O PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE E A DEMANDA … · O fluxograma descritor e os grupos focais...

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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ CENTRO DE PESQUISAS AGGEU MAGALHÃES DEPARTAMENTO DE SAÚDE COLETIVA Mestrado Profissional em Saúde Pública FABIANA DE OLIVEIRA SILVA SOUSA O PROCESSO DE TRABALHO EM SAÚDE E A DEMANDA POR ASSISTÊNCIA ESPECIALIZADA NA REDE BÁSICA DE SAÚDE DO RECIFE. Recife 2010

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  • FUNDAO OSWALDO CRUZ CENTRO DE PESQUISAS AGGEU MAGALHES

    DEPARTAMENTO DE SADE COLETIVA Mestrado Profissional em Sade Pblica

    FABIANA DE OLIVEIRA SILVA SOUSA

    O PROCESSO DE TRABALHO EM SADE E A DEMANDA POR ASSISTNCIA ESPECIALIZADA NA

    REDE BSICA DE SADE DO RECIFE.

    Recife 2010

  • FABIANA DE OLIVEIRA SILVA SOUSA

    O PROCESSO DE TRABALHO EM SADE E A DEMANDA POR

    ASSISTNCIA ESPECIALIZADA NA REDE BSICA DE SADE DO RECIFE

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado Profissional em Sade Pblica, do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes da Fundao Oswaldo Cruz, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincias .

    Orientador: Dr. Garibaldi Dantas Gurgel Junior

    RECIFE 2010

  • FABIANA DE OLIVEIRA SILVA SOUSA

    O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia especializada na rede bsica de sade do Recife.

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado Profissional em Sade Pblica, do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes da Fundao Oswaldo Cruz, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Cincias.

    Data da aprovao: ____/____/_____

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________ Dr. Fernando Antnio Ribeiro de Gusmo Filho

    (Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira IMIP)

    ______________________________________________ Dra. Paulette Cavalcanti de Albuquerque

    (Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes CPqAM / Fiocruz

    ______________________________________________ Dr. Garibaldi Dantas Gurgel Junior

    (Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes CPqAM / Fiocruz)

  • Aos meus pais Reginaldo e Bibiana, pelo exemplo de vida;

    A Beto, meu amor, pelos sonhos compartilhados.

  • AGRADECIMENTOS

    A Deus, pelo dom da vida e por seu amor manifesto em cada segundo da

    minha existncia, sem Ele eu no teria chegado at aqui;

    Aos meus pais, exemplo de fora e dedicao. Mesmo sem muito estudo

    lutaram para me oportunizar a chance de estudar;

    A Beto, cujo amor e alegria tem dado mais suavidade e inspirao ao meu

    viver;

    Aos meus irmos, sobrinhos, cunhado e cunhadas, pelo vosso amor;

    A todos os meus amigos, especialmente, Liu, Chele (in memoriam), Lorena e

    Ingrid pela amizade sincera e companheirismo na luta pela Reforma Sanitria;

    Ao meu orientador, Prof. Garibaldi Gurgel, pela pacincia e incentivo na

    construo dessa dissertao;

    A minha turma do Mestrado Profissional, pelos ricos momentos de discusso

    coletiva e alegrias vivemos juntos;

    A equipe da Diretoria Geral de Regulao do Sistema da Secretaria de Sade

    do Recife, por tudo que acreditamos e realizamos juntos, especialmente a

    Luzi e Rosinha (minha flor) pela preciosa amizade, a Walter pelo apoio no

    trabalho com o SSCR;

    A Prefeitura da Cidade do Recife, em especial aos profissionais do Distrito

    Sanitrio 6, nas pessoas de Dra. Daniele, Ana Nery, Nilma, Lindacelma e a

    todos os profissionais de sade seu dia-a-dia pela construo de um SUS

    mais integral;

    Aos funcionrios da Biblioteca do CPqAM, pela ateno dispensada e,

    especialmente, a Mrcia pelo carinho e simpatia;

  • Se, na verdade, no estou no mundo para

    simplesmente a ele me adaptar, mas para

    transform-lo; se no possvel mud-lo sem um

    certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda

    possibilidade que tenha para no apenas falar de

    minha utopia, mas participar de prticas com ela

    coerentes. (Paulo Freire)

  • SOUSA, Fabiana de Oliveira Silva. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia especializada na rede bsica de sade do Recife. 2010. Dissertao (Mestrado Profissional em Sade Pblica) Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes, Fundao Oswaldo Cruz, Recife, 2010.

    RESUMO

    Este um estudo sobre a influncia do modo como os trabalhadores operam o cuidado sade na produo e percepo de demandas e no acesso da populao a uma assistncia resolutiva e de qualidade. um estudo de caso realizado na rede bsica da microrregio 6.3, Distrito Sanitrio 6, municpio de Recife-PE que descreveu o perfil da demanda por assistncia especializada em cardiologia; analisou o processo de trabalho das equipes de sade da famlia e identificou aspectos do processo de trabalho dessas equipes que influenciam no perfil de encaminhamento para assistncia especializada em cardiologia. Foi realizada anlise do banco de dados do Sistema de Regulao Municipal, anlise de fichas de encaminhamento ao especialista, observao direta e grupos focais, onde foi construdo o fluxograma descritor do processo de trabalho das equipes de sade da famlia. No ano de 2009, foram agendadas 1.027 consultas cardiolgicas no hospital filantrpico de referncia. Desse total, 70% foram para mulheres e 75,3% para pessoas acima de 40 anos. Identificou-se tambm uma demanda reprimida de 190 pessoas que aguardavam uma vaga para consulta de cardiologia e que 34,2% das fichas de encaminhamento analisadas no apresentavam nenhuma justificativa. O fluxograma descritor e os grupos focais evidenciaram que o processo de trabalho das equipes de sade da famlia caracterizado por restries de acesso e ausncia de acolhimento; produo de cuidado mdico-centrado, curativista e individual; inexistncia de atividades preventivas coletivas e fragmentao na linha de cuidado, provocando descontinuidade na assistncia prestada. A interao desses aspectos somados falta de profissionais mdicos na ateno bsica contribui para ampliar a demanda por assistncia especializada e o sofrimento da populao que referenciada para esse nvel assistencial. Acredita-se que a utilizao de alguns dispositivos como a insero de equipes multiprofissionais na ateno bsica trabalhando com a lgica de equipes de referncia e apoio matricial e a implementao da educao permanente no cotidiano dos servios de sade podem auxiliar no processo de transformao do modo como se produz o cuidado em sade, constituindo linhas de cuidado que garantam o acesso da populao uma assistncia de qualidade e integral. PALAVRAS CHAVES: Processo de trabalho, Demanda, Ateno Bsica, Ateno Especializada.

  • SOUSA, Fabiana de Oliveira Silva. The process of health work and the demand for specialized assistance in basic health services in Recife. 2010. Dissertation (Masters Professional in Public Health) - Aggeu Magalhes Research Center, Fundao Oswaldo Cruz, Recife, 2010.

    ABSTRACT

    This study addresses the problem of demand for care and the way how workers who operate the health care can influence the production and perception of demands and consequently the population's access to a resolvent and quality assistance. This is a case study in the basic network from the 6.3 microregion, 6 Sanitary District, city of Recife-PE, which described the profile of demand for specialized care in cardiology, examined the working process of family health teams, and identified aspects of the work process of these teams that influence the profile of referrals to specialized care in cardiology. It was carried out analysis of the database of the Municipal Regulation System, analysis of the records of referral to a specialist, direct observation and focus groups where the descriptor flowchart of the working process of family health teams was constructed. In the year 2009, 1027 cardiology consultations were scheduled in reference philanthropy hospital. Of this total, 70% of schedules were for women and 75.3% for people over 40 years old. It also identified an unmet demand of 190 people awaiting a vacancy for outpatient cardiology schedule and that 34.2% of the referral records analyzed presented no justification. The descriptor flowchart and focus groups showed that the working process of the family health teams is characterized by limited access and no hospitality, production-centered curative and individual medical care, lack of collective preventive activities and fragmentation in the line of care, causing discontinuity of care. The interaction of these aspects, added to lack of medical professionals in primary care contributes to expand the demand for specialized assistance and suffering of the population that is referenced to that level of care. It is believed that the use of some devices such as the insertion of multidisciplinary teams in primary care working with the logic of reference teams and matrix support and implementation of continuing education in everyday health services can assist in transforming the way health care is produced, providing care lines to ensure the population's access to comprehensive and quality care. KEYWORDS: Work process, Demand, Primary Care, Specialized Care.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    FIGURA 1 Mapa dos bairros do Distrito Sanitrio 6, Recife, PE 39

    QUADRO 1 Cronograma de visitas e reunies realizadas para coleta de dados no perodo de fevereiro a maio de 2010, Distrito Sanitrio 6, Recife PE 44

    QUADRO 2 Nmero de profissionais que participaram dos grupos

    focais por unidade de sade da famlia, no ms de abril de 2010, o Distrito Sanitrio 6, Recife PE 47

    FIGURA 2 Fluxograma Descritor de uma unidade de sade 48 FIGURA 3 Fluxograma Descritor do processo de trabalho da USF

    X (1 parte), Recife-PE, abril de 2010 58 FIGURA 4 Fluxograma Descritor do processo de trabalho da USF

    X (2 parte), Recife-PE, abril de 2010 59

  • LISTA DE TABELAS

    TABELA 1 Caracterizao das Unidades de Sade da Famlia da MR 6.3 com relao ao n de ESF completas e n de ESF que fazem preceptoria, Distrito Sanitrio 6, Recife, abril de 2010

    50

    TABELA 2 Distribuio de cotas mensais de consultas de cardiologia por unidade de sade da famlia e unidade de referncia, MR 6.3, Distrito Sanitrio 6, Recife, abril de 2010

    51

    TABELA 3 Agendamentos das cotas mensais de consultas de cardiologia do hospital filantrpico por unidade de sade da famlia da MR 6.3, no perodo de janeiro a dezembro de 2009, Distrito Sanitrio 6, Recife, abril de 2010

    52

    TABELA 4 Agendamentos de consultas de cardiologia no hospital filantrpico por unidade de sade da famlia e sexo do paciente, no perodo de janeiro a dezembro de 2009, MR 6.3, Distrito Sanitrio 6, Recife, PE

    53

    TABELA 5 Agendamentos de consultas de cardiologia no Hospital Filantrpico rede conveniada por Unidade de Sade da Famlia e faixa etria do paciente no perodo de janeiro a dezembro de 2009, Distrito Sanitrio 6, Recife, abril de 2010

    54

    TABELA 6 Demanda reprimida das unidades de sade da famlia da MR 6.3, no perodo de abril a maio de 2010, Distrito Sanitrio 6, Recife, PE.

