O público não-estatal - as organizações sociais.
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE DIREITO
Renata da Silva Rodrigues
O público não-estatal: as organizações sociais
Porto Alegre
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE DIREITO
Renata da Silva Rodrigues
O público não-estatal: as organizações sociais
Monografia apresentada à banca examinadora
da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul como requisito
parcial para obtenção do grau de Bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais.
Orientadora: Prof. Maria Isabel de
Azevedo Souza
Porto Alegre
2007
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo a análise do modelo institucional federal das
organizações sociais, instituído e disciplinado pela Lei federal n. 9.637/1998. O projeto de
criação das organizações sociais, pessoas jurídicas de direito privado com atuação em áreas de
interesse público, sem fins lucrativos, cujas atividades são fomentadas pelo Poder Público,
restou assinalado no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, datado de 1995,
aprovado pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Para uma
abrangente cognição da figura jurídica das organizações sociais e da contextualização
histórica de sua criação, procedeu-se ao exame das características gerais do setor público não-
estatal, ou terceiro setor, gênero do qual são espécies as organizações sociais. A criação da
qualificação jurídica como organização social, tal qual delineada em seu diploma legal
paradigmático, a Lei federal n. 9.637/1998, coaduna-se com o ideal de uma atuação estatal
meramente subsidiária, em que a sociedade civil organizada preenche, gradualmente, o espaço
ocupado pelo Estado, em um processo denominado publicização. O exame do modelo
institucional federal revela que alguns de seus elementos constitutivos dão margem à
controvérsia e que a viabilidade jurídica e administrativa das organizações sociais no âmbito
da Administração Pública federal ainda pende de consolidação.
Palavras-chave: contrato de gestão – organizações sociais – publicização – reforma do
aparelho do Estado – setor público não-estatal – terceiro setor
ABSTRACT
The objective of the present study is to analyze the federal institutional model of the
social organizations, instituted and disciplined by the federal Act n. 9.637/1998. The project
that aimed to establish the social organizations – juristic persons ruled by the private law, that
develop their activities in areas known as of public interest and that are fomented by the
Government – was disclosed in the Plano Diretor da Reforma do Estado, published in 1995
and approved by then-President of the Brazilian Republic, Fernando Henrique Cardoso. In
order to provide a wide perception of the social organizations and the historical context
behind their creation, it was examined the general characteristics of the public non-state
sector, also known as voluntary sector, genre to which the social organizations as species
belong. The creation of the legal qualification as social organization, as drawn up by its
paradigmatic legal statute, the federal Act n. 9.637/1998, complies with the ideal of a merely
subsidiary governmental acting, in which the organized civil society gradually fills the space
once occupied by the Government, a process entitled publicização. The analysis of the federal
institutional model revels that its constitutive elements are still subject to controversy and that
the legal and administrative viability of such organizations on the federal level of Public
Administration is still unsettled.
Keywords: contrato de gestão – organizações sociais – publicização – reforma do
aparelho do Estado – setor público não-estatal – terceiro setor
7
INTRODUÇÃO
O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, redigido pelo Poder Executivo
federal em 1995, previu, dentre os seus projetos básicos, a criação de uma nova figura no
ordenamento jurídico pátrio, no âmbito da Administração Pública federal: o título de
organização social, que qualifica pessoas jurídicas de direito privado a se tornarem aptas a
estabelecerem um vínculo de parceria com o Estado. Ainda de acordo com o texto do Plano
Diretor, a parceria concretizar-se-ia por meio de outra nova figura jurídica – o contrato de
gestão – e envolveria a transferência do encargo de prestação de atividades não-exclusivas do
Estado para as entidades qualificadas como organizações sociais.
O projeto das organizações sociais, introduzido por ocasião da reforma do aparelho do
Estado brasileiro, corporificou-se cinco anos depois, por meio da edição da Lei federal n.
9.637/1998, diploma legal que se encarregou de traçar o modelo institucional das
organizações sociais na esfera da Administração Pública federal. Atualmente em vigor, a Lei
federal n. 9.637/1998 institui e disciplina a qualificação de entidades sem fins lucrativos, com
atuação em áreas de interesse público, como organizações sociais. O atual modelo
institucional extrapola o esboço constante do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do
Estado no que toca à função das organizações sociais, haja vista que opta por concebê-las não
só como entidades aptas a absorver atividades sociais antes prestadas por órgãos e entidades
estatais, mas também como entidades aptas a atuar paralelamente ao Estado, sendo
fomentadas por este.
Desde a criação do título jurídico de organização social, apenas sete entidades foram
assim qualificadas e autorizadas pelo Poder Executivo federal, em áreas de menor expressão
da atuação estatal (desenvolvimento tecnológico, pesquisa científica e preservação do meio
ambiente). Não há registro de absorção, por organização social, de atividades atinentes a áreas
como saúde e ensino, serviços sociais cuja prestação gratuita é dever constitucional do Estado
e que consistem em direito fundamental de todo cidadão brasileiro.
Embora o plano de transferência integral de serviços não-exclusivos para entidades
criadas e desenvolvidas fora do aparelho estatal – processo tecnicamente denominado
“publicização” – pareça ter sido, por ora, abandonado pelo administrador federal, seja em
razão da controvérsia que naturalmente circunda o tema, já sintetizada nos autos da Ação de
Direta de Inconstitucionalidade n. 1.923-5, em tramitação no Supremo Tribunal Federal, seja
8
pelo câmbio dos administradores federais e das novas concepções que estes detêm acerca do
que deva consistir a atuação estatal, fato é que o modelo das organizações sociais foi acolhido
em outras esferas que não a federal. Em diversos estados e municípios brasileiros, o título
jurídico de organização social, freqüentemente aprimorado com relação ao modelo federal,
consiste em meio prestigiado e consolidado para o estabelecimento de parceria com a
sociedade civil e para a consecução de uma eficiente e satisfatória prestação de serviços
sociais ao cidadão.
Por exemplo típico, tem-se a iniciativa do estado de São Paulo, onde o gerenciamento
de novas unidades de saúde já é integralmente atribuído a pessoas jurídicas de direito privado
qualificadas como organizações sociais, contabilizando-se oito hospitais que operam sob
contrato de gestão.1 A propagada presença das organizações sociais na federação brasileira e a
importância adquirida junto ao Poder Público justificam, por certo, um exame doutrinário
mais apurado no que diz respeito ao fenômeno de sua criação, às suas características gerais e
às vantagens e desvantagens associadas ao modelo.
Compreender o contexto em que se dá a concepção das organizações sociais envolve,
necessariamente, compreender o gênero do qual são espécies todas as entidades às quais é
outorgado tal título jurídico: o setor público não-estatal, comumente referido como terceiro
setor, denominação que agrupa as pessoas jurídicas de direito privado que, paralelamente ao
Estado, exercem atividades de interesse público e sem fins lucrativos.
As bases sob as quais se deu a reforma do aparelho do Estado privilegiam a
participação do terceiro setor na gestão da res publica e determinaram o seu despontar na
pauta política brasileira. A criação de novos títulos jurídicos a serem outorgados a entidades
públicas não-estatais traduz o fortalecimento da sociedade civil organizada e o ânimo do
legislador de contemplar tais entidades como verdadeiras parceiras do Poder Público.
O presente trabalho tem por fulcro examinar o modelo institucional das organizações
sociais a partir do seu diploma legal paradigmático – a Lei federal n. 9.637/1998 –,
contextualizando a sua criação por meio de uma prévia investigação acerca do setor público
não-estatal e das diretrizes que robusteceram a participação das ditas entidades públicas não-
estatais no processo de reforma do Estado brasileiro.
Para se alcançarem os resultados pretendidos com o presente trabalho, o método de
abordagem utilizado é o dedutivo, procedendo-se ao exame do gênero a que pertencem as
organizações sociais – o setor público não-estatal – e, posteriormente, a uma análise
1 Estatística referente ao ano de 2004. REDAÇÃO DA REVISTA SP.GOV. Por que as organizações sociais na saúde. Revista SP.GOV, São Paulo, n. 2, p. 10-17, out. 2004.
9
específica acerca das características gerais das entidades públicas não-estatais qualificadas
pelo Poder Público como organizações sociais.
Para tanto, no primeiro capítulo, intenta-se conceituar o terceiro setor, elencando os
elementos obrigatoriamente constantes da atuação de toda e qualquer entidade tida por
pública não-estatal. Uma vez provida uma visão geral do que consiste o setor público não-
estatal, procura-se examinar o processo de reforma do Estado brasileiro, desencadeado em
1995, e os princípios que regem a busca por um novo modelo de administração pública.
Pretende-se, assim, estabelecer a relação de nexo causal entre o processo de reforma do
aparelho do Estado brasileiro e a tendência à crescente participação do terceiro setor na gestão
dos interesses públicos.
Ao final do primeiro capítulo, é abordada a prática da outorga de títulos jurídicos a
entidades do terceiro setor, procedendo-se a uma breve síntese das qualificações atualmente
existentes em nosso ordenamento jurídico: a entidade de utilidade pública, a antiga entidade
de fins filantrópicos, a organização social e a organização da sociedade civil de interesse
público, estes dois últimos concebidos após o início do processo de reforma do Estado,
coadunando-se com o ideal de delimitação das áreas de atuação estatal.
O segundo capítulo dedica-se a traçar as características gerais das entidades
qualificadas como organizações sociais, a partir do modelo institucional delineado na Lei n.
9.637/1998, na esfera da Administração Pública federal. Inicialmente, aborda-se, de forma
sucinta, a controversa previsão de transferência de serviços não-exclusivos às organizações
sociais. Após, é traçado um histórico da regulamentação do instituto jurídico sob análise, que
culmina com a edição de seu marco legal.
O conceito de organização social e os principais aspectos envolvidos no ato de
qualificação de tais entidades são igualmente abordados no segundo capítulo, tópicos que
visam a auxiliar a compreensão das ditas organizações sociais como pessoas jurídicas de
direito privado às quais, por meio da outorga de um título jurídico, foi atribuído um status
jurídico diferenciado.
Por fim, é dado enfoque ao instrumento criado especialmente para o estabelecimento
do vínculo jurídico entre organização social e Poder Público: o contrato de gestão. Tem-se
como objetivo identificar o conteúdo obrigatório do contrato de gestão firmado e a forma
prevista para a sua execução e fiscalização, a partir do que dispõe a Lei n. 9.637/1998, bem
como tecer considerações acerca de sua natureza jurídica e da peculiaridade do contrato no
que toca à dispensa de licitação pública para a sua celebração com entidade qualificada como
organização social, consagrada no art. 24, inciso XXIV, da Lei n. 8.666/1993.
10
1 O TERCEIRO SETOR: O PÚBLICO NÃO-ESTATAL
Para que se possa compreender no que consiste o terceiro setor – ou setor público não-
estatal –, gênero do qual são espécies todas as entidades sem fins lucrativos que se dedicam a
atividades de interesse público, necessário que sejam traçados os elementos gerais presentes
nas organizações pertencentes a este setor e o contexto histórico em que se deu o seu
despontar no ordenamento jurídico pátrio.
Outrossim, cumpre examinar, mesmo que brevemente, os títulos jurídicos atualmente
outorgados a entidades do terceiro setor, especialmente aqueles criados após a reforma do
aparelho do Estado desencadeada em 1995, que servem a qualificar tais organizações como
verdadeiras parceiras do Poder Público
1.1 Conceito
A doutrina convencionou nomear “terceiro setor” o conjunto de pessoas jurídicas
privadas que, paralelamente ao Estado, desempenham atividades não-lucrativas e de interesse
público, em oposição ao “primeiro setor” – o Governo – e ao “segundo setor” – o
conglomerado produtivo de um país, orientado pela economia de mercado. Por vezes, é
referido como o setor situado em zona intermediária, inserido entre o público e o privado.
Como sinônimo de terceiro setor, fala-se também no “público não-estatal”; entidades
sem finalidade lucrativa que perseguem objetivos tidos como públicos, não fazendo parte do
aparelho estatal. Por ostentarem objetivos públicos, de relevância social, as entidades públicas
não-estatais desempenham as suas atividades em parceria com o Poder Público, em um
vínculo de colaboração, uma vez que ostentam objetivos afins.
Assim sustenta o ex-ministro do Ministério da Administração Federal e Reforma do
Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira:
(...) além da propriedade privada e da propriedade estatal existe uma terceira forma de propriedade relevante no capitalismo contemporâneo: a propriedade pública não estatal. Na linguagem vulgar é comum a referência
11
a apenas duas formas de propriedade: a propriedade pública, vista como sinônima de estatal, e a propriedade privada. Esta simplificação, que tem uma de suas origens no caráter dual do Direito - ou temos direito público ou privado - leva as pessoas a se referirem a entidades de caráter essencialmente público, sem fins lucrativos, como “privadas”. Entretanto, se definirmos como público aquilo que está voltado para o interesse geral, e como privado aquilo que é voltado para o interesse dos indivíduos e suas famílias, está claro que o público não pode ser limitado ao estatal, e que fundações e associações sem fins lucrativos e não voltadas para a defesa de interesses corporativos mas para o interesse geral não podem ser consideradas privadas. A Universidade de Harvard ou a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo não são entidades privadas, mas públicas. Como, entretanto, não fazem parte do aparelho do Estado, não estão subordinadas ao governo, não têm em seus quadros funcionários públicos, não são estatais. Na verdade são públicas não-estatais (ou seja, usando-se os outros nomes com que são designadas, são entidades do terceiro setor, são entidades sem fins lucrativos, são organizações não-governamentais, organizações voluntárias).2 (grifo meu)
Colacionamos aqui as conceituações oferecidas por Boaventura de Sousa Santos e
Paulo Modesto, que reforçam a definição oferecida supra acerca do terceiro setor.
“Terceiro sector” é uma designação residual e vaga com que se pretende dar conta de um vastíssimo conjunto de organizações sociais que não são nem estatais nem mercantis, ou seja, organizações sociais que, por um lado, sendo privadas, não visam fins lucrativos, e, por outro lado, sendo animadas por objectivos sociais, públicos ou colectivos, não são estatais.3 Pessoas privadas de fins públicos, sem finalidade lucrativa, constituídas voluntariamente por particulares, auxiliares do Estado na persecução de atividade de conteúdo social relevante.4
O vínculo que se estabelece entre o Poder Público e os entes do terceiro setor
comumente não se resume à mera constatação da afinidade de objetivos. Passa a envolver o
apoio financeiro, por parte do Estado, por meio da concessão de subvenções em favor da
organização pública não-estatal, a permissão de uso de bens públicos, a cessão de servidores
públicos, a celebração de contratos e a outorga de um título jurídico. Trata-se de uma
atividade pública de fomento que se propõe a realizar objetivos que aproveitam à
coletividade.
2PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997, p. 25-26.3SANTOS, Boaventura de Sousa. A reinvenção solidária e participativa do estado. São Paulo, 1998. Disponível em: <http://www.mp.gov.br/arquivos_down/seges/publicacoes/reforma/seminario/Boaventura.pdf> Acesso em: 15 julho 2007.4MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 80, 1998.
12
Desde já, cabe aprofundar o aludido conceito, desdobrando seu significado e
aprofundando as características das organizações que compõem esse setor. Para isso,
partiremos da análise dos elementos gerais presentes nas entidades que compõem o dito
terceiro setor, tal qual apontados por Luis Eduardo Patrone Regules – o desempenho de
atividades de interesse público, o direito à livre associação, a criação e o desenvolvimento da
organização fora do aparelho estatal, a finalidade não-lucrativa e a submissão a um regime
jurídico atípico.5
1.1.1 O desempenho de atividades de interesse público
Primeiramente, imperioso tecer considerações acerca da possibilidade de definição do
que consiste o interesse público e da mutabilidade da noção em comento.
No processo de transformação do Direito Administrativo, que acompanha as diversas
tendências de estruturação do Estado e da sociedade no decorrer da história, a noção nuclear
de “interesse público” também se alterou, diferindo daquela existente à época de sua criação,
no século XIX. Ensina Odete Medauar que, à época da Revolução Francesa, o zelo pelo
interesse público era monopólio do Estado, cabendo ao particular o gerenciamento do
interesse privado. Toda a atuação do Estado voltava-se ao atendimento do interesse público,
que fundamentava qualquer prática que findasse por suprimir direitos dos administrados. A
Administração Pública era a “executadora da vontade geral e intérprete do interesse público”,
realizando uma atividade de “homogeneização dos interesses”: porquanto um interesse
comum, de todos, afirmava-se a primazia do interesse zelado pelo Estado em relação ao
interesse individual.6
Em um segundo momento, observa-se que a atuação estatal exorbita o que antes fora
definido como de interesse público, passando a interferir em áreas antes tão-somente geridas
pelos administrados. O fenômeno referido é assim descrito por Odete Medauar:
Depois, de modo mais intenso, o Estado, mediante a Administração, passou a assumir, como seus, interesses que antes pertenciam ao setor privado;
5REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 48 et seq. 6MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 189.
13
citam-se com freqüência, na doutrina, as práticas de subsídios de várias atividades privadas, como em determinados setores agrícolas, e na implantação de indústrias, em notório benefício direto dos particulares, mas sob invocação do interesse público. (...) Tornou-se difícil estabelecer, de antemão, a matéria concernente ao interesse público; qualquer assunto, desde que assumido pelo Poder Público, passava a qualificar-se como interesse público. Passou a vigorar, desse modo, a concepção nominalista: interesse público é o que a lei ou a Administração diz que é, mesmo que se trate de algo muito específico.7
Moreira Neto defende que a dicotomia clássica entre o público e o privado, que antes
atribuía tão-somente ao Estado o monopólio do interesse público, prolongou-se, ao longo de
um processo histórico, em um espaço “público não-estatal”, fazendo surgir entidades privadas
que se voltam à consecução de interesses gerais. Descreve esse fenômeno como um
gerenciamento privado de interesses públicos.8 Nesse mesmo contexto de intensa participação
dos particulares em atividades consideradas de interesse público, Odete Medauar aponta o
surgimento de um “pluralismo dentro da própria organização e atividade administrativa, com
uma pulverização de interesses públicos”9. Setores distintos da sociedade civil associam-se
com a finalidade de ver atendidos os interesses da coletividade que representam,
demonstrando que não mais é possível reduzir todos os interesses de uma sociedade a um
denominador comum, único.
Com a presença do espaço público não-estatal, o interesse público passa a ser
compartilhado entre o Estado e a sociedade, não mais subsistindo o monopólio da
Administração no que toca à guarda desse interesse. Segundo Odete Medauar, o despontar do
entendimento de que a Administração Pública deve compartilhar com a sociedade a atribuição
de gestão do interesse público faz com que o Estado não mais assuma o controle e perfil do
que se deva entender por interesse público; a sociedade, o conglomerado de associações e de
organizações é que indicam ao Estado a política a desenvolver e estabelecem ordem de
prioridades.10
O aludido fim do monopólio estatal da consecução de interesses gerais é condenado
por Ataliba Pinheiro Espírito Santo, que vê a conservação do interesse público como um fim
7MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 189-190. 8MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Coordenação gerencial na administração pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 214, p. 38, out./dez. 1998.9MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 190. 10MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 191
14
inexorável do Estado. Afirma que as atividades de interesse público reclamam a função estatal
e são não-exclusivas da sociedade, “uma vez que o Estado foi criado para, por dever de ofício,
tomá-las como sua responsabilidade”11.
Paulo Modesto assume posição próxima a Medauar e Moreira Neto, salientando a
necessidade de que o desempenho de atividade de interesse público seja objeto de devido
controle e fiscalização:
Não há, portanto, impedimento constitucional algum à assunção por particulares de tarefas e missões de interesse social em colaboração com a administração pública. Desde que cumpridos requisitos de salvaguarda do interesse público, mais intensos e onerosos quanto mais ampla for a transferência de encargos e recursos, a cooperação é lícita e até mesmo estimulada pela Constituição da República.12
Compreendida a mutabilidade da noção de interesse público, traz-se à baila a definição
provida, com clareza, por Agustín Gordillo:
El interés público o bien común no es el interés de un conjunto de habitantes tomados como masa; no es un bienestar general, omnipresente, una felicidad indefinible e imprecisable; es sólo la suma de una mayoría de concretos intereses individuales coincidentes – actuales y/o futuros – y por ello la contraposición entre el interés público y el derecho individual es falsa si no redunda en mayores derechos y beneficios para los individuos de la comunidad. Por supuesto, hablamos de uns mayoría de individuos, no de la totalidad de los miembros de la sociedad; debe tratarse de intereses coincidentes lato sensu, esto es, homogéneos.13
Ao enfrentar a questão, Celso Bandeira de Mello também oferece sua conceituação:
(...) o interesse público, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no
11ESPÍRITO SANTO, Ataliba Pinheiro. As organizações sociais e a reforma administrativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 230, p. 93, out./dez. 2002.12MODESTO, Paulo. Reforma administrativa e marco legal das organizações sociais no Brasil: as dúvidas dos juristas sobre o modelo das organizações sociais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 210, p. 208, out./dez. 1997.13“O interesse público ou bem comum não é o interesse de um conjunto de habitantes tomados como massa; não é um bem estar geral, onipresente, uma felicidade indefinível e imprecisável; é somente a soma de uma maioria de concretos interesses individuais coincidentes - atuais e/ou futuros - e, em razão disso, a contraposição entre o interesse público e o direito individual é falsa, se não redunda em maiores direitos e benefícios para os indivíduos da comunidade. Por isso, falamos de uma maioria de indivíduos, não da totalidade dos membros da sociedade; deve tratar-se de interesses coincidentes lato sensu, isto é, homogêneos.” (tradução minha) GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, v. 2, p. VI-30.
15
Estado), nisto se abrigando também o depósito intertemporal destes mesmos interesses, vale dizer, já agora, encarados eles em sua continuidade histórica, tendo em vista a sucessividade das gerações de seus nacionais.14
1.1.2 O direito à livre associação
O direito à livre associação, consagrado na Constituição Federal, em seu art. 5º,
incisos XVII, XVIII, XIX e XX, garante a não-interferência estatal na formação e no
funcionamento das organizações civis.
Na lição de Jorge Miranda, o direito à livre associação apresenta-se como um direito
individual e um direito institucional. Enquanto direito individual, possui uma dimensão
positiva – o direito de constituir associações para qualquer fim lícito e de aderir às associações
existentes – e uma dimensão negativa – o direito de não ser coagido a constituir, inscrever-se
ou permanecer em uma associação, bem como o direito de deliberar a dissolução de
associação da qual faça parte. No que toca à liberdade das associações constituídas, há o
direito de auto-organização – que garante a livre estruturação da instituição –, o direito à livre
prossecução dos seus fins, a susceptibilidade de personificação jurídica e a garantia de que
não sofrerá intervenções arbitrárias do Poder Público.15
Em aparente contraposição ao direito à livre associação, há um dever de ingerência por
parte do Estado no que toca a organizações que desenvolvam suas atividades em área de
singular interesse público. É o caso, por exemplo, da atividade de ensino, que demanda a
autorização do Poder Público para que seja desenvolvida por ente privado (art. 209, inciso II,
da Constituição Federal), e da prestação de serviços de saúde pela iniciativa privada, que deve
ser submetida ao pleno controle do Poder Público (art. 22 e 23, § 1º, da Lei n. 8.080/1990).
Tal dever de ingerência estatal não suprime o direito à livre associação, tratando-se de um
controle legitimado pelo ordenamento jurídico. Nas palavras de Regules:
A autorização para o exercício da atividade de ensino convive com a liberdade de associação típica das organizações do terceiro setor. Portanto, o direito à livre associação não prescinde, em certas circunstâncias delimitadas
14MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 57.15MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Lisboa: Coimbra, 2000, v. 4, p. 476-477.
16
pelo ordenamento jurídico, do controle administrativo às atividades decorrentes de seu exercício.16
1.1.3 A criação e o desenvolvimento da organização fora do aparelho estatal
O segundo elemento caracterizador do terceiro setor é a criação e o desenvolvimento
da organização fora do aparelho estatal, exigindo-se que a entidade detenha autonomia e
administração própria, não se confundindo com entidade pertencente à Administração
Pública. Embora as organizações do terceiro setor dediquem-se à consecução de fins de
interesse público, compartilhando objetivos com o Estado, o vínculo mantido com o Poder
Público é tão-somente aquele de colaboração.
Andrea Nunes atenta para a corrente hibridez que por vezes caracteriza a constituição
de tais entidades, uma vez que as parcerias entre o público e privado tendem ao
aprofundamento, “o que torna necessário delimitar com precisão a autonomia e administração
própria como um traço característico e indelével da existência de uma pessoa jurídica distinta,
ao invés de uma simples ramificação do aparelho estatal.”17
Diogo de Figueiredo Moreira Neto define a atividade dos entes que compõem o
terceiro setor como uma “administração privada associada de interesses privados”, em que
pessoas jurídicas de direito privado se associam ao Estado, por meio de um vínculo de direito
público, para a persecução dos interesses públicos, não se confundindo com um ente
pertencente à Administração indireta.18 Define tais pessoas jurídicas como entidades
extraestatais, ao passo que Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Hely Lopes Meirelles optam por
chamá-las de entidades paraestatais, uma vez que compreendem como paraestatal toda e
qualquer pessoa jurídica de direito privado que colabora com a Administração e exerce função
típica, não-exclusiva do Estado.19
Certo é que as organizações do terceiro setor não se encaixam na definição legal
constante do Decreto-lei n. 200/1967, art. 4º, que versa sobre Administração direta e indireta,
16REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 51.17NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalização. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 27. 18MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 266. 19DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 455-458; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 67.
17
no âmbito federal.20 Frise-se que a classificação legal da estrutura da Administração Pública
em direta ou indireta é alvo de críticas por doutrinadores como Celso Antônio Bandeira de
Mello, a quem parece imprópria a divisão realizada pelo legislador.
Em tese, tal divisão deveria coincidir com os conceitos (...) de centralização e descentralização administrativa, de tal sorte que “Administração centralizada” seria sinônimo de “Administração direta”, e “Administração descentralizada”, sinônimo de “Administração indireta”. 21
Esclarece Bandeira de Mello que o critério classificador adotado pelo Decreto-lei n.
200/1967 não foi a natureza da atividade desempenhada pelo ente, nem o regime jurídico a
que estes sujeitos se submetem, e sim um critério meramente orgânico – ao final, relacionou-
se como entidades componentes da Administração indireta aquelas consideradas como
unidades integrantes da Administração.22 Nesse contexto, a descentralização administrativa,
assim nomeado o fenômeno em que o Estado transfere o exercício de atividades tipicamente
estatais para particulares ou para pessoa jurídica por ele criada, não coincide com o conceito
legal de Administração indireta, porquanto este não engloba os particulares prestadores de
atividade administrativa.
Em oposição à centralização administrativa, que conduz o Estado a desempenhar
diretamente as suas atividades, por meio de suas unidades internamente estruturadas, a
descentralização envolve o gerenciamento de interesse públicos por pessoas jurídicas criadas
pelo Estado para esse fim – classificadas pelo Decreto-lei n. 200/1967 como integrantes da
Administração indireta – ou por particulares. Diz-se, portanto, que o setor público não-estatal,
ao exercer atividades tipicamente estatais, é manifestação da descentralização
20Art. 4° A Administração Federal compreende:I - A Administração Direta, que se constitui dos serviços integrados na estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios.II - A Administração Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de personalidade jurídica própria:a) Autarquias;b) Emprêsas Públicas;c) Sociedades de Economia Mista.d) fundações públicas. § 1° As entidades compreendidas na Administração Indireta consideram-se vinculadas ao Ministério em cuja área de competência estiver enquadrada sua principal atividade.Parágrafo único. As entidades compreendidas na Administração Indireta vinculam-se ao Ministério em cuja área de competência estiver enquadrada sua principal atividade.21MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 148.22MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 150-152.
