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1 O PROCESSO DE FORMAÇÃO EM PUBLICIDADE E AS MULHERES NA CRIAÇÃO PUBLICITÁRIA: uma proposta teórico-metodológica 1 THE PROCESS OF FORMATION IN PUBLICITY AND THE WOMEN IN THE ADVERTISING DESIGN: a theoretical-methodological proposal Fábio Hansen 2 Cátia Schuh Weizenmann 3 Resumo: O texto apresenta uma proposta teórico-metodológica para analisar o discurso de estudantes de Publicidade e Propaganda. Trata-se de um estudo que, ao considerar o processo de formação da ordem do consumo, aborda a constituição dos sentidos sobre as relações de gênero e seu atravessamento nas condições de atuação do homem e da mulher na criação publicitária. O quadro teórico que dá suporte à pesquisa se baseia nas discussões do consumo (Canclini) e na interface comunicação e educação (Martín-Barbero), articuladas à Análise de Discurso francesa de orientação pecheutiana. A abordagem metodológica é desenvolvida a partir da produção de relatos de vida de estudantes de Publicidade que permitam dar visibilidade às experiências formativas e associá-las ao lugar do masculino e do feminino na criação publicitária. Palavras-Chave: Criação publicitária. Gênero. Metodologia. Abstract: The text presents a theoretical-methodological proposal to analyze the speech of advertising students. It is a study that, when considering the formation process of the order of consumption, approaches the constitution of the senses on the gender relationships and his crossing in the conditions of the man's and of the woman performance in the advertising design. The theoretical picture that is given to support the research is based in the discussions of consumption (Canclini) and in the interface communication and education (Martín-Barbero), articulate to the French Analysis of Speech of pecheut’s orientation . The methodological approach is developed from the production of life reports by students of advertising that allow to give visibility to the formative experiences and to associate them to the place of the masculine and of the feminine in the advertising design. Keywords: Advertising Design. Gender. Methodology. 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Consumos e Processos de Comunicação do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Universidade Federal do Paraná, Doutor, [email protected] 3 Escola Superior de Propaganda e Marketing, Doutora, [email protected]

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O PROCESSO DE FORMAÇÃO EM PUBLICIDADE E AS

MULHERES NA CRIAÇÃO PUBLICITÁRIA: uma proposta teórico-metodológica

1

THE PROCESS OF FORMATION IN PUBLICITY AND THE

WOMEN IN THE ADVERTISING DESIGN: a theoretical-methodological proposal

Fábio Hansen2

Cátia Schuh Weizenmann3

Resumo: O texto apresenta uma proposta teórico-metodológica para analisar o

discurso de estudantes de Publicidade e Propaganda. Trata-se de um estudo que,

ao considerar o processo de formação da ordem do consumo, aborda a

constituição dos sentidos sobre as relações de gênero e seu atravessamento nas

condições de atuação do homem e da mulher na criação publicitária. O quadro

teórico que dá suporte à pesquisa se baseia nas discussões do consumo (Canclini) e

na interface comunicação e educação (Martín-Barbero), articuladas à Análise de

Discurso francesa de orientação pecheutiana. A abordagem metodológica é

desenvolvida a partir da produção de relatos de vida de estudantes de Publicidade

que permitam dar visibilidade às experiências formativas e associá-las ao lugar do

masculino e do feminino na criação publicitária.

Palavras-Chave: Criação publicitária. Gênero. Metodologia.

Abstract: The text presents a theoretical-methodological proposal to analyze the

speech of advertising students. It is a study that, when considering the formation

process of the order of consumption, approaches the constitution of the senses on

the gender relationships and his crossing in the conditions of the man's and of the

woman performance in the advertising design. The theoretical picture that is given

to support the research is based in the discussions of consumption (Canclini) and in

the interface communication and education (Martín-Barbero), articulate to the

French Analysis of Speech of pecheut’s orientation . The methodological approach

is developed from the production of life reports by students of advertising that

allow to give visibility to the formative experiences and to associate them to the

place of the masculine and of the feminine in the advertising design.

Keywords: Advertising Design. Gender. Methodology.

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Consumos e Processos de Comunicação do XXV Encontro Anual

da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Universidade Federal do Paraná, Doutor, [email protected]

3 Escola Superior de Propaganda e Marketing, Doutora, [email protected]

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1. Antecedentes da Pesquisa: situando a proposta

Imagine a cena: início de uma aula da graduação do curso de Publicidade e

Propaganda. Turma do 7º período. Uma jovem estudante vestindo tailleur adentra a sala de

aula, cumprimenta o professor com desprendimento como se já se conhecessem de alguma

disciplina de períodos anteriores. O professor não a reconhece de imediato. Discretamente

espia, pede socorro à memória e então recorda que ela fora sua aluna ainda no 3º período. À

época era uma estudante de perfil despojado, com tatuagens e piercings espalhados pelo

corpo. Descolada, dona de ideias ousadas, aparentava um futuro definido e promissor.

Exalava criatividade em todas suas ações. A tradução exata do estereótipo do profissional de

criação publicitária. O professor jamais imaginaria reencontrá-la naqueles trajes, com aquele

figurino, naquela postura, agora incorporando a representação da executiva de contas, da

mulher de marketing. A aspirante a criativa havia se tornado pretendente a profissional de

planejamento. Se você fosse professor dessa aluna, você ficaria curioso em saber o que

aconteceu? Por que ela se modificou tanto em tão pouco tempo? O que foi que houve nesse

um ano e meio? Por quais experiências sociais ela passou? O que a (trans)formou? Em meio

à efervescência das questões de gênero na publicidade, você não gostaria de descobrir o que

deixou de testemunhar?

No ano de 2013 essa história real veio à tona e trouxe consigo uma inquietação que nos

motivou a iniciar uma investigação: como professores da área de criação publicitária,

percebemos que apesar da representatividade feminina nos cursos de Publicidade e

Propaganda poucas seguiam para a criação. Essa percepção foi confirmada em uma pesquisa

na qual constatamos que as universitárias representavam 50% das estudantes de Publicidade e

Propaganda entre 2009 e 2012. Ao mesmo tempo, nos anos 2011 e 2012, 39% das alunas

optaram pela carreira em criação - na ESPM-Sul os estudantes optavam pela linha de gestão

ou de criação a partir da metade do curso. Esse percentual já foi menor: apenas 20% em 2009

e 2010. Na hora do aprimoramento os números se pareciam: 32% dos matriculados na Escola

de Criação da ESPM-Sul (curso de aperfeiçoamento com duração de dois anos) entre os anos

de 2009 a 2012 são mulheres.