    55

  • LISTA DE ABREVIATURA E SIGLAS

    Aux. Adm. Auxiliar Administrativo

    CNS Conferncia Nacional de Sade

    DS Distrito Sanitrio

    ESF Equipe de Sade da Famlia

    GM Gabinete do Ministro

    HAS Hipertenso Arterial Sistmica

    MR Microrregio

    MS Ministrio da Sade

    MSF Mdico de Sade da Famlia

    NASF Ncleo de Apoio ao Sade da Famlia

    PACS Programa de Agente Comunitrio de Sade

    PSF Programa de Sade da Famlia

    SSCR Sade Sistema da Central de Regulao

    SSMC Sade Sistema de Marcao de Consultas

    SUS Sistema nico de Sade

    USF Unidade de Sade da Famlia

  • SUMRIO

    1 RELATO DA IMPLICAO DE UMA MILITANTE 13 2 JUSTIFICATIVA 16 3 PERGUNTA CONDUTORA 19 4 OBJETIVO 20 4.1 Objetivo Geral 20 4.2 Objetivos Especficos 20 5 REFERENCIAL TERICO 21 5.1 Necessidades de sade 21 5.2 Demanda e oferta em sade 24 5.3 Sobre o SUS e os modelos tecnoassistenciais 26 5.4 Redes, linhas de cuidado ou emaranhado de caminhos? O

    desafio da integralidade 28 5.5 Estratgia de Sade da Famlia na composio de linhas e redes 30 5.6 O trabalho em sade 32 6 TRAJETRIA METODOLGICA 37 6.1 Delineando o tipo de estudo 37 6.2 Perodo de Estudo 40 6.3 Populao de Estudo 40 6.4 Coleta e Anlise dos Dados 40 6.5 Consideraes ticas 49 7 DESCRIO E ANLISE DOS RESULTADOS 50 7.1 Algumas caractersticas da rea de estudo 50 7.2 Sobre a oferta de cardiologia 51 7.3 Utilizao da oferta de cardiologia 52 7.4 Perfil da demanda referenciada para assistncia cardiolgica 53 7.5 Demanda Reprimida 55 7.6 Preenchimento das Fichas de Encaminhamento ao Especialista 56 7.7 O Fluxograma Descritor do processo de trabalho da ESF 57 7.7.1 Breve descrio dos Fluxogramas 60 7.7.2 Anlise dos Fluxogramas 61 8 DISCUSSO DOS RESULTADOS 74 8.1 Perfil da demanda 74 8.2 Demanda reprimida 74 8.3 Preenchimento da justificativa do encaminhamento ao

    especialista 75 8.4 O acesso na ateno bsica: porta estreita e sem acolhimento 76 8.5 Ausncia de preveno e centralidade na assistncia mdica e

    individual 77 8.6 A (des)continuidade do cuidado e a fragmentao das redes 80

  • 8.7 Demanda: nesse rio desgua muitas guas! 83 8.8 Sugestes para mudana 84 8.8.1 A Educao Permanente na composio do processo de trabalho

    das Equipes de Sade da Famlia 84 8.8.2 A potncia da interdisciplinaridade no cuidado a sade 85 9 CONSIDERAES FINAIS 88 REFERNCIAS 91 Apndice A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido 102 Apndice B - Roteiro do Grupo Focal 103 Anexo A - Parecer do Comit de tica em Pesquisa do CPqAM 104 Anexo B - Carta de anuncia institucional 105

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    1 RELATO DA IMPLICAO DE UMA MILITANTE

    A situao do sujeito implicado com a ao protagnica est comprometida, antes de tudo com a ao, a construo intencional que d sentido para o agir em determinados campos da atividade humana. A mobilizao para conhecer vem de certos incmodos que a ao protagnica pode gerar como acontecimento, mobilizando que as vrias dimenses do sujeito interajam para conduzir a um saber militante, igualmente vlido e legtimo, permitindo- lhe compreender mais sobre a situao e a ao, para continuar agindo (MERHY, 2004, p. 42-43).

    Conclui minha graduao em fisioterapia no ano de 2004, aps uma rica

    vivncia no movimento estudantil, onde aprendi a militar por uma verdadeira

    Reforma Sanitria. No incio de 2005 ingressei no Programa de Residncia

    Multiprofissional em Sade Coletiva do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhes e

    pude ento vivenciar, no cotidiano dos servios e da gesto, o desafio que

    construir um sistema de sade que seja mais acessvel, integral e humanizado e o

    quanto de desejo, fora, sonho e lutas esse caminho de construo requer.

    Foi a partir de minha insero prtica no contexto da gesto de sistemas

    municipais de sade que foram surgindo perguntas do tipo: como planejar a

    assistncia sade de forma mais coerente com as necessidades de sade da

    populao? A princpio, pareciam fceis de serem respondidas, mas com o tempo

    percebi que iriam demandar muita ateno e investigao. E esse caminho tem sido

    construdo com algumas leituras, reflexes e muitas inquietaes. E conforme

    Minayo (2000) a relao dialtica entre teoria e realidade emprica se expressa no

    fato de que a realidade informa teoria que por sua vez a antecede, permite

    perceb-la, formul-la, dar conta dela, fazendo-a distinta.

    No meu ltimo estgio da residncia pude vivenciar o incio da construo da

    Poltica de Regulao Municipal do Recife. Quando conclui a residncia fui

    contratada pela Diretoria Geral de Regulao do Sistema para compor a equipe da

    Gerncia de Fluxos Assistenciais. Dentre as atribuies dessa gerncia estava o

    estudo das necessidades e demandas por assistncia especializada, a distribuio

    da oferta especializada do municpio e o planejamento dos fluxos assistenciais

    intramunicipais.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 14

    Um dos aspectos que mais me inquietava no exerccio dessa funo era a

    forma como o estudo de necessidades e o planejamento da oferta assistencial eram

    realizados. Atravs do uso de instrumentos normativos (portarias ministeriais) onde

    constavam parmetros (nacionais) para estimar a necessidade assistencial de uma

    dada populao.

    Uma desses instrumentos a Portaria do Gabinete do Ministro da Sade

    (GM/MS) N 1.101/02 que estabelece parmetros para consultas, exames e

    internaes de vrias especialidades e cuja base de clculo a populao residente

    em um dado territrio (BRASIL, 2002). Um aspecto fundamental na constituio

    desses parmetros que eles foram elaborados com base em sries histricas de

    produo de procedimentos (consultas, exames e internaes), ou seja, com base

    no faturamento de servios assistenciais prestados, fato que pode estar muito

    distante da necessidade real (BRASIL, 2002).

    No dia-a-dia da gerncia de fluxos assistenciais, percebamos o quanto os

    parmetros da portaria GM/MS N 1.101/02 destoavam da realidade da populao e,

    ao longo de trs anos, exercendo essa funo tentamos construir outros

    instrumentos e/ou estratgias para estimar a necessidade assistencial da populao

    do Recife e, dessa forma, planejar uma oferta que colaborasse para ampliar o

    acesso assistncia especializada.

    Em concordncia com Minayo (2000), nada pode ser intelectualmente um

    problema se no tiver sido, em primeira instncia, um problema da vida prtica. Isto

    quer dizer que a escolha de um tema no emerge espontaneamente, da mesma

    forma que o conhecimento no espontneo e cultivando vrias inquietaes que

    busquei no Programa de Mestrado Profissional em Sade Coletiva, um espao

    propcio para estudarmos e propormos a construo de uma metodologia para

    definio de parmetros assistenciais.

    Depois que ingressei no mestrado e aprofundei alguns estudos, percebi que a

    proposio de novos parmetros requereria mais tempo do que eu dispunha no

    mestrado. Alm disso, o aprofundamento do estudo sobre o comportamento das

    demandas e das necessidades seria de grande relevncia para a organizao de

    redes assistenciais mais acessveis e integrais.

    Sabe-se que o modelo assistencial predominante no Brasil caracterizado

    por uma prtica clnica centrada nos aspectos biolgicos e fortemente consumidora

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 15

    de insumos do complexo mdico industrial que mantm a acumulao de capital

    no setor da sade, atravs do altssimo consumo de mquinas, instrumentos e

    medicamentos, usados como os principais recursos de diagnose e terapia

    (FRANCO, 2003). Esse modo de produo do cuidado em sade favorece tanto a

    gerao de demanda para especialistas, quanto alto consumo de exames

    complementares.

    Outro aspecto importante e que impacta diretamente a demanda por

    assistncia especializada o nvel de resolutividade da rede bsica. Entretanto, a

    capacidade resolutiva da ateno bsica no Brasil no est ligada apenas ao

    recurso instrumental e conhecimento tcnico dos profissionais, mas tambm a ao

    acolhedora, ao vnculo que se estabelece com o paciente e ao nvel de articulao

    da rede bsica com os demais nveis do sistema de sade, garantindo assim a

    integralidade da assistncia (FRANCO, 2003).

    Considerando que os servios de sade induzem demanda e que um dos

    fatores que influenciam na gerao de demanda o modo como os trabalhadores

    operam o cuidado sade, optei por pesquisar sobre a micropoltica do processo de

    trabalho na rede bsica de sade e sua influencia na gerao de demanda por

    assistncia especializada de cardiologia na cidade do Recife. Pois assim,

    acreditamos que seria possvel identificar fatores e realidades que operam no dia-a-

    dia dos servios e do cuidado sade da populao que impactam diretamente na

    percepo de necessidades e na demanda para esses servios especializados.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 16

    2 JUSTIFICATIVA

    O acesso aos servios de sade no nvel da ateno especializada um

    ponto importante de estrangulamento da gesto da sade no municpio de Recife.

    H uma grande demanda por recursos assistenciais, num contexto de oferta

    insuficiente e, muitas vezes, utilizada de forma irracional o que tem resultado em

    longas filas de espera para alguns procedimentos, causando o atraso no diagnstico

    e tratamento dos pacientes.

    O municpio de Recife a capital do estado de Pernambuco, conta com

    1.561.663 habitantes (IBGE, 2009) distribudos em 94 bairros agrupados em 6

    distritos sanitrios. Com um total de 54% da populao coberta por PSF, a rede

    bsica municipal de sade composta por 113 Unidades de Sade da Famlia

    (USF), com 240 Equipes de Sade da Famlia (ESF) e 27 unidades tradicionais que

    esto articuladas a 85 servios especializados como Policlnicas, Clinicas de

    Exames e Diagnsticos, Centros Especializados, Centros de Ateno Psicossocial,

    Clinicas de Reabilitao, Maternidades e Hospitais Gerais.

