentação pré-histórica. O foco temporal foi a subsistência durante o Holoceno re-cente. Em dois sítios, Lapa dos Bichos e Lapa Pintada, localizados na região norte de Minas Gerias (respectivamente no vale do Peruaçu e no município de Montes Claros) plantas domesticadas e comestíveis foram identificadas e coletadas nos depósitos ar-queológicos. No sítio Lapa dos Bichos milho (zea mays) e mandioca (Manihot esculen-ta) foram encontrados pela primeira vez em estrato arqueológico datado entre 2.000 e 750 AP. No estrato datado entre 750 e 150 AP abobora (Cucurbita sp.) e feijão (Phaseolus sp.) também foram encontrados. Alem de plantas comestíveis e domesticadas a pes-quisa registrou frutos nativos e várias ou-tras plantas nos sítios estudados. Em suma 822 tipos morfológicos de vestígios de se-mentes e frutas foram recolhidos em penei-ras com malhas de dois milímetros ou maior. Destes, 98 tipos foram identificados. Nas amostras foram encontradas plantas

nativas comestíveis como coquinhos (Sya-grus olearus), maracujá (Passiflora sp.), ja-tobá (Hymenaea sp.), umbu (Spondias tube-rosa), e pequi (Caryocar brasiliensis).

A análise de vestígios botânicos prove-nientes da Lapa dos Bichos e da Lapa Pinta-da foi utilizada para abordar varias ques-tões. Nos estratos componentes desses sítios, numerosas sementes e frutos foram encontrados em feições espacial e estrutu-ralmente definidas, apresentando bom esta-do de preservação. Com base na forma e composição dessas feições concluimos que sua função esteve relacioanda a áreas de aúmulo de lixo.

Além das feições, nos dois sítios foram en-contrados vestígios botânicos ao longo dos estratos arqueológicos. Embora os vestígios dos estratos inferiores não estejam tão bem preservados quanto os dos estratos superio-res, a preservação em si não ofusca os pa-drões de mudança na alimentação relaciona-dos ao comportamento humano. O registro arqueológico indica que a introdução de espé-cies domesticadas não ocorreu em um único momento, mas sim, que, ao invés disso a in-trodução é caracterizada por uma variação cronológica na utilização das espécies.

Considerado em conjunto com os resul-tados de outros projetos de pesquisa, obser-vou-se que as plantas domesticadas se espa-lharam por um processo de difusão tecnológica e não de forma ordenada pela expansão populacional em grande escala. As previsões dos modelos da teoria de forra-geiros para mudanças na cadeia alimentar associadas com a introdução de plantas do-mesticadas não encontram base no registro arqueológico dos sítios estudados. A diversi-dade de plantas nativas comestíveis aumen-tou ao lado dos aumentos no numero de espécies domesticadas utilizadas.

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164 diálogo Com FranCisCo noelli

a respeito da resenha

para o liVro “patrimônio

arqUeológiCo de Caxias do sUl”

Rafael Corteletti.Doutorando em Arqueologia no museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade

de São Paulo (mAE-USP), bolsista CnPq. E-mail: [email protected]. Endereço: Avenida venâncio Aires 70/405, bairro Cidade baixa, Porto Alegre, RS,

brasil, CEP 90040-190.

nOTAS

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Não posso negar que Noelli foi bastante crítico em sua resenha. Lembro muito bem do momento em que estava redigindo as pas-sagens que foram comentadas por ele com tanto vigor. Eu estava processava uma grande quantidade de dados numéricos que compõe o capítulo de distribuição e implantação dos sítios e quiçá posso ter construído uma inter-pretação arqueológica discutível. Diria que em momentos de grande produção, por vezes, ficamos meio cegos. Enfim, hoje sei que, infe-lizmente, esqueci muitos autores e não tratei determinadas abordagens. Mas, exatamente por saber disso, atualmente oriento meu tra-balho no sentido de contemplar uma série de questões que deem conta da multiplicidade de estórias-até-agora dos Jê Meridionais.