18
administrativa.23
Sérgio de Andréa Ferreira cunha a terminologia “descentralização por colaboração”
para caracterizar o fenômeno relacionado às entidades do terceiro setor:
Pela descentralização por colaboração, conforme salientado, a pessoa política delega a terceiros (particulares, pessoas físicas ou jurídicas, ou pessoas de outras administrações ou paradministrações públicas) ou lhes permite o exercício de encargo público, ou aproveita a atividade dos mesmos como auxiliares da atuação da administração pública.Os terceiros a que se refere este item passam a colaboradores da administração pública.A descentralização por colaboração é de índole objetiva, funcional, eis que descentralizada é somente a atividade, que passa a terceiros.24
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, por sua vez, adota a terminologia
“descentralização social” para descrever o processo de participação dos particulares na
atividade administrativa. Sustenta que a descentralização social é o fenômeno em que o
Estado delega cometimentos públicos a entidades intermédias, ditas “entidades de
colaboração”.25
1.1.4 A finalidade não-lucrativa
O desempenho de atividades não-lucrativas constitui elemento que caracteriza as
organizações do terceiro setor, na lição de Regules.26 Para Sílvio Luís Ferreira da Rocha, a
inexistência de finalidade lucrativa consiste na não-distribuição, entre seus sócios ou
associados, de lucros possivelmente auferidos pela pessoa jurídica no desenvolvimento de
23A noção de que as entidades públicas não-estatais podem ser qualificadas como uma forma de descentralização é refutada por Paulo Modesto, a quem o fenômeno da descentralização envolve, necessariamente, a atuação do particular em atividades reservadas ou exclusivas do Poder Público, e não em atividades que podem ser exercidas pelo particular de iure proprio. Dessa forma, a atuação nas áreas em que a Constituição Federal autoriza a ação autônoma e em nome próprio dos particulares – caso das entidades do terceiro setor – não se trataria de descentralização, mesmo que a atuação estatal nessas áreas seja típica. MODESTO, Paulo. Reforma administrativa e marco legal das organizações sociais no Brasil: as dúvidas dos juristas sobre o modelo das organizações sociais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 210, p. 203, out./dez. 1997.24FERREIRA, Sérgio de Andréa. Uma visão crítica das organizações sociais. Revista Trimestral de Direito Público, Rio de Janeiro, n. 25, p. 39, 1999. 25MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Organizações sociais de colaboração: descentralização social e administração pública não-estatal. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 210, p. 187 et seq, out./dez. 1997.26REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 52-53.
19
suas atividades. O requisito de desempenho de atividades não-lucrativas também seria
complementado com a obrigatoriedade de reinvestir na própria entidade qualquer ganho ou
vantagem auferido, subtraídas as despesas envolvidas na atividade.27
Para Andrea Nunes, o rol daqueles que não podem ter para si distribuídos os ganhos da
entidade deve ser compreendido como aquele constante do art. 2º, § 1º, da Lei n.
9.790/199928, verbis:
Art. 1o Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta Lei. § 1o Para os efeitos desta Lei, considera-se sem fins lucrativos a pessoa jurídica de direito privado que não distribui, entre os seus sócios ou associados, conselheiros, diretores, empregados ou doadores, eventuais excedentes operacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, auferidos mediante o exercício de suas atividades, e que os aplica integralmente na consecução do respectivo objeto social. 29 (grifo meu)
Em razão da finalidade não-lucrativa do terceiro setor, Gina Copola conclui que,
tratando-se de pessoa jurídica de direito privado, o requisito de finalidade não-lucrativa
exclui, de plano, a admissibilidade de uma sociedade civil como integrante do terceiro setor,
porquanto entidade que desempenha atividade econômica, necessariamente.30 Já Andrea
Nunes defende que a prática de atos de comércio por sociedade civil não importa a sua
determinação como comercial, devendo ser considerada, para fins de caracterização da
finalidade da entidade, a principal atividade por ela exercida.31
1.1.5 A submissão a regime jurídico peculiar
Por fim, Luis Eduardo Patrone Regules menciona a existência de um novo regime
jurídico aplicável aos entes que compõem o terceiro setor, característico destes. Trata-se de
um regime jurídico situado em zona intermediária, que absorveria tanto elementos do direito
27ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 117. 28NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalização. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 25-26.29A Lei n. 9.790/1999 dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, compreendidas como organizações componentes do terceiro setor, a serem abordadas posteriormente nesse estudo (ver 1.3.4).30COPOLA, Gina. Desestatização e terceirização. São Paulo: NDJ, 2006, p. 11. 31NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalização. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 26.
20
privado quanto do direito público.32
Vislumbra-se a submissão das organizações não-governamentais ao regime de direito
privado no que toca a sua constituição e ao seu funcionamento, porquanto são pessoas
jurídicas de direito privado, formadas por particulares com base nas previsões constantes do
Código Civil pátrio.
No entanto, como bem observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, embora haja uma
predominância do regime jurídico de direito privado, percebe-se que este é parcialmente
derrogado por normas de direito público.33 Isto porque as organizações do terceiro setor
desempenham atividades de interesse público e são comumente destinatárias de incentivos e
tratamento diferenciado por parte do Estado, o que enseja o controle e a fiscalização do Poder
Público no que tange à atuação de tais entidades e à devida utilização dos recursos públicos a
elas destinados.
A peculiaridade do regime jurídico das organizações não-governamentais também é
apontada por Juarez Freitas, ao enfrentar a questão no que concerne às organizações sociais,
espécie de entidade do terceiro setor. Pondera que tais entidades “obedecem a regime sui
generis, não-estatal, contudo, certamente dominado por regras de direito privado e princípios
de direito público”34 e prossegue, afirmando:
(...) resta claro que o regime de tais pessoas jurídicas de direito privado é mesmo atípico. Na ótica prescrita, há uma dominância de regras de direito privado e simultânea preponderância de princípios de direito público, uma vez que se encontram imantadas pelas suas próprias e inescapáveis finalidades de cogentes matizes sociais.35
1.2 A reforma do Estado brasileiro de 1995
Em 1995, primeiro ano do mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o
Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado, capitaneado por Luiz Carlos
Bresser Pereira, elaborou o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, que firmou as
diretrizes e os princípios que deveriam nortear a reestruturação do Estado brasileiro. O 32REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 5333DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 457.34FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 182.35FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 184.
21
referido Plano Diretor foi aprovado pela Câmara da Reforma do Estado em setembro daquele
ano e constituiu-se em marco do início da modernização de gestão do aparelho estatal
brasileiro.
Amparado essencialmente pelo ideário social-democrata, o Plano Diretor da Reforma
do Aparelho do Estado pretendia atuar em duas frentes diferenciadas, porém complementares:
a “redefinição do papel do Estado, que deixa de ser o responsável direto pelo
desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e serviços, para fortalecer-
se na função de promotor e regulador desse desenvolvimento”36 e a implantação do modelo de
administração pública gerencial, voltada para a eficiência da gestão - “a necessidade de
reduzir custos e aumentar a qualidade dos serviços, tendo o cidadão como beneficiário”37.
A aludida reforma origina-se na constatação da chamada “crise do welfare state”: a
incapacidade do Estado em lidar com as competências sociais que, ao longo dos anos, lhe
foram gradualmente atribuídas, e que culminaram na edição da Constituição de 1988 – a
“Constituição Cidadã”, que expandiu ainda mais as áreas de atuação estatal. Para os social-
democratas, como o ex-ministro do Ministério da Administração Federal e Reforma do
Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira, a crise do Estado seria enfrentada com a observância aos
fundamentos macroeconômicos e a realização de reformas orientadas para o mercado, nos
moldes do que preconizados pelos liberais, asseverando que o enfrentamento da crise não
deveria ali se esgotar.
(...) a centro-esquerda social-liberal propôs a reconstrução do Estado, para que este possa – em um novo ciclo – voltar a complementar e corrigir efetivamente as falhas do mercado, ainda que mantendo um perfil de intervenção mais modesto do que aquele prevalecente no ciclo anterior. Reconstrução do Estado que significa: recuperação da poupança pública e superação da crise fiscal; redefinição das formas de intervenção no econômico e no social através da contratação de organizações públicas não-estatais para executar os serviços de educação, saúde, e cultura; e reforma da administração pública com a implantação de uma administração pública gerencial. Reforma que significa transitar de um Estado que promove diretamente o desenvolvimento econômico e social para um Estado que atue como regulador e facilitador ou financiador a fundo perdido desse desenvolvimento.38
Conforme aponta Alvacir Correa dos Santos, o Plano Diretor da Reforma do Aparelho
36BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 12. 37BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 16.38PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997, p. 17.
22
do Estado intenta enfrentar um problema de governança, assim compreendida a capacidade
estatal de implementar políticas públicas. A rigidez e a ineficiência da máquina
administrativa, abatida pela crise fiscal, suprimem a capacidade de governo do Estado, e só
seriam combatidas por meio de um novo modelo de gestão da Administração Pública, voltado
para o atendimento da cidadania.39
A partir do discurso de Bresser Pereira, que sustenta a redução do aparelho estatal para
viabilizar uma firme retomada da intervenção estatal no domínio econômico, em sintonia com
a cartilha keynesiana, cumpre desassociar, por completo, a reforma do Estado de 1995 de
qualquer iniciativa de cunho (neo)liberal.
Frente à ineficiência e inoperância do Estado em cumprir com o que lhe foi atribuído
pelo constituinte, o diagnóstico liberal majoritário desponta diferenciado daquele constante do
Plano Diretor de Reforma do Estado: o problema residiria no modelo de Estado que
desastradamente se aventura a ir além da mera prevenção de interferências nos direitos
individuais. O Estado Social, tal qual delineado pela Constituição Federal de 1988, revestido
na burocrática e engessada estrutura estatal, estaria fadado à recorrente ineficiência, ao
intrometer-se em esferas que poderiam ser reguladas pelo mercado, compreendendo-se este
último como uma manifestação da cooperação dos indivíduos na consecução de seus
objetivos. Aos liberais, interessa a implantação do Estado Mínimo, aquele em que a finalidade
única das normas legais e do aparato estatal é assegurar que a cooperação social funcione de
forma pacífica, protegendo-se os direitos reconhecidamente fundamentais: a vida, a liberdade
e a propriedade.40
Assim, a redução do aparelho estatal possui finalidades diferenciadas para liberais e
para social-democratas; estes visam à reconstrução do Estado, para que posteriormente possa
despontar o chamado “Estado Social-Liberal”41, enquanto os primeiros desejam a
39SANTOS, Alvacir Correa dos. Princípio da eficiência da administração pública. São Paulo: LTr, 2003, p. 163-164.40 Robert Nozick assim sintetiza o ideário liberal: “Nossas principais conclusões acerca do Estado são que um Estado mínimo, limitado às restritas funções de proteção contra força, roubo e fraude, de fiscalização do cumprimento de contratos, e outras mais, é justificado; que qualquer outro Estado mais amplo violará os direitos individuais de não ser forçado a fazer certas coisas, e é injustificado; e que um Estado mínimo é tanto inspirador quanto certo. Duas implicações que devem ser registradas são que um Estado não pode usar seu aparato coercitivo com o propósito de fazer com que alguns cidadãos ajudem os outros, ou com o fito de proibir atividades para o próprio bem ou proteção das pessoas.” (tradução minha). NOZICK, Robert. Anarchy, state and utopia. Oxford: Blackwell Publishing Limited, 2001, p. ix (prefácio).41“Nossa previsão é a de que o Estado do século vinte-e-um será um Estado Social-Liberal: social porque continuará a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento econômico; liberal, porque o fará usando mais os controles de mercado e menos os controles administrativos, porque realizará seus serviços sociais e científicos principalmente através de organizações públicas não-estatais competitivas, porque tornará os mercados de trabalhos mais flexíveis, porque promoverá a capacitação dos seus recursos humanos e de suas empresas para a inovação e a competição internacional.” PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília: Ministério da Administração
23
implementação do Estado Mínimo, a partir de uma inovadora concepção de quais sejam as
atividades de que o Estado deve se ocupar.
1.2.1 A participação do terceiro setor no processo de reforma do Estado
Realizada a devida contextualização da reforma do Estado iniciada em 1995, impende
analisar a iniciativa de delimitação da área de atuação do Estado, constante do Plano Diretor
da Reforma do Aparelho do Estado, que previa a participação do terceiro setor no processo de
reconstrução do Estado Social.
Ao apreciar a atuação do Estado, o Plano Diretor apontava a existência de quatro
setores no aparelho estatal moderno: o núcleo estratégico, as atividades exclusivas, a
produção de bens e serviços para o mercado e os serviços não-exclusivos, consistindo estes
últimos em nosso interesse máximo no presente estudo. A cada um deles, encarregou-se o
Plano Diretor de propor a forma de gestão e de propriedade que lhes seriam mais adequadas
dentro do ideal de reconstrução do aparelho do Estado brasileiro.
O núcleo estratégico resta assim definido no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do
Estado:
Corresponde ao governo, em sentido lato. É o setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento. É portanto o setor onde as decisões estratégicas são tomadas. Corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e, no poder executivo, ao Presidente da República, aos ministros e aos seus auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas públicas.42
Para Bresser Pereira, o núcleo estratégico consiste no único setor estatal que não
poderia ser plenamente gerido por meio do modelo de administração pública gerencial,
cabendo, nesse caso específico, a continuidade da adoção de algumas características da
administração pública burocrática.43
“No núcleo estratégico, o fundamental é que as decisões sejam as melhores, e, em
seguida, que sejam efetivamente cumpridas. A efetividade é mais importante que a
Federal e Reforma do Estado, 1997, p. 18. 42BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 41. 43PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estratégia e estrutura para um novo Estado. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 48, n. 1, , p. 17-18, jan./abr. 1997.
24
eficiência.”44 A aludida efetividade é, na redação do Plano Diretor, uma característica
marcante da administração burocrática, justificando a adoção de um misto de administração
pública burocrática e gerencial no que toca à gestão do núcleo estratégico.
Quanto à forma de propriedade, resta indicada a propriedade estatal como aquela
adequada ao núcleo estratégico.
O segundo setor do aparelho estatal consiste nas atividades consideradas exclusivas do
Estado - “aquelas que envolvem o Poder do Estado. São as atividades que garantem
diretamente que as leis e as políticas públicas sejam cumpridas e financiadas.”45 Seriam, na
lição de Bresser Pereira, atividades que consistem na manifestação do poder extroverso do
Estado, em sua forma clássica, somadas às atividades que se tornaram exclusivas do Estado
por conta do advento do Estado Social, exemplificando estas:
Em essência são as atividades de formular políticas na área econômica e social e, em seguida, de realizar transferências para a educação, a saúde, a assistência social, a previdência social, a garantia de uma renda mínima, o seguro desemprego, a defesa do meio ambiente, a proteção do patrimônio cultural, o estímulo às artes. Estas atividades não são todas intrinsecamente monopolistas ou exclusivas, mas na prática, dado o volume das transferências de recursos orçamentários que envolvem, são de fato atividades exclusivas de Estado. 46
Da mesma forma que no núcleo estratégico, nas atividades exclusivas também se
vislumbra a propriedade estatal como necessária.
A produção de bens e serviços para o mercado corresponde à atividade econômica,
com finalidade lucrativa, exercida pelo Estado por meio de entidades integrantes da
Administração Pública indireta. Na concepção dos redatores do Plano Diretor da Reforma do
Aparelho do Estado, a referida atuação do Estado dá-se “seja porque faltou capital ao setor
privado para realizar o investimento, seja porque são atividades naturalmente monopolistas,
nas quais o controle via mercado não é possível”.47 Independentemente das razões que movem
o Estado a realizar tais atividades, certo é que estas devem ser escassas, na esteira do que
prevê o caput do art. 173 da Constituição Federal48.
44BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 42.45PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estratégia e estrutura para um novo Estado. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 48, n. 1, p. 17, jan./abr. 1997.46PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997, p. 23.47BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 42.48Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante
25
No setor de produção de bens e serviços para o mercado, sugere-se a propriedade
privada, deixando a cargo do mercado regular a oferta de tais serviços. Até mesmo no caso
em que haja um monopólio natural, a propriedade privada é indicada como a mais adequada,
desde que sofra regulamentação por parte do Estado.
Por fim, fala-se na existência de serviços que não seriam exclusivos do Estado,
embora venham a ser oferecidos por ele.
SERVIÇOS NÃO EXCLUSIVOS. Corresponde ao setor onde o Estado atua simultaneamente com outras organizações públicas não-estatais e privadas. As instituições desse setor não possuem o poder de Estado. Este, entretanto, está presente porque os serviços envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educação e da saúde, ou porque possuem “economias externas” relevantes, na medida que produzem ganhos que não podem ser apropriados por esses serviços através do mercado. As economias produzidas imediatamente se espalham para o resto da sociedade, não podendo ser transformadas em lucros. São exemplos deste setor: as universidades, os hospitais, os centros de pesquisa e os museus.49
No rol de serviços não-exclusivos do Estado, estariam aquelas atividades na área
social e científica comumente financiadas com recursos públicos, mas cuja execução não é de
titularidade exclusiva do Estado. Bresser Pereira considera que o financiamento destas
atividades constitui-se em atividade exclusiva do Estado, mas que sua execução pode ser
efetuada fora do aparelho estatal, em um espaço público não-estatal.50
Como já referido anteriormente, identifica-se no público não-estatal a presença das
organizações privadas, sem finalidade lucrativa, de interesse público. A propriedade pública
não-estatal, sugerida pelo Plano Diretor para a execução dos ditos serviços não-exclusivos, é
caracterizada como uma subespécie de propriedade pública, que surge como alternativa à
propriedade privada.
O conceito de serviço não-exclusivo aproxima-se significativamente daquele de
“serviço de relevância pública”, adotado por Paulo Modesto. Seriam justamente aquelas
atividades que se encontram em uma dimensão coletiva e que podem ser administradas pelo
terceiro setor, porquanto não há reserva de titularidade estatal. Por se tratarem de atividades
de relevância social, caberia ao Estado a fiscalização, o controle e o fomento destas.51
interesse coletivo, conforme definidos em lei. 49BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 41-42.50PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estratégia e estrutura para um novo Estado. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 48, n. 1, p. 18, jan./abr. 1997.51MODESTO, Paulo. Reforma do Estado, formas de prestação de serviços ao público e parcerias público-privadas: demarcando as fronteiras dos conceitos de “serviço público”, “serviços de relevância pública” e “serviços de exploração econômica” para as parcerias público-privadas. In: SUNDFELD, Carlos Ari
26
Uma vez apontada a alternativa da propriedade pública não-estatal para os serviços
não-exclusivos do Estado, encarrega-se o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado de
estabelecer como objetivo para este setor estatal a implantação de um processo de
publicização, assim compreendida “a descentralização para o setor público não-estatal da
execução de serviços que não envolvem o exercício do poder de Estado, mas devem ser
subsidiados pelo Estado, como é o caso dos serviços de educação, saúde, cultura e pesquisa
científica.”52 Embora a terminologia escolhida possa remeter tão-somente ao aspecto público,
tem-se que a publicização visa a transferir a uma entidade privada a prestação de serviços
considerados não-exclusivos do Estado, subsidiando-a.
Bresser Pereira sintetiza, com clareza, o fundamento da escolha pelo público não-
estatal na prestação de serviços não-exclusivos por ocasião da reforma do Estado de 1995.
Se assumirmos que [atividades não-exclusivas] devem ser financiadas ou fomentadas pelo Estado, seja porque envolvem direitos humanos básicos (educação, saúde), seja porque implicam externalidades envolvendo economias que o mercado não pode compensar na forma de preços e lucro (educação, saúde, cultura, pesquisa científica), não há razão para que sejam privadas. Por outro lado, uma vez que não implicam o exercício de poder do Estado, não há razão para que sejam controladas pelo Estado. Se não têm, necessariamente, de ser propriedade do Estado nem de ser propriedade privada, a alternativa é adotar-se o regime da propriedade pública não-estatal ou – usando a terminologia anglo-saxônica – da propriedade pública não-governamental. “Pública”, no sentido de que se deve dedicar ao interesse público, que deve ser de todos e para todos, que não visa ao lucro; “não-estatal” porque não é parte do aparelho do Estado.53
Assim, por meio do processo da publicização, o terceiro setor desponta como partícipe
da reforma do Estado de 1995, oferecendo uma alternativa à Administração Pública no que
toca à prestação de serviços considerados essenciais, de interesse público, cuja execução é
livre aos particulares. A participação da sociedade civil na gestão e nos mecanismos de
controle dos serviços prestados afigurar-se-ia produtiva e em sintonia com os preceitos de
flexibilização e eficiência trazidos pela reforma.
1.2.2 Principio da subsidiariedade
(Coord.). Parcerias público-privadas. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 456-465 passim. 52BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 12-13.53PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estratégia e estrutura para um novo Estado. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 48, n. 1, p. 18, jan./abr. 1997.
27
Das diretrizes informadas pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado
brasileiro, em especial a redução das áreas de atuação direta do Estado e a provisão de
incentivos diversos ao terceiro setor para a prestação de serviços considerados de relevância
social, é possível extrair a observância ao dito princípio da subsidiariedade, que fundamenta a
participação do terceiro setor no processo de reforma do Estado e a delimitação das áreas de
atuação estatal.
O princípio da subsidiariedade tem sua origem na doutrina social da Igreja Católica,
tendo sido primeiramente delineado pela Encíclica Quadragesimo Anno (1891), do Papa Pio
XI:
Verdade é, e a história o demonstra abundantemente, que, devido à mudança de condições, só as grandes sociedades podem hoje levar a efeito o que antes podiam até mesmo as pequenas; permanece contudo imutável aquele solene princípio da filosofia social: assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efectuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à colectividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua acção é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los.Deixe pois a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado; poderá então desempenhar mais livre, enérgica e eficazmente o que só a ela compete, porque só ela o pode fazer : dirigir, vigiar, urgir e reprimir, conforme os casos e a necessidade requeiram. Persuadam-se todos os que governam: quanto mais perfeita ordem jerárquica reinar entre as varias agremiações, segundo este princípio da função « supletiva » dos poderes públicos, tanto maior influência e autoridade terão estes, tanto mais feliz e lisonjeiro será o estado da nação.54 (grifo meu)
Observa-se no trecho supra a primeira abordagem substancial pelo magistério da
Igreja Católica no que concerne à primazia da autonomia dos indivíduos sobre as iniciativas
de um ente superior. Atribui-se à autoridade pública uma função subsidiária, “supletiva”,
deixando a cargo dos particulares a realização de ações que lhe cabem, porquanto improfícua
e abusiva a atuação de um ente maior nas matérias que podem ser assumidas por entes
menores.55
No mesmo sentido dispõe a Encíclica Mater et Magistra (1961), do Papa João XXIII,
54IGREJA CATÓLICA. Papa (1922-1939: Pio XI). Encíclica Quadragesimo Anno. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno_po.html> Acesso em: 02 setembro.2007.55TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 3.
28
ao reproduzir, ipsis litteris, os ensinamentos previamente expostos na Quadragesimo Anno, e
ao definir como fim do ente superior o fornecimento das condições que viabilizem a
realização do bem comum pelos indivíduos:
A ação desses poderes [poderes públicos], que deve ter caráter de orientação, de estímulo, de coordenação, de suplência e de integração, há de inspirar-se no "princípio de subsidiariedade", formulado por Pio XI na encíclica Quadragesimo Anno (...)Para o conseguir [a socialização e suas vantagens], requer-se, porém, que as autoridades públicas se tenham formado, e realizem praticamente, uma concepção exata do bem comum; este compreende o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral da personalidade. E cremos necessário, além disso, que os corpos intermediários e as diversas iniciativas sociais, em que sobretudo procura exprimir-se e realizar-se a socialização, gozem de uma autonomia efetiva relativamente aos poderes públicos, e vão no sentido dos seus interesses específicos, com espírito de leal colaboração mútua e de subordinação às exigências do bem comum. Nem é menos necessário que os ditos corpos apresentem forma e substância de verdadeiras comunidades; isto é, que os seus membros sejam considerados e tratados como pessoas, e estimulados a participar ativamente na vida associativa. 56 (grifo meu)
O princípio da subsidiariedade também constou, de forma expressa, da Encíclica
Pacem in Terris (1963), também do Papa João XXIII, que o estendeu à esfera internacional:
Como as relações entre os indivíduos, famílias, organizações intermédias e os poderes públicos das respectivas comunidades políticas devem estar reguladas e moderadas, no plano nacional, segundo o princípio de subsidiariedade, assim também, à luz do mesmo princípio, devem disciplinar-se as relações dos poderes públicos de cada comunidade política com os poderes públicos da comunidade mundial. Isto significa que os problemas de conteúdo econômico, social, político ou cultural, a serem enfrentados e resolvidos pelos poderes públicos da comunidade mundial hão de ser da alçada do bem comum universal, isto é serão problemas que pela sua amplidão, complexidade e urgência os poderes públicos de cada comunidade política não estejam em condições de afrontar com esperança de solução positiva. Os poderes públicos da comunidade mundial não têm como fim limitar a esfera de ação dos poderes públicos de cada comunidade política e nem sequer de substituir-se a eles. Ao invés, devem procurar contribuir para a criação, em plano mundial, de um ambiente em que tanto os poderes públicos de cada comunidade política, como os respectivos cidadãos e grupos intermédios, com maior segurança, possam desempenhar as próprias funções, cumprir os seus deveres e fazer valer os seus direitos.57 (grifo meu)
Mais recentemente, a Encíclica Centesimus Annus (1991), redigida pelo Papa João
56IGREJA CATÓLICA. Papa (1958-1963: João XXIII). Encíclica Mater et Magistra. Disponível em: < http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_15051961_mater_po.html> Acesso em: 02 setembro 2007.
29
Paulo II, voltou a reafirmar a necessidade de observância ao princípio da subsidiariedade na
atuação do ente maior, citando supostos abusos intervencionistas ocorridos por ocasião da
implantação do Welfare State. Para João Paulo II, a criação do Estado Social, fundada na
necessidade de responder às carências sociais experimentadas por grande parcela da
população, desencadeou uma série de excessos no que toca ao assistencialismo provido pelo
Estado, que expandiu demasiadamente o campo de atuação do Poder Público.
Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o «Estado do bem-estar». Esta alteração deu-se em alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas necessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como «Estado assistencial». As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua acção com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum.Ao intervir directamente, irresponsabilizando a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do sector estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários com um acréscimo enorme das despesas. De facto, parece conhecer melhor a necessidade e ser mais capaz de satisfazê-la quem a ela está mais vizinho e vai ao encontro do necessitado. (...) 58 (grifo meu)
Prossegue João Paulo II, expondo que, no campo da economia, cabe ao Estado
assegurar as “garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e
serviços públicos eficientes”59. Dentro do setor produtivo, também deteria o Estado a
competência não-privativa de fiscalizar a observância aos direitos humanos dos indivíduos, a
ser compartilhada com os cidadãos e com os diversos entes privados em que se articula a
sociedade civil, e o direito de intervir em monopólios que se mostrassem prejudiciais para o
progresso de uma nação. Outrossim, reserva ao Estado “funções de suplência em situações
excepcionais, quando sectores sociais ou sistemas de empresas, demasiado débeis ou em vias
57IGREJA CATÓLICA. Papa (1958-1963: João XXIII). Encíclica Pacem in Terris. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem_po.html> Acesso em: 02 setembro 2007.58IGREJA CATÓLICA. Papa (1978-2005: João Paulo II). Encíclica Centesimus Annus. Disponível em: <http://www.vatican.va/edocs/POR0067/_INDEX.HTM> Acesso em: 02 setembro 2007.59IGREJA CATÓLICA. Papa (1978-2005: João Paulo II). Encíclica Centesimus Annus. Disponível em: <http://www.vatican.va/edocs/POR0067/_INDEX.HTM> Acesso em: 02 setembro 2007.
30
de formação, se mostram inadequados à sua missão”. 60
A partir das disposições impressas nas encíclicas aqui mencionadas, é possível notar
um sólido conjunto doutrinário concernente ao princípio da subsidiariedade no âmbito do
magistério da Igreja Católica. A leitura dos textos aludidos viabiliza a compreensão do
princípio da subsidiariedade como aquele destinado a assegurar que a atuação do ente maior
não interfira na autonomia individual e coletiva de forma injustificada, ao passo que prevê a
ingerência do ente maior sobre o ente menor, na forma de estímulos, auxílios e orientação ou
até mesmo de suplência, quando as necessidades dos entes inferiores não puderem ser por eles
mesmos providas.
Conforme expõe Silvia Faber Torres, a doutrina católica a respeito do tema expõe uma
dupla perspectiva do princípio, “negativa e positiva, pelas quais a subsidiariedade se
manifesta, respectivamente, como limite à intervenção do ente maior e como justificação
àquela intervenção.”61
O princípio da subsidiariedade, extraído essencialmente da doutrina social da Igreja
Católica, foi transportado para o direito público a partir de um enfoque especializado, em que
o Estado figura como o ente maior e a sociedade civil como o ente menor. Passa-se, então, a
conceber limites à atuação do Estado, descentralizando-se a atividade tipicamente estatal, com
a previsão de que os indivíduos e as entidades intermédias – englobadas aí as organizações
pertencentes ao terceiro setor – dediquem-se a buscar a realização de seus interesses. Remete-
se, aqui, ao fim do monopólio estatal da consecução de interesses gerais, já abordado nesse
estudo.62
No âmbito do direito público, a princípio da subsidiariedade encontra dois planos
possíveis para a sua aplicação. O plano vertical traduz-se no princípio federalista de divisão
de atribuições entre o ente central e os entes locais, com a finalidade de “manter a gestão
administrativa o mais próximo possível do cidadão. Implica, pois, em definir que tarefas
cumprem às instâncias menores e quais, por dedução, devem ser realizadas pelos entes
maiores e central.”63 O plano horizontal, por sua vez, diz respeito às relações entre grupos
sociais ou entre o público e o privado.64
60IGREJA CATÓLICA. Papa (1978-2005: João Paulo II). Encíclica Centesimus Annus. Disponível em: <http://www.vatican.va/edocs/POR0067/_INDEX.HTM> Acesso em: 02 setembro 2007.61TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 33.62 Ver 1.1.1.63TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 35-36.64DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 35.