    A Secretaria de Sade do Recife tem implementado diversas aes com o

    objetivo de reestruturar o seu modelo de ateno, propondo organizar a porta de

    entrada do sistema de sade, atravs da expanso da Estratgia de Sade da

    Famlia e ampliao da oferta de servios de mdia complexidade. O municpio

    possui ainda, uma poltica municipal de regulao da assistncia a sade, cujos

    objetivos principais so a reestruturao de fluxos assistenciais de referncia e

    contra-referncia da ateno bsica para a mdia e alta complexidade e a regulao

    do acesso aos servios municipais de sade.

    Apesar dos esforos empreendidos para superar as iniqidades no acesso

    aos servios de sade e visando garantir a integralidade da assistncia, esse

    municpio ainda encontra problemas como demanda reprimida na assistncia

    especializada, refletindo na longa fila de espera dos usurios para acessar alguns

    servios especializados (em algumas especialidades o usurio pode esperar at 1

    ano para conseguir o atendimento), e a dificuldade de articulao em rede das

    unidades de ateno bsica e as unidades de mdia complexidade, comprometendo

    assim a resolutividade do sistema de sade.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 17

    Alm disso, possvel observar algumas contradies no comportamento da

    demanda e da oferta assistencial em Recife, uma vez que possvel encontrar no

    mesmo territrio unidades de sade que possuem elevada demanda reprimida para

    determinadas especialidades mdicas e, ainda assim, apresentam elevado

    percentual de absentesmo dos pacientes que so agendados para essa mesma

    assistncia especializada.

    Embora, muitas hipteses sejam levantadas pela equipe da Diretoria Geral de

    Regulao do Sistema (DGRS) para explicar esse elevado absentesmo, tais como:

    dificuldades de comunicao entre as unidades de sade e os pacientes e a falta de

    recursos financeiros dos pacientes para pagar o transporte, tambm interrogamos se

    no estaria havendo encaminhamentos desnecessrios para assistncia

    especializada, de tal forma que o paciente, mesmo tendo uma consulta e/ou

    procedimento agendado, no sinta necessidade de consumir determinado servio.

    Nesse caso, talvez existam aspectos dos processos de trabalho dos profissionais

    das unidades bsicas que dificultem a identificao da necessidade da populao

    para utilizar servios de sade e, dessa forma, colaboram para aumentar as falhas

    nos encaminhamentos para assistncia especializada.

    Sendo assim, estudos sobre a organizao dos processos de trabalho

    desenvolvidos nas unidades bsicas podem ajudar a identificar aspectos que

    impactam diretamente no perfil de demanda para os outros nveis assistenciais,

    gerando assim subsdios para o planejamento de aes que favoream a construo

    da integralidade no Sistema nico de Sade (SUS).

    Considerando que a Hipertenso Arterial Sistmica (HAS) uma das causas

    bsicas da principal causa de bito no Brasil que so as doenas cardiovasculares;

    um dos grupos populacionais prioritrios no mbito da Ateno Bsica so as

    pessoas que vivem com hipertenso e que a especialidade de cardiologia uma

    rea de grande relevncia para integralidade do cuidado dessas pessoas que

    optamos em estudar o processo de trabalho das equipes de sade da famlia no

    cuidado com uma pessoa que vive com HAS e analisar o modo como esse trabalho

    influencia na demanda por ateno especializada de cardiologia.

    Vale salientar que, nesse estudo, no objetivamos avaliar a qualidade da

    ateno bsica e nem das aes programticas para o controle da HAS. Apenas,

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 18

    utilizaremos essa morbidade como condio traadora para analisar o processo de

    trabalho das equipes de sade da famlia.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 19

    3 PERGUNTA CONDUTORA

    Como os aspectos do processo de trabalho das Equipes de Sade da Famlia

    tm influenciado nos encaminhamentos gerados para a assistncia especializada

    em cardiologia na micro-regio 6.3 do Recife?

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 20

    4 OBJETIVO

    4.1 Objetivo Geral

    Analisar o processo de trabalho das Equipes de Sade da Famlia e a sua

    relao com a gerao de demanda por assistncia especializada em cardiologia na

    rede bsica da microrregio (MR) 6.3 do Distrito Sanitrio 6 do Recife.

    4.2 Objetivos Especficos

    a) Descrever o perfil da demanda por assistncia especializada em cardiologia

    na rede bsica de sade da microrregio 6.3 do Distrito Sanitrio 6 do Recife;

    b) Analisar o processo de trabalho das Equipes de Sade da Famlia da

    microrregio 6.3 do Distrito Sanitrio 6 do Recife;

    c) Identificar aspectos do processo de trabalho em sade das Equipes de Sade

    da Famlia que influenciam no perfil de encaminhamento para assistncia

    especializada em cardiologia.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 21

    5 REFERENCIAL TERICO

    Realizaremos uma breve reviso bibliogrfica sobre necessidades de sade,

    demanda e oferta, processo de trabalho e modelos tecno-assistenciais com vistas a

    apresentar alguns elementos tericos importantes para a construo dessa

    dissertao.

    5.1 Necessidades de sade

    As necessidades sociais, que tambm englobam as necessidades de sade,

    referem-se a um dado conjunto de carncias de pessoas que pertencem a diversas

    classes sociais e, por isso, essas necessidades existem e se expressam de formas

    desiguais, pois desiguais so os acessos aos produtos que satisfazem essas

    necessidades (CAMPOS; BAIATERO, 2007).

    Segundo Stotz (1991), as necessidades de sade so percebidas e

    expressas, por indivduos, enquanto dificuldades e busca de possibilidades para a

    reproduo da vida e esses aspectos no existem separadamente dos processos

    sociais nos quais esses indivduos esto imersos. O referido autor, afirma, ainda,

    que das mediaes sociais que influenciam a reproduo dos processos vitais dos

    indivduos, a mais relevante, para superar as dificuldades impostas a essa

    reproduo, seria o modo de organizao poltica da sociedade. Alm disso, os

    modos de ordenamento poltico de uma dada sociedade implicam diversos modelos

    de proteo sade e s condies de vida dos indivduos que socialmente so

    desiguais.

    Assim, os diversos nveis de sade e adoecimento que se concretizam de

    forma biolgica e psquica nos indivduos tm origem nas condies materiais da

    vida cotidiana, nos perfis de reproduo social em que se desenvolvem como seres

    sociais (CAMPOS; BAIATERO, 2007). Nesse sentido, para satisfazer as

    necessidades de sade seria necessrio tomar como finalidade do trabalho em

    sade as carncias dos indivduos das diferentes classes sociais, num dado

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 22

    territrio, e construir a poltica de sade na perspectiva do direito universal

    (CAMPOS, 2004).

    importante ressaltar que o termo necessidade de sade opondo-se ao

    conceito de demanda foi utilizado por alguns autores ante a constatao das falhas

    de mercado e da complexidade das relaes entre produtor e consumidor no

    campo da sade para, assim, aproximar-se de um conceito mais coerente, do ponto

    de vista cientfico e tico, para planejar o quanto se deve produzir de aes e

    servios de sade para atender determinada populao (CASTRO, 2002).

    A partir do estudo de Stotz (1991), Ceclio (2001), Ceclio e Matsumoto (2006)

    propuseram uma taxonomia das necessidades de sade integralizadora da viso

    dos sujeitos individuais e coletivos, organizada em quatro grandes conjuntos: o

    primeiro conjunto diz respeito necessidade de boas condies de vida; o segundo

    se refere necessidade de acesso a todas as tecnologias de ateno sade que

    melhorem e prolonguem a vida; o terceiro diz respeito necessidade de ter vnculo

    com um profissional ou uma equipe de sade; e o ltimo conjunto se refere

    necessidade de autonomia na construo do seu modo de andar a vida.

    Considerando essa taxonomia, tomaremos como definio de necessidades de

    sade, neste estudo, o conjunto de necessidades referentes ao acesso universal e

    integral aos servios de sade. Considerando que essa dimenso de necessidades

    constitui-se como um dos determinantes da condio de sade da populao,

    conforme definio de sade dada pela Constituio Brasileira (BRASIL, 1988).

    Campos e Baiatero (2007) realizaram uma pesquisa bibliogrfica sobre

    estudos que abordavam o tema necessidades de sade e identificaram que, 62%

    dos artigos encontrados referiam-se a necessidades de sade enquanto sinnimo de

    necessidades de cuidado de doenas ou etapas especficas de um determinado

    ciclo vital, como por exemplo, a fase reprodutiva. Conhecendo a relao existente

    entre necessidades e processos de trabalho, os referidos autores afirmam que os

    resultados encontrados indicam que as aes em sade reiteram que necessidades

    de sade so respondidas com o consumo de um procedimento de sade

    majoritariamente, a consulta mdica.

    Sabe-se que, ao longo do sculo XX, ocorreram descobertas importantes

    para o campo da assistncia a sade, tais como: a descoberta da microbiologia que

    possibilitou a compreenso do mecanismo de transmisso de muitas doenas e o

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 23

    desenvolvimento de vrias vacinas; a criao dos quimioterpicos e dos antibiticos

    que desencadearam intervenes no combate s doenas, fortalecendo o papel da

    indstria farmacutica no campo das intervenes teraputicas; e o desenvolvimento

    do setor industrial de equipamentos e materiais mdicos, a maioria, voltados para o

    diagnstico das doenas (MATOS, 2005).

    O desenvolvimento de todas essas tecnologias, se por um lado representa um

    avano cientfico para ampliar as possibilidades de preveno e cura de doenas,

    tambm colaborou para que muitos agentes econmicos, pertencentes ao dito

    complexo mdico-industrial buscassem ampliar seus lucros financeiros atravs da

    induo da utilizao dessas tecnologias, para alm das situaes nas quais,

    segundo evidncias cientficas disponveis, seu uso estaria indicado (MATOS,

    2005). Esse autor ressalta, ainda, a importncia dos estudos cientficos,

    principalmente, dos estudos epidemiolgicos, para avaliar e/ou validar a indicao

    dessas tecnologias em situaes especficas, seja para o diagnstico ou para o

    tratamento.

    Nesse contexto, as necessidades de sade esto freqentemente associadas

    assistncia, expressa na demanda e na oferta de aes nos servios de sade

    (SCHRAIBER; MENDES GONALVES, 1996). O paciente procura nos servios de

    sade uma ao/interveno que diminua o sofrimento causado por uma doena.