Paralelamente, naquele mesmo ano realizamos um levantamento entre as agências de

publicidade de Porto Alegre. A despeito do equilíbrio de homens e mulheres em seus quadros

funcionais (52% eram mulheres), elas ocupavam apenas 24% das vagas do departamento de

criação, ficando concentradas nas funções de atendimento (77%) e de mídia (82%). Os

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números da realidade de Porto Alegre comprovaram uma tendência apontada por reportagem

do jornal O Estado de São Paulo mostrando que apenas 3% de mulheres estavam na área de

criação (RIBEIRO, 2011); e também corroboraram um estudo de 2009 (MACHADO;

PERIPOLLI; MARQUES, 2009) feito em Curitiba, onde menos de 20% dos profissionais nos

departamentos de criação de agências são do sexo feminino.

Depois disso, em 2015, acompanhamos com atenção movimentos do Projeto 65|10,

criação de um grupo de publicitárias para discutir o papel da mulher na publicidade. Números

por elas reunidos via pesquisas indicam apenas 10% de mulheres trabalhando nos

departamentos de criação das agências brasileiras. Em rumo semelhante, outra pesquisa do

projeto 65|10, desta feita com 100 alunos de publicidade de São Paulo, descobriu que a

relação dos que dizem querer trabalhar na criação ao se formar é de 50% mulheres, 50%

homens. Mais recentemente, no início de 2016, a Meio & Mensagem dedicou doze páginas à

temática da mulher na publicidade, destinando atenção ao seu lugar na criação. A pesquisa

executada pela própria revista nas 30 maiores agências do país revelou que a presença

feminina no setor de criação é, em média, inferior a 20%.

Esse conjunto de dados comprova que a criação publicitária é um reduto masculino e

reforça nossa sensação de ser um tema potente, despontando como um dos grandes debates

para a comunicação em 2016, ainda mais se combinado à formação em Publicidade e

Propaganda. Estudos prévios que viemos conduzindo fornecem pistas para explicar o

afastamento feminino da área de criação publicitária. Vão da hostilidade do ambiente de

trabalho, do preconceito, da opressão, do machismo, do assédio, passam pela exaustiva carga

de trabalho, pela incompatibilidade com a maternidade e redundam na incorporação histórica

e na produção social. Tal elenco de razões nos soa elementar, sem que signifique

menosprezo. Pelo contrário, essa base é indispensável para tentar avançar, buscando

compreender o que está escondido, nebuloso, da ordem do desejo, do imaginário. Isso requer

adentrar na subjetividade do sujeito.

Por conseguinte, nos direciona a problematizar como se constituem os sentidos sobre as

relações de gênero no processo de formação de estudantes de Publicidade e Propaganda e sua

incidência na escolha pela criação publicitária. Em síntese, o eixo central da nossa proposta

está em examinar a relação do consumo com o processo de formação em Publicidade e, por

extensão, com a produção de sentido quanto à noção de gênero e seu reflexo na atuação em

criação publicitária.

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Dessa forma, este artigo lança bases para uma proposta de investigação que visa

observar, através de relatos de vida, situações de interações sociais de estudantes de

Publicidade reveladoras do seu processo de formação e da aquisição do conhecimento em

espaços sociais que transcendem o escolar. Entendendo a formação como uma experiência

necessariamente compartilhada, baseada no encontro com os outros, a trajetória de vida dos

estudantes ganha relevo por oferecer pistas sobre como se constitui o profissional de criação.

Ao narrar seu entorno de formação, os universitários deixarão vestígios das suas

subjetividades, masculinas e femininas. Assim, tecendo uma trama de narrações saturada de

significados implícitos, vislumbramos conhecer o outro em sua singularidade, pois o percurso

de vida construído configura percursos de produção e circulação de sentidos. A experiência

social dos sujeitos da pesquisa é crucial para desvelar um elemento negligenciado nos estudos

sobre as dinâmicas das relações de gênero na publicidade, aquele da formação (formal e não

formal) publicitária.

Buscando respaldo teórico para a pesquisa empírica junto aos discentes da graduação

em Publicidade e Propaganda, passearemos pelas relações de gênero no mundo do trabalho,

circundando a história do feminino; articularemos a Análise de Discurso francesa, de

orientação pecheutiana, ao enfoque do consumo e à interface comunicação e educação.

Assim, com o intercâmbio constante entre o trabalho empírico e a reflexão teórica, e

mediante o enquadramento qualitativo da pesquisa, tendo em vista interpretar o processo de

formação entremeado de experiências, relações e sentidos, confiamos desvendar novos

elementos que auxiliem na compreensão da atuação feminina e masculina na atividade de

criação publicitária.

Por certo, “a ciência não é acumulação de resultados definitivos”, mas principalmente,

“o questionamento inesgotável de uma realidade reconhecida também como inesgotável”

(DEMO apud SANTAELLA, 2001, p. 104). Ainda que o estudo não produza soluções, o que

nos mobiliza “é a busca de um maior entendimento das questões com que a realidade nos

desafia” (SANTAELLA, 2001, p. 140). Para tanto, o trabalho de campo é central na proposta

de pesquisa em tela. Não por acaso, nossa preocupação neste artigo está, sobretudo, na

abordagem metodológica, na submissão do desenho metodológico à objeção dos pares, na

ânsia de colher recomendações e contribuições. “Uma das características essenciais do

trabalho acadêmico é a de estar constantemente sujeito à crítica” (BRAGA, 2011, p. 26), pois

é “nesse processo que o empreendimento científico [...] se legitima” (BRAGA, 2011, p. 27).

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2. Apontamentos sobre o feminino no mundo do trabalho

Contemporaneamente os autores aceitam que “o gênero é culturalmente construído”

(BUTLER, 2003, p. 24), portanto exposto a uma série de eventos sociais, culturais e de

ambiente que vão mudando de tempos em tempos, dentro de uma mesma sociedade ou de

grupos sociais. Dessa forma, autores que versam sobre o feminino permitem compreender

que a história da mulher não é linear: em diferentes tempos e cultura ela assumiu diferentes

papéis na vida social e privada, sendo reconhecida, enaltecida e admirada, mas também

severamente subjugada, esquecida e desprezada. Em outras palavras, a história mostra que

sempre houve Cleópatras, Joanas D´Arc e Rainhas Elizabeth. Contudo, a maior parte das

mulheres esteve relegada da vida pública e do trabalho.

Na bibliografia de referência afirma-se que era uma necessidade na pré-história os

homens dotados de físico mais forte saírem a caçar e as mulheres ficarem “presas” ao lar e

aos cuidados com os filhos. Na antiguidade há apontamentos do trabalho feminino como

escravas, amas da casa ou mesmo artesãs que trabalhavam em sua maioria junto aos maridos.