31
Assevera Silvia Faber Torres que a aplicação do princípio da subsidiariedade no
âmbito do direito público, em especial do Direito Administrativo, serviu à consolidação das
transformações sociais ocorridas por ocasião da crise do Estado Social, que findou por
remodelar o papel da sociedade civil na gestão da demanda social. Diante da ineficiência
estatal em prover as prestações constitucionalmente previstas, a comunidade passa a buscar o
aumento de sua participação no processo de decisões, o que enseja a criação e o
fortalecimento das entidades intermédias como instrumento de representação da sociedade
organizada. O princípio da subsidiariedade legitima essa nova organização social, que visa a
uma sociedade civil mais participativa e autônoma.65
A delimitação da atuação estatal trazida pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho
do Estado reflete a tentativa de adequar a estrutura do Estado ao princípio em comento,
redistribuindo a responsabilidade de prestação dos serviços ditos não-exclusivos e do
desempenho da atividade de produção de bens e serviços. Nos casos em que os particulares
podem prover, por si, sua necessidade, desfaz-se a atuação direta do Estado, limitando-se ele
tão-somente ao incentivo, fomento, fiscalização e coordenação das atividades, quando
necessário.
Observa-se, assim, no plano das relações entre o Poder Público e a sociedade civil, o já
aludido enfoque negativo-positivo do princípio da subsidiariedade: o aspecto negativo, como
aquele em que “a autoridade e o Estado não devem impedir as pessoas ou os grupos sociais de
conduzir suas próprias ações”66, traduzido na limitação da atividade estatal, no respeito das
liberdades, dos indivíduos e dos grupos67; o aspecto positivo, em que “cada autoridade tem
por missão incitar, sustentar e, finalmente suprir, quando necessário, os atores insuficientes”.68
1.2.2.1 A subsidiariedade na ordem constitucional brasileira
Mesmo antes de despontar como parâmetro para a reforma do Estado, o princípio da
65TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 122-123.66BARACHO apud REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 67.67BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas (Coord.). Desenvolvimento econômico e intervenção do Estado na ordem constitucional: estudos jurídicos em homenagem ao professor Washington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1995, p. 120.68BARACHO apud REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 67.
32
subsidiariedade já encontrara acolhimento no ordenamento jurídico pátrio, não estando
envolto de completo ineditismo. Como bem observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o
princípio da subsidiariedade já havia sido adotado à época da Constituição Federal de 196769,
quando esta dispunha, em seu art. 163, § 1º:
Art 163 - Às empresas privadas compete preferencialmente, com o estímulo e apoio do Estado, organizar e explorar as atividades econômicas.§ 1º - Somente para suplementar a iniciativa privada, o Estado organizará e explorará diretamente atividade econômica.
A Constituição Federal de 1988 igualmente reflete, em diversos dispositivos, a
observância ao princípio da subsidiariedade. No que toca ao exercício de atividade
econômica, dispõe, em seu art. 173, caput, que esta só será desenvolvida por motivo de
segurança nacional ou de relevante interesse coletivo, conforme definido em lei. Reservou-se
ao Estado, assim, o exercício de função meramente supletiva no que concerne à exploração de
atividade econômica.70 Maria Sylvia Zanella Di Pietro identifica no referido artigo um
retrocesso no que concerne à aplicação do princípio da subsidiariedade, comparativamente à
Constituição Federal de 1967, já que se valeu de conceitos indeterminados – “segurança
nacional”, “relevante interesse coletivo” –, deixando de prever expressamente a posição
subsidiária do Estado.71
Outro desdobramento decorrente da aplicação do princípio da subsidiariedade – a
colaboração entre o Estado e a sociedade civil – também encontra previsão na Constituição
Federal de 1988, em áreas como a saúde, a assistência social, a educação, a cultura e o meio
ambiente, verbi gratia.
O art. 199 da Constituição Federal de 1988 dispõe que é livre à iniciativa privada a
assistência à saúde, acrescentando, em seu § 1º, que instituições privadas poderão participar
do Sistema Único de Saúde em caráter complementar aos serviços públicos de saúde.72 Prevê,
também, em seu art. 198, inciso III, a participação da sociedade na formulação da política de
saúde, por meio de instrumentos como a Conferência de Saúde e o Conselho de Saúde,
69DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O direito administrativo brasileiro sob influência dos sistemas de base romanística e da common law. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, n. 16, p. 27, jan./mar. 2007.70REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 63.71DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 44. 72Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
33
criados pela Lei n. 8.142/1990.73
No âmbito da assistência social, há o art. 204, incisos I e II, que dispõe acerca da
parceria entre o Poder Público e entidades beneficentes e da participação da população, por
meio de organizações representativas, na formulação de políticas e no controle das ações
governamentais nesta área.
A educação é definida pelo constituinte como um dever a ser compartilhado entre o
Estado e a família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, conforme
disposição constante do art. 205, caput. A participação do setor privado na promoção da
educação é realçada pelo art. 209, caput, que deixa livre à iniciativa privada o
desenvolvimento de atividades de ensino, e pela atividade de fomento prevista no art. 213,
verbis:
Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: I - comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação;II - assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.§ 1º - Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade.§ 2º - As atividades universitárias de pesquisa e extensão poderão receber apoio financeiro do Poder Público. (grifo meu)
Também sob influência do princípio da subsidiariedade, há a previsão de participação
de entidades não-governamentais na promoção de assistência integral à saúde da criança e do
adolescente, registrada no art. 227, § 1º, da Constituição Federal.
A colaboração da comunidade na promoção e proteção do patrimônio cultural, por sua
vez, resta prevista no art. 216, § 1º, da Constituição Federal. O dever de proteção do meio
ambiente é igualmente estendido à coletividade, no art. 255, caput.
O princípio da subsidiariedade continuou a permear a ordem constitucional brasileira
por meio das modificações de texto sofridas pela Constituição Federal de 1988. Impende,
aqui, citar a Emenda Constitucional n. 5, que alterou o art. 25, § 2º, para eliminar os
monopólios estaduais de exploração de gás canalizado, a Emenda Constitucional n. 8, que pôs 73WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e federação na constituição brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 171-172.
34
fim ao monopólio da prestação de serviços de telecomunicação, dando nova redação ao art.
21, inciso XI e inciso XII, alínea “a”, e a Emenda Constitucional n. 9, que permitiu a
contratação de empresas estatais ou privadas para a realização das atividades relacionadas à
exploração do petróleo, todas editadas em 1995.
Nesse contexto, mister mencionar, também, a Emenda Constitucional n. 19, de
comumente referida como a concretização da “reforma administrativa” no Brasil, diretriz do
Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. A aludida Emenda Constitucional
promoveu a implantação do modelo gerencial na gestão do Estado e, por conseguinte, a
implantação de instrumentos como a participação do usuário na administração pública direta e
indireta (art. 37, § 3º) e a inclusão do princípio da eficiência no rol dos princípios
constitucionais a serem observados pela Administração Pública brasileira (art. 37, caput).
1.2.2.2 A atividade de fomento
O dito aspecto positivo do princípio da subsidiariedade – a ação persuasiva e
incentivadora do Estado, direcionada aos entes intermédios – concretiza-se na atividade
administrativa denominada atividade de fomento público. É um instrumento do Estado
subsidiário, servindo-se a estimular certos entes a desenvolverem atividades de interesse
público. Consiste em ajuda, provida pelo Estado, operacionalizada de forma variada, com o
fito de prover as condições ideais para que os agentes fomentados realizem atividades que
aproveitem à coletividade.
Nas palavras de Silvia Faber Torres, a atividade de fomento, manifestada sob a forma
de ajuda alcançada pelo Poder Público àqueles que desempenham atividade de interesse
público, é uma das formas de intervenção estatal legítima do Estado subsidiário.74
Fernando Garrido Falla assim a define:
(...) aquella actividad administrativa que se dirige a satisfacer indirectamente ciertas necessidades consideradas de carácter público protegiendo o promoviendo, sin emplear la coaccíon, las actividades de los particulares o de otros entes públicos que directamente las satisfacen.75
A partir da definição oferecida por Garrido Falla, é possível extrair os caracteres que
74TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 154-155.
35
compõem a atividade de fomento do Estado.
Consistindo em atividade exercida pelo Estado, cuja finalidade deve ser o atendimento
ao interesse público, o fomento caracterizar-se-ia como uma função administrativa. Como tal,
a atividade de fomento submete-se à incidência dos vetores principiológicos da ação
administrativa, sendo impossível dissociar a atividade de fomento da observância aos
princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade, moralidade, eficiência e outros
consagrados na Constituição Federal, sob pena de nulidade.76
Na lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, será objeto de fomento estatal a
atividade que tenha sido considerada, por lei, de interesse público para o desenvolvimento
integral e harmonioso da sociedade.77 A obrigatoriedade da prévia configuração legal da
atividade de fomento também é sustentada por Sílvio Luís Ferreira da Rocha, que afasta a
possibilidade de estipulação por regulamento ou por ato administrativo.78
Ainda sobre a necessidade de observância ao princípio da legalidade na atividade
administrativa de fomento, acrescenta Célia Cunha Mello:
Cumpre ainda salientar que a finalidade perseguida pelo Estado no exercício da função pública deve ser extraída do ordenamento jurídico, e não exclusivamente da lei, em sentido material. Isso porque o regime de estrita legalidade apresenta uma fragilidade estrutural acentuada. O princípio da legalidade, hodiernamente, significa conformidade com o ordenamento jurídico.79
A atividade de fomento caracteriza-se, também, pela ausência de coação. A ajuda
alcançada pelo Estado ao agente fomentado para a consecução de atividades de caráter
público não é imposta, constituindo-se em instrumento facultativo. Nas palavras de Diogo de
Figueiredo Moreira Neto, a relação que se estabelece entre fomentador e fomentado está no
campo da administração consensual, revestida, portanto, de facultatividade. Atos punitivos ou
de coação apenas poderão ser exercidos pelo Estado quando a relação já restar estabelecida, a
partir da adesão do particular.80 75“(...) aquela atividade administrativa que se dirige a satisfazer indiretamente certas necessidades consideradas de caráter público, protegendo ou promovendo, sem empregar a coação, as atividades dos particulares ou de outros entes público que diretamente as satisfazem.” (tradução minha) FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 306.76OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 518.77MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 524.78ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 31.79MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 28.80MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 524.
36
Assim, ao aderir à percepção de auxílio estatal, o administrado voluntariamente
compromete-se em cooperar para o alcance de finalidades de interesse público. Ninguém é
obrigado a submeter-se a tais instrumentos de estímulo, inexistindo compulsoriedade. A
relação jurídico-administrativa de fomento público é constituída fundamentalmente pelo
consentimento do fomentado, que demonstra sua disposição em adotar o comportamento
desejado pelo Estado.81
A partir do momento que adere aos propósitos do Estado, o agente fomentado obriga-
se a perseguí-los, ficando inteiramente vinculado aos fins pretendidos pelo Poder Público –
afinal, os privilégios e incentivos outorgados ao agente fomentado decorrem justamente do
comprometimento em atender às condições impostas pelo Estado no momento da constituição
da relação jurídica de fomento.
Nas palavras de José Roberto Pimenta de Oliveira:
(...) sem a nota de compulsoriedade, a relação de fomento depende, em derradeira instância, do consentimento e engajamento dos particulares na busca das finalidades pretendidas, no moldes legais. Entretanto, travada a relação de fomento, seus termos publicísticos passam a veicular entidade fomentadora e agente fomentado, em termos de prerrogativas de autoridade, direitos, deveres, obrigações e ônus, até a extinção do vínculo-jurídico administrativo.82
Outrossim, tem-se que a atividade de fomento serve a promover ou proteger o
desempenho de atividades de caráter público. O objetivo da atividade de fomento será,
sempre, incentivar ou preservar uma atuação privada que satisfaça interesse público,
traduzida, portanto, em favorecimento do bem-estar geral.83 O fundamento que embasa a
justificativa da interferência estatal por meio da atividade de fomento, quando presente uma
atividade privada que aproveita à coletividade, é exposta, com clareza, por Silvia Faber
Torres:
Quando determinado interesse realizado por um indivíduo ou grupo intermédio excede os limites estritamente privados, ele adquire uma relevância social que o ordenamento não pode desprezar, cumprindo-lhe, assim, incentivar a iniciativa do particular e estimular o desempenho da atividade por outros entes sociais. O Estado, nesse diapasão, não intervém apenas para limitar ou restringir os direitos dos administrados, mas
81MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 29.82OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 516.83ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 31.
37
especialmente para ampliá-los, com vista a lograr o interesse geral.84
A atividade de fomento desempenhada pelo Estado que não se encarrega de promover
ou proteger atividade de interesse geral afigura-se ilegítima, injustificável e discriminatória,
nas palavras de Sílvio Luís Ferreira da Rocha. Da mesma forma, assevera José Roberto
Pimenta de Oliveira que, inexistindo um “vínculo lógico-jurídico entre a compostura das
medidas promocionais e realização dos interesses públicos objeto de sua destinação jurídica, a
medida fomentadora é inconstitucional, por manifestado desacerto axiológico”85.
Ao prover sua definição de atividade de fomento, Fernando Garrido Falla salienta a
possibilidade de que a atividade fomentada possa ser exercida por sujeitos públicos, e não
somente por particulares. Amplia, assim, a definição anteriormente oferecida por Luis Jordana
de Pozas, que apenas admitia o fomento direcionado a atividades exclusivamente privadas.86
Para Garrido Falla, é possível que um ente público possa fomentar atividades desempenhadas
por outro ente público, outorgando-lhe incentivos e vantagens para que este adote um
determinado comportamento. Cita o exemplo das escolas públicas primárias, estabelecidas
pelo Estado, que satisfazem concretamente as necessidades de uma comunidade municipal e,
por isso, percebem subvenções, para que sintam estimuladas o desempenho da atividade de
ensino.87
As técnicas de que se vale o Poder Público para o desempenho da atividade de
fomento podem ser classificadas sob dois aspectos distintos: a forma de atuação sobre a
vontade dos sujeitos fomentados e o tipo de vantagens que são outorgadas. Esta é a
classificação da qual se ocupa a doutrina majoritária, a partir de critérios inicialmente
oferecidos por Jordana de Pozas.88
No que concerne à forma de atuação sobre a vontade do agente fomentado, fala-se em
fomento positivo – aquele que outorga prestações, bens ou vantagens em favor do titular da
atividade ou empresa que se trata de estimular89 – e fomento negativo – aquele que constitui
84TORRES, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 166.85OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 526.86POZAS apud FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 306.87FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 306.88POZAS apud FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 312.89FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 312.
38
obstáculos ou cargas para dificultar, por meios indiretos, o desempenho de atividades ou
estabelecimentos contrários àqueles que a Administração deseja fomentar90. Acerca deste
último, Célia Cunha Mello reprisa crítica tecida por Garrido Falla, ao identificar na técnica
utilizada pelo dito fomento negativo um caráter coativo, que desnaturaria a sua qualidade de
atividade de fomento. Ao utilizar meios coativos, tratar-se-ia de exercício de poder de polícia,
e não de atividade de fomento, uma vez que o desempenho desta está atrelado,
necessariamente, ao emprego de meios persuasivos.91
Quanto aos tipos de vantagens concedidas, vislumbra-se a utilização de meios
honoríficos, econômicos e jurídicos, assim sintetizados por Garrido Falla:
Los medios de fomento honoríficos comprenden las distinciones y recompensas que se otorgan como público reconecimiento a un acto o a una conducta ejemplar. Deben incluirse aquí las condecoraciones, títulos, tratamientos, trofeos, diplomas, etc., sin que las consecuencias económicas que a veces aparejan algunas de estas concesiones sirvan a desvirtuar su naturaleza.Son medios de fomento económico todos aquellos que directa o indirectamente determinam uma ventaja pecuniaria para el sujeto fomentado. Se incluyen aquí las subvenciones, primas, premios, anticipos y préstamos y, en general, las exenciones fiscales.Por último, son medios jurídicos aquellos que se caracterizan por el otorgamiento de uma situación de privilegio que determina que el sujeto fomentado se beneficie de la utilización de medios jurídicos excepcionales.92
Cumpre registrar que a mencionada classificação dos tipos de vantagens concedidas
encontra resistência por parte de Sílvio Luís Ferreira de Rocha, que infere imprecisão no
termos lá utilizados. Afirma que as vantagens honoríficas e econômicas, uma vez previstas em
normas, também poderiam ser classificadas como uma espécie jurídica de fomento, raciocínio
este que colocaria em xeque a supramencionada classificação.93
Interessam-nos, particularmente, os meios econômicos e jurídicos de fomento, em
90FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 312.91MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 89.92“Os meios de fomento honoríficos compreendem as distinções e recompensas que se outorgam como público reconhecimento a um ato ou a uma conduta exemplar. Deve ser incluídas, aqui, as condecorações, títulos, tratamentos, troféus, diplomas, etc., sem que as conseqüências econômicas que às vezes acompanham algumas destas concessões sirvam a desvirtuar sua natureza.São meios de fomento econômico todos aqueles que direta ou indiretamente determinam uma vantagem pecuniária para o sujeito fomentado. Incluem-se, aqui, as subvenções, bônus, prêmios, adiantamentos e empréstimos e, geralmente, as isenções fiscais.Por último, são meios jurídicos aqueles que se caracterizam pela outorga de uma situação de privilégio que determina que o sujeito fomentado se beneficie da utilização de meios jurídicos excepcionais.” (tradução minha) FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, v. 2, p. 313.93ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, p. 35.
39
virtude do escopo do presente estudo. Tais meios de fomentos passam a figurar na
Administração Pública brasileira por ocasião do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do
Estado, que empreendeu introduzir uma nova forma de gerir os serviços públicos. O Estado,
ao repassar a prestação dos serviços não-exclusivos a organizações do terceiro setor,
encarrega-se de fomentá-los, financiando as atividades desempenhadas pelos particulares.
Portanto, no que se refere aos serviços considerados não-exclusivos, pretende-se que o
Estado brasileiro passe a assumir uma posição de mero financiador, não mais os prestando
diretamente. O processo de transferência do setor estatal para o público não-estatal dos
serviços não-exclusivo é chamado de publicização94 e os instrumentos de fomento adotados
para a concretização desse fim são essencialmente três: a outorga de títulos jurídicos, a
celebração de contratos de gestão e a destinação de subvenção social.
Ao elencar os objetivos a serem perseguidos em relação aos serviços não-exclusivos
do Estado, o Plano Diretor explicita o fomento às atividades desempenhadas pelo setor
público não-estatal, por meio de dotação orçamentária, mantendo o encargo estatal de
financiar tais atividades, ainda que não venha a prestá-las diretamente. Assim dispõe:
Transferir para o setor publico não-estatal estes serviços, através de um programa de “publicização”, transformando as atuais fundações públicas em organizações sociais, ou seja, em entidades de direito privado, sem fins lucrativos, que tenham autorização específica do poder legislativo para celebrar contrato de gestão com o poder executivo e assim ter direito a dotação orçamentária.95 (grifo meu)
Introduz-se a idéia da outorga de um título jurídico a determinadas entidades de direito
privado, sem fins lucrativos, que as qualifica como “organizações sociais”, autorizadas a
celebrar um contrato de gestão com o Poder Público e, assim, obter o direito ao repasse de
recursos públicos, para financiamento de suas atividades.
A concessão de título jurídico produz, por conseguinte, uma condição privilegiada aos
outorgados, da qual decorre um efeito jurídico mediato: a possibilidade de celebrar um
contrato de gestão com a Administração Pública, capaz de ensejar o repasse de recursos
orçamentários. Trata-se, claramente, de um meio de fomento encontrado pela Administração
Pública para estimular os particulares que se dedicam ao desempenho de uma atividade tida
por não-exclusiva do Estado, mas de significativa relevância social.
Também haveria, no contexto das organizações sociais, a previsão de que estas sejam 94BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 46.95BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 46-47.
40
destinatárias de subvenções sociais. Sílvio Luís Ferreira da Rocha, a partir de uma leitura da
Lei n. 4.320/1964 e do Decreto n. 93.872/1986, identifica na subvenção um instrumento para
a atividade de fomento. Define a subvenção como a transferência financeira que se destina a
cobrir despesas de custeio de entidades públicas ou privadas, compreendidas como despesas
de custeio aquelas que garantem a manutenção e a operação dos serviços prestados pela
entidade subvencionada.96
Invocando o art. 16 da Lei n. 4.320/1964, Sílvio Luís Ferreira da Rocha refere que a
subvenção do tipo social – aquela destinada a instituições de caráter assistencial ou cultural,
conforme prevê o art. 60 do Decreto n. 93.872/1986 – deve ser outorgada sempre que o
repasse de recursos à iniciativa privada para a execução de um determinado serviço, ao invés
da prestação direta deste, mostrar-se mais econômico para o Poder Público.97
A previsão de que as organizações sociais possam se tornar destinatárias de
subvenções sociais consta, inclusive, da minuta de estatuto-padrão editada pelo Ministério da
Administração Federal e Reforma do Estado.98
Passemos, então, à classificação dos meios de fomentos direcionados a promover a
prestação de serviços não-exclusivos.
Embora a concessão do título jurídico de organização social possa, em uma análise
inicial, ser apontada como um meio de fomento honorífico, uma vez que outorga um título a
um determinado ente privado, parece-nos que o fomento honorífico se vale tão-somente de
um estímulo à honra do fomentado, no intento de persuadi-lo a realizar determinado
propósito. Conforme salienta Célia Cunha Mello, os meios honoríficos não apresentam um
proveito econômico, nem alguma forma de remuneração direta pelo desempenho da
atividade.99
A concessão do título jurídico de organização social, previsto no Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado, afigura-se como meio de fomento disposto a possibilitar a
remuneração dos outorgados, a partir de um segundo instrumento – o contrato de gestão. Não
pretende apenas despertar um sentimento de honra e reconhecimento público naqueles que
demonstram interesse em exercer atividades de interesse público, mas sim autorizá-los a
celebrar um contrato capaz de garantir o repasse de recursos públicos para o financiamento de
96ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 46.97ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 46.98“Art. 8º - Os recursos financeiros necessários à manutenção da ENTIDADE serão obtidos: I - por CONTRATO DE GESTÃO firmado com a UNIÃO através do MINISTÉRIO [COMPETENTE];(...)VII - por subvenções sociais que lhe forem transferidas pelo Poder Público”. BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Organizações sociais. 5. ed. Brasília: 1997, p. 64.99MELLO, Célia Cunha. O fomento da administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 89.
41
suas operações.
Ao nosso ver, tanto o título jurídico outorgado quanto o seu efeito mediato – a
celebração do contrato de gestão – podem ser classificados como meios jurídicos de fomento.
É o que se extrai da definição provida por Sílvio Luís Ferreira da Rocha, a partir das lições de
Roberto Dromi e Héctor Jorge Escola, acerca dos mencionados meios:
Os meios jurídicos de fomento configuram a outorga de uma condição privilegiada a determinadas pessoas, o quê, indiretamente, cria para elas diversas vantagens econômicas. Os meios jurídicos de fomento atuam sobre a condição jurídica dos particulares fomentados e consistem em situações de vantagens ou privilégios desse caráter, que dão lugar a que o particular chegue a beneficiar-se pela utilização ou emprego de meios jurídicos excepcionais.100 (grifo meu)
As subvenções sociais que eventualmente sejam percebidas pelas organizações, por
sua vez, afiguram-se como meios econômicos de fomento, porque se constituem em um
auxílio direto provido pelo Poder Público, implicando um desembolso efetivo de dinheiro do
erário público em favor de um particular.101
1.2.3 Princípio da eficiência
A Emenda Constitucional n. 19, de 1998, que levou a cabo a reforma administrativa
do Estado brasileiro, introduziu no art. 37, caput, da Constituição Federal, o dever de
obediência ao princípio da eficiência por parte da Administração Pública. Aumentou, assim, o
rol de princípios constitucionais a serem observados no exercício da função administrativa do
Estado, explicitando no corpo da Constituição Federal um princípio anteriormente já referido
em outros diplomas legais – encontram-se referências ao princípio da eficiência na Lei n.
8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), em seus arts. 4º, inciso VII, 6º, inciso X, e
22, e no art. 6º, § 1º, da Lei n. 8.987/1995, que dispõe acerca das concessões e permissões de
serviços públicos.
Para autores como Uadi Lammêgo Bulos, Alvacir Correa dos Santos e Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, é possível até mesmo vislumbrar uma referência ao princípio da eficiência
100ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 37.101FALLA, Fernando Garrido. Tratado de derecho administrativo. Vol. II. 6. ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1982, p. 319.
42
no Decreto-lei n. 200/1967, considerada a primeira legislação modernizadora da
Administração Pública brasileira, destinada a regular a esfera administrativa federal. Em seus
arts. 13 e 25, incisos V e VII, art. 26, inciso III, e art. 100, o Decreto-lei n. 200/1967 já
versaria sobre o controle de resultados no âmbito da Administração Federal, antecipando-se à
reforma administrativa de 1998.102
A alusão ao princípio da eficiência na Emenda Constitucional n. 19 reflete um dos
objetivos da reforma do Estado: a implantação de um modelo de administração capaz de
garantir uma maior eficiência na prestação dos serviços que lhe cabem.103 Luis Carlos Bresser
Pereira identifica na administração pública burocrática uma tendência à ineficiência nos
processos que desenvolve, porquanto exerce um controle administrativo prévio
demasiadamente rígido, que objetiva evitar a corrupção e o nepotismo. Para uma gestão mais
eficiente do Estado, sugere a implantação de uma administração gerencial, em virtude das
características que ostenta: a sua orientação para o cidadão e para a obtenção de resultados, a
atribuição de um grau de confiança aos políticos e funcionários públicos, a tendência à
descentralização, o incentivo à criatividade e à inovação e o controle sobre os órgãos
descentralizados.104
Conforme anteriormente já apontado, o modelo gerencial de administração constitui
um objetivo central do processo de reforma do aparelho do Estado, sendo exaustivamente
abordado no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. A nota de eficiência que o
modelo gerencial carrega como diferencial, calcada na descentralização, na orientação para o
cidadão e para a obtenção de resultados, mereceu, portanto, referência na Constituição
102BULOS, Uadi Lammêgo. Reforma administrativa: primeiras impressões. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 214, p. 77, out./dez. 1998; SANTOS, Alvacir Correa dos. Princípio da eficiência da administração pública. São Paulo: LTr, 2003, p. 163-164; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 75.103Élida Graziane Pinto, em ensaio acerca das organizações sociais e da reforma do Estado, tece crítica ao paradigma da administração gerencial e a importância que este adquiriu na reforma do Estado. “Faz-se necessário esclarecer aqui que a Administração Gerencial trata-se de um "paradigma" de gestão que visa a superar (algo bastante questionável) o modelo burocrático segundo os moldes da administração do setor privado, através da mudança nos mecanismos de controle (dos processos aos resultados) e da focalização estrita nos índices de eficiência e desempenho, entre outros. (...) Há que se problematizar ainda a noção de ser o aparato estatal burocrático, "por definição", ineficiente como o pressupõe (implícita e genericamente) o Plano Diretor. É bastante sintomático, neste sentido, praticamente inexistir, no discurso governamental, sequer a cogitação de se buscar um aprimoramento do aparato estatal na prestação de serviços sociais da forma como é feita hoje. Tal ausência denota a unicidade político-ideológica (no sentido da via de minimização do Estado) da proposta de substituição completa ("transferência") da prestação pelo Estado para a prestação pela iniciativa de entidades privadas sem fins lucrativos.” PINTO, Élida Graziane. Organizações Sociais e reforma do Estado no Brasil: riscos e desafios nesta forma de institucionalizar a parceria Estado-sociedade organizada. In: Documentos Debate: Estado, Adminstración Pública y Sociedad : XIV Concurso de Ensayos y Monografías sobre Reforma del Estado y Modernización de la Administración Pública. Ensayos Ganadores 2000. Caracas: CLAD, n. 6, p. 48, abr. 2001.104PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Estratégia e estrutura para um novo Estado. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 48, n. 1, p. 12-14, jan./abr. 1997.