    Assim, os processos de trabalho so estruturados para dar resposta necessidade

    que levou o paciente ao servio, e valendo-se dessa resposta, reitera-se ao usurio

    o que ele precisar consumir em situao semelhante, bem como onde buscar

    (CAMPOS; BATAIERO, 2007).

    Dessa forma, a organizao das aes de sade para a produo e

    distribuio efetiva dos servios, ser no apenas resposta a necessidades, mas,

    imediatamente, contexto instaurador de necessidades, ou seja, gerador de

    demandas assistenciais (SCHRAIBER; MENDES GONALVES, 1996).

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 24

    5.2 Demanda e oferta em sade

    Estudar a oferta, ou seja, o quanto deve ser produzido e a procura

    (demanda) por determinado servio e/ou produto, estimando o nmero de possveis

    consumidores, tem especial relevncia para o planejamento oramentrio e

    produtivo de qualquer organizao, inclusive dos servios de sade (FELICISSIMO;

    DUARTE, 2004).

    A busca por assistncia sade tem sido, no Brasil, empreendida

    predominantemente por indivduos, tanto porque esse movimento resulta de uma

    determinao subjetiva, quanto pela forte cultura de valorizao da demanda

    espontnea. Esta tem sido politicamente instituda por vrios sistemas de sade

    para viabilizar a prestao da assistncia como uma ao caridosa, ou como um

    bem acessvel aos que tm algum mrito por estar contribuindo com o acmulo de

    capital, ou ainda como um artigo de mercado (MERHY; CECLIO; NOGUEIRA

    FILHO, 1991; MERHY, 1997; MENDES, 1995).

    Esses sentidos de organizao tecnoassistencial so orientados por um certo

    corpo de conhecimento que se fundamenta na primazia do econmico frente ao

    desejo e ao direito de recuperao, proteo e promoo da sade. Isso significa

    que os conhecimentos instruem a execuo do trabalho e a organizao das aes

    e servios de sade para atender parcialmente ao desejo de quem busca

    (demanda), e plenamente o interesse de quem presta assistncia (MERHY;

    CECLIO; NOGUEIRA FILHO, 1991; MERHY, 1997; MENDES, 1995).

    A demanda pode ser conceituada como a busca do usurio/cliente por

    determinados bens ou servios e resultante da relao entre a necessidade, a

    oferta e o consumo desse bem ou servio (FELICISSIMO; DUARTE, 2004).

    No campo da micro-economia, a Teoria da Oferta e da Demanda preconiza a

    estratgia de livre competio para regulao do mercado de produo de bens e

    servios (CASTRO, 2002). No entanto, no campo da sade, no podemos fazer a

    aplicao direta dos conceitos dessa teoria para organizar o processo de produo e

    consumo das aes de sade, por causa das clssicas falhas de mercado

    identificadas no setor sade.

    O risco moral, por exemplo, uma das falhas de mercado que est

    relacionado tendncia de aumentos excessivos no consumo (demanda) de bens e

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 25

    servios de sade e justificam a necessidade de maior interveno estatal na poltica

    de sade. Esse aumento excessivo de demanda ocorre quando consumidores e

    produtores no so responsveis diretos pelo pagamento das aes e

    procedimentos consumidos (CASTRO, 2002).

    Dessa forma, possvel perceber a influncia da oferta na gerao de

    demanda, j que o profissional de sade, especialmente o mdico, atua do lado da

    oferta, prestando o servio, e do lado da demanda, como agente do paciente,

    dizendo o que o mesmo precisa consumir, pois o paciente, geralmente, no dispe

    de informaes suficientes para discernir o que precisa para melhorar sua condio

    de sade (CASTRO, 2002).

    A Lei de Roemer enuncia que a oferta de servios de assistncia a sade ,

    por si s, geradora de sua prpria demanda. Tese, fortemente sustentada por

    constataes empricas de que a ausncia de demanda por determinado servio

    e/ou procedimento ocorre, muitas vezes, pela inexistncia de equipamentos,

    profissionais qualificados e servios estruturados para prestao de tal assistncia

    (FELICISSIMO; DUARTE, 2004).

    Alm desses aspectos, sabe-se que a incorporao tecnolgica nos

    processos de trabalho dos profissionais de sade, especialmente, no campo do

    diagnstico, a ao da mdia e os padres culturais de uma dada sociedade tambm

    podem influenciar no perfil de demanda por servios de sade (CAMARGO JNIOR,

    2005).

    A assimetria de informaes quanto ao processo de sade e adoecimento,

    torna o paciente dependente da prescrio mdica para estabelecer que aes e/ou

    procedimentos so necessrios para sua cura. As conseqncias dessa forma de

    organizao das aes assistenciais sobre a populao so diversas, pois o usurio

    do servio de sade, geralmente, no possui informaes suficientes para discernir

    sobre a real necessidade de um dado procedimento que lhe foi indicado pelo

    profissional de sade. As solicitaes de procedimentos diagnsticos ou de

    medicamentos, por exemplo, geralmente, so consideradas por ele como

    necessrias (MATTOS, 2005).

    O foco da ateno a sade com base no procedimento induziu a formao de

    opinio da populao de que essa a forma mais adequada para cuidar da sade.

    Essa realidade influencia o modo como os profissionais e usurios percebem o

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 26

    servio de sade, criando por assim dizer, processos de subjetivao que produzem

    uma dada forma de ver e se relacionar como mundo da sade (FRANCO; MERHY,

    2005).

    E, desta forma, v-se aumentar no cotidiano dos servios de sade situaes

    de conflito entre usurios e profissionais de sade, quando esses divergem no

    tocante a necessidade de encaminhamento para outros servios assistenciais. ,

    nesse momento, que entra em conflito a construo imaginria da demanda por

    parte da populao e a percepo de necessidade tecnicamente orientada pelo

    profissional, a partir de uma escuta qualificada e responsabilizao por seu problema

    de sade (FRANCO; MERHY, 2005).

    possvel observar no modelo assistencial ainda predominante no nosso

    pas, que os servios so constitudos no em funo de necessidades de sade, e

    sim a partir da existncia de uma demanda potencial. Alm disso, esse modelo

    assistencial caracteriza-se por uma organizao do trabalho em sade, cuja nfase,

    est nos aspectos biolgicos e na cultura consumidora de procedimentos do

    complexo mdico industrial, contribuindo assim, para o aumento da demanda para

    especialistas e o alto consumo de exames complementares (FRANCO, 2003).

    5.3 Sobre o SUS e os modelos tecnoassistenciais

    Desde a dcada de 80, tm-se empreendido muitos esforos tcnicos,

    ideolgicos e polticos, de dentro e de fora do mbito do governo, para construir um

    sistema de sade integral, universal e equnime como direito de cidadania e dever

    do Estado, que se denominou de Movimento da Reforma Sanitria.

    A Reforma Sanitria um projeto de resistncia criado no mago das lutas

    sociais da dcada de setenta do sculo passado, quando o autoritarismo poltico

    ainda se fazia exercer. Consideramos que a primeira vitria poltica desse projeto

    aconteceu na VIII Conferncia Nacional de Sade (VIII CNS) realizada em 1986,

    quando essa instncia de participao social, com forte presena popular, deliberou

    favoravelmente pelas propostas de construo do sistema de sade universal A

    segunda vitria consistiu na incluso de vrias propostas do relatrio final da VIII

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 27

    CNS na Lei Magna promulgada em outubro de 1988. E a terceira vitoria foi quando o

    SUS foi regulamentado em lei (BRASIL, 1988, 1990).

    O principal propsito da Reforma Sanitria concretizar no Brasil a sua

    concepo de sade, o direito de cidadania, que implica em criar condies de

    acesso universal e equnime s aes de promoo, proteo e recuperao da

    sade, organizadas em uma rede de servios de diferentes nveis de complexidade

    e densidade tecnolgica que passa a se chamar Sistema nico de Sade (BRASIL,

    1988).

    Esse intento, ainda que avanado no aporte jurdico tem sido lentamente

    conquistado no cotidiano. Em alguns municpios e estados brasileiros, existe

    movimentos no intuito de criar novos modelos assistenciais que favoream a

    consolidao dos princpios e diretrizes do SUS, como foram os casos do

    saudicidade em Curitiba, em defesa da vida em Campinas e Silos-Bahia (SILVA

    JNIOR, 1998).

    Alguns autores conceituam modelos assistenciais como um modo de

    organizar aes e servios para interveno no processo sade-doena, articulando

    recursos fsicos, tecnolgicos e humanos, para enfrentar e resolver os problemas de

    sade em uma coletividade (PAIM, 1999). Nesse estudo, preferimos adotar a

    definio de Merhy, Ceclio e Nogueira Filho (1991), onde os modelos

    tecnoassistenciais constituem-se da produo de servios a partir da articulao de

    saberes e tecnologias que, baseados em projetos polticos, fazem a disputa pelo

    modo de organizar a assistncia a sade.

    Diversos autores tm estudado o esgotamento do modo de se produzir sade

    segundo as diretrizes biologicistas do ensino mdico e os interesses liberais do

    mercado (CAMPOS, 1992; CECLIO, 1994). Nesse modelo, chamado por erhy

    (1998) de mdico produtor de procedimentos ou modelo mdico hegemnico, a

    assistncia sade basicamente voltada para o ato individual prescritivo que gera

    procedimentos, no sendo consideradas as determinaes do processo sade-

    doena nas dimenses sociais, ambientais e relacionadas s subjetividades,

    valorizando apenas as questes biolgicas. Dessa forma, segundo Malta et al.

    (2004), o modelo tecno-assistencial ainda predominante no mbito do SUS

    caracteriza-se pela produo de atos desconexos sem uma interveno articulada e

    cuidadora, reduzindo, assim, a eficcia da assistncia prestada.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 28

    5.4 Redes, linhas de cuidado ou emaranhado de caminhos? O desafio da integralidade

    No intuito de garantir o acesso integral assistncia sade, uma das

    estratgias mais discutidas, atualmente, a organizao de redes assistenciais.

    Tomando a regionalizao como princpio, foram desenvolvidos no Brasil conceitos

    como nveis de complexidade da ateno, referncia e contrarreferncia, populao

    referenciada, dentre outros, que servem para orientar a discusso dos processos

    integrados de gesto na construo do atendimento em sade com resolubilidade

    em unidades de diferentes perfis assistenciais e organizadas hierarquicamente

    (JESUS; ASSIS, 2010).