Mas o objetivo principal dessa publicação não foi abordar as origens desse povo, mas sim falar da conservação de sítios arqueológi-cos. O estudo de caso é Caxias do Sul, mas falo do Brasil e dos desafios da Arqueologia Brasi-leira. é bom citar que a obra nasceu, ainda em 2006, de uma dissertação de mestrado intitu-lada “Casas Subterrâneas em Caxias do Sul: Conservação, Distribuição e Implantação”. Em 2007 o texto foi premiado num concurso municipal chamado Fundoprocultura. Se-gundo a comissão de avaliação e seleção ele seria publicado com a condição de que o tom acadêmico fosse esmaecido. Dessa forma adaptei o texto para deixá-lo mais leve e dinâ-mico e redigi de tal maneira que fosse possí-vel a um leigo a compreensão absoluta da te-mática arqueológica e, principalmente, da temática conservacionista. Assim, com novo título e remodelado, em 2008, lancei a obra com um objetivo acima de tudo educativo. Com financiamento da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, através do Fundoprocultura, foi feito um “convite à arqueologia”.

Portanto, o uso da palavra patrimônio no título não teve objetivos pomposos, muito pelo contrário, foi pragmatismo puro. Indepen-

dente do que se debate na esfera internacional eu precisava convencer a opinião pública e o pequeno produtor rural de Caxias do Sul de que os “buracos de bugre” ou as grutas com sepultamento tinham um valor imensurável para toda a sociedade caxiense e, por exten-são, à brasileira. Precisava despertá-los para a necessidade de manter a mata no entorno dos sítios em pé, precisava alertá-los de que o me-lhor lugar para a produção de tomates não era exatamente onde os sítios estavam... Por isso o nome do livro tornou-se “Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul” diferente da dissertação de mestrado que, convenhamos, tem um título que não chama a atenção de mais do que 20 ou 30 arqueólogos, que dirá de uma comunidade que, como Noelli muito bem apontou, criou um cenário alarmante no que se refere à conservação dos sítios. Com esse título eu disse à comunidade que os sítios têm valor e que é ela, em última instância, que detém a responsabilidade por sua conserva-ção ou não. Em momento algum o trabalho foi direcionado no sentido de policiar as atitu-des e elencar boas ou más ações dos indivídu-os ou estabelecer o que deve ou não ser valo-rizado enquanto bem cultural. Orientei o trabalho no sentido de incorporar os sítios arqueológicos à vida das comunidades (rural e/ou urbana) e dessa forma produzir uma re-flexão sobre as facetas da história daqueles locais. Desde o tempo-espaço em que os sítios eram habitados pelos Jê, passando pela che-gada das famílias de colonizadores europeus, pelas memórias das pesquisas e das pessoas dos anos 60 e chegando até hoje quando al-guns sítios já estão fisicamente apagados e outros ainda não.

O livro é na verdade um catálogo atualiza-do das condições em que se encontra a maior parte dos sítios arqueológicos no município – já que após a publicação outros sítios já fo-ram detectados. Em determinados momentos o tom é de denúncia pelo patrimônio destruí-

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Diálogo com Francisco Noell i a respeito da resenha para o l ivro "Patrimônio Arqueológico de Caxias do Sul" Rafael Corteletti

do e o estado em que se encontra o conserva-cionismo arqueológico no Brasil, em outros o tom é de paixão pelo patrimônio e a paisagem em que esses assentamentos se inserem. E permeia em todo o texto a ideia de que é o indivíduo que vai preservar ou destruir esse patrimônio, e por isso, é o indivíduo, em últi-ma instância, que precisa ser informado para que “a marcha destrutiva e silenciosa que ocorre dia-a-dia sobre este patrimônio cultu-ral e instrumento de trabalho” de inúmeros profissionais deixe de ocorrer. Assim sendo, como contrapartida à publicação da obra, uma série de atividades de educação patrimo-nial e arqueologia pública foram realizadas. Durante 30 dias a mostra “Fragmentos da História”, com as peças arqueológicas que es-tavam há mais de 30 anos na reserva técnica do Museu Municipal, recebeu mais de 1.500 visitantes. Antes disso, a exposição perma-nente começava sua narrativa com a funda-ção da colônia italiana, mas agora o passado indígena também faz parte do contexto muse-alizado. Cada escola do Município (das redes municipal, estadual e privada) recebeu um exemplar (num total de 300 livros doados) e professores assistiram palestras sobre o tema. Junto disso, no primeiro trimestre de 2009, num novo desdobramento provocado pelas vontades locais, foi dada a largada experi-mental para aquilo que hoje já é mais uma atividade de desenvolvimento sustentável: o turismo arqueológico.