Com elas estão ainda as camponesas e as pequenas comerciantes, auxiliando na lida diária

(SALOMÃO e DREW, 2005). Desde a Idade Média temos notícia das amas de leite,

cozinheiras, governantas, lavadeiras, domésticas prestando serviço. E assim observamos as

primeiras trabalhadoras repetindo as tarefas do lar.

Com os processos de industrialização que chegam por volta do século XIX, a

necessidade de mão de obra faz com que muitas mulheres saiam do espaço doméstico e

passem a ser operárias. Nesse período aflora o preconceito contra a mulher no mundo do

trabalho. Lipovetsky (2000) menciona historiadores como Michelet e Simon para retratar o

trabalho feminino como degradante, ligado à licença sexual, à dissolução da família e à

pobreza. Dito de outra forma, para a burguesia dominante só uma mulher miserável teria que

trabalhar. Até porque as condições de trabalho nas fábricas eram precárias, o que inclusive

desencadeou a primeira revolta feminina – a célebre manifestação de 1857, em Nova Iorque,

que resultou na morte de trabalhadoras, lembrada pelo Dia da Mulher.

Junto com a Revolução Industrial, as duas Grandes Guerras mudaram um pouco esse

cenário: com os homens lutando ou mutilados em combate, elas são obrigadas a ingressar no

mercado de trabalho, tocar as fábricas e o comércio para que não faltassem provisões. Neste

ingresso no mundo do trabalho, revela-se um feminino empreendedor, em uma época que

legou grandes nomes: a modista Gabriel Chanel, a cientista Marie Curie, a aviadora Amélia

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Earhart, a política Golda Meyer. Isso sem falar nas atrizes, cantoras e demais artistas, pois no

campo da interpretação as mulheres já vinham conquistando admiração. Antes delas, chefes

de estado e grandes criadoras eram exceções.

Depois da Segunda Grande Guerra, já habituadas ao mercado de trabalho, muitas são as

mulheres que não retornam às tarefas domésticas. Mas é entre as décadas de 1960 e 1970,

com o advento da pílula anticoncepcional, que a grande revolução feminina acontece

(BADINTER, 2011). A partir desse fenômeno químico a mulher passa a controlar o próprio

corpo, a sua fertilidade e o seu sexo, provocando mudanças significativas no seu modo de

pensar, agir e decidir, o que se reflete nos matrimônios, na escolha de seus líderes, na sua

relação com o corpo, com as roupas e, consequentemente, com o ingresso ao mundo do

trabalho.

Dali em diante muitas foram as conquistas femininas no campo social, político,

trabalhista e pessoal. Uma evolução que não veio ao acaso, mas como resultado de uma série

de ações: a equiparação dos investimentos na educação e na formação das filhas mulheres aos

dos filhos homens; a necessidade de auxílio financeiro nos novos núcleos familiares; o

hedonismo dos sujeitos contemporâneos; a estrutura familiar mais flexível (SINA, 2005); o

novo papel do homem na relação com os filhos; a queda constante no número de filhos

(BADINTER, 2011) e a entrada significativa de mais mulheres no mercado de trabalho.

Paradoxalmente estudiosos trabalham em duas vias: a visão mais moderna e otimista

toca na inevitável ascendência do feminino no mercado, devido as suas potencialidades, sua

sensibilidade e capacidade de conciliar tarefas. Lobos (2003) e Witter e Chen (2009) afirmam

que o poder feminino está em alta, mostrando que hoje a mulher pode ser CEO de grandes

empresas, chefe de estado, mecânica, motorista profissional e tantas outras tarefas antes

destinadas apenas aos homens, fato que nem os mais recentes dados contestam: a revista

Meio & Mensagem (2016) mostra mulheres à frente de grandes agências de publicidade e

grandes áreas de negócios. Ao mesmo tempo, neste e em outros textos da literatura científica

e jornalística, parece haver um consenso sobre a desigualdade de gênero. Aborda-se

especialmente o poder, a tomada de decisão e a remuneração quando o assunto é

empregabilidade. Salomão e Drew (2005, p. 37) percebem “fortes indícios de que as

mulheres ainda encontram obstáculos para sua ascensão, não atingindo os níveis de

excelência esperados”. A inferioridade salarial e nos postos de liderança caracteriza o

desequilíbrio em mercado de trabalho onde elas já não são exatamente minoria (SINA, 2005).

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Uma luz sobre tais questões aparece em uma pesquisa de 2015 da Fundação de

Economia e Estatística (FEE).

A simples diferença das médias de salário entre homens e mulheres não pode ser

atribuída apenas a um efeito de gênero no mercado de trabalho [...] Há diferenças

no que tange a: (a) perfil do emprego - as mulheres exercem atividades e têm

ocupações diferentes das dos homens -; (b) estrutura familiar - as mulheres

dedicam, em geral, um maior número de horas aos afazeres domésticos do que os

homens -; (c) perfil profissional - as mulheres têm maior chance de interromper a

carreira do que os homens (FEE, 2015).

Contudo, o estudo conclui que se os homens e mulheres tivessem exatamente as

mesmas características, ainda assim elas ganhariam 7% a menos que eles por alguma razão

que não se pode observar ou algo que escapou à observação.

Outra pista para o entendimento do feminino contemporâneo vem do filósofo francês

Gilles Lipovetsky (2000). Atento aos aspectos socioculturais da formação dos papéis, propõe

que a mulher contemporânea seja um modelo autônomo e indeterminado. Indeterminada em

dois sentidos: o primeiro é pela individualidade a que se permite, montando sua identidade

longe de estereótipos e da perspectiva do homem - é a mulher para ela mesma. Indeterminada

também - e consequentemente - porque está em transformação, não conformada aos papéis

sociais predeterminados.

Desse ponto de vista, não somos testemunhas de um processo invariante de

reprodução das condições dos dois gêneros, uma vez que está em operação uma

cultura que consagra, tanto para um sexo como para outro, o reino do governo de si,

da individualidade soberana dispondo de si mesma e de seu futuro, sem modelo

social diretivo (LIPOVETSKY, 2000, p. 238).

Dito diferentemente, na cultura individualista de nosso tempo, não caberiam mais

papéis preestabelecidos. Desse modo, nem mesmo a equiparação ao homem serviria à

mulher. Ela precisa ser ela mesma, com suas escolhas e até mesmo com as suas diferenças. O

que mudaria então é a forma como estas diferenças são tratadas: como características

individuais e não mais como defeitos.

Estes dois últimos pontos ressaltam um aspecto que vem se acentuando: um olhar para

a diferença entre homens e mulheres. Em raros momentos históricos houve tantas leis para

garantir a diferença da mulher: a licença maternidade, a facilitação da amamentação, a

garantia de vagas eleitorais. O consumo também percebe as diferenças de forma a agradar

suas clientes: os preços reduzidos para mulheres em bufês, os ingressos com preços mais

acessíveis, a exaltação ao dia internacional da mulher.