    Os conceitos de referncia e contrarreferncia assumem relevncia especial

    no planejamento dos fluxos assistenciais que o usurio pode percorrer e,

    conseqentemente, na construo das redes de ateno a sade. Segundo Maeda

    (2002), referncia representa o maior grau de complexidade tecnolgica, para onde

    o usurio encaminhado para um atendimento com profissionais especialistas, por

    exemplo, hospitais e clnicas especializadas. E a contrarreferncia a informao

    para o menor grau de complexidade tecnolgica, quando a necessidade do usurio,

    em relao aos servios de sade, pode ser atendida em nvel mais primrio de

    ateno, devendo ser este a unidade de sade mais prxima de seu domicilio

    (MAEDA, 2002).

    Entendendo que redes assistenciais um conceito que se refere a um

    conjunto de unidades de diferentes perfis e funes, organizadas de forma

    articulada, responsveis pela proviso integral dos servios de sade, numa dada

    regio, pressupe-se que seja pertinente o estabelecimento de mecanismos

    comunicacionais que assegurem a referncia e contrarreferncia entre as unidades

    que compe essa rede de servios (KUSHNIR, 2006).

    No debate atual sobre o princpio da integralidade, entendida tambm como o

    acesso a todos os recursos assistenciais que o usurio necessita, tem-se reafirmado

    que a construo das redes pode proporcionar ao usurio a garantia de um caminho

    ininterrupto de cuidado a sua sade, configurando assim as linhas de cuidado, ou

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 29

    seja, um conjunto de atos assistenciais pensados para resolver determinado

    problema de sade do usurio (FRANCO, 2003a).

    A construo de linha do cuidado parte do princpio da produo da sade de

    forma sistmica, a partir de redes macro e micro institucionais, em processos

    dinmicos, s quais est associada a imagem de uma linha de produo voltada ao

    fluxo de assistncia ao usurio e focada em seu campo de necessidades. Essa linha

    inicia-se na entrada do usurio, seja em servios de urgncia, ateno bsica ou

    especializada e, partir da, abre-se um caminho que se estende conforme as

    necessidades do usurio por servios de apoio diagnstico e teraputico,

    especialidades, ateno hospitalar e outros (MERHY, CECLIO, 2003).

    Nas linhas de cuidado, a rede organizada para o cuidado progressivo ao

    usurio, numa dimenso cuidadora horizontal como a defendida no modelo do

    crculo, apresentado por Ceclio (1997). Esse autor, ao discorrer sobre os modelos

    tecnoassistenciais em sade no tocante aos fluxos dos usurios, apresenta o

    modelo do crculo como estratgia para qualificar as portas de entrada, a fim de que

    se possa alcanar espaos privilegiados de acolhimento, vnculo e responsabilizao

    no cuidado com a sade, individual e coletiva.

    Outros autores como Ceccim e Ferla (2006, p.167) tambm defendem a

    lgica de linha de cuidado na organizao de redes de sade, em substituio ao

    modelo piramidal:

    Em lugar da tradicional pirmide de porta de entrada nica e mobilidade padronizada, atada num trnsito somente formal e tcnico-racionalista (servio-centrados; profissional-centrados), uma malha de cuidados ininterruptos, organizados de forma progressiva. [...] por entre ligas e conexes, correm as linhas de cuidado que devem assegurar a satisfao das demandas dos usurios. assim que devem organizar-se os fluxos e mecanismos de acesso que ampliam o universo e a natureza das unidades de produo da sade em sua condio de conectadas em rede para o cuidado.

    Nesse sentido, a constituio de linhas de cuidado precisa tambm de um

    redirecionamento permanente do processo de trabalho, onde a interdisciplinaridade

    assume relevncia para auxiliar na ampliao das compreenses e interpretaes

    sobre o processo de vida e adoecimento de uma dada populao, pois no uma

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 30

    patologia ou um evento biolgico o que flui por uma linha de cuidado, mas uma

    pessoa (CECCIM; FERLA, 2006).

    A partir do termo "linha de cuidado", pode-se inferir que a compreenso de

    integralidade relacionada organizao dos servios de sade aquela em que o

    caminho a ser percorrido por um usurio, desde a unidade bsica e passando por

    diferentes servios, ocorre de tal sorte que, ao seu final, completa-se o leque de

    cuidados necessrios ao seu problema de sade. Assim, de acordo com Magalhes

    Jnior e Oliveira (2006),

    a linha de cuidado como ferramenta auxiliadora na organizao dos servios vem sendo tomada como abordagem mais adequada nas prticas assistenciais, na medida em que permite simular todas as situaes decorrentes do problema de sade inicial, de modo a desenvolver aes gerenciais que possam prover as necessidades dos usurios.

    Contudo, pode-se dizer que, embora a expresso linha de cuidado seja

    considerada por alguns autores como um modelo ideal de organizao assistencial

    com vistas integralidade, ainda necessrio a realizao de estudos avaliativos

    que comprovem o impacto desse arranjo organizacional na qualidade da ateno a

    sade da populao.

    5.5 A Estratgia de Sade da Famlia na composio de linhas e redes

    Segundo Starfield (2002), os servios de primeiro contato, tambm chamados

    de porta de entrada, configuram o nvel assistencial da ateno bsica e devem ser

    de fcil acesso, pois esse aspecto essencial em modelos organizados por nvel de

    ateno (hierarquizados), como o caso do Brasil. Essa autora, afirma ainda, que se

    esses servios de sade no estiverem habilitados para manejar e diagnosticar

    adequadamente os problemas, a ateno necessria adiada.

    Para o Ministrio da Sade (BRASIL, 2001), a ateno Bsica compreende

    um conjunto de aes, de carter individual e coletivo, situadas no primeiro nvel de

    ateno dos sistemas de sade, voltadas para a promoo da sade, preveno de

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 31

    agravos, tratamento e reabilitao. No Brasil, desde a dcada de 90, o governo

    federal tem institudo como poltica de ateno bsica o Programa de Agentes

    Comunitrios de Sade (PACS), criado em 1991, e o Programa da Sade da Famlia

    (PSF), criado em 1994 (VIANA; DAL POZ, 2005). Inserida no primeiro nvel de aes e servios do sistema de sade, a

    Unidade de Sade da Famlia est vinculada a uma rede de servios que,

    hierarquizada, deve garantir assistncia integral aos indivduos e seus familiares,

    referenciando aos nveis especializados quando as situaes ou problemas

    identificados requerem resoluo fora do mbito da ateno bsica (BRASIL, 2001).

    De acordo com o Ministrio da Sade (BRASIL, 2000), a Equipe de Sade da

    Famlia deve ser composta por profissionais capazes de resolver os problemas de

    sade mais comuns e de manejar novos saberes, que promovam a sade e

    previnam doenas em geral. Alm disso, o Ministrio da Sade entende que o

    fortalecimento da ateno bsica se d com a ampliao do acesso e a qualificao

    e reorientao das prticas de sade embasadas na promoo da Sade. Por isso,

    estabeleceu-se que apenas 15% dos casos devem ser encaminhados para servios

    mais especializados, e que nesses casos, a ESF responsvel pela coordenao

    do cuidado, ou seja, ela responsvel pelo referenciamento do usurio quando

    necessrio, articulando outros servios, discutindo os casos e recebendo a contra-

    referncia para continuar os cuidados bsicos (BRASIL, 2001).

    Ceclio (1997) aponta como vantagens da Sade da Famlia a idia de

    expanso da cobertura e democratizao do acesso; a criao de uma porta de

    entrada composta por uma ampla rede de servios de ateno bsica; a

    hierarquizao como forma de racionalizao no uso dos recursos, garantindo o

    acesso para o usurio a todas as tecnologias que forem necessrias e, por fim, a

    proximidade do servio de sade da residncia do usurio, como elemento facilitador

    do acesso e do vnculo.

    Mas, nesse mesmo estudo o autor aponta que a Estratgia de Sade da

    Famlia ainda no conseguiu se concretizar como um servio de primeiro contato

    resolutivo e de qualidade. Ele, considera ainda, que o acesso aos servios

    especializados, organizados hierarquicamente, continua sendo muito difcil, apesar

    dos diversos mecanismos implantados de referncia a partir da ateno bsica

    (CECLIO, 1997).

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 32

    Neste sentido, ao considerar as mltiplas estratgias que os usurios utilizam

    para acessar os servios de que necessitam, Ceclio (1997) props o

    arredondamento da pirmide, como arranjo para organizar as redes de ateno,

    como j citamos anteriormente. Nesse tipo de modelagem, os servios integrantes

    da rede bsica de sade teriam a misso de

    [...] reconhecer os grupos vulnerveis de sua rea de atuao e a responsabilidade de garantir atendimento adequado a todas as pessoas, principalmente quelas com maior risco de adoecimento e morte. Para tanto, suas principais atividades devem ser: delimitar e conhecer profundamente seu territrio; prestar atendimento direto s pessoas componentes dos grupos mais vulnerveis; e funcionar como articulador competente do acesso destas pessoas a recursos de tecnologia mais complexa, em outros pontos do sistema (CECLIO, 1997).

    Alm do debate sobre o papel da ateno bsica na composio de redes

    integrais de ateno a sade, para muitos pesquisadores como Campos (1994),

    Franco (1999), Franco e Merhy (2005) e Ceccim e Ferla (2006) fundamental a

    reflexo sobre os processos de trabalho na prestao do cuidado sade,

    principalmente porque esses autores acreditam que a micropoltica do trabalho

    uma arena estratgica na disputa pela mudana do modelo tecnoassistencial, ainda

    predominante no SUS.

    5.6 O trabalho em sade

    A anlise do processo de trabalho tem sido objeto de muitos estudos sobre a

    mudana na lgica de produo da assistncia sade. Neste sentido, diversos

    autores implicados com este debate (MERHY, 2002; FRANCO, 2003; CAMPOS,

    2007) tomaram o trabalho em e sua dimenso micropoltica envolta na produo do

    cuidado como rea de grande relevncia no debate sobre a mudana dos modelos

    tecnoassistenciais.

    O modo de produo capitalista induziu muitas transformaes nas relaes

    de trabalho, inclusive na produo da sade. Neste sentido, o capital tem induzido

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 33

    um modo de fazer em sade a partir da compreenso de seu valor de troca, isto do

    seu potencial lucrativo de mercadoria, e tornaram o sistema como produtor de

    procedimentos, valorizando o saber mdico especializado e o uso de insumos como

    medicamentos e equipamentos de diagnstico de ponta (FRANCO, 2003).