Imbuído da ideia de que o Patrimônio Ar-queológico é integrado tanto por bens mate-riais como pelas informações que dele pode-mos aferir como, por exemplo, a implantação geográfica, a ocupação do espaço e as confi-gurações ecológicas escolhidas pelas popu-lações pretéritas, foi selecionado um sítio de beleza cênica impar localizado na comuni-dade da Criúva. Para lá durante os anos de 2009 e 2010 foram levadas mais de 500 pes-soas em grupos que variam em número: des-

de famílias com 4 ou 5 pessoas até grupos de 30 ou mais em ônibus escolares. Muitos não sabiam da existência de tal patrimônio e fica-ram impressionados com o que viram. Al-guns professores das escolas da região rela-taram total desconhecimento deste patrimônio. De certa forma, 500 pessoas não parece um grande número, principalmente, se comparado aos visitantes de sítios como a Missão de São Miguel Arcanjo, por exemplo. Mas o fato é que esta atitude é um embrião que explora as potencialidades locais e gera sustentabilidade – apesar de não existir qual-quer tipo de infraestrutura criada para visi-tação ou divulgação em mídia. Enfim, de-pois de 40 anos de esquecimento, cooptamos multiplicadores do conhecimento dessa ri-queza cultural para que a arqueologia e o passado indígena desabrochassem nova-mente. O resultado é o trabalho de guias de turismo da própria comunidade instruídos arqueologicamente e dispostos a informar que eles são os agentes diretamente respon-sáveis pela conservação dessa memória e promoção desse patrimônio.

Por tudo isso, creio que Noelli se enga-na ao comentar que o livro não trata o pa-trimônio como “uma categoria de pensa-mento e ação política”. Como Noelli se notabiliza por ser um grande debatedor teórico-conceitual, é compreensível que sua leitura observe o quanto o livro con-templa a base epistemológica das agendas internacionais. Entretanto, apesar de No-elli discordar, o livro cumpre sim – mes-mo que incipientemente – a função de ar-ticular elementos para a compreensão do “conjunto de representações culturais dos diversos grupos sociais de um contexto dado”, na medida em que seu objetivo central é o exercício do diálogo, em pri-meira instância, com os grupos sociais da comunidade de Caxias do Sul – e quiçá da brasileira – para alavancar o despertar de

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uma prática conservacionista. E realmen-te, minhas “noções e definições” não “es-tão isentas de políticas e critérios cultu-rais sobre a paisagem”, pelo simples fato de que além de ser arqueólogo sou um membro da comunidade. Sou mais um da-queles que tanto entrevistei em Caxias – e continuo entrevistando em outros locais – que lembram com nostalgia das brinca-deiras de infância dentro das enormes crateras que ninguém sabia o que eram... No meu caso a nostalgia é maior ainda, já que o sítio que tanto brinquei, anos depois cedeu lugar às ruas de um novo bairro, talvez ao mesmo tempo em que, numa universidade a 300km dali, eu descobria o que as tais crateras significavam. Nesse sentido, a paisagem é um elemento ativo nas ações humanas, ela nutre e é nutrida pelas interações sociais como um conjun-to de formas que em dado momento expri-mem memórias socialmente construídas – como as minhas.

Em linhas gerais nas Ciências Humanas gostamos muito debater sobre a construção do conhecimento, às vezes falando da socie-dade, mas, infelizmente, à parte dela. Alguns arqueólogos, nesse sentido, esquecem que vários sítios arquelógicos, nossa matéria-pri-ma de discussão, estão sendo descartados cotidianamente. Há o descarte inconsciente, por indivíduos que desconhecem totalmente o que é um sítio arqueológico e o destroem por ignorância. Há, também, o descarte leva-do a cabo conscientemente por indivíduos que precisam obter renda – como é o caso dos vendedores de terra preta dos cerritos da Praia do Laranjal, entre tantos outros exem-plos. E não podemos esquecer, nesses tempos de desenvolvimentismo acelerado, que há o descarte legalizado de sítios através da práti-ca do “resgate” ou “salvamento”. A coleção arqueológica é salva ou resgatada, mas per-de-se o sítio arqueológico, perde-se o lugar e