43
Federal, em um esforço no sentido de que a busca por meios eficientes fizesse parte, de fato,
do cotidiano da Administração Pública brasileira.
Destarte, embora o princípio da eficiência elencado no art. 37, caput, da Constituição
Federal, não consista em novidade no ordenamento jurídico, tem-se que a sua inclusão no rol
dos princípios constitucionais a serem observados pela Administração Pública resta
contextualizada na reforma administrativa do Estado brasileiro, estando esta inserida, por sua
vez, na reforma do aparelho do Estado desencadeada em 1995.
Lúcia Valle Figueiredo vislumbra na inclusão do princípio da eficiência ao texto
constitucional uma tentativa, por parte dos reformadores, de justificar as mudanças
constitucionais pretendidas em nome da implantação do modelo de administração gerencial.
Assevera que sempre coube à Administração Pública agir com eficiência em seus
cometimentos, independentemente da referência explícita a tal princípio na Constituição
Federal.105 Nesse mesmo sentido, Paulo Modesto discorre:
A literatura jurídica e administrativa mais recente, no entanto, tem sobrecarregado o princípio da eficiência de expectativas e anátemas, atribuindo-lhe aptidões revolucionárias, muitas delas incompatíveis com os demais princípios indicados, como se a introdução desse signo na cabeça do art. 37 da Constituição Federal modificasse intensamente o núcleo do regime jurídico administrativo. (...) com pleno respeito aos que pensam em contrário, entendo que essas duas leituras da Lei Maior esquecem o essencial. Nunca houve autorização constitucional para uma administração pública ineficiente. A boa gestão da coisa pública é obrigação inerente a qualquer exercício da função administrativa e deve ser buscada nos limites estabelecidos pela lei. A função administrativa é sempre atividade finalista, exercida em nome e em favor de terceiros, razão pela qual exige legalidade, impessoalidade, moralidade, responsabilidade, publicidade e eficiência dos seus exercentes.106
No que consiste o “agir com eficiência”, no âmbito da Administração Pública? Ao
enfrentar a questão da conceituação do princípio da eficiência, a doutrina tem apontado os
vetores que compõem a conduta eficiente do administrador: fala-se em “utilizar as melhores
opções disponíveis para se atingir os resultados necessários à melhor satisfação do interesse
público”107, “presteza, perfeição e rendimento funcional”108, “aproveitamento racional dos
105FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 64.106MODESTO, Paulo. Notas para um debate sobre o princípio constitucional da eficiência. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 31, p. 50, 2000.107DALLARI, Adilson Abreu. Privatização, eficiência e responsabilidade. In: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo (Coord.). Uma avaliação das tendências contemporâneas do direito administrativo: una evaluación de las tendencias del derecho administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 220.108MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 96
44
meios humanos e materiais, minimizando gastos”109, “produtividade no exercício de
atribuições do agente público”110.
Celso Antônio Bandeira de Mello associa a eficiência ao princípio da boa
administração, extraído do Direito italiano, ressaltando a sua vinculação indissociável do
princípio da legalidade, dever administrativo por excelência.111 Parece-nos que o dever de boa
administração engloba, sem qualquer óbice, os elementos supramencionados, constituindo-se
na observância, por parte do agente público, da escolha dos meios aptos a atender o interesse
público, com um menor custo e uma maior produtividade, mesmos nos casos em que a norma
confira discrionariedade ao administrador.112
Embora consista em sinônimo de eficácia, a eficiência, no âmbito técnico-
administrativo, não se confunde com aquela. Na lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a
eficácia consiste na simples produção de resultados juridicamente esperados de um ato,
enquanto a eficiência está presente nos atos praticados com qualidades intrínsecas de
excelência, que possibilitem lograr-se o melhor atendimento possível das finalidades para ele
previstas em lei.113 Enquanto o primeiro atributo lida com uma relação de resultados e fins
esperados, o segundo envolve a relação entre os meios utilizados e os resultados a serem
obtidos.
É cediço que a eficiência no agir administrativo visa a repelir os processos
burocráticos e a lentidão e ineficácia comumente associados a eles. Consiste, pois, em
objetivo perseguido pela administração pública gerencial na prestação de serviços ao cidadão.
A opção do legislador de fazê-lo constar explicitamente na Constituição Federal encontra
guarida nas diretrizes da reforma administrativa empreendida, que visa, em última instância,
109FONSECA, Antonio. O princípio da eficiência: impacto no direito público e improbidade. In: SAMPAIO, José Adércio Leite, et al. Improbidade administrativa: 10 anos da lei 8.429/92. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 41.110MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 242.111MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 117-118.112“Questão interessante a ser tratada a respeito do princípio da eficiência é a sua aplicação aos atos vinculados e discrionários. Os atos vinculados normalmente não são afetados pelo princípio da eficácia. É que, nesses casos, a lei já determina qual a única solução possível para o atingimento do interesse público. A solução ótima, nesses casos, já está prevista em lei.Nos atos discricionários, pelo contrário, caberá ao administrador a escolha da solução que irá atender à finalidade pública prevista pela norma. Nesses casos, o princípio da eficácia apresenta a sua relevância. É que o administrador não pode optar, de maneira aleatória, entre as várias opções disponíveis. (...) O princípio da eficiência impõe a adoção da melhor opção.” HARGER, Marcelo. Reflexões iniciais sobre o princípio da eficiência. Repertório IOB jurisprudência: tribunal, constitucional e administrativo, Rio de Janeiro, n. 16, p. 497, ago. 1999.113MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 106.
45
atenuar o formalismo exarcebado na Administração Pública114. Em publicação do extinto
Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado, encontramos explanação acerca
da necessidade de implantação de uma Administração Pública eficiente:
O objetivo da reforma é permitir que a administração pública se torne mais eficiente e ofereça ao cidadão mais serviços, com maior qualidade. Ou seja, fazer mais e melhor com os recursos disponíveis. A redução de custos será perseguida ao mesmo tempo em que se promove a contínua revisão e aperfeiçoamento das rotinas e processos de trabalho, simplificando procedimentos, desburocratizando e estabelecendo metas e indicadores de desempenho e de satisfação do cidadão.115 (grifo meu)
1.3 A outorga de títulos jurídicos a entidades do terceiro setor no Brasil
O vínculo de colaboração/parceria que se estabelece entre as entidades do terceiro
setor e o Poder Público visa a promover a execução de atividades de relevância social por
parte de particulares, afastando um cenário em que somente o Estado encarregar-se-ia de
prestar, direta ou indiretamente, serviços que sejam notoriamente de interesse público. A
busca pelo assentamento de tais vínculos encontra seu fundamento no ideário do Estado
subsidiário, que preceitua a participação dos administrados na gestão dos interesses gerais,
atribuindo ao Estado um papel supletivo de auxílio e estímulo aos particulares, quando estes
não puderem realizar as suas próprias necessidades, ou quando o desempenho de determinada
atividade afigurar-se insatisfatório ou ineficaz para a coletividade.
A outorga de título jurídico consiste em meio utilizado pela Administração para a
concretização do vínculo de colaboração/parceria com entidades não-governamentais. Trata-
se de um ato de reconhecimento estatal direcionado a certificar que determinadas iniciativas
particulares são de interesse público. O ato administrativo que se presta a tal reconhecimento
não cria ou altera a estrutura organizacional da outorgada, nem informa uma qualidade inata
da entidade; apenas reconhece uma situação fática preexistente que se subsuma às categorias
previstas em lei.116
Paulo Modesto aponta três propósitos da concessão de títulos jurídicos especiais a
114BULOS, Uadi Lammêgo. Reforma administrativa: primeiras impressões. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 214, p. 78, out./dez. 1998.115BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. A reforma do aparelho do Estado e as mudanças constitucionais: síntese & respostas a dúvidas mais comuns. Brasília: 1997, p. 7.116REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 89-90.
46
entidades do setor público não-estatal.
Em primeiro lugar, diferenciar as entidades qualificadas, beneficiadas com o título jurídico, relativamente às entidades comuns, destituídas dessa especial qualidade jurídica. Essa diferenciação permite inserir as entidades qualificadas em um regime jurídico específico. Em segundo lugar, a concessão do título permite padronizar o tratamento normativo de entidades que apresentem características comuns relevantes, evitando o tratamento legal casuístico dessas entidades. Em terceiro lugar, a outorga de títulos permite o estabelecimento de um mecanismo de controle de aspectos da atividade das entidades qualificadas, flexível por excelência, entre outras razões, porque o título funciona como um instrumento que admite não apenas concessão, mas também suspensão e cancelamento.117 (grifo meu)
O estabelecimento de um regime jurídico diverso do regime ordinário é apontado por
Sílvio Luís Ferreira da Rocha como o propósito mais importante do sistema de outorga de
títulos jurídicos. Por meio da concessão de um título jurídico, a Administração atribui à
pessoa jurídica pertencente ao setor público não-estatal uma qualidade que permite diferenciá-
la das demais, submetendo-a a um regime jurídico distinto, em razão das atividades as quais
se dedica.
A função padronizadora, por sua vez, implica a existência de requisitos objetivos,
fixados em lei, para a concessão e manutenção do título outorgado, afastando a possibilidade
de uma análise casuística acerca de quais entidades deverão receber o título jurídico.
Por fim, a outorga de título jurídico viabiliza o controle das entidades qualificadas,
uma vez que estas estão submetidas a um regime jurídico privilegiado, que lhes introduz
benefícios em razão da natureza das atividades que se ocupam. As outorgadas são objeto de
controle estatal e, ao não cumprirem os compromissos firmados, ou deixarem de ostentar
determinado requisito legal, deverão ter o seu título jurídico especial cassado ou suspenso.
Salienta Paulo Modesto que não há falar em direito adquirido a um determinado título jurídico
ou às vantagens a ele associadas quando a entidade outorgada viola as exigências de sua
válida manutenção.118
Como já exposto anteriormente, a outorga de título jurídico também consiste em meio
117MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 77, 1998.118O autor prossegue para alertar que a concessão de títulos jurídicos especiais a entidades de terceiro setor pode apresentar desvios em seus propósitos, fenômenos que nomeia de “efeitos perversos”. Menciona a certificação indevida, por meio da frouxidão dos critérios utilizados ou por fraude, a padronização excessiva, quando os critérios utilizados para a concessão do título são por demais genéricos e abrangentes, tornando-o sem préstimo para as entidades do terceiro setor, e a insegurança jurídica, uma vez que o controle exercido pela Administração Pública submete as entidades qualificadas a uma periódica aferição do cumprimento de exigências, que pode ser passível de desvios e abusos. MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 77, 1998.
47
de fomento à disposição da Administração Pública, capaz de qualificar os outorgados para o
recebimento de benefícios econômicos, efetivados por meio de subvenções, auxílios
financeiros e repasse de recursos orçamentários, com o fito de estimular aqueles que se
propõem a desempenhar atividades de relevância social.
No ordenamento jurídico pátrio atual, há quatro títulos jurídicos outorgáveis a
entidades públicas não-estatais. São eles: o título de utilidade pública, o certificado de
entidade beneficente de assistência social (entidade de fins filantrópicos), o título de
organização social e o título de organização da sociedade civil de interesse público.
1.3.1 Entidades de utilidade pública
O vislumbre do caráter de utilidade pública de determinadas entidades remonta a
tempos distantes. Na lição de Antonio Joaquim Ribas, o Direito romano já reconhecera a
existência de tais entidades, definidas assim aquelas em que “os bens, direitos e obrigações
não pertencem nem áquelles que representão essas instituições e administrão esses bens, de
que aliás devem dar contas, nem áquelles que aproveitão dos serviços prestados por essas
instituições e em cujo favor forão ellas creadas”119 (sic).
No Brasil, mesmo antes de qualquer regulamentação legal acerca da matéria, a
expressão “utilidade pública” já era utilizada como um atributo de determinadas entidades. No
início do século XX, foram editados decretos que declaram “de utilidade pública” instituições
privadas de ensino, embora não fundamentassem esta competência e nem esclarecessem o
significado da declaração.120
Conforme aponta Damião Alves de Azevedo, o Decreto n. 1.339/1905, consiste na
mais antiga declaração de utilidade pública, tendo por destinatárias a Academia de Comércio
do Rio de Janeiro e a Escola Prática do Comércio de São Paulo. Mais adiante, em 1917, as
declarações em comento sofreriam alterações, passando a serem feitas por meio de decreto
legislativo, e não mais presidencial. As declarações tornaram-se mais freqüentes e estendiam-
se às mais diversas entidades da sociedade civil.121
O Código Civil de 1916, em seu art. 16, inciso I, fala em “associações de utilidade 119RIBAS, Antonio Joaquim. Curso de direito civil brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1905, p. 292-293.120AZEVEDO. Damião Alves de. O título de utilidade pública federal e sua vinculação à isenção da cota previdenciária patronal. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/snj/oscip/publicacoes/cota_patronal.pdf> Acesso em: 20 setembro 2007.
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pública”, sem defini-las, no entanto. Somente em 1935 é editada lei federal com o intuito de
dispor as regras pelas quais as sociedades seriam declaradas de utilidade pública – a Lei n.
91/1935. Vinte e seis anos depois, a referida lei é regulamentada pelo Decreto n. 50.517/1961.
Os diplomas legais foram posteriormente alterados pela Lei n. 6.639/1979 e pelo Decreto n.
60.931/1979, respectivamente.
A partir da vigência da Lei n. 91/1935 e de sua regulamentação, restam estabelecidos
requisitos para a obtenção do título jurídico de entidade de utilidade pública, a ser outorgado
às sociedades civis, associações e fundações que sirvam desinteressadamente à coletividade.
Luis Eduardo Patrone Regules assim os sintetiza:
(a) ser constituída no país; (b) ter adquirido personalidade jurídica; (c) estar em efetivo funcionamento em respeito a seus estatutos, nos últimos 3 (três) anos (art. 2.º, alínea c, do Decreto 50.517/1961); (d) não remunerar os cargos de diretoria, conselhos fiscais, deliberativos e consultivos (redação conferida pela Lei 6.639/1979), nem distribuir lucros ou vantagens a dirigentes, mantenedores ou associados (art. 2.º do Decreto 50.517/1961); (e) apresentar a folha corrida e moralidade comprovada pelos seus diretores (art. 2.º, alínea f, do Decreto 50.517/1961); (f) comprovar, mediante relatórios circunstanciados, a promoção da educação ou atividades de pesquisas científicas, culturais, artísticas ou filantrópicas (alínea e, do Decreto 50.517/1961); (g) aceitar o compromisso de publicar periodicamente a demonstração de receitas e despesas.122
A aferição da finalidade de servir desinteressadamente à coletividade afigura-se
desprovida de maiores critérios objetivos. Helita Barreira Custódio define tal finalidade como
o “nascer com o espírito do fim de servir desinteressadamente à coletividade, ou seja, o fim
público exclusivo”123; “que as entidades (...) sejam constituídas com o objetivo do fim público
exclusivo, servindo à coletividade, efetiva e continuadamente, em determinado setor, quer de
assistência educacional, quer de assistência social ou hospitalar”124. Damião Alves de
Azevedo destaca o caráter discricionário da concessão do título, justamente pela
impossibilidade de se definir, de plano, a atuação desinteressada de um ente. Restaria à
Administração, portanto, caracterizá-la no caso concreto.125
121AZEVEDO. Damião Alves de. O título de utilidade pública federal e sua vinculação à isenção da cota previdenciária patronal. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/snj/oscip/publicacoes/cota_patronal.pdf> Acesso em: 20 setembro 2007.122REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 92.123CUSTÓDIO, Helita Barreira. Associações e fundações de utilidade pública: seus requisitos para os efeitos da imunidade de impostos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 64.124CUSTÓDIO, Helita Barreira. Associações e fundações de utilidade pública: seus requisitos para os efeitos da imunidade de impostos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 69.125AZEVEDO. Damião Alves de. O título de utilidade pública federal e sua vinculação à isenção da cota previdenciária patronal. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/snj/oscip/publicacoes/cota_patronal.pdf>
49
Embora o art. 2º do Decreto n. 50.517/1961 disponha que caberá ao Presidente da
República a outorga formal do título, tem-se que o Decreto n. 3.415/2000 delegou a
competência para o ato ao Ministro da Justiça. Assim, o pedido de declaração de utilidade
pública é interposto junto ao Ministério da Justiça ou, excepcionalmente, desencadeado ex
officio, cabendo ao Ministro da Justiça autorizar a expedição de diploma em favor da
entidade, uma vez cumpridos os requisitos legais.
O art. 3º da Lei n. 91/1935 dispõe que não decorrerá, do título de utilidade pública
outorgado, nenhum favor do Estado. Assemelhar-se-ia, assim, a um mero título honorífico,
com a finalidade de dignificar determinadas entidades, comprometidas com o
desenvolvimento de atividades de finalidade pública. No entanto, verifica-se com o passar dos
anos a ocorrência de um fenômeno de desnaturação do título, conferindo-se a ele efeitos
originalmente não previstos.126
Destarte, com a desnaturação do título de utilidade pública, diferentes efeitos jurídicos
passam a advir da obtenção do título jurídico de utilidade pública, tais quais a faculdade de
dedução fiscal no imposto de renda e de realização de sorteios, o recebimento de subvenções,
auxílios da União e suas autarquias, a isenção da cota patronal do Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS) e a isenção do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).127
Paulo Modesto assevera que a legislação federal existente acerca do título de utilidade
pública é deficiente, porque não oferece uma cobertura legal a diversos temas correlatos à
outorga e manutenção do título. Para o autor, a aludida falha na cobertura desencadeou a
ocorrência de dois fenômenos: a proliferação de entidades inautênticas, vinculadas a
interesses políticos menores, econômicos ou de grupos restritos, e o estímulo a processos de
corrupção no setor público. Não haveria ainda, na legislação federal, uma diferenciação clara
entre entidades de favorecimento mútuo – aquelas que “contemplam apenas pequenas
parcelas da sociedade, grupos fechados cujos associados da entidade são os próprios
beneficiários de suas ações”128 – e as entidades de favorecimento público – tipo de entidade
que “possui uma dimensão diferente, pois suas ações sempre se revestem de interesse
público”129 –, o que teria contribuído para a perpetuação de uma situação de suspeição
Acesso em: 20 setembro 2007.126AZEVEDO. Damião Alves de. O título de utilidade pública federal e sua vinculação à isenção da cota previdenciária patronal. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/snj/oscip/publicacoes/cota_patronal.pdf> Acesso em: 20 setembro 2007.127REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 93-94; ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 72.128NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalização. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 28. 129NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalização. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 28.
50
generalizada com realização às entidades de utilidade pública.130
1.3.2 Entidades filantrópicas
A primeira menção à existência de um título de fins filantrópicos, a ser outorgado a
determinadas entidades da sociedade civil, deu-se no corpo da Lei n. 3.577/1959, que, em seu
art. 1º, dispunha acerca da isenção da cota previdenciária patronal para “as entidades de fins
filantrópicos reconhecidas de utilidade pública”. Seu regulamento, o Decreto n. 1.117/1962,
atribuiu ao Conselho Nacional de Serviço Social certificar a condição de entidade filantrópica
para as instituições (a) que destinassem a totalidade das rendas apuradas ao atendimento
gratuito das suas finalidades; (b) que os diretores, sócios ou irmãos, não percebessem
remuneração e não usufruíssem de vantagens ou benefícios, sob qualquer título e (c) que
estivessem registradas no Conselho Nacional do Serviço Social. De forma controversa,
dispõe, também, que caberia a este Conselho o julgamento dos requisitos necessários à
declaração de utilidade pública, em evidente conflito com a Lei n. 91/1935.
Damião Alves de Azevedo destaca a confusão terminológica que se instaurou após a
entrada em vigor da Lei n. 3.577/1959 e de seu regulamento. Lá, fez-se menção ao fim
filantrópico como sinônimo do título de utilidade pública federal, embora não o fosse; o
legislador brasileiro baralha duas qualificações legais distintas sob o mesmo nome e, nesse
contexto conceitualmente perturbado, vincula-as às isenções previdenciárias.131
O Decreto-lei n. 1.572/1977 revogou a Lei n. 3.577/1959, preservando, porém, as
situações constituídas até o seu advento. As entidades que possuíam o título de utilidade
pública ou de fins filantrópicos mantiveram a sua isenção da contribuição patronal, ao passo
que as entidades portadoras de certificado provisório de entidade de fins filantrópicos, no
gozo da isenção previdenciária, que tivessem requerido ou viessem a requerer, dentro de
noventa dias a contar do início da vigência daquele Decreto-lei, o seu reconhecimento como
de utilidade pública federal, continuariam gozando da referida isenção até que o Poder
Executivo deliberasse sobre aquele requerimento.
Posteriormente, o título jurídico de entidade de fins filantrópicos – então renomeado 130MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 79, 1998.131AZEVEDO. Damião Alves de. O título de utilidade pública federal e sua vinculação à isenção da cota previdenciária patronal. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/snj/oscip/publicacoes/cota_patronal.pdf> Acesso em: 20 setembro 2007.
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para “Certificado de Entidade de Fins Filantrópicos” – é referido na Lei n. 8.212/1991 como
requisito para a isenção da cota patronal de contribuição previdenciária e das contribuições a
cargo da empresa, provenientes do faturamento e do lucro, requisito este a ser conjugado com
o reconhecimento da entidade como de utilidade pública.
Cumpre destacar que a Constituição Federal, em seu art. 195, § 7º, já dispunha sobre a
isenção132 da contribuição para a seguridade social às entidades beneficentes da assistência
social.
A Lei Orgânica da Assistência Social (Lei n. 8.742/1993), por sua vez, prevê a outorga
do título a prestadoras de serviços e assessoramento de assistência social, por meio do
Conselho Nacional de Assistência Social. Extinguiu-se, assim, o Conselho Nacional de
Serviço Social, órgão antes habilitado para a concessão do certificado de fins filantrópicos,
para que fosse viabilizada a instalação do novo Conselho.
Cinco anos após a publicação da Lei n. 8.742/1993, é editado o Decreto n. 2.536/1998,
que regulamenta o art. 18, inciso IV, do referido diploma legal. Estabelecem-se, então, os
novos requisitos para a concessão do título, assim sintetizados por Luis Eduardo Patrone
Regules:
(a) estar previamente inscritas no Conselho Municipal de Assistência Social do município de sua sede;(b) aplicar suas rendas, seus recursos e eventual resultado operacional integralmente no território nacional e na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos institucionais;(c) aplicar anualmente, em gratuidade, pelo menos vinte por cento da receita bruta proveniente da venda de serviços, acrescida da receita decorrente de aplicações financeiras, de locação de bens, de venda de bens não integrantes do ativo imobilizado e de doações particulares, cujo montante nunca deverá ser inferior à isenção de contribuições sociais usufruída;(d) não distribuir resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, sob nenhuma forma ou pretexto;(e) não permitir que seus diretores, conselheiros, sócios, instituidores, benfeitores ou equivalente recebam remuneração, vantagens ou benefícios, direta ou indiretamente, por qualquer forma ou título, em razão das competências, funções ou atividades que lhes sejam atribuídas pelos respectivos atos constitutivos.133
Adicionalmente, requer-se das entidades postulantes uma atuação que visa a proteger a
família, a maternidade, a infância, a adolescência e a velhice; a amparar crianças e
132No entendimento de Luis Eduardo Patrone Regules, o termo “isenção” é utilizado de forma incorreta pelo constituinte, uma vez que se trata de vedação expressa ao poder de tributar – “imunidade tributária”, portanto. REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 96.133REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 95.
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adolescentes carentes; a promover ações de prevenção, habilitação e reabilitação de pessoas
portadoras de deficiências; promover, gratuitamente, assistência educacional ou de saúde ou a
promover a integração ao mercado de trabalho.134
A Medida Provisória n. 2.187-13/2001, findou por alterar, novamente, o nome do
título jurídico sob análise, atualmente denominado “Certificado de Entidade Beneficente de
Assistência Social”.
1.3.3 As organizações sociais
O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado trouxe, explicitamente, a previsão
de criação de um título jurídico a ser outorgado a entidades do terceiro setor: o título jurídico
de organização social.135 As entidades qualificadas como organizações sociais seriam aquelas
habilitadas a participarem do processo de publicização das atividades não-exclusivas,
consistindo em novo modelo de parceria entre o Estado e o setor público não-estatal.
Embora concebidas com o objetivo de servirem como destinatárias das atividades
antes atribuídas a órgãos e entidades estatais, tem-se que a legislação atual acerca do tema, no
âmbito da Administração Pública federal – a Lei n. 9.637/1998 –, admite a atuação paralela de
tais entidades em atividades de interesse coletivo. Assim, não consistem as organizações
sociais, necessariamente, em sucessoras de entidades públicas extintas.136
As condições em que se darão as atividades das organizações sociais e o fomento por
parte do Poder Público são fixadas em um instrumento criado pela Lei n. 9.637/1998: o
contrato de gestão. Por meio dele, cria-se o vínculo jurídico entre os signatários,
concretizando a parceria. Em observância ao princípio da eficiência, o contrato de gestão
deverá prever metas e formas de avaliação periódica dos resultados alcançados pela
organização social, consistindo em um controle de resultados.
A criação do título jurídico em comento coaduna-se com os ideais expostos na reforma
134Art. 2º do Decreto n. 2.536/1998.135“Reformar o aparelho do Estado significa garantir a esse aparelho maior governança, ou seja, maior capacidade de governar, maior condição de implementar as leis e políticas públicas. Significa tornar muito mais eficientes as atividades exclusivas de Estado, através da transformação das autarquias em ‘agências autônomas’, e tornar também muito mais eficientes os serviços sociais competitivos ao transformá-los em organizações públicas não-estatais de um tipo especial: as ‘organizações sociais’”. BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 44-45.136SANTOS, Flávia Pessoa; PEDROSA, Maria de Lourdes Capanema. Aspectos jurídicos das organizações sociais. Revista do Legislativo, Belo Horizonte, n. 22, p. 14, abr./jun. 1998.
53
do Estado brasileiro de 1995, como bem sintetiza Renata Vilhena:
A adoção desse modelo, denominado “Organizações Sociais”, tem como objetivo melhorar a prestação dos serviços sociais, orientando o atendimento para a satisfação do cidadão-cliente. Nestas áreas, o Estado deixará de ser o executor direto ou o prestador de serviços para ter um papel de fomento, fornecendo recursos e fiscalizando a execução dos serviços, por meio do contrato de gestão.No contrato de gestão, as políticas públicas estarão traduzidas nas metas que o Estado deseja que sejam atingidas para cada área. O Estado acompanhará a execução e avaliará os resultados por meio de mecanismo inovador, inexistente quando tais funções eram exercidas pelas fundações privadas. Isto significa que o Estado não está abdicando de sua capacidade de influir, de coordenar e mesmo de controlar, só que agora o fará em parceria com a sociedade.137
O exame atento das características gerais do título jurídico de organização social, a
partir do modelo institucional estabelecido no âmbito da Administração Pública federal, é
escopo do presente estudo e será desenvolvido posteriormente.138
1.3.4 As organizações da sociedade civil de interesse público
A Lei n. 9.790/1999, com as alterações promovidas pela Lei n. 10.539/2002 e pela
Medida Provisória n. 2.216-37/2001, dispõe acerca da qualificação de pessoas jurídicas de
direito privado, sem fins lucrativos, como “organizações da sociedade civil de interesse
público” (OSCIPs), no âmbito da Administração Federal. É, pois, o mais recente título
jurídico previsto no ordenamento jurídico brasileiro, a ser outorgado às organizações públicas
não-estatais. Para Paulo Modesto, o título de organização da sociedade civil de interesse
público é mais uma tentativa de se esvaziar, na prática, o título de utilidade pública e todas as
impropriedades que o acompanham.139
Todas as entidades que persigam quaisquer dos objetivos sociais elencados no art.
137VILHENA, Renata. Novo modelo de parceria une o Estado e o terceiro setor. Revista do Legislativo, Belo Horizonte, n. 22, p. 18, abr./jun. 1998.138 Ver 2.139MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 83, 1998.
54
3º140, que possuam um estatuto de acordo com o que preceituado no art. 4º141 e que não
possuam os impedimentos citados no art. 2º142 da Lei n. 9.790/1999 poderão pleitear junto ao
Ministério da Justiça a sua qualificação como organização da sociedade civil de interesse
público.