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Chegamos assim a uma sociedade da diferença, onde as mulheres exigem sua

diferenciação. Individualizadas, podem ser o que quiserem. E se elas podem ser o que

quiserem, significa que podem estar em todas as áreas, exercendo plenamente qualquer

função. É neste ponto que os dados empíricos - exibidos na seção introdutória deste artigo -

contradizem a teoria, pois se elas podem ser o que quiserem, por que não podem ou não

querem atuar na criação publicitária?

Assim sendo, buscamos conhecer a formação dos papéis sociais, percebendo como já

na escola faz-se a diferença entre meninos e meninas, em formas e papéis pré-moldados. Para

a pesquisadora Guacira Lopes Louro (1997, p. 60), “a escola delimita espaços. Servindo-se

de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e

institui. Informa o ‘lugar’ dos pequenos e dos grandes, dos meninos e das meninas” através

de pequenas práticas cotidianas. Diante disso, elegemos um espaço de ensino, a universidade,

como ponto de partir para investigar no processo de formação do publicitário as estruturas e

as vozes institucionalizadas que condicionam a produção de sentido sobre o distanciamento

das mulheres da área que corresponde à essência da atividade publicitária.

3. Processo de formação do sujeito do discurso e do consumo

Como perspectiva norteadora - tensionada à Análise de Discurso francesa, de

orientação pecheutiana - tem-se o enfoque na relação comunicação e consumo como

preâmbulo para examinar o processo de formação em Publicidade e Propaganda e, em

decorrência, os efeitos de sentido sobre a noção de gênero e suas implicações na esfera da

criação publicitária. As práticas sociais e culturais nos facultam mobilizar e vincular as

noções de consumo e discurso.

Apreendemos o consumo como acontecimento sociocultural que produz imaginários,

práticas e produções sociais. Nesse sentido, o estudo em proposição filia-se à Análise de

Discurso (AD), perspectiva teórica da linguagem afeita a aproximações com campos e teorias

vizinhas, preservando a sua base teórico-metodológica que, em síntese, possibilita

compreender e, sobretudo, explicitar a história dos processos de significação e das

transformações do sentido, a fim de chegar aos mecanismos de sua produção, fundada em

determinações histórico-sociais.

O que nos importa sobremaneira é o aspecto de pensar o consumo como espaço chave

para a compreensão dos comportamentos sociais (CANCLINI, 2005), haja vista que

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buscamos analisar o funcionamento discursivo no processo de formação de universitários em

publicidade para nos ajudar a refletir como daí deriva as relações de gênero presentes no

universo de criação publicitária. É factível efetuar a aproximação consumo e discurso porque

o objeto de estudo da AD não se trata tão somente da língua, mas o que há por meio dela:

relações de poder, institucionalização, processos de inconsciência ideológica, enfim, diversas

manifestações sociais.

Na AD o sujeito não escapa à historicidade; um sujeito atravessado pelo histórico e

pelo social. Esse sujeito não é o centro do seu dizer, porque não possui autonomia sobre os

sentidos e as possibilidades enunciativas do próprio discurso. O sujeito é sempre dependente,

condicionado por fatores extrínsecos a ele. Exatamente por essa dependência que a AD se

posiciona como um campo investigativo da sociedade, pois busca pesquisar os processos de

(re)produção de poder a que são submetidos os sujeitos.

O sujeito se constitui no jogo simbólico, materialização da ideologia, pois a AD pensa a

ideologia como mecanismo estruturante do processo de significação. “A ideologia consiste na

representação da relação imaginária com o mundo real no interior dos processos discursivos”

(INDURSKY, 1997, p. 20). Sendo assim, de acordo com Indursky (1997), a atividade

discursiva é uma das formas de manifestação da ideologia, exercida pelo sujeito interpelado

ideologicamente. Pensar a ideologia nos remete à noção de formação discursiva - lugar de

manifestação, pela linguagem, das formações ideológicas. Ambas as noções, imbricadas, são

chaves para a compreensão dos comportamentos sociais, porque as formações discursivas

(FDs) determinam o que pode e deve ser dito a partir de um dado lugar social que o sujeito

ocupa. Pelo assujeitamento ideológico, o sujeito, conduzido inconscientemente, tem a ilusão

de ser (estar) livre, quando na realidade sofre a intervenção tanto do ideológico quanto do

inconsciente (assujeitamento inconsciente), sucumbindo à sujeição.

Todavia, a interpelação ideológica nunca é plena. Os mecanismos de resistência e

ruptura são igualmente constitutivos dos rituais ideológicos de assujeitamento (MARIANI,

1998). Na AD, sujeito e discurso não estão encapsulados rigidamente em uma formação

discursiva, mesmo porque as FDs são vistas como “heterogêneas” com “suas fronteiras em

permanente processo de estabilização e desestabilização”, diz Mariani (1998, p. 26). Discurso

e sujeito estão suscetíveis a rupturas, atreladas ao desdobramento da dinâmica simbólica.

Pêcheux (1997) concebe o sujeito social como algo sempre dividido, cindido, conflitivo. Não

é a origem de si, não é estático, está permanentemente em movimento. Tal movimentação do

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sujeito é importante para entender o comportamento do estudante universitário quanto ao

gênero no universo da criação publicitária, assujeitado ao sentido dominante na formação

discursiva publicitária ou ocupando uma posição-sujeito que coloca em xeque a ideologia

dominante.

A concepção de sujeito formulada na teoria da subjetividade lacaniana ecoa em

Pêcheux (1997), trazendo à tona, em sua relação estreita com o sujeito, o desejo e o

imaginário (FERREIRA, 2004). O imaginário nos encaminha à afirmação de Pêcheux (1993,

p. 75) de que “um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas”,

sendo estas definidas como “as circunstâncias de um discurso”. Dentre tais circunstâncias,

Pêcheux (1993, p. 82) destaca as formações imaginárias: “O que funciona nos processos

discursivos é uma série de formulações imaginárias que designam o lugar que A e B se

atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles fazem do seu próprio lugar e do lugar do

outro”. A imagem que A e B constroem do referente C completam o cenário apresentado por

Pêcheux, pois a Teoria da Análise do Discurso considera, como parâmetro essencial, aquilo

de que se fala, o referente do discurso (aquilo a que o sujeito se refere); o que implica a

considerar que as coisas não se desenvolvem da mesma maneira segundo se fale de tal ou tal

coisa. O dizer é produto de uma dimensão imaginária.