todo o simbolismo que ele poderia expressar se fosse conservado. Não estou demonizando a arquelogia empresarial, não é isso. Afinal, sabemos que a Arqueologia Brasileira vem sendo impulsionada pelas grandes obras de infraestrutura dos últimos anos de tal forma que novas graduações estão aí para suprir a demanda de profissionais. O que questiono, com esse comentário, é a ação de órgãos go-vernamentais e arqueólogos no processo de decisão daquilo que é relevante e deve ser “salvo” e daquilo que não é relevante e, dessa forma, nem “salvo” precisa ser. Será que nos-sos profissionais trabalhando em ritmo in-dustrial e, por vezes, com métodos de pros-pecção pouco sistemáticos realmente conseguem medir a relevância de um bem cultural? Além disso, questiono qual é o nos-so papel como produtores e disseminadores de conhecimento? Questiono a validade da produção de conhecimento que não vai além dos debates do próprio grupo que o gerou? Afinal, temos em nossas mãos um objeto de pesquisa que seduz as pessoas, ou uma gran-de parcela delas. Temos de usar esse objeto a nosso favor e tornar a arqueologia mais po-pular, mais pública e assim disseminar o conservacionismo do patrimônio arqueológi-co e, em última instância, evitar o descarte dos lugares, o descarte dos sítios arqueológi-cos para que as pesquisas de hoje e do futuro possam ser desenvolvidas.

Em síntese, concordo com Noelli quando ele diz que devemos buscar arqueologica-mente as diferenças que vemos etnologica-mente entre os Kaingang e os Xokleng, por mais complicada que essa tarefa seja. E mais, devemos investigar as origens dos Jê Meridionais para ilustrar a emergência da complexidade social desses grupos. Mas, não podemos nos furtar de lutar pela con-servação dos sítios arqueológicos, já que são eles que nos darão as pistas para elucidar nossas problemáticas.

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nORMAS EDITORIAIS

obJEtIvoS E PERIoDICIDADEA Revista de Arqueologia é um veículo

oficial da Sociedade de Arqueologia Brasi-leira (SAB) e destina-se à publicação de tra-balhos que possam contribuir para o apro-fundamento e a socialização de conhecimentos científicos sobre temas rela-tivos à Arqueologia Brasileira e seus cam-pos interdisciplinares. Ela tem como priori-dade a divulgação dos trabalhos nacionais mais expressivos nesta área de conheci-mento, bem como de artigos de pesquisado-res estrangeiros considerados relevantes para a disciplina.

A revista está aberta a todos os sócios da SAB e a outros pesquisadores, sejam eles da área de arqueologia ou de áreas afins. Sua periodicidade será semestral, podendo ter tiragem diferenciada.

O calendário de publicação da Revista de

Arqueologia, bem como as datas de fecha-mento de cada edição, são definidos pela Comissão Editorial da SAB, composta por três membros eleitos para um mandato de dois anos, sendo apenas um deles o editor da revista.

moDALIDADES DE tRAbALHoS ACEItoS PARA PUbLICAção

Serão aceitos para publicação trabalhos elaborados em português, espanhol, francês e inglês. No caso específico de artigos origi-nais e artigos de revisão ou atualização, es-tes somente serão aceitos após serem sub-metidos à apreciação de pelo menos dois revisores ou pareceristas. A identificação do parecerista é opcional, cabendo a cada um

a opção de assinar ou não seu parecer. No-tas, resumos de dissertações de mestrado e de teses de doutorado, resenhas e documen-tos inéditos serão submetidos à apreciação da Comissão Editorial e do Conselho Edito-rial da revista. Os trabalhos que forem acei-tos para publicação deverão estar de acordo com as especificações que se seguem:

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II. Artigos de revisão ou atualização que cor-respondem a textos preparados a partir de uma análise crítica da literatura existente sobre determinada temática de valor cientí-fico, não devendo ultrapassar 6.500 pala-vras.

III. Resenhas versando sobre obras recente-mente publicadas no país e no exterior, de interesse para a Arqueologia, com no máxi-mo 2.000 palavras.

IV. Resumos de dissertações de mestrado e de

teses de doutorado defendidas nos últimos dois anos sobre temática arqueológica ou sobre assunto de interesse à arqueologia, devendo ter entre 500 e 2.000 palavras.

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V. Notas que consistem em textos curtos, nas quais são apresentados os resultados preli-minares de pesquisas em andamento ou co-mentários e críticas à artigos e resenhas publicados na Revista de Arqueologia, de-vendo ter, entre 1.000 e, no máximo, 2.000 palavras.

VI. Documentos inéditos transcritos ou re-produzidos, de interesse para a história da Arqueologia Brasileira, desde que aceitos pela Comissão Editorial e pelo Conselho Editorial.

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III. Os trabalhos deverão ser elaborados se-guindo estritamente a seguinte ordem: Títu-lo, autor(es), resumo, palavras-chave, abs-tract, key-words, informações sobre o(s) autor(es) em nota de rodapé; Texto; Agrade-cimentos; Referências bibliográficas.