Com relação aos objetivos sociais a serem perseguidos, destaca-se a multiplicidade de
atividades colacionadas no art. 3º da Lei n. 9.790/1999, o que diferencia substancialmente as
OSCIPs das organizações sociais e das demais qualificações legais a serem atribuídas às
entidades do terceiro setor. As primeiras possuem um objeto de suas atividades muito mais
amplo do que as últimas, desenvolvendo atividades tais como a promoção da assistência
social, a promoção da segurança alimentar e nutricional, a promoção do voluntariado, a
promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza e a assessoria jurídica
gratuita de interesse suplementar.
Quanto às exigências legais concernentes ao estatuto da entidade que pleiteia a
qualificação como organização da sociedade civil de interesse público, Luis Eduardo Patrone
140Objetivos sociais que tenham pelo menos uma das seguintes finalidades: (a) promoção da assistência social; (b) promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; (c) promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata a Lei n. 9.790/1999; (d) promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata a Lei n. 9.790/1999; (e) promoção da segurança alimentar e nutricional; (f) defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; (g) promoção do voluntariado; (h) promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza; (i) experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; (j) promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar; (k) promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais; (l) estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas neste artigo.141“(...) devem ser observados determinados requisitos consubstanciados em normas expressamente mencionadas nos estatutos, no tocante à (art. 4º, incisos I a VII): (a) observância dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e da eficiência; (b) constituição de conselho fiscal ou órgão equivalente, dotado de competência para opinar sobre os relatórios de desempenho financeiro e contábil, e sobre as operações patrimoniais realizadas, emitindo pareceres para os organismos superiores da entidade; (c) possibilidade de se instituir remuneração para os dirigentes da entidade que atuem efetivamente na gestão executiva e para aqueles que a ela prestam serviços específicos, respeitados, em ambos os casos, os valores praticados pelo mercado na região correspondente a sua área de atuação.” REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 106.142Não são passíveis de qualificação como organizações da sociedade civil de interesse público, ainda que se dediquem de qualquer forma às atividades descritas no art. 3º da Lei n. 9.790/1999: (a) as sociedades comerciais; (b) os sindicatos, as associações de classe ou de representação de categoria profissional; (c) as instituições religiosas ou voltadas para a disseminação de credos, cultos, práticas e visões devocionais e confessionais; (d) as organizações partidárias e assemelhadas, inclusive suas fundações; (e) as entidades de benefício mútuo destinadas a proporcionar bens ou serviços a um círculo restrito de associados ou sócios; (f) as entidades e empresas que comercializam planos de saúde e assemelhados; (g) as instituições hospitalares privadas não gratuitas e suas mantenedoras; (h) as escolas privadas dedicadas ao ensino formal não gratuito e suas mantenedoras; (i) as organizações sociais; (j) as cooperativas; (k) as fundações públicas; (l) as fundações, sociedades civis ou associações de direito privado criadas por órgão público ou por fundações públicas; (m) as organizações creditícias que tenham quaisquer tipo de vinculação com o sistema financeiro nacional a que se refere o art. 192 da Constituição Federal.
55
Regules destaca a preocupação do legislador no sentido de que as OSCIPs observem
derrogações oriundas do direito público, tendo determinado como obrigatória a inclusão de
normas que assegurem a obediência, por parte da entidade, aos princípios constitucionais da
administração pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade
e eficiência.143 Não se pode olvidar que um regime jurídico privado, parcialmente derrogado
por normas de direito público, é característico das organizações públicas não-estatais.
Ainda sobre o estatuto, chama a atenção a redação do art. 4º, inciso VI, que afirma a
possibilidade de se instituir remuneração para os dirigentes da entidade que atuem
efetivamente na gestão executiva e para aqueles que a ela prestam serviços específicos, no
limite dos valores praticados pelo mercado, na região correspondente à sua área de atuação.
Elisabete Ferrarezi e Valéria Rezende observam que se trata da primeira qualificação
institucional do terceiro setor a abrir a possibilidade de que os dirigentes da entidade sejam
remunerados, e prosseguem para detalhar os efeitos decorrentes da opção pela remuneração:
Em síntese, a Lei 9.790/99 prevê a possibilidade e não a obrigatoriedade de remuneração para o cargo de dirigente da OSCIP. No entanto, a legislação tributária em vigor impede que a entidade remunere seus dirigentes para usufruir de certos incentivos fiscais. Assim, se a OSCIP optar por remunerar seus dirigentes não poderá concorrer ou manter a Declaração de Utilidade Pública e/ou o Certificado de Fins Filantrópicos, durante o prazo permitido para acumular essas qualificações com a de OSCIP, e não terá isenção do Imposto de Renda, conforme legislação em vigor.144
Os requisitos negativos, constantes do art. 2º da Lei n. 9.790/1999, são uma inovação
no marco legal das entidades do terceiro setor, conforme aponta Paulo Modesto. Os requisitos
mencionados definem as “candidatas negativas” ao título de organização da sociedade civil de
interesse público, seja porque desempenham atividades que não condizem com aquelas que se
definiu como de interesse público, seja porque a sua natureza autônoma e independente não
lhes autoriza a firmar parceria com o Poder Público.145
A concessão do título de organização da sociedade civil de interesse público não é
discricionária; preenchidos os requisitos legais, inarredável a qualificação da entidade como
organização da sociedade civil de interesse público.146 O ato de qualificação das organizações 143REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 107.144FERRAREZI, Elisabete; REZENDE, Valéria. Organização da sociedade civil de interesse público - OSCIP: a lei 9.790 como alternativa para o terceiro setor. 2. ed. Brasília: Comunidade Solidária, 2001, p. 32.145MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 83, 1998.146Nesse sentido: FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 171; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 234. Para José Maria Pinheiro Madeira, a regra do art. 1º, §2º, da Lei n. 9.790/1999, não
56
da sociedade civil de interesse público consiste, assim, em ato vinculado da Administração
Pública.147. É o que se extrai da leitura do art. 1º, § 2º, e art. 6º, § 3º, ambos da Lei n.
9.790/1999, verbis:
Art. 1o Podem qualificar-se como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, desde que os respectivos objetivos sociais e normas estatutárias atendam aos requisitos instituídos por esta Lei.(...)§ 2o A outorga da qualificação prevista neste artigo é ato vinculado ao cumprimento dos requisitos instituídos por esta Lei. (grifo meu)
Art. 6o Recebido o requerimento previsto no artigo anterior, o Ministério da Justiça decidirá, no prazo de trinta dias, deferindo ou não o pedido.(...)§ 3o O pedido de qualificação somente será indeferido quando I - a requerente enquadrar-se nas hipóteses previstas no art. 2o desta Lei; II - a requerente não atender aos requisitos descritos nos arts. 3o e 4o desta Lei;III - a documentação apresentada estiver incompleta. (grifo meu)
A vantagem que decorre diretamente da atribuição da qualificação legal em comento
é a habilitação da entidade qualificada para a celebração de um termo de parceria com o Poder
Público.148 O termo de parceria, instituído também pela Lei n. 9.790/1999, trata-se do
"instrumento passível de ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como
Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público destinado à formação de vínculo de
cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público
previstas no art. 3º"149 daquele diploma legal. É instrumento que apenas pode ser utilizado
para o ajustamento de uma parceria entre o Poder Público e uma organização da sociedade
civil de interesse público.
Para os atualizadores da obra de Hely Lopes Meirelles, o termo de parceria é,
teria sido clara ao definir o ato de credenciamento como um ato vinculado, sem aprofundar-se, contudo, em sua crítica ao dispositivo. MADEIRA, José Maria Pinheiro. Administração pública centralizada e descentralizada. 2. ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003, p. 188.147Ao abordar o ato de qualificação de OSCIPs, Gina Copola define o ato vinculado como "aquele no qual o administrador deve agir objetiva e estritamente dentro dos limites a ele impostos, sem emitir nenhum juízo subjetivo sobre a conduta a ser adotada. Com todo efeito, os atos vinculados são sempre praticados mediante o único possível comportamento que a lei expressamente preceitua, e a lei estabelece requisitos imprescindíveis para sua realização. Em tais atos não existe nenhuma liberdade do administrador." COPOLA, Gina. Desestatização e terceirização. São Paulo: NDJ, 2006, p. 131-132. 148BARBOSA, Maria Nazaré Lins. A experiência dos termos de parceria entre o poder público e as organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs). In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.). Parcerias público-privadas. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 496149Art. 9º da Lei n. 9.790/1999.
57
essencialmente, um termo de cooperação, porquanto viabiliza o estabelecimento de um
vínculo de cooperação entre seus signatários, para a realização de objetivos de interesse
comum.150 Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o termo de parceria forma um vínculo de
colaboração, e não cooperação, uma vez que define esta como um ajuste entre entidades
intraestatais ou paraestatais, ou entre ambas, mas não entre o Poder Público e entidades
extraestatais.151
Gina Copola identifica como propósito da celebração do termo de parceria a
viabilização da plena e eficaz execução das atividades sociais das entidades qualificadas, com
redução de custos, a ser fomentada pelo Poder Público.152 Para que houvesse a garantia de que
os recursos e bens públicos repassados às organizações da sociedade civil de interesse público
por meio do termo de parceria seriam, de fato, utilizados para o atendimento de um fim
público, o legislador impôs a exigência de que certas cláusulas essenciais constem do termo
de parceria a ser firmado. Destarte, o termo de parceria deve, necessariamente, descrever o
objeto, prever as receitas e despesas, estabelecer as metas e os resultados a serem atingidos,
estabelecer os critérios objetivos de avaliação e a prestação anual de contas ao Poder Público.
Sua formalização também depende de manifestação prévia do Conselho de Política Pública da
área de atuação, conforme o art. 10, § 1º, da Lei n. 9.790/1999.153
Cumpre ressaltar que outros títulos jurídicos a serem outorgados a organizações
públicas não-estatais, como o de utilidade pública federal e o certificado de fins filantrópicos,
não previam, em suas legislações, um instrumento cujos requisitos e procedimentos fossem
tão simples quanto aqueles exigidos pelo termo de parceria. A legislação anterior prevê o
acesso a recursos públicos para a realização de projetos por meio da celebração de convênio,
em um procedimento pouco flexível, que demanda a apresentação de uma série de
documentos.154 Ademais, o poder fiscalizatório do Estado, nesses casos, era reduzido,
inexistindo a fixação de metas a serem cumpridas pela entidade fomentada.155
A celebração de um termo de parceria com o Poder Público não é fim comum a todas
as OSCIPs, uma vez que inexiste qualquer obrigatoriedade nesse sentido. Um termo de
parceria deve, necessariamente, envolver uma organização da sociedade civil de interesse
150MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 269. 151MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 276.152COPOLA, Gina. Desestatização e terceirização. São Paulo: NDJ, 2006, p. 125.153ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 93.154FERRAREZI, Elisabete; REZENDE, Valéria. Organização da sociedade civil de interesse público - OSCIP: a lei 9.790 como alternativa para o terceiro setor. 2. ed. Brasília: Comunidade Solidária, 2001, p. 23.155MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 279.
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público como parte signatária, mas o Poder Público não está obrigado a firmá-lo com todas as
entidades que qualificou como OSCIP. O Decreto n. 3.100/1999, em seu art. 23, prevê,
inclusive, a possibilidade de que seja instaurado, pelo Poder Público, um processo de seleção
por concurso (“concurso de projetos”), com a devida publicação de edital, tendo por
finalidade a escolha de uma organização da sociedade civil de interesse público para a
celebração de termo de parceria. As propostas são avaliadas por uma comissão julgadora,
designada pelo órgão estatal parceiro. Uma vez instaurado o processo de seleção por
concurso, é vedado ao Poder Público celebrar termo de parceria para o mesmo objeto, fora do
concurso iniciado, nos termos do parágrafo único do art. 23.
59
2 AS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS
O título jurídico de organização social, a ser outorgado pelo Poder Público a entidades
públicas não-estatais, teve seu modelo institucional primeiramente delineado pela Lei federal
n. 9.637/1998, diploma legal considerado um paradigma para a criação do referido título
jurídico nas esferas estadual e municipal.
Abordar as organizações sociais envolve, necessariamente, extrair seus elementos
gerais a partir do pioneiro modelo institucional existente no âmbito da Administração Pública
federal, procedendo-se à análise de sua finalidade e dos instrumentos criados pelo legislador
para a concretização do vínculo de parceria com o Poder Público.
2.1 O Programa Nacional de Publicização
Como introdução a uma análise aprofundada das entidades não-governamentais
denominadas “organizações sociais”, mister que se faça um breve histórico de seu surgimento
na pauta política nacional, tendo-se como marco inicial a reforma do aparelho do Estado
brasileiro.
É no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado que resta demonstrada, pela
primeira vez, a intenção do Poder Executivo de criar a figura jurídica da organização social,
apontada como medida necessária para o efetivo redimensionamento da atuação estatal. A
menção à criação das organizações sociais dá-se no contexto dos “projetos básicos” a serem
executados na reforma, definindo-se o projeto das organizações sociais como aquele que
tem como objetivo permitir a descentralização de atividades no setor de prestação de serviços não-exclusivos, nos quais não existe o exercício do poder de Estado, a partir do pressuposto que esses serviços serão mais eficientemente realizados se, mantendo o financiamento do Estado, forem realizados pelo setor público não-estatal.156
De acordo com as diretrizes da reforma, os serviços sociais não-exclusivos, tais como
a saúde, a cultura e a educação, deveriam ser gradualmente assumidos por entidades privadas,
156BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 60.
60
que seriam fomentadas pelo Estado. Ao adentrar o tema, o Plano Diretor anuncia as
organizações sociais como as entidades públicas não-estatais aptas a receberem a referida
transferência de serviços sociais prestados pelo Estado, organizações aparentemente distintas
de qualquer outra figura jurídica então existente em nosso ordenamento.
Paralelamente à criação das organizações sociais, o Plano Diretor sublinha a
necessidade da execução de um projeto que vise à plena transferência dos serviços não-
exclusivos do setor estatal para o público não-estatal, no âmbito da Administração Pública
federal. Cunha-se, então, a terminologia publicização para definir o mencionado processo de
transferência, originada a partir da percepção de que o processo em questão busca efetivar a
produção não-estatal de bens públicos.157
A publicização é tida como verdadeira estratégia da reforma do Estado, uma vez que
compartilha dos objetivos perseguidos com a implementação de um modelo de administração
pública gerencial: o aumento da eficiência, da qualidade dos serviços e da participação da
sociedade civil na gestão dos interesses públicos. Maria Coeli Simões Pires assim sintetiza os
objetivos da publicização:
- Dar nova abordagem aos serviços públicos sociais na perspectiva de obtenção de maior alcance, agilidade, eficiência e qualidade em sua prestação, com racionalização de custos e otimização de resultados.- Lograr maior autonomia e flexibilidade de gestão, segundo modelo de administração gerencial.- Enfatizar o cidadão-usuário como destinatário da prestação de serviços e agente de controle, fortalecendo práticas e mecanismos que privilegiem a participação da sociedade em seu planejamento e estimulem o controle social.- Estabelecer maior parceria entre o Estado e a sociedade mediante gestão associada de recursos públicos.- Reduzir a dimensão do Estado enquanto máquina administrativa.- Favorecer o financiamento por meio de compra de serviços e doações por parte da sociedade.- Tornar o terceiro setor competitivo.158
O procedimento a ser adotado para a publicização dos serviços não-exclusivos é
detalhado em publicação do extinto Ministério da Administração Federal e da Reforma do
Estado e envolve oito etapas: divulgação da intenção de publicizar, a partir de uma decisão
governamental; elaboração de protocolo de intenções, ocasião em que se define um plano de
trabalho; preparação organizacional das atividades a serem publicizadas; criação e
157BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Organizações sociais. 5. ed. Brasília: 1997, p. 17.158PIRES, Maria Coeli Simões. Terceiro setor e as organizações sociais. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v.15, n.4, p. 247, abr. 1999.
61
composição da entidade não-estatal, com o devido preenchimento de requisitos para a sua
qualificação como organização social; preparação e negociação do contrato de gestão, etapa
em que se definem as metas a serem cumpridas e a sistemática de acompanhamento; atos
legais (extinção da entidade estatal e qualificação da entidade pública não-estatal como
organização social); inventário simplificado e final absorção de atividades pela organização
social mediante o contrato de gestão.159
Para os idealizadores da publicização e da implementação das organizações sociais, é
possível extrair dois momentos distintos do procedimento acima detalhado: a publicização de
determinadas atividades executadas por entidades estatais, que findarão por ser extintas, e a
absorção destas atividades por entidades privadas qualificadas como organizações sociais.
Diante disso, consideram imprópria a idéia segundo a qual organizações estatais seriam
convertidas ou transformadas em organizações sociais, já que atividades não-exclusivas de
Estado, e não entidades, seriam publicizadas.160
De acordo com o texto do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, a
publicização na esfera federal dar-se-ia por meio da execução do Programa Nacional de
Publicização, a ser operacionalizado por um Conselho Nacional de Publicização, de caráter
interministerial.161 A previsão de ativação do referido programa foi reprisada na legislação que
cria as organizações sociais162, embora o Poder Executivo federal não tenha editado decreto
acerca da matéria até a presente data.
Observa-se que a não-implantação do Programa Nacional de Publicização não afasta,
de forma alguma, a existência e a utilidade do título jurídico de organização social a entidades
públicas não-estatais, uma vez que a qualificação legal de organização social não está
vinculada a uma finalidade única, qual seja, servir como entidade autorizada a participar do
processo de publicização dos serviços não-exclusivos no âmbito da Administração federal.
Não há óbice para que as organizações sociais existam fora de um programa de publicização e
para que a sua existência não envolva, necessariamente, a extinção de uma entidade estatal. 159BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Organizações sociais. 5. ed. Brasília: 1997, p. 18-19.160BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado. Organizações sociais. 5. ed. Brasília: 1997, p. 17.161BRASIL. Câmara de Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Brasília: 1995, p. 60-61.162Art. 20. Será criado, mediante decreto do Poder Executivo, o Programa Nacional de Publicização - PNP, com o objetivo de estabelecer diretrizes e critérios para a qualificação de organizações sociais, a fim de assegurar a absorção de atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União, que atuem nas atividades referidas no art. 1o, por organizações sociais, qualificadas na forma desta Lei, observadas as seguintes diretrizes:I - ênfase no atendimento do cidadão-cliente;II - ênfase nos resultados, qualitativos e quantitativos nos prazos pactuados;III - controle social das ações de forma transparente.
62
Nesse sentido, pondera Sílvio Luís Ferreira da Rocha:
As Organizações Sociais não se prestam, tão-somente, a absorver competências, patrimônio e servidores de entes públicos extintos; elas podem, também, exercer atividades socialmente relevantes, não de competência exclusiva do Poder Público, mas incentivada por ele mediante o repasse dos recursos previstos no contrato de gestão.163
2.1.1 A transferência de serviços não-exclusivos a organizações sociais
Ignorando a não-regulamentação do Programa Nacional de Publicização, o legislador,
por meio da própria Lei n. 9.637/1998, não hesitou em proceder à extinção de duas entidades
públicas federais, determinando a absorção de suas atividades e serviços por organizações
sociais que então tiveram sua qualificação autorizada. Desta forma, o Laboratório Nacional de
Luz Síncrotron converteu-se na Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron, assim
como a Fundação Roquette Pinto (grupo responsável pela TVE Brasil) transformou-se na
Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto.
Ainda no âmbito da Administração Federal, houve a posterior qualificação de mais
cinco entidades como organizações sociais: a Associação Brasileira para o Uso Sustentável da
Biodiversidade da Amazônia, o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, a
Associação Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, a Associação Rede Nacional
de Ensino e Pesquisa e o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos.
É cediço que as áreas de atuação propostas às organizações sociais – ensino, pesquisa
científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e
saúde – são livres à atuação da iniciativa privada, consistindo, sob esta ótica, em verdadeiros
serviços não-exclusivos do Estado. A celeuma é estabelecida quando o Plano Diretor da
Reforma do Aparelho do Estado manifesta-se no sentido de que a prestação de tais serviços
deve ser gradualmente transferida, em sua integralidade, ao setor público não-estatal, a fim de
que seja eliminada a prestação direta de tais serviços por parte do Estado.
Sem adentrar na questão do que deveria ser, de fato, atribuição do Estado brasileiro,
mesmo que tal questão esteja a exigir uma discussão intensa diante das graves deficiências
que reiteradamente se apresentam na prestação de serviços pelo Estado, impende indagar
apenas se o processo de publicização encontra amparo na Constituição Federal de 1988. Pode
163ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 102.
63
o Estado transferir, por completo, a prestação de serviços não-exclusivos ao setor público não-
estatal?
Celso Antônio Bandeira de Mello concorda que os serviços a serem prestados pelas
organizações sociais não são privativos do Estado, não cabendo falar-se em concessão ou
permissão de serviço público. No entanto, considera o autor que serviços na área de saúde e
ensino são deveres do Estado, por força dos arts. 205, 206 e 208 da Constituição Federal164,
“circunstâncias que o impedem de se despedir dos correspondentes encargos de prestação
pelo processo de transpassá-los a organizações sociais”.165
Em opinião próxima a de Bandeira de Mello, Maria Sylvia Zanella Di Pietro sugere
que a publicização em comento trata-se, em verdade, de uma privatização atípica,
já que a qualificação da entidade como organização social implica a extinção de um órgão público ou de uma pessoa jurídica de direito público (autarquia ou fundação) e, em seu lugar, o surgimento de uma pessoa jurídica de direito privado não enquadrada no conceito de Administração Pública, seja direta ou indireta.166
Para Di Pietro, a Constituição Federal prevê os serviços sociais como dever do Estado
e, portanto, como um serviço a ser prestado diretamente pelo Poder Público.167
Ao abordar a atuação das organizações sociais na prestação de serviços de saúde, o
Subprocurador Geral da República, Wagner Gonçalves, então Procurador Federal dos Direitos
do Cidadão, pugna pela inconstitucionalidade das disposições constantes da Lei n.
9.637/1998, igualmente concebendo o dever do Estado de prestar diretamente os serviços 164 Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...)IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;(...)Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; (...)§ 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.§ 2º - O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.§ 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola.165MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 232.166DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 267.167 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 269.
64
sociais.
(...) o Sistema Único de Saúde foi concebido para a prestação de serviços de saúde pública pelo Estado, tanto é assim que a própria Lei Maior estabelece que a saúde é dever do Estado (art. 196). E a Lei nº 8080/90 reverbera que a saúde é direito fundamental sendo dever do Estado garanti-la na formulação e execução... (art. 2º, § 1º). E o § 2º, do art. 2º, da mesma lei, menciona que o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade. Entretanto, estas pessoas e entes, se prestam serviços de saúde, não excluem, em contrapartida, a obrigação do Estado de prestá-los. Seria um contra-senso admitir que o Estado possa se afastar da direta execução e prestação dos serviços de saúde, face às disposições legais existentes e exaustivamente mencionadas.168
No entender de Paulo Modesto, não há falar em privatização, uma vez que tal processo
pressupõe, necessariamente, transferência de domínio, e não permissão de uso de bens
públicos. Quanto à prestação de serviços sociais, opina que no estágio atual o Estado não deve
nem tem condições de monopolizar a prestação direta dos serviços sociais. Prossegue o autor:
Não prover diretamente não quer dizer tornar-se irresponsável perante essas necessidades sociais básicas. Não se trata de reduzir o Estado a mero ente regulador. (...) O Estado deve ser regulador e promotor dos serviços sociais básicos e econômicos estratégicos. Precisa garantir a prestação de serviços de saúde de forma universal, mas não deter o domínio de todos os hospitais necessários; precisa assegurar o oferecimento de ensino de qualidade aos cidadãos, mas não estatizar todo o ensino. Os serviços sociais devem ser fortemente financiados pelo Estado, assegurados de forma imparcial pelo Estado, mas não necessariamente realizados pelo aparato do Estado.169 (grifo meu)
A questão da constitucionalidade da prestação indireta de serviços constitucionalmente
atribuídos ao Estado é, por certo, controversa, sendo, inclusive, objeto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 1.923-5. A ação foi proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e
pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) contra a Lei n. 9.637/1998 e também contra o
inciso XXIV do art. 24 da Lei n. 8.666/1993. Há, portanto, a expectativa de que o tema seja
enfrentado quando do exame do mérito da referida ação, assentando-se posicionamento
quanto à possibilidade ou não de prestação indireta de serviços sociais não-exclusivos.
168BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Do parecer no tocante à terceirização e às parcerias na saúde pública. Brasília, 1998. Relator: Wagner Gonçalves.169MODESTO, Paulo. Reforma administrativa e marco legal das organizações sociais no Brasil: as dúvidas dos juristas sobre o modelo das organizações sociais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 210, p. 207, out./dez. 1997.
65
2.2 O marco legal das organizações sociais
Gina Copola atenta que o termo “organizações sociais”, com acepção supostamente
próxima a dos dias atuais, figurou na legislação brasileira antes mesmo da existência de
diploma legal que o definisse. O já revogado Decreto federal n. 2.172/1997, que aprovou o
antigo Regulamento dos Benefícios da Previdência Social, dispunha, em seu art. 206, acerca
da possibilidade do Instituto Nacional do Seguro Nacional (INSS) firmar contratos ou acordos
com organizações sociais, com a finalidade de assegurar a realização de programas sociais e a
prestação de assistência jurídica ao beneficiário.170
Muito provavelmente após dar-se conta da impropriedade em que consiste a referência
a um instituto ainda não previsto no ordenamento jurídico pátrio, o legislador optou por retirar
a previsão atinente às organizações sociais do atual Regulamento da Previdência Social
(Decreto federal n. 3.048/1999).
Meses após a edição do Decreto federal n. 2.172/1997, a Presidência da República
editou a Medida Provisória n. 1.591/1997, que instituiu a qualificação de entidades como
organizações sociais. A referida Medida Provisória foi reeditada mais cinco vezes, e então
substituída pela Medida Provisória n. 1.648-6/1998, que exibia redação semelhante à última
da Medida Provisória substituída, exceto pela supressão do art. 15, que dispunha acerca da
dispensa de licitação para a contratação de serviços das organizações sociais.171
A Medida Provisória n. 1.648-6/1998 é reiterada e posteriormente convertida na Lei
federal n. 9.637/1998, a que se pode atribuir a condição de marco legal das organizações
sociais. Ela institui e disciplina as organizações sociais, estabelecendo requisitos,
procedimentos e formas de fiscalização, bem como institui o contrato de gestão, instrumento
hábil a regular a parceria entre o Poder Público e as organizações sociais.
Para Ivan Barbosa Rigolin, a Lei n. 9.637/1998 trata-se de diploma legal federal-
nacional, o que tornaria a qualificação como organização social um ato que independe de
edição de lei local que o institua.
170COPOLA, Gina. Desestatização e terceirização. São Paulo: NDJ, 2006, p. 2.171Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, a retirada do art. 15 – onde lia-se que “a Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional fica dispensada de processos licitatórios para celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito da União, para atividades contempladas no objeto do contrato de gestão” – não fundamentou-se na moralidade administrativa, mas sim no fato de que a dispensa passou a ser prevista diretamente na Lei de Licitações (Lei n. 8.666/1993), em seu art. 24, inciso XXIV. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 227-228.
66
A qualificação, como organizações sociais, não poderá depender de outra lei alguma, seja federal-nacional, seja federal-federal, seja local. Basta existir a Lei (para nós federal-nacional) nº 9.637/98, segundo parece suficientemente claro, para que todo Executivo local também se possa considerar autorizado a, por ato, e segundo disciplinamento interno que poderá variar de ente público para ente público, qualificar, no seu âmbito, entidades privadas como organizações sociais. Pelo princípio da simetria ou da paridade constitucional entre os níveis de poder excepcionado apenas quando a Constituição o faz de modo expresso (como nos arts. 21 a 24), não se concebe possa apenas o Executivo Federal qualificá-las, apenas porque federal a lei das organizações sociais.172
A contrario sensu, Maria Coeli Simões Pires considera a Lei n. 9.637/1998 aplicável
tão-somente na esfera da Administração Pública federal, apontando-a como referência
importante para os demais entes federativos, que poderão legislar sobre a temática no que lhe
couber, instituindo as organizações sociais nos âmbitos estadual e municipal.173 Maria Sylvia
Zanella Di Pietro também compartilha da opinião de que a Lei n. 9.637/1998 não se trata de
lei federal-nacional, cabendo aos Estados e aos Municípios aprovar suas próprias leis acerca
do tema.174
No mesmo sentido, os atualizadores da obra de Hely Lopes Meirelles firmam
entendimento de que, por se tratar de matéria de prestação de serviços, a competência para
legislar acerca das organizações sociais cabe à respectiva entidade estatal. A Lei n.