Diante da afirmação de Orlandi (2001, p. 40) de que “não importam os lugares

empíricos”, mas a posição que ocupam, ou imaginam que ocupam, deslocamos o raciocínio

apresentado por Pêcheux (1993) ao nosso objeto de investigação para desenvolver a hipótese

de que o imaginário do estudante de Publicidade e Propaganda sobre o seu próprio lugar,

sobre o lugar do outro e, em especial, sobre o lugar projetado para o feminino e para o

masculino na atividade publicitária está relacionado às formulações imaginárias geradas

acerca da profissão no seu processo de formação, ao qual o consumo está estreitamente

vinculado. Assim sendo, almejamos examinar o modo como a atuação feminina e masculina

no trabalho criativo em publicidade é projetada no processo de formação publicitária; se e

como as características masculinas fazem parte do imaginário sobre a profissão; se e de que

modo o homem é inscrito em uma posição de superioridade em relação à mulher; além da

construção do imaginário sobre o campo publicitário, sobre o subcampo da criação

publicitária e sobre seus profissionais.

O sentido de sujeito na AD convive com a dialética da liberdade (efeito-desejo) e da

submissão (realidade). Então a liberdade é o imaginário desde o qual se trabalha e se deseja.

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Por atacado, o discurso não compõe a representação exata de uma realidade, porém assegura

a permanência de uma certa representação. Segundo Pêcheux (1993), o sujeito produz

discursos que se transformam em representação dos conjuntos de acontecimentos

extralinguísticos (e derivam de representações já existentes). Os processos colocados em jogo

têm por função carregar o discurso de sentido, inscrevê-lo no universo do sujeito, naturalizá-

lo (efeito de “sempre-já-lá”) e fornecer-lhe um contexto inteligível, isto é, interpretá-lo,

dando margem ao frescor da imaginação e o desejo de dar um sentido à sociedade e ao

universo a que pertence por meio da produção discursiva. A relação entre sujeito, desejo e

imaginário possui aderência a nossa investigação, uma vez que o desejo se confunde com o

imaginário. Ou melhor, o desejo contamina o próprio imaginário, criando-se um imaginário

do desejo. Por um viés psicanalítico, Elia (2004) concebe o desejo como imaginário em suas

vias de realização, na medida em que ele é regido pela trama de sua fantasia.

Pensar sujeito na AD demanda pensar sentido, à medida que é o sujeito quem atribui

sentido. A produção de sentido é outra interface entre consumo e discurso. Pêcheux (1993)

define discurso como efeito de sentido entre interlocutores. Já Canclini (2005) compreende o

consumo como conjunto de práticas socioculturais em que se constroem significados e

sentidos. Martín-Barbero (2013), por sua vez, considera o consumo como produção de

sentido. Sendo a AD a teoria da determinação história dos processos semânticos, a produção

de sentido do discurso resulta do processo de interação social do sujeito. Na situação em tela

de acadêmicos de Publicidade, eles têm de lidar e acomodar diversos “discursos” e “vozes”,

que se sobrepõe durante o processo de formação, sobre o qual vamos nos debruçar agora.

3.1 Espaços comunicativos: mecanismos de formação de representações de

gênero

Para a AD o que interessa não está na superfície do discurso. O que está em jogo é a

explicitação dos mecanismos de produção de sentidos a partir do funcionamento discursivo.

Por conseguinte, examinar como as práticas de consumo constituem o processo de formação

em Publicidade e Propaganda nos parece vital para evidenciar os mecanismos de produção de

representações e desigualdade de gênero na criação publicitária.

Para alcançar tal intento, iremos nos socorrer da contextualização traçada por Canclini

sobre consumo cultural, ancorada em seis teorias mais significativas acerca do debate em

torno do consumo. Também denominadas por Canclini (1993) como modelos, as seis teorias

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são assim sintetizadas pelo próprio autor: “o consumo como o lugar de reprodução da força

de trabalho e de expansão de capital”, “como o lugar onde as classes e os grupos competem

pela apropriação do produto social”, “como espaço de diferenciação social e distinção

simbólica entre os grupos”, “como sistema de integração e comunicação”, “como processo de

objetivação de desejos”, “como processo ritual” (CANCLINI, 1993).

Igualmente, iremos nos valer de Martín-Barbero (2013). Na medida em que sua

reflexão insere a investigação do consumo nos processos de formação e transformação dos

grupos sociais, elaborando uma perspectiva sócio-histórica pela qual o processo de consumo

é formado e dá forma a determinados processos sociais, ela se presta para compreender a

constituição de gênero como produção social. Senão vejamos. Para Chanter (2011), o que

separa as mulheres dos homens não é nenhuma incapacidade natural, nenhuma deficiência

inerente a sua capacidade de raciocínio, mas simplesmente o hábito e o condicionamento

social. Poderíamos dizer juntamente com Chanter (2011) que o gênero é resultado de um

processo histórico, no qual o espaço social em que o sujeito convive molda os

comportamentos associados à masculinidade e à feminilidade. Por intermédio de práticas

sociais e discursivas aprendemos a ser homens e mulheres, tomando conhecimento da forma

como devemos ser e estar no mundo.

Louro (2008) mostra que o gênero é construído por meio de diversas aprendizagens e

práticas, empreendidas por um conjunto infindável de instâncias sociais e culturais. Cabe

enfatizar, de imediato, a multiplicação das estruturas de formação na contemporaneidade.

Nas palavras de Casaqui; Riegel; Budag (2011, p. 72), “mídia e educação formal se imbricam

na formação do conhecimento”. Em conformidade, Baccega (2004) destaca a necessidade de

conjugação da escola com as demais agências de socialização: mídia e família. Martín-

Barbero (2014) igualmente reconhece o descentramento da escola como principal agência

socializadora ao entender os processos comunicativos do consumo colados ao pedagógico.

Para ele, a escola não possui mais a hegemonia de ser o lugar exclusivo de legitimação do

saber, nem compartilha somente com a família a responsabilidade pela formação e

socialização dos estudantes.

Ato contínuo, é nítido que devemos ampliar a concepção de processo de formação

diante de evidências de formas contemporâneas de aprendizado e de mudanças de

significados em relação às práticas de consumo. “Estamos passando de uma sociedade com

sistema educativo para uma sociedade do conhecimento e aprendizagem contínua”, isto é,

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sociedade cuja rede educativa atravessa tudo: o trabalho e o lazer, o escritório e o lar, a vida

cotidiana, a trama de interações (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 121). “Não é que o lugar

escolar vá desaparecer, mas as condições de existência desse lugar estão sendo transformadas

radicalmente por uma pilha de saberes-sem-lugar-próprio e por um tipo de aprendizagem que

se torna contínua, isto é, ao longo de toda a vida (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 127).