    Os estudos de Taylor na aplicao dos princpios da gerncia cientfica, no

    incio do sculo XX, influenciaram o modo de organizao do trabalho na indstria e,

    tambm, no setor de servios (RIBEIRO; PIRES; BLANK, 2004). A realizao de

    estudos sobre o tempo de execuo das atividades, registros quantitativos do

    trabalho operacionalizado, estabelecimento de rotinas, ajustes no ambiente fsico do

    trabalho para diminuio dos tempos gastos sem produo, contriburam para

    aumentar a produtividade e ampliar a diviso do trabalho e a mecanizao da

    produo (RIBEIRO; PIRES; BLANK, 2004).

    Campos (1997) afirma que o trabalho em sade, na maioria das vezes, um

    trabalho coletivo, realizado por diversos profissionais de sade e influenciado

    pelas formulaes tayloristas, expressas no excesso de normatizao administrativa

    e padronizao tcnica, criadas com objetivo de controlar e regulamentar o conjunto

    do trabalho. O referido autor tambm aponta para a ocorrncia de dificuldades entre

    a proposta de cuidado/assistncia generalista e a baseada na especializao.

    Sabe-se que o trabalho em sade est organizado de modo altamente

    especializado que induz uma diminuio crescente da capacidade de cada

    profissional resolver problemas, resultando assim, em tratamentos cada vez mais

    longos, envolvendo inmeros especialistas, com custos crescentes, com mais

    sofrimento e restries impostas aos clientes, dificultando a compreenso integral

    do sujeito que precisa de cuidados em sade (CAMPOS, 1997).

    Assim, esse trabalho compartimentalizado, onde cada grupo profissional se

    organiza e presta parte da assistncia de sade separado dos demais, muitas vezes

    duplicando esforos e at tomando atitudes contraditrias (PIRES, 2000). Segundo

    esse autor, o trabalho em sade parte do setor de servios e encontra-se num

    patamar de produo no material, que adquire sentido de completude no ato de

    sua realizao. Dessa forma, no possui como resultado um produto material, j

    que o produto indissocivel do processo que o produz; a prpria realizao da

    atividade".

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 34

    O trabalho em sade realizado por profissionais que dominam saberes e

    prticas especiais para atender o indivduo ou grupo com problemas de sade ou

    com risco de adoecer, em atividades de cunho investigativo, preventivo, curativo ou

    com o objetivo de reabilitao (PIRES, 1999).

    No mbito institucional, o trabalho em sade pode envolver um dado elenco

    de profissionais especializados, onde a quantidade de profissionais e o perfil da

    equipe so definidos de acordo com o tipo e complexidade do servio prestado

    (MATOS; PIRES, 2006).

    O setor sade apresenta caractersticas de organizaes do tipo burocracia

    profissional, onde se observa uma complexa arena de disputas de grupos

    profissionais altamente qualificados e com grande autonomia de trabalho que no

    se submetem a estruturas hierrquicas administrativas, tais como no modelo

    taylorista-fordista (MITZBENRG, 1995).

    Na burocracia profissional, a linha de mando sofre certo deslocamento da

    autoridade hierrquica para a autoridade por competncia que se baseia no

    profissionalismo, dando ao centro operacional uma importncia fundamental na

    estrutura da organizao. Dessa forma, os trabalhadores cumulam uma maior

    autonomia individual que se assenta essencialmente na sua formao profissional,

    permitindo-lhes uma grande liberdade de controle do seu trabalho (MINTZBERG,

    1995).

    Essa autonomia exercida pelos trabalhadores da sade no desenvolvimento

    do seu trabalho chamada, nos estudos de Merhy (1998) de exerccio do

    autogoverno. Esse aspecto inerente ao trabalho e sade, confere ao trabalhador um

    papel relevante na organizao da produo da assistncia a sade. Isso contribui

    para com a complexidade da organizao dos servios de sade, onde operam

    projetos polticos e corporativos diversos e, muitas vezes, antagnicos, que exercem

    influncia na gesto e organizao do trabalho.

    importante salientar, que tambm existe uma forte fragmentao das

    linhas de mando entre as vrias categorias e as corporaes organizam-se, at certo

    ponto, segundo lgicas prprias (MATOS; PIRES, 2006). O que corrobora para uma

    organizao compartimentada dos processos do trabalho em sade, de tal modo

    que os profissionais so fixados a determinadas etapas do processo teraputico,

    que acabam por produzir a alienao do trabalhador da sade (CAMPOS, 1997).

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 35

    Esse cenrio apia-se, ainda no modelo biomdico que preconiza o exerccio de

    uma prtica clnica centrada em especialidades (mdicas) com foco na cura e

    reabilitao dos corpos dos indivduos, onde aspectos preventivos e de promoo a

    sade no assumem relevncia estratgica (ABRAHO, 2007).

    Outro aspecto importante no estudo da micropoltica do trabalho em sade

    abordado por Merhy (2000), quando este autor analisa a composio do trabalho em

    sade a partir de uma analogia das valises e ferramentas utilizadas no encontro

    de produo de cuidado entre profissional de sade e usurio. Nesse artigo, o

    referido autor categoriza as ferramentas do fazer em sade em trs dimenses

    tecnolgicas: as tecnologias duras representadas pelos equipamentos utilizados na

    produo do cuidado como, por exemplo, os utilizados para diagnstico e avaliao;

    as tecnologias leve-duras, caracterizada saberes tcnicos estruturados

    cientificamente como a clnica e a epidemiologia; e, por fim, as tecnologias leves,

    que esto presentes no espao relacional trabalhador-usurio que s tem

    materialidade em ato.

    Assim, os modelos tecnoassistenciais variam de acordo com o arranjo dessas

    tecnologias na produo do cuidado. E segundo Merhy (2000),

    [...] a valise que, por suas caractersticas tecnolgicas prprias permite reconhecer, na produo dos atos de sade, uma situao de permanente disputa em aberto de jogos de captura, impossibilitando que as finalidades e mesmo os seus objetos, sejam de uma nica ordem, a valise do espao relacional trabalhador-usurio.

    Segundo o referido autor, a dimenso das tecnologias leves ocupada por

    processos produtivos que s so realizados na ao entre os sujeitos que se

    encontram, tornando vivel a produo de relaes que podem produzir ou no

    acolhimentos, vnculos e responsabilizaes. Por isso, mesmo esse espao

    relacional, permanentemente disputado por vrias lgicas sociais, que procuram

    tornar a produo das aes de sade de acordo com certos interesses e interditar

    outros (MERHY, 2000).

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 36

    Deste modo, a partir da anlise dos processos de trabalho desenvolvidos nos

    servios de sade, possvel encontrar respostas para alguns questionamentos a

    respeito das produes em sade (FRANCO, 2003), principalmente no que se refere

    efetividade das polticas pblicas, em especial a de sade, atualmente

    institucionalizada no SUS.

    Acreditamos que o SUS fruto de um movimento social e que as polticas

    hoje existentes so tambm efeitos de movimentos do cotidiano de trabalho nos

    servios de sade e que a superao da lgica, ainda predominante na atual

    organizao da produo da sade, depende das mudanas nos espaos da

    micropoltica onde esse cuidado produzido.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 37

    6 TRAJETRIA METODOLGICA

    Por que? Quem faz essa pergunta se encontra diante de um enigma, algo que no entende. No entende e di. preciso que o no-entendido doa para que a pergunta brote. H muitas coisas que no entendemos. Mas elas no doem. No doendo, no fazemos a pergunta. Fazemos a pergunta para diminuir a dor, para dar sentido dor (Rubem Alves).

    Na realizao desse estudo optamos por combinar abordagens quantitativas

    e qualitativas para alcanar os objetivos que propusemos. Dessa forma, no caminho

    que traamos na construo dessa pesquisa, buscamos utilizar tcnicas de coleta e

    anlise de dados que nos ajudasse a identificar o perfil da demanda referenciada

    para assistncia cardiolgica e compreender as questes relacionadas ao espao

    microrganizacional do trabalho das equipes de sade da famlia, onde as relaes

    produzidas determinam, em muitos sentidos, o fazer na assistncia sade.

    Nessa pesquisa, optamos por utilizar a triangulao de mtodos para coleta

    de dados que, conforme Minayo et al. (2005, p. 71) afirma:

    [...] no um mtodo em si, mas uma estratgia de pesquisa que se apia em mtodos cientficos testados e consagrados, servindo e adequando-se a determinadas realidades, com fundamentos interdisciplinares e que deve ser escolhida quando contribuir para aumentar o conhecimento do assunto e atender aos objetivos que se deseja alcanar.

    Assim, utilizamos, simultaneamente, diversas tcnicas de coleta, fontes de

    dados e modalidades de anlise para conhecer melhor o nosso objeto de estudo e

    chegarmos aos resultados dessa pesquisa.

    6.1 Delineando o tipo de estudo

    Trata-se de um estudo de caso sobre o processo de trabalho em sade das

    ESF da microrregio 6.3 do Distrito Sanitrio 6, no municpio do Recife.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 38

    A necessidade de realizar um estudo de caso surge do desejo de

    compreender fenmenos sociais complexos, tais como so os objetivos propostos

    por essa pesquisa. Esse tipo de estudo a estratgia mais escolhida ao se

    examinarem acontecimentos contemporneos, onde no se podem manipular

    comportamentos relevantes (YIN, 2005).

    O estudo de caso se caracteriza como um tipo de pesquisa cujo objetivo

    realizar uma anlise profunda de um dado objeto de estudo, buscando abrang-lo na

    maior amplitude possvel de suas aes (HARTZ, 1997). Assim, os resultados desse

    tipo de pesquisa so generalizveis a proposies tericas e no a populaes ou

    universos. Esse tipo de estudo no representa uma amostragem, e, ao fazer isso,

    seu objetivo expandir e generalizar teorias (generalizao analtica) e no

    enumerar freqncias (generalizao estatstica) (Yin, 2005).

    Para realizar esse estudo, optamos por escolher uma condio traadora para

    anlise do processo de trabalho das equipes de sade da famlia. O conceito de

    traador, conforme a proposio de Kessner et al. (1973) originrio das pesquisas

    em cincias biolgicas e estudos clnicos e tem sido, freqentemente, aplicado ao

    campo da avaliao de servios de sade. Neste caso, o pressuposto que a forma

    como uma equipe de profissionais de sade administra sua interveno sobre uma

    determinada condio (chamada traadora por reunir certas caractersticas), ser

    um indicador da qualidade geral do cuidado e do sistema que fornece aquele cuidado.

    A hipertenso arterial sistmica (HAS) foi escolhida como condio traadora

    por se constituir um dos problemas de sade de maior prevalncia no Brasil e por

    que a Estratgia de Sade da Famlia, conforme preconizao do Ministrio da

    Sade tem na populao que vive com HAS um grupo populacional prioritrio no

    conjunto de aes de sade que deve ser desenvolvidas pela equipe de sade

    (BRASIL, 2001a).