9.637/1998 poderia servir como modelo a ser adaptado às particularidades regionais ou locais,
por meio de leis a serem aprovadas por cada ente federativo.175
Acolhendo o entendimento supra, foram editadas diversas leis locais com o intuito de
criar e disciplinar as organizações sociais na esfera estadual. Citam-se a Lei Complementar n.
846/98, do estado de São Paulo; a Lei estadual n. 8.647/2003 e a sua regulamentação, o
Decreto estadual nº 8.890/2004, que disciplinam o Programa Estadual de Organizações
Sociais no estado da Bahia; a Lei estadual n. 15.503/2005, do estado de Goiás; a Lei estadual
n. 12.929/2004 e o seu Decreto estadual regulamentador, n. 3.294/2005, que instituem o
Programa Estadual de Incentivo às Organizações Sociais do estado de Santa Catarina; a Lei
estadual n. 5.217/2003, que institui as organizações sociais no estado do Sergipe; a Lei
172RIGOLIN, Ivan Barbosa. O contrato de gestão e seus mistérios. Revista CONSULEX, Brasília, n. 27, p. 60, mar. 1999.173PIRES, Maria Coeli Simões. Terceiro setor e as organizações sociais. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v.15, n.4, p. 248, abr. 1999.174AGÊNCIAS executivas, agências reguladoras e organizações sociais: natureza jurídica, características, distinções e atribuições destes novos entes: contratos de gestão conferindo maior autonomia gerencial, orçamentária e financeira. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v.16, n.11, p. 817, nov. 2000.175MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 385.
67
estadual nº 11.743/2000 e o Decreto estadual n. 23.046/2001, que institui e regulamenta,
respectivamente, o Sistema Integrado de Prestação de Serviços Públicos Não-Exclusivos no
estado do Pernambuco; a Lei estadual n. 5.980/1996 e o Decreto estadual n. 3.876/2000, do
estado do Pará; a Lei distrital n. 2.415/1999, do Distrito Federal; a Lei Complementar estadual
n. 158/1999, do estado do Espírito Santo; a Lei estadual n. 7.066/1998, do estado do
Maranhão e a Lei estadual n. 12.781/1997, que instituiu o Programa Estadual de Incentivo às
Organizações Sociais no estado do Ceará.
Na esfera municipal, inúmeras leis já foram editadas, merecendo menção a Lei
municipal n. 14.132/2006, do município de São Paulo/SP; a Lei municipal n. 3.447/2001, do
município de Barretos/SP e a Lei municipal n. 8.294/2001, do município de Santo André/SP.
2.3 Conceito
O dito marco legal atual das organizações sociais176, a Lei federal n. 9.637/98, assim as
definiu, em seu art. 1º:
Art. 1o O Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei.
Da leitura da definição dada pelo legislador, extrai-se essencialmente os requisitos
gerais a serem cumpridos pela entidade que deseja a qualificação jurídica como organização
social, consistindo em formulação um tanto quanto perfunctória. Finda por pecar pela
redundância, uma vez que reprisa as características de qualquer entidade do terceiro setor –
pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos –, apenas ocupando-se em limitar os
campos de atividade (de interesse público) da organização.
Esquece-se o legislador de inserir em sua conceituação dois pontos fundamentais para
a compreensão do instituto jurídico sob análise: a noção de que uma entidade é denominada
organização social em virtude de um título jurídico a ela outorgado e que a outorga do título 176“A denominação organização social é um enunciado elíptico. Denominam-se sinteticamente organizações sociais as entidades privadas, fundações ou associações sem fins lucrativos, que usufruem do título de organização social.” MODESTO, Paulo. Reforma administrativa e marco legal das organizações sociais no Brasil: as dúvidas dos juristas sobre o modelo das organizações sociais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 210, p. 199, out./dez. 1997.
68
jurídico dá-se para a realização de uma finalidade.
A noção da organização social como título é contemplada pelos atualizadores da obra
de Hely Lopes Meirelles, que também consignam a finalidade última do instituto em questão:
A organização social (...) é uma qualificação, um título, que a Administração outorga a uma entidade privada, sem fins lucrativos, para que ela possa receber determinados benefícios do Poder Público (dotações orçamentárias, isenções fiscais, etc.) para a realização de atividades necessariamente de interesse coletivo.177 (grifo meu)
A denominação “organização social” designa, obrigatoriamente, aquelas entidades que
receberam do Poder Público o título jurídico de organização social. Nas palavras de Sérgio de
Andréa Ferreira, “o status de organização social é produto de uma qualificação jurídica,
atribuída a pessoa jurídica de direito privado, pelo Poder Executivo, uma vez atendidos, por
aquela, determinados requisitos e pressupostos”178. Assim, imprecisa qualquer definição que
se furte de mencionar a qualificação jurídica que precede a existência das entidades
denominadas organizações sociais.
Leciona Maria Sylvia Zanella Di Pietro que a entidade outorgada com tal título é
constituída como uma pessoa jurídica de direito privado ordinária, diferenciando-se das
demais por ter optado por habilitar-se, perante o Poder Público, para o recebimento da
qualificação de organização social.179 A lição é reiterada por Paulo Modesto, quando o mestre
assevera que “ser organização social não se pode traduzir em uma qualidade inata, mas em
uma qualidade adquirida, resultado de um ato formal de reconhecimento do Poder Publico”180.
A qualificação de alguns entes públicos não-estatais como organizações sociais
coaduna-se, por certo, com os propósitos perseguidos por meio da outorga de títulos jurídicos
a entidades do terceiro setor, já abordados nesse estudo181. Paulo Modesto analisa, com
precisão, a organização social enquanto título e os objetivos específicos do legislador ao
impor requisitos para a sua outorga:
Ser organização social, por isso, não significa apresentar uma estrutura jurídica inovadora, mas possuir um título jurídico especial, conferido pelo
177MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 383.178FERREIRA, Sérgio de Andréa. Uma visão crítica das organizações sociais. Revista Trimestral de Direito Público, Rio de Janeiro, n. 25, p. 33, 1999.179DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 462.180MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 80, 1998.181Ver 1.3.
69
Poder Público em vista do atendimento de requisitos gerais de constituição e funcionamento previstos expressamente em lei. Esses requisitos são de adesão voluntária por parte das entidades privadas e estão dirigidos a assegurar a persecução efetiva e as garantias necessárias a uma relação de confiança e parceria entre o ente privado e o Poder Público.182 (grifo meu)
Ademais, cabe lembrar que o título jurídico é consagrado pela doutrina como um meio
de fomento e essa parece ser, também, uma das finalidades da outorga do título jurídico de
organização social. Diogo de Figueiredo Moreira Neto considera, inclusive, que o marco legal
das organizações sociais inaugurou um novo quadro para o fomento público no Brasil,
porquanto se prestou a incentivar a criação de entes intermediários pela sociedade.183
Outrossim, tem-se que uma definição completa acerca da organização social deve
envolver a menção à sua finalidade. Por que entidades de direito privado, sem fins lucrativos,
que desempenham atividades dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento
tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, devem buscar a
qualificação como organizações sociais? Qual a vantagem principal que o Poder Público
oferece a uma entidade outorgada com o título jurídico de organização social?
Consoante o art. 5º da Lei federal n. 9.637/1998184, as entidades qualificadas como
organizações sociais estão habilitadas a celebrar um contrato de gestão com o Poder Público,
instrumento jurídico básico da nova parceria que se estabelece entre o setor público e o
privado.185 Este finda por ser o principal diferencial da organização social, não extensível às
demais pessoas jurídicas privadas.186
Nesse sentido, há mister de colacionar as conceituações oferecidas por Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, Maria Coeli Simões Pires e Élida Graziane Pinto, que referem em suas
definições a parceria estabelecida por meio do contrato de gestão:
182MODESTO, Paulo. Reforma administrativa e marco legal das organizações sociais no Brasil: as dúvidas dos juristas sobre o modelo das organizações sociais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 210, p. 199, out./dez. 1997.183MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 194.184Art. 5o Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1o.185AZEVEDO, Eurico de Andrade. Organizações sociais. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 51/52, p. 139, jan./dez. 1999.186Há que se mencionar, também, o efeito imediato à qualificação de tais entidades, previsto no art. 11 da Lei n. 9.637/1998: a atribuição à pessoa jurídica do título de utilidade pública, que coexistirá com o título de organização social.
70
Organização social é a qualificação jurídica dada à pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, instituída por iniciativa de particulares, e que recebe delegação do Poder Público, mediante contrato de gestão, para desempenhar serviço público de natureza social.187 (grifo meu)(...) organização social é a pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, constituída como fundação ou associação civil, e qualificada, na forma da lei, pelo Poder Público, para serviços públicos não-exclusivos ou de caráter competitivo nas áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde, em sistema de parceria nos termos de contrato de gestão, de natureza administrativa.188 (grifo meu)
(...) a concepção de organizações sociais, em sentido abrangente, encampa todas as pessoas jurídicas de direito privado, constituídas sob a forma de fundação ou sociedade civil sem fins lucrativos, que sejam habilitadas a receber tal qualificação, dados os requisitos específicos previstos na lei supracitada (art. 2º), habilitação esta que implica, sob a égide de um contrato de gestão, a administração de recursos humanos, instalações e equipamentos (se necessário for) pertencentes ao Poder Público e o recebimento de recursos orçamentários para seu funcionamento, bem como maiores vínculos de controle e responsabilização perante o Estado e a sociedade, apesar da maior autonomia administrativa.189 (grifo meu)
2.4 Natureza jurídica do ato de qualificação
Ao dispor sobre o ato de qualificação de entidades como organizações sociais, o art. 1º
da Lei federal n. 9.637/1998 reza que poderá o Poder Público assim qualificá-las uma vez
atendidos os requisitos legais, incluídos aí os requisitos constantes do próprio artigo – ser
pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao
ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do
meio ambiente, à cultura e à saúde. Para Juarez Freitas, a redação do art. 1º, por si só,
oportuniza que o ato de qualificação dependa de um juízo favorável, quanto à sua
conveniência.190
Prossegue o legislador para estabelecer, no art. 2º da Lei n. 9.637/1998, os requisitos a
187DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 461-462.188PIRES, Maria Coeli Simões. Terceiro setor e as organizações sociais. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v.15, n.4, p. 248, abr. 1999. 189PINTO, Élida Graziane. Organizações Sociais e reforma do Estado no Brasil: riscos e desafios nesta forma de institucionalizar a parceria Estado-sociedade organizada. In: Documentos Debate: Estado, Adminstración Pública y Sociedad : XIV Concurso de Ensayos y Monografías sobre Reforma del Estado y Modernización de la Administración Pública. Ensayos Ganadores 2000. Caracas: CLAD, n. 6, p. 61, abr. 2001.190FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 186.
71
serem cumpridos pela entidade postulante da qualificação, que consistem no registro de seu
ato constitutivo, com uma série de elementos obrigatórios ali constantes, e na obtenção da
aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização
social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade
correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração Federal e
Reforma do Estado. Ao mencionar o juízo de conveniência e oportunidade, a redação do
artigo deixa transparecer, sem qualquer dúvida, a discricionariedade conferida ao Poder
Executivo para a aprovação, ou não, da entidade postulante do título.
Acerca do ato administrativo de aprovação da qualificação da pessoa jurídica como
organização social, Sílvio Luís Ferreira da Rocha oferece-nos critérios de classificação para a
definição da natureza do ato, sumariando-os:
a) quanto à natureza da atividade como ato da Administração ativa, pois objetiva criar ou produzir uma utilidade pública, constituindo situações jurídicas; b) quanto à estrutura do ato, como ato administrativo concreto na medida em que ele se esgotará em uma única aplicação; c) quanto ao destinatário do ato, como ato administrativo individual, pois tem por destinatário sujeito determinado; (...) e) quanto aos efeitos, como ato constitutivo, pois faz nascer uma situação jurídica; f) quanto aos resultados sobre a esfera jurídica dos administrados, como ato ampliativo, pois aumenta a esfera da ação jurídica do destinatário; g) quanto à situação de terceiros, como ato externo; h) quanto à composição da vontade produtora do ato, como ato complexo, o que resulta da conjugação de órgãos diferentes, pois a aprovação da qualificação como organização social depende da concordância de dois Ministros ou de titulares de órgãos supervisor; i) quanto à formação do ato, como ato unilateral, formado pela declaração jurídica de uma só parte.191 (grifo meu)
Diogo de Figueiredo Moreira Neto complementa a classificação supra ao atribuir ao
ato de qualificação como organização social uma natureza jurídica de ato condição192,
definindo-o como
o que tem por objeto a expressão de uma manifestação de vontade satisfativa de um condicionante jurídico, procedimentalmente necessário para a prática de um ato subseqüente, geralmente removendo um obstáculo ou criando uma relação preparatória para a edição do ato principal.193
Tem-se, portanto, que o ato de qualificação demanda o preenchimento de requisitos
191ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 120-121.192MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 192193MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 152.
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específicos, sendo que a aprovação por dois órgãos federais – requisito disposto no art. 2º,
inciso II, da Lei n. 9.637/1998 – consiste em ato discricionário, nos termos da lei, uma vez
que atrelado à aprovação do Poder Público, ato que necessariamente envolve um juízo de
conveniência e oportunidade quanto à admissão da entidade como organização social.
Sabe-se que a prática de um ato administrativo discricionário diferencia-se da de um
ato administrativo vinculado no que diz respeito ao grau de liberdade da administração, à
margem de liberdade que a lei oferta ao administrador. Acerca do tema, ponderam Eduardo
García de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez que a prática do ato vinculado reduz a
atividade administrativa à constatação da ocorrência do fato previsto de maneira completa e
exaustiva na lei e à aplicação da conseqüência jurídica lá prevista. Não dá margem a
julgamentos subjetivos, ressalvada a inerente subjetividade presente no ato de constatar a
hipótese de fato, para que se proceda à posterior aplicação da conseqüência jurídica cabível.194
Em oposição à objetividade do ato vinculado (potestade regrada), o exercício de uma
potestade discricionária exibe um procedimento permeado pela subjetividade do
administrador, a quem cabe completar o quadro legal que condiciona o exercício da potestade
ou o conteúdo particular do ato.
A norma remete parcialmente, para completar o quadro regular da potestade e de suas condições de exercício, a uma avaliação administrativa, só que não realizada (...) por via normativa geral, senão analiticamente, caso por caso, mediante uma apreciação de circunstâncias singulares, realizável ao mesmo tempo que procede ao processo aplicativo.195
É justamente a discricionariedade conferida pela lei ao administrador, que finda por
subordinar a outorga do título jurídico de organização social à conveniência e à oportunidade
da Administração, mesmo que preenchidos os requisitos constantes do inciso II do art. 2º da
Lei n. 9.637/1998, o que alimenta as manifestações doutrinárias mais contundentes acerca da
natureza jurídica do ato de qualificação das organizações sociais.
Segundo Juarez Freitas, a excessiva discricionariedade prevista em lei deriva do fato
de que o governo temia uma explosão – inocorrente – de pedidos de qualificação, tendo
aberto tal margem de discricionariedade com o intuito de selecionar quais entidades, dentro de
um universo de candidatas, deveriam, de fato, receber a qualificação como organização
194ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNANDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 389.195ENTERRÍA, Eduardo García de; FERNANDEZ, Tomás-Ramón. Curso de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 389.
73
social.196
Já para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a discricionariedade remonta ao momento em
que as intenções de publicização foram explicitadas pelo legislador, consistindo a exigência
de aprovação por parte do Poder Executivo em meio hábil para a escolha das entidades que se
desejava ter como partícipes do processo de publicização. Na opinião de Maria Sylvia,
desejava o legislador que os próprios servidores do órgão estatal extinto, organizados sob uma
nova associação ou fundação, viessem a se qualificar como organização social para que
pudessem assumir as atividades publicizadas.197
A preocupação com relação à margem de discricionariedade aberta pelo legislador no
processo de qualificação das organizações sociais parece, de fato, procedente, em razão das
inúmeras vantagens que decorrem de tal qualificação. Tão-só a celebração de contrato de
gestão – ato aparentemente mediato à qualificação, como se verá adiante –, já é capaz de
garantir à organização social o repasse de recursos públicos, bem como a cessão de servidores
e a permissão de uso de bens igualmente públicos. São cobiçados benefícios que, ao nosso
ver, justificariam a transformação do ato de qualificação em um ato vinculado a requisitos
objetivos, visando a afastar qualquer submissão a parâmetro político na escolha da entidade a
ser qualificada.
Nada há de insólito no cenário descrito por Sílvio Luís Ferreira da Rocha, em que o
agente público, por desvio de poder, nega a qualidade de organização social a uma pessoa
jurídica que preenche os demais requisitos, guiando-se por uma finalidade estranha ao
interesse público, como a de favorecer outrem ou prejudicar a entidade postulante, ou com a
intenção de perseguir interesse estranho à norma.198 O autor vislumbra a dificuldade de
controle do ato administrativo discricionário que denega a qualidade de organização social e
acaba por constatar a inconstitucionalidade do inciso II do art. 2º da Lei n. 9.637/1998, já que
não há razão lógica que justifique a decisão administrativa de dentre das pessoas jurídicas que preencham os requisitos exigidos pelo art. 2º, inciso II, da Lei 9.637/1998, conceder a uma e negar à outra o título de Organização Social. A escolha afronta manifestamente o princípio da isonomia. Se há igualdade entre as pessoas jurídicas que pretendam receber o título de Organização Social, a solução, de lege ferenda, seria a atribuição desta
196FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 186.197AGÊNCIAS executivas, agências reguladoras e organizações sociais: natureza jurídica, características, distinções e atribuições destes novos entes: contratos de gestão conferindo maior autonomia gerencial, orçamentária e financeira. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v. 16, n.11, p. 818, nov. 2000.198ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 135.
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qualidade a todas – e não apenas a algumas – que preencham os requisitos, transformando o exercício da competência do agente, no que diz respeito ao conteúdo do ato, de discricionária para vinculada.199 (grifo meu)
Como alternativa ao atual processo de qualificação, Sílvio Luís Ferreira da Rocha
sugere a sujeição a procedimento licitatório que, utilizando-se de critérios objetivos e
imparciais, selecionasse entre as entidades candidatas a que se mostrasse mais capacitada a
receber a qualificação como organização social e, por conseguinte, a estabelecer vínculo de
colaboração com o Estado.200
2.5 Requisitos para a qualificação
Conforme já introduzido no tópico supra, é possível extrair da Lei n. 9.637/1998 dois
requisitos específicos para que uma entidade possa habilitar-se à qualificação como
organização social: o registro de seu ato constitutivo, que deve observar uma série de
elementos constantes do art. 2º, inciso I, e sua aprovação por dois órgãos federais, nos termos
do inciso II do mesmo artigo.
Alguns autores201 ainda mencionam a celebração de contrato de gestão como uma
exigência para que o título jurídico indigitado seja outorgado, o que não parece ser possível
concluir a partir da redação dos arts. 2º e 5º da Lei n. 9.637/1998. Enquanto o art. 2º suprime
o contrato de gestão como requisito específico, o art. 5º o define como “o instrumento firmado
entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social”, o que demonstra que
a sua celebração é ato posterior à qualificação, e não necessariamente anterior.202
Quanto ao ato constitutivo da entidade candidata à habilitação, o art. 2º, inciso I,
determina os elementos que devem lá constar, assim resumidos: (a) fins sociais, com atuação
voltada ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e
199ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 136-137. Também pela inconstitucionalidade: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 231-233 passim.200ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 137.201MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 230; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 384; 202Nesse sentido: FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 187; ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 139.
75
preservação do meio ambiente, à cultura ou à saúde; (b) finalidade não-lucrativa, com
proibição de distribuição de bens ou de parcela do patrimônio líquido em qualquer hipótese;
(c) previsão expressa de a entidade ter um órgão de deliberação colegiado – o Conselho de
Administração –, com composição e atribuições normativas e de controle previstas pela Lei n.
9.637/1998 e com a participação de representantes do Poder Público e da comunidade; (d)
previsão expressa de a entidade ter um órgão diretor, com composição e atribuição definidas
no estatuto; (e) publicidade de seus atos, com a obrigatoriedade de publicação anual, no
Diário Oficial da União, dos relatórios financeiros e do relatório de execução do contrato de
gestão; (f) a previsão de aceitação de novos associados, na forma do estatuto, caso se tratar de
associação civil; (g) previsão de incorporação integral dos seus bens, bem como dos
excedentes financeiros decorrentes de suas atividades, em caso de extinção ou
desqualificação, ao patrimônio de outra organização social qualificada no âmbito da União, da
mesma área de atuação, ou ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos
Municípios, na proporção dos recursos e bens por estes alocados.
Do rol de requisitos estabelecidos pela Lei n. 9.637/1998, relativos ao ato de
constituição da entidade, demanda comentários o Conselho de Administração, previsão
inovadora que estabelece o principal canal de ingerência do Poder Público na organização
social.
O art. 3º203 da Lei 9.637/1998 dispõe regras para a composição do Conselho de
203Art. 3o O conselho de administração deve estar estruturado nos termos que dispuser o respectivo estatuto, observados, para os fins de atendimento dos requisitos de qualificação, os seguintes critérios básicos:I - ser composto por:a) 20 a 40% (vinte a quarenta por cento) de membros natos representantes do Poder Público, definidos pelo estatuto da entidade;b) 20 a 30% (vinte a trinta por cento) de membros natos representantes de entidades da sociedade civil, definidos pelo estatuto;c) até 10% (dez por cento), no caso de associação civil, de membros eleitos dentre os membros ou os associados;d) 10 a 30% (dez a trinta por cento) de membros eleitos pelos demais integrantes do conselho, dentre pessoas de notória capacidade profissional e reconhecida idoneidade moral;e) até 10% (dez por cento) de membros indicados ou eleitos na forma estabelecida pelo estatuto;II - os membros eleitos ou indicados para compor o Conselho devem ter mandato de quatro anos, admitida uma recondução;III - os representantes de entidades previstos nas alíneas "a" e "b" do inciso I devem corresponder a mais de 50% (cinqüenta por cento) do Conselho;IV - o primeiro mandato de metade dos membros eleitos ou indicados deve ser de dois anos, segundo critérios estabelecidos no estatuto;V - o dirigente máximo da entidade deve participar das reuniões do conselho, sem direito a voto; VI - o Conselho deve reunir-se ordinariamente, no mínimo, três vezes a cada ano e, extraordinariamente, a qualquer tempo; VII - os conselheiros não devem receber remuneração pelos serviços que, nesta condição, prestarem à organização social, ressalvada a ajuda de custo por reunião da qual participem;VIII - os conselheiros eleitos ou indicados para integrar a diretoria da entidade devem renunciar ao assumirem funções executivas.
76
Administração, enquanto o art. 4º204 encarrega-se de fixar suas competências privativas. No
que tange à sua composição, vislumbra-se o esforço do legislador em submeter a organização
social ao controle próximo do Poder Público e da comunidade. Membros natos representantes
do Poder Público, bem como membros natos representantes de entidades da sociedade civil, a
serem definidos no estatuto, deverão representar mais de 50% da composição do Conselho,
sendo o restante das vagas preenchidas por membros eleitos pelos demais integrantes do
conselho, dentre pessoas de notória capacidade profissional e reconhecida idoneidade moral, e
por membros indicados ou eleitos na forma estabelecida pelo estatuto. Tratando-se de
associação civil, a Lei n. 9.637/1998 prevê, ainda, vagas para membros eleitos dentre os
membros ou os associados.
Conforme conclui Sílvio Luís Ferreira da Rocha, caberia à pessoa jurídica escolher, de
forma direta, tão-somente 20% dos representantes do Conselho de Administração205, número
bastante impressionante se considerado o imenso poder decisório legalmente conferido a este
órgão – nas palavras de Gina Copola, o Conselho de Administração “exerce uma
imprescindível e inquestionável função (...) de espinha dorsal na administração da
organização social”.206
Destarte, tem-se que a composição do Conselho de Administração, legalmente
prevista, implica um alto grau de ingerência externa sobre a entidade. Afinal, submete-se, por
força de lei, uma pessoa jurídica de direito privado a decisões proferidas por um Conselho
constituído, em sua maioria, por membros estranhos à entidade. Sobre a temática, conclui
Luis Eduardo Regules Patrone:
204Art. 4o Para os fins de atendimento dos requisitos de qualificação, devem ser atribuições privativas do Conselho de Administração, dentre outras: I - fixar o âmbito de atuação da entidade, para consecução do seu objeto;II - aprovar a proposta de contrato de gestão da entidade; III - aprovar a proposta de orçamento da entidade e o programa de investimentos;IV - designar e dispensar os membros da diretoria;V - fixar a remuneração dos membros da diretoria; VI - aprovar e dispor sobre a alteração dos estatutos e a extinção da entidade por maioria, no mínimo, de dois terços de seus membros;VII - aprovar o regimento interno da entidade, que deve dispor, no mínimo, sobre a estrutura, forma de gerenciamento, os cargos e respectivas competências;VIII - aprovar por maioria, no mínimo, de dois terços de seus membros, o regulamento próprio contendo os procedimentos que deve adotar para a contratação de obras, serviços, compras e alienações e o plano de cargos, salários e benefícios dos empregados da entidade;IX - aprovar e encaminhar, ao órgão supervisor da execução do contrato de gestão, os relatórios gerenciais e de atividades da entidade, elaborados pela diretoria;X - fiscalizar o cumprimento das diretrizes e metas definidas e aprovar os demonstrativos financeiros e contábeis e as contas anuais da entidade, com o auxílio de auditoria externa.205ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 118.206COPOLA, Gina. Desestatização e terceirização. São Paulo: NDJ, 2006, p. 30.
77
A ingerência do Poder Público nas Organizações Sociais alcança um nível jamais visto no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente se considerada a natureza jurídica das pessoas jurídicas assim qualificadas, dotadas de autonomia própria das organizações privadas, assim como instituídas e geridas sob o influxo do direito constitucional à liberdade de associação.207
De outro lado, observa-se que a previsão de participação de representantes da
sociedade civil no Conselho de Administração harmoniza-se com os objetivos do modelo de
administração gerencial implementado pela reforma do aparelho do Estado, porquanto
prestigia o controle por parte dos usuários dos serviços prestados pela organização social. Se
tais membros do Conselho consistirem, de fato, em representantes de usuários, e não de
interesses específicos, ter-se-á um instrumento valioso para a implementação de uma
administração com o foco no cidadão-cliente e para a solução de problemas entre políticos
(delegatários) e burocratas (delegados).208
A composição do Conselho de Administração, tal qual prevista no art. 3º da Lei n.
9.637/1998, é alvo de críticas por parte da doutrina em razão de sua difícil operacionalização
e de sua questionável eficácia. Paulo Modesto identifica na exigência de obrigatória previsão
estatutária da participação de representantes do Poder Público no Conselho de Administração,
em um percentual que pode variar entre 20 a 40%, uma onerosidade injustificada para a
Administração, que se obriga a ceder pessoal qualificado para a compor o Conselho de todas
as organizações sociais qualificadas pelo Poder Executivo federal. Na opinião do autor, a
referida exigência poderia ser aplicável apenas a entidades de grandes dimensões, o que
garantiria um acompanhamento efetivo de organizações sociais que movimentam recursos
expressivos.209
Luis Eduardo Patrone Regules, por sua vez, detecta na estrutura do Conselho de
Administração um enfraquecimento do exercício à liberdade de associação, preceito
constitucional que assegura a não interferência estatal no funcionamento das associações
civis. Segundo o autor, é no mínimo curioso imaginar os particulares, após empreenderem
seus esforços para a formação e consolidação da entidade, praticamente realizarem a
207REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 99.208NASSUNO, Marianne. Organização dos usuários, participação na gestão e controle das organizações sociais. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 48, n. 1, p. 29-31, jan./abr. 1997.209MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 82, 1998.
78
“entrega” da direção da criatura por eles gerada ao Poder Público210.
Para Juarez Freitas, a exigência em comento merece reparo em razão da generalidade
excessiva da norma, que pode inviabilizar operacionalmente a qualificação de uma entidade, e
da incredibilidade de um Conselho de Administração que, composto por representantes do
Poder Público, tem por atribuição a aprovação da proposta do contrato de gestão da entidade,
a ser submetida pelo contratante – o mesmo Poder Público. Acrescenta também que não há
necessidade de que se submeta a organização social a um controle dessa espécie, cabendo a
utilização dos outros mecanismos de controle já previstos às entidades do terceiro setor.211
Admitindo as ressalvas supramencionadas, a Lei Complementar n. 846/98, do Estado
de São Paulo, que institui localmente as organizações sociais, não reprisou os termos do
diploma legal federal ao dispor acerca da composição do Conselho de Administração (art. 3º),
optando por excluir a exigência de representação do Poder Público no Conselho. Estabelece,
inclusive, a vedação de que os membros eleitos ou indicados para compor o Conselho sejam
parentes consangüíneos ou afins até o 3º grau do Governador, Vice-Governador e Secretários
de Estado.