No campo publicitário, novos espaços de experiência surgidos da reorganização dos

saberes são recorrentes, e o capital cultural proveniente do lado de fora dos muros escolares é

valorizado. Vivências no trabalho, eventos com profissionais de propaganda, instituições de

ensino, livros, anuários, periódicos, portais de notícias e programas especializados, redes

sociais, séries televisivas. Eis alguns dos múltiplos - e mais comuns - círculos formativos.

Elementos de distintos ambientes onde o sujeito se encontra inserido interferem na formação,

seja ela publicitária bem como da noção de gênero. A formação complementar, dada à

relevância e o significado que exerce na produção do saber, deve ser encarada como outra

modalidade de aprendizagem que se distancia do modelo de comunicação escolar ao

descentralizar o conhecimento.

Na reflexão que conduzimos desde 2013 acerca do lugar do feminino e do masculino na

publicidade, atestamos que a universidade enquanto lugar de ensino e aprendizagem sobre a

profissão é um dos ambientes institucionalizados que legitimam a supremacia masculina na

criação publicitária. Por essa razão, queremos expandir o estudo da desigualdade de gênero

na criação publicitária para o espaço social, observando o entorno das práticas que a

(re)produzem, pois a prática não está descolada do mundo social, indo além do mercado

publicitário e das universidades. A relação do sujeito com os outros - sujeitos, vozes,

discursos, campos -, a vida social que o constitui. Eis o nosso alvo.

Aceitar a desescolarização significa admitir que é possível aprender fora do ambiente

da escola tradicional, que a busca do saber pode ocorrer em espaços e linguagens não

escolares (CITELLI, 2002). Orozco Gómez (2014, p. 25) argumenta que se aprende de

muitas maneiras, e que a escola não é o único lugar onde se produz aprendizagem. “É preciso

romper esse monopólio e crença generalizada de que educação só tem a ver com o escolar.

Esse seria o caso dos meios de comunicação de massa e, hoje, das diversas tecnologias e das

redes sociais que, sem reconhecer-se educadores, estão educando” (OROZCO GÓMEZ,

2014, p. 25).

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É nesse novo espaço comunicacional, tecido de conexões, fluxos e redes, onde surgem

novas formas de estar juntos (CANCLINI, 2005), que emerge nos estudantes “um potencial

de saberes diversos mas entrelaçados, que provêm menos do saber escolar que de sua

experiência cultural” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 126). O reordenamento de resistentes

formas de intermediação, como é a escola, transforma os modos de circulação e consumo de

saberes. Estamos a acompanhar um momento rico e complexo de mutações em que “o saber

escapa dos lugares sagrados” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 126) para se tornar disperso e

fragmentado, escapando ao modelo linear e sequencial para desenvolver novas modalidades

de aprendizagem formais e não formais.

Ao propor observar a vida social em curso de jovens universitários estaremos

pesquisando as dinâmicas comunicacionais na situação em que ocorrem, apreciando a

produção de sentido em espaços distintos de formação. Do mesmo modo, práticas de

sociabilidade, sensibilidades e subjetividades do processo de formação de estudantes de

Publicidade terão visibilidade. Logicamente, tal empreitada necessita de método, o caminho a

ser percorrido.

4. Acerca do método: relatos de vida de universitários de Publicidade e

Propaganda

A ciência da comunicação se utiliza de diversos métodos científicos. Santaella (2001, p.

34) relata que a “aplicação de metodologias mistas, integradas, complexas” vem se

acentuando na área de comunicação, absorvendo um conjunto de saberes provenientes de

múltiplos horizontes. É o que fazemos aqui com a Análise de Discurso, que, segundo

Maingueneau (2001), não é exclusiva do campo das letras, estendendo-se ao universo das

produções discursivas em comunicação.

Em AD não importa a quantidade, mas a qualidade. A análise não visa à exaustividade

horizontal, mas à exaustividade vertical em profundidade, levando a consequências teóricas

relevantes. Não se almeja a exaustividade em extensão, mas uma representatividade em

relação ao objeto de análise. Vale dizer que para a AD não há um modelo pronto, aplicável

automaticamente a qualquer discurso, rejeitando assim qualquer tipo de modelo analítico

mecanicista ou generalizante que possa reduzir a produção e o movimento dos sentidos na/da

linguagem.

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Alinhado a esse pensamento, Braga (2011) refuta a perspectiva sobre metodologia

como um conjunto de regras de encaminhamento apriorísticas e rígidas. Em harmonia,

Ferrara (2003) insiste que nenhum método pode ser normativo, pois cada pesquisa é um

processo singular que demanda determinado(s) método(s). Em outros termos, prima-se por

construções metodológicas adequadas ao problema/objeto investigado, delegando-se ao

pesquisador a tomada de decisões em relação à abordagem metodológica.

A AD peucheutiana, aberta em sua abordagem metodológica, requer a construção de

um percurso próprio para a produção do material de análise. Então, na esteira da noção de

metodologia como processo de construção da pesquisa, defrontamo-nos com a exigência de

decidir. E para analisar os discursos produzidos por discentes de Publicidade e Propaganda

optamos pela vida como narração (ARFUCH, 2010) dada a sua pertinência ao problema de

pesquisa: refletir sobre como as experiências formativas do consumo se atravessam nas

condições de atuação do homem e da mulher na atividade criativa da publicidade.

Mignot e Souza (2015) sinalizam que no Brasil é possível notar um fértil

desdobramento das narrativas na educação em caminhos teórico-metodológicos que

valorizam a interface entre narração e formação. Já Chapon e Francis (2015) contam que foi

Célestin Freinet quem elaborou as teorias educativas vinculadas à necessidade de expressão

infanto-juvenil, sublinhando a importância da produção de relatos de vida. A produção de

relatos de si é uma maneira de os sujeitos construírem o sentido de si em relação aos outros e

a si próprios. Conceber uma narrativa de si é dar visibilidade a própria experiência, é “dizer o

próprio mundo e dizer a si mesmo” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 28). Logo, é um

processo imerso em subjetividade.

A noção de trajetória de vida (GIELE e ELDER JR., 1998), adotada aqui para analisar

as narrativas de universitários como construção discursiva, é uma alternativa de apreensão

dos sentidos atribuídos às experiências dos sujeitos de nossa investigação nas diferentes

instâncias do processo educativo. Esperamos reunir histórias de momentos de vida (timing of

lives), apresentados por Giele e Elder Jr. (1998) como momentos de transformação, de

movimentos de adaptação do sujeito à exterioridade.

O estudo a ser realizado é delimitado a partir das narrativas dos universitários, contando

um pouco do que se passa na sua vida, dos acontecimentos diários, das atividades que realiza

cotidianamente, um panorama da sua vivência cotidiana. Esse conjunto de práticas de

inserção social dará a ideia do percurso de formação, já que o aprender é uma ação

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incorporada à rotina, ao trabalho e ao lazer, e não está restrita a um espaço específico.