    Considerando que o foco do nosso estudo o processo de trabalho das

    equipes de sade da famlia e sua relao com a gerao de demanda por

    assistncia especializada, escolhemos a cardiologia por esta ser uma importante

    rea especializada para garantir continuidade no cuidado de pacientes que vivem

    com hipertenso arterial sistmica.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 39

    Escolhemos realizar esse estudo de caso na microrregio (MR) 6.3 do Distrito

    Sanitrio 6, no municpio de Recife, Pernambuco. Optamos por essa MR porque a

    mesma:

    a) constituda por um nico bairro que tem caractersticas bastante

    homogneas nas condies de vida de sua populao;

    Figura 1: Mapa dos bairros do Distrito Sanitrio 6, Recife, PE. Fonte: Recife (2009)

    b) possui uma ampla cobertura de ateno bsica, cerca de 146%, pois

    existem mais pessoas cadastradas pelas equipes de sade da famlia dessa

    microrregio do que a populao residente estimada pelo Instituto Brasileiro de

    Geografia e Estatstica (RECIFE, 2009);

    c) apresenta um elevado nmero de USF com demanda reprimida para

    assistncia cardiolgica;

    d) tem toda oferta de cardiologia regulada quer seja atravs de centrais de

    marcao distritais, no caso das policlnicas que so unidades pblicas municipais,

    ou da central de regulao municipal, que referencia para hospital filantrpico

    conveniado ao SUS municipal. Essa condio nos favorece com um elenco de

    informaes importantes que esto disponveis no sistema de regulao do

    municpio.

    MR 6.3

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 40

    6.2 Perodo de Estudo

    O perodo de estudo foi de janeiro a dezembro de 2009, ano base dos dados

    secundrios e de janeiro a maio de 2010 quando estivemos em campo coletando

    dados primrios atravs da observao direta e dos grupos focais.

    6.3 Populao de Estudo

    Equipes de Sade da Famlia da MR 6.3.

    6.4 Coleta e Anlise dos Dados

    Para uma melhor apresentao das etapas da pesquisa, descreveremos as

    tcnicas de coleta e estratgias de anlise utilizadas de acordo com os objetivos

    propostos nesse estudo.

    Em relao ao 1 objetivo especfico:

    A primeira etapa da pesquisa constituiu-se na coleta e anlise de dados

    secundrios que esto disponveis no Sade Sistema da Central de Regulao

    (SSCR), sistema de informao utilizado pela Central de Regulao do Recife e no

    Sade Sistema de Marcao de Consultas (SSMC), sistema de informao utilizado

    pelas Centrais de Marcao Distritais, e nas fichas de encaminhamento utilizadas

    pelas ESF da MR 6.3 para referenciar pacientes para a assistncia especializada em

    cardiologia no municpio de Recife.

    Iniciamos a coleta de dados em janeiro de 2010, quando buscamos na

    Diretoria Geral de Regulao em Sade da Secretaria de Sade do Recife, o banco

    de dados referente s marcaes de consultas especializadas de cardiologia que as

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 41

    unidades de sade da famlia da MR 6.3 realizaram no perodo de janeiro a

    dezembro de 2009.

    Quando conseguimos os bancos de dados, levamos algumas semanas para

    tratar e analisar os dados, j que o SSCR e o SSMC no possuem muitas opes de

    relatrios estruturados. Ao analisarmos esses bancos, identificamos vrias

    inconsistncias na qualidade do registro das marcaes realizadas atravs das

    centrais distritais, tais como: ausncia de registro de marcao de consultas

    cardiolgicas em vrios meses para algumas unidades solicitantes. Por isso,

    optamos em utilizar nesse estudo, apenas os dados do SSCR, referente s

    marcaes realizadas atravs da Central de Regulao do Recife, ou seja, 38,5%

    das consultas de cardiologia ofertadas a populao do Distrito Sanitrio 6.

    Iniciamos nossa ida ao campo em fevereiro de 2010, quando realizamos uma

    reunio com a equipe da Gerncia de Territrio da MR 6.3 para apresentarmos o

    projeto de pesquisa e pactuarmos um cronograma de reunies e visitas s unidades

    de sade.

    Durante os meses de abril a maio de 2010, visitamos 09 unidades de sade

    da famlia e analisamos um total de 149 fichas de encaminhamento para consultas

    cardiolgicas que estavam, na ocasio da nossa visita, aguardando o agendamento

    das consultas especializadas. O nosso objetivo era identificar como as ESF

    preenchem a ficha de encaminhamento, especialmente, os campos de Hiptese

    Diagnstica ou Justificativa do Encaminhamento.

    importante salientar que nosso objetivo era visitar todas as unidades de

    sade da famlia da MR 6.3, mas, pela dificuldade de acesso essas unidades e a

    exigidade do tempo que reservamos para coleta dos dados, no foi possvel

    analisar as fichas de encaminhamento de todas as 14 USF.

    Aps a coleta, os dados foram organizados e analisados de acordo com as

    variveis construdas a partir do contedo das fichas de encaminhamento ao

    especialista e dos dados disponveis no banco de dados do SSCR. Dessa forma,

    consideramos as seguintes variveis:

    Variveis Individuais

    a) Sexo: entendido como o sexo referido na ficha de encaminhamento do

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 42

    paciente.

    b) Faixa Etria: calculada a partir da data de nascimento referida na ficha de

    encaminhamento do paciente.

    Variveis do Servio

    a) Unidade Solicitante: entendida como a USF que encaminhou o paciente.

    b) Unidade Executante: entendida como a unidade de sade para a qual o

    paciente foi encaminhado.

    c) Diagnstico Inicial: entendido como o diagnstico ou a hiptese diagnstica

    identificada pelo mdico da ESF na ficha de encaminhamento ao especialista.

    d) Justificativa do Encaminhamento: entendida como o conjunto de aspectos

    clnicos que motivou o encaminhamento ao especialista.

    e) Cota Mensal de Consulta em Cardiologia: entendida como o quantitativo de

    consultas mdicas em cardiologia disponibilizada para cada ESF.

    f) Cota Total de Consultas de Cardiologia Utilizadas: entendida como o total de

    consultas de cardiologia agendadas atravs da central de regulao do

    Recife.

    g) Demanda Reprimida: entendida como o total de pessoas encaminhadas pelas

    ESF para atendimento cardiolgico e que esto aguardando marcao da

    consulta.

    Em relao aos 2 e 3 objetivos especficos:

    Iniciamos a segunda etapa da pesquisa em fevereiro de 2010, com a ida ao

    campo de pesquisa, realizando as primeiras reunies com a equipe gestora do DS 6,

    conforme quadro 1.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 43

    Data Evento Objetivo Participantes

    01/02/2010 Reunio com equipe gestora do DS 6.

    Apresentao da pesquisadora e da pesquisa: objetivos, etapas, produtos e compromisso de dar o retorno do estudo ao DS.

    Gerente Operacional de Assistncia a Sade do DS 6, Gerente de Territrio da MR 6.3 e pesquisadora.

    05/02/2010 Reunio do ncleo gestor da MR 6.3

    Apresentao da pesquisadora e da pesquisa: objetivos, etapas, produtos e compromisso de dar o retorno do estudo ao DS.

    Gerentes das unidades de sade da famlia, Gerente de Territrio da 6.3, Gerente Operacional de Assistncia a Sade do DS 6.

    22/04/2010

    Reunio com apoio tcnico da Gerncia de Territrio da MR 6.3. Visita a 3 USF da MR 6.3

    Coletar informaes sobre o perfil dos profissionais que compem as ESF. Coletar informaes sobre demanda reprimida e preenchimento das fichas de encaminhamentos.

    Pesquisadora e 1 tcnica da GT da MR 6.3. Pesquisadora

    22/04/2010 Visita a 3 USF da MR 6.3

    Coletar informaes sobre demanda reprimida e preenchimento das fichas de encaminhamentos.

    Pesquisadora e profissionais responsveis pela marcao das consultas.

    23/04/2010 Reunio de apoio matricial com as USF da MR 6.3

    Observar reunio de matriciamento das ESF da MR 6.3 com o cardiologista da unidade de referncia. (A reunio foi audiogravada).

    Mdicos das USF, cardiologista da policlnica, gerente de territrio, residentes de sade coletiva e pesquisadora.

    12/05/2010 Visita a 3 USF da MR 6.3

    Coletar informaes sobre demanda reprimida e preenchimento das fichas de encaminhamentos.

    Pesquisadora e profissionais responsveis pela marcao das consultas.

    14/04/2010 Grupo focal com a ESF X

    Construir Fluxograma Descritor do processo de Trabalho dessa equipe no cuidado ao paciente com hipertenso. (A reunio foi audiogravada).

    Pesquisadora, auxiliares administrativos (responsveis pela marcao das consultas), enfermeiras e ACS.

    19/05/2010 Grupo focal com a ESF Y

    Construir Fluxograma Descritor do processo de Trabalho dessa equipe no cuidado ao paciente com hipertenso. (A reunio foi audiogravada).

    Pesquisadora, auxiliar administrativo (responsvel pela marcao das consultas), mdica, e ACS.

    Quadro 1: Cronograma de visitas e reunies realizadas para coleta de dados no perodo de fevereiro a maio de 2010, Distrito Sanitrio 6, Recife PE.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 44

    A coleta dos dados foi realizada atravs da observao direta (com

    observador declarado) que, segundo Chizotti (2005), um contato direto do

    pesquisador com o fenmeno observado para obter informaes sobre a realidade

    dos atores sociais em seus prprios contextos. Trata-se da descrio detalhada de

    uma situao, na qual se focalizam os sujeitos em seus aspectos pessoais e

    particulares, as circunstncias dos fatos, as aes e seus significados, os conflitos

    face realidade.

    A observao direta foi realizada quando visitamos algumas unidades de

    sade da famlia para coletar dados das fichas de encaminhamento e conversamos

    com os responsveis pela marcao das consultas sobre demanda por ateno

    especializada, facilidades e dificuldades no processo de agendamento, relao com

    a central de regulao e com os servios de referncia.

    Alm disso, participamos de uma reunio, chamada de apoio matricial, que

    reuniu mdicos e alguns enfermeiros de sade da famlia da MR 6.3 e o

    cardiologista da unidade de referncia dessa microrregio. Esse foi o primeiro

    encontro coletivo das equipes da ateno bsica com o especialista de cardiologia e

    o tema eleito para debate foi o tratamento da hipertenso. Durante essa reunio,

    apresentamos o nosso projeto de pesquisa e solicitamos autorizao do grupo para

    gravar as discusses.