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vel com Word for Windows em folha A4, espaço 1,5, margens direita e esquerda com 2 cm, topo e base com 2,5 cm, margem di-reita não justificada, fonte Arial, tamanho 11, com páginas numeradas sequencial-mente.As obras citadas deverão ser referenciadas no próprio corpo do texto, indicando-se: so-brenome do autor, data da publicação, pá-gina citada. Exemplos: (Clark, 1975), (Lévi--Strauss, 1982:47), (Renfrew & Bahn, 1998); Willey & Philipps (Willey & Philipps, 1958:95), Plog et al. (Plog et al., 1976), Bin-ford (Binford 1967, 1978, 1983). Notas de rodapé (numeradas sequencialmente) de-verão ser utilizadas exclusivamente como notas explicativas. As referências bibliográ-ficas completas das obras citadas deverão vir em uma lista ao final do trabalho.

VI. As referências bibliográficas deverão se-guir as seguintes normas:

Livros:MEGGERS, B. J. 1979 América Pré-histórica. Trad. de E. T. de Carvalho. 2ª ed. Rio de Ja-neiro, Paz e Terra. 185pp.Artigos ou capítulos em livros:PROUS, A. 1999 Arqueologia, Pré-história e História. In: TENÓRIO, M. C. (Org.), Pré-

-história da Terra Brasilis. Rio de Janeiro, EdUFRJ, pp.19-32.Mais de uma citação do mesmo autor:MARTIN, G. 1998 O povoamento pré-histó-rico do vale do São Francisco (Brasil). Clio, Série Arqueológica, Recife, 13:9-41.MARTIN, G. 1997 Pré-História do Nordeste do Brasil. Recife, Ed. Univ.UFPE.Artigos de revistas(com um, dois ou mais autores):MARTIN, G. 1998 O povoamento pré-histó-rico do vale do São Francisco (Brasil). Clio,

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Série Arqueológica, Recife, 13:9-41.NEME, S. & BELTRÃO, M. 1993. Tupinam-bá, franceses e portugueses no Rio de Janei-ro durante o século XVI. Revista de Arqueo-

logia, São Paulo, 7:133-151.Dissertações e teses:WUST, I. 1990. Continuidade e mudança:

para uma interpretação dos grupos pré-colo-

niais na bacia do rio Vermelho, Mato Gros-

so. Tese de Doutorado. São Paulo, Universi-dade de São Paulo. 210pp.

VII. A revisão gramatical deve ser previa-mente providenciada pelo(s) autor(es).

VIII. As ilustrações (que não excedam a 6), tabelas, gráficos e demais figuras com res-pectivas legendas deverão ser numeradas sequencialmente e apresentadas, quando for o caso, com os devidos créditos autorais, enviadas separadamente, com a indicação no texto do lugar onde devem ser inseridas. Todas as imagens deverão ser apresentadas em arquivos digitais individualizados, em formato jpg ou tif, em preto e branco com resolução igual ou superior a 300 dpi.

IX. Textos encaminhados fora das normas acima definidas serão retornados aos auto-res antes de serem encaminhados aos pare-ceristas.

X. O(s) autor(es) será(ão) informados sobre a avaliação do texto que encaminhou(ram) para publicação no prazo máximo de 3 (três) meses, contados após o envio dos ar-tigos de acordo com as normas estabeleci-das neste documento.

XI. São de responsabilidade do(s) autor(es): o conteúdo científico do trabalho, a tradu-ção do título do trabalho para o inglês, o abstract e keywords.

XII. Cada autor(a) poderá publicar até um trabalho individual em cada número da re-vista e mais um outro em co-autoria, desde que não seja o autor principal.

XIII. Os trabalhos aprovados serão encami-nhados em PDF para revisão final dos auto-res, que devem devolvê-lo no prazo máximo de dez dias a partir da data do recebimento. O Editor deve ser informado por escrito so-bre possíveis alterações ou sobre a aprova-ção final de cada trabalho. Nessa etapa não serão aceitas modificações no conteúdo do trabalho ou que impliquem em alterações no número de páginas. Caso o autor não responda no prazo, o trabalho será publica-do conforme a última versão autorizada.

XIV. Após aprovado, o trabalho será publi-cado por ordem de chegada. O Editor res-ponsável também pode determinar o mo-mento mais oportuno.

XV. A Revista de Arqueologia não aceita re-sumos expandidos nem textos na forma de relatórios.

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XVIII. Os casos não previstos nestas normas serão analisados e decididos pela Comissão Editorial da SAB, ouvido o Conselho Edito-rial da revista.

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