Ansiamos dar a conhecer, por meio do processo educativo descontínuo e próprio de cada

sujeito, a construção da sua formação entre os diferentes lugares da vida, do público ao

privado: a casa, a família, o trabalho, a universidade, as redes sociais digitais, a rua.

Ancorados nos autores consultados, entendemos que a reconfiguração comunicativa do

saber, fora dos espaços tradicionais, é a mudança que a comunicação e o consumo

proporcionam ao sistema educacional. Decorre daí a produção de uma narrativa na qual o

sujeito enuncia-se quanto ao que veste, ao que ouve, ao que assiste, ao que lê, a quem escuta;

quanto a suas companhias e amizades, às relações sociais, à ocupação do tempo livre em

games, cinema, teatro, exposições, museus, concertos musicais, danças, práticas esportivas,

festas, bares, igreja, viagens. Diante da pluralidade e da heterogeneidade de acontecimentos

cotidianos das novas gerações, no espaço doméstico, no lugar de trabalho, na faculdade, nas

redes sociais, é impossível prever o conjunto inesgotável de atividades de ordem pessoal,

estudantil e profissional do universitário, tendo como foco as instâncias sociais e culturais.

Naturalmente, esses bens culturais produzem desdobramentos heterogêneos,

influenciados pela formação sociocultural e interesses de cada sujeito e alargam o processo

educativo, permeado, em suma, pelas experiências na vida profissional - relacionada à

pluralidade de formas contemporâneas de trabalho -, na vida acadêmica - em sua vastidão de

nuances - e nos demais círculos educativos não formais. A vida como trajetória dá sentido

aos fragmentos da experiência, e dela são recolhidos vestígios sobre intimidades,

sentimentos, desejos, expectativas, projetos existenciais, gostos, concepções, representações.

“As narrativas em que se dizem e contam” (MARTÍN-BARBERO, 2014, p. 120) medos,

inquietações, incertezas e buscas permitem entrever as transformações que futuros

publicitários atravessam.

Convém resgatar a noção de sujeito da social da AD a fim de reafirmar o

reconhecimento da dimensão social, do entrelaçamento da vida e das experiências individuais

com seu contexto, com os cenários que lhe dão sentido. O sujeito é dependente das

conjunturas e é sustentado por laços sociais com distintos sujeitos em diferentes campos ao

longo de sua existência. Nesse aspecto, as narrativas que promovem subjetivações são

marcadas pela construção coletiva. Há tensão entre o eu e o Outro. Este é o pensamento de

Orlandi (2001, p. 31) ao acreditar que a memória deve ser trabalhada como interdiscurso,

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pois é nele que os dizeres estão disponíveis, não no próprio sujeito, mas sim no Outro, na

memória discursiva.

Assim, é preciso reconhecer, por meio da noção de memória discursiva, que a formação

social e ideológica caracteriza alguns comportamentos. “O que vem pela história não pede

licença, vem pela memória, pelas filiações de sentidos constituídos em outros dizeres, em

muitas outras vozes, no jogo da língua que vai se historicizando aqui e ali” (ORLANDI,

2001, p. 32). Logo, os momentos de vida que constituem a trajetória de estudantes de

Publicidade permitem recolher impressões para analisar como os sentidos atribuídos à

escassez de mulheres na criação publicitária são conectados com a memória constitutiva

(interdiscurso).

4.1 A construção do conjunto a ser observado

Martín-Barbero (2014) valoriza a oralidade e a visibilidade como formas de construção

do saber, salientando que os rituais tecnocomunicativos nos conectam a sensibilidade dos

jovens. É esse viés de uma sociedade pautada pelos fluxos comunicacionais difundidos

através do suporte das tecnologias digitais que irá pautar a produção do material a ser

observado. A empatia dos jovens com as linguagens audiovisuais e digitais será respeitada

para que possam compor seus relatos, contar suas histórias, suscetíveis de múltiplos modos

de exposição. “As narrativas de si, estimuladas pela Web” implicam em “formas

contemporâneas de escritas de si” (MIGNOT e SOUZA, 2015, p. 25).

Na prática, as narrativas de vida serão publicizadas pelos meios técnicos disponíveis:

palavras, imagens, materiais audiovisuais. Cada estudante estará responsável por traduzir os

seus momentos de vida em linguagem, dentre as diferentes formas de narrar a própria

trajetória. Não imporemos um modo uniforme. Portanto, não haverá um suporte, formato ou

plataforma determinado. Queremos preservar a maneira particular de contar e partilhar as

experiências de consumo-formação. O universitário será instigado a traduzir em linguagem

escrita, sonora, audiovisual, visual, digital suas práticas sociais cotidianas que propiciem

acompanhar a sua formação. Cabe a nós, pesquisadores, articulá-las com as questões de

gênero no universo publicitário.

Não capturaremos depoimentos. Trabalharemos com cotidianidades contidas em uma

diversidade de documentos, haja vista que os jovens estão se expressando por meio de outros

idiomas, por meio do próprio corpo (MARTÍN-BARBERO, 2014). Rituais de se vestir, tatuar

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e se enfeitar, a moda, manifestações nas redes sociais digitais, modos de fala, vocabulário,

gírias. Tudo pode ser relevante, tudo tem sentido, tudo diz sobre a trajetória formativa.

Qualquer nota sobre o que fez, o que pensou, o que/quem estava ao estava seu redor, sobre o

lugar onde estava são porções de vida reveladoras que outorgam sentido as próprias

experiências e, por extensão, as práticas educativas. Por isso, o estudante terá autonomia para

registrar todo acontecimento que considerar relevante, do mais trivial ao mais significativo.

Há um conjunto extraordinário de possibilidades de falar de si. Depende da criatividade

expressiva. Aliás, se o alvo das nossas atenções é o espaço ocupado por mulheres e homens

na criação publicitária, a própria forma escolhida para comunicar-se é significativa.

Cogitamos reunir experiências heterogêneas, expressões da diversidade de práticas

formativas, de concepções singulares de ser estudante. Diante da possibilidade de reunir um

material rico, porém disperso e volumoso, recorremos à analogia com a figura do mosaico

lançada por Becker (1986). Cada peça contribui para a compreensão do quadro, embora nem

todas tenham a mesma importância na sua composição e possam ser descartadas. Algumas

peças são chave no preenchimento da figura, outras na definição do contorno. Há as que estão

ali apenas para compor o fundo da imagem. Isto é, o conjunto de peças filtradas forma o todo

que deve ser analisado para elaborar uma explicação de uma dada realidade social.