Tecidas as considerações pertinentes à exigência de previsão de um Conselho de
Administração no ato constitutivo da entidade candidata à qualificação como organização
social, passa-se ao exame do requisito constante do inciso II do art. 2º da Lei n. 9.637/1998:
aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização
social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade
correspondente ao seu objeto social e do Ministro de Estado da Administração Federal e
Reforma do Estado.
A aprovação a ser conquistada pela entidade postulante do título jurídico de
organização social é, sabidamente, um exercício do juízo de conveniência e oportunidade, o
que confere ao ato de qualificação um caráter discricionário.
Ressalva-se que a aptidão do Ministro de Estado da Administração Federal para o ato
de aprovação é, hoje, atribuída ao Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, uma vez
que o Ministério da Administração Federal e Reforma foi extinto pela Medida Provisória n.
1.795/1999, tendo suas competências absorvidas pelo atual Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão.212
210REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 100.211FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 187212MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 228.
79
Consideradas, novamente, as inúmeras vantagens que decorrem da qualificação como
organização social, em especial a possibilidade de celebrar contrato de gestão com o Poder
Público e, assim, receber bens, recursos e servidores públicos, a doutrina tem ofertado
sugestões de aprimoramento do modelo federal de organização social que consistem na
inclusão de novos requisitos a serem cumpridos pela entidade candidata à qualificação.
Celso Antônio Bandeira de Mello atenta para a necessidade de que a entidade
demonstre habilitação técnica ou econômico-financeira, capaz de comprovar sua aptidão para
estabelecer um vínculo de parceria com o Estado.213 No mesmo sentido, Paulo Modesto
sugere a inclusão da exigência de comprovação de tempo mínimo de atuação na área de
atividade, bem como a comprovação da existência de patrimônio ou qualificação técnica
especial. Para Modesto, tais requisitos evitariam o surgimento de entidades ad hoc como
beneficiárias do título de organização social e a conseqüente perda de credibilidade do
instituto. 214
Por fim, Juarez Freitas constata a necessidade de que seja corrigido o atual
descompasso temporal na celebração do contrato de gestão, tornando-o requisito essencial da
qualificação como organização social, a ser firmado em momento próximo ou contemporâneo
ao da outorga do título.215
2.6 O contrato de gestão
A Lei n. 9.637/1998, além de instituir e disciplinar o título jurídico de organização
social, conceitua, mesmo que de forma superficial, uma nova espécie de contrato a ser
celebrado entre o Estado – por via de sua Administração Pública direta – e uma entidade
qualificada como organização social: o contrato de gestão.
Art. 5o Para os efeitos desta Lei, entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para
213MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 230-231.214MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 82, 1998.215FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 187.
80
fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1o.
Tal qual dispõe o artigo supra citado, o contrato de gestão é o instrumento que
estabelece o vínculo jurídico de parceria entre as partes signatárias, ajustando as condições em
que se dará o fomento estatal às atividades de interesse público desempenhadas pela
organização social; ou, no caso de publicização de serviço público, o ajuste das condições em
que se dará a transferência da execução de um determinado serviço público, antes prestado
por entidade ou órgão estatal, a uma organização social.216
Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello, o contrato de gestão consiste em meio
de buscar o cumprimento de certas metas administrativas de desempenho nele prefixadas, cuja
execução deverá ser periodicamente avaliada pelo contratante (Estado).217 No mesmo sentido
opinam os atualizadores da obra de Hely Lopes Meirelles, ao compreenderem como
finalidade básica do contrato de gestão a fixação de metas e prazos de execução a serem
cumpridos pela entidade privada, com o fito de permitir um melhor controle de resultados.218
O conteúdo do contrato de gestão resume-se, portanto, à discriminação de obrigações,
atribuições e responsabilidades dos contratantes, com a fixação de metas a serem cumpridas
pela organização social, bem como à forma em que se dará o fomento estatal e o controle de
resultados a ser adotado. Observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro que o conteúdo de um
contrato de gestão é pesadamente restritivo à autonomia de uma entidade qualificada como
organização social, porquanto deverão estas se submeter a inúmeras exigências a bem de se
manterem como organizações sociais.219
Prevê o art. 6º que o contrato de gestão será elaborado de comum acordo entre a
autoridade supervisora e a organização social e, uma vez redigido, será submetido à
aprovação do Conselho de Administração e do Ministro de Estado ou autoridade supervisora
da área correspondente à atividade fomentada.
Quanto ao momento da celebração do contrato de gestão com a organização social,
216Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o financiamento das atividades de uma organização social que absorveu atividades desenvolvidas por entidades ou órgãos públicos da União não pode ser caracterizado como fomento, uma vez que não se trata de mero incentivo a atividades de interesse público desempenhadas pela iniciativa privada. Tratar-se-ia, na opinião da autora, de caso de descentralização por colaboração, em que o Estado transfere a gestão de um serviço público (serviços de saúde, educação...) para outrem, mantendo a sua titularidade. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 64-68, 267.217MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 217.218MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 267.219DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 268.
81
embora a Lei n. 9.637/1998 silencie acerca do tema, é possível supor que se trate de momento
contemporâneo ou posterior à qualificação da entidade, mas nunca anterior. Nos termos do
que já exposto acima, não parece o contrato de gestão tratar-se de requisito para a qualificação
como organização social, mas sim de um efeito mediato da concessão do título jurídico.220
Em não consistindo a celebração do contrato de gestão em requisito essencial da
qualificação, resta a pergunta, ainda não enfrentada pela doutrina: é possível o Poder Público
não proceder à contratação da entidade qualificada como organização social?
Embora uma leitura atenta da Lei n. 9.637/1998 sugira a vinculação entre o momento
da qualificação e a celebração de contrato de gestão, fato é que não há qualquer dispositivo
legal explícito acerca do tema. Considerando-se a finalidade de tal instrumento – a
formalização do vínculo de parceria, estabelecendo as condições em que se dará o repasse de
recursos às contratadas –, o contrato de gestão seria imprescindível, sob pena de tornar inócua
a qualificação da entidade como organização social. Não havendo a produção do efeito
mediato da qualificação, o instituto esvazia-se, uma vez que o efeito imediato não justificaria
a sua criação.
Apresentados os traços essenciais do contrato de gestão, nos termos do conceito
formulado pela Lei n. 9.637/1998, mister distinguir o contrato celebrado com organizações
sociais do seu homônimo, previsto no art. 37, § 8º, da Constituição Federal221, incluído pela
Emenda Constitucional nº 19/1998, a ser celebrado com entidades integrantes do próprio
aparelho administrativo do Estado.
Os contratos de gestão firmados com entidades da Administração indireta e até mesmo
com órgãos integrantes da própria Administração direta visam a atribuir às contratadas uma
maior autonomia gerencial, com a dispensa de determinados controles de praxe sobre suas
atividades, contemplando também o repasse regular de recursos por parte da Administração
central. Em contrapartida, as contratadas devem cumprir um programa de atuação, vinculado
a metas e avaliações periódicas, em modelo semelhante ao contrato de gestão celebrado com
220ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 139-140.221Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (omissis)§ 8º A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre: I - o prazo de duração do contrato;II - os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes;III - a remuneração do pessoal.
82
organizações sociais.222
2.6.1 Conteúdo
Embora já tenhamos definido preliminarmente o conteúdo do contrato de gestão –
aquele atinente às atribuições, responsabilidades e obrigações recíprocas das partes signatárias
–, impende examinar seus elementos obrigatórios, tal qual dispostos no art. 7º da Lei n.
9.637/1998:
Art. 7o Na elaboração do contrato de gestão, devem ser observados os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, economicidade e, também, os seguintes preceitos:I - especificação do programa de trabalho proposto pela organização social, a estipulação das metas a serem atingidas e os respectivos prazos de execução, bem como previsão expressa dos critérios objetivos de avaliação de desempenho a serem utilizados, mediante indicadores de qualidade e produtividade;II - a estipulação dos limites e critérios para despesa com remuneração e vantagens de qualquer natureza a serem percebidas pelos dirigentes e empregados das organizações sociais, no exercício de suas funções.Parágrafo único. Os Ministros de Estado ou autoridades supervisoras da área de atuação da entidade devem definir as demais cláusulas dos contratos de gestão de que sejam signatários.
A partir do referido dispositivo legal, Sílvio Luís Ferreira da Rocha extrai o conteúdo
mínimo do contrato de gestão celebrado com organizações sociais: (a) a especificação do
programa de trabalho proposto pela organização social e a estipulação de metas a atingir e os
respectivos prazos de execução; (b) a metodologia de avaliação e desempenho; (c) os recursos
orçamentários, os bens públicos que serão destinados, bem como os servidores que serão
cedidos para o cumprimento do programa de trabalho proposto; (d) a estipulação de limites
para despesa com remuneração e vantagens e o estabelecimento de critérios para concedê-las
222MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 218. Cumpre referir que o contrato de gestão previsto no art. 37, § 8º, da Constituição Federal, é apontado por parte da doutrina como juridicamente impossível ou inválido, seja porque não se poderia ampliar contratualmente a autonomia de uma entidade integrante da Administração Pública, seja porque um contrato celebrado entre órgãos não preenche o requisito de capacidade das partes contratantes, uma vez que órgãos do Estado não têm personalidade jurídica. Nesse sentido: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 263; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 224-22; RIGOLIN, Ivan Barbosa. O contrato de gestão e seus mistérios. Revista CONSULEX, Brasília, n. 27, p. 60, mar. 1999.
83
aos dirigentes e empregados das organizações sociais e (e) o estabelecimento de mecanismos
de controle e fiscalização.223
Quanto ao programa de trabalho a ser apresentado pela organização social signatária,
que deve envolver a descrição das atividades a serem desenvolvidas e as metas a serem
perseguidas, de modo a viabilizar um controle dos resultados alcançados, silencia a lei quanto
à necessidade de que os serviços prestados pela entidade sejam gratuitos. Paulo Modesto
sugere que seja exigido pelo menos um certo percentual de serviços gratuitos diretamente
prestados ao cidadão, a ser calculado, por exemplo, sobre o valor das subvenções concedidas
ou sobre o valor do apoio não-financeiro alcançado pelo Estado.224
O segundo elemento obrigatório – a metodologia de avaliação e desempenho –
consiste na forma em que o Poder Público verificará o cumprimento das metas ajustadas e a
adequabilidade dos serviços prestados pela organização social.
O terceiro elemento a constar do contrato de gestão são os termos em que se dará a
atividade de fomento estatal à organização social, com a previsão minuciosa dos meios a
serem utilizados. Com fulcro nos arts. 12, 13 e 14 da Lei n. 9.637/1998225, poderá o Estado
não só destinar recursos orçamentários às organizações sociais (forma clássica de fomento),
mas também destinar bens públicos, mediante permissão de uso, e ceder servidores públicos,
com ônus para a origem. A atipicidade dos meios de fomento eleitos pelo legislador leva
Maria Sylvia Zanella Di Piettro a asseverar que se está diante da “maior ajuda que já se
223ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 143-145.224MODESTO, Paulo. Reforma do marco legal do terceiro setor no Brasil. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 24, p. 82, 1998.225Art. 12. Às organizações sociais poderão ser destinados recursos orçamentários e bens públicos necessários ao cumprimento do contrato de gestão.§ 1o São assegurados às organizações sociais os créditos previstos no orçamento e as respectivas liberações financeiras, de acordo com o cronograma de desembolso previsto no contrato de gestão.§ 2o Poderá ser adicionada aos créditos orçamentários destinados ao custeio do contrato de gestão parcela de recursos para compensar desligamento de servidor cedido, desde que haja justificativa expressa da necessidade pela organização social.§ 3o Os bens de que trata este artigo serão destinados às organizações sociais, dispensada licitação, mediante permissão de uso, consoante cláusula expressa do contrato de gestão.Art. 13. Os bens móveis públicos permitidos para uso poderão ser permutados por outros de igual ou maior valor, condicionado a que os novos bens integrem o patrimônio da União.Parágrafo único. A permuta de que trata este artigo dependerá de prévia avaliação do bem e expressa autorização do Poder Público.Art. 14. É facultado ao Poder Executivo a cessão especial de servidor para as organizações sociais, com ônus para a origem.§ 1o Não será incorporada aos vencimentos ou à remuneração de origem do servidor cedido qualquer vantagem pecuniária que vier a ser paga pela organização social.§ 2o Não será permitido o pagamento de vantagem pecuniária permanente por organização social a servidor cedido com recursos provenientes do contrato de gestão, ressalvada a hipótese de adicional relativo ao exercício de função temporária de direção e assessoria.§ 3o O servidor cedido perceberá as vantagens do cargo a que fizer juz no órgão de origem, quando ocupante de cargo de primeiro ou de segundo escalão na organização social.
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concebeu dar para uma entidade no Direito brasileiro”226. Salienta-se que os bens públicos
cedidos por meio de permissão de uso estão dispensados de licitação pública e poderão
abarcar até mesmo a totalidade do patrimônio imóvel de uma entidade estatal extinta, que
passarão a ser geridos pela organização social em regime de permissão de uso.
No que tange à possibilidade de cessão de servidores públicos, com ônus para o Poder
Público, Celso Antônio Bandeira de Mello repreende a iniciativa do legislador federal,
apontando os pontos críticos de tal forma de fomento estatal:
Acresce que a possibilidade aberta pela lei de que servidores públicos sejam, como é claro a todas as luzes, cedidos a organizações sociais a expensas do Poder Público aberra dos mais comezinhos princípios de Direito. Tais servidores jamais poderiam ser obrigados a trabalhar em organizações particulares. Os concursos que prestaram foram para entidades estatais, e não entidades particulares. Destarte, pretende impor-lhes que prestem seus serviços a outrem violaria flagrantemente seus direitos aos vínculos de trabalho que entretêm. Mesmo descartada tal compulsoriedade, também não se admite que o Estado seja provedor de pessoal de entidades particulares.227
Da mesma forma, Sérgio de Andréa Ferreira vislumbra na novel possibilidade de
cessão de servidores em favor de instituições particulares uma brecha capaz de ensejar o
questionamento de sua validade.228
Já a obrigatoriedade de estipulação de limites para despesa com remuneração e
vantagens e o estabelecimento de mecanismos de controle e fiscalização consistem em meios
encontrados pelo legislador para racionalizar o funcionamento da organização social, em uma
tentativa de mantê-la sob atenta vigilância no que toca aos seus gastos e à destinação que é
dada aos recursos que recebe do Poder Público. Cumpre sublinhar que as conclusões obtidas
por meio dos mecanismos de controle e de fiscalização poderão embasar uma posterior
desqualificação da entidade.
A presença de outras cláusulas no contrato de gestão, a serem definidas pelo Poder
Público, é admitida pelo parágrafo único do art. 7º. E, tratando-se de um contrato submetido a
regime jurídico sui generis e que necessariamente deve observar a princípios juspublicistas,
Sílvio Luís Ferreira da Rocha admite a incidência das denominadas “cláusulas exorbitantes”,
bem como da necessidade implícita de se buscar a manutenção do equilíbrio econômico-
226AGÊNCIAS executivas, agências reguladoras e organizações sociais: natureza jurídica, características, distinções e atribuições destes novos entes: contratos de gestão conferindo maior autonomia gerencial, orçamentária e financeira. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v.16, n.11, p. 817, nov. 2000.227MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 233.228FERREIRA, Sérgio de Andréa. Uma visão crítica das organizações sociais. Revista Trimestral de Direito Público, Rio de Janeiro, n. 25, p. 36, 1999.
85
financeiro do contrato.229
2.6.2 Natureza jurídica
Em virtude das particularidades contidas no contrato de gestão, afigura-se árdua a
tarefa de enquadrá-lo em figura jurídica preexistente. A doutrina divide-se quando ao tema,
provendo pareceres diversificados acerca da natureza jurídica do contrato de gestão celebrado
com organizações sociais.
Marçal Justen Filho constata a dificuldade de se apontar a natureza jurídica do
contrato de gestão, reconhecendo que tal instrumento pode comportar inúmeras figuras
jurídicas, não aparentando possuir uma natureza jurídica própria e autônoma.230
Sílvio Luís Ferreira da Rocha, Gina Copola, Lúcia Valle Figueiredo e Celso Antônio
Bandeira de Mello perfilham da opinião (majoritária) de que o contrato de gestão trata-se de
um contrato administrativo, compreendido este como o contrato em que a Administração
Pública se faz presente como parte, elaborado de comum acordo, com finalidade pública.231
Despontariam como contratos administrativos peculiares, porquanto prescindem de prévio
processo licitatório, por força de lei.
Para Luis Eduardo Patrone Regules e Marçal Justen Filho, o contrato de gestão e a
figura jurídica do convênio apresentam similaridades significativas.232 O convênio é
instrumento utilizado pelo Poder Público para o estabelecimento de parcerias com entidades
públicas e privadas, não constituindo modalidade de contrato, uma vez que não conjuga
interesses contrapostos, mas sim recíprocos. As vontades se somam para que um objetivo
comum seja alcançado, por meio da mútua colaboração das partes.233
Congênere é a opinião de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que refuta a possibilidade de
que o contrato de gestão consista, de fato, em um contrato. Não vislumbra a autora uma
divergência de objetivos entre os “contratantes” capaz de caracterizar o instrumento como um
229ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 145-146.230JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética, 2005, p. 27.231ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 141; COPOLA, Gina. Desestatização e terceirização. São Paulo: NDJ, 2006, p. 68; MELLO, p. 227.232REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro setor: regime jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006, p. 120; JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética, 2005, p. 27.233DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 314-315.
86
contrato administrativo, preferindo aproximá-lo de um convênio.234
Diogo de Figueiredo Moreira Neto igualmente considera inadequada a expressão
“contrato de gestão”, já que também não admite como contratual a relação estabelecida entre
o Estado e a organização social.
Com efeito, não se trata de contrato, porque não são pactuadas prestações recíprocas, voltadas à satisfação de interesses de cada uma delas em separado, senão que, distintamente, as partes ajustam prestações conjugadas em regime de colaboração, dirigidas à satisfação de um mesmo interesse público que lhes é comum, o que caracteriza um pacto não contratual.Está-se, portanto, diante de um ato administrativo complexo, em que há solidariedade de interesses e, por isso, conjugação consensual de vontades e de meios, e não de um contrato, no qual, por definição, há uma composição de interesses divergentes e, por isso, o estabelecimento de prestações recíprocas.235 (grifo meu)
Prossegue Moreira Neto para rotular tais atos administrativos complexos como
acordos de programa, pois neles resta contida uma programação de uma sistemática de
colaboração entre as partes signatárias.236
Por fim, tem-se o posicionamento adotado pelos atualizadores da obra de Hely Lopes
Meirelles, que optaram por enquadrar o contrato de gestão na figura jurídica do acordo
operacional, acordo em que as partes fixam os respectivos direitos e obrigações para a
realização de objetivos de interesse comum, estabelecendo um programa de trabalho a ser
observado.237 Nota-se que o acordo operacional é, substancialmente, o acordo de programa
proposto por Moreira Neto.
Ainda sobre a natureza jurídica do contrato de gestão, cumpre referir que o art. 7º da
Lei n. 9.637/1998 impõe a necessidade de observância aos princípios da legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e economicidade na elaboração do contrato de
gestão, o que deixaria transparecer a sua submissão ao regime de direito público.238 A
submissão a princípios juspublicistas dar-se-ia em razão dos benefícios auferidos após a
assinatura do contrato, que podem envolver o recebimento de recursos financeiros,
administração de bens, equipamento e pessoal do Estado.
234AGÊNCIAS executivas, agências reguladoras e organizações sociais: natureza jurídica, características, distinções e atribuições destes novos entes: contratos de gestão conferindo maior autonomia gerencial, orçamentária e financeira. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v.16, n.11, p. 821, nov. 2000.235MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 277-278.236MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 278.237MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 267.238 ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 141.
87
2.6.3 A questão da dispensa de licitação pública
Embora se trate de questão não enfrentada pela lei, nem pela doutrina, a existência de
toda organização social parece estar vinculada à celebração de um contrato de gestão,
instrumento que dispõe acerca da forma em que se dará o fomento estatal às atividades das
contratadas. Assim sendo, todas as entidades que cumpriram os requisitos legais e
conseguiram a qualificação como organização social estão habilitadas a celebrarem um
contrato de gestão com o Poder Público, a fim de que possam ser destinatárias de auxílio
estatal para o desenvolvimento de suas atividades.
A Lei n. 9.637/1998 atribuiu aos contratos de gestão um invólucro de contrato
administrativo, submetendo-o a princípios juspublicistas e prevendo um rígido controle de sua
execução. Contudo, sabe-se que, por força do art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal,
todo contrato administrativo deve ser precedido de processo licitatório, ressalvados os casos
especificados na legislação.
Disposto a conceder às organizações sociais a prerrogativa de celebrarem contratos de
gestão sem a necessidade de observar procedimento licitatório prévio, o legislador
acrescentou ao art. 24 da Lei n. 8.666/1993 o inciso XXIV, que dispensa de licitação os
contratos de gestão a serem celebrados com organizações sociais e que tenham por objeto a
prestação de serviços.
Adotando uma concepção legalista, Gina Copola e Ivan Barbosa Rigolin admitem a
dispensa de licitação para os contratos de gestão celebrados com organizações sociais, porque
a lei assim expressamente dispôs.239
No entanto, examinando-se os limites à discricionariedade do legislador ao prever um
caso de dispensa de licitação pública, surgem dúvidas acerca da constitucionalidade do art.
24, inciso XXIV, da Lei n. 8.666/1993. Discorre Joel de Menezes Niebuhr acerca de tais
limites:
239COPOLA, Gina. As organizações sociais e os contratos de gestão. BLC: Boletim de Licitações e Contratos, v.17, n. 8, p. 575, ago. 2004; RIGOLIN, Ivan Barbosa. Alguns casos polêmicos de licitação dispensável e inexigível: o contrato de gestão. Revista do Tribunal de Contas da União, v.29, n.78, p. 32-33, out./dez., 1998.
88
A dispensa ocorre nas hipóteses em que a realização de licitação pública importa sacrifícios ou gravames de monta ao interesse público, que não poderiam, com ârrimo na razoabilidade, ser suportados pela coletividade. Verifica-se a ocorrência de tensão entre valores prestigiados pelo ordenamento: de um lado, o princípio da isonomia, que acarreta a obrigatoriedade de licitação pública, uma vez que se deve propiciar o mesmo tratamento a todos os interessados nos benefícios econômicos do contrato; e, de outro, valores de porte diverso, porém importantes para o interesse público, tais como a emergência, a segurança nacional etc., que propugnam a dispensa da licitação pública. O legislador está autorizado a criar hipóteses de dispensa perante situações, mesmo ainda gerais e abstratas, em que esses outros valores fossem sacrificados ou agravados em larga escala pela realização de licitação pública e em que os mesmos se apresentassem com mais força do que o princípio da isonomia.240 (grifo meu)
A partir da lição supra, sob que argumento a dispensa de licitação pública para a
celebração de contratos de gestão com organizações sociais se manteria?
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a possibilidade de absorção das atribuições de
uma entidade estatal extinta e o recebimento de recursos orçamentários e bens públicos
justificariam a exigência de licitação pública para a escolha das entidades que serão
qualificadas como organizações sociais. Para a autora, a exigência de licitação deveria
preceder a celebração do contrato de gestão e estar conectada à outorga do título jurídico.241
Marçal Justen Filho considera imprescindível que, dentre as entidades qualificadas
como organização social, seja adotado um processo objetivo de seleção para a celebração de
contrato de gestão. Exemplifica o caso em que a Administração intencione outogar aos
particulares a gestão de um educandário, e conclui que é necessário que seja facultada a
disputa pelo contrato de gestão, selecionando-se a melhor proposta segundo critério objetivos
preestabelecidos, em observância ao princípio da isonomia e da indisponibilidade do interesse
público.242 E prossegue:
Ressalte-se que incidem, no caso, os dois princípios fundamentais da licitação. Em primeiro lugar, há o postulado de indisponibilidade dos interesses sob tutela estatal. Como decorrência, a Administração não pode ceder bens, pessoal e recursos a terceiros por mera liberalidade. (...) Quando o Estado escolhe uma certa organização social e com ela firma determinado contrato de gestão, está atuando de moldae a promover o bem comum. Esse
240NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e inexigibilidade de licitação pública. São Paulo: Dialética, 2003, p. 147.241DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 270.242JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética, 2005, p. 27.
89
é o único fundamento que autoriza ceder bens, pessoal e recursos para particulares. Seria um contra-senso afirmar, simultaneamente, que o Estado não necessitaria optar pela melhor escolha possível. (...) a atuação do Estado tem de ser norteada pelo ideal de selecionar a melhor alternativa possível. (...) Em segundo lugar, há o princípio da isonomia. Todas as organizações sociais têm o direito de ser tratadas igualmente. Não se admitem distinções fundadas em escolhas meramente subjetivas. (...) Seria incompatível com o princípio da isonomiaescolher determinada organização social e excluir outra(s) para realizar contrato de gestão com objeto específico. Se houver pluralidade de sujeitos em situação de competição pela realização do contrato de gestão, o princípio da isonomia exige a observância de um procedimento seletivo, em que o julgamento deverá fazer-se segundo os princípios constitucionais da objetividade, moralidade e economicidade.243
(grifo meu)
Acerbas críticas à dispensa de licitação para os contratos de gestão também são
proferidas por Celso Antônio Bandeira de Mello, que assevera que a ausência de licitação só
se justifica quando há conclusivas razões para tal, o que não seria o caso da hipótese de
dispensa em comento. Bandeira de Mello destaca dois aspectos que estariam envoltos em
inconstitucionalidade: o recebimento de vantagens econômicas sem um processo regular em
que se assegure igualdade a quaisquer interessados e a absorção de serviços públicos por
organizações sociais.244
Quanto ao recebimento de benesses variadas – bens públicos, dotações orçamentárias
e cessão de servidores públicos –, Celso Antônio Bandeira de Mello demonstra preocupação
com a outorga do título jurídico em si, ato que considera desprovido de qualquer exigência de
comprovação de habilitação patrimonial, financeira e técnica das candidatas, atributos que
poderiam ser facilmente aferidos por meio de um processo licitatório. Dessa forma, concentra
suas críticas ao momento anterior da celebração do contrato de gestão – a qualificação –, ato
que, em seu estado atual, define como “uma outorga imperial resultante tão-só do soberano
desejo dos outorgantes”245.
Em meio à discussão doutrinária acerca da constitucionalidade da dispensa de licitação
pública para a contratação de organizações sociais, há o acórdão prolatado pelo Plenário do
Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
1.923-5. Do referido acórdão, é possível extrair valiosos posicionamentos acerca da
constitucionalidade da dispensa de licitação em comento.243JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética, 2005, p. 267.244MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 232-233.245MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 233.
90
Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes contextualiza o surgimento das organizações
sociais e conclui acerca do atípico regime jurídico que são submetidas, inclusive com relação
à dispensa de licitação:
A Lei nº 9.637/98 institui um programa de publicização de atividades e serviços não exclusivos do Estado (...) transferindo-os para a gestão desburocratizada a cargo de entidades de caráter privado e, portanto, submetendo-os a um regime mais flexível, mais dinâmico, enfim, mais eficiente.Esse novo modelo de administração gerencial realizado por entidades públicas, ainda que não-estatais, está voltando mais para o alcance de metas do que para a estrita observância de procedimentos. A busca da eficiência dos resultados, por meio da flexibilização de procedimentos, justifica a implementação de um regime todo especial, regido por regras que respondem a racionalidades próprias do direito público e do direito privado.246 (grifo meu)
O relator originário do acórdão, Ministro Ilmar Galvão, assim opinou:
Quanto à pretendida licitação para fim de cessão de uso dos bens públicos pelas organizações sociais, é de ter-se por descabida a exigência, na medida em que se considera que se trata de entidades criadas pelo Poder Público justamente para absorção de atividade de órgão público, não havendo qualquer justificativa para que, nessas condições, se instaure concurso entre elas e entidades outras, não qualificadas para o mister.Ademais, a Constituição, no art. 37, XXI, reserva ao legislador ordinária a especificação de hipóteses de dispensa de licitação na aquisição e alienação de bens e serviços pela administração, circunstância que autoriza a ilação de que se está diante de casos da espécie.247 (grifo meu)
Retomando o entendimento de que há limites à discricionariedade do legislador ao
246BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.923-5. Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 9.637, de 15 de maio de 1.998. Qualificação de entidades como organizações sociais. Inciso XXIV do artigo 24 da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1.993, com a redação conferida pela Lei n. 9.648, de 27 de maio de 1.998. Dispensa de licitação. Alegação de afronta ao disposto nos artigos 5º; 22; 23; 37; 40; 49; 70; 71; 74, § 1º e 2º; 129; 169, § 1º; 175, caput; 194; 196; 197; 199, § 1º; 205; 206; 208, § 1º e 2º; 211, § 1º; 213; 215, caput; 216; 218, §§ 1º, 2º, 3º e 5º; 225, § 1º, e 209. Indeferimento da medida cautelar em razão de descaracterização do periculum in mora. Requerentes: Partido dos Trabalhadores e Partido Democrático Trabalhista. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília, 1º de agosto de 2007. Disponível em: <http://www.stf.gov.br> Acesso em: 29 outubro 2007.247BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.923-5. Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 9.637, de 15 de maio de 1.998. Qualificação de entidades como organizações sociais. Inciso XXIV do artigo 24 da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1.993, com a redação conferida pela Lei n. 9.648, de 27 de maio de 1.998. Dispensa de licitação. Alegação de afronta ao disposto nos artigos 5º; 22; 23; 37; 40; 49; 70; 71; 74, § 1º e 2º; 129; 169, § 1º; 175, caput; 194; 196; 197; 199, § 1º; 205; 206; 208, § 1º e 2º; 211, § 1º; 213; 215, caput; 216; 218, §§ 1º, 2º, 3º e 5º; 225, § 1º, e 209. Indeferimento da medida cautelar em razão de descaracterização do periculum in mora. Requerentes: Partido dos Trabalhadores e Partido Democrático Trabalhista. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília, 1º de agosto de 2007. Disponível em: <http://www.stf.gov.br> Acesso em: 29 outubro 2007.