    Tambm utilizamos a tcnica de grupo focal com os profissionais que

    compem as ESF, a saber: agente comunitrio de sade, enfermeiro, mdico,

    auxiliar de enfermagem e agente administrativo, onde construmos o fluxograma

    descritor do processo de trabalho das equipes.

    O grupo focal uma tcnica que possibilita a coleta de dados a partir de

    encontros e discusses coletivas entre pessoas que possuem caractersticas

    comuns de vida, ou trabalho, ou pensamento. Nesses grupos, pode ser possvel

    identificar conhecimentos, opinies, representaes, atitudes e valores dos

    participantes, e possibilita uma anlise em profundidade de dados obtidos nessa

    situao de interao grupal (WESTPHAL; BGUS; FARIA, 1996).

    Escolhemos realizar os grupos focais como estratgia de coleta de dados,

    pensando no que comenta Minayo (2000, p.129):

    [...] no mbito de determinados grupos sociais atingidos coletivamente por fatos ou situaes especficas, desenvolvem-se opinies informais

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 45

    abrangentes, de modo que, sempre que entre membros de tais grupos haja intercomunicao sobre tais fatos, estes se impem, influindo normativamente na conscincia e no comportamento dos indivduos.

    Considerando que as percepes, atitudes e opinies so socialmente

    construdas, Westphal, Bgus e Faria (1996) afirmam que a expresso das mesmas

    so mais facilmente identificadas durante um processo de interao em que os

    comentrios de alguns sujeitos podem fazer emergir a opinio de outros. Alm disso,

    durante os grupos focais, possvel perceber no somente o qu pensam os

    sujeitos, mas tambm porqu eles pensam de determinada forma (WESTPHAL;

    BGUS; FARIA, 1996).

    Com essa compreenso, o grupo focal mostrou-se como uma tcnica

    bastante apropriada aos propsitos do nosso estudo, j que desejvamos analisar o

    modo de organizao do processo de trabalho das equipes e a maneira como suas

    caractersticas interferem na produo do cuidado sade e na gerao de

    demanda para outros nveis assistenciais. Alm disso, acreditamos que os espaos

    coletivos de discusso e anlise possibilitam o desenvolvimento da capacidade

    crtica dos sujeitos, onde a auto-anlise do seu processo de trabalho gera uma certa

    desacomodao do pensar e fazer com potncia para intervenes no cotidiano dos

    servios.

    Segundo Westphal (1992), o critrio de seleo dos participantes para o

    grupo focal intencional e se fundamenta no entendimento de que a posio que o

    indivduo ocupa na estrutura social se associa sua construo social da realidade.

    Assim, aps observao sobre a participao dessas equipes na reunio de apoio

    matricial e durante s visitas s unidades de sade, escolhemos realizar os grupos

    focais com duas das unidades de sade da famlia da MR 6.3 que denominamos

    USF X e Y.

    A escolha dessas USF foi intencional e a partir da orientao da gerncia de

    territrio que indicou algumas equipes que possuam boa organizao interna e

    profissionais mais colaborativos. Mas, s conseguimos realizar o grupo focal em

    uma das equipes indicadas pela gerente de territrio, pois encontramos muitas

    dificuldades para conseguir agenda disponvel da gerente e dos profissionais da

    segunda USF.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 46

    Durante as visitas que realizamos nas USF identificamos outra unidade que

    apresentava um bom nvel de organizao das suas atividades e era formada por

    profissionais que demonstraram interesse em participar do grupo focal.

    Dessa forma, conseguimos realizar os grupos focais em duas USF, cujos

    nomes sero mantidos em sigilo para resguardar a privacidade sobre a autoria das

    declaraes que cada profissional fez durante a realizao da nossa pesquisa.

    Dessa forma, denominaremos as unidades de USF X e USF Y. Seguindo orientaes descritas por Westphal (1992), o roteiro da discusso

    foi composto por um elenco de questes abertas com foco nos temas de interesse e

    em coerncia com os objetivos da pesquisa, e serviu como guia para o moderador

    coordenar a discusso (APNDICE A).

    Os grupos focais foram coordenados pela prpria pesquisadora, que atuou

    como moderadora da discusso, procurando viabilizar que cada participante

    pudesse expressar suas opinies e pareceres a respeito do tema proposto e

    focalizando o debate para as questes mais pertinentes. Ademais, para garantir a

    fidedignidade na coleta dos dados, a discusso foi audio-gravada, com o

    conhecimento e autorizao dos participantes que assinaram o Termo de

    Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

    Foram agendados dois grupos focais. O primeiro foi realizado com os

    profissionais da USF X. Agendamos nosso encontro na prpria unidade, numa

    quarta-feira (14/04/10), s 10h30min. Chegamos antes do horrio para podermos

    observar a unidade, preparar o material que utilizaramos e conversar com as

    pessoas responsveis pela marcao das consultas.

    A USF X tem 02 equipes de sade da famlia, sendo uma incompleta, pois,

    falta um mdico. No grupo focal, contamos com a presena de boa parte dos

    profissionais das duas equipes (Quadro 2), apenas a mdica no participou e

    justificou que tinha um compromisso familiar importante.

    Realizamos o segundo grupo focal na USF Y numa sexta-feira (19/05/10) s

    11 horas. Essa unidade tem duas equipes de sade da famlia que tambm esto

    incompletas, pois faltam 1 mdico e 1 enfermeira que est de licena maternidade.

    Tambm contamos com a participao da maioria dos profissionais (Quadro 2)

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 47

    Unidade Profisso N de profissionais

    USF X

    Agente Comunitrio de Sade 05 Enfermeiro 02 Auxiliar Administrativo 02 Total 09

    USF Y

    Agente Comunitrio de Sade 08 Mdico 01 Auxiliar Administrativo 01 Total 10

    Quadro 2 Nmero de profissionais que participaram dos grupos focais por unidade de sade da famlia, no ms de abril de 2010, o Distrito Sanitrio 6, Recife PE.

    Para a anlise dos dados qualitativos, utilizamos a tcnica de anlise de

    contedo, uma vez que a mesma adequa-se a estudos que visam a apreenso de mensagens reveladas ou ocultas, num esforo de vigilncia crtica frente

    comunicao de documentos, textos literrios, biografias, entrevistas ou observao

    (MINAYO, 2000).

    Compartilhando deste mesmo entendimento, Chizzotti (2005) explica que, na

    anlise de contedo, as informaes so compreendidas no contexto cultural em

    que os atores sociais as produzem, sendo que se busca verificar como este contexto

    influencia na forma e no contedo dessas informaes. Assim, a anlise precisa

    considerar, sobretudo, as entrelinhas porque muitas vezes o que est nas linhas

    precisamente o que no se queria dizer (DEMO, 2005).

    Segundo Bardin (2004), a anlise de contedo consiste num conjunto de

    tcnicas das comunicaes que objetiva a descrio do contedo das mensagens

    que permitam a inferncia de conhecimentos relativos s condies de

    produo/recepo destas mensagens.

    Todos os dados discursivos (entrevistas) e os registros de campo (das

    observaes) foram analisados seguindo uma seqncia cronolgica de pr-anlise,

    explorao do material, tratamento e interpretao (BARDIN, 2004).

    Para analisar o processo de trabalho das equipes de sade da famlia,

    construmos o fluxograma descritor do processo de trabalho no cuidado com um

    paciente hipertenso durante o grupo focal da USF X. Optamos por no construir o

    fluxograma descritor da USF Y porque consideramos a organizao do trabalho

    dessa unidade bem parecida com a da USF X.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 48

    O fluxograma descritor foi definido por Franco (2003) como sendo a

    representao grfica do processo de trabalho que ajuda a analisar o caminho

    percorrido pelo paciente na busca pela assistncia a sade e tem sido utilizado em

    vrios estudos como uma ferramenta importante para anlise dos fluxos

    assistenciais (caminho percorrido pelo usurio) e dos processos de trabalho (modo

    de organizao e implementao das diversas prticas profissionais e o modo como

    se interseccionam) no mbito dos servios de sade (CHAKKOUR, 2001;

    BARBOZA; FRACOLLI, 2005; FRANCO, 1999).

    O fluxograma representado por trs smbolos, convencionados

    universalmente: a elipse representa sempre a entrada ou sada do processo de

    produo de servios; o losango indica os momentos em que deve haver uma

    deciso para a continuidade do trabalho; e um retngulo que diz respeito ao

    momento de interveno, ao sobre o processo (FRANCO; MERHY, 2003).

    Nesse sentido, Merhy (2002) considera que quaisquer servios assistenciais

    de sade podem ser enquadrados na seqncia mostrada pelo diagrama resumido,

    apresentado na Figura 2.

    Entrada Recepo Deciso Cardpio Sada de ofertas Figura 2. Fluxograma Descritor de uma unidade de sade

    Assim, a construo do fluxograma descritor nesta pesquisa objetiva

    possibilitar uma melhor visualizao das informaes, colhidas atravs dos grupos

    focais, sobre o modo de organizao dos processos de trabalho das ESF no

    atendimento dos pacientes com hipertenso arterial e no modo de organizao para

    referncia e contra-referncia na assistncia especializada.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 49

    6.5 Consideraes ticas

    Essa pesquisa foi aprovada pela Comisso de tica do Centro de Pesquisas

    Aggeu Magalhes CPqAM/FIOCRUZ (ANEXO A).

    A pesquisa foi desenvolvida respeitando todos os parmetros bioticos da

    Resoluo n.196/96 da Comisso Nacional de tica em Pesquisa (CONEP). Todos

    os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

    (APNDICE A).

    A Secretaria de Sade do Recife foi informada e autorizou formalmente

    atravs de uma Carta de Anuncia Institucional (ANEXO B). Na divulgao dos

    resultados do projeto, foi respeitado o sigilo pessoal dos sujeitos envolvidos na

    investigao, por isso utilizamos codinomes para representar as unidades de sade

    e os profissionais que foram entrevistados.

  • SOUSA, F. O. S. O processo de trabalho em sade e a demanda por assistncia... 50

    7 DESCRIO E ANLISE DOS RESULTADOS 7.1 Algumas caractersticas da rea de estudo

    A MR 6.3 possui 14 Unidades de Sade da Famlia com 31 Equipes de

    Sade da Famlia. No entanto, apenas 5 USF esto com as equipes

    completas (Tabela 1).

    Tabela 1 Caracterizao das Unidades de Sa