Alertamos que não é nossa intenção, nesse estágio da pesquisa, ingressar na seara da

identidade de gênero. Todavia, por julgarmos fundamental tratar de maneira relacional o

masculino e o feminino, estudantes de Publicidade e Propaganda serão os sujeitos da

pesquisa. Um aluno e uma aluna de cada instituição de ensino superior participante, a partir

do ingresso na universidade na condição de calouros, serão convidados a produzir relatos de

vida ao longo da graduação que permitam a construção de enunciados sobre suas formas de

ser e estar no mundo.

Antes de prosseguir, listamos as instituições de ensino contatadas que acenaram

favoravelmente à participação. São elas: ESPM, Unicentro, Univates, UFPR, UFPE e UFSM.

Diga-se de passagem, (as)simetrias entre IES públicas e privadas pode ser uma variável

considerada. Logicamente, haverá a necessidade de obter a autorização dos universitários

envolvidos, submetendo-se as normas dos Comitês de Ética em Pesquisa. Os discentes

manterão encontros presenciais periódicos com o professor-pesquisador na sua IES e farão

entregas sistemáticas do material produzido, pré-agendadas de acordo com cronograma a ser

estabelecido.

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Explicitado o percurso de produção do material, esclarecemos que os relatos de vida

serão analisados à luz da abordagem teórica da AD.

O analista então fará o seguinte percurso: Em um primeiro passo da análise, ele

toma o material bruto linguístico como tal (o corpus, os textos) e por um primeiro

lance de análise ele procederá à de-superficilização desse material, sua

desintagmatização. Obterá assim o que chamamos o objeto discursivo. O objeto

discursivo corresponde ao material analisado, mas já resulta de um passo de análise.

Nele já começamos a pressentir o desenho das formações discursivas que presidem

a organização do material. Em um segundo passo da análise agora o analista

trabalha sobre o objeto discursivo procurando determinar que relação este

estabelece com as formações ideológicas. Chegamos assim ao processo discursivo.

Quando conhecemos o processo discursivo podemos dispensar o material de análise

inicial, pois estaremos de posse do funcionamento discursivo (ORLANDI, 2006, p.

16-17).

À medida que não tematizaremos a atuação feminina na criação publicitária, evitando

“brifar” o jovem universitário para não direcioná-lo, sob pena de os materiais produzidos

sofrerem uma edição tendenciosa, o desafio do pesquisador estará em lidar com a

ambiguidade do discurso, que simultaneamente releva e mascara, explicita e dissimula; em

perceber nos enunciados produzidos processos significativos de consumo-formação; em

reconhecer pegadas que revelam maneiras de raciocínio e inferências dos estudantes. Ainda

que borradas, as questões de gênero na publicidade surgem nas entrelinhas para serem

problematizadas.

Embora a rigor não precisemos de “critérios metodológicos muito definidos para cada

decisão a tomar - e dificilmente os teríamos à disposição” (BRAGA, 2011, p. 10),

naturalmente cada tomada de decisão acarreta em riscos e/ou limitações. No nosso caso são

inerentes a quem vai trabalhar com pessoas. Então uma limitação diz respeito a nós,

pesquisadores. Os trabalhos de AD não se escondem atrás de uma pretensa neutralidade

científica em relação aos sentidos. A AD reconhece a limitação de toda análise, tendo em

vista o revestimento ideológico no trabalho de interpretação do analista, impregnado de

subjetividade. Em pesquisas qualitativas o pressuposto é uma relação dinâmica, uma

interdependência entre o mundo real, o objeto da pesquisa e a subjetividade do sujeito.

“O processo comunicativo que se observa empiricamente é o processo representado e

não o processo em si”, admite Rossetti (2010, p. 84). “Cria-se uma representação do

conhecido - que já não é mais o objeto inicial, mas uma construção do sujeito”, completa

França (2010, p. 43). O objeto de pesquisa deixa de ser tomado como dado inerte e neutro e

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se torna um fenômeno recortado, revestido de teoria e repleto de significados atribuídos pelo

pesquisador, constituindo-se então outra realidade, a simbólica, e não a vida como ela é.

A despeito dos riscos e/ou limitações, é Braga (2011, p. 9) quem nos dá o alento:

podemos voltar atrás e rever as decisões anteriores. Ao mostrar que obstáculos sempre

existirão em pesquisa científica de qualquer natureza, o experiente pesquisador sugere levar

em conta a “perspectiva de metodologia como o acompanhamento refletido daquilo que se

está fazendo” para podermos “encontrar no próprio desenvolvimento da pesquisa as pistas

para seu controle metodológico”. Como “o acompanhamento refletido daquilo que se está

fazendo”, Braga (2011, p. 10) acredita no “em fazendo”, por contraste com uma previsão

rígida e prévia do caminho “a fazer”.

Por outras palavras, a pesquisa é passível de (re)ajustes e correções de rumo mesmo

quando em curso. É a reflexão metodológica apregoada por Braga (2011, p. 10), a capacidade

de observar e rever criticamente o que fazemos. “O processo metodológico básico não é o de

definir uma regra de encaminhamento e depois segui-la estritamente; mas sim o de rever cada

passo dado e refletir sobre a justeza de seu direcionamento, corrigindo-o no próprio

andamento da pesquisa”.

As ponderações de Braga se prestam a nossa proposta de pesquisa, dado que o público

escolhido para ser analisado, o jovem universitário, é multifacetado, multitarefa, instável,

resistente, e em muito se assemelha a própria comunicação, viva, mutável, de natureza

dinâmica, em constante (trans)formação. Diante disso, definimos o trabalho de reconstruir e

reinterpretar as vozes dos discentes, seus saberes, suas experiências, sua própria linguagem

como um desafio a enfrentar.

Somos sabedores que os universitários podem desistir no meio do caminho; que não

queiram prosseguir na jornada, que os relatos podem ir escasseando ao longo do tempo; que

os estudantes podem editar a própria narrativa, mostrando causalidades que nem sempre

correspondem às trajetórias reais; que todo relato se situa em um espaço do dizível

responsável por deformações e obscuridades; que o fato de a escolha dos estudantes ser

aleatória, uma vez que são calouros e, portanto, desconhecidos dos professores-

pesquisadores, acarreta no risco de desistência ou de baixo grau de envolvimento; que será

necessário estabelecer uma relação de confiança entre pesquisador e pesquisado.

Diante de tais desafios, talvez tenhamos que rever decisões ao longo da investigação,

com ela já em andamento. Experimentar e testar até acertar. Eis o caminho. Por isso estamos

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abertos às objeções e a receber contribuições para, se preciso for, remodelar a estratégia

teórico-metodológica que nos guiará no entendimento do modo como o processo de

formação, da ordem do consumo, incide na produção de sentido sobre a noção de gênero,

refletindo na atuação em criação publicitária.

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