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excepcionar a dispensa de licitação, o Ministro Eros Grau vota pela inconstitucionalidade do
inciso XXIV do art. 24 da Lei n. 8.666/1993, citando Robert Alexy:
Dir-se-á, pois, que uma discriminação será arbitrária quando “não seja possível encontrar, para a diferenciação legal, alguma razão adequada que surja da natureza das coisas ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível”.Pois exatamente isso se dá na hipótese da Lei n. 9.637/98: não há razão nenhuma a justificar a celebração de contrato de gestão com as organizações sociais, bem assim a destinação de recursos orçamentários e de bens públicos móveis e imóveis a elas, tudo com dispensa de licitação. Mais grave ainda a afrontosa agressão ao princípio da licitação quando se considere que é facultada ao Poder Executivo a “cessão especial de servidor para as organizações sociais, com ônus para a origem”. Inconstitucionalidade chapada, como diria o Ministro Pertence, inconstitucionalidade que se manifesta também no preceito veiculado pelo inciso XXIV do artigo 24 da Lei n. 8.666/93 com a redação que lhe foi conferida pelo artigo 1º da Lei n. 9.648, de 27 de maio de 1998.248 (grifo meu)
A referida Medida Cautelar em Ação de Declaração de Inconstitucionalidade foi
indeferida pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, em 1º de agosto
do ano corrente, inclusive no tocante à dispensa de licitação para celebração de contratos de
gestão com organizações sociais.
2.6.4 Execução e fiscalização do contrato de gestão
A execução do contrato de gestão dá-se com o desenvolvimento das atividades de
interesse público por parte da organização social, nos termos previstos no programa de
trabalho elaborado, com o fim último de cumprir as metas propostas dentro do prazo de
execução fixado. Por parte do Poder Público contratante, caberá o repasse dos créditos
previstos no orçamento e as respectivas liberações financeiras em favor da organização social,
de acordo com o cronograma de desembolso previsto no contrato de gestão.
Iniciada a execução do contrato de gestão, a Lei n. 9.637/1998 prevê mecanismos de
248BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 1.923-5. Medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 9.637, de 15 de maio de 1.998. Qualificação de entidades como organizações sociais. Inciso XXIV do artigo 24 da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1.993, com a redação conferida pela Lei n. 9.648, de 27 de maio de 1.998. Dispensa de licitação. Alegação de afronta ao disposto nos artigos 5º; 22; 23; 37; 40; 49; 70; 71; 74, § 1º e 2º; 129; 169, § 1º; 175, caput; 194; 196; 197; 199, § 1º; 205; 206; 208, § 1º e 2º; 211, § 1º; 213; 215, caput; 216; 218, §§ 1º, 2º, 3º e 5º; 225, § 1º, e 209. Indeferimento da medida cautelar em razão de descaracterização do periculum in mora. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília, 1º de agosto de 2007. Disponível em: <http://www.stj.gov.br> Acesso em: 29 outubro 2007.
92
fiscalização e controle com o intuito de assegurar o correto cumprimento do contrato,
mecanismos estes que são complementados por outros constitucionalmente previstos.
Embora seja visível a necessidade de que se exerça controle sobre as atividades
desenvolvidas pelas organizações sociais, parece necessário reiterar que tais entidades são
potencialmente destinatárias de recursos, bens e servidores públicos e, portanto, incumbidas
de gerir res publica. Conforme observa Andrea Nunes, o controle sobre tais entidades, seja
sobre os critérios no repasse das verbas e respectiva prestação de contas, seja sobre a
qualidade dos serviços prestados, é modo hábil a assegurar que as organizações do terceiro
setor em geral revertam o que lhe é repassado em benefícios para a população por elas
atendida.249
Para fins didáticos, dividir-se-á tais mecanismos de controle e fiscalização da
execução dos contratos de gestão em três espécies: internos, externos e o social.
Por controle interno, compreendemos os “mecanismos de controle que podem ser
desenvolvidos dentro da própria entidade a fim de que esta venha a desenvolver uma estrutura
compatível com as suas novas e importantes atribuições na Sociedade”250. É, pois, um
controle exercido pela Administração Pública, a partir de mecanismos a serem implementados
dentro da própria organização social.
O art. 8º da Lei n. 9.637/1998 prevê uma primeira forma de controle interno que
consiste na fiscalização da execução do contrato por órgão ou entidade supervisora da área de
atuação da organização social, verbis:
Art. 8o A execução do contrato de gestão celebrado por organização social será fiscalizada pelo órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à atividade fomentada.§ 1o A entidade qualificada apresentará ao órgão ou entidade do Poder Público supervisora signatária do contrato, ao término de cada exercício ou a qualquer momento, conforme recomende o interesse público, relatório pertinente à execução do contrato de gestão, contendo comparativo específico das metas propostas com os resultados alcançados, acompanhado da prestação de contas correspondente ao exercício financeiro.§ 2o Os resultados atingidos com a execução do contrato de gestão devem ser analisados, periodicamente, por comissão de avaliação, indicada pela autoridade supervisora da área correspondente, composta por especialistas de notória capacidade e adequada qualificação.§ 3o A comissão deve encaminhar à autoridade supervisora relatório conclusivo sobre a avaliação procedida. (grifo meu)
Assim, deverá a entidade qualificada como organização social apresentar relatório
pormenorizado acerca da forma em que se está se dando a execução do contrato de gestão,
atualizando o Poder Público no que toca às metas propostas e os resultados efetivamente
249NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalização. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 57.250NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalização. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 61.
93
alcançados, realizando a devida prestação de contas daquele exercício financeiro. A
apresentação do relatório de atividades da organização social dar-se-á ao termino de cada
exercício, ordinariamente, ou a qualquer momento, extraordinariamente.251
Uma vez apresentado o relatório, este será repassado à avaliação de uma comissão, a
ser composta por especialistas da área de atuação da organização social. A comissão de
avaliação proverá um relatório conclusivo acerca dos resultados alcançados pela entidade
fomentada, a fim de atestar a adequabilidade dos dados enviados e o andamento da execução
do contrato de gestão.
Na mesma esteira, o art. 2º, inciso II, alínea “f”, determina a obrigatoriedade de
publicação anual, no Diário Oficial da União, dos relatórios financeiros e do relatório de
execução do contrato de gestão, dispositivo legal que claramente pretende proporcionar uma
maior publicidade às atividades desenvolvidas pela entidade fomentada e ao destino dos
recursos nela aplicados.
Ainda sobre mecanismos de controle interno, há falar no art. 17 da Lei n. 9.637/1998,
que implementa a obrigatoriedade da observância, por parte das organizações sociais, de uma
regulamentação para a contratação de obras e serviços, bem como para aquisições com o
emprego de recursos públicos. A referida regulamentação deverá ser publicada no prazo
máximo de noventa dias, contado da assinatura do contrato de gestão. Para Leon Frejda
Szklarowsky, o regulamento contendo os procedimentos para as contratações a serem
realizadas pela organização social deverá consubstanciar os princípios gerais do processo
licitatório, na esteira do que já decidiu o Tribunal de Contas da União com relação aos
Serviços Sociais Autônomos (Decisão Plenária n. 907/97)252.
No que toca ao controle externo – aquele exercido pelo Poder Legislativo, com o
auxílio técnico-administrativo do Tribunal de Contas –, deve-se cotejar o art. 9º da Lei n.
9.637/1998 com o parágrafo único do art. 70 da Constituição Federal. Enquanto o primeiro
prevê a atuação do Tribunal de Contas da União (tratando-se de organizações sociais no
âmbito federal) quando provocado pelos órgãos responsáveis pela fiscalização da execução do
contrato de gestão, a previsão constitucional determina a prestação de contas ao Tribunal de
Contas por qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade,
guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União
responda. É possível concluir, portanto, que a atuação do Tribunal de Contas não se dará tão-
só quanto provocado, mas sim de forma periódica, por meio do exame da prestação de contas
251ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 148-149252SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Organizações sociais. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 154, mar. 1999.
94
que deverá ser apresentada pela organização social.253
Destarte, além do controle previsto no art. 9º da Lei n. 9.637/1998, há o dever
constitucional da organização social de prestar contas ao Tribunal de Contas, haja vista que
tais entidades utilizam-se de bens, servidores e até mesmo de recursos orçamentários para que
possam cumprir o contrato de gestão celebrado.254 Outrossim, há a previsão constitucional de
que “qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na
forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da
União”255.
A terceira espécie de controle – o controle social – é nota distintiva nas organizações
sociais, estando inserida no ideal de efetiva participação da sociedade civil na administração
do que é considerado de interesse público. Élida Graziane Pinto aponta duas formas
institucionalizadas pela Lei n. 9.637/1998 de exercício do controle social: a quota de membros
do Conselho de Administração destinada aos representantes da sociedade civil (art. 3º, inciso
I, alínea “b”) e aquela prevista no art. 20, inciso III, onde se lê que deve ser observado, na
implantação do Programa Nacional de Publicização, o controle social das ações de forma
transparente. Finda a autora por concluir que, enquanto a primeira forma de controle é
plenamente operável, a segunda ainda se encontra em um plano programático, ainda não
procedimentalizada.256
Quanto ao controle social exercido pelos membros do Conselho de Administração,
Marianne Nassuno vislumbra sua ineficácia em razão das dificuldades da organização dos
usuários e os custos de participação envolvidos. Explica a autora que o grupo de usuários
atendidos pelas organizações sociais, levando-se em conta as variadas áreas de atuação destas,
costumam ser numerosos e dispersos, faltando-lhes mobilização para se fazerem devidamente
representados no Conselho. Como solução, sugere a implantação de um mecanismo que
prescinda da organização da ação coletiva dos usuários, citando o exemplo do ombudsman.257
Paralelamente, o art. 10 da Lei n. 9.637/1998 trata da competência do Ministério
253Nesse sentido: FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 184; PIRES, Maria Coeli Simões. Terceiro setor e as organizações sociais. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v.15, n.4, p. 252, abr. 1999; SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Organizações sociais. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 155, mar. 1999.254COPOLA, Gina. As organizações sociais e os contratos de gestão. BLC: Boletim de Licitações e Contratos, v.17, n. 8, p. 574, ago. 2004.255Art. 74, § 2º, da Constituição Federal. 256PINTO, Élida Graziane. Organizações Sociais e reforma do Estado no Brasil: riscos e desafios nesta forma de institucionalizar a parceria Estado-sociedade organizada. In: Documentos Debate: Estado, Adminstración Pública y Sociedad : XIV Concurso de Ensayos y Monografías sobre Reforma del Estado y Modernización de la Administración Pública. Ensayos Ganadores 2000. Caracas: CLAD, n. 6, p. 70, abr. 2001.257NASSUNO, Marianne. Organização dos usuários, participação na gestão e controle das organizações sociais. Revista do Serviço Público, Brasília, v. 48, n. 1, p. 32-38, jan./abr. 1997.
95
Público, da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria da entidade para, quando
provocados pelo órgão fiscalizador, requererem ao juízo competente a decretação da
indisponibilidade dos bens da organização social e o seqüestro dos bens dos seus dirigentes,
bem como de agente público ou terceiro, que possam ter enriquecido ilicitamente ou causado
dano ao patrimônio público. No entender de Andrea Nunes, o dispositivo legal não afasta o
poder fiscalizatório constitucionalmente atribuído ao Ministério Público no que toca ao
patrimônio público e social e que prescinde de representação por parte de qualquer órgão.258
2.7 A perda da qualificação
Em seu art. 16, a Lei n. 9.637/1998 prevê a desqualificação da entidade quando
constatado o descumprimento das disposições previamente acordadas no contrato de gestão
firmado. Por meio da referida previsão legal, verifica-se, mais uma vez, o papel essencial do
contrato de gestão para a concretização da parceria entre organização social e Poder Público,
constituindo-se o seu pleno cumprimento em condição sine qua non para a manutenção do
título jurídico.
Conforme destaca Sílvio Luís Ferreira da Rocha, o não-cumprimento das cláusulas do
contrato de gestão de que trata o legislador deve refletir, tão-somente, a resolução do contrato
de gestão por culpa ou dolo da organização social, e não qualquer espécie de extinção do
contrato de gestão.259
Moreira Neto acrescenta como causa de desqualificação a invalidade ou a perda das
condições essenciais à qualificação obtida.260 Se há requisitos rígidos a serem cumpridos para
a obtenção da qualificação, parece lógico que o não-cumprimento superveniente destes
mesmos requisitos acarrete a perda da qualificação, uma vez que a entidade não mais ostenta
as características que lhe são legalmente exigidas – finalidade não-lucrativa, atuação em área
social, possuir órgãos de deliberação nos moldes previstos em lei, etc.
Segundo Juarez Freitas, a redação do art. 16 equivocadamente dá azo à interpretação
de que o ato de desqualificação não é vinculado à constatação do descumprimento das
disposições contidas no contrato de gestão, quando dispõe que “o Poder Executivo poderá
258NUNES, Andrea. Terceiro setor: controle e fiscalização. 2. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 138.259ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 170.260MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 553.
96
proceder à desqualificação da entidade como organização social”. Para o autor, a
desqualificação é cogente, não podendo admitir-se qualquer juízo subalterno ou condescência
impertinente quando a desqualificação é, em verdade, inarredável.261 No entender de Élida
Graziane Pinto, a preocupação com a redação do art. 16 deve ser minimizada, devendo-se
evitar sua interpretação literal em favor de uma compreensão do verbo “poderá” como
“deverá”, tal qual se procede com várias outras disposições legais em nosso ordenamento.262
Sílvio Luís Ferreira da Rocha oferece solução diferenciada para a interpretação do art.
16, afirmando que há, sim, margem de liberdade para a apreciação subjetiva do administrador
na aplicação da sanção, devendo ser escolhida a alternativa que melhor atenda ao interesse
público. Para o autor, o critério “interesse público” bastaria para que situações envolvendo,
verbi gratia, desvio de recursos, desencadeassem, necessariamente, um processo de
desqualificação.263
Assinala o art. 16 que a desqualificação será precedida de processo administrativo,
respondendo os dirigentes da organização social, individual e solidariamente, pelos danos ou
prejuízos decorrentes de sua ação ou omissão. Trata-se da aplicação dos princípios
constitucionais da ampla defesa e do devido processo legal, antes que se proceda à aplicação
da sanção consistente na perda do título jurídico de organização social.
Como conseqüência da desqualificação, a Lei n. 9.637/1998 impôs a reversão dos bens
permitidos e dos valores entregues à utilização da organização social. Para Sílvio Luís
Ferreira da Rocha, “reversão” não consiste em um termo tecnicamente correto, uma vez que
os bens sempre pertenceram ao Poder Público; logo, tratar-se-ia de simples resolução da
permissão de uso.264
A entrega dos bens e dos valores aparentemente deverá se ajustar à previsão do art. 2º,
inciso I, alínea “i”, que fala na incorporação integral do patrimônio, dos legados ou das
doações que lhe foram destinados, bem como dos excedentes financeiros decorrentes de suas
atividades, ao patrimônio de outra organização social qualificada no âmbito da União, da
mesma área de atuação, ou ao patrimônio da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos
Municípios, na proporção dos recursos e bens por estes alocados. Viabiliza-se, assim, a
continuidade da atividade de fomento às entidades que se dedicam à prestação de serviços de
261FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 186.262PINTO, Élida Graziane. Organizações Sociais e reforma do Estado no Brasil: riscos e desafios nesta forma de institucionalizar a parceria Estado-sociedade organizada. In: Documentos Debate: Estado, Adminstración Pública y Sociedad : XIV Concurso de Ensayos y Monografías sobre Reforma del Estado y Modernización de la Administración Pública. Ensayos Ganadores 2000. Caracas: CLAD, n. 6, p. 64, abr. 2001.263ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 171.264ROCHA, Sílvio Luís Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 177.
98
CONCLUSÃO
Inegável que o Estado brasileiro, ao adotar o ideário social-democrata, teve suas áreas
de atuação repensadas por ocasião da edição do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do
Estado, de 1995. O desejo de fortalecimento do Estado brasileiro na função de mero promotor
e regulamentador do desenvolvimento econômico e social, estampado em cada linha do Plano
Diretor, apenas seria efetivamente concretizado com a redução do aparelho estatal – a efetiva
delimitação da área de atuação do Estado, retirando-lhe o encargo de prestar, diretamente, os
ditos serviços não-exclusivos.
Contudo, a implantação de um verdadeiro Estado subsidiário, com foco na eficiência e
no cidadão-cliente, exigia a consolidação de um setor apto a desempenhar, satisfatoriamente,
as atividades que não mais caberiam ao Estado. E ao dispor acerca do alcance dos objetivos
de reforma do aparelho do Estado, o Plano Diretor aponta o terceiro setor (ou setor público
não-estatal) – assim denominado o conjunto de pessoas jurídicas de direito privado que,
paralelamente ao Estado, exercem atividades de interesse público e sem fins lucrativos –
como aquele hábil a executar, integralmente, os ditos serviços sociais não-exclusivos.
O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado não se limitou a apenas prever a
participação do setor público não-estatal no processo de reforma do aparelho do Estado, tendo
introduzido, também, o instrumento principal pela qual a referida participação se daria: o
projeto de criação das organizações sociais, posteriormente corporificado na Lei federal n.
9.637/1998. As organizações sociais tratar-se-iam, em verdade, de organizações do terceiro
setor detentoras de um título jurídico que as autoriza a celebrar um contrato de gestão com o
Poder Público e, assim, serem destinatárias de recursos, servidores e bens públicos.
Embora o ordenamento jurídico brasileiro já previsse a existência de títulos jurídicos
outorgáveis a organizações públicas não-estatais – a declaração de utilidade pública e de fins
filantrópicos –, o que sugere a importância adquirida pelo terceiro setor na pauta política
brasileira, é cediço que as diretrizes e os objetivos inseridos na reforma do aparelho do Estado
brasileiro de 1995 estabeleceram um marco no fortalecimento do setor público não-estatal,
agora encarado como um valioso parceiro do Poder Público para a realização do interesse
coletivo.
Após a indigitada reforma, duas qualificações jurídicas foram criadas no ordenamento
jurídico pátrio: a já mencionada qualificação como organização social, cuja criação restou
prevista no corpo do Plano Diretor, e a qualificação jurídica como organização da sociedade
99
civil de interesse público, instituída pela Lei federal n. 9.790/1999. Ambas despontam como
títulos jurídicos que se coadunam com o ideal de delimitação da atuação estatal, uma vez que
autorizam as pessoas jurídicas de direito privado que os recebem a estabelecer um vínculo de
parceria com o Poder Público, desenvolvendo atividades de interesse público sem finalidade
lucrativa, fora do aparelho estatal.
Outrossim, os títulos jurídicos criados após o início do processo de reforma do
aparelho do Estado se harmonizam com o modelo gerencial de Administração Pública, que se
sustenta na atuação estatal eficiente e meramente subsidiária, estando as atividades
desenvolvidas pelas entidades outorgadas com tais títulos sob rígido controle de resultados, a
ser minuciosamente assentado no instrumento hábil para o ajustamento da parceria com o
Poder Público.
As organizações sociais, escopo específico do presente trabalho, representam a
primeira iniciativa do legislador brasileiro no sentido de efetivamente delimitar a área de
atuação estatal. Em seu diploma legal paradigmático, a Lei federal n. 9.637/1998, resta
assinalada não só a sua atuação como típica entidade pertencente ao terceiro setor, atuando
paralelamente ao Estado, tendo suas atividades de interesse público fomentadas pelo Poder
Executivo, mas também a sua atuação como verdadeira sucessora de entidades e órgãos
públicos extintos, absorvendo as atividades sociais a que estas se dedicavam.
Sobressaem-se as organizações sociais, ainda, em razão dos meios de fomento que lhe
são previstos em lei e que excedem aqueles comumente empregados a outras organizações
públicas não-estatais, igualmente parceiras do Poder Público. Para que o cumprimento do
contrato de gestão esteja plenamente garantido, a Lei n. 9.637/1998 prevê a possibilidade de
destinação de recursos orçamentários, bens públicos e até mesmo a cessão de servidores
públicos para a organização social.
Examinar as características atribuídas pelo legislador às entidades qualificadas como
organizações sociais parece envolver, necessariamente, uma reflexão acerca das potenciais
falhas contidas no modelo federal e da possibilidade de aprimoramento deste. Embora muitas
das imperfeições vislumbradas no modelo federal tenham sido reparadas nos diplomas legais
locais que instituíram e disciplinaram a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado
como organizações sociais em municípios e estados, falhas graves subsistem justamente no
diploma legal que serve de paradigma para todas as esferas da Administração Pública.
Primeiramente, há a questão do ato de qualificação das entidades candidatas, envolto
por requisitos que não parecem garantir um efetivo controle interno das atividades
desenvolvidas pela organização social. Tem-se, a título exemplificativo, o requisito da
100
previsão de criação de um Conselho de Administração com massiva participação de
representantes do Poder Público, cuja eficácia e utilidade é discutível, ao passo que se opta
por dispensar a entidade candidata da necessidade de demonstração de qualquer habilitação
técnica e econômico-financeira mais minuciosa.
Consideradas as relevantes benesses aproveitáveis às entidades qualificadas como
organizações sociais, que incluem a possibilidade de destinação de recursos orçamentários,
bens e servidores públicos, sob qual fundamento poderia o legislador deixar de exigir a
comprovação, por parte da entidade candidata ao título jurídico, de tempo mínimo de atuação
na área da atividade a ser fomentada, ou da existência de patrimônio condizente com as metas
que se propõe a perseguir? Trata-se, aqui, de requisitos de complexidade mínima, que
auxiliariam no fortalecimento da credibilidade de tais instituições e minimizariam os riscos de
descumprimento do contrato de gestão.
Ainda sobre o ato de qualificação, afigura-se questionável a escolha do legislador
federal de revesti-lo em discricionariedade. Afinal, em um extenso universo de entidades de
direito privado, candidatas à qualificação como organização social, atraídas pela possibilidade
de estabelecerem um vínculo de parceria com o Poder Público e, dessa forma, terem suas
atividades fomentadas por este, não parece apropriado incumbir dois órgãos federais da tarefa
de examinar a conveniência e oportunidade da qualificação intentada. Bastaria que se
fixassem requisitos objetivos para a outorga do título jurídico, que poderiam até mesmo
culminar na submissão das entidades candidatas à qualificação a um procedimento licitatório.
Não se pode olvidar, também, a lacuna da Lei n. 9.637/1998 no que diz respeito ao
tempo da celebração do contrato de gestão. Toda entidade qualificada como organização
social possui o direito subjetivo à celebração imediata de um contrato de gestão? Ao que
parece, a qualificação como organização social afigura-se vazia sem o ajustamento da parceria
via contrato de gestão, pois é ele o instrumento hábil a estabelecer as condições em que se
dará o fomento estatal. Tal constatação reforça a necessidade de que o ato de qualificação
consista, por si só, em eficaz meio de controle da atuação tais entes.
Quanto à dispensa de licitação pública para a celebração do indigitado contrato,
consagrada no art. 24, inciso XXIV, da Lei n. 8.666/1993, cuja controvérsia resta, inclusive,
exposta nos autos da Ação de Direta de Inconstitucionalidade n. 1.923-5, em tramitação no
Supremo Tribunal Federal, é provável que a celeuma acerca do tema fosse abrandada com a
simples instituição de um processo objetivo de seleção que remonte ao momento da outorga
do título jurídico. Destarte, a celebração do contrato de gestão e o conseqüente repasse de
recursos públicos seriam obrigatoriamente precedidos por um processo administrativo que
101
garantisse igualdade a todos os interessados e a observância aos princípios constitucionais da
função administrativa do Estado.
Por fim, igualmente controvertida mostra-se a possibilidade de que organizações
sociais absorvam atividades de entidades e órgãos públicos extintos, transferência de serviços
não-exclusivos denominada “publicização”, embora a prática em comento seja escassa no
âmbito da Administração Pública federal. Pode o Estado transferir ao setor público não-estatal
o encargo de prestação de todos os serviços sociais, ditos não-exclusivos?
A Constituição Federal estabelece, por certo, o dever do Estado de prestar a todo
cidadão brasileiro certos serviços sociais, inclusive em regime de gratuidade; e alguns destes
serviços poderão ser objeto de publicização, de acordo com a Lei n. 9.637/1998. Os
argumentos favoráveis e contrários ao processo de publicização por organizações sociais
encarregam-se, em sua maioria, de manipular livremente o conceito de “prestação”; os
primeiros sustentam que a prestação de serviços não-exclusivos por organizações sociais
coaduna-se com o texto constitucional, porquanto o Estado mantém a posição de financiador
das atividades destas entidades, ao passo que os segundos centram-se na necessidade de que o
Estado preste, diretamente, os serviços sociais que lhe são constitucionalmente atribuídos.
Diante da manifesta inaptidão da Administração Pública brasileira em cumprir com os
inúmeros deveres que lhe são constitucionalmente impostos, engessada em uma estrutura
ainda burocrática e ineficiente, e da notória insatisfação dos administrados com os serviços
públicos que lhe são ofertados, as concepções pessoais acerca do que devam ser, de fato,
atribuições do Estado, são postas à prova. E então o ideal do Estado subsidiário, antes utópico,
parece menos intangível, e mais desejável.
Certo é que, antes de proceder-se à análise da viabilidade jurídica do processo de
publicização, deve-se assegurar o aprimoramento do modelo federal das organizações sociais.
Tal qual delineado no âmbito da Administração Pública federal, o modelo apresenta graves
impropriedades, que comprometem demasiadamente a sua aplicação extensiva. Não se trata,
aqui, de desconstituir uma figura jurídica de inestimável valor para a redução do aparelho do
Estado brasileiro, mas sim de provê-la com atributos capazes de garantir a boa gestão da res
publica.
O comprometimento e aptidão do setor público não-estatal para o desempenho de
atividades de interesse coletivo, atuando paralelamente ao Estado, é demonstrado por meio de
inúmeras iniciativas atualmente executadas no Brasil. E ainda que máculas no modelo sejam
esporadicamente reveladas, observa-se o crescente esforço no sentido de ampliar as formas de
controle e fiscalização da atuação de tais organizações da sociedade civil, estreitando
102
possíveis margens para atos ímprobos e atentatórios à moralidade administrativa.
No entanto, assumir integralmente atividades que sempre foram atribuídas ao Estado,
e que dizem respeito ao atendimento de direitos fundamentais do cidadão, consiste em zona
de atuação ainda pouco explorada pelas organizações públicas não-estatais. Superadas as
controvérsias iniciais e valendo-se de um vínculo de parceria administrativa e judicialmente
viável, resta saber se a sociedade civil organizada demonstrará o seu comprometimento e
aptidão característicos também na tarefa de substituir o Poder Público na prestação de
serviços sociais.
103
REFERÊNCIAS
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BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. In: CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas (Coord.). Desenvolvimento econômico e intervenção do Estado na ordem constitucional: estudos jurídicos em homenagem ao professor Washington Peluso Albino de Souza. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1995, p. 99-138